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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Texto de autoria de Fábio Machado Baldissera e Demétrio Beck da Silva Giannakos Introdução O objetivo deste breve artigo é chamarmos a atenção para o fato de que, não raras vezes, verifica-se uma inadequada intervenção do Poder Judiciário nos contratos. Por essa razão, pinçamos uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a qual, ao nosso sentir, desvirtuou o que as partes originalmente acordaram em um contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Desafortunadamente, tal decisão alterou o que havia sido avençado de forma cristalina pelas partes no contrato, sem que existissem elementos no processo que pudessem justificar a fundamentação adotada em tal decisão. Aliás, a decisão restou fragilmente alicerçada e em desacordo com a normativa processual civil, em especial no seu artigo 4891. Para piorar, valeu-se da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a fim de dar azo à discricionariedade dos julgadores. Espera-se que essas decisões sejam cada vez mais isoladas. Nesse contexto, a incorporação da Lei de Liberdade Econômica no nosso sistema jurídico parece ter vindo em boa hora e poderá ser um valioso instrumento para inibir o conhecido ativismo judicial. Análise da decisão do TJRJ que reduziu a cláusula penal da promessa de compra e venda de imóvel Feitas as considerações iniciais, passamos a analisar a decisão do TJ/RJ que julgou a Apelação Cível nº 0232054-13.2012.8.19.0001, fundamentando a decisão por meio de princípios contratuais usados de forma inadequada. Tal decisão, em nosso entender, teve um cunho acentuadamente discricionário, na medida em que existe falta de suporte legal e, aparentemente, contratual e fático2, para a radical modificação do contrato imobiliário3 firmado entre as partes4. O recurso de apelação versou, de forma resumida, sobre cláusula penal estabelecida entre as partes, no valor de R$ 500.000,005, caso uma delas descumprisse o contrato de promessa de compra e venda de imóvel, esse com valor estipulado em contrato no montante de R$ 360.000,00. Contudo, o TJRJ, ao julgar o recurso, reduziu a cláusula penal para o montante de R$ 30.000,00. Em apertada síntese, o TJRJ mencionou que a decisão se pauta na "primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes", bem como que a decisão se encontrava alicerçada conforme os "princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação ao enriquecimento ilícito". Destaca-se, de outro lado, o acerto do acórdão ao invocar o artigo 412 do Código Civil6, para limitar a cláusula penal, conforme previsto no citado artigo. Contudo, excedeu-se quando reduziu abruptamente a cláusula penal com base na sua discricionariedade. Ao analisar os autos do processo, salvo melhor juízo, não há indicativo de descumprimento do contrato de promessa de compra e venda, a fim de que pudesse ser legitimada a redução da cláusula penal em desfavor do autor e beneficiário da cláusula penal. A decisão foi contrária às disposições legitimamente acordadas pelas partes no caso concreto, como se pode depurar da Cláusula 6.2 do contrato, "O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)". Desse modo, o Poder Judiciário poderia reduzir a multa até o montante da obrigação, ou seja, R$ 360.000,00, escorado pelo artigo 412 do Código Civil. Não obstante, reduziu a cláusula penal para R$ 30.000,00, ou seja, num patamar 16 vezes menor do que a cláusula penal originalmente pactuada e 12 vezes menor do que a obrigação avençada no contrato. Quais os parâmetros para a redução tão abrupta da cláusula penal em desprestígio à autonomia privada? A decisão se equivocou ao utilizar importantes princípios contratuais que servem para dar sustentação ao julgador, sobretudo em hipóteses onde se faz necessária uma interpretação do todo, reduzindo-os como argumento retórico. A redução para o valor de R$ 30.000,00 é baseada em uma concepção moral7 e subjetiva dos julgadores de que, em suas visões, tal valor seria suficiente para ressarcir o descumprimento abrupto do contrato. Uma pena. Frisa-se que, no caso em tela, estamos tratando de uma relação simétrica, na qual não há descompasso entre os contratantes. Portanto, decisões que escapam geometricamente à vontade das partes são inconcebíveis8. Ademais, elas causam um efeito indesejado ao sistema, pois estimulam a judicialização9, trazendo insegurança jurídica, pois um contrato não respeitado sob a chancela do Poder Judiciário pode criar um efeito manada (ou efeito dominó). Tal efeito é maléfico à sociedade e ao próprio Judiciário. A Lei da Liberdade Econômica: um alento à autonomia privada trazido pelo legislador Em 20 de setembro de 2019, o legislador trouxe a resposta que vinha sendo reivindicada pela sociedade e, especialmente, pelo mundo empresarial, editando-se a chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019). Destaca-se a inserção pelo novel texto legal do §1º ao artigo 113 e do artigo 421-A ao Código Civil, bem como a nova redação conferida ao seu artigo 421, os quais prestigiam a autonomia da vontade. A intenção trazida pela modificação legislativa, ao nosso entender, foi de reduzir a discricionariedade10 judicial e a busca da preservação do autorregramento e da liberdade das disposições contratuais pactuadas pelas partes. Como resultado, espera-se que os novos dispositivos da Lei da Liberdade Econômica sirvam para prestigiar a segurança jurídica e a autonomia das partes, que são basilares ao desenvolvimento de qualquer nação. Na prática, o conhecimento por uma das partes sobre a possibilidade de decisões que intervenham de forma despropositada no contrato alinhado pode motivar comportamentos oportunistas que comprometem o mecanismo de mercado, prejudicando a eficiência econômica e a virtude das trocas que visam a gerar ganhos esperados de bem-estar para as partes envolvidas11. Dessa forma, eventuais decisões dos Tribunais, que sejam proferidas sem a melhor técnica jurídica, trazem o risco de estimularem o descumprimento contratual por parte do devedor que, sabendo desse posicionamento, vê-se incentivado a descumprir a avença quando lhe for conveniente. Com o advento da Lei da Liberdade Econômica, intenta-se reduzir a esfera de intervenção nas relações contratuais, tendo como exceção, na dicção do caput do art. 421-A do Código Civil, situações que apresentem elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção de paridade e simetria das partes. Contrariamente no que se encontra nas relações de trabalho e de consumo, a assimetria nas relações civis e empresariais não é presumida, ao invés, tem-se como requisito a sua comprovação. As modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica não são incólumes de críticas, notadamente no que tange a uma possível mais clara redação12. Contudo, a nova normativa era necessária. Ela prestigiou de forma salutar a autonomia e a vontade das partes nas relações contratuais, nas quais se presume a simetria, sem prejuízo de que seja identificado pelo julgador a presença de elementos que alicercem o excepcional tratamento assimétrico, o qual deve ser passível de comprovação, nos termos da lei. Conclusões Como principais conclusões desse breve estudo destacam-se: (i) Os princípios contratuais não devem servir como tábua de salvação para descumprimento contratual, sob pena do seu esvaziamento e do aumento do custo de transação que traz prejuízos a sociedade. (ii) O Judiciário deve ter o cuidado de fundamentar as suas decisões com exacerbada discricionariedade, subjetividade e/ou com escassez de adequada técnica jurídica e reflexão, sob pena de enfraquecer o sistema jurídico. (iii) A Lei de Liberdade Econômica está posta para que os julgadores distingam, com maior clareza, a aplicação da lei e dos princípios contratuais, modulando-os conforme o caso concreto e a intenção das partes. *Fábio Machado Baldissera é advogado, sócio de Souto Correa Advogados, doutor em Direito pela Universidad de Burgos, especialista em Direito Imobiliário pela FADISP, diretor estadual do IBRADIM - RS, diretor da AGADIE, professor em cursos de pós-graduação e autor de diversos artigos e obras jurídicas. Rede social: @fabiombaldissera. **Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, associado do IBRADIM. Rede social: @demetriogiannakos. __________ 1 Nesse sentido, vide: O impacto do Novo CPC no Direito Contratual: a exigência de Fundamentação das decisões e a Aplicação do princípio da boa-fé. In: Impactos do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro (Coord. Marcos Ehrhardt Jr., Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 37-54, em especial, p. 49-52. 2 Nesse sentido, buscamos acesso integral aos autos, a fim de não cometer justamente a falha do sistema que indicamos nesse breve artigo. 3 André Abelha ao analisar os dispositivos trazidos pela Lei dos "Distratos" (Lei 13.786, de 28.12.2018), pondera que a redução da cláusula penal pelo juiz somente será legítima para coibir excessos: "(...) não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada nos contratos imobiliários, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/18. Isto não significa, contudo, um cheque em branco para o juiz. O dispositivo em questão traz uma condição claríssima para a redução: excesso manifesto. Reparem: não basta um excesso qualquer; ele deve ser manifesto, ululante, exagerado". ABELHA. André. Lei 13.786/18: Pode o juiz reduzir a cláusula penal? Acesso 24 de julho de 2020. 4 (...) Negócio jurídico entabulado sob condições específicas, visando a autorização judicial da venda, momento em que seria concretizado o pagamento do preço avençado, mediante depósito em juízo. 3. Sentença de improcedência do pleito autoral fundamentada, em síntese, no princípio da exceção de contrato não cumprido. 4. Autor que, todavia, logrou comprovar documentalmente ter adotado as providências pactuadas que lhe cabiam para obtenção da autorização judicial de venda. 5. Caso concreto que denota ulterior desequilíbrio financeiro do contrato ocorrido por motivos alheios à vontade das partes contratantes. 6. Prejuízos do autor advindos da quebra do contrato que deve ser abrandado pela existência de circunstâncias fáticas que ensejaram tal descumprimento pelos réus, com primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes. 7. Aplicação da cláusula penal que se impõe, reduzida a patamar que se amolde as circunstâncias fáticas em tela, em adequação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 8. Provimento parcial do recurso do autor e desprovimento do recurso dos réus. (Des(a). Elton Martinez Carvalho Leme - Julgamento: 01/06/2016 - Décima Sétima Câmara Cível - 0232054-13.2012.8.19.0001 - Apelação). 5 6.2. O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). 6 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. 7 Lenio Luiz Streck, sobre a temática dispõe: "Quero dizer, simplesmente, que na Democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais. Simples assim". STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1 ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 11. O que se pretende demonstrar aqui é que o Direito não pode ser corrigido pela moral. 8 Conforme: KLOH, Gustavo. Teoria econômica da propriedade e dos contratos. In: Direito e economia: diálogos (coord. Armando Castelar Pinheiro, Antônio J. Maristello Porto, Patrícia Regina Pinheiro Sampaio, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, p. 304, "O grande desafio é o equilíbrio entre um possível excesso de intervencionismo e as dificuldades dessa intervenção, encontrar um meio-termo onde não haja uma restrição ao funcionamento do mercado e altos custos fiscais impostos para atingir a eficiência esperada". 9 Este ponto também é importante ao debate. O indivíduo que ajuíza uma ação no Brasil contribui em média com apenas 10% do custo do novo processo gerado. Há, assim, um evidente incentivo para que muitas ações sejam ajuizadas, levando ao esgotamento da atividade jurisdicional como bem comum. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 87. 10 É preciso compreender a discricionariedade como sendo o poder arbitrário (antidemocrático) em favor do juiz para "preencher" os espaços "vazios" do modelo de regras (leis). Discricionariedade, no modo como ela tem sido praticada, acaba, no plano da linguagem, sendo sinônimo de arbitrariedade. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 75-84. 11 COULON, Fabiano Koff; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Lei da Liberdade Econômica e o comportamento oportunista dos contratantes. Jota. Acessado em 09 de julho de 2020. 12 Ver: TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória n. 881/2019 (Liberdade Econômica) e as alterações do Código Civil. RJLB, ano 5 (2019), n. 4, 871-904.
Texto de autoria de Melhim Chalhub A Medida Provisória 992, de 16 de julho de 2020, dispõe sobre a concessão de crédito a microempresas e empresas de pequeno e de médio porte no âmbito do Programa de Capital de Giro para Preservação de Empresas - CGPE, sobre o crédito presumido apurado com base em créditos decorrentes de diferenças temporárias pelas instituições financeiras e pelas demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, exceto as cooperativas de crédito e as administradoras de consórcio e sobre o compartilhamento de alienação fiduciária. Dentre essas medidas, desperta especial atenção a possibilidade de ampliação do potencial da garantia fiduciária de bens imóveis como elemento catalisador da atividade econômica, destinado a impulsionar a reativação da economia. Trata-se sem dúvida de direito real de garantia cujos efeitos práticos vêm demonstrando sua decisiva importância na expansão do crédito e na circulação da riqueza desde sua entronização no direito brasileiro em 1965, notadamente nos mercados de financiamento de bens móveis para consumo e de produção e comercialização de imóveis. Sua superior efetividade em relação às garantias hipotecária, pignoratícia e anticrética decorre, fundamentalmente, de dois fatores: (i) blindagem do bem objeto da garantia em um núcleo patrimonial de afetação, que protege o direito do credor, excluindo-o dos efeitos de situações de crise do devedor fiduciante, notadamente de sua insolvência, e (ii) simplicidade e celeridade da realização da garantia, na medida em que, uma vez caracterizado o inadimplemento da obrigação garantida, opera-se a consolidação da propriedade no patrimônio do credor por procedimento extrajudicial, seguida de leilão para venda do bem. A ideia do compartilhamento da garantia previsto nesse novo texto legal pode contribuir para a abertura de novas linhas de crédito bancário destinado à atividade produtiva. Trata-se de ideia que, em certa medida, pode ser suprida por outra figura já existente no direito positivo, isto é, a alienação fiduciária da propriedade superveniente, e vem complementada por mecanismos operacionais modernizadores. Entretanto, antes mesmo da inovação de mecanismos de aplicação dessa garantia é necessário suprir algumas distorções e lacunas da legislação original, para as quais há muito vimos nos manifestando tendo em vista que podem comprometer a efetividade da inovação agora encaminhada ao Congresso Nacional. De fato, o emprego generalizado da garantia fiduciária, sobretudo sobre bens imóveis, vem proporcionando a formação de massa crítica que, a despeito de confirmar sua importância no mercado de crédito, põe em destaque alguns aspectos merecedores de atenção, inclusive em face de inovações do novo Código de Processo Civil de 2015, em relação às quais propusemos alteração legislativa no II Congresso Nacional do IBRADIM, realizado em 2019. Recorde-se que ao regulamentar a alienação fiduciária de bem imóvel, a lei 9.514/1997 prevê a exoneração da responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante por eventual saldo remanescente da dívida, caso no leilão do imóvel não se apure quantia suficiente para seu resgate integral. O precedente em que se inspirou a lei 9.514/1997 é a lei 5.741/1971, que, na execução de crédito hipotecário habitacional vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH, exonera o tomador de financiamento para moradia própria da responsabilidade pelo saldo remanescente caso não se alcance no leilão quantia suficiente para pagamento integral da dívida1, operando-se a satisfação do crédito mediante atribuição do imóvel ao credor. Trata-se de norma de exceção, de proteção do adquirente de moradia, instituída em 1971 para afastar o risco de superendividamento, mas, ao transportar essa norma excepcional para as operações de crédito com garantia fiduciária, a Lei 9.514/1997 institui-a como regra geral, que incide sobre toda a gama de operações de crédito, inclusive para fins empresariais. Para correção dessa grave distorção basta alterar os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, restringindo a exoneração de responsabilidade aos créditos destinados à aquisição ou construção de moradia, mas o legislador, na tentativa de corrigi-la, quando da formulação das leis 11.795/2008 (§ 6º do art. 14) e 13.476/2017 (arts. 3º ao 9º), trata da matéria em relação ao autofinanciamento de grupo de consórcio e à operação bancária denominada "abertura de limite de crédito", esquecendo-se, todavia, de adequar a redação daqueles dispositivos da lei 9.514/1997 que impedem o credor de aceitar quantia inferior ao saldo devedor, impondo-se compulsoriamente a apropriação do imóvel pelo valor da dívida. Ora, na medida em que os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997 impedem o credor fiduciário de aceitar lance inferior ao saldo devedor e o compelem a ficar com o imóvel em pagamento da dívida por esse valor, considerando, em consequência, "extinta a dívida", não haverá qualquer saldo remanescente após o segundo leilão, sendo, portanto, estéreis essas duas leis que pretenderam submeter o devedor fiduciante, nessas hipóteses, ao princípio geral da responsabilidade patrimonial. Associada à necessidade de correção dessa distorção relacionada à responsabilidade patrimonial, outra situação merecedora de atenção diz respeito a eventual desproporção entre o valor da dívida e o do imóvel, que reclama adequação da legislação sobre alienação fiduciária de bem imóvel às normas sobre a vedação de preço vil. No primeiro caso, a lei 9.514/1997 deve adequar-se à regra geral do art. 1.366 do Código Civil, segundo a qual se, no leilão, o produto da venda do bem não bastar para pagamento da dívida, encargos e despesas da execução, o devedor fiduciante responde pelo saldo remanescente, cobrável por ação de execução. Em caráter excepcional, aplicar-se-ia a exoneração da responsabilidade somente em relação aos tomadores de financiamentos habitacionais, exceto nas operações autofinanciamento em grupos de consórcio. No segundo caso, é necessária alteração legislativa que estabeleça como lance mínimo pelo menos 50% do valor da avaliação, visando afastar o risco de arrematação por preço vil. Considerando que, pela consolidação da propriedade, o imóvel é incorporado ao patrimônio do credor pelo valor da dívida, caso se frustre o leilão e o imóvel nele permaneça por esse valor, a consolidação caracterizaria aquisição pelo credor por preço vil se o valor da dívida for inferior a 50% do valor da avaliação; esse risco poderá ser afastado mediante pagamento ao devedor fiduciante da diferença entre o valor da dívida e o correspondente a 50% da avaliação, se este for maior. Merece também atenção com vistas à adequação da garantia fiduciária imobiliária à realidade do mercado de crédito em geral a excussão da garantia quando composta por dois ou mais imóveis. Neste caso, considerando que a realização de leilão de todos os imóveis simultaneamente pode ser dificultada, sobretudo em relação a imóveis situados em localidades distintas, é recomendável a realização de leilões sucessivos, eventualmente em datas distintas e na medida em que seja liberada a certidão de averbação da consolidação de cada imóvel. Assim, se o produto do leilão do imóvel ofertado em primeiro lugar não for suficiente para satisfação integral do crédito, os outros continuariam respondendo pelo saldo remanescente, em conformidade com o princípio da indivisibilidade da garantia2, e deveriam ser ofertados em segundo leilão pelo valor desse saldo, pois todos os imóveis objeto da garantia permanecem vinculados à dívida até que ela seja extinta3. Esse critério é coerente com a regra do art. 899 do CPC, segundo a qual o leilão de vários bens penhorados deve ser suspenso tão logo apurada quantia suficiente para satisfação do crédito, encargos e despesas da execução. Nesse procedimento, para atender ao princípio da menor onerosidade da execução, o imóvel a ser ofertado em segundo lugar só deveria ser objeto de consolidação depois da conclusão do leilão do primeiro imóvel, e assim sucessivamente, na medida em que se torne necessário complementar a quantia suficiente para satisfação do crédito. Assim, alcançada essa finalidade, os imóveis que não chegaram a ser excutidos e, portanto, ainda se encontrem sob regime da propriedade fiduciária, seriam reincorporados ao patrimônio do devedor mediante simples averbação na respectiva matrícula independente de pagamento dos encargos tributários e dos emolumentos relativos a duas operações, que não chegariam a ser realizadas e, portanto, não os tornariam exigíveis, quais sejam, (i) a consolidação, na qual seriam devidos o ITBI e os emolumentos de averbação, e (ii) reversão da propriedade ao devedor, para a qual seriam também exigíveis novo ITBI e os emolumentos de registro no Registro de Imóveis. Independente desse procedimento, nada impede que nas operações garantidas por dois ou mais imóveis os contratantes convencionem a vinculação de cada um deles a uma parcela da dívida e a consequente exoneração da garantia na medida em que satisfeita essa parcela. Questão das mais relevantes, que tem sujeitado a execução fiduciária de bens imóveis a judicialização, é a imunidade do direito do credor fiduciário diante de atos de constrição, de qualquer natureza, sobre o direito aquisitivo do devedor fiduciante. Como se sabe, a penhora, a indisponibilidade de bens ou qualquer outro ato de constrição sobre os direitos do devedor fiduciante (CPC, art. 835, XII) "não tem o condão de afastar o exercício dos direitos do credor fiduciário resultantes do contrato de alienação fiduciária, pois, do contrário, estaríamos a permitir a ingerência na relação contratual sem lei que o estabeleça. Até porque os direitos do devedor fiduciante, objeto da penhora, subsistirão na medida e na proporção que cumprir com suas obrigações oriundas do contrato de alienação fiduciária"4. Assim, a penhora ou a indisponibilidade dos direitos de que o devedor fiduciante é titular sobre o imóvel, em execução contra ele movida por terceiro ou até pelo credor fiduciário, limita-se ao seu direito aquisitivo e, portanto, não impede o livre exercício do direito do credor caso esse devedor fiduciante venha a se tornar inadimplente, estando assegurada ao credor a consolidação da propriedade e o leilão. Assim dispõe o art. 7º-A do decreto-lei 911/19695, que trata da garantia fiduciária de bem móvel infungível, mas em relação aos bens imóveis a lei 9.514/1997 é omissa sobre a situação, e essa omissão tem dado causa a interrupção do procedimento de realização da garantia e a judicialização da questão perante o juízo que decretou a constrição, retardando desnecessariamente a execução e onerando injustificadamente a execução, em prejuízo de ambos os contratantes. A controvérsia quanto aos limites da incidência desses atos de constrição, em conformidade com o art. 835, XII, do CPC, pode ser afastada mediante inclusão de um parágrafo ao art. 27 da lei 9.514/1997, em termos semelhantes a proposição legislativa aprovada na reunião anual da Academia Brasileira de Direito Civil, realizada em setembro de 2018, verbis: "os direitos reais de garantia ou constrições de qualquer natureza incidentes sobre o direito real de aquisição de bem móvel ou imóvel de que seja titular o fiduciante não obstam sua consolidação no patrimônio do credor e a venda do imóvel, mas sub-rogam-se no direito do fiduciante à percepção do saldo que eventualmente restar do produto da venda". Essas e outras situações semelhantes têm dado causa à judicialização do procedimento extrajudicial de execução fiduciária imobiliária, postergando a recuperação do crédito e agravando os danos provocados pelo inadimplemento, ao frustrar a celeridade do procedimento extrajudicial e onerar excessivamente a execução, evidenciando a necessidade de adaptação legislativa que assegure a plena efetividade dessa garantia como elemento catalisador do crédito. O compartilhamento da garantia fiduciária previsto na recente Medida Provisória 92/2020 pode, de fato, contribuir para a expansão do crédito bancário, mas seus efeitos práticos dependem da adequação legislativa em relação aos aspectos aqui suscitados e outros capazes de revestir esse contrato de garantia da segurança jurídica necessária a assegurar sua efetividade no processo de reativação do desenvolvimento econômico. *Melhim Chalhub é advogado e parecerista. Cofundador e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil, da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Autor das obras Alienação Fiduciária - Negócio fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outras. __________ 1 A dispensa do pagamento de eventual saldo remanescente na execução hipotecária é objeto do art. 7º da lei 5.741/1971, que institui procedimento especial de execução judicial de crédito hipotecário vinculado a financiamento habitacional do Sistema Financeiro da Habitação, do seguinte teor: "Art. 7º Não havendo licitante na praça pública, o juiz adjudicará, dentro de quarenta e oito horas, ao exequente o imóvel hipotecado, ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida". Tratamos da matéria mais detidamente em nosso Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário (Gen-Forense, 6. ed., 2019, item 6.10.1), sustentando a necessidade de alteração legislativa que restrinja o benefício aos tomadores de financiamento habitacional, mantendo as operações de crédito em geral subordinadas às normas dos arts. 586 e 1.366 do Código Civil. 2 Código Civil: "Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação". 3 A indivisibilidade, como se sabe, não diz respeito ao bem, mas, sim, ao direito de garantia, ainda que essa seja representada por um conjunto de bens. 4 REsp 1.697.645-MG, rel. Min. Og Fernandes, DJe 25.4.2018. 5 Decreto-lei 911/1969: "Art. 7º-A Não será aceito bloqueio judicial de bens constituídos por alienação fiduciária nos termos deste Decreto-Lei, sendo que, qualquer discussão sobre concursos de preferências deverá ser resolvida pelo valor da venda do bem, nos termos do art. 2o".
Texto de autoria de Melhim Chalhub O Superior Tribunal de Justiça selecionou para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos o Recurso Especial nº 1.871.911-SP. Trata-se de ação de resolução de contrato de compra e venda de imóvel e financiamento com pacto adjeto de alienação fiduciária, proposta pelo devedor fiduciante sob alegação de incapacidade de pagamento, fundamentando-se em que a caracterização do negócio como relação de consumo oriunda de contrato de adesão lhe conferiria direito de denúncia do contrato e de restituição parcial das quantias pagas. O pedido foi julgado improcedente por falta de interesse processual, já que a operação de crédito não é passível de resolução, de que trata o art. 475 do Código Civil, mas, sim, de execução do crédito seguida de excussão do imóvel nos termos do art. 27 da lei 9.514/1997. Confirmada a sentença em recurso de apelação, sobreveio o mencionado Recurso Especial, selecionado como representativo de controvérsia, tendo em vista a grande quantidade de processos em que se discute o modo de extinção forçada do contrato de crédito com garantia fiduciária, destacando-se que só no Tribunal de Justiça de São Paulo foram "analisados 160 reclamos por esta matéria em 2019 e cerca de 80 apenas nos 3 primeiros meses de 2020, o que indica importante aumento em seu impacto social e econômico". Colocam-se, de um lado, a jurisprudência já sedimentada do STJ, segundo a qual a execução do crédito garantido por propriedade fiduciária de imóvel sujeita-se ao rito especial dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/19971, que contempla a excussão do imóvel em leilão e a restituição do saldo, se houver, ao devedor, e, de outro lado, decisões divergentes das instâncias ordinárias, que julgam procedentes pedidos de resolução de operação de crédito fiduciário, com fundamento no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)2 e na Súmula 543/STJ3, impondo ao credor fiduciário a restituição de quantia arbitrada pela sentença, independente de leilão. Fundamentam-se essas decisões divergentes, não raras vezes, na caracterização dessa operação de crédito como "relação de consumo e contrato de adesão", que conferiria ao devedor fiduciante direito potestativo de "postular a rescisão da avença, em virtude de sua incapacidade financeira para continuar honrando as parcelas"4 ou mesmo em virtude de desinteresse em continuar no contrato. Nesse contexto, não se questiona a incidência das normas do CDC nos contratos de promessa de compra e venda e de crédito com garantia fiduciária, quando caracterizem relação de consumo, pois, sendo lei geral de proteção dos consumidores, esse Código incide sobre qualquer contrato nos aspectos correspondentes à relação de consumo5. Os casos de aparente antinomia entre o CDC e normas de lei especial são solucionados com base nos critérios da especialidade e da cronologia6, prevalecendo a lei especial sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, como definido na tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 636.331-RJ, com repercussão geral7. Logo, também não se questiona a prevalência da lei 9.514/1997, que tipifica o contrato de alienação fiduciária de bens imóveis, sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, por ser lei especial e posterior a esse Código. O que se questiona são os efeitos do art. 53 do CDC, que é o fundamento invocado pelas decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP para substituir o procedimento de execução do crédito fiduciário pela ação de resolução do contrato de crédito fiduciário e para condenar o credor fiduciário a restituir quantia fixada em sentença (Súmula 543/STJ), negando vigência ao § 4º do art. 27 da lei 9.514/1997, segundo o qual a restituição ao devedor fiduciante corresponde ao saldo, se houver, do produto da excussão da garantia. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Melhim Chalhub é advogado, parecerista, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM, do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Brasileira de Direito Civil. Autor dos livros Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outros. __________ 1 "A lei 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor - CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial. 3. Agravo interno não provido". (REsp 1.822.750-SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.11.2019). "Recurso Especial. Direito civil e processual civil. Compra e venda de imóvel. Alienação fiduciária de bem imóvel. Pedido de resolução. Desistência da compra e venda. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no artigo 27, §§ 4.º, 5.º e 6.º da lei 9.514/97 em detrimento da regra do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. Recurso especial provido". (STJ, 1773047-SP, rel. Ministro Paulo de Sanseverino, DJe 22/5/2020). 2 Lei 8.078/1990: "Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado". 3 Súmula 543/STJ: "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". 4 Veja-se, a título de ilustração, acórdão que acolhe pretensão de "rescisão" de compra e venda com financiamento e pacto adjeto de alienação fiduciária mediante aplicação da Súmula 543/STJ, relativa à promessa de venda: "Apelação - Compra e venda com alienação fiduciária em garantia rescisão contratual motivada pelo desinteresse do adquirente parcial procedência - Inconformismo da ré Acolhimento em parte. Deve ser afastada a tese das rés de impossibilidade da rescisão do contrato, com base na submissão a regime jurídico específico da lei 9.514/97 - Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ainda que adquirido o imóvel com cláusula de alienação fiduciária - Propriedade não consolidada em nome da vendedora e credora fiduciária Possibilidade de o adquirente pleitear a rescisão do contrato com restituição das quantias pagas - Súmulas nº 543 do STJ e nº 1 do TJ/SP - Restituição das partes ao estado anterior - Devolução dos valores pagos, com retenção - Sentença que determina a devolução de 90% dos valores pagos - Acolhida em parte a pretensão da ré para majorar o percentual de retenção - Caso concreto que demonstra ser razoável a retenção de 20% dos valores pagos a título de indenização pelas despesas geradas, segundo entendimento do STJ e precedentes desta C. Câmara. Deram provimento parcial ao recurso". (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1007132-43.2016.8.26.0451, rel. Des. Alexandre Coelho, DJe 13/3/2019). 5 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2005, p. 618. 6 "O CDC, como lei geral de proteção dos consumidores, poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual (...). Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC e mais específica for a norma 'contrária' da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade, e, então, é de ser afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova". (MARQUES, Cláudia Lima, Contratos ..., cit., pp. 632-633). 7 Ao apreciar aparente conflito entre as normas gerais do CDC e as da Convenção de Varsóvia, que se classifica como lei ordinária especial, a respeito de indenização por extravio de bagagem, o Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331-RJ, com repercussão geral, fixou tese segundo a qual "devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista se tratar de lex specialis".
Texto de autoria de Márcio Martins Bonilha Filho Pela primeira vez, compareci a um Tabelionato de Notas, sem a finalidade de realizar uma Correição, quer pela Corregedoria Permanente, ou pela Corregedoria Geral da Justiça, onde, à época da edição da lei Federal 8.935/94, fui assessor da equipe do extrajudicial. Também não compareci na condição de usuário para me servir de seus préstimos. Recebi convite para passar um dia no Tabelionato de Notas da capital e tentar obter as informações práticas e instruções técnicas das novas ferramentas tecnológicas, a serem empregadas na execução do Provimento 100/2020, do CNJ. Nada melhor do que receber tais esclarecimentos por parte de um profissional qualificado, que é referência em processamento de dados e vocacionado para lidar com aplicativos e recursos tecnológicos. Daniel Agapito é o Substituto da Tabeliã Priscila Agapito, titular da Delegação do 29º Tabelionato de Notas da Capital, cuja desenvoltura para processamento de dados já testemunhara, quando na Banca Examinadora do 7º Concurso de outorga de Delegações das serventias extrajudiciais, ele, a pedido do Exmo. Presidente da Comissão, Des. Donegá Morandini, concebeu uma engenhosa planilha para facilitar a soma dos pontos dos Títulos dos candidatos. Minha ideia era acompanhar a rotina, no aspecto prático, do sistema implantado a partir do advento do Provimento nº 100 e seguintes, do Conselho Nacional da Justiça. Nesse sentido, vivenciei meu primeiro contato com o e-Notariado e suas múltiplas funções. Constatei com muita satisfação que, realmente, o futuro chegou e irá revolucionar o Direito Notarial. A sensação positiva é que a burocracia medieval cederá espaço para uma dinâmica que conjuga segurança jurídica, fé-pública e eficiência. Os atos serão praticados a distância, de qualquer parte do mundo, inexistindo a necessidade do comparecimento às dependências da Serventia. Às partes e aos advogados bastará providenciar a documentação, para dar início à concepção do ato notarial a ser executado. A videoconferência, que pode ser considerada uma audiência envolvendo os interessados na lavratura da escritura, constitui recurso tecnológico, que permite, a distância, o contato visual e sonoro entre as pessoas envolvidas no ato notarial, tornando possível a comunicação dos interlocutores em tempo real. As partes participam da videoconferência e exibem seus respectivos documentos de identidade. O Tabelião, antes de efetuar a leitura do ato a ser lavrado, trava um diálogo com cada participante, aquilatando sua capacidade volitiva, higidez mental e efetiva intenção para prosseguirem com a escritura. As partes deverão manifestar concordância com os termos da escritura. Para garantir a transparência e autenticidade, todas as videoconferências serão gravadas e arquivadas, com a finalidade de materializar e conservar, na íntegra, todo o ritual, atos preparatórios, qualificação das partes, identificação documental, conversas sobre os detalhes do ato a ser escriturado, alcance e consequências do aludido ato, confirmação da vontade dos envolvidos, leitura da escritura, anuência, etc. Em dia e horário conveniente para todos, sem perder de vista questões relacionadas com o fuso-horário, pois nada impede que residentes no exterior se utilizem dessa ferramenta que foi concebida para conjugar modernidade e segurança jurídica, o Tabelião define o momento da videoconferência, enviando com antecedência um 'link', para que cada interessado, ao clicá-lo, passe a participar da videoconferência. Realizada a videoconferência, seguirá oportunamente a assinatura do ato, que ocorre, acessando a plataforma do e-Notariado, com o respectivo certificado digital. Aliás, muito simples a obtenção do certificado digital do e-Notariado. O usuário exibe documentos de identidade, certidão de nascimento ou casamento (se for o caso), comprovante de residência, seguida da identificação e da validação biométrica, nos moldes do cadastramento que ocorre perante a Justiça Eleitoral. Ato contínuo, já poderá baixar o aplicativo no celular, tornando-o apto, quando necessário, para participar de videoconferência e assinar escrituras no sistema do e-Notariado. E, para a obtenção do referido certificado digital, não haverá incidência de qualquer cobrança. Aperfeiçoada a escritura eletrônica, colhida as assinaturas por intermédio do certificado digital, cuja autenticidade seja conferida pela 'internet' por meio do e-Notariado, esse ato constituirá instrumento público para todos os efeitos legais e será eficaz para os registros públicos. Em suma, um revolucionário avanço, que, além de conferir modernidade, aliada à segurança jurídica e à fé-pública, terá o condão de estabelecer uma padronização nas escrituras em âmbito nacional, sem perder de vista que a plataforma, concebida no Provimento 100/2020, do CNJ, possibilitará a formação de metadados, mediante a Central Notarial de Autenticação Digital (CENAD), o Cadastro Único de Clientes do Notariado (CCN), o Cadastro Único de Beneficiários Finais (CBF) e o Índice Único de Atos Notariais (IU). Inúmeros atos já estão sendo lavrados, em todos os Tabelionatos do Brasil, em observância a essa ousada e criativa inovação, valorizando a atividade notarial, respeitado o critério da territorialidade e as orientações traçadas pelas diretrizes legais e normativas, de tudo se inferindo que para os Tabelionatos de Notas o futuro chegou e já é um sucesso. *Márcio Martins Bonilha Filho é desembargador aposentado do TJ/SP e advogado no escritório Barcellos Tucunduva Advogados.
segunda-feira, 22 de junho de 2020

Não queremos dizer adeus a Sylvio Capanema

Texto de autoria de André Abelha Foram 83 dias e noites de ansiedade, torcida e energia coletiva, terminados sem final feliz. Talvez fosse uma nova fake news. Mas desta vez era verdade. A madrugada de sábado começou com uma tristeza profunda e concentrada, que pela manhã foi se transformando em comoção espalhada por todo o Brasil. Não sei se há um queridômetro capaz de medir o quanto alguém é unanimemente benquisto. Se existir, você atingiu o grau absoluto. Gente normal vem ao mundo com algum dom, e ao longo da vida desenvolvemos ao menos um valor: simpatia, inteligência, humor, cultura, conhecimento, sabedoria, comunicação, simplicidade, honestidade, respeito, carisma, zelo, paixão. E pouquíssimos iluminados, não se sabe bem como, simplesmente reúnem todas essas virtudes, e até outras, numa só mente e corpo. Pela análise combinatória, algo extremamente raro. E você era raríssimo. Felicidade de quem o tinha sempre por perto, e sorte também de quem cruzou o seu caminho por alguns instantes tão efêmeros quanto memoráveis. No triste sábado, um sábado que ninguém queria, as milhares de manifestações emocionadas foram uma pequena prova da legião de fãs que você cultivou. Cada um de nós tinha uma história inspiradora para relembrar, algo para agradecer, e um discurso eletrizante para rever, e rever, e rever novamente. E se emocionar. Pessoas assim são hipnotizantes, são inspiradoras. Elas nos tiram da inércia quando estamos parados, nos fazem levantar se estamos caídos, e nos fazem correr quando estamos andando. Elas nos fazem entender o passado, abrir os olhos para o presente e mirar um futuro cheio de esperança. Se os dias passarem e tivermos que aceitar um mundo sem você, como ficaremos sem suas aulas inigualáveis, sem os discursos arrebatadores, sem suas tiradas hilariantes, sem seu abraço fraterno? Não queremos lhe dizer adeus, Capanema. Não podemos nos dar por vencidos. Não parta! Fique por nós! Dê um jeito e volte! 82 anos não passam de uma idade cronológica, e você é atemporal. Se esse tanto seria o tanto bastante para alguns, certamente não era para você, que estava cheio de energia, com uma mente inquieta e uma biografia pronta para mais grandezas. Mesmo órfãos, seguiremos em homenagem a seu vasto legado. Afinal, você foi lei especial, foi doutrina majoritária e foi jurisprudência dominante. E isso não foi nem a metade. Você nos legou a riqueza verdadeira: o estalão de uma bela vida, vivida com plenitude, honradez, simplicidade, generosidade e leveza. Uma vida para os outros, mais do que para si mesmo. Levaremos seu exemplo em nossos corações para sempre. Pois você é imortal.
Texto de autoria de André Abelha Não se preocupe com a perfeição - você nunca irá consegui-la. A frase de Salvador Dali amolda-se bem à Lei nº 14.010/20, famosa desde o útero, quando ainda era o PL 1.179/2020, e que nasce hoje, sob aplausos e críticas, e com vetos importantes1. Concebida no início da pandemia de Covid-19 por um grupo de notáveis, sua sigla é sisuda: RJET - Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado. Pronuncie, quando falar, "érre-jet". Seguindo a trilha de alguns países, a exemplo de Portugal e Alemanha, que inauguraram leis emergenciais, agora temos uma Lei Failliot2 para chamar de nossa. Sinal dos tempos, e de um mundo conectado e veloz: na I Guerra Mundial, a lei francesa só foi aprovada em 1918, quando o longo conflito já caminhava para o fim. Um século depois, foram necessárias apenas algumas semanas para a gestação da nova Lei. Em uma emergência legislativa, há opções básicas a escolher: ou produzimos uma lei curta e genérica, com parâmetros gerais; ou tentamos ser mais específicos; ou ambos. Não há escolha perfeita. Cada caminho tem seus benefícios, riscos e problemas. Os autores do anteprojeto que originou o PL 1.179/20 elegeram a terceira via, sendo (corretamente) genéricos quanto à prescrição e decadência, e mencionando situações especiais: reuniões e assembleias pessoas jurídicas de direito privado; regras pontuais sobre revisão e resolução de sobre contratos; suspensão do prazo de reflexão de 7 dias para certas entregas domiciliares; e suspensão de certas regras do regime concorrencial, da prisão civil por dívida alimentícia e do prazo para abertura e ultimação do inventário judicial e política nacional de mobilidade urbana. Além disso, a Lei tratou de temas afetos ao Direito Imobiliário, que são o foco deste breve artigo. Antes, contudo, de passarmos por eles, precisamos falar de datas. Marcos temporais A Lei do RJET, em nome da segurança jurídica, tinha que eleger certos marcos temporais. E assim o fez, corretamente. As três datas relevantes são as seguintes: (i) 20/03/2020: termo inicial dos eventos derivados da pandemia, não por acaso, a data do Decreto Legislativo nº 6, que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil; (ii) 12/06/2020: início de vigência legal. Não custa lembrar a regra constitucional de que a lei não pode retroagir para afetar o ato jurídico perfeito. Portanto, prescrições e decadências consumadas até 11/06/2020 não podem ser ressuscitadas. Se a Lei dissesse diferente, seria fatalmente inconstitucional; e (iii) 30/10/2020: até essa data, certos atos estarão permitidos e algumas regras suspensas ou com modificação provisória3. Por que outubro, e não agosto ou dezembro? Ora, porque essa foi a estimativa do legislador para o arrefecimento da crise e do confinamento. Não importa se a vida voltará ao (novo) normal antes ou depois. Escolha arbitrária e legítima, da qual podemos até discordar, porém temos que aceitar. E cuidado: não há data de extinção. A Lei vigorará mesmo depois de outubro, ainda que seja revogada por outra. O regime é provisório, mas seus efeitos, uma vez produzidos, são perenes. Prescrição e decadência Os prazos prescricionais e decadenciais ficam impedidos (não começam a correr) ou suspensos entre 12 de junho e 30 de outubro de 2020. Se um menor completar 18 anos nesse período de 140 dias, eventual prazo prescricional ou decadencial só começará a correr em 31 de outubro. Se já era capaz, e havia prazo correndo, a contagem se suspende. Não existe inadimplemento de direito potestativo. O titular do direito exerce-o ou não. Certas faculdades são permanentes (v.g., o direito à separação e ao divórcio, e à extinção do condomínio voluntário); outras, para não se perderem, precisam ser exercidas em certo tempo, em juízo ou fora dele. Embora isso não esteja expresso, a regra emergencial aplica-se somente às pretensões e direitos potestativos a serem exercidos em juízo. Isso inclui, na seara das locações urbanas (Lei nº 8.245/91), os prazos de ajuizamento das ações de preferência (art. 33) e renovatórias (art. 51, §5º). Spoiler: o prazo para o locatário purgar a mora (art. 62, II), mesmo decadencial, não se suspende. Explicarei no capítulo das locações. No Código Civil, ficam suspensos, por exemplo4: (i) os prazos prescricionais para os tabeliães, árbitros e peritos ajuizarem ação de cobrança de emolumentos, custas e honorários (art. 206, §1º, III); e para a cobrança judicial de aluguéis (art. 206, §3º, I), para o pleito de reparação civil (art. 206, §3º, V) e para a cobrança de títulos de crédito imobiliários ou não (art. 206, §3º, VIII); e (ii) os prazos decadenciais para anular o negócio jurídico imobiliário (art. 119, p. único; e arts. 178 e 179); e para o condômino (art. 504) ou o titular da construção-base ou da laje (art. 1.510-D, §1º) ajuizarem a ação de preferência; Insisto no ponto, por considerá-lo essencial: estão suspensos todos os prazos prescricionais, por serem, sempre e obrigatoriamente, exercidos em juízo, mas a suspensão não se aplica aos direitos potestativos sujeitos a prazos decadenciais que podem ser exercidos fora dele. Assim, permanecem inalterados, sem suspensão, os seguintes prazos: (i) prazo de denúncia da incorporação: obviamente, o desempenho de venda da imensa maioria dos empreendimentos foi prejudicado pela pandemia. O incorporador que comprovar tal circunstância poderá pedir ao juiz a prorrogação do prazo (art. 34 da Lei nº 4.591/64); (ii) prazo de purga da mora do devedor fiduciante: para evitar as consequências legais, mesmo no período de pandemia, o devedor que tiver sido regularmente notificado deverá comprovar, no caso concreto, eventual impossibilidade de realização do ato no período (art. 26, §4º, da Lei nº 9.514/97); (iii) prazos da Lei do Inquilinato: por não serem exercidos em juízo, também permanecem fluindo mesmo na vigência da nova Lei: (a) o prazo de 90 dias para o adquirente do imóvel denunciar o contrato sem cláusula de vigência (art. 8º, §2º); (b) o prazo para o locatário manifestar sua aceitação à proposta para exercício da preferência (art. 28); (c) o prazo de purga da mora do locatário; e, entre outros, (d) o prazo para o locatário oferecer nova garantia, sob pena de desfazimento da locação (art. 40, p. único). Usucapião Estão igualmente suspensos, por 140 dias (12/06/2020 a 30/10/2020), os prazos de aquisição da propriedade imobiliária5, em qualquer das modalidades de usucapião. Obviamente, a posse é um fato e não se suspende. O que se paralisa é um (apenas um!) dos efeitos decorrentes da posse ad usucapionem. Os demais efeitos, como o direito à sua defesa, continuam em pleno vigor. Locações de imóveis urbanos O Presidente da República vetou o controverso artigo 9º do anteprojeto, segundo o qual "não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo" nas hipóteses ali especificadas, quando o processo tiver sido iniciado a partir de 20/03/2020. Pela interpretação literal do dispositivo, se a ação de despejo fosse ajuizada no dia 20 de março ou depois, ficaria expressamente proibida a liminar nos seguintes casos: (i) descumprimento do acordo para desocupação com prazo mínimo de 6 meses; (ii) rescisão do contrato de trabalho; (iii) exoneração do fiador sem substituição da garantia; (iv) denúncia vazia da locação não residencial; e (v) falta de pagamento de aluguel e encargos em contrato sem garantia. Pela interpretação literal do vetado art. 11, a sistemática seria a seguinte: Confesso não ter captado a lógica. Porque retomar um imóvel de temporada seria, como regra, mais urgente que retomar o imóvel de um locatário que não está pagando os aluguéis, se isso pode estar afetando seriamente as finanças do locador? Além disso, qual seria a razão de ser do art. 9º da Lei do RJET senão evitar a execução de despejos com riscos à saúde das pessoas direta (oficial de justiça, chaveiro, transportadora, locatário-morador e sua família ou lojista) e indiretamente (funcionários e moradores) envolvidas no ato? O art. 11, também vetado, ao tratar dos condomínios, deixava isso bem claro: "como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do coronavírus". Ora, se o objetivo era evitar a propagação do vírus, por que a restrição não se aplicaria a qualquer despejo, liminar ou definitivo? Por que, aliás, não se aplicaria a liminares ou execuções de sentença para atos de imissão ou reintegração na posse? E por que não executar a liminar ou sentença quando comprovadamente for possível fazê-lo sem risco às partes e à saúde pública? Ao que parece, a norma, nesse ponto, traria mais dúvidas que certezas, e seu veto pareceu correto. E uma coisa parece clara como a luz do Sol: o que o legislador quis impedir não é propriamente a decisão judicial que defere o desalijo antecipado, e sim o cumprimento do mandado de despejo. Entre a decisão e sua efetiva execução, podem decorrer semanas, até meses. Mesmo nas hipóteses de vedação, não haveria qualquer razão para esperar o fim de outubro para só então o juiz apreciar a liminar. Assim, o mais correto em tais casos de restrição seria (caso o veto seja derrubado pelo Congresso Nacional) o deferimento da liminar, com a observação de que o termo inicial do prazo de 15 dias para a desocupação voluntária, previsto no art. 59, §1º, da lei 8.245/91, somente começaria a fluir a partir do dia 31/10/2020. Com tal medida, preservar-se-ia o objetivo da Lei, o direito das partes e o bom andamento do processo, evitando-se prejuízos injustificados ao locador. Um ponto não afetado pelo veto ao art. 9º, que requer análise, diz respeito à purga da mora do locatário. Considerando que o art. 6º da Lei do RJET suspende os prazos decadenciais, temos duas perguntas a responder: (i) o prazo para o locatário purgar a mora tem natureza decadencial? e (ii) se a resposta for positiva, ele se suspende até 30/10/2020? A primeira resposta é sim. A natureza do prazo de purga da mora é decadencial porque a faculdade de evitar a resolução do contrato (nos termos do art. 62, II, "o locatário e o fiador poderão evitar a rescisão da locação..." é um direito potestativo que, para ser exercido, não requer que o locador cumpra uma obrigação6. O fato de muitas vezes ser efetivada em juízo não faz dela um prazo processual, e tanto é assim que a purga da mora é uma alternativa à contestação do pedido, este, sim, de natureza procedimental. Isto quer dizer que os locatários, por força do art. 3º, §2º, da Lei do RJET, têm pelo menos até 30 de outubro para purgarem sua mora? Aqui a resposta é não. Como já vimos, o RJET aplica-se aos prazos decadenciais, porém somente àqueles que, forçadamente, só podem ser exercidos em juízo, tais como o ajuizamento de ações renovatórias e de preferência. Ninguém pode ajuizar uma ação no banco ou em cartório. Mas a mora do locatário, assim como a mora de qualquer devedor, pode ser purgada em juízo ou fora dele. Para ser específico: a fim de extinguir sua mora, o locatário não precisa aguardar sua citação judicial na ação de despejo. O art. 62, II, da Lei de Locações, estabelece, simplesmente, um termo final para que isto aconteça. A existência da expressão "mediante depósito judicial" em nada muda essa realidade, por três razões: (i) especialmente se o contrato prevê o pagamento dos aluguéis mediante transferência bancária, beiraria o absurdo decretar a resolução do contrato se o locatário comprovar que realizou a transferência no prazo legal para conta de titularidade do locador, e parece razoável que o mesmo raciocínio se aplique mesmo no silêncio do pacto; (ii) pode ser que o locador, porque deseja logo receber seu crédito, forneça os dados bancários que o locatário não tinha, ou lhe mande um boleto no valor da dívida com seus acréscimos, e também nesse caso não haverá purga da mora em juízo; e (iii) mesmo que o locador se recuse, e o inquilino não possua os dados bancários, não é necessário peticionar ao juiz solicitando emissão de guia. Lembre-se, estamos diante de uma faculdade do locatário, que poderá obter a guia judicial diretamente, fazendo o depósito em favor do juízo, e ainda assim fora dos autos. Em outras palavras, a expressão "mediante depósito judicial" deve ser interpretada como mediante depósito comprovado em juízo. A comprovação do exercício do direito potestativo é que se dá em juízo, e não seu exercício propriamente dito. O inquilino cuja preferência foi violada precisa comprovar em juízo que aderiu à proposta no prazo de 30 dias, mediante envio de resposta extrajudicial. Da mesma forma, o locatário em débito tem que comprovar em juízo (juntada de petição com comprovante) que realizou, extrajudicialmente (pagamento de boleto ou guia, ou transferência bancária) o pagamento integral da dívida no prazo do art. 62, II, da lei 8.245/91. Pela mesma razão, inclusive, o locatário tem que fazer o pagamento da dívida no prazo legal mesmo que os prazos processuais estejam suspensos. Por fim, o que vale para a denúncia da incorporação prevalece para a purga da mora: se o locatário (ou qualquer devedor) conseguir comprovar, no caso concreto, a efetiva impossibilidade temporária de realização do pagamento, terá ele direito à realização do ato em data posterior, sem a perda do direito, o que necessariamente depende de pronunciamento judicial liminar ou definitivo. Condomínios edilícios Em relação ao condomínio edilício, o projeto de lei 1.179/20, nos artigos 11 e 12, de modo provisório, ou seja, até 30 de outubro: (i) no artigo 11, aumentava o rol de poderes do síndico, autorizando-o expressamente a restringir, nas áreas comuns ou nas unidades imobiliárias, atividades que gerem aglomeração de pessoas e/ou aumento de circulação de pessoas no condomínio e/ou elevação do risco de contaminação e propagação da Covid-19, tais como reuniões e festas, uso de academia e áreas de lazer, e realização de obras não-urgentes (VETADO); e (ii) no artigo 12, permite expressamente a realização de assembleia geral virtual e prorroga os mandatos dos síndicos nos casos em que não foi possível a realização de assembleia virtual. Pergunta: o art. 11, caso não tivesse sido vetado, teria transformado o síndico em um semideus, para decidir, a seu bel prazer, e de acordo com seus medos pessoais, quem entra e sai do condomínio, quem pode usar as áreas comuns, e o que cada pessoa pode fazer dentro da sua casa ou do seu escritório? Obviamente que não. O art. 11, é bom dizer, apenas explicitava poderes que o síndico já possuía. Pois cabe a ele, nos termos do art. 1.348: (i) praticar, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns; (ii) cumprir e fazer cumprir a convenção; e (iii) diligenciar a conservação e guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores. Isto significa que cabe ao síndico fazer com que as regras legais e convencionais sejam respeitadas no condomínio. Soa até óbvio. Ora, se o art. 1.336, IV, impõe aos condôminos e possuidores o respeito à saúde e sossego dos demais moradores, parece lógico que o síndico deve garantir que tal regra seja observada por todos, dentro ou fora das unidades imobiliárias. Na prática, o art. 11 deixava isso explícito, para tornar esse silogismo desnecessário, e evitar dúvidas, especialmente dos leigos. Uma lei clara tem mais chance de ser cumprida. Insisto: o síndico não tem faculdades. O que ele pode fazer, deve fazê-lo de acordo com o interesse da coletividade de moradores. Poder-dever. Para proibir, quando prudente, e para permitir, sempre que cabível. Independentemente de manifestação assemblear. A missão está em suas mãos. Talvez seja esperar demais que um síndico jovem ou idoso, especialista ou leigo, com ou sem noção de medicina ou saúde pública, saiba distinguir com clareza, num mar de situações duvidosas, quando é melhor proibir ou permitir. Se nem a Organização Mundial da Saúde está convicta do próximo passo a dar, como exigir algo diferente do síndico? Ainda assim, ele tem que decidir. Mesmo que não haja essa obrigação, é prudente contar sempre com a opinião do conselho, se existir um no prédio, ou mesmo dos moradores, em consulta informal. Se você é síndico, e o cenário é nebuloso, procure não decidir sozinho, e use sempre o bom-senso como farol, evitando a lógica binária. Pois entre o "sim" e o "não" há o "sim, com restrições". E se o condomínio conta com o apoio de uma administradora, use-a! Uma recomendação escrita poderá ser um escudo pessoal contra eventuais reclamações. De fato, o texto do artigo 11 não era um primor. Quanto às obras, porque o legislador não usou, simplesmente, o termo "urgentes"? Ao mencionar obras "de natureza estrutural ou realização de benfeitorias necessárias", a norma atenta contra seu próprio objetivo, que é trazer segurança jurídica. Há obras estruturais que podem esperar e há benfeitorias necessárias não-urgentes, expressamente referidas no art. 1.341, §3º, do Código Civil. Aliás, obra estrutural já é uma benfeitoria necessária. Para que distinguir? Estaria o legislador referindo-se a obras para evitar a ruína iminente da edificação? Enfim, o melhor critério, definitivamente, não era a natureza da obra, e sim: (i) a premência de sua execução; e (ii) a possibilidade de fazê-la sem aumento de risco para a coletividade. Tais critérios são complementares: se uma obra for exequível sem aumentar o risco para os demais moradores, ela não deve ser proibida, mesmo que não seja uma benfeitoria necessária, e ainda que não seja urgente. Sublinhe-se: a premissa não é a existência ou não de risco, e se sim a obra aumenta ou não o risco que já existe. Para ser específico, imaginemos 2 situações concretas em um dado condomínio: (i) se pela portaria, mesmo nesses dias de isolamento social, passam cerca de 100 pessoas por dia (moradores, empregados, visitantes e entregadores), não há qualquer razoabilidade em proibir uma obra com 2 operários que vá aumentar a circulação para 102 pessoas ao dia, a não ser que ela seja um puro capricho do titular do imóvel; e (ii) se a obra for urgente, e sua plena execução dobrar o número de pessoas que circulam nas áreas comuns (de 20 para 40 pessoas), nada mais lícito que o síndico, sem a proibir completamente, restrinja-a a um número máximo de operários. Isto diz respeito à segurança. A saúde dos moradores também deve entrar nessa balança. Isso é dito tantas vezes por dia, e mesmo assim é bom repetir: a propriedade não é direito absoluto, e ninguém pode usá-la sem limites. Na sua unidade imobiliária, é evidente, você pode muito mais do que poderia numa área de lazer ou na portaria. Pode muito, mas não pode tudo. O art. 1336, IV, do Código Civil7 impõe restrições. Ninguém, de dentro da sua casa, tem o direito de fazer algo que prejudique o sossego, a saúde ou a segurança dos demais moradores, ou que atente contra os bons costumes. Essa regra deve ser apreciada de acordo com as características de cada condomínio. Apesar do veto, tais regras continuam valendo! Só que agora, no meio do caos, será indubitavelmente mais difícil encontrar um consenso a seu respeito. Ruim com o artigo 11, pior sem ele. Infelizmente a atitude da Presidência da República causa imensa insegurança jurídica, passando à sociedade a mensagem equivocada e perigosa de que agora tudo pode. Uma pena. O Congresso Nacional ainda apreciará os vetos, não só ao artigo 11, como aos demais. Se forem rejeitados, podem voltar ao texto da Lei. Aguardemos! Enfim, a Lei possível Legislar em tempos normais já é uma tarefa suficientemente difícil. Nem a Escola da Exegèse e o Code Civil, que pretendiam reduzir o papel do juiz a la bouche de la loi, tiveram sucesso. A complexa e infinita realidade sempre vence. Escrever uma lei perfeita é uma missão que já nasce fadada ao insucesso. Imagine então fazer isso às pressas, em meio a uma crise mundial sem precedentes. Por isso, temos a Lei possível, e devemos abraçá-la, para dela extrairmos o melhor, a fim de alcançarmos seu objetivo essencial em tempos tão extremos: menos caos e mais segurança jurídica. __________ 1 Foram vetados: (i) o artigo que explicitava os poderes do síndico para restringir atividades nas partes comuns e privativas do condomínio; (ii) o artigo que proibia certos despejos liminares; (iii) o artigo que orientava pessoas jurídicas de direito privado a observarem restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30/10/2020; (iv) os artigos que tratavam de certos efeitos da pandemia na resolução e revisão de contratos; (v) os dispositivos que determinavam a empresas de transporte privado individual de passageiros a redução em 15% da fatia arrecadada em cada viagem e reduziam na mesma proporção os encargos e outorgas cobrados de taxistas; e (vi) o artigo que autorizava a flexibilização do controle do peso de veículos nas estradas e ruas. 2 A Lei Failliot, publicada 21 de janeiro de 1918, trouxe regras excepcionais de intervenção judicial nos contratos franceses afetados pela I Guerra Mundial. Para acessar o texto da lei, com um interessante contexto histórico: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A célebre lei do deputado Failliot e a teoria da imprevisão. Acesso em 11.06.2020. 3 Permissão: assembleias virtuais de condomínios (art. 12). Regras suspensas: prazos de prescrição e decadência (art. 3º), direito de desistência do consumidor (art. 8º), prazo de usucapião (art. 10), certas regras do regime concorrencial (art. 14), prisão civil por dívida alimentícia (art. 15), prazo para abertura e ultimação do inventário judicial (art. 16). Regra provisória: prorrogação do mandato do síndico se a assembleia virtual for inviável (art. 12, p. único). 4 Há outros prazos decadenciais e prescricionais no próprio Código Civil (arts. 505, 1302 e outros) e na legislação especial que, em nome da coesão, deixam de ser citados. 5 Idem para a usucapião de bens móveis 6 Nesse sentido, v.g.: TJSP, apelações 1004146-45.2015.8.26.0001, 0009427-64.2011.8.26.0445 e 992.05.068319-4. Há outros acórdãos espalhados pelo país na mesma linha, que deixo de citar em nome da coesão. Existe precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que o prazo da purga da mora deve ser contado a partir da juntada aos autos do mandado, por ser um ato endoprocessual (REsp 1.624.005, Min. Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2016). Ali, porém, o STJ não discutiu a natureza do prazo. Apenas analisou seu termo a quo. De fato, a decisão está correta, não só por gerar mais segurança jurídica, mas especialmente por não haver qualquer impedimento - pelo contrário, é o esperado! - para que uma lei processual defina o termo inicial para a prática de uma faculdade com prazo decadencial a ser exercida nos autos de um processo. Frise-se novamente que o RJET se volta à suspensão de prazos decadenciais de faculdades a serem exercidas em juízo. 7 O art. 10, III, da Lei nº 4.591/64 já trazia regra idêntica.
Texto de autoria de José Fernando Simão e Alexandre Junqueira Gomide Introdução A pandemia decorrente do coronavírus, causador da Covid-19, traz (e certamente continuará trazendo) efeitos nefastos para a economia mundial. O mercado imobiliário, que até pouco tempo ameaçava a sua retomada econômica, certamente não passará incólume à esperada e longa crise. Duas tradicionais incorporadoras (embora com dificuldades financeiras pré-crise) pediram recuperação judicial já no mês de abril e outras tantas passarão por enormes dificuldades nos próximos anos e meses1. Essa mesma situação dramática se verifica com relação aos muitos brasileiros que já perderam (e outros tantos que ainda perderão2) os seus empregos ou têm abrupta diminuição de suas receitas porque são comerciantes ou profissionais autônomos, cujas atividades estão paralisadas. Considerando que o cenário é desolador na economia, afinal afirma-se que 80% do PIB mundial colapsou em razão do confinamento, a economia globalizada passou por um abalo nunca dantes ocorrido (nem na crise da bolsa de Nova Iorque em 1929, nem na crise do petróleo nos anos 1970), muitos artigos jurídicos estão sendo produzidos para analisar os efeitos da pandemia nos contratos em geral e, sobretudo, no âmbito da locação3. Contudo, poucos artigos acadêmicos trataram, pelo menos como objeto principal do presente estudo, da resolução ou revisão da promessa de compra e venda na incorporação imobiliária quando o fundamento é a pandemia. Antes, contudo, necessária uma breve análise do funcionamento e estrutura da incorporação imobiliária, bem como do regime específico da extinção dos contratos de promessa de compra e venda, nos termos da lei 4.591/1964. A estrutura da incorporação imobiliária e a extinção do vínculo contratual nos termos da Lei 4.591/1964 A incorporação imobiliária, segundo Melhim Chalhub4, é "a atividade de coordenação e consecução de empreendimento imobiliário, compreendendo a alienação de unidades imobiliárias em construção e sua entrega aos adquirentes, depois de concluídas, com a adequada regularização no Registro de Imóveis competente"5. Tal como determina a lei 4.591/1964 (artigo 32), o incorporador fica autorizado a alienar unidades futuras de empreendimento a ser desenvolvido, a partir do registro do memorial de incorporação na matrícula do terreno. O memorial da incorporação imobiliária requer a apresentação de uma série de documentos, dentre eles (i) título de propriedade do terreno ou de cessão de direitos ou permuta; (ii) certidões negativas do incorporador; (iii) projeto de construção aprovado pelas autoridades; (iv) cálculo das áreas das edificações; (v) memorial descritivo das especificações da obra projetada; (vi) discriminação das frações ideais de terreno; (vii) minuta da futura convenção de condomínio, dentre outros. O objetivo da Lei, como se nota, é conferir maior segurança jurídica ao adquirente, que somente pode adquirir a futura unidade com o registro do memorial de incorporação que comprova a viabilidade técnica do empreendimento e a saúde financeira da empresa que pretende erigir a obra. A análise dos referidos documentos compete ao Registro de Imóveis responsável pela circunscrição onde o empreendimento será construído. Realizado o registro do memorial da incorporação imobiliária e uma vez firmado o compromisso de compra e venda da unidade autônoma, o incorporador compromete-se a construir e entregar a obra no prazo estipulado no contrato. O adquirente, por sua vez, compromete-se a realizar o pagamento do preço, seja à vista ou, tal como ocorre na grande maioria dos casos, ao longo do tempo. Embora o incorporador tenha prazo certo para o cumprimento de suas obrigações, a lei 4.591/64 permite-lhe fixar, no já referido memorial, um 'prazo de denúncia6', no prazo decadencial de 180 dias a contar do registro da incorporação (artigo 33), dentro do qual é lícito exercer direito potestativo para se arrepender da incorporação (artigo 34, da lei 4.591/64), mesmo após a venda das unidades. Como direito potestativo que o é, o empreendedor o exerce sem pagamento de qualquer tipo de indenização ao adquirente. É uma clara exceção ao princípio da obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda). Assim, enquanto não transcorrido o prazo de arrependimento, o incorporador possui a seu favor verdadeiro termômetro para verificar o sucesso (ou não) do empreendimento, bem como refletir a respeito da viabilidade econômica das obrigações a que se incumbiu perante uma coletividade7. Após dar início às vendas, percebendo que todas as unidades foram praticamente vendidas nos primeiros dias, o empreendedor deixa transcorrer o prazo de carência, porque há relativa segurança que haverá recursos para a construção da obra. Caso contrário, percebendo o insucesso das vendas e a incerteza quanto à viabilidade financeira da obra, pode manifestar expressamente o exercício do arrependimento e, ato contínuo, extinto o vínculo de forma ex tunc, devolve os valores recebidos aos adquirentes. Como se nota, a Lei 4.591/64, desde a sua concepção, sempre conferiu a possibilidade de o incorporador, em prazo determinado, mesmo após a celebração do contrato, desistir do contrato firmado com o adquirente, quando previsto no memorial de incorporação o prazo de denúncia. Por óbvio, como se trata de direito potestativo unilateral, o empreendedor não precisa justificar a razão para "denunciar" o contrato, exercendo seu direito de arrependimento. Isso significa que mesmo sendo economicamente viável poderá haver a denúncia, assim como mesmo sendo inviável, pode o empreendedor assumir o risco e prosseguir com o negócio. Em sentido contrário, até a edição da lei 13.786/2018, não havia nenhuma disposição na Lei de Incorporação Imobiliária que expressamente permitisse ao adquirente exercer o direito de arrependimento. Na realidade, sendo uma relação de consumo, até poder-se-ia dizer que, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (artigo 49), facultou-se ao adquirente, no prazo de sete dias a contar da assinatura do contrato, exercer o direito de arrependimento nas vendas celebradas fora do estabelecimento comercial do fornecedor8. Contudo, em razão de ausência de regra específica prevista na Lei 4.591/1964, a jurisprudência não era unânime a esse respeito, muitas vezes declarando, corretamente, a impossibilidade de resilição do contrato de compra e venda com fundamento naquele dispositivo legal9. Clique aqui e confira a íntegra do texto. *José Fernando Simão é livre docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista. **Alexandre Junqueira Gomide é doutorando e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e Diretor Regional do IBRADIM em SP. Advogado. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). __________ 1 Nesse sentido, a tradicional incorporadora Esser e João Fortes. As informações constam, respectivamente, aqui e aqui. Acesso em 20/5/2020. 2 Segundo dados recentes, a pandemia fecha 1,1 milhão de vagas de trabalho no Brasil, contabilizando, apenas no mês de abril, 860 mil demissões, pior resultado para o mês em 29 anos. Disponível aqui. Acesso em 29/5/2020. Ainda a esse respeito. Acesso em 20.05.2.020. 3 Nesse âmbito, verificar, por exemplo, inúmeros artigos escritos nas colunas Migalhas Edilícias e Migalhas Contratuais. 4 CHALHUB, Melhim. Incorporação imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 8. 5 Segundo o conceito da própria lei 4.591/1964 (artigo 28, parágrafo único) é "a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas". 6 Segundo Pontes de Miranda "a denúncia extingue a relação jurídica duradoura. [...] Quem denuncia extingue relação jurídica negocial desde aquele momento, ou no futuro. [...] A denúncia diz 'aqui acaba a relação jurídica'" [...] In: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Parte Especial. Tomo XXV. 2ª ed. Borsoi: Rio de Janeiro, 1.959, p. 294 e seguintes. Nos termos do Código Civil, a resilição unilateral, nos casos em que a lei expressamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte (artigo 473). É exatamente o presente caso. Havendo previsão na lei 4.591/64, o artigo 34 permite a resilição unilateral (mediante denúncia) para declarar que, a partir daquele momento, os efeitos do contrato foram cessados. Mas a resilição, novamente citando Pontes de Miranda, "só tem eficácia ex nunc: só resolve desde agora". Assim o é, por exemplo, com relação ao contrato de locação, fornecimento de energia elétrica, água, gás, etc. Parece-nos mais apropriado dizer que a denúncia referida no artigo 34 da Lei 4.591/64, embora seja hipótese de resilição unilateral, representa verdadeiramente um direito de arrependimento que, conforme já exposto em outra oportunidade, extingue o contrato com efeitos retroativos. O exercício do direito conferido no artigo 34 retorna as partes ao statu quo ante, de modo que a extinção contratual opera como se o contrato nunca houvesse sido firmado e os valores recebidos pelo incorporador são devolvidos ao adquirente. A respeito do direito de arrependimento, verificar mais em: GOMIDE, Alexandre Junqueira. Direito de arrependimento nos contratos de consumo. São Paulo: Almedina, 2014. p. 95 e seguintes. 7 Quanto à justificativa do prazo de denúncia, Melhim Chalhub assevera "esses pressupostos de formação, execução e extinção do contrato de incorporação, que identificam como fonte de alimentação financeira o produto da alienação do seu próprio ativo, explicam e justificam a faculdade legalmente atribuída ao incorporador de valer-se de um prazo de carência, no qual poderá aquilatar, com razoável grau de precisão, a receptividade do produto ofertado, podendo, então, confirmar ou desistir da realização do empreendimento". (CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, abr-jun/2016). 8 Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. 9 A esse exemplo, vide "COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Desistência do negócio - Rescisão por iniciativa do compromissário comprador - Arrependimento dentro de sete dias - Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor - Inaplicabilidade - Contrato firmado em estande de vendas - Possibilidade de o consumidor verificar e analisar, pessoalmente, o que está adquirindo - Ausência de provas de compra por impulso e do uso de técnicas contratuais abusivas - Ação de procedimento ordinário - Impossibilidade de formulação de pedido contraposto, previsto no CPC/1973, apenas para ações de procedimento sumário - Cobrança da multa que dependia de reconvenção não apresentada - Recurso provido em parte. (TJSP; Apelação Cível 1025804-25.2015.8.26.0196; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/08/2017; Data de Registro: 16/08/2017).
Texto de autoria de Marcio Martins Bonilha Filho Além das reiteradas notícias sombrias, tristes, alarmistas e impactantes sobre as trágicas consequências impostas pelo novo coronavírus, tanto na área médico-hospitalar, como, também, nas repercussões de ordem econômica, fragilizando empresas, com redução do mercado de trabalho e um indesejável antagonismo político reinante no país, surge forte o sentimento já exteriorizado por capacitados profissionais, de diversas áreas, de que a sociedade será outra após a quarentena, deflagrada em razão da pandemia, com transformações culturais e comportamentais. O isolamento serve para evitar a propagação do vírus e tem o condão de aprofundar reflexões. Nesse contexto, diante de um cenário que exige mudança de hábitos, em especial para conjugar a continuidade das inúmeras práticas do dia a dia e atos inerentes aos negócios, atos jurídicos, etc., surgiu a necessidade de implantar, no âmbito dos serviços extrajudiciais, notadamente em relação aos Tabelionatos de Notas, instrumentos tecnológicos, para facilitar a vida dos usuários, assegurando, ao mesmo tempo, segurança jurídica permeada pela fé pública. Inspirados nesse panorama, com a colaboração das respeitadas entidades de classe dos serviços extrajudiciais, o Corregedor Nacional de Justiça editou o provimento nº 100, do CNJ, publicado no dia 26 de maio de 2020, dispondo sobre prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE, dentre outras providências. A rigor, o provimento nº 100, do CNJ, constitui um dos maiores avanços positivos, na eliminação de burocracia, e na racionalização de trabalho, facilitando a vida dos usuários, sem prejuízo da manutenção da fé pública, circunstância que representa revolucionária vantagem, ao regulamentar o uso de instrumentos tecnológicos. A eficiência do serviço, que já constituía obrigação legal, sem dúvida será aprimorada com a adoção de ferramentas tecnológicas, pormenorizadamente descritas no aludido Provimento (cf. artigos 2º a 5º), destacando-se a assinatura eletrônica notarizada, certificado digital notarizado, assinatura digital, biometria, videoconferência, ato notarial eletrônico, digitalização ou desmaterialização, papelização ou materialização, transmissão eletrônica, dentre outros, além da criação da CENAD: Central Notarial de Autenticação Digital, que consiste em uma ferramenta para os notários autenticarem os documentos digitais, com base em seus originais, que podem ser em papel ou natos-digitais. Para a prática do ato notarial eletrônico, o Provimento estabelece os seguintes requisitos: I - videoconferência notarial para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico; II - concordância expressada pelas partes com os termos do ato notarial eletrônico; III - assinatura digital pelas partes, exclusivamente através do e-Notariado; IV - assinatura do Tabelião de Notas com a utilização de certificado digital ICP-Brasil; V - uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital. Para garantir a necessária segurança jurídica, o Provimento prevê que a gravação da videoconferência notarial deverá conter, no mínimo: a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo tabelião de notas; b) o o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública; c) o objeto e o preço do negócio pactuado; d) a declaração da data e horário da prática do ato notarial; e e) a declaração acerca da indicação do livro, da página e do tabelionato onde será lavrado o ato notarial. O Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal manterá um registro nacional único dos Certificados Digitais Notarizados e de biometria. Outra importante inovação, consiste na obrigatoriedade, para a lavratura do ato notarial eletrônico, de o notário utilizar a plataforma e-Notariado, através do link www.e-notariado.org.br com a realização da videoconferência notarial para captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais, certo que a matéria da competência para a prática dos atos regulados neste Provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, à luz do artigo 9º, da lei 8935/94. Com o objetivo de interligar os notários, permitindo a prática de atos notariais eletrônicos, o intercâmbio de documentos e o tráfego de informações e dados; aprimorar tecnologias e processos para viabilizar i serviço notarial em meio eletrônico; implantar, em âmbito nacional, um sistema padronizado de elaboração de atos notariais eletrônicos, possibilitando a solicitação de atos, certidões e a realização de convênios com interessados e implantar a Matrícula Notarial Eletrônica - MNE, fica instituído o Sistema de Atos Notariais Eletrônicos, e-Notariado, disponibilizado na internet pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, dotado de infraestrutura tecnológica necessária à atuação notarial eletrônica. O referido Provimento disciplina obrigações aos notários, pessoalmente ou por intermédio do e-Notariado, em especial para o acesso das informações à Administração Pública Direta, em regra exclusivamente estatística e genéricas, vedado o envio e o repasse de dados, salvo disposição legal ou judicial específica. Também preconiza ao Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, para implementação e gestão do sistema e-notariado, o dever de adotar diversas medidas operacionais, com a coordenação da implantação, funcionamento dos atos notariais eletrônicos e emissão de certificados eletrônicos, bem como estabelecer normas, padrões, critérios e procedimentos de segurança referentes às assinaturas eletrônicas, certificados digitais e emissão de atos notariais eletrônicos e outros aspectos tecnológicos atinentes ao seu bom funcionamento. Um dispositivo de crucial importância diz respeito à assinatura de atos notariais eletrônicos, estabelecendo que é imprescindível a realização de videoconferência notarial, para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico, a concordância com o ato notarial, a utilização da assinatura digital e assinatura do Tabelião de Notas com o uso do certificado digital, segundo a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP (artigo 9, parágrafo 3º). O e-Notariado, segundo o Provimento, disponibilizará as seguintes funcionalidades: I - matrícula notarial eletrônica; II - portal de apresentação dos notários; III - fornecimento de certificados digitais notarizados e assinaturas eletrônicas notarizadas; IV - sistemas para realização de videoconferências notariais para gravação do consentimento das partes e da aceitação do ato notarial; V - sistemas de identificação e de validação biométrica; VI - assinador digital e plataforma de gestão de assinaturas; VII - interconexão dos notários; VIII - ferramentas operacionais para os serviços notariais eletrônicos; IX - Central Notarial de Autenticação Digital - CENAD; X - Cadastro Único de Clientes do Notariado - CCN; XI - Cadastro Único de Beneficiários Finais - CBF; XII - Índice Único de Atos Notariais - IU. Fica, ainda, instituída a Matrícula Notarial Eletrônica - MNE, que servirá como chave de identificação individualizada, facilitando a unicidade e rastreabilidade da operação eletrônica praticada. O número da Matrícula Notarial Eletrônica, composta por 24 (vinte e quatro) dígitos e organizada em 6 (seis) campos, de acordo com o artigo 12 e seus parágrafos, integra o ato notarial eletrônico, devendo ser indicado em todas as cópias expedidas. De acordo com a legislação processual, os atos notariais eletrônicos reputam-se autênticos e detentores de fé pública. A identificação, o reconhecimento e a qualificação das partes, de forma remota, será feita pela apresentação da via original de identidade eletrônica e pelo conjunto de informações a que o tabelião teve acesso, podendo utilizar-se, em especial, do sistema de identificação do e-Notariado, de documentos digitalizados, cartões de assinatura abertos por outros notários, bases biométricas públicas ou próprias, bem como, a seu critério, de outros instrumentos de segurança. Está prevista a implantação da funcionalidade eletrônica para o compartilhamento obrigatório de cartões de firmas entre todos os usuários do e-Notariado. A competência territorial foi contemplada, consoante previsão contida no artigo 19 do Provimento, que assim dispõe: "Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes", ressalvando, na hipótese de existência de um ou mais imóveis de diferentes circunscrições, no mesmo ato notarial, que será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas. A seguir, há uma outra situação prevista no parágrafo 2º, artigo 19 do Prov. 100/20, assim redigida: "Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato". Respeitosamente, a redação empregada permite a ideia de alargamento da competência territorial, extrapolando os limites da circunscrição, o que merecerá, certamente, ajustes para uma aplicação não tão abrangente, como a empregada na diretriz normativa. Por seu turno, o Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal manterá o Cadastro Único de Clientes do Notariado - CCN, o Cadastro Único de Beneficiários Finais - CBF e o Índice Único de Atos Notariais, nos termos do Provimento nº 88/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça. Em periodicidade não superior a quinze dias, os notários ficam obrigados a remeter ao CNB-CF, por sua central notarial de serviços eletrônicos compartilhados - CENSEC, os dados essenciais dos atos praticados, que compõem o Índice Único. Consoante previsão expressa, os dados essenciais são: I - a identificação do cliente; II - a descrição pormenorizada da operação realizada; III - o valor da operação realizada; IV - o valor da avaliação para fins de incidência tributária; V - a data da operação; VI - a forma de pagamento; VII - o meio de pagamento; e VIII - outros dados, nos termos de regulamentos especiais, de instruções complementares ou orientações institucionais do CNB-CF. O Provimento, dividido em sete capítulos, nas disposições finais prevê que os atos notariais eletrônicos, cuja autenticidade seja conferida pela internet por meio do e-Notariado, constituem instrumentos públicos para todos os efeitos legais e são eficazes para os registros públicos, instituições financeiras, juntas comerciais, Detrans e para a produção de efeitos jurídicos perante a administração pública e entre particulares. A comunicação adotada para atendimento a distância deve incluir os números dos telefones da serventia, endereços eletrônicos de e-mail, o uso de plataformas eletrônicas de comunicação e de mensagens instantâneas como WhatsApp, Skype e outras disponíveis para atendimento ao público, com ampla divulgação. Há, também, expressa observância à lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), em relação aos dados das partes que somente poderão ser compartilhados entre notários e, exclusivamente, para a prática de atos notariais. Resta, ainda, mencionar a criação da possibilidade da realização de ato notarial híbrido, posto que autorizada a prática do ato com uma das partes assinando fisicamente o ato notarial e a outra, a distância. Fica vedada a prática de atos notariais ou remotos com recepção de assinaturas eletrônicas a distância sem autorização do e-Notariado, que veio a ser implementado com a publicação do Provimento, ocorrida no dia 26 de maio do corrente ano, e, no prazo máximo de seis meses, naquilo que houver necessidade de cronograma técnico. Nas unidades da Federação onde exigidos selos de fiscalização, o ato notarial eletrônico deverá ser lavrado com a indicação do selo eletrônico ou físico, exigido pelas respectivas Normas de Serviço. Caso se descumpram essa observância, os atos eletrônicos lavrados serão considerados nulos. Na essência, ao tempo em que se enaltece o esforço daqueles que contribuíram positivamente para a concepção dessa ousada e revolucionária implantação da modernidade nos serviços de notas, que traduz oportuno avanço para facilitar a vida da sociedade, inimaginável há uma década atrás, cabe reconhecer que haverá um desafiador trabalho pela frente, que será bem desincumbido pelos capacitados profissionais da área, aos quais rendo minhas homenagens. *Marcio Martins Bonilha Filho é desembargador aposentado do TJ/SP. Advogado do escritório Barcellos Tucunduva Advogados.
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Renato Mello Leal "É urgente eliminarmos da mente humana a ingênua suposição de que seja possível sairmos da grave crise em que estamos mergulhados, usando o mesmo pensamento que a produziu".Albert Einstein A pandemia da covid-19 tem imposto a todos nós uma série de restrições, reflexões, necessidades de adaptações e quebras de paradigmas. No âmbito condominial não poderia ser diferente, especialmente nesta fase de isolamento social, em que todos aqueles que podem, ou seja, todos aqueles que não atuam naquelas atividades consideradas essenciais, têm ficado diuturnamente em suas residências, muitas das vezes em seus apartamentos, especialmente nos grandes centros urbanos. Tal cenário tem provocado uma natural concentração maior de pessoas nos condomínios residenciais, em contrapartida a uma diminuição no fluxo e permanência de pessoas dentro dos condomínios comerciais. Essa peculiaridade faz com que haja algumas diferenças nas soluções e tratamentos jurídicos para alguns dilemas que nos são apresentados nesta dificílima crise mundial decorrente da pandemia. Não é o caso, no entanto, do tema que pretendemos abordar neste artigo, haja vista que a possibilidade ou não de realização de assembleias virtuais é um dilema que se apresenta tanto para os condomínios residenciais quanto para os condomínios comerciais. Alguns juristas têm escrito sobre o assunto, muitos deles se manifestando pela impossibilidade de realização das assembleias condominiais em ambiente virtual, especialmente quando a convenção do condomínio não trouxer expressa autorização nesse sentido. Ocorre que a ausência de autorização expressa, na convenção condominial, para a realização de assembleias virtuais, certamente abrange a grande maioria dos casos, seja porque boa parte dos condomínios e respectivas convenções são mais antigas, tendo sido redigidas quando nem sequer se cogitava tal possibilidade, seja porque ainda hoje a praxe dos condomínios e administradoras é a realização de assembleias na modalidade presencial, e seja finalmente porque a nossa geração e aquelas que nos precederam não vivenciaram situação semelhante à que vivemos hoje, e, ainda que tivessem vivido, não detinham a tecnologia que detemos atualmente para a realização de assembleias virtuais. A título de exemplo dessa visão mais restritiva quanto à realização de assembleias virtuais, Rodrigo Karpat1, em recente edição do Blog do Fausto Macedo, em versão digital do jornal Estadão, publicou um artigo com o provocativo título As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos, abordando especialmente a hipótese de vencimento do mandato do síndico, a impossibilidade de realização de assembleia presencial por conta da necessidade de isolamento social e a suposta insegurança jurídica na realização de assembleia virtual. Como solução, o articulista recomenda o ajuizamento de uma ação de jurisdição voluntária, para a prorrogação do mandato do síndico enquanto perdurar o quadro pandêmico. Em que pese a eloquência dos argumentos e a viabilidade da alternativa apresentada, ousamos discordar de que essa seja realmente a melhor opção. Em primeiro lugar, discordamos do entendimento de que somente seria possível a realização de assembleia na modalidade virtual se a convenção do condomínio contiver expressa autorização nesse sentido. Ora, em se tratando de Direito Condominial, matéria eminentemente de Direito Privado, não se aplica o princípio da estrita legalidade, típico do direito público, regente, por exemplo, do direito administrativo, em que o agente público só pode praticar aquilo que a lei expressamente o autorizar. No Direito Condominial e no Direito Privado em geral, impera o princípio da legalidade em sua acepção ampla, no sentido de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Trata-se inclusive de um direito fundamental do cidadão, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. E, por ser direito fundamental, trata-se também de uma cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Carta Magna. Uma das principais decorrências dessa diretriz normativa, consubstanciada no princípio da legalidade lato sensu, é que se permite fazer tudo aquilo que não estiver vedado pelo ordenamento jurídico. Hely Lopes Meirelles2, ao tratar do tema, já afirmava que "enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza". Registre-se, por oportuno, que a administração condominial é evidentemente uma administração particular e a convenção condominial é considerada lei em sentido amplo, pois é o instrumento que regula as relações entre os condôminos, reunindo todas as suas principais regras, ou seja, é o verdadeiro estatuto do condomínio. Em reforço a esse raciocínio, valhamo-nos dos ensinamentos de Flávio Tartuce3: No que concerne à convenção de condomínio, essa constitui o estatuto coletivo que regula os interesses das partes, havendo um típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada. Enuncia o art. 1.333 do CC/2002 que a convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais, tornando-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção. Para ser oponível contra terceiros (efeitos erga omnes), a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Todavia, consigne-se que, conforme a Súmula 260 do STJ, a convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos (efeitos inter partes), o que é salutar. Determinado o caráter normativo e de direito privado da convenção condominial, parece-nos lícito afirmar que, não havendo no Código Civil, em nenhuma lei esparsa e tampouco na convenção condominial qualquer regra proibindo que as assembleias sejam realizadas virtualmente, tal modalidade de realização é perfeitamente admissível. Na linha de todo o raciocínio desenvolvido até aqui, só prevaleceria aquele entendimento de que as assembleias virtuais apenas seriam possíveis quando as convenções condominiais expressamente as permitissem se estivéssemos, quanto ao tema, sob a égide do princípio da estrita legalidade. Mas não. Na matéria sob análise, vimos que a regência se dá pelo princípio da legalidade em sentido amplo, ou seja, se a convenção condominial não veda, é perfeitamente possível que a assembleia se realize em ambiente virtual, desde que atendidos todos os requisitos de validade e de eficácia previstos em lei. Quanto a isso, e nos termos do que preveem os artigos 1.347 a 1.356 do Código Civil de 2002, basta que se observe, também para as assembleias virtuais, todas as regras relativas à convocação, quóruns de deliberação, lista de presença, lavratura de ata, registro, etc. Deve ser registrado que todas essas providências citadas também são objeto de demandas judiciais, ou seja, não se limitando às assembleias virtuais. Neste sentido: CONDOMÍNIO. ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA. AUMENTO DE TAXA CONDOMINIAL - COMUNICAÇÃO NO EDITAL DE CONVOCAÇÃO. FORMA DE CONVOCAÇÃO DOS CONDÔMINOS NÃO OBSERVADA. VOTO MINERVA - AUSÊNCIA DE CRITÉRIOS DE DESEMPATE DE VOTAÇÃO EM CONVENÇÃO - NECESSIDADE DE DELIBERAÇÃO PELA ASSEMBLÉIA. NULIDADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Os artigos 1.331 e seguintes do Código de Civil esboçam as regras gerais disciplinadoras sobre os assuntos condominiais, entretanto, a convenção de condomínio constitui o estatuto coletivo que regula as relações jurídicas entre as partes, sendo típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada e possui, pois, força vinculante, nos termos do art. 1.333 do CC. 2. A ausência de convocação para assembléia na forma determinada pela convenção condominial e/ou a ausência de quórum especial para deliberação acerca da mudança no rateio das despesas, gera a nulidade da decisão da assembléia. 3. No caso, dispõe o art. 28 da Convenção de Condomínio do João de Barro Candango que as assembléias gerais Ordinárias e Extraordinárias serão realizadas mediante convocação por circular assinada pelo Síndico e colocada em local visível por todos e enviada por carta registrada ou sob protocolo, a cada condômino e com antecedência mínima de 8 dias da data fixada para a sua realização e só tratará de assuntos mencionados na pauta, o qual também indicará o dia, hora e local da reunião? (ID 11427971 - Pág. 18). 4. A referida convenção dispõe ainda que, findo cada exercício, será realizada Assembléia Geral Ordinária dos condôminos à qual caberá principalmente, dentre outras, aprovar o orçamento do ano em início? (ID 11427971 - Pág. 18). 5. No caso, o Edital de Convocação para Assembléia Geral Ordinária do Condomínio Par João de Barro Candango convocou os condôminos para, em 13/05/2019, deliberar sobre prestação de contas do primeiro trimestre do ano de 2019; deliberação do orçamento para o ano de 2019; assuntos gerais (deliberação quanto a biometria, deliberação quanto a estrutura do escritório e outros)? (ID 11427959 - Pág. 1). Assim, na referida assembléia houve deliberação sobre aumento da taxa de condomínio. 6. O item 2 do edital de convocação prevê a deliberação sobre o orçamento para o ano de 2019. Dessa forma, considerando que orçamento trata de receita (valor arrecadado ou disponível) e despesa (previsão de gastos), entende este julgador que o tema aumento de aumento de taxa condominial destinada a fazer face ao custeio de despesas está inserida dentro do tema orçamentário. Dessa forma, não há que se falar em nulidade do aumento da taxa condominial por esse motivo, ainda mais no caso em que a Convenção de Condomínio estipula os principais assuntos a serem tratados em assembléia ordinária, sendo um deles a aprovação de orçamento para o ano em início. 7. Entretanto, vislumbro dois outros motivos capazes de anular a deliberação sobre o aumento da taxa condominial deliberado na assembléia de 13/05/2019. Primeiro: o art. 28 da Convenção de Condomínio prevê que a convocação para assembléias ordinárias e extraordinárias deve ser feita por circular assinada pelo síndico e colocada em local visível por todos e enviada por carta registrada ou sob protocolo (ID 11427971 - Pág. 18). Não tendo sido emitida para o autor a convocação na forma estipulada na Convenção, resta caracterizada falha no ato convocatório, capaz de gerar a nulidade da assembléia. 8. Segundo: a Convenção de Condomínio Par João de Barro Candango não prevê a forma de procedimento no caso de empate na votação. Ausente critério de desempate na convenção de condomínio é necessário que se estipule, antes do início das deliberações, mediante proposta aprovada pela maioria dos presentes, o direito do voto de minerva para um dos condôminos presentes, viabilizando resolver os temas da ordem do dia. 9. No caso, depois de realizada a votação e constatado o empate sobre o ?aumento da taxa condominial?, a presidente da mesa, após ouvir orientação no sentido de que ?geralmente o voto minerva é dado pelo presidente da assembléia?, atribuiu o voto minerva ao Síndico do condomínio (ID 11427960). Verifica-se, assim, irregularidade na definição do critério de desempate: a) porque não houve votação da assembléia para esse fim; e b) porque o critério fora definido depois de realizada a votação e constatado o empate. 10. Mantenho, pois, a sentença, embora por fundamento diverso. 11. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 12. Súmula de julgamento servindo de acórdão, na forma do artigo 46 da Lei nº 9.099/95. 13. Diante da sucumbência, nos termos do artigo 55 da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), condeno o recorrente ao pagamento das custas processuais. Sem condenação em honorários advocatícios, ante a ausência de contrarrazões. (TJ-DF 07052458820198070009 DF 0705245-88.2019.8.07.0009, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 12/11/2019, Terceira Turma Recursal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 22/11/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.) Ademais, atualmente, muitas são as ferramentas tecnológicas que viabilizam, inclusive gratuitamente, a realização de assembleias virtuais, tais como Zoom, Skype, Google Meet, Microsoft Teams, dentre outras. Quanto à segurança jurídica, é provável que as assembleias virtuais assegurem uma fidelidade ainda maior a tudo aquilo que for discutido e deliberado no encontro, pois tais ferramentas conferem uma facilidade muito grande de gravação de áudio e imagem, de tal modo que não será apenas a assinatura em uma lista de presenças que registrará a participação de cada condômino na reunião, havendo a possibilidade de, em caso de dúvidas, a parte interessada se socorrer a qualquer tempo à imagem e ao som de como se manifestou cada um dos condôminos participantes da reunião virtual. Essa é uma realidade, há muito se debate a sociedade da informação e o acesso às novas tecnologias4. Referidas ferramentas devem servir à sociedade de modo a ser não somente um serviço de facilitação das relações intersubjetivas, mas sim de utilidade pública, em especial buscando a preservação da integridade e do bem-estar das pessoas. Outro elemento que deve ser lembrado é a necessidade de as atividades condominiais não estarem em descompasso com os reflexos e avanços sociais. Nesse sentido, estamos diante de um novo fato social denominado pelos especialistas de Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial5. Referido fato social apresenta um novo conceito, que engloba automação e tecnologia da informação, combinados com elementos estruturantes com as principais inovações tecnológicas naqueles ramos de atuações. As novas gerações já estão sendo moldadas dentro dessa realidade, utilizam e utilizarão aas ferramentas disponíveis de automação e tecnologia da informação, superando os eventos que conhecemos hoje, em especial as assembleias presenciais. Como se vê, seja quanto à forma, seja quanto ao conteúdo, não há óbice algum que as assembleias condominiais sejam realizadas em ambiente virtual, não apenas durante esta fase de pandemia da covid-19, mas mesmo depois, quando retornarmos ao tão almejado estado de normalidade. Exatamente quanto a isso, Yuval Noah Harari6, em suas obras, já vinha nos alertando, ao elencar as mudanças que se anunciavam, mas, na atual situação pandêmica, percebe-se que alguns anos se transformaram em meses, e o crivo de Cronos foi muito mais sentido que o de Themis. É preciso extrair lições positivas de experiências negativas. Esta crise sanitária mundial, vivenciada num momento histórico de franca globalização, fator que indubitavelmente a agrava, tem nos punido severamente nos mais diversos aspectos, mas, por outro lado, tem nos ensinado a lidar de modo mais inteligente, solidário e assertivo com algumas rotinas que até então nos consumiam de tal modo que nos ofuscavam a visão acerca de melhores alternativas. Temos vivido, nas últimas décadas, um constante e salutar processo de desjudicialização. Trabalho árduo, que tem como base os ensinamentos de Cappelletti7, segundo o qual o Processo Civil transitou por fases, em especial por "ondas", quais sejam: a primeira onda, de assistência judiciária aos pobres; a segunda onda, de tutela dos interesses difusos; e, por fim, a terceira onda, do acesso à Justiça em uma concepção mais ampla, ou seja, de acesso a uma ordem jurídica justa, o que inclui e valoriza a desjudicialização. Exemplos disso são a arbitragem, os divórcios e inventários extrajudiciais, a negociação, a mediação e a conciliação, dentre outros meios mais adequados de solução de conflitos. Não nos parece que, num cenário como esse, em que a escassez de recursos financeiros é um elemento marcante, a propositura de ações judiciais, em especial para a prorrogação do mandato do síndico, seja a melhor alternativa, quando temos essa praticamente gratuita e muito eficaz opção de realização de assembleias virtuais. Estejamos todos cada vez mais preparados e adaptados às ferramentas tecnológicas, à solidariedade e ao desapego às formalidades exacerbadas, pois uma nova e melhor realidade, nos mais diversos aspectos, há de emergir desta crise sem precedentes. Mas como operacionalizar isso? Bem, isso será objeto de um próximo artigo. REFERÊNCIAS CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988 HARARI. Yuval Noah, 21 lições para o século 21. Companhia das Letras, 2018 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1997. SANSON, Cesar. Quarta revolução industrial revolução 4.0.  Acesso em: 28 abr. 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - v. 4 - 12. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020. TELLAROLI, Taís Marina; ALBINO, João Pedro. Da sociedade da informação às novas tic's: questões sobre internet, jornalismo e comunicação de massa. Acesso em: 28 abr. 2020. KARPAT, Rodrigo. As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos. Acesso em: 28 abr. 2020. Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor da pós-graduação do Centro Universitário Mackenzie. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado em SP. Renato Mello Leal é mestrando em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito - EPD. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de artigos jurídicos. Advogado em SP. __________ 1 KARPAT, Rodrigo. As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos. Acesso em 28/4/2020. 2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 82. 3 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - v. 4 - 12. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 407. 4 TELLAROLI, Taís Marina; ALBINO, João Pedro. Da sociedade da informação às novas tic's: questões sobre internet, jornalismo e comunicação de massa. Acesso em 28/4/2020. 5 SANSON, Cesar. Quarta revolução industrial revolução 4.0. Acesso em 28/4/2020. 6 HARARI. Yuval Noah, 21 lições para o século 21. Companhia das Letras, 2018 7 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988
Texto de autoria de André Abelha SUMÁRIO. I. Introdução. II. Impacto nº 1 (dois em um): Impossibilidade definitiva e frustração do fim do contrato. III. Impacto nº 2: Impossibilidade temporária. IV. Impacto nº 3: Desequilíbrio superveniente. V. Impacto nº 4: Deterioração da situação financeira do devedor (exceção da ruína). VI. Outras figuras jurídicas aplicáveis. VII. Conclusão. Referências Bibliográficas. I. Introdução Tente simplificar o Direito, e quando abrir os olhos, você estará mergulhado nas profundezas de uma caverna subaquática, sem treino, sem fôlego, sem luz e sem direção. Esquematizar categorias jurídicas costuma ser um flerte com a imprecisão, um salto para o precipício acadêmico1. Então, antes de trilhar este caminho, entenda e aceite os perigos que te acompanharão no percurso. De fato, reduzir situações tão complexas a mero sistema lógico-formal é quase uma renúncia à análise das infinitas nuances e possibilidades que nascem da realidade. Mesmo assim, há momentos em que tal recurso visual pode sim trazer algum benefício. Desenhar o cenário geral nos ajuda a enxergar além da neblina, e nos leva a flutuar acima das copas das árvores, para vermos a floresta inteira. Desde que a pandemia explodiu (n)o Brasil, iniciou-se uma intensa produção de textos com distintos enfoques, analisando os efeitos da pandemia sobre os contratos. Caso fortuito, força maior, rebus sic stantibus, imprevisão, onerosidade excessiva, quebra da base objetiva, pacta sunt servanda, desequilíbrio, exceção de contrato não cumprido e boa-fé objetiva são apenas algumas das figuras invocadas. Mas como dar ordem a tudo isso e contemplar o quadro geral? Caso se anime a continuar a leitura, tentaremos juntos montar, em melhor perspectiva, esse complicado quebra-cabeças. Alguns autores brilhantes, bem antes da Covid-19, e outros, mais recentemente, já nos forneceram peças valiosas. Só precisamos tentar juntá-las, sem inventar a roda. Ordem é o começo de tudo. Saber que o sistema jurídico não elegeu o caso fortuito como gatilho para o reequilíbrio de um contrato é o primeiro passo para estudar e discutir questões mais profundas. Reconhecer que lesão e estado de perigo só podem ser invocados como vício originário, sendo inútil brandi-los em situação de desequilíbrio superveniente, é a base para uma sã conversa sobre revisão contratual. Eis, portanto, caro leitor, o objetivo deste arriscado artigo: levá-lo para o alto, para voarmos sobre a densa floresta que se formou, e termos uma vista panorâmica, com GPS, dos quatro impactos mais comuns provocados pela Covid-19, que podem incidir isolada ou cumulativamente sobre uma relação contratual: (i) a impossibilidade permanente de adimplemento da prestação ou, com efeito parecido, a frustração do fim do contrato; (ii) a impossibilidade momentânea de cumprir a obrigação no vencimento; (iii) o desequilíbrio superveniente da prestação; e (iv) a deterioração da situação financeira do devedor2. E antes de decolarmos, uma premissa valiosa: se o contrato, sendo paritário e simétrico, regular os efeitos da força maior ou caso fortuito, com alocação de riscos, as regras consensuais prevalecem sobre as regras legais (CC, artigos 113, 393 e 421-A). Este texto busca apenas explicar o que pode acontecer no silêncio do contrato e na ausência de acordo. II. Impacto nº 1 (dois em um): Impossibilidade definitiva e frustração do fim do contrato Imagine que você, um dos maiores oradores de todos os tempos, foi contratado a peso de ouro, exclusivamente para uma sustentação oral no primeiro julgamento virtual da história do Supremo Tribunal Federal (STF), em litígio de grande repercussão econômica. Mas, infelizmente, você foi contaminado pelo coronavírus, e agora, tossindo, sem ar e acamado, nada é capaz de fazê-lo discursar. O julgamento não foi adiado, a causa foi julgada sem você e o cliente perdeu, sucumbiu. Não haverá outra chance. A sustentação neste processo tornou-se impossível para todo o sempre, e sua obrigação de fazer jamais será cumprida. Juridicamente, então, o que acontece? De acordo com o art. 248 do Código Civil, "se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação". A regra, nesta hipótese, é reforçada pelo art. 607 do Código Civil, segundo o qual o contrato de prestação de serviço termina "pela impossibilidade da [sua] continuação, motivada por força maior". O contrato está resolvido, de pleno direito. Com exceção da obrigação de pagar, a ser tratada adiante, a mesma regra de resolução se aplica às prestações de dar coisa certa ("se... a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes...", art. 234 CC) e de não fazer ("extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar", art. 250 CC). De forma diferente, porém semelhante o suficiente para ser agrupada sob o mesmo tipo de impacto: haverá casos em que a prestação pode ser cumprida, mas sua utilidade desapareceu. Houve, por assim dizer, a frustração do fim do contrato3. Se comprei com uma agência de turismo um pacote incluindo passagens aéreas, hotel e ingresso para um show cancelado em definitivo, o que adianta a agência conseguir me transportar para outra cidade e me hospedar no hotel, se o objetivo da compra era o evento? Então, para fincarmos nossa primeira estaca: (i) a Covid-19 não é, a priori, genericamente, um caso fortuito ou de força maior; a parte tem o ônus de comprovar, na sua realidade contratual, que a pandemia desencadeou um fato necessário, irresistível, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (art. 393, p. único, do CC4), e que esse fato gerou a impossibilidade de cumprimento da prestação (arts. 234, 248, 250 ou 607 do CC)5, ou a frustração do objetivo do contrato (CC, art. 421); (ii) se a Covid-19, no caso concreto, provocou uma das situações acima tratadas, a consequência será a resolução do contrato; (iii) o caput do art. 393 do Código Civil não traz regra de resolução, e sim de exclusão de responsabilidade, rompendo o nexo causal e eximindo o devedor de indenizar o credor pelos prejuízos resultantes de fortuito ou força maior; e (iv) se não há impossibilidade da prestação, nem frustração de seu fim, o contrato tem que ser cumprido, e se não o for, caberá execução específica, ou então resolução por inadimplemento, e a parte inocente poderá pleitear indenização, aplicando, se prevista a respectiva cláusula penal. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Professor de cursos de extensão e pós-graduação em Direito Imobiliário em diversas instituições. Advogado. __________ 1 STRECK, Lenio. O coronajúris e "por que gostamos tanto de simplificar o Direito?". Acesso em 18.abr.2020. 2 Está excluída da abrangência deste artigo a análise do impacto da pandemia sobre as relações público-privado e trabalhistas. 3 Cite-se, neste ponto, o Enunciado 166 do Conselho da Justiça Federal (CJF), aprovado na III Jornada de Direito Civil: "A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil". 4 Releva desde já registrar que "a imprevisibilidade não é requisito necessário da força maior e do caso fortuito, podendo um fato ser previsível mas irresistível e ser, por esse motivo, considerado como caso fortuito ou força maior" (WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos, 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2011). A Covid-19 pode desencadear um fato que seja, ao mesmo tempo, um fato irresistível, extraordinário e imprevisível, ou apenas extraordinário e imprevisível ensejando, se os demais requisitos estiverem presentes, a revisão do contrato (Impacto nº 3). 5 SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos do novo coronavirus. Acesso em 20.abr.2020.
Texto de autoria de Fabio Tadeu Ferreira GuedesA incorporação imobiliária é uma atividade complexa, que envolve inúmeras variáveis e uma gama considerável de relações jurídicas simultâneas. O trabalho do incorporador é gerir essa atividade e canalizar todas essas relações jurídicas para um único fim: a construção de um determinado empreendimento.A atividade do incorporador passa pela localização de terrenos apropriados, elaboração de projetos, registros e averbações, obtenção de alvarás e licenças, contratação de profissionais, compra de materiais, execução das obras projetadas, obtenção dos certificados pertinentes, especificação das unidades e constituição do condomínio edilício e, por fim, a venda das unidades autônomas construídas ou a construir e sua entrega futura aos adquirentes.A atividade é desenvolvida ao longo de muito tempo e anos transcorrem desde a idealização do empreendimento até a entrega da chave da unidade construída ao adquirente. Assim, fica fácil de se perceber que a incorporação imobiliária é uma atividade de risco que precisa ser minuciosamente projetada. Qualquer equívoco na alocação e avaliação dos riscos pode comprometer o sucesso da incorporação.A vida de um empreendimento começa muito antes de o mercado de consumo tomar conhecimento de sua existência. Meses e anos de trabalho antecedem ao lançamento de uma edificação ao público em geral e outro período considerável acompanha a fase de sua efetiva construção.Na prática, isso que dizer que o incorporador precisa antever o futuro e antecipar aquilo que os consumidores terão interesse em adquirir alguns anos depois. Não aquilo que seja um consenso naquele momento em que o empreendimento é concebido, mas que poderá sê-lo no momento em que ele for finalizado. É preciso estar sempre um passo adiante, antecipar tendências, interesses e, principalmente, comportamentos sociais e econômicos. De nada adiantará o trabalho realizado se, quando as vendas começarem, nenhum interessado aparecer para comprar as unidades, seja porque a economia não está bem e ninguém tem dinheiro em caixa para uma aquisição vultosa, seja porque o produto não desperta mais o desejo dos consumidores.Obviamente que as vendas são de suma importância para o sucesso do empreendimento. Não se constrói por construir e não há altruísmo no mercado capitalista. O objetivo é mesmo a venda de todas as unidades.Mas, ao contrário do que possa parecer a um leigo, o incorporador não é o único beneficiado com o sucesso na venda das unidades. Todos ganham quando a incorporação atinge seu objetivo, inclusive (e principalmente) os adquirentes.Não se esquece de que o incorporador desenvolve uma atividade econômica e seu objetivo final seja obter lucro com a venda de unidades construídas. Mas esse objetivo, vale frisar bem, é apenas o último passo de toda essa cadeia de atividades desenvolvida para que a construção chegue ao seu final. Eventual lucro é uma consequência do trabalho realizado e uma coisa é certa: o resultado econômico positivo não se verifica durante a fase de desenvolvimento e de construção do empreendimento. Até que se obtenha o Certificado de Conclusão de Obra ("Habite-se"), a incorporação imobiliária é uma atividade deficitária por natureza.Enquanto o resultado financeiro não chega, de certa forma, todos os envolvidos partilham alguns riscos. Até que se obtenha qualquer espécie de lucro, significa que os custos necessários para a construção do empreendimento ainda não foram angariados. Se o dinheiro parar de entrar no caixa, em tese, pode não haver fluxo financeiro para finalizar a construção.Ao contrário do senso comum de que as construtoras possuem caixa em abundância e que podem suportar tranquilamente a construção de um empreendimento com recursos próprios, a prática empresarial demonstra que não é exatamente isso que ocorre. A saúde financeira de um empreendimento depende substancialmente da venda das unidades ainda na fase de construção.Em termos gerais, os números só começam a se tornar favoráveis quando o Certificado de Conclusão da Obra é expedido e os adquirentes passam, de forma sistemática, a celebrar instrumentos de financiamento com as instituições financeiras para pagamento de seu saldo devedor.É comum se dizer na construção civil que o valor obtido com a venda das unidades ainda na planta é convertido em "tijolo". De fato, O incorporador depende do recebimento das parcelas obtidas com a venda dos imóveis "na planta". Ao receber as parcelas, o dinheiro é revertido para a construção. Esse valor, em certa medida, "financia a própria obra".O que se pretende demonstrar é que a saúde financeira do empreendimento depende substancialmente do recebimento dessas parcelas e a interrupção desse fluxo de pagamento pode comprometer a continuidade das obras, os prazos, o cumprimento de obrigações em geral e, inclusive, a conclusão do empreendimento.Fosse essa preocupação apenas abstrata, não seria nem mesmo necessária a promulgação da lei 13.786, de 27/12/2018, a chamada "Lei dos Distratos". No fundo, o que essa lei faz é, basicamente, proteger a saúde financeira do empreendimento que está sendo construído, na medida em que expressa diversas regras aplicáveis para as hipóteses em que o adquirente, além de manifestar seu interesse em não mais contribuir com as parcelas a que havia se obrigado (resilir o contrato), ainda pretende retirar do caixa do empreendimento os valores que já pagou (restituição dos valores pagos).Para evitar que um movimento de saída dos adquirentes venha a desfalcar o fluxo financeiro da obra, paralisando-a ou inviabilizando-a, foram reforçadas regras básicas para balizar os valores que serão restituídos ao comprador "desistente" e como se dará essa restituição.O intuito principal da Lei foi o de reestabelecer prioridades. Colocando-se o término da construção como o principal objetivo, dosou-se quanto e como se dará a restituição de valores àqueles que não mais contribuirão para o resultado final da incorporação, resguardando o direito desses adquirentes, na exata medida em que também se protege os demais adquirentes do mesmo empreendimento. A Lei trouxe uma verdadeira ponderação de interesses, com a escolha clara para a blindagem e segurança do objetivo comum envolvido em detrimento do interesse individual de cada adquirente.Sem o intuito de ser repetitivo, o objetivo maior é a proteção da coletividade de adquirentes ao se colocar a construção do empreendimento como meta principal, ainda que o exercício do direito de um ou de outro adquirente, individualmente, tenha de ser postergado para após a conclusão das obras (no caso de restituição de valores pagos, por exemplo).Para entender o fundamento que está por trás desse posicionamento, é preciso olhar para a incorporação e vê-la como uma atividade que necessita se autoalimentar. A incorporação depende, para ter sucesso, de fontes de autossustentação. Se não dispuser de meios de captação de recursos lastreados na própria construção, a incorporação estará fadada a sofrer seríssimos problemas financeiros.A história já nos mostrou na prática o que acontece com as empresas que, em determinado momento de sua trajetória, perdem a capacidade de autossustentação em cada empreendimento e passam a atuar com fluxo cruzado de capital, onde os recebíveis de um empreendimento são direcionados para cobrir custos de outro empreendimento. Começa um "jogo do cobertor curto" e alguma parte acaba ficando descoberta. Até que o mecanismo não se sustenta mais e a empresa quebra, deixando inúmeros adquirentes e suas famílias desamparados.Após famoso episódio de grande magnitude, em razão dessa prática e que levou uma das maiores construtoras do país à falência, iniciou-se um movimento que resultou na aprovação da lei 10.931/04 e na instituição do chamado Patrimônio de Afetação, que tem por objetivo segregar, do patrimônio geral do incorporador, as obrigações e os direitos decorrentes de um determinado empreendimento específico. Constituído o patrimônio de afetação, todos os recebíveis decorrentes de um empreendimento ficam a ele vinculados, até que sua construção seja finalizada. Evita-se que os valores recebidos sejam empregados para saldar outras obrigações do incorporador que não sejam decorrentes do empreendimento que o originou. Realiza-se uma espécie de blindagem patrimonial da incorporação, tanto para os recebíveis quanto para as obrigações a serem cumpridas.Mais uma vez, prioriza-se a construção do empreendimento. Resguarda-se o objetivo comum de todos os envolvidos naquela determinada incorporação (onde se incluem os próprios adquirentes), protegendo-se o caixa da incorporação. É mais um exercício de autossustentação.É justamente nesse contexto, em que se coloca o interessa da coletividade como prioridade, que se destaca a importância do prazo de carência para que o incorporador possa denunciar a incorporação e "desistir" do empreendimento.Nos termos do artigo 34, da lei 4.591/64, "o incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência, dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento".Isso quer dizer que, mesmo depois de muito trabalho, registros, lançamento do empreendimento ao público e até depois do início das vendas das unidades, o incorporador pode refletir se deve ou não seguir adiante com o empreendimento.É no momento em que o incorporador realiza o lançamento do empreendimento ao público que todas as suas expectativas serão colocadas à prova. Será que o mercado receberá bem o produto projetado? Como reagirá o mercado de consumo hoje sobre o empreendimento idealizado meses ou anos atrás? Será um sucesso de vendas ou um fracasso?Por mais que o empreendedor entenda o mercado e por mais que ele tenha planejado minuciosamente o produto que colocará à venda, apenas os resultados concretos lhe darão subsídios para a tomada de decisões empresariais importantes. Será nesse momento que o incorporador poderá sentir a viabilidade econômico-financeira do empreendimento.Afinal, o empreendimento será autossustentável?Se as vendas se mostrarem promissoras e se o trabalho desenvolvido até então estiver dentro do planejado, o incorporador terá a confirmação de que o empreendimento chegará ao resultado esperado. É hora de partir para a construção.Se a resposta for negativa, um problema grave já se apresenta antes mesmo do início das obras. Verificada provável dificuldade com o fluxo de caixa, a considerar os resultados das vendas iniciais, é viável seguir em frente com um empreendimento que não conseguirá se manter financeiramente? Ao incorporador consciente, talvez seja o momento de dar um passo atrás e evitar um problema maior.Não sendo confirmada a viabilidade econômico-financeira da obra, o incorporador poderá denunciar a incorporação ao Registro de Imóveis. Em seguida, deverá comunicar sua posição aos adquirentes.Veja-se, uma vez mais, a preocupação com a conclusão do empreendimento, em benefício de toda a coletividade de interessados na aquisição de unidades. Se o empreendimento não se mostrar viável, é melhor interromper a incorporação nesse momento do que levá-la adiante, evitando-se que os adquirentes sejam prejudicados no futuro, ou que outros interessados venham a adquirir um empreendimento fadado ao insucesso.Para se valer da denúncia, é preciso que o incorporador tenha arquivado junto ao Cartório de Registro de Imóveis uma declaração onde expressamente tenha fixado o prazo de carência (nos termos dos artigos 32, "n", e 34, § 1º, da lei 4.591/64) e as condições que o autorizarão a desistir do empreendimento. Trata-se de direito potestativo do incorporador e basta-lhe cumprir as formalidades exigidas, denunciar a incorporação ao Registro de Imóveis e comunicar a cada um dos adquirentes.Determina o já referido artigo 34, que o incorporador poderá desistir da incorporação dentro do "prazo de carência". De acordo com o seu parágrafo segundo, "em caso algum poderá o prazo de carência ultrapassar o termo final do prazo de validade do registro ou, se for o caso, de sua revalidação". O parágrafo sexto ainda é categórico ao afirmar que "o prazo de carência é improrrogável". Ou seja, cabe ao próprio incorporador estipular um possível prazo de carência, dentro do qual poderá desistir do empreendimento.De modo coerente, visando a segurança jurídica de todos os envolvidos, determinou-se um prazo máximo para que essa carência seja estipulada: o "termo final do prazo da validade do registro ou, se for o caso, de sua revalidação". Buscando auxílio no disposto no artigo 33, ainda da lei 4.591/64, e no artigo 12, da lei 4.864/65, observa-se que é de "180 (cento e oitenta) dias o prazo de validade de registro da incorporação".De fato, cento e oitenta dias é um prazo razoável para criar um ambiente de segurança jurídica tanto para o incorporador quanto para os adquirentes. Nem é um prazo exíguo para o incorporador analisar a viabilidade financeira do empreendimento e nem deixa o adquirente em longa incerteza acerca de sua efetivação.Pois bem. O que se tentou demonstrar até aqui é que o objetivo principal da incorporação deve ser buscado com muita ênfase. Deve-se proteger a coletividade de adquirentes para viabilizar que a construção do empreendimento se torne uma realidade. Aqueles que acreditaram na incorporação e entregaram seu dinheiro ao incorporador esperam receber e devem receber aquilo que compraram. A posse da unidade autônoma deve ser entregue ao adquirente. E, para materializar esse objetivo, diversos mecanismos legais foram criados para esse mister, protegendo o patrimônio da incorporação e o próprio patrimônio da coletividade de adquirentes.Ocorre que, no presente tempo de crise, de incertezas nas relações jurídicas, muito tem se falado a respeito da flexibilização de obrigações, renegociações contratuais, extensão de prazos para pagamento, dentre outras possíveis consequências provocadas pela pandemia do coronavírus.As dificuldades têm gerado inúmeras discussões doutrinárias, ainda embrionárias e predominantemente hipotéticas, a respeito de como deverão ser enfrentadas juridicamente suas consequências. Os casos mais corriqueiros geraram os primeiros burburinhos, mas, aos poucos, vão surgindo inúmeros outros que afetam igualmente uma parcela significativa da sociedade.A preocupação que nos toma agora é saber como as relações jurídicas serão afetadas. E, principalmente, qual será a postura do Poder Judiciário diante de demandas que postulem a alteração de obrigações contratuais. O tema ainda está indefinido e, neste momento, ainda está em votação o PL 1.179/2020, que deverá trazer algum norte para esse debate.Por isso, a ideia aqui é chamar a atenção não só pela hipótese de que essa estrutura da incorporação será fortemente impactada e sofrerá interferência direta do Poder Judiciário, como para o fato de que a fluência do prazo de carência para a denúncia da incorporação, nesse momento, é inócua e igualmente prejudicial.Embora a venda das unidades na planta seja importante e indispensável para gerar fluxo financeiro para a construção, é igualmente certo que o incorporador financiará o custo da obra junto a instituições financeiras. Provavelmente, quando houver o lançamento do empreendimento ao público em geral, o incorporador já tenha celebrado um contrato de financiamento bancário.Ocorre que, mais uma vez, ao contrário do que o senso comum possa sinalizar, o agente financeiro não entregará qualquer valor de imediato para a construção. Antes disso, o empreendimento terá de atingir certos objetivos e demonstrar sua viabilidade econômico-financeira.Esse contrato de financiamento estará certamente subordinado a diversas cláusulas suspensivas e resolutivas. A principal delas deverá conter disposição no sentido de que o contrato de financiamento se aperfeiçoará se, e somente se, as vendas atingirem uma determinada quantidade mínima de unidades. Ou seja, o contrato de financiamento ficará subordinado à venda de uma porcentagem do empreendimento, o que indicará que o próprio empreendimento é viável e autossustentável.Com esse contrato em mãos, o incorporador promoverá o lançamento do empreendimento e se empenhará em realizar a venda do maior número de unidades que conseguir dentro do prazo de carência. Atingido o número mínimo de vendas contratualmente definido junto ao agente financeiro, e que provavelmente deverá superar 40% do total das unidades antes do início das obras, o incorporador terá condições de avaliar se o empreendimento será viável e autossustentável ou não.Se esse número mínimo de vendas não se tornar uma realidade, é hora de reflexão e, possivelmente, de tomar a decisão de desistir da incorporação e denunciá-la.Problema grave que ocorre em tempos de pandemia e de isolamento social é que esse momento de reflexão está absolutamente prejudicado. A principal razão pela qual existe o prazo de carência não faz sentido neste momento.Não adianta promover o lançamento de empreendimentos novos durante o confinamento dos pretensos adquirentes porque ninguém comparecerá ao estande de vendas. Na Cidade de São Paulo, por exemplo, foram editados Decretos Municipais e Estaduais determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais e de estandes de vendas.A venda remota de imóveis também não é algo que, neste momento, surta resultados expressivos. A compra de um imóvel é um grande evento na vida dos brasileiros, que lutam para que esse momento se torne realidade. Logo, é um momento tão importante na vida das pessoas, que o adquirente necessita ir ao local, quer ver as plantas do condomínio, ter o prazer de visitar as unidades decoradas, precisa tirar dúvidas com os corretores e, enfim, deseja viver o momento da realização do sonho da casa própria. Só que a venda presencial, neste momento, está inviabilizada.Some-se a isso a própria insegurança financeira da atual conjuntura da sociedade, que naturalmente já contribui para a redução das vendas. Situação essa que se agrava com o crescente número da população que vem perdendo o emprego a cada dia que a pandemia avança pelo país.E com os lançamentos já realizados, a situação é ainda pior. Já houve todo um esforço canalizado para lançar o empreendimento e divulgá-lo ao mercado. Certamente já há um fluxo de vendas em andamento e que foi interrompido pelo isolamento social.Ou seja, a análise da confirmação de viabilidade econômico-financeira do empreendimento estava em andamento, mas foi abruptamente interrompida pela pandemia. Os números atuais já não refletem a tendência real de vendas e/ou de aceitação do mercado. Simplesmente surgiu uma paralisação temporal das relações contratuais em geral.O grande problema é que o prazo de carência segue em curso, alheio à pandemia que nos rodeia. Neste momento, há mais incertezas do que respostas. Quanto tempo a pandemia permanecerá? Depois dela, tudo voltará a ser como era antes?O prazo de carência, como afirmado, é um direito potestativo conferido ao incorporador. Independe, portanto, da aceitação dos eventuais adquirentes. Presentes as condições, cabe exclusivamente ao incorporador exercer ou não esse direito.A natureza jurídica do prazo de carência, vale lembrar, é decadencial. Isso quer dizer que, não exercido o direito dentro do prazo fixado, extinto estará. Não pode ser estendido por mera vontade do incorporador ou por sua exclusiva conveniência. Extinto o direito, o incorporador não poderá mais desistir da incorporação e estará obrigado a seguir com o empreendimento.A dilação do prazo de carência merece atenção. Não é prudente, no cenário atual, forçar o incorporador a tomar a decisão de denunciar ou não a incorporação. Trata-se de medida que atinge diretamente muitos interessados. O momento pede calma e maior reflexão.O Conselho Nacional de Justiça, atento ao problema vivido no país, já sinalizou que "os prazos de validade da prenotação, e os prazos de qualificação e de prática dos atos de registro serão contados em dobro" (CNJ, Provimento nº 94, art. 11). A mesma disposição foi replicada pelo Provimento CG nº 7, expedido pela Corregedoria Geral de Justiça São Paulo (Comunicado 231/2020), em seu artigo 2º.Todavia, ainda não está claro qual será o tratamento que será concedido ao prazo de carência e à validade do registro da incorporação, nem se haverá tratamento diferente para a hipótese em cada localidade, a considerar a extensão continental de nosso país e suas especificidades regionais.O projeto de lei 1179/2020, já aprovado pelo Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados, "dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus (COVID-19)".O Projeto fixa como termo inicial dos eventos derivados da pandemia o dia 20 de março de 2020 (art. 1º, § único). Mas determina que, a partir da entrada em vigor da lei, caso o Projeto venha a ser aprovado, "os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso", "até 30 de outubro de 2020" (art. 3º, caput). E a mesma disposição se aplicará às hipóteses de decadência. Para afastar qualquer dúvida acerca da extensão do impedimento ou da suspensão da fluência aos prazos decadenciais, o parágrafo segundo, do art. 3º, expressamente determina que essa disposição "aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no artigo 207, da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)"1.Há um momento de insegurança e o debate se faz necessário.O Provimento nº 94, do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 11, e/ou o Provimento CG nº 7, expedido pela Corregedoria Geral de Justiça São Paulo (Comunicado 231/2020), em seu artigo 2º, duplicam o prazo de carência para a denúncia da incorporação? Uma vez aprovado o texto do artigo 3º, do projeto de lei 1179/2020, o prazo de carência ficará suspenso entre a aprovação da lei e o dia 31 de outubro de 2020, ficando igualmente impedido de começar a fluir os novos prazos que se iniciariam nesse período?A suspensão do prazo de carência certamente resolveria um problema latente da incorporação e evitaria decisões precipitadas de denúncia da incorporação e, de outro lado, evitaria que os adquirentes fossem prejudicados em outras situações em que o incorporador tenha de optar por seguir com o empreendimento mesmo sem a convicção, neste momento, de que a incorporação seja autossustentável.__________1 Art. 207, CC: Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.
Texto de autoria de Fábio Azevedo Este ensaio, de forma muito simples e objetiva, pretende demonstrar algumas razões dogmáticas que sustentarão a conclusão de que um lojista de shopping center não deve ser compelido a pagar aluguel e demais despesas necessárias ao desenvolvimento da operação, especificamente quando o empreendimento fechou suas portas e suspendeu temporariamente suas atividades por determinação do poder público. Tal reflexão tem por objeto a repreensível conduta, verificada por alguns shoppings centers após a pandemia do covid-19, que a despeito do empreendimento estar transitoriamente fechado, posicionam-se de forma inconcebível para exigir do locatário o pagamento integral dos alugueres e despesas, no máximo concedendo um termo para diluir parte do pagamento. Isso reflete uma unilateral e ilegal alocação de risco, realizada a posteriori, sem que os negócios jurídicos tenham mapeado tal possibilidade e disciplinado seus efeitos, como até autoriza o art. 421-A, inciso II, do CC1, a partir da lei de liberdade econômica. Dessa forma, em decorrência dos reflexos da pandemia do covid-19, o lojista vê seu faturamento zerar resignadamente. Por outro lado, o shopping decide unilateralmente que irá continuar a faturar alugueres e outras receitas, mesmo sem entregar a contrapartida que justificou a contratação, arbitrariamente elegendo quem deve suportar os riscos desse inesperado acontecimento. Como se dissesse aos lojistas: "se o poder público fechou o shopping e te prejudicou, o problema é seu e não meu, e vou continuar a faturar aluguel e encargos". Se a covid-19 não é atribuível ao lojista ou ao empreendedor, por que cada qual não arca com os próprios riscos e prejuízos nessa travessia transitória? O lojista fica sem receita de vendas (sem shopping). O shopping fica sem alugueres e encargos (sem aluguel). Daí o título atribuído para estas reflexões. E cada qual buscará recursos para sobreviver nesse período transitório. Se assim não for, açoita-se, a um só tempo, o sinalagma contratual, a interpretação do negócio jurídico em conformidade com a boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, CC2) e a mais racional alocação de riscos. E se impõe ao lojista injustamente arcar com dois riscos de uma só vez: os próprios de seu negócio, que não são poucos; e os riscos do empreendedor, transferidos sem razão palatável para o lojista, como se uma tragédia mundial concedesse ao locador imunidade em relação aos efeitos da pandemia. Com as portas fechadas, o shopping center descumpre o dever que lhe impõe o art. 22, II, da lei 8.245/91, de acordo com a qual o locador é obrigado a "II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado". Não há dúvida de que o inadimplemento do empreendedor de shopping nesse caso é fortuito e não culposo. O reconhecimento da calamidade pública somada a decretos estaduais que impedem o desenvolvimento da atividade são acontecimentos tão imprevisíveis (caso fortuito) quanto inevitáveis (força maior), que não decorrem de qualquer comportamento reprovável e inculpável ao shopping center. Mas culposo ou não, o shopping não está adimplindo a prestação para a qual deve ser remunerado. E esse fechamento é o risco imprevisto que deve ser examinado e distribuído entre as partes com base na boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, CC). Note-se que o longevo debate sobre a natureza locatícia, ou não, do vínculo existente entre empreendedor e lojista está solidamente superada já há algumas décadas, pois o art. 543 da lei 8.245/91 expressamente qualifica tal relação como locatícia, atraindo a incidência do referido art. 22, II, da lei 8.245/91. Ainda que se adote a sensata, embora minoritária qualificação de coligação contratual, a aplicação desse art. 22, II, não deve ser afastada como disciplina jurídica adequada para a fração locatícia desse arranjo contratual, que reúne uma gama de negócios jurídicos funcional, necessária e voluntariamente reunidos para viabilizar a operação econômica do shopping center . Se não há culpa do empreendedor pelo fechamento, por outro lado é preciso reconhecer não haver igualmente culpa do lojista pelo trágico episódio. Esse raciocínio impede que o locatário, por exemplo, deva ser indenizado por lucros cessantes, alegando que deixou razoavelmente de obter lucros em razão do encerramento da atividade. E isso porque o art. 393 do Código Civil estabelece que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente". Ocorre que o debate aqui é outro, recaindo sobre o dever de pagar aluguel e acessórios. O aluguel representa a contrapartida do contrato de locação, um contrato sinalagmático (com prestação e contraprestação que devem ser equivalentes). Se o locador não cumpre o dever que lhe impõe o art. 22, II, da lei 8.245/91 e o locatário não pode explorar econômica e plenamente a posse e o funcionamento do empreendimento, suprime-se a própria causa para o recebimento do aluguel. Como bem observa Darcy Bessone4, "de um modo geral, ensinam os doutrinadores que, no contrato bilateral, as obrigações devem ser principais e correlativas, apresentando-se uma como causa das outras, ou, no dizer dos franceses, donnant donnant". Some-se ao cenário descrito a necessidade de a execução do contrato ser pautada e conduzida pela boa-fé objetiva no desenvolvimento do processo contratual (art. 422 do CC5). Para além das prestações de locatário (pagar aluguel e despesas) e locador (assegurar o uso do espaço, ceder e gerenciar o seu fundo empresarial), é preciso que ambos se comportem da mesma forma que uma pessoa proba atuaria em seus lugares (o chamado arquétipo ou standard de conduta), notadamente em relação aos deveres fiduciários ou anexos de proteção, informação e lealdade, cooperando reciprocamente para o êxito de obrigação. Assim, não poderia uma parte continuar a pagar e a outra nada entregar. Faça-se o exercício de colocar homens probos e leais no lugar das partes, e a conclusão será a de que cada qual arcará com seu prejuízo, suspendendo-se temporariamente as prestações até a reabertura do shopping. É preciso compreender ligeiramente o substrato que se examina para identificar corretamente sua disciplina, examinando a operação econômica do shopping center e seus irremediáveis reflexos no direito contratual. Concebido pelos americanos na década de 60, o shopping center reúne em mesmo espaço uma multiplicidade de atividades, de modo que esse mix torne o empreendimento um centro de atração irresistível de público que será potencial cliente de cada um dos lojistas. Os shoppings têm sua própria clientela, freguesia, aviamento, marca, insígnia, estrutura física, de conforto e diversos outros elementos corpóreos e incorpóreos que formam um autônomo e próprio fundo empresarial (art. 1142 do CC). Essa azienda é absolutamente autônoma em relação a de cada lojista, daí porque se cogita a existência de um sobrefundo ou duplicidade de fundo empresarial. Por isso o empreendimento é construído, planejado e administrado de forma centralizada (isso o distingue dos condomínios comerciais ou shoppings vendidos). Em última análise, essa capacidade de atração de frequentadores torna o empreendimento atraente para os lojistas interessados nesse público, sendo essa a ratio social e econômica que leva à contratação da locação. Dessa forma, o lojista não paga apenas o aluguel, fixo ou percentual, aí se incluindo o 13º aluguel, pois se dirigem à remuneração do ponto. Ocorre o pagamento inicial de uma res sperata, pela cessão do uso do fundo empresarial (distingue-se das luvas, pois esta é mais circunscrita e remunera somente o ponto), assim como despesas diversas (encargos, fundo de promoção e outros) para a manutenção mensal e desenvolvimento desse fundo empresarial, respeitadas as limitações e vedações de cobrança estabelecidas pelo art. 54, § 1º, da lei 8.245/91. Sendo esse cenário contextualizado pela boa-fé objetiva (art. 422 e art. 113, § 1º, II, CC), revela-se que a cobrança de alugueres durante a suspensão das atividades assinala a já mencionada transferência desleal de riscos. É certo que cada parte aloca riscos na operação de shopping center. Por exemplo, se o público frequentador do shopping for inferior ao esperado, o lojista não deve ser indenizado por lucros cessantes, já que esse fluxo estimado por estudos de viabilidade representa mera perspectiva de riscos para ele e o empreendedor. Vê-se que a epidemia da covid-19, uma triste calamidade pública, parece assinalar que o risco de fechamento transitório do shopping pelas autoridades públicas é alocado para o empreendedor, responsável pelo projeto e criação desse templo de atração de frequentadores e consumo. São esses investidores imobiliários que usufruem as locações de espaços localizados nesse ambiente propício ao consumo de produtos e serviços. Basta pensar que o lojista paga um aluguel mínimo ou fixo, ainda que não venda um único centavo com as portas abertas. É um risco dele, o alto - percentualmente - risco de malogro empresarial. Se o faturamento é abissal, o empreendedor deixa de cobrar o aluguel fixo e passa a cobrar um percentual incidente sobre o faturamento bruto do locatário, arrecadação que é objeto de rigorosa fiscalização. Esse modelo, no passado, levou equivocadamente parte da doutrina a enxergar a existência de uma sociedade entre lojista e empreendedor. Uma sociedade que só se verificaria no lucro do lojista, nunca no seu prejuízo. O debate, incandescente na década de 80, está sepultado pelo art. 54 da lei 8.245/01. Nada há de ilegal nisso. São cláusulas que refletem as particularidades desse arranjo contratual. Porém, fica muito claro, pela estrutura do negócio jurídico, quais são os riscos de cada lado. O empreendedor promete se empenhar para atrair fluxo significativo de pessoas, criando uma obrigação de meio e não de resultado, com a segurança, para o lojista, de que ele é interessado no incremento das vendas, já que é remunerado percentualmente. O lojista, por sua vez, aloca para si riscos extraordinários. Não sabe se o público do shopping vai quantitativamente corresponder aos números projetados. Não sabe se qualitativamente, pela renda média da região, e conforme apontaram os estudos de viabilidade, se os frequentadores corresponderão às expectativas de capacidade financeira criadas. E isso sem falar no custo operacional e nas despesas correntes de cada loja, com folha de pagamento, tributos, fornecedores e com o próprio shopping. Dessa forma, compreendido o cenário em sua totalidade, considerando o dever legal e contratual do shopping não apenas de assegurar o uso da loja (art. 22, II, da lei 8.245/91), mas especialmente de criar a estrutura de prospecção de público que é a contrapartida para o lojista alcançar a capacidade de fazer frente às altas - e lícitas - despesas cobradas pelo shopping center, o risco do fechamento deve ser alocado exclusivamente pelo locador e não pelo locatário. E o que poderia fazer o locatário, diante da opressão da alocação unilateral de risco e a inquietude causada pela possibilidade de despejo e cobrança? Abrem-se alguns caminhos possíveis. Em primeiro lugar, valer-se de uma defesa substancial em ação que venha a ser ajuizada, consistente na exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC), com o ônus de demonstrar que o empreendedor não cumpriu sua parte na obrigação e que tal risco, com relação ao aluguel, recaia sobre o shopping center (art. 113, § 1º, II, CC). Em segundo lugar, buscar a resilição do contrato, com base na faculdade que lhe confere o art. 4º6, da lei 8.245/91, sem pagamento de cláusula penal, por não haver "fato ou omissão imputável ao devedor" (art. 396 do CC), inclusive podendo o locatário valer-se da consignação em pagamento se houver recusa pelo locador no recebimento das chaves. Todavia, com o ônus de o locatário demonstrar o nexo entre a resilição e o episódio covid-19. Em terceiro lugar, buscar a revisão judicial do contrato, sobretudo com base no art. 317 do CC7 e sua interpretação ampliativa8. O negócio seria revisto para suspender a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento9. Para isso, terá o lojista o ônus de demonstrar a ausência da correlata prestação que justifica o pagamento do aluguel durante o fechamento, ou seja, o encerramento temporário e total da atividade. Para a revisão, em razão da lacuna contratual, o contrato deverá ser interpretado (art. 113, § 1º, II, CC), sobretudo pelo parâmetro da boa-fé objetiva e da racionalidade econômica, esta última para extrair o comportamento que as partes adotariam se pudessem prever a pandemia por ocasião da contratação. Não se trata, portanto, de um debate exclusivo e delimitado pelo desequilíbrio econômico-financeiro, mas da ausência de sinalagma contratual e identificação do responsável pelo específico risco de não ocorrer a correlata prestação como efeito da pandemia. Dito de modo diverso, identificar se o locatário assumiu o risco de pagar alugueres e encargos ainda que o shopping fosse fechado por uma imprevisível pandemia de dimensão mundial. Em quarto lugar, para a eventualidade de se entender inaplicável o art. 317 do CC, buscar a revisão judicial, com base no art. 422 do CC, de modo a afastar a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento do shopping center. O art. 422 deve ser interpretado de modo a alcançar a revisão judicial (Enunciado 176 do CJF10) e afastar a exigência da "extrema vantagem para a outra" como elemento essencial para a qualificação da categoria jurídica (Enunciado 365 do CJF11). Convém que a técnica da tutela provisória antecipada (art. 300 e seguintes do CPC) seja utilizada para que os efeitos de uma decisão futura de revisão sejam imediatamente produzidos, sendo esta ação conexa com eventual ação de despejo que venha a ser ajuizada (art. 55, § 3º, CPC). . Por fim, duas observações finais parecem ser importantes. Primeiro, cientificamente não existe análise de desequilíbrio econômico-financeiro ou ausência de correlação sinalgmática em abstrato12, pois tais categorias precisam ser sempre particularizadas de forma minuciosa (ex. eventual loja que esteja em atividade e faturando escapa do raciocínio da suspensão total de pagamento aqui desenvolvido). Caso fortuito, força maior, imprevisibilidade e extraordinariedade são expressões às vezes invocadas de forma pouco científica e muitas vezes divorciadas de suas funções categoriais, além de não significarem nada fora de um contexto específico e de seu significado correto, muitas vezes ocultando da memória um tema complexo e desafiador que não tem merecido a centralidade que merece: a alocação de riscos. Segundo, e lamentavelmente, a covid-19 criou um ambiente favorável para os astuciosos e vigaristas de plantão, que buscarão "surfar essa onda" e debitar na calamidade pública um inadimplemento sem nexo de causalidade com a pandemia, a recomendar cautela redobrada pelos operadores, e, especialmente, dos competentes magistrados brasileiros na verificação desse relação causal (Enunciado 443 do CJF13). Feita a admoestação quanto à cautela em tempos de incerteza sobre o futuro, e saudando a velha boa-fé subjetiva e tanta falta que ela faz para a sociedade, sonha-se que possamos continuar esperançosos por dias melhores e solidários, desejando que tome forma a crença do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: "enquanto houver um louco, um poeta e um amante, haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança". __________ 1 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: ... II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) 2 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) ... III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) 3 "Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei". 4 Do contrato, Ed. Forense, 1960, pag. 98. 5 "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 6 "Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada". 7 Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 8 Nesse sentido, leia-se o artigo publicado no Migalhas pelo qualificado José Fernando Simão, denominado "o contrato nos tempos da covid-19". "Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio". 9 Em sentido diverso, defendendo a revisão parcial pela integração com o art. 567 do Código Civil, confira-se o bem escrito artigo "Covid-19 e os contratos de locação em shopping center", de autoria da competente e admirada Aline de Miranda Valverde Terra Aline e publicado no Migalhas. 10 "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual". 11 A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena. 12 Anderson Schreiber, em artigo publicado no Migalhas e denominado "Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional", afirma acertadamente que "Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como "inevitáveis", "imprevisíveis", "extraordinários" para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É a mesma posição de Flavio Tartuce, em artigo (Migalhas) denominado O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade 13 "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida".
quarta-feira, 8 de abril de 2020

A aplicação do dever de renegociar

Texto de autoria de André Roberto de Souza Machado O presente artigo consiste na síntese de uma proposta metodológica de aplicação de um Dever de Renegociação no direito brasileiro, a partir das lições doutrinárias1 que reconhecem a existência desse dever, como corolário da Cláusula Geral de Boa-fé, insculpida no artigo 422, do Código Civil, objetivando delimitar os contornos desse dever, identificar o direito subjetivo correlato à renegociação e, especialmente, os mecanismos de tutela que poderão ser utilizados nos casos práticos que emergem deste cenário extraordinário e imprevisível trazido pelo novo coronavírus. O dever de renegociar Em toda relação contratual é possível identificarmos três categorias de deveres, a saber: Os deveres (obrigações) principais, que consistem em deveres de satisfazer o objeto central da contratação, a razão objetiva pela qual o negócio foi celebrado, isto é, o dever de prestação e de contraprestação respectivos, como por exemplo, em uma compra e venda, o dever do comprador de pagar o preço (prestação) e o dever do vendedor de transferir o domínio da coisa (contraprestação); Os deveres (obrigações) acessórios, consistentes em obrigações complementares, de reforço, de garantia, de sanção etc. São obrigações que não subsistem por si sós, pois dependem da existência das obrigações principais. As obrigações acessórias dependem de previsão legal ou de cláusula contratual, como são os exemplos da cláusula penal moratória por atraso no cumprimento da obrigação principal, a cláusula de garantia por vício oculto da coisa, a cláusula de caução, dentre outras; Os deveres anexos ou laterais decorrentes da Cláusula Geral de Boa-fé, prevista no artigo 422, do Código Civil, e que são considerados como deveres implícitos aos contratos em geral. O dever de renegociar está inserto, via de regra2, na terceira categoria, como um dever anexo da boa-fé objetiva, implícito, consistente em dever e conduta em prol da conservação do negócio jurídico diante de fatos supervenientes que tenham alterado, substancialmente, as circunstâncias (objetivas ou subjetivas) sobre as quais se assentou a base da contratação. O dever de renegociar é, assim, um dever jurídico que encontra fundamento positivo no art. 422, do Código Civil Brasileiro, impondo aos contratantes (todos) uma obrigação de meio, isto é, de efetivamente renegociar e de fazer isso com coerência e lealdade, não existindo obrigação de alcançar o resultado (novo consenso, aditivo ao contrato). Nas lições da Professora Judith Martins-Costa: "...a boa-fé serve para pautar a conduta na fase negociatória. Não há dever de resultado (concluir o aditivo), mas há dever de meios (renegociar com lealdade), de modo que a boa-fé atuará como standard do comportamento devido, pautando eventual ilicitude no modo do exercício da renegociação (Código Civil, art. 187). Poderia, inclusive, ser caracterizado o inadimplemento imputável de dever contratual, passível de conduzir, segundo as circunstâncias, ou à indenização pela mora ou - se atingido gravemente o interesse contratual - ao exercício do poder formativo de resolução (lato sensu)"3. Em se tratando, portanto, de uma obrigação de meio, mas não de resultado, surge a dificuldade prática de sua aplicação em caso de recusa ou de comportamento desleal durante a renegociação. Seria esse dever apto a ser objeto de uma tutela judicial coercitiva? Como se daria a atuação judicial nesse caso? Como conferir eficácia concreta ao dever de renegociar? Tais dúvidas há tempos permeiam as discussões em torno do denominado dever de renegociar, desde aqueles que entendem não haver um dever jurídico em si, mas somente um dever ético, sem consequências objetivas de sua violação (senão no aspecto reputacional), até aqueles que reconhecem a sua existência e defendem a sua força coercitiva. Em um dos trabalhos recentes mais importantes sobre o tema, desenvolvido pelo professor Anderson Schreiber4, o autor enfrenta o problema profundamente, sob a ótica da renegociação por desequilíbrio contratual. Entendemos que o âmbito de autonomia privada e de liberdade contratual conferido às partes no momento da renegociação do contrato, não pode ser o mesmo, devendo ter a sua amplitude reduzida quando comparada com a ampla autonomia e liberdade existentes ao tempo da contratação, sob pena de se esvaziar a função da renegociação como um dever. É preciso, portanto, que se tenha a liberdade contratual e autonomia privada como mitigadas pelo Princípio da Conservação do contrato, como dever assumido previamente de envidar esforços para que o contrato cumpra a sua finalidade, que seja possível superar a crise e dar exequibilidade substancial ao que havia sido originalmente contratado (adimplemento substancial como finalidade). Desse modo, tanto o oferecimento de uma proposta, quanto a sua recusa devem ser pautados em razões legítimas e objetivamente demonstráveis, e não mais em anseios egoístas ou mero querer (ou não querer) como até seria tolerável no momento de formação original do contrato. Nosso propósito, neste breve artigo, é oferecer uma formulação objetiva e sintética, um guideline, para a aplicação prática do instituto, em especial neste momento de alteração das circunstâncias por conta da pandemia de Covid-19. Não se trata de uma resposta definitiva ou aplicável genericamente, mas uma contribuição para a construção de caminhos para o enfrentamento desse tão tormentoso assunto. O direito à renegociação Ao admitirmos a existência de um dever de renegociação e caracterizarmos a sua natureza como uma obrigação contratual de meio, implícita nos contratos por força da Cláusula geral de boa-fé (art. 422, do Código Civil), é consequente reconhecer que no outro polo da relação obrigacional existe um direito subjetivo correspectivo, que é o direito à renegociação do contrato. Traçaremos, em linhas gerais, os contornos que vislumbramos desse direito. Defendemos aqui tratar-se de um direito contratual exigível da outra parte, desde que preenchidos certos pressupostos que tornarão legítimo o seu exercício. Não se trata, portanto, de um direito potestativo a um novo contrato, à revelia das legítimas expectativas já estabelecidas em razão do contrato vigente. Não se trata, tampouco, de um direito tardio ao arrependimento ou um salvo-conduto para não cumprir o que fora contratado, por mera perda de interesse ou por oportunismo negocial. Ao revés, defende-se aqui que o exercício regular do direito à renegociação pressupõe a ocorrência de fatos supervenientes e extraordinários ao risco inerente e previsto (ou previsível, conforme a teoria adotada) na base original do negócio e que, por isso, tenha alterado substancialmente a base objetiva (desequilíbrio entre o valor das prestações contrapostas) ou a base subjetiva (perda involuntária por caso fortuito, Força Maior ou fato do Príncipe, da capacidade de pagamento), tal como se verifica nas hipóteses previstas nos arts. 317, 393 e 478, do Código Civil, por exemplo. Não se trata aqui, portanto, de autorizar o exercício de um direito à renegociação pura e simplesmente por ter se concretizado um risco previsto ou muito previsível do negócio, mesmo que indesejado, lembrando que continuará existindo circunstâncias que deverão ser tratadas como fortuito interno da atividade, bem como, circunstâncias que afetarão apenas e somente o contratante, não caracterizando um fenômeno excepcional ao mercado no qual aquele contrato está inserido. Dito isso, podemos reconhecer que existe um direito subjetivo à renegociação do contrato, exercitável legitimamente sempre que presentes os pressupostos autorizadores, verificáveis à luz do caso concreto e de acordo com o tipo de desequilíbrio ocorrido, se objetivo ou subjetivo, em contraposição a um dever de renegociar, com lealdade, da outra parte. Tal direito é, portanto, passível de tutela, inclusive pelos meios judiciais de cumprimento forçado e, por conseguinte, sua violação pode ensejar responsabilidade contratual por inadimplemento ao dever de renegociar. Proposições para a tutela do direito à renegociação Por opção metodológica, apresentaremos nossas proposições, como um guia passo a passo, que possa servir de norte aos contratantes, ressalvando-se a necessidade de se atentar para eventuais peculiaridades do caso concreto. Passo 1 O contratante, ao se deparar com uma situação real de dificuldade de cumprimento do contrato, deverá se perguntar se a situação em si foi ou não motivada exclusiva ou preponderantemente (nexo de causalidade) por um fato extraordinário e não previsto (expressa ou implicitamente) como risco inerente do negócio. Somente se a resposta for afirmativa é que, a nosso ver, estará legitimado o exercício regular do direito à renegociação, resultando em uma possível revisão do contrato. Passo 2 O contratante em situação de dificuldade deverá, então, cumprir com o seu próprio dever de boa-fé e procurar a outra parte, extrajudicialmente, expondo objetivamente os fatos e propor uma renegociação do valor (se o desequilíbrio foi objetivo) ou a forma de cumprimento (se o desequilíbrio foi subjetivo) ou mesmo ambos. Isso não significa que estejamos nos filiando à corrente doutrinária que entende o dever de renegociar apenas como um ônus condicionante da propositura de uma ação de revisão ou resolução judicial5, mas como modo legítimo de constituição em mora (do dever de renegociar) da outra parte, tal como estabelece o art. 397, Parágrafo Único, do Código Civil. Passo 3 Em caso de insucesso na tentativa de abrir extrajudicialmente uma renegociação, por recusa expressa, silêncio ou morosidade exagerada da outra parte, estar-se-ia caracterizada a mora ex persona, dando ensejo ao manejo dos instrumentos de tutela judicial do direito à renegociação e da corolária imputação de responsabilidade por inadimplemento do dever de renegociar. Passo 4 Em que pese a controvérsia, propomos que há uma tutela específica do dever de renegociar. Sendo tal dever uma obrigação de fazer, de meio, sua disciplina legal se encontra nos artigos 247 a 249, do Código Civil, e os mecanismos processuais de tutela nos artigos 497 a 501, do Código de Processo Civil, ou, em se tratando de relação de consumo, no artigo 84, do Código de Defesa do Consumidor. Observe-se que o direito à renegociação está umbilicalmente ligado ao legítimo interesse na conservação do contrato, razão pela qual defendemos que a busca da tutela específica e, na sequência, do resultado prático equivalente, é o caminho lógico, aplicando-se a conversão em perdas e danos (art. 499, do CPC), somente se for impossível a manutenção do contrato. Será, assim, possível ao contratante que necessita da revisão do contrato, requerer ao juízo que determine ao Réu que, num prazo compatível, se ofereça à renegociação, apresentando os fundamentos objetivos de sua proposta ou demonstre a impossibilidade de se promover qualquer alteração no contrato, sob pena de, uma vez que se mantenha inerte, autorizar o juiz a conferir por sentença o resultado prático equivalente, se equitativamente possível o arbitramento judicial. Passo 5 Nos casos enquadráveis nos artigos 317 e 478, do Código Civil (Teorias da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva), bem como no art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor (Teoria da Quebra da Base), estará o juiz autorizado a promover a revisão do contrato para afastar a onerosidade excessiva e restabelecer o equilíbrio entre o valor das prestações. Todavia, entendemos que, também nos casos não enquadráveis nas respectivas teorias, por ter ocorrido um desequilíbrio subjetivo para um dos contratantes (perda substancial de receita, por exemplo) sem que tenha havido perda do valor das prestações em si, isto é, sem que tenha ocorrido também um desequilíbrio objetivo, também poderá ser considerada a tutela do dever de renegociar como um comportamento do credor de mitigar as próprias perdas, sempre que a solução proposta pelo devedor for capaz de satisfazer substancialmente o credor, com menor prejuízo do que o inadimplemento absoluto e a resolução do contrato. Vejamos, como exemplo, um locador residencial que espera receber R$ 1.000,00 de aluguel por cada mês de uso do imóvel pelo locatário. Ocorre que em virtude do Fato do Príncipe que determinou a paralisação de atividades econômicas, o locatário teve, comprovadamente, uma redução salarial de 50%, mas que continua utilizando, plenamente e sem redução de utilidade, o imóvel locado. Neste exemplo não houve quebra na sinalagma objetiva do contrato a ensejar as teorias da Imprevisão, da Onerosidade Excessiva ou da Quebra da Base Objetiva do negócio. Entretanto, não parece haver dúvida de que as razões para o locatário não conseguir arcar com os mesmos R$ 1.000,00 de aluguel são extraordinárias e não imputáveis a ele, à título de responsabilidade (art. 393, do Código Civil). Haveria, então, duas alternativas para o Locador: não renegociar nem o valor e nem a forma de pagamento e, por conseguinte, pretender a resolução do contrato, sem multas já que não houve culpa de nenhuma das partes pelo cenário pandêmico; ou admitir a renegociação para reduzir temporariamente ou para diferir a data de vencimento dos aluguéis, conforme o caso, a fim de manter a finalidade legítima da locação residencial. Há de se atentar que se o imóvel fosse imediatamente esvaziado pelo locatário, sem multa é importante lembrar, ficaria o locador sem receber aluguel algum até uma nova locação, o que não se daria de forma imediata, ficando sem nenhum crédito a receber por esse período de imóvel vazio, além de arcar com as obrigações propter rem do mesmo. Nesse cenário, não negociar representa um comportamento que agrava as próprias perdas desse locador, o que pode ser visto como uma violação ao dever de mitigar as próprias perdas, já consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça, com fundamento na Boa-fé6. Passo 6 Finalmente, haverá situações concretas onde o julgador não terá condições objetivas de suprir o consentimento da outra parte, não sendo juridicamente possível a revisão judicial, quer por conta do caráter personalíssimo da obrigação contida no contrato, quer pela ausência de informações suficientes para se estabelecer com segurança uma solução equitativa, ou ainda por ser impossível a execução útil da prestação de forma diversa da que foi pactuada originalmente. Nessas situações o contrato restará resolvido, com ou sem perdas e danos, conforme o caso. Sendo a resolução motivada por um fato que exclui o nexo causal entre a conduta do devedor e a sua mora, esta se dará sem a consequente imputação do dever de indenizar a que alude o art. 475, do Código Civil, mas apenas a necessidade das partes pagarem ou restituírem aquilo que receberam e para o que não existirá mais a respectiva contraprestação, mera consequência do desfazimento do negócio. Entretanto, caso a resolução do contrato decorra de abuso de direito do credor de recusar-se a uma solução por renegociação, caso em que não seja possível o suprimento pelo juiz, ou que a revisão tenha se tornado impossível justamente pela demora do credor em renegociar, estaremos, a nosso sentir, diante de responsabilidade desse contratante culpado pela frustração definitiva do contrato, sendo possível cogitar-se, por exemplo, em imputação da cláusula penal compensatória em favor do contratante inocente (que se dispôs a renegociar com lealdade) ou, na sua falta, à apuração judicial dessas perdas e danos. Conclusão Por tudo que se expôs, parece-nos que há razões objetivas para que as partes contratantes busquem a renegociação dos contratos afetados realmente pela pandemia e por suas medidas correlatas, sob pena de suportarem não apenas o esvaziamento útil do contrato mas, sobretudo, pelo risco palpável de sujeição a uma sentença que lhes imponham uma revisão não negociada ou sua responsabilização civil pelos danos decorrentes de uma conduta abusiva (art. 187, do Código Civil) na defesa de seu exclusivo interesse de crédito. *André Roberto de Souza Machado é advogado e professor de Direito Contratual, cofundador de SMGA Advogados e membro da Comissão de Negócios Imobiliários do IBRADIM. Doutorando em Direitos, Instituições e Negócios e Mestre em Direito das Relações Econômicas. __________ 1 Por todos, SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, 1ª.edição. Saraiva. 2 Excepcionalmente, o dever de renegociar pode aparecer como obrigação expressa no contrato, como por exemplo nos negócios que adotam a Teoria do Contrato Incompleto, como modo de gestão dos riscos. Sobre o tema, ver BANDEIRA, Paula Grecco. Teoria do Contrato Incompleto. Atlas editora, 2015. 3 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, 2ª. edição. Saraiva. 4 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 1ª. edição. Saraiva. 5 Nesse sentido, assinala Schreiber: "Parte da doutrina estrangeira que defende um dever de renegociação sustenta que tal dever deve ser encarado não como um dever em sentido estrito, mas como mero encargo (...). Nessa direção, sustenta-se que o dever de renegociação configuraria tão somente um ônus do contratante que pretende obter em juízo a revisão ou a resolução do contrato, competindo-lhe demonstrar, como uma espécie de condição de admissibilidade do pleito judicial, que já tentou razoavelmente obter, por negociação, uma revisão extrajudicial do contrato". (ob. Cit.) 6 REsp 758.518-PR.
Texto de autoria de Marcelo Barbaresco Na última semana, foi aprovado pelo Senado Federal, o projeto de lei 1.179/2020 que, através de seu artigo 11, amplia e, até 15 de outubro de 2020, os poderes de gestão do síndico nos condomínios edilícios. O ótimo seria descobrir o fundamento da data. No elenco desses poderes extraordinários, excepcionais, com prazo de duração limitado, se fez constar além da possibilidade de meramente restringir a utilização das áreas comuns do condomínio e, exatamente, por conta do covid-19, restringir ou proibir - percebam a elevação da ação para o proibir - a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros e, inclusive e, notadamente, nas áreas de propriedade privativa do condômino, isto é, em sua unidade autônoma, ou seja, em seu apartamento ou conjunto empresarial. As únicas exceções previstas e, desde logo autorizadas pela futura norma, isto é, não passíveis de restrição ou proibição pelo Síndico se limitam a apenas três circunstâncias, quais sejam: atendimento médico, benfeitorias necessárias e obras de natureza estrutural. Afora estas três singelas hipóteses, o Síndico poderia restringir ou proibir, reprise-se: mesmo que no interior da unidade autônoma, qualquer atividade. Em face desta proposta e, não desacreditando que grande parte dos Síndicos buscará, quando da futura definição da norma interna, conciliar os interesses de toda a coletividade condominial de forma que interesses conflitantes ao da sua vontade ou da maioria possam, também, ser atendidos de forma que a convivência com sossego e segurança desejada por aqueles que vivem e "Respiram e Aspiram suas Vidas" nos condomínios edilícios sejam alcançadas, a proposta encampada pela futura norma demanda muito cuidado. É sentido e sabido que o atual cenário brasileiro e mundial é sensível e que medidas variadas devem ser adotadas, especialmente, nas esferas da saúde, da cultura, da economia e do direito tudo de forma a tranquilizar e buscar fazer passar, com o menor drama possível, este momento da dramática história mundial. Entretanto, como nos encontramos em um estado democrático de direito, o direito também deve ser preservado. E preservar o direito significa dizer preservar além das instituições mas, também, os direitos fundamentais, dentre eles e, especialmente, para os fins do recorte deste artigo, o direito à saúde, à moradia e o de propriedade. Certamente que, entre a preservação do direito à saúde e a preservação do direito à propriedade, o primeiro deve prevalecer sobre o segundo. Não há duvida sobre isso. Todavia, para que se possa afetar, mesmo que minimamente, o direito à propriedade, devem existir razões e fundamentos comprováveis pela ciência médica aplicada que seria a única medida razoável a ser adotada. Afinal, sabemos e reconhecemos que, sem exceção, todos os direitos fundamentais devem ser preservados. E dentre eles, o direito à saúde, à moradia e à propriedade, repito. E preservar a propriedade significa dizer, inclusive, não impedir, de qualquer forma não autorizada constitucionalmente, que um condômino possa usar e gozar de sua coisa, isto é, de sua unidade autônoma, de seu apartamento ou de seu conjunto, em havendo medidas outras que possam ser por ele adotadas ou pelo condomínio em que residir ou trabalhar de forma a preservar a saúde por conta do covid-19. O impedimento, a restrição, a proibição deve constituir uma norma excepcional, admitida apenas em situações de exceção e de restrição constitucional de direitos; o que não é, definitivamente, a hipótese. Ilustrativamente, e de forma a trazer o que se disse para a realidade vivida e sentida, importa mencionar algumas medidas que, segundo notícias, são adotadas por Síndicos em condomínios edilícios e que podem ilustrar que a dose do remédio é excessiva e, portanto, pode ocasionar a falência da ordem e dos direitos, com a consequente elevação do número de ações judiciais. São elas: Síndico proibindo o regresso (i.e. a entrada) de condôminos ao condomínio ao retornarem de viagem, sob a alegação de que devem cumprir quarentena e poderão contagiar os demais; Síndico proibindo o ingresso de visitantes na unidade autônoma após determinado horário; Síndicos obrigando a tomada de temperatura corporal e, se acima de determinado grau, vedando o ingresso no condomínio; Síndicos impedindo a mera pintura de paredes dos apartamentos ou a substituição de pisos gravemente danificados e que impedem o residir com segurança e, com isso, impedindo o acesso à moradia; Síndicos impedindo a entrega de geladeiras, fogões e demais bens, sob o argumento do aumento de pessoas transitando pelo condomínio e, por fim, Síndicos impedindo que pessoas passem a residir no condomínio, sob a alegação de que a circulação das pessoas da transportadora ocasionarão a elevação do número de contato de pessoas estranhas aos próprios condôminos. Os exemplos poderiam preencher ainda mais espaço neste artigo mas, servem apenas para ilustrar o que a norma, como colocada, tende a incentivar. Assim, pergunta-se: qualquer uma dessas medidas é razoável? Estariam elas observando e conferindo sentido prático e efetivo ao fundamento da República Federativa do Brasil no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária conforme determina o artigo 3º. da Constituição do Brasil? Estariam estes Síndicos preocupados com consigo mesmo e com os demais e menos, muito menos, com a totalidade dos condôminos? A solidariedade residiria na circunstância de resguardar quais interesses? De todos, de vários, de alguns? Ela somente alcança sua máxima e desejável potência quando ampara a todos e não menos do que todos aqueles interesses e interessados. Neste sentido, o que o Síndico e as Administradoras devem pensar é no caminho mais longo, mais estratégico, menos trágico, menos traumático, menos custoso que consiste, simplesmente, no proibir; no restringir; no aniquilar, mesmo que temporariamente, direitos fundamentais. E assim deve ocorrer de maneira a ser realizada uma ponderação entre os princípios que, de um lado, perseveram pela inafastável saúde, de outro pela sagrada moradia e, por fim e também relevante, pela preservação da propriedade. Neste sentido, a regra proposta pelo projeto de lei acima mencionado, especificamente, em seu artigo 11, fere direitos individuais constitucionais e sem pedir licença prévia. Estabelece e, em nome da proteção à saúde, séria restrição ao uso da propriedade. Isso, como afirmado, na contramão de estabelecer regras de proteção aos moradores em equilíbrio de todos e dos usos possíveis sem que se comprometa - longe disso - a saúde. Percebe-se que, nas e para as áreas comuns - piscina, quadra, sala de leitura, salão de festa, auditórios, bibliotecas, dentre outras - o Síndico pode restringir. Mas, por sua vez, para as unidades autônomas, o Síndico também pode proibir. Seu poder é ampliado mesmo no sagrado lar. Qual a diferença deste tratamento? Sejam as áreas comuns e, como se sabe, o inviolável recinto em que se mora ou no qual se exerce atrabalho, diferentes em sua essência acerca dos aspectos que demandam cuidados? Certamente não. Os cuidados devem ser igualmente distribuídos por todas as partes da propriedade, seja ela privativa ou comum. Ademais, na letra da norma, se afirma que o Síndico pode proibir reuniões. Reuniões? O que seria isso? Mero encontro de entes da família, a exemplo de pais e filhos? Ou, então, em se tratando dos condomínios corporativos, uma reunião física com a participação de apenas duas pessoas? Dois amigos em situação de urgência - sob o prisma de sua subjetividade - e os porteiros proibindo o ingresso? Parece que se partiu de uma premissa, sempre necessária e inafastável, de um adensamento "reunicional" (Sic!) que pudesse e, por conta da aglomeração, causar dano por conta da também intransponível possibilidade de contágio. Se assim o fosse, o que seriam dos médicos que, na linha frontal de tratamento, usam os tão em falta mundialmente equipamentos de proteção individual? Portanto, não seria o caso de incentivar esta utilização nos condomínios edilícios e, não, simples e facilmente, proibir o uso e gozo da propriedade? Não seria mais equilibrado sob a ótica da solidariedade constitucionalmente insculpida como fundamento da República? O que se deve buscar, digo e repito a todo instante, é a conciliação de interesses e, não, medidas que pensem apenas em um dos lados. O autoritarismo não pode retornar; não deve prevalecer, mesmo que apenas pressuposto. Parece que se esta prestes a consolidar a morte ou, então, quando bem menos, a suspensão de direitos fundamentais em nome e por conta da medida pouco pensada e refletida, mesmo reconhecendo e desde já parabenizando o autor e revisora do projeto de lei 1.179/2020, uma vez que diversos outros dispositivos do projeto de lei são essenciais para o momento de transição e apara a segurança jurídica das relações (a exemplo, da suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais; da possibilidade da realização de assembleias remotas, dentre outros). Enfim, o que se deve impedir, ou melhor, não incentivar é a Ditadura do Síndico ou dos Conselhos ou Assembleias Gerais. E, em sendo aprovado este artigo e neste projeto de lei, lembremo-nos: se a proibição for para causar um bem maior por conta do desejo de apenas um ou da maioria, aquele que sofrer a restrição terá o direito de, uma vez comprovado o dano, dividir com os demais condôminos as perdas e danos que suportar. Pois, apenas assim, se estará efetivando um dos fundamentos constitucionais da República, ou seja, o da solidariedade. Pensar em resposta diversa, simplesmente, faria elevar o individualismo e o protecionismo exacerbados que, talvez, nos tenham conduzido a esta atual realidade. Pensemos, também, acerca do prazo de validade do regime excepcional, se aprovado, o que não se espera. Seria ele adequado? Seria pertinente restringir ou proibir o uso e gozo da propriedade mesmo que, como querem todas as forças e energias, ocorrer a superação da pandemia antes de outubro de 2020? Parece-me, novamente, que não. A regra do artigo 11 deveria adotar o critério legislativo da norma em branco e, em assim o sendo, ser preenchida sua lacuna em conformidade com as regras a serem publicadas em cada Estado da Federação ou, quando mais, por cada Município, especialmente, por tratar-se de norma de interesse local e, jamais, nacional, especialmente, em face das particularidades de cada pedaço de terra deste Brasil. Por fim, um lema: Proteger: sempre. Proibir: nunca. Equilíbrio: algo inafastável. E que se diga não a atos descabidos e despidos de fundamentação sob a ótica da ciência médica. *Marcelo Barbaresco é doutorando em Direito Comercial pela PUC/SP. Mestre em Direito Político e Econômico. Fundador e vice-presidente do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e presidente de sua Comissão de Shopping Centers. Advogado e professor na FGV Direito SP - FGV Law, no INSPER, na FAAP, assim como em outras instituições de ensino superior.
Texto de autoria de Luiz Augusto Haddad Figueiredo Leis, medidas provisórias, decretos, instruções normativas, resoluções, provimentos, portarias, dentre outros, muitos são os instrumentos jurídicos que têm sido adotados como suporte ao combate à disseminação do coronavírus e com a intenção de atenuar os reflexos danosos daí advindos para a economia e a sociedade em geral. A pandemia de covid-19 tem levado à imposição de medidas de isolamento social e quarentena mundo afora, as quais acabam por impactar, consideravelmente, as atividades e o cotidiano de empresas, pessoas e instituições em geral. No Estado e cidade de São Paulo, por exemplo, foram editados pelo governador e pelo prefeito, respectivamente, o decreto 64.881, em 22/3/2020, e o 59.298, em 23/3/2020, com o propósito de restringir, temporariamente, o acesso presencial de público a estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, excetuados aqueles voltados a atividades definidas como essenciais. Igualmente, por autorização das autoridades judiciárias competentes, os serviços notariais e de registro tiveram seu funcionamento afetado mediante suspensão ou redução de atendimento presencial, implantação de regime de plantão, prática de atos por meio virtual ou remotamente (telefone, e-mail, WhatsApp, Centrais Eletrônicas etc.), rodízio de funcionários e suspensão de alguns prazos. Durante o plantão, o tráfego de documentos físicos é admitido através dos Correios ou mensageiros, desde que mantido o devido controle de recebimento e devolução. Em caso de atendimento presencial, uma série de medidas de prevenção à infecção devem ser observadas. É possível, ainda, a transmissão eletrônica de títulos e documentos nato-digitais e daqueles digitalizados com observância dos padrões técnicos, inclusive nos moldes do decreto Federal 10.278/2020 (ressalvada eventual exigência quanto à posterior apresentação do original). Salvo algum tratamento particular decorrente da competência normativa das Corregedorias locais, estas são as diretrizes gerais constantes dos Provimentos 91/2020 e 94/2020 expedidos pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão integrante do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), assim como, em território paulista, dos Provimentos 07 e 08 de 2020 oriundos da Corregedoria Geral de Justiça, órgão responsável no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado1. As novas regras, cuja vigência é temporária e vinculada à situação emergencial de saúde, atingem, sobretudo, os usuários das Serventias Extrajudiciais, especialmente no que diz respeito aos prazos para a prática dos atos cartoriais. Tanto é que as normas editadas versam sobre o assunto (ex.): No âmbito da CGJ/TJSP, previu-se, inicialmente, a contagem em dobro (com pontuais exceções) para prazos "de validade do protocolo, de qualificação e de prática dos atos notariais e de registro" (art. 2º do Prov. CG 07/2020) e, em seguida, estipulou-se que os prazos relativos a atos de notas e registro não terão curso "durante o período de suspensão do expediente" (art. 2º do Prov. CG 08/2020). Neste contexto, uma importante questão se coloca: Como fica o andamento dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, previstos expressamente nos arts. 33 e 34 da lei 4.591/1964 (combinado com o art. 12 da lei 4.864/1965)? O poder-dever normativo do Poder Judiciário acerca da fiscalização, organização e disciplina dos serviços delegados de cartório encontra amparo nos arts. 103-B, § 4º, III, e 236, § 1º, da Constituição Federal, mas está limitado aos contornos estabelecidos por lei. Isto significa que, como normas administrativas infralegais, estas podem buscar aperfeiçoar o sistema, harmonizar procedimentos e conferir a melhor interpretação à legislação, a fim de proporcionarem eficiência e segurança jurídica na prestação dos serviços aos usuários. Na dicção do inciso XIV do art. 30 da lei 8.935/1994, os notários e oficiais de registro devem observar as normas técnicas fixadas pela autoridade judicial competente. Portanto, as regras contidas nos aludidos Provimentos não podem contrariar, modificar ou inovar a lei, ou seja, não poderiam, em princípio, dilatar os referidos prazos da Lei de Incorporações Imobiliárias. Ocorre que, na prática, o regular cumprimento de prazos, notadamente quanto a exigências formuladas em notas devolutivas, resta prejudicado por circunstâncias de força maior, como reconhecido nos Provimentos 91 e 94 da CNJ (arts. 2º e 11, § 2º, respectivamente). Note-se que o citado Prov. 91 menciona suspensão de "prazos legais dos atos submetidos ao notário, registrador ou responsável interino pelo expediente". Ainda que se possa argumentar que o prazo da lei suspenso está circunscrito a ato a ser realizado pelo delegatário, o fato é que o prazo referente a ato de incumbência do usuário também foi atingido indiretamente (a validade do protocolo e o período para qualificar refletem no tempo para cumprir exigências) ou, até, de modo direto, como deixa transparecer o parágrafo único do art. 2º do Prov. CG 07/2020, ao elencar as hipóteses não sujeitas a prorrogação de lapso temporal. Mesmo assim, seria arriscado concluir que houve extensão do prazo de validade do registro de incorporação já efetuado. No entanto, a revalidação do registro, legalmente admitida, pode ser impactada pela nova normatização, de maneira a ampliar o prazo total de validade ora examinado, o que, em tese, poderia repercutir no prazo de carência concedido ao incorporador para desistir do empreendimento, a depender das condições estipuladas no memorial de incorporação (art. 34, § 2º, da lei 4.591/1964). Isto é, o prazo de carência, normalmente, acompanha o prazo de validade (ou revalidado) do registro da incorporação, como já decidido em processo de dúvida registral apreciada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul2. Eis aí outra relevante questão: As normas administrativas poderiam definir a forma de contagem dos prazos no campo registral? Em relação ao prazo de carência propriamente dito, cuida-se de mecanismo destinado a mitigar os riscos quanto à inviabilidade econômico-financeira do empreendimento (o futuro insucesso e os prejuízos daí derivados), sendo útil a todas as partes envolvidas no negócio: incorporador, construtor, adquirentes, terrenistas e agentes financiadores. Neste período de carência, a rigor improrrogável (§ 6º do art. 34 da lei 4.591/1964), é lícito ao incorporador desistir de levar adiante a incorporação quando presentes certas condições, desde que assim declarado e regulado no memorial arquivado junto ao Registro de Imóveis. Em tal hipótese e sob as penas da lei, após denunciada e averbada a desistência, deverão ser restituídas aos pretendentes à aquisição de unidades as quantias por estes desembolsadas. Contudo, no atual momento, vale lembrar apenas a título exemplificativo, os Decretos municipal e estadual de São Paulo impedem a abertura de estandes de vendas ao público, como divulgado por entidades empresariais do setor imobiliário (Abrainc e Secovi-SP)3. Esta e outras restrições, acrescidas aos demais percalços socioeconômicos resultantes do estado de calamidade pública, alteram a velocidade de venda dos imóveis, a despeito de haver outros canais de oferta disponíveis (internet etc.). É o que sinaliza, inclusive, recente pesquisa apurada entre empreendedores dos setores imobiliário e turístico (Adit Brasil e Grupo Prospecta)4. Ora, se a lógica de existir um prazo de carência é justamente ter a chance de mensurar, com enfoque especial, a adesão à comercialização das unidades integrantes de um empreendimento, resta evidente que o alcance desta finalidade sofrerá distorções diante da nova realidade surgida. Além disso, há outros aspectos que podem afetar, notadamente num cenário de pandemia, a análise de viabilidade de uma construção em sua fase inicial: escassez ou aumento excessivo dos custos de material e mão de obra, conjuntura econômica, interferências no ritmo das obras, disponibilidade de equipamento e maquinário etc. Estas circunstâncias fáticas indicam que a natural fluência do prazo de carência, no contexto ora vivido, pode acabar por frustrar a utilidade deste mecanismo legal de proteção ao mercado. Assim, sem prejuízo das ponderações já suscitadas a respeito da dilação de prazos na esfera correicional, seria apropriado (e juridicamente mais seguro) a edição de medida provisória destinada a permitir a temporária suspensão dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, dando adequado tratamento a uma situação igualmente atingida pelas negativas consequências provocadas pela crise atual. Cuida-se de providência coerente com tantas outras já adotadas, tais como: a). a Resolução 152/2020 do Comitê Gestor do Simples Nacional, que estipula novas datas para pagamento de tributos federais no âmbito daquele regime; b). a Portaria Conjunta RFB/PGFN 555/2020, que prorroga a validade de certidões negativas e positivas com efeitos de negativas de débitos; e c). a MP 927/2020, que diferiu o recolhimento de FGTS, facultando o pagamento parcelado livre de encargos. Isso permitiria, a um só tempo e com segurança jurídica, o desenvolvimento racional de uma atividade tão importante para a sociedade (moradias, empregos, tributos etc.), com a adequada proteção aos adquirentes de imóveis, preservando, enfim, a saúde do mercado imobiliário. Luiz Augusto Haddad Figueiredo é mestre em Direito pela PUC/SP. Membro do IBRADIM. Advogado e sócio do escritório Tavares, Haddad e Vanetti Advogados Associados. __________ 1 Disponíveis, respectivamente, aqui e aqui. Acesso em 30/3/2020. 2 "REGISTRO DE IMÓVEIS. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. PEDIDO DE REVALIDAÇÃO DE REGISTRO DE INCORPORAÇÃO E PRAZO DE CARÊNCIA. Inexistindo vedação legal, é legítimo o interesse do incorporador em cancelar a incorporação. Ao revés, a própria lei de regência (Lei n º 4.591/64, artigos 32, alínea 'n', 33, 34 e seus parágrafos e art. 36), autoriza a revalidação do prazo de registro do empreendimento. Diante do caso concreto, revela-se viável a revalidação do prazo de registro da incorporação, bem como de prorrogação do prazo de carência, pois, na espécie, a incorporação se concretiza ou se efetiva quando: 1) vencido o prazo de carência, sem denúncia da incorporação ou pedido de prorrogação; 2) as condições de mercado resultarem na comercialização de um número mínimo razoável de unidades autônomas a sustentar o custo inicial do empreendimento, bem como sinalizar o sucesso de sua integral realização. DÚVIDA JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME." (TJRS, 18ª Câm. Cível, Apel. 70014283279, rel. Des. Mario Rocha Lopes Filho, j. 24.8.2006). 3 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020. 4 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020.
Texto de autoria de Jaques Bushatsky O planeta quase totalmente paralisado pela pandemia, é indiscutível a repercussão nas relações jurídicas, mostrando-se de fácil identificação os prejuízos resultantes. O cenário sensibilizou o parlamento, vindo o oportuno projeto de lei 1179/20, do senador Antonio Anastasia, prontamente relatado pela senadora Simone Tebet. Foram trabalhos exigidos pelo momento (se não agora, quando? Era a pergunta do sábio Hilel, dois mil anos atrás), parecendo em geral bem recebidos pela sociedade e pela crítica jurídica, sendo somente pontuais as ideias levantadas para o aperfeiçoamento da legislação de emergência. No que diz com as locações imobiliárias urbanas, o relatório suprimiu o original artigo 10 e, ao artigo 9º foi proposta a seguinte redação: "Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020"1. Passou a ser permitida a liminar, por conseguinte, nas situações que o art. 59, da lei 8.245/91 contemplou nos seus incisos III (pertinente à desocupação do imóvel alugado por temporada), IV (situações de invasão do imóvel quando falecido o locatário), VI (necessidade de reparações urgentes no imóvel). A manutenção da possibilidade de suspensão quanto às demais hipóteses há de ter decorrido do balanceamento que foi possível tentar entre o exercício do direito e o dano decorrente da sua postergação, a justificar que se mantivessem - nessa lógica - as previsões do Projeto original do senador Anastasia. Entretanto, é exatamente diante do necessário balanceamento das vantagens e desvantagens da regra nova que cabe ponderar que seria de todo conveniente manter a possibilidade de liminar para a hipótese prevista no inciso IX do art. 58, da Lei das Locações: "- a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo". As razões são extremamente relevantes, mas passíveis de breve síntese. Por primeiro deve ser recordado que a introdução dessa possibilidade ocorreu há 11 anos, através da lei 12.112, de 9/12/2009 que resultou de projeto aprovado à unanimidade pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, a demonstrar o acerto técnico da alteração legislativa então realizada; por segundo, foi inovação que se mostrou extremamente justa aos olhos do Poder competente: o Judiciário, que logo disseminou a utilização dessa consequência imediata do inadimplemento, certamente devido à terceira e maior razão: a sociedade prestigiou crescentemente a nova relação de confiança entre os contratantes, sem a participação de garantidores. Em suma, a supressão dessa liminar mais que abalar direito do credor locador, traria dano ao próprio sistema legal das locações urbanas. Sim, o enorme avanço experimentado - graças à conjunção de legalidade, acolhimento pelo Judiciário e disseminação entre os interessados - serviu de laboratório, até, a quantos pensassem em legislações voltadas a outros setores da vida, pois foi restaurada a confiança, restabelecido o império da boa-fé - a guardar-se não somente na celebração, mas igualmente na execução do contrato, como querem Código Civil e os esperados costumes. Outra não foi a conclusão popular: para que fiadores, seguros, cauções e demais constrangimentos ou custos, se bastava o apalavrar, garantido pela certeza de que o rompimento da promessa teria consequência imediata e suficiente? Parece evidente que a liminar ora cuidada, sob o aspecto conceitual, sob o prisma da oportunidade e sob a visão da adequação e aceitação, se inseriu magnificamente na Lei de Locações, diploma que na sua integralidade vem se prestando muito bem à defesa não do locador ou do locatário, mas das locações propriamente ditas e da paridade contratual; a lei permitiu a substancial redução de ações judiciais; passou a existir - algo impensável há 30 anos - segurança em investir na construção de imóveis para locação - aí estão tantos novos prédios esteados em contratos de locação. Pois bem e respeitados os parâmetros que a urgência impõe (a lei de emergência virá em prazo curtíssimo): essa aceitação pela Sociedade e cuja supressão apenaria os que acreditaram na lei (ao passo que aqueles incrédulos, que preferiram não confiar na lei e insistiram na obtenção de garantias do locatário, findariam confortados), esse grandioso passo com inequívoco espraiamento social, esse avanço do modo de contratar em direção à modernidade e à agilidade não podem ser enfraquecidos. É quanto em síntese indica a necessidade de incluir-se dentre as possibilidades de concessão de liminar, a situação do inciso IX, do art. 59 da Lei das Locações, prestigiando-se a locação celebrada com base única na boa lei e na confiança de que os contratantes agirão com boa-fé. Afinal, se não preservarmos agora a boa-fé e o sistema tão bem construído, deixaremos isso para quando? *Jaques Bushatsky é advogado, coordenador da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM. __________ 1 redação do PLS: "9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59 da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (locações de imóveis urbanos), até 31 de dezembro de 2020".
Texto de autoria de Olivar Vitale O presente trabalho tem como objetivo analisar legislação, doutrina, tanto brasileira quanto italiana, e um pouco de jurisprudência, a respeito da onerosidade excessiva e a possibilidade de revisão contratual (modificação quantitativa), em especial por razão da Covid-19. Introdução Desde meados de fevereiro, começo do mês de março de 2020, estamos vivendo momento único no mundo. Inúmeros países, por seus governos, estão determinando o isolamento social, também chamado de lockdown. Com isso, as ruas estão vazias, os comércios e shopping centers em geral estão fechados, algumas fábricas com operação suspensa e a população trancafiada em suas residências. A imprevisibilidade do que se está vivendo parece óbvia. Soubessem os cidadãos da situação que passaríamos, decerto diversas relações jurídicas não seriam entabuladas. Se entabuladas, provavelmente preveriam a atual situação e as consequências diversas a cada contrato. Mas a questão principal é: diante desse evento imprevisível, que direitos e deveres remanescem às partes contratantes? Nas contratações pecuniárias, permanece a obrigação do devedor efetuar o pagamento? Pode o devedor requerer a resolução do contrato ou a sua revisão? É direito do credor simplesmente não aceitar a resolução? E a revisão? Alguns disclosures são importantes antes de adentrar na argumentação em si. O presente artigo não persegue a questão da força maior e do caso fortuito, delimitados no artigo 393 do Código Civil. A lei é clara ao determinar em mencionado dispositivo que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes da força maior ou do caso fortuito, a não ser que tenha se responsabilizado expressamente por eles. Entretanto, nada trata em relação à avença em si, às obrigações contraídas, sua conservação, revisão ou até mesmo resolução, motivo pelo qual o tema força maior/caso fortuito não foi encaixado nesse estudo. Além disso, fundamental registrar que as relações objetivas nesse arrazoado, apesar de serem de direito privado, propositadamente não englobam relações consumeristas, eis que o específico novel, em seu artigo 6º, assegura expressamente ao consumidor, ora devedor, o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão por motivo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (teoria da base objetiva do negócio jurídico). Pois bem. Com menos de um mês da declaração da Pandemia, pululam inúmeros artigos jurídicos a respeito das consequências da covid-19. A maioria deles recomendando a serenidade e negociação entre as partes. A razão da elaboração desse artigo, entretanto, é focar na questão das posições de devedor e credor diante da inusitada situação imprevista, especialmente à luz da legislação civilista em vigor e, ultrapassada sem sucesso toda a senda conciliatória, a alternativa, ou não, de resolução ou revisão do contrato entabulado. 1. Dos princípios do Código Civil Antes mesmo de adentrar na questão em si, fundamental à conclusão do raciocínio pontuar os princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, mais precisamente o Código Civil. Diante de inusitada situação vivida com a Pandemia Covid-19, o que se espera das partes envolvidas, em quaisquer situações jurídicas ora postas em prova, é a aplicação dos princípios que norteiam a relação em sociedade em nosso país. São eles, principalmente, boa-fé objetiva1, conservação dos contratos2, função social do contrato3 e equilíbrio econômico. O princípio da boa-fé objetiva, como bem pontuado por Judith Martins-Costa, é regra de conduta que pauta a atuação das partes quando da aplicação ou renegociação das cláusulas de acomodação do contrato às circunstâncias, sendo incidente ao exercício jurídico4. Já o princípio da conservação dos contratos trata da busca pela conservação, tanto do legislador quanto do intérprete, do negócio jurídico realizado pelos agentes5. Ainda, o princípio da função social do contrato, nas palavras de Maria Helena Diniz, "não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana". Ou seja, resumindo em apertada síntese, limita a autonomia contratual no que toca à dignidade da pessoa humana. Ao se falar em contrato firmado, cujos efeitos estão abalados pelo momento de Pandemia, não se cogita o não atendimento à sua função, especialmente considerado o equilíbrio no momento de sua celebração. Por fim, o princípio do equilíbrio econômico, na opinião do mesmo Junqueira de Azevedo, é um "princípio interpretativo", eis que leva em conta os institutos da lesão6 e onerosidade excessiva, ambos, esses sim, previstos expressamente em nosso ordenamento civil. A mesma Judith Martins-Costa ensina que o princípio do equilíbrio econômico é deduzido de um conjunto de regras e de institutos contidos no Código Civil, parecendo incontroverso estarem o seu sentido e os seus limites orientados por aquelas mesmas regras e institutos. Explanado cada um deles, importante pontuar que o real motivo de iniciar esse artigo pelos princípios diz respeito à importância do entendimento de que são importantíssimos à interpretação legal mas, principalmente, para nortear a conduta das partes, do legislador e do Judiciário, mormente em situações singulares como a presente, da covid-19. Não têm aludidos princípios, entretanto, o condão de se sobrepor a regras específicas do mesmo Código Civil, norma legal do qual os próprios exsurgem. Isto é, ao tratarmos adiante dos artigos 478 e 479 do Código Civil, tais princípios decerto a esses artigos não se sobrepõem, e nem poderiam, como também não ocorre em outras inúmeras situações específicas previstas no mesmo Código Civil. Não se nega que nesse momento, de desequilíbrio em todos os sentidos, fundamental a aplicação dos princípios acima. Tanto pelas partes quanto pelo intérprete da lei ao acomodar a vontade das partes. Por assim dizer, em necessária negociação para reanálise de alguma contratação, sem dúvida cabe às partes conduta a respeitar a boa-fé objetiva, buscando a melhor acomodação das condições do contrato à nova realidade. O mesmo se argumenta no tocante ao almejado reequilíbrio econômico da situação jurídica, visando sempre à conservação da avença, mantendo-se assim, inclusive, a função social do contrato. 2. Da onerosidade excessiva. Resolução e/ou Revisão (modificação equitativa) Como operadores do Direito, nessa esteira, sem dúvida nos cabe a orientação para as partes agirem conforme os ditames acima elencados, explanados e legalmente previstos. Certamente no mais das vezes isso evitará a indesejada resistência de pretensão do devedor, ora alegadamente incapaz de cumprir o quanto pactuado, em razão do Covid-19 e suas consequências. Mas nem sempre o desejado é alcançado. E por corolário demandas judiciais serão propostas tendo como motivação a covid-19 e como matéria de fundo o desejo do devedor em romper a sua obrigação ou, ao menos, torná-la menos onerosa. Para tanto, fundamental o estudo do ordenamento jurídico, de maneira a tentar elucidar o que há de direito e dever de cada uma das partes em momento inusual como o presente. Pois bem. Prevê o artigo 478 do Código Civil que "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação". Por sua vez, e na sequência, eis a dicção do artigo 479 do mesmo códex: "a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato". Que o Covid-19 é acontecimento extraordinário e imprevisível parece não restar dúvida, conforme anteriormente argumentado. Cabe à parte devedora, portanto, na atual existência de Pandemia, comprovar que a sua continuada ou diferida prestação se tornou excessivamente onerosa na situação jurídica entabulada, e ao menos ligeiramente demonstrar inovada e considerável vantagem para a outra. Nesse caso, se assim comprovado, poderá o devedor pleitear a resolução do contrato, eximindo-se da obrigação. A dúvida que remanesce é se o devedor poderia requerer a revisão contratual, em vez de sua resolução. Muito argumentam que sim. Como se verá, até mesmo parte da jurisprudência pátria. E mais do que isso. Alguns se apoiam nos princípios civilistas acima delineados, como se todo um sistema de direito civil fosse regrado por princípios a se sobrepor às regras específicas contidas na mesma norma. Razão não lhes assiste, por mais que venha ganhando corpo essa malfadada corrente. E isso porque o regramento legal é cristalino e tem a sua razão de ser. As partes apresentam as suas condições e então contratam. Cada qual só aceita se amarrar à avença porquanto atendidas aquelas suas debatidas e negociadas condições. Um evento imprevisível e extraordinário surge e ameaça tudo quanto ajustado pelas partes. O legislador brasileiro, bebendo da fonte do ordenamento jurídico italiano que também assim regra a matéria, bem previu que desde que comprovado o imprevisto e demonstrada a onerosidade excessiva ao devedor, e a vantagem do credor, pode o primeiro se eximir da obrigação, rompendo o quanto contratado. Por outro lado, o mesmo legislador, visando conservar o contrato, empoderou o credor, permitindo que esse oferte a revisão da avença, por meio da modificação equitativa de sua prestação. Diferente não poderia ser. Facultasse ao devedor requerer judicialmente a revisão do contrato por onerosidade excessiva, e não apenas a sua resolução, teria o legislador imputado ao credor o dever de aceitar condições contratuais que talvez jamais aceitasse no momento da contratação, impondo a ele ônus econômico por vontade alheia, sem o seu consentimento7. Isso é fundamental eis que respeita toda uma base equilibrada entre essas partes, conferindo a exclusividade da força da revisão a quem optaria por manter o quanto contratado mas, por razões alheias à sua vontade, é obrigado a decidir entre aceitar a resolução ou, minorando a sua perda, oferecer a revisão. A pergunta ainda latente é se seria justo impor ao devedor que a avença seja mantida, mesmo tendo esse requerido a sua resolução, caso o credor se valha do artigo 479 do Código Civil. E nesse caso a resposta é positiva. Trata-se de direito potestativo do credor. Note-se que, de uma forma ou outra, a obrigação do devedor será menos gravosa que aquela contratada originalmente, motivo pelo qual há presunção segura de que algum benefício ele terá. Além disso, a lei é clara ao definir que a modificação há que ser equitativa, isto é, o Juízo instado a decidir a respeito da lide deverá, para a fixação da nova prestação contida na avença mantida, fazê-lo com equidade, ou seja, visando ao restabelecimento do devido equilíbrio contratual. Importante pontuar que essa sistemática do Código Civil brasileiro segue a legislação italiana, e a doutrina majoritária por lá, que, no mesmo sentido, confere ao devedor o direito de pedir a resolução do contrato em situação não prevista, mas apenas ao credor pleitear a sua revisão. Ainda, haverá quem defenda a possibilidade da revisão do contrato pelo devedor, valendo-se de regra geral do artigo 317 do mesmo Código Civil. Ledo engano, conforme ora se explica. O artigo 317 do Código Civil prevê que "quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação". Primeiramente, está aqui a tratar única e exclusivamente de montante específico previsto em prestação, ou seja, pecúnia. No mais, como se depreende inclusive do inicial projeto de lei convertido em lei, no caso o nosso Código Civil, com todas as alterações que geraram o texto final, estar-se-á tratando única e exclusivamente da aplicação da correção monetária, tão importante em um país que sucedeu diversos planos econômicos, com intervenções governamentais, que geraram o desequilíbrio contratual a ser restabelecido. Não menos importante é o fato do artigo 317 aparecer no capítulo "do objeto do pagamento e sua prova" e do artigo 315 do mesmo códex, logo anterior ao 317, prever que "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes" (grifamos). A jurisprudência pátria, no que diz respeito à onerosidade excessiva, é praticamente uníssona no sentido de que os requisitos são "contrato de execução continuada ou diferida, vantagem extrema de outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor"8. Evocando a título exemplificativo a única jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema encontrada em favor da possibilidade de revisão contratual pelo devedor em caso de onerosidade excessiva, em que há um perigoso e a nosso ver equivocado mix dos artigos 478 e 479, com o 317, todos do Código Civil, a ministra Nancy Andrighi mescla os institutos aqui mencionados, inclusive o Código de Defesa do Consumidor em relação não consumerista, o que resulta em grande confusão, decidindo que "não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02, entendo ser possível aplicar o instituto também na mesma direção indicada pelo CDC - e respeitados, obviamente, os requisitos específicos estipulados na Lei civil - especialmente pela necessidade de se dar valor ao princípio da conservação dos negócios jurídicos que foi expressamente adotado em diversos outros dispositivos do CC/02... É de ser citado, ainda, o art. 317 do mesmo Código, que guarda maiores proporções com o tema aqui versado..." Tudo para, a final, por razões alheias ao aqui estudado, decidir pela "não ocorrência da onerosidade excessiva, faltando à pretensão a verificação da circunstância fática exigida pelo art. 478 do CC/02"9. Essa fundamentação acima esposada, que nem sequer resultou na revisão do contrato pelo devedor, por razões outras, não é recente (2009) e, ao menos pelo que estudamos, é isolada. Mantem-se, portanto e entretanto, o regramento cristalino legal de que o pedido do devedor em caso de onerosidade excessiva há que ser tão somente o da resolução do contrato, sob pena de impor ao credor a aceitação de prestação necessariamente inferior à ajustada por sua vontade originariamente, sem que concorra para tanto, o que é não admitido em nosso ordenamento civil. Como se vê, por mais que parte da doutrina10 e da jurisprudência tente fazer do artigo 317 uma extensão da interpretação dos artigos 478 e 479, todos do Código Civil, por vezes inclusive invocando os princípios gerais contidos no Código Civil, fato é que o artigo 317 nada tem que ver com modificação equitativa, tal qual previsto no artigo 479, tratando somente da eventual intervenção judicial para aplicação de correção monetária à obrigação pecuniária, nada além disso. 3. Conclusão O legislador brasileiro prevê socorro ao devedor que, diante de fator extraordinário e imprevisto como o Covid-19, esteja diante de ônus excessivo no cumprimento das obrigações previstas em contrato entabulado, desde que demonstre ainda a surgida vantagem ao credor. Esse socorro, entretanto, é o de se eximir da obrigação, não o de rever as condições do negócio, à revelia do credor em que momento algum buscou se furtar do quanto pactuou. Por fim, pode ainda o credor, esse sim já ciente de que as bases contratuais não serão mantidas por manifestação do devedor, pleitear a conservação do contrato, propondo uma modificação equitativa, a qual, uma vez não prontamente aceita pelo devedor, o que se espera tendo em vista que a pretensão foi judicializada, será devidamente apurada e decidida pelo julgador, obrigando as partes a cumprir a nova condição. *Olivar Vitale é advogado, sócio fundador do VBD Advogados. Presidente do IBRADIM. Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo. Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP. Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC.  Professor e coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da especialização/MBA da POLI-USP, professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino. __________ 1 Código Civil, Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 2 Código Civil, Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada, Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante, Art. 157, § 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito e Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade. 3 Código Civil, Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 4 Martins-Costa, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, Marcial Pons, 2015, p. 607 5 Junqueira de Azevedo, Antonio. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição, Saraiva, SP, 2010. p. 66 6 Código Civil, Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. 7 Marino, Francisco Paulo de Crescenzo, Revisão Contratual, Ed Almedina, fev/2020, p. 73 8 Resp nº 1.034.702/ES, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 05.05.2008 9 STJ, Resp 977.007, GO, negado provimento, V.U., 24 de novembro de 2009. 10 Dinis, Maria Helena, Código Civil Anotado, Ed. Saraiva, 14ª edição, São Paulo, 2009, p. 398.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide e Kleber Zanchim O covid-19 está induzindo a elaboração de diversas propostas legislativas em variados campos, do societário ao tributário, passando por contratos em geral e por tipos contratuais em especial. Entre estes está a locação de imóveis urbanos. O projeto de lei 1.179/20, de relatoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG) (clique aqui), traz dispositivos sobre o que podemos intitular "moratória locatícia". A versão inicial propõe, no art. 10, a possibilidade de pagamento parcial do aluguel na locação residencial ou até mesmo a suspensão total de 20 de março de 2020 até o final de outubro de 2020. Sem entrar no mérito da proposta em si do ponto de vista político ou socioeconômico, é preciso cuidado para criar soluções jurídicas com o mínimo de subjetividade possível e que não favoreçam comportamentos oportunistas. Nossas contribuições a referido Projeto de Lei, encaminhadas ontem, foram nesse sentido. Em primeiro lugar, privilegiam a livre negociação entre locador e locatário, não tornando mandatória a aplicação de qualquer desconto. Sugerimos que a nova norma preveja direito de o locatário fazer proposta de renegociação ao locador referente a aluguéis vencidos a partir de 20 de março de 2020 e vincendos até 30 de outubro de 2020. Para tanto, os locatários precisam evidenciar que sofreram impacto econômico-financeiro resultante de dispensa de emprego, diminuição de remuneração, impossibilidade de exercício de atividade comercial ou, ainda, queda abrupta de sua receita. A proposta de renegociação precisa ser escrita, justificada e tem de ser apresentada até 15 (quinze) dias da entrada em vigor da nova lei. Se não houver acordo em contrário, o locador tem 10 (dez) dias para, de forma fundamentada, responder à proposta. Caso apresente contraproposta, o locatário tem mais 10 (dez) dias para responder, também fundamentadamente. Não havendo acordo, o locatário poderá, observados os requisitos elencados supra sobre sua condição econômico-financeira, deixar de pagar até 30% (trinta por cento) do valor dos aluguéis vencidos e vincendos. Se o fizer, a partir de 1º de novembro de 2020 ficará obrigado a pagar, em até seis parcelas mensais consecutivas, o valor então abatido, corrigido pelo índice previsto no contrato. Com esse desenho, há prazos predefinidos e consequências já estabelecidas para a "moratória locatícia". O locatário ganha um "fôlego" nos meses mais difíceis e o locador pode se programar tendo em vista um recebimento futuro, o que equilibra a relação. É importante reforçar que, independentemente de qualquer movimento legislativo, o mais recomendável aos contratantes é estarem abertos a negociar pautados na boa-fé. Também reputamos necessário ajuste na proibição contida no Projeto de Lei para toda e qualquer liminar de despejo em contratos de locação de imóveis urbanos. A depender do fundamento do despejo (necessidade de realização de obras urgentes, inadimplemento anterior ao Covid-19, descumprimento de outras obrigações), não se pode negar ao locador, ao menos, pleitear o seu direito. Estamos certos de que, em tempos de crise, o despejo deve ser medida excepcionalíssima. Ainda assim, não se pode simplesmente desautorizá-lo por completo. No mais, também realizamos sugestões referentes ao direito de arrependimento nos contratos de consumo e, ainda, à ampliação dos poderes conferidos aos síndicos, no âmbito dos condomínios edilícios. Abaixo a íntegra de nossas propostas: CAPÍTULO V - DAS RELAÇÕES DE CONSUMO Art. 8º: Até 30 de outubro de 2.020, os fornecedores poderão celebrar a venda de produtos ou serviços por entrega domiciliar sem conferir o direito de arrependimento aos consumidores (art. 49), desde que haja renúncia prévia do consumidor. JUSTIFICATIVA: O direito de arrependimento é uma das principais proteções contratuais conferidas aos consumidores. A pandemia do COVID-19 certamente limita os transportes e a produção, de modo que o exercício do direito de arrependimento pode trazer prejuízos aos fornecedores. Assim, com renúncia prévia dos consumidores, os fornecedores poderão restringir o exercício de tal direito potestativo. Isso fará que os consumidores, cientes previamente da limitação da proteção, tenham maior cautela nas compras a serem realizadas. Alguns consumidores, por outro lado, cientes da limitação da proteção contratual, poderão restringir suas compras apenas a produtos essenciais, deixando para momento mais oportuno a aquisição de bens ou serviços não essenciais. Consigne-se, ainda, que em tempos de isolamento domiciliar, os consumidores estão mais sujeitos às aquisições pela internet, razão pela qual o direito de arrependimento não pode ser pura e simplesmente ignorado. CAPÍTULO VI - DAS LOCAÇÕES OU CESSÕES DE IMÓVEIS URBANOS Art. 9º: Não se concederá liminar, por falta de pagamento, para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, inciso IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, nem para reintegração de posse de imóveis objeto de cessão onerosa, nos termos dos artigos 560 e seguintes do Código de Processo Civil, até 31 de dezembro de 2.020. § 1º O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2.020 que envolvam falta de pagamento pelo locatário ou cessionário a partir daquela data. Art. 10. Os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, comprovadamente decorrente de demissão ou diminuição de remuneração, poderão propor ao locador a renegociação dos alugueis vencidos a partir de 20 de março de 2020 e vincendos até 30 de outubro de 2.020. § 1º A proposta de renegociação referida no caput pode ser apresentada por locatários ou cessionários de imóveis comerciais que comprovarem a impossibilidade de exercício de sua atividade comercial ou, ainda, a queda abrupta de sua receita. § 2º A proposta de renegociação dos alugueis deve ser manifestada por escrito pelo locatário ou cessionário até 15 (quinze) dias da entrada em vigor desta lei. § 3º Salvo acordo em contrário, o locador terá 10 (dez) dias para responder, de forma fundamentada, à proposta do locatário ou cessionário. Se houver contraproposta do locador, o locatário ou cessionário terá 10 (dez) dias para, também de forma fundamentada, responder. § 4º Não havendo acordo, o locatário ou cessionário poderá, observados o caput e o §1º deste artigo, deixar de pagar até 30% (trinta por cento) do valor dos aluguéis vencidos e vincendos. § 5º Na hipótese do §4º, a partir de 1 º de novembro de 2020 o locatário fica obrigado a pagar, em até seis parcelas mensais consecutivas, o valor até então abatido dos alugueis, corrigido pelo índice de correção previsto no contrato. JUSTIFICATIVA: A Lei do Inquilinato confere a possibilidade de despejo por diversas hipóteses, dentre elas descumprimento do contrato, término da locação por temporada, necessidade de se produzir reparos urgentes, dentre outros fundamentos. A COVID-19 traz prejuízos aos inquilinos, sobretudo no poder de pagamento dos alugueres (sobretudo nas locações comerciais). Contudo, impedir o despejo para as demais hipóteses parece-nos demasiadamente prejudicial aos locadores. Além disso, não se mostra razoável permitir a mora de inadimplemento de alugueres antes da pandemia. Da mesma forma, não nos parece razoável permitir a mora dos alugueres residenciais em qualquer hipótese, sem que haja comprovada redução da capacidade de pagamento do locatário. Na hipótese de comprovada alteração econômico-financeira, deve surgir ao inquilino a possibilidade de renegociar os valores. A renegociação, cremos, poderá esvaziar as pretensões judiciais, permitindo às partes firmarem acordos extrajudiciais. Inexistindo êxito na renegociação dos valores, nasce outro direito potestativo aos inquilinos, qual seja, reduzirem o valor do aluguel mensal em até 30% (trina por cento), prorrogando aos próximos meses a redução acumulada nos meses anteriores. CAPÍTULO IX - DOS CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS Art. 15 - Incluir o § 2º ao artigo 15. [...] § 2: As restrições ao uso das áreas comuns adotadas unilateralmente e emergencialmente pelo síndico deverão, em até cinco dias, serem aprovadas em assembleia extraordinária convocada e realizada por meios virtuais, oportunidade que prevalecerá a decisão do síndico, desde aprovada pela maioria dos presentes. Alguns síndicos já se mostram autoritários com relação a algumas medidas de limitação de uso das áreas comuns. Nesse sentido, embora seja permitido ao síndico adotar algumas medidas emergenciais, tais medidas devem ser referendadas em assembleia virtual, aprovada pela maioria. Tal medida não limita o poder do síndico em adotar medidas emergenciais, mas evita que sejam extrapolados os poderes para limitação da propriedade. Autores das propostas Alexandre Junqueira Gomide é doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogado. Colaborador do Blog Civil e Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Diretor Estadual (SP) do IBRADIM. Kleber Zanchim é doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor do Insper Direito. Sócio de SABZ Advogados.
Texto de autoria de Roberto Wilson Renault Pinto 1. Introdução Com o progresso tecnológico, as plataformas digitais tornaram-se instrumentos estratégicos na divulgação e nas vendas de produtos em geral, incluindo, pois, os lojistas de shopping centers, que, cada vez mais, se dedicam a essa prática empresarial. Em contrapartida, o consumidor de produtos ofertados online deixou de ser, ao menos em parte, a pessoa que vai ao shopping center, fato este que afeta a relação contratual empreendedor/lojista, no que concerne ao pagamento do aluguel, mínimo e/ou percentual. Esse trabalho destina-se a uma análise inicial sobre essa forma relativamente recente da realidade do mercado, no que tange à incidência do aluguel devido pelo lojista sobre os negócios jurídicos iniciados por plataformas digitais, previstos, ou não, nos contratos de cessão de uso de espaço entre este e o empreendedor de shopping center, que, ademais, podem ser afetados em razão de contrato entre lojista/ franqueado e franqueador, nos casos em que o franqueado recebe produtos do franqueador, a título de depósito, com a finalidade de entregá-los aos clientes do franqueador que adquirem os produtos deste pelas redes sociais, nas dependências do shopping center. 2. Relações jurídicas entre lojistas e empreendedor do shopping center e daqueles com os clientes Neste contexto, podem-se vislumbrar, primeiramente, três tipos de relação jurídica na questão apresentada: uma entre empreendedor e lojistas; outra entre estes e seus clientes e uma terceira entre o lojista franqueado e o franqueador. Na primeira e na terceira, a relação é empresarial, por força do art. 421-A do Código Civil1 (CC) e do inciso VIII do art. 3º da Lei nº 13.874, de 20.9.20192 (Lei da Liberdade Econômica), que consolidaram o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a interpretação das normas contratuais na relação jurídica em apreço, como paritárias. De fato, empreendedor, lojista e franqueador são empresários, cujos direitos e deveres se presumem equilibrados, sem que nenhuma das partes possa ser intitulada de vulnerável, devendo prevalecer a comutatividade nas relações contratuais, a menos que se apresente algum desequilíbrio nessas relações, a ser tutelado pelos princípios gerais de Direito. Essas exceções decorrem das limitações à liberdade de contratar, quando cláusulas contratuais colidem, especialmente, com os princípios da função social do contrato3 e da boa-fé objetiva4. Por outro lado, nas relações entre lojista e/ou franqueador e cliente se aplica a legislação consumerista, conforme artigos 2º e 3º do Código de Proteção ao Consumidor (lei 8.078/90 - CDC)5, também chancelada pela doutrina e jurisprudência, que, no artigo 306 da lei consumerista, alcança a obrigação de o fornecedor realizar a venda de produtos online7 nas condições oferecidas, tal como nas vendas em geral de Direito Privado (art. 427 do CC8). No presente trabalho, destaca-se a relação entre empreendedor e lojistas de shopping centers, vis à vis da questão apresentada, em que se busca alcançar a correta interpretação da incidência, ou não, do aluguel sobre a compra e venda iniciada através de plataformas digitais, isto é, fora do ambiente do shopping center, estendendo-se à relação entre lojista/franqueado e franqueador, em que se aproveita da estrutura organizacional e do espaço físico do centro comercial, para depósito e entrega aos clientes do franqueador, por intermédio do lojista, de produtos adquiridos através das redes sociais. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 "Art. 421-A Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais [...]". 2 "Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômicos do País, [...]: VIII ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária, exceto as normas de ordem pública". 3 "Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato". 4 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 5 "Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". "Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entres despersonalizados que desenvolvem atividade de [...] comercialização de produtos ou prestação de serviços". 6 "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". 7 LÔBO, Paulo. DIREITO CIVIL - CONTRATOS. São Paulo: Saraiva. 4ª ed. 2015. p 76. 8 "Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso".
Texto de autoria de Rodrigo Toscano de Brito e Alexandre Junqueira Gomide 1. Notas Introdutórias Em sua obra clássica a respeito do direito das coisas, ao tratar das características fundamentais do direito de propriedade, Lafayette Pereira1, nos idos anos de 1943, asseverou que tal direito "é ilimitado e como tal inclui em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos que são compatíveis com as leis da natureza". O caráter "ilimitado2" do direito de propriedade era conferido no art. 527, do Código Civil de 1916, ao determinar que "o domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário"3. Contudo, com o passar dos anos, o exercício ilimitado da propriedade passou a sofrer restrições. Atente-se que o art. 1.231, do atual Código Civil, não mais estabelece que a propriedade se presume ilimitada, mas, sim, "plena e exclusiva". Passo importante nesse sentido certamente foi a promulgação da Constituição Federal de 1988 que dispôs, expressamente no art. 5º, inciso XXIII, a determinação de a propriedade atender a sua função social4. De todo modo, embora tenha sofrido restrições em sua forma de exercício, não se perca de vista que desde o Código Civil revogado5 até o vigente6, o proprietário continua tendo como principais atributos o direito de usar, gozar e dispor da coisa. Os tempos modernos requerem análise atenta a respeito dos atributos do direito de propriedade e suas limitações, nomeadamente no exercício do direito de usar e gozar da coisa. Destaque-se que as limitações ao direito de propriedade podem ser ainda mais frequentes no âmbito do condomínio edilício, a considerar que a convenção condominial pode estabelecer certas limitações não previstas no texto legal. Não é objetivo do presente artigo tratar de limitações ao direito de propriedade já conhecidas e tratadas pela doutrina7 e jurisprudência, a exemplo disso, (i) limitação para inadmitir animais domésticos; (ii) limitação de uso ao condômino antissocial; (iii) limitação para cessão do uso do imóvel via aplicativos de locação/hospedagem de curta temporada; (iv) limitação para locação da unidade à república de estudante; (v) limitação de serviços essenciais ao condômino inadimplente. O objetivo do presente artigo é tratar do impacto imediato da COVID-19 nos condomínios edilícios e algumas questões controversas. 2. O Coronavírus e os Impactos Imediatos À Vida Condominial Diante do número expressivo de informações que estamos recebendo sobre o Coronavírus (COVID-19), já se sabe que os efeitos da doença serão devastadores - seja na saúde dos brasileiros, seja no tocante aos impactos na economia ou, ainda, no que diz respeito ao relacionamento social. A bem da verdade é que na data de fechamento deste artigo, sequer poderíamos fazer previsões seguras a respeito das dimensões que o vírus ainda poderá causar à vida das pessoas. Também no Direito, a COVID-19 trará consequências das mais diversas. O Direito Condominial, por si só, já é uma das áreas mais controversas na doutrina e jurisprudência. O vírus poderá ampliar as discussões envolvendo a matéria condominial. Analisemos. 3. Impactos nas Assembleias e Utilização de Meios Virtuais de Deliberação O condomínio edilício não é administrado pelo síndico, isoladamente. Isso porque o condomínio deve obedecer às normativas advindas da assembleia de condôminos, como regra geral. As decisões no âmbito do condomínio edilício são, portanto, assembleares, ou seja, dependem da assembleia de condôminos. O síndico executa as determinações da assembleia e deve seguir as regras de convocação previstas na convenção do condomínio ou, na sua falta, na lei civil. Diz-se isso para deixar esclarecido que o síndico não pode, por si só, determinar atos que não estejam previstos nas deliberações assembleares, nem na convenção. De toda forma, é importante ressalvar que cada caso deve ser analisado à luz da convenção específica, especialmente no capítulo que versa sobre as atribuições do síndico, embora existam regras gerais que devam ser observadas. Diante desses aspectos e das questões relativas à pandemia decorrente do coronavírus, os síndicos, ainda que estejam agindo de boa-fé e com espírito comunitário ao proibir o uso e fruição de determinadas áreas comuns, haverão de observar as regras gerais dispostas na lei civil. Uma delas é a convocação de assembleia geral extraordinária, de caráter emergencial, diante das questões especiais que envolvem a prevenção de contaminação da COVID-19, para que a assembleia possa deliberar quais medidas de proteção à saúde dos moradores devem ser tomadas pelo condomínio. Parece-nos que o síndico só estaria desobrigado de convocar a assembleia se a questão envolver a necessidade de uma decisão com alto grau de urgência. Caso contrário, ainda que de maneira excepcional, é obrigado a convocá-la, podendo, em razão da necessidade de decisão urgente, desconsiderar regras relativas ao prazo mínimo de convocação, bem como questões burocráticas. Portanto, quanto ao modo de convocação, a assembleia pode ser realizada por meios eletrônicos. Embora a convocação possa ser flexibilizada, não pode ser desconsiderada. De igual modo, em razão da proibição pública de aglomerações e reuniões, conforme for a quantidade de moradores, a realização da assembleia pode utilizar-se de mecanismos eletrônicos, hoje de facílimo acesso, tais como WhatsApp, Zoom, Skype, etc. Observem que tudo isso se afirma considerando situações extremas, até porque em muitas localidades brasileiras, ainda é possível realizar as reuniões conforme estabelecido na convenção, tendo em vista que sequer há casos notificados de infecção pela COVID-19. Mesmo assim, por cautela e em razão da urgência eventual, é possível a realização de reuniões por meios eletrônicos, com a ressalva da excepcionalidade da forma, depois referendados durante a reunião. Apesar de considerar opiniões importantes em sentido contrário8, ou seja, por parte daqueles que pensam não ser necessária a convocação da assembleia de condôminos, vale observar que existem decisões por parte de síndicos que são razoáveis; outras, não. Mais adiante, vamos observar neste artigo que já existem casos em que o síndico determinou unilateralmente a proibição de passagem de moradores que são profissionais da área de saúde, tais como médicos, enfermeiros, dentistas. O exemplo serve para se observar que, nem o síndico pode determinar essa limitação por ato isolado, nem mesmo a assembleia o pode, mas a assembleia deve ser convocada (pelos meios eletrônicos, como já se disse para evitar contatos e aglomerações) para decidir quais os limites serão impostos à propriedade condominial. Deve-se levar em conta que os problemas condominiais que surgem, diante da excepcionalidade provocada pela pandemia da COVID-19, não encontram soluções já postas no Código Civil. E aqui há uma discussão realmente interessante. Na regra geral do Código Civil, as decisões no âmbito do condomínio edilício são assembleares e, parece-nos que, para evitar decisões autoritárias e totalmente ilegais por parte de alguns síndicos, deve continuar sendo essa a regra. Não que se deva passar necessariamente pela burocracia regular e recomendável das assembleias em períodos normais, mas há necessidade de se certificar que todos tenham tomado conhecimento da notificação (hoje isso é facilmente controlado mesmo em aplicativos simples, como Whatsapp) e que haja a deliberação de como limitar o uso da propriedade condominial. A vida em condomínio, ainda que em períodos fora do comum, como o que vivemos, deve preservar decisões comunitárias, como é o grande sentido da norma. É interessante o esforço interpretativo de que o síndico pode determinar limitações por ato unilateral dele a partir da regra do art. 1.348, V, do Código Civil, mas observem a regra ali posta: "Art. 1.348. Compete ao síndico: (...) V - diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns". O dispositivo diz respeito à conservação da coisa em si, não propriamente ao uso, nem à possibilidade de se criar limitação ao uso, um dos elementos relevantes do direito de propriedade. A estipulação da limitação ao uso das áreas condominiais é privativa da assembleia, que deve se reunir, excepcionalmente, por videoconferência, deliberar e votar pelos meios possíveis, evitando contato e aglomerações para tanto. É importante observar que alguns síndicos têm tomado medidas razoáveis de prevenção à contaminação, criando algumas limitações ao uso da propriedade condominial, sem criar discussões por parte dos demais condôminos. Nesse caso, parece muito interessante a solução interpretativa dada por Rubens Carmo Elias Filho e Rodrigo Karpat, no parecer já referenciado aqui, dado no âmbito da comissão de direito imobiliário da OAB-SP. No citado parecer, sugere-se a aplicação analógica do art. 1.324, do Código Civil, que assim prevê: "Art. 1.324. O condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se representante comum". Observem que o artigo está contido no regramento do condomínio voluntário e, em sua interpretação finalística de fato: caso não haja oposição dos demais, presume-se a aceitação. É o que está acontecendo na maior parte dos casos brasileiros, sem gerar a necessidade da assembleia previamente. Há uma consciência geral da gravidade do problema trazido pela COVID-19 e, em boa parte dos casos, os síndicos criaram soluções limitativas que agradaram a todos. Nesse caso, a ausência da assembleia não macula a decisão isolada do síndico, que acaba sendo referendada tacitamente pelos demais condôminos. Por outro lado, decisões como proibir ingresso ou passagem por áreas comuns por parte de profissionais da área de saúde ou outras limitações severas ao direito de propriedade ou mesmo à pessoa, como, por exemplo, exigir que o condômino faça medição da sua temperatura corporal, parece-nos que devem observar a regra geral da natureza assemblear. Claro que, repita-se, evitando a aglomeração de condôminos, daí a necessidade de se usar os mecanismos de videoconferência, sempre na certeza de que todos foram avisados para deliberar, seja por e-mail, telefone, mensagens eletrônicas, interfone, ou qualquer outro meio inequívoco. Numa eventual discussão concreta, em vista da natureza comunitária do condomínio, a deliberação deve ser em assembleia, em conjunto, em grupo de interessados, mas nunca monocrática do síndico. Um só não pode limitar direito dos demais condôminos. Também é bastante claro que se a circunstância não permitir, por razões que fogem da possibilidade de realização absoluta da assembleia, o síndico decidirá isoladamente e pode referendar sua decisão depois em assembleia virtual. Mas esta não pode ser a regra durante um, dois, três meses de quarentena, sobretudo na existência de síndicos pouco ou quase nada razoáveis, como em alguns casos. 4. Limitações de Uso das Áreas Comuns A mais relevante das batalhas para enfrentarmos a pandemia é a reclusão das pessoas em suas residências. Embora o afastamento interpessoal completo seja desejável, diversas situações nos impedem de nos mantermos absolutamente afastados uns dos outros. Basta pensarmos que, embora reclusos em nossas residências, continuamos dependendo de visitas aos supermercados, farmácias, visita a um familiar que precisa de socorro, dentre outras situações. Nos condomínios edilícios, da mesma forma, sempre que um condômino deixa a sua unidade autônoma, regra geral, precisará acessar o elevador, transitar pelas áreas comuns até que consiga acessar a rua. Limitar, portanto, o direito de transitar nas áreas comuns não se mostra medida razoável ou possível. Evidentemente que é possível ao condomínio limitar o trânsito de pessoas, mas não impedir que as pessoas acessem suas unidades autônomas. Mas ainda no que diz respeito ao trânsito de pessoas, indaga-se a possibilidade de o condomínio, por exemplo, limitar o direito de uso para profissionais da área de saúde, ou seja, pessoas que certamente possuem maior risco de contágio da doença. É possível proibir, por exemplo, que o condômino médico ou enfermeiro que, conforme a especialidade, esteja no grupo de risco profissional, acesse sua unidade utilizando-se do elevador e das demais áreas comuns do prédio? Evidentemente o condômino-médico não pode ser impedido de transitar pelas áreas comuns do prédio que dão acesso ao elevador, partindo do portão ou garagem. Além de tal medida cercear demasiadamente o direito de uso da propriedade, também fere outros direitos fundamentais. Além disso, em tempos de elevado grau de solidariedade, não se espera que os condomínios limitem que profissionais da saúde, atualmente responsáveis por salvar milhares de vidas (colocando a sua própria em risco), tenham tamanha restrição ao direito de propriedade. Assim, não há licitude, muito menos razoabilidade, obrigar, por exemplo, médico de sessenta e cinco anos acessar sua unidade no trigésimo andar pelas escadas, saindo ou regressando à sua unidade, após um dia de trabalho, ainda que esteja em serviço específico de atendimento a doentes da COVID-19. Sem prejuízo, é possível, por medida de segurança, que haja determinação para que os condôminos sujeitos aos maiores riscos de contágio (médicos, enfermeiros, dentistas, idosos, dentre outros) façam uso individual do elevador, proibindo que outro morador compartilhe o mesmo espaço. As questões de maior controvérsia, contudo, dizem respeito à limitação de acesso de áreas não essenciais, tais como piscina, academia, quadras esportivas, salão de festas, espaço "kids", salas de cinemas, entre outras áreas comuns dessa natureza. Quando do início da doença, enquanto ainda não se falava em pandemia, poderíamos entender ilícita a vedação total de uso de tais áreas comuns de lazer. Contudo, com o avançar da doença, as escolas, academias, clubes esportivos, cinemas, teatros, foram totalmente proibidos de funcionar9. A princípio, parece-nos, portanto, legítima (senão recomendável) a possibilidade de restrição das áreas comuns de lazer por tempo indeterminado, até que as autoridades médicas digam o contrário. Contudo, reconheça-se que, em tempos de reclusão compulsória, muitas famílias terão dificuldades de ficar confinadas em suas unidades autônomas, muitas com cinco ou seis membros familiares. A situação é ainda mais crítica quando imaginamos a presença de crianças em apartamentos. Assim, o condomínio poderá, em situações bastante específicas, controlar o uso de algumas áreas, estabelecendo, por exemplo, horários de reserva de uso individual por parte do condômino ou para uso do seu núcleo familiar, com quem já convive em sua unidade. Nessa mesma linha de raciocínio, o uso da academia pode, eventualmente, ser permitido com grandes limitações, por exemplo, a um morador por vez, em horário específico, previamente agendado e reservado, com a obrigação imposta ao condômino de comunicar ao condomínio o fim do período de uso para que haja uma limpeza específica da área, com o fito de evitar a contaminação dos objetos usados e pôr em risco a saúde dos demais moradores. A questão é distinta quanto à possibilidade de realização de festas e recepções no ambiente condominial e uso da piscina. Aqui a ponderação entre os direitos fundamentais de propriedade e à saúde da coletividade é relevante. É sabido que a aglomeração em festas com grande concentração de pessoas durante o período de quarentena põe em risco a saúde da coletividade de modo mais explícito, considerando que os números demonstram que a reunião de pessoas foi fator facilitador da propagação do vírus até agora. Nessa ponderação, é recomendável a proibição completa de festas nas áreas comuns e na própria unidade autônoma, considerando que a festa aumenta o fluxo de pessoas no ambiente condominial. O uso da piscina é também um aspecto que pode levar a decisões polêmicas por parte do condomínio. Abstraindo-se aqui do aspecto científico de ser ou não possível a transmissão do vírus pelo simples uso da piscina, ainda que isoladamente, pensamos que a solução pode ser a mesma sugerida para outros equipamentos de uso comum, salvo a hipótese de comprovação de que a piscina não é um facilitador de transmissão da COVID-19. Vale dizer, poderá o condomínio limitar o uso, permitindo, eventualmente, o uso individual, com hora marcada e reservada, afastando de riscos de contaminação os demais condôminos. A visita de pessoas ao condomínio também pode ser limitada, estabelecendo-se, por exemplo, a impossibilidade de visita de pessoas para a realização de festas, ou questões que não sejam eminentemente essenciais. Os corretores de imóveis, da mesma forma, ainda que autorizados pelos proprietários, também poderão sofrer limitação para acessarem o condomínio com terceiros interessados na comercialização de unidades autônomas. Embora essa medida seja bastante prejudicial ao proprietário do imóvel e, naturalmente, aos profissionais da intermediação imobiliária, pensamos que tal restrição protege a saúde dos condôminos e das demais pessoas que já trabalham no ambiente condominial. Inobstante a discussão a respeito da possibilidade ou não de ser limitada a locação por curta temporada, também nos parece lícito, nesse momento, impedir o uso das unidades por inquilinos dessa natureza. As obras nas áreas comuns ou mesmo nas unidades autônomas também devem ser suspensas. Somente devem prosseguir serviços comprovadamente emergenciais, cuja suspensão poderá acarretar maiores riscos aos condôminos (obras estruturais, por exemplo), ou para realização de serviços emergenciais, tais como, a manutenção de um vazamento de água em determinada unidade. Mesmo assim, o condomínio pode criar restrições, como uso de proteções adequadas, horário limitado e quantidade máxima de pessoas, sempre no intuito de evitar aglomerações. Para qualquer desses atos de proibição ou limitação nas áreas comuns, a competência decisória é assemblear. No entanto, a considerar a urgência em algumas ações, o síndico, havendo fundamento jurídico, conjuntamente com o corpo diretivo, pode adotar medidas antes da assembleia, que visem resguardar a saúde dos condôminos. Tais medidas, posteriormente, deverão necessariamente ser ratificadas em assembleia. Por último, existe outra questão que tem suscitado algumas dúvidas e que perpassa também por direitos da personalidade. Trata-se da discussão em torno de se poder, ou não, requerer aos condôminos e terceiros realizarem o exame para aferir a temperatura corporal. A questão é complexa: pode-se ou não impor a pessoa a realizar o teste de temperatura para ingressar no condomínio? Parece-nos que a solução está no espelhamento do que ocorre no ambiente público. Vale dizer, é normal que em aeroportos, rodoviárias, e outros ambientes públicos, haja barreiras sanitárias para se aferir a temperatura do corpo da pessoa, em função do interesse da coletividade. Assim, na ponderação entre o direito de a pessoa não ser obrigada a se submeter a tal exame e à saúde da coletividade, deve prevalecer o interesse da coletividade de condôminos. De qualquer forma, a aferição da temperatura deve ser realizada de modo a resguardar a intimidade, segurança e saúde do condômino ou terceiro. Assim, é possível, por exemplo, a utilização, de termômetro infravermelho, que permite a aferição, sem tocar na pessoa. Na hipótese de o condômino negar-se a realizar o exame, as restrições e limitações de uso da área comum podem ser ampliadas. Se houver provas suficientes que o condômino contaminado não atende às determinações de limitações, colocando em risco a vida dos demais moradores, medida judicial restritiva pode ser solicitada. Havendo a comprovação de sintomas da COVID-19, o condomínio, embora não possa proibir o acesso à residência do condômino (sobretudo porque o morador pode estar retornando do hospital para quarentena, por exemplo), pode avançar nas limitações de uso da propriedade, sob pena de multa por descumprimento. Imprescindível, contudo, resguardar o direito de privacidade do condômino, não sendo permitido ao condomínio revelar a identidade do infectado. 5. NOTAS CONCLUSIVAS O tema aqui enfrentado é polêmico em razão do trânsito necessário por vários pontos relacionados ao conflito de direito fundamentais como a vida, a saúde, a propriedade e a liberdade, de forma que não restam dúvidas que qualquer decisão a que se chegue no âmbito do condomínio, dependerá também de análise tópica e concreta. De toda forma, é importante destacar que os assuntos relacionados à prevenção da CONVID-19 devem ser levados muito a sério por toda a sociedade, devendo cada um tomar seus cuidados preventivos. Ademais, é dever do condômino não fazer uso da edificação de modo a prejudicar a segurança dos demais moradores (art. 1.336, IV, Código Civil). O condômino que teve contato direto ou indireto com qualquer pessoa infectada pelo vírus deve restringir ao máximo o uso das áreas comuns e, nesse caso, certamente não utilizar as áreas comuns de lazer. Para os condôminos que possuem os sintomas da COVID-19, recomenda-se quarentena domiciliar, nos termos das determinações do Ministério da Saúde. Essa obrigação decorre não apenas de recomendações sanitária, mas também dos deveres laterais da boa-fé objetiva. Confirmada a doença, sugere-se que o condômino leve tal informação para o síndico que, sem identificar o morador, deve fazer um comunicado sobre a confirmação de condômino identificado pelo vírus, de modo a restringir ainda mais o uso da edificação e aumentar as cautelas para evitar a transmissão. É tempo de solidariedade, renúncia e limitações. A sociedade poderá dar o seu exemplo e, em especial, aqueles que vivem em condomínio. Toscano de Brito é doutor e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor de Direito Civil da UFPB e da UNIESP, nos cursos de graduação e pós-graduação. Diretor Regional do IBRADIM-PB. Advogado. Alexandre Junqueira Gomide é mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Fundador e Diretor Estadual (SP) do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Advogado. __________ 1 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. 5. ed. vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. p. 99. 2 Segundo José de Oliveira Ascensão, a expressão 'propriedade absoluta' é equívoca, mas queria se referir à propriedade ilimitada. Criticando o caráter ilimitado, Ascensão afirma que "quando se fala de propriedade absoluta pensa-se normalmente no ius utendi, fruendi et abutendi, que se reporta ao Direito Romano. A este atribui a paternidade de todas as manifestações que esta concepção viria a ter. Possivelmente com injustiça. Basta pensar que o direito inglês foi pouco influenciado pelo direito romano, e todavia em país algum a titularidade dos bens assumiu um aspecto tão acentuadamente egoísta. Por exemplo, ainda hoje existem na Inglaterra os 'muros da inveja': um sujeito pode fazer erguer um muro unicamente com a finalidade de privar o seu vizinho de visitas ou luz, em que a este assista qualquer recurso para se opor ao acto emulativo". ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000. p. 139. 3 Em sentido próximo, o art. 2.170º, do Código Civil Português de 1867 declarava: "O direito de propriedade, e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange não têm outros limites senão aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário ou por disposição expressa da lei". 4 Parece-nos adequado o conceito de função social da propriedade conferido por Luciano Camargo Penteado. Para o autor, "a função social da propriedade é uma cláusula geral que onera as situações jurídicas de direito das coisas, impondo ao titular da mesma o dever de atuar: (i) de modo geral, sem ofender fins da comunidade política em que está estabelecido, determinando diferentes obrigações, sujeições e ônus, como situações jurídicas cujo conteúdo é o respeito ao meio ambiente sadio e equilibrado, o patrimônio histórico e cultural, bem como o atender a certos fins transindividuais, como a paz; (ii) de modo específico, quando titular de bens de produção, otimizando sua capacidade geradora, a fim de que compartilhe o benefício com a coletividade em que se insere. Em face disto, a função social da propriedade tem duas claras funções: 1) criar um espaço geral de licitude na atuação dos direitos sobre bens corpóreos e, ao mesmo tempo, programaticamente, 2) implementar políticas públicas no sentido de produtividade, para permitir um efeito redistributivo da propriedade para a comunidade em que o titular do direito se insere. (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 222). 5 Código Civil de 1916: Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reave-los do poder de quem quer que injustamente os possua. 6 Código Civil de 2002: Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. 7 Para tanto, verificar GOMIDE, Alexandre Junqueira. Novas limitações aos direitos de uso e fruição em condomínios edilícios. Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/305667/novas-limitacoes-aos-direitos-de-uso-e-fruicao-em-condominios-edilicios. Acesso em 25/03/2020. 8 Cf. ELIAS FILHO, Rubens Carmo e KARPAT, Rodrigo. Parecer sobre fechamento de áreas comuns e cancelamento de assembleias - OAB-SP. Publicado em: https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/direito-imobiliario/noticias/parecer-sobre-fechamento-de-areas-comuns-e-cancelamento-de-assembleias. Acesso em 25. mar. 2020. 9 Em São Paulo, o Decreto Municipal nº 59.283 de 16 de março de 2020 suspende o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e o funcionamento de casas noturnas e outras voltados à realização de festas e eventos ou recepções.
Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima Possivelmente este não será o primeiro artigo (nem o último) sobre os efeitos do COVID-19 aos contratos em curso em todo o país. Inspirado na iniciativa de outros colegas, como André Roberto Machado (que recentemente publicou no LinkedIn artigo sobre o tema), dediquei-me especificamente ao que antecipo como uma das consequências do COVID-19 no Poder Judiciário: teses e tentativas de resolução e revisão contratual por parte de locadores e locatários. Contextualizando, quase ao mesmo tempo em que as medidas de prevenção ao COVID-19 foram veiculadas, aí incluídos os decretos estaduais que fecharam parte do comércio, como shoppings centers, centros comerciais e lojas, locatários por todo o país passaram a notificar seus locadores, informando a impossibilidade de pagamento, requerendo isenção, revisão ou até resolução dos respectivos contratos de locação, sob o argumento de que os (devastadores) efeitos econômicos da novo coronavirus teriam levado à impossibilidade de adimplir com as obrigações estabelecidas. Em alguns casos mais sofisticados, as notificações vieram acompanhadas de alguns breves argumentos jurídicos, dentre os quais destaco um que chamou bastante a minha atenção: o COVID-19 e seus efeitos são fatos imprevisíveis que levam à onerosidade excessiva no pagamento do aluguel como pactuado, rompendo-se o equilíbrio contratual. A fim de satisfazer as pretensões deste breve artigo, pretende-se analisar o genérico fundamento acima. O desequilíbrio contratual e o enriquecimento sem causa são, sem dúvida, abominados pelo ordenamento jurídico pátrio. Não à toa, a criatividade legislativa e doutrinária buscou, ao longo dos anos, remédios aptos ao seu combate, sendo o mais destacado o instituto da Onerosidade Excessiva (que passaremos a denominar "OE"). Esculpida no art. 478 da lei 10.406/2002 ("CC"), a OE ocorre se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, nos contratos de prestação diferida ou continuada, levando à revisão1 ou à resolução contratual. Dentro do paradigma da "OE", o desequilíbrio se dá, então, entre as prestações e/ou obrigações das partes descritas no contrato, restando de um lado a onerosidade demasiada (com maior papel) e do outro a vantagem exagerada (com menor papel). Neste ponto, vale destacar que a OE não se confunde com outros institutos como a impossibilidade jurídica da prestação, o caso fortuito e a força maior2, a deterioração da coisa locada ou a revisão locatícia, não analisados no presente artigo. Isto posto, passa-se à premissa central de toda a discussão que cerca a OE (na verdade, todos os institutos aptos à modificação contratual): suas circunstâncias não são presumíveis. Atendendo ao "dogma" (mas que comporta exceção) do ônus probatório, esculpido no art. 373 da lei 13.105/2015 ("CPC"), se a OE é o fato constitutivo do direito à revisão ou resolução contratual, cabe ao alegante prová-la, arcando com as consequências jurídico-processuais desta condição. Nesse sentido, para se aplicar com responsabilidade a OE, é preciso entender que o desequilíbrio contratual superveniente não é algo que se avalia (ou prova) do ponto de vista subjetivo das partes, mas sim na perspectiva objetiva do contrato. Explicamos. Originariamente, na formação do contrato, a vontade das partes, os seus interesses, a alocação de riscos e, claro, os aspectos econômicos estruturam um complexo equilíbrio contratual, valendo lembrar os ensinamentos do saudoso Antônio Junqueira de Azevedo que, com a lucidez que lhe era característica, se referia às circunstancias negociais, enquanto fios condutores da eficácia jurídica da manifestação de vontade das partes3. Ou seja, é a partir destes aspectos subjetivos que se funda o equilíbrio contratual originário4. Fruto do subjetivismo das partes, seria equivocado pensar que o equilíbrio contratual se determina somente por fatores econômicos, sendo certo que a intenção e interesses das partes ao contratar é muito mais complexa do que simples dígitos ou valores, mesmo que, em muitos casos, sejam um fator ímpar para a sua conclusão. Esse equilíbrio contratual originário, fruto do subjetivismo que funda o contrato, sem dúvida, tem na sua delimitação um desafio à concretude, sendo (demasiadamente) laborioso tentar estabelecer o ponto exato de estabilidade5. Em outras palavras, dizer o que é o equilíbrio contratual casuisticamente é quase impossível. Contudo, e em especial pelo advento da Lei 13.874/2019, há uma presunção de que as relações contratuais, não submetidas aos diplomas protetivos de nosso ordenamento, são equilibradas, nos termos do art. 421-A do CC, destacando-se mais uma vez o ônus probatório acerca da OE. Assim, mesmo que não totalmente delimitado e, talvez, um pouco impreciso, é o equilíbrio contratual originário que servirá como parâmetro da verificação da OE, visando a proteção daquilo que cristalizou na conclusão do contrato6, passando a ser apreciado objetivamente. Permitindo um parêntese, essa metáfora da cristalização é certeira no que toca a concretização do equilíbrio contratual. Ele se dá no contrato e lá permanece; o equilíbrio é das prestações contratuais e não das partes; o que era subjetivo agora é objetivo. E, é sobre este, agora objetivo, equilíbrio que se debruça a investigação acerca da OE. Aspectos subjetivos do devedor da prestação como endividamento, mal caminhar de suas atividades econômicas, perda ou suspensão de vínculo laboral e outras mazelas não podem, em tese, levar ao reconhecimento da OE, por se tratarem de elementos subjetivos supervenientes ao contrato7. O que se pretende verificar na OE é se o acontecimento superveniente diz respeito e afeta a lógica por trás das prestações contratuais; se algo altera a dinâmica prescrita, a ponto de produzir um grande descompasso no que antes estava equilibrado. E, assim, serve o reconhecimento da OE para que não se encontrem as partes fora da realidade do seu querer originário ou vitimadas pela impossibilidade de cumprimento da avença8. Como muito bem destaca Ricardo Pereira Lira, sempre à frente de seu tempo, não se trata de dificuldade de adimplemento, mas sim de uma avaliação objetiva da prestação, em si e por si9, não se podendo falar em uma apreciação subjetiva da situação das partes contratantes. Para que não passe em branco, necessário falar do outro requisito da OE: a extrema vantagem, muitas vezes referenciada como mero elemento acidental10, consequência da onerosidade demasiada em si. Vale lembrar Carlos Maximiliano, que já afirmava não se poder presumir palavras supérfluas ou inúteis na Lei, sem prejuízo de se fazer valer seu espírito11. Em verdade, se pensarmos no desequilíbrio como o deslocamento do fiel da balança, forçoso visualizar subida vertiginosa de um dos "pratos", com a queda do outro. Esta é a imagem que melhor descreve a OE. Por esta razão, por mais que não seja um requisito peremptório, a extrema vantagem deve ser entendida como, ao menos, elemento balizador12 para caracterização da OE. Outro importante requisito, é a imprevisibilidade e extraordinariedade do evento, que deverá importar na verificação de alea anormal, absolutamente distante da alocação de riscos pretendido pelas partes13 naquele já mencionado equilíbrio originário. Nesse sentido, o enunciado 366 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (utilizado com frequência pela melhor jurisprudência nacional14) comporta integralmente a conclusão acima: "O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação". Trata-se, portanto, a imprevisibilidade de fundamental elemento para a ocorrência da OE15, mas que deve cerrar fileira com os demais, sob pena de insuficiência. Finalmente, a OE se verifica somente naqueles contratos de execução diferida e continuada, ou seja, naqueles que estabelecem o cumprimento de obrigações futuras e que se prolongam no tempo16. Feitos estes breves esclarecimentos acerca da OE, retomamos o argumento exposto no princípio. A locação urbana, regida pela Lei 8.245/91, por óbvio não se apresenta como um negócio isolado, inabalável por qualquer intempere17, sofrendo incidência direta das normas descritas no Código Civil. Contudo, pretender genericamente a caraterização da OE por eventos, mesmo que notórios, é esvaziar o significado do instituto e produzir efeito ainda mais nefasto: insegurança jurídica. Dentro desta lógica, vale lembrar que a OE (na verdade, a revisão contratual em geral) é sempre excepcional, tendo, inclusive, recebido críticas por se tratar de hipótese remota de ocorrência18. Passemos ao cotejamento do caso concreto com os esclarecimentos feitos acima. Quanto à imprevisibilidade, neste ponto, não parece absurdo entender o COVID-19 como um evento imprevisível e extraordinário em relação à alocação dos riscos contratuais de maneira geral, desde que naqueles pactos celebrados com certa distância temporal dos eventos da pandemia. Isto porque, em função das necessidades de combate da proliferação do novo Coranavirus, diversos novos contratos vêm sendo firmados já inseridos nesse novo contexto. Igualmente, não se pode duvidar que a locação urbana é contrato de execução diferida e continuada. Desta feita, a controvérsia repousa nos elementos mais centrais da OE: a onerosidade demasiada de um contratante em relação à vantagem extrema do outro. Por mais catastrófica que seja a pandemia do COVID-19, com nefastos resultados para a vida patrimonial de grande parcela dos brasileiros, tal fato não importa per se na modificação do equilíbrio contratual originário, mas sim em modificações subjetivas das partes contratantes. Já discorremos acima que estas dificuldades no cumprimento, mesmo que oriundas de um evento imprevisível e extraordinário, não são capazes de alterar o equilíbrio das prestações contratuais. Pensando no contrato de locação: mesmo durante a pandemia, pelo valor "x" se loca o imóvel "y", sem alteração desta dinâmica. Refletindo sobre a onerosidade demasiada de umas partes, faz sentido buscar o balizador da extrema vantagem para afastar em definitivo a ocorrência da OE. Assim, indagamos: qual seria a vantagem extrema da outra parte? Receber o aluguel pactuado em tempos difíceis? Não nos parece razoável entender como vantagem extrema o mero adimplemento da obrigação. Os aspectos subjetivos dos contratantes, dentro do paradigma da OE, não tornam o adimplemento algo excepcional. Mais uma vez, reforça-se a ressalva de que não tratamos neste artigo de outros cenários aptos a modificar ou afetar a relação contratual (e, talvez, aplicáveis à pandemia do COVID-19), mas tão somente da OE aos contratos de locação. Finalmente, forçoso lembrar que não há presunção da OE. Em exercício de quase vidência, não seria impossível imaginar que, em determinado caso concreto, com específicas considerações contratuais, possa ser caracterizada a OE por eventos decorrentes da pandemia. Contudo, tal ônus paira sobre o alegante. Em conclusão, construir uma relação causa-efeito genérica entre o novo Coronavírus e a OE nos contratos de locação, isto sim, é impensável, correndo-se o risco de que se subverter a excepcional lógica da OE, instituto fundamental para a proteção de outras relações que dela merecem a tutela. Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Privado Patrimonial pela PUC-Rio. Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela UCAM. Vice-presidente da CDI do IAB. Secretário-geral da CDUDI da OAB/RJ. __________ 1 Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual." 2 WANDERER, Bertrand. A inaplicabilidade, em regra, dos institutos da lesão e da onerosidade excessiva aos contratos interempresariais. Universidade de Brasília (Dissertação de Mestrado), 2013. Pág. 110 3 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição atualizada de acordo com o novo Código Civil. Saraiva, 2002. Pág. 17 4 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. A onerosidade excessiva no direito civil brasileiro. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2010. Pág. 95. 5 LEAL, Larissa Maria de Moraes; ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. A resolução do contrato por onerosidade excessiva no Código Civil Brasileiro de 2002 e sua aplicação no Superior Tribunal de Justiça. Revista Jurídica da FA7, nº 13, Fortaleza, 2016. Pág. 55 6 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. A onerosidade excessiva no direito civil brasileiro. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2010. Pág. 98. 7 Idem. Pág. 98. 8 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. Disponível em https://ablj.org.br/revistas/revista36e37/revista36e37%20%C3%81LVARO%20VILLA%C3%87A%20AZEVEDO%20Inaplicabilidade%20da%20teoria%20da%20imprevis%C3%A3o%20e%20onerosidade%20excessiva%20na%20extin%C3%A7%C3%A3o%20dos%20contratos.pdf. Pág. 65 9 PEREIRA LIRA, Ricardo. A onerosidade excessiva nos contratos. Revista de Direito Administrativo, 1985. Pág 11. 10 WANDERER, Bertrand. A inaplicabilidade, em regra, dos institutos da lesão e da onerosidade excessiva aos contratos interempresariais. Dissertação (mestrado) - Universidade de Brasília, 2013. Pág. 113 11 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 16ª Ed, Forense, Rio de Janeiro, 1997. Pág. 251 12 GOMES, Orlando. Contratos, 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Pág. 215 13 SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A onerosidade excessiva nos contratos aleatórios. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2014. Pág. 32. 14 TJ-RJ - APL: 00400202120068190001 RJ 0040020-21.2006.8.19.0001, Relator: DES. GABRIEL DE OLIVEIRA ZEFIRO, Data de Julgamento: 20/03/2013, DÉCIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 18/12/2013 10:32; STJ - AREsp: 1005264 MS 2016/0280372-3, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 13/12/2017; TJ-SP - APL: 02605225920078260100 SP 0260522-59.2007.8.26.0100, Relator: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 25/03/2013, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/03/2013. 15 SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A onerosidade excessiva nos contratos aleatórios. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2014. Pág. 132 16 BARCELOS, Soraya Marina. Fundamentos da obrigatoriedade dos contratos: o interesse social no contexto da imprevisão. Revista Jurisprudência Mineira, nº 194, Belo Horizonte, 2010. Pág. 32 17 WALD. Arnoldo. Direito Civil. Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 310. 18 HORA NETO, João. A resolução por onerosidade excessiva no novo código civil: uma quimera jurídica?. Revista da ESMESE, nº 04, 2003. Pág. 50.
Texto de autoria de Alceu Nascimento Introdução Estamos diante de uma crise de saúde pública decorrente do vírus COVID-19 que originou na asia e se espalhou pelo mundo rapidamente, atingindo mais de 300.000 individuos. Governos de todo o mundo têm tomado medidas agressivas para conter a epidemia, incluindo a restrição de locomoção e de atividades. Esta a situação de emergência, considerando as medidas anticontágio adotadas pelas partes ou pelo poder público, pode deflagrar sérios problemas nas atividades econômicas e introduzir algumas incertezas quanto à alocação dos riscos nos contratos em execução, podendo, inclusive, ser possível aventar a possibilidade uma substancial renegociação dos contratos, especialmente se for qualificado como um evento de força maior1. Desta forma, é imperativo analisar os efeitos nos contrato de locação de imóveis comerciais, tais como lojas de shopping center, galerias e centros comerciais, pois estes imóveis estão sendo indicados nas medidas anticontágio como elementos de risco à propagação da epidemia. Mais especificamente, é preciso analisar qual a influência do surto do COVID-19 e de seus efeitos na atividade econômica nas obrigações de pagar aluguel do locatários. Em razão das medidas anticontágio em vigor, é possível cogitar dois cenários distintos, baseado na forma em que o poder público implementa as medidas anticontágio. De um lado, é possível que em alguns locais haja determinação expressa da autoridade pública para a cessação das atividades comerciais não essenciais e, de outro, onde haja apenas uma recomendação de suspensão. Para este estudo, consideraremos, tanto que os atos do governo federal não impõem qualquer restrição geral à atividade econômica2, quanto a opção do gestor público no Estado do Paraná, em que houve apenas a sugestão de que "seja considerada a suspensão das seguintes atividades [...] shopping centers, galerias e centros comerciais"3 e não uma proibição expressa. Igualmente, para este artigo, se considera que a obrigação de pagar os alugueis é uma contraprestação devida em função do locador estar adimplente com a prestação de disponibilizar o bem imóvel locado, afastando-se qualquer discussão de exceção de contrato não cumprido. Ou seja, analisa-se o cenário em que não houve uma decisão discricionária do locador em fechar as instalações prediais, impedindo o acesso do público em geral. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Optamos por usar força maior como conceito intercambiável com caso fortuito por terem o mesmo efeito para as finalidades deste estudo. 2 A lei 13.979/20 prevê restrições apenas para pessoas doentes (isolamento) e para pessoas com suspeitas de contaminação (quarentena). Não há uma determinação irrestrita de supressão da atividade comercial. 3 Ver decreto Estadual 4.301 de 19/3/2020, com redação dada pelo decreto Estadual nº 4.311 de 20/3/2020.
terça-feira, 24 de março de 2020

Covid-19 e o impacto nos contratos imobiliários

Texto de autoria de André Roberto de Souza Machado O novo coronavírus (COVID-19) está provocando impactos em todo o planeta e em todos os seguimentos, não há situação imune. Por evidente que um mercado tão sensível às crises, como é o mercado imobiliário, não passaria incólume às consequências da pandemia. Afinal, contratos imobiliários estabelecem, de um modo geral, relações jurídicas e econômicas de longa duração e envolvendo o dispêndio de valores significativos para as partes contratantes. Tomemos como primeira hipótese para reflexão, o contrato de empreitada celebrado entre uma construtora e um incorporador, com o escopo de realizar a edificação de um empreendimento residencial, sob a modalidade de empreitada global, a preço certo e prazo determinado. Pela inteligência dos artigos 619 e 620¹, do Código Civil brasileiro, o empreiteiro construtor assume como regra os riscos da oscilação dos custos de mão-de-obra e de materiais, bem como os riscos ordinários quanto ao prazo de conclusão das obras. Sua responsabilidade perante o incorporador é contratual e, salvo disposição em contrário, regida pelo Código Civil. Contudo, se houver determinação do Poder Público que imponha a paralisação das obras ou que, indiretamente, restrinja o acesso dos empregados ao canteiro de obras ou, ainda, que acarrete escassez de materiais no mercado, por consequência, a execução do contrato de empreitada será afetada, com possibilidade de impacto no prazo, no custo ou nos dois simultaneamente. Tal cenário pode, também, ser observado em casos de afastamento de profissionais em virtude direta da contaminação e do tratamento dos sintomas do COVID-19. Em tais circunstâncias, estará o empreiteiro construtor amparado pelas exceções do artigo 393² (exclusão de responsabilidade por caso fortuito ou de força maior) e do artigo 478³ (revisão ou resolução por excessiva onerosidade superveniente)? Parece-nos que sim, uma vez que se encontrariam presentes os pressupostos legais para amparar a pretensão, senão vejamos: No caso de impossibilidade de execução das obras pelo construtor, no todo ou em parte, em razão do novo coronavirus, as consequências de seu inadimplemento seriam mitigadas pelas excludentes de Fato do Príncipe e/ou de Força Maior, afastando a mora voluntária e seus efeitos, tais como multas, juros de mora, danos emergentes e lucros cessantes associados direta e imediatamente ao atraso (artigos 393 c/c 403, ambos do Código Civil). Assim, o incorporador estaria impedido de imputar ao empreiteiro os encargos exemplificados, salvo se houver sido prevista cláusula expressa em contrário, o que no caso do COVID-19 dependeria de as partes terem "adivinhado" a ocorrência de um fato tão extraordinário. Mas isto não significa que o prejuízo seria suportado exclusivamente pelo incorporador pois, afinal, também ele não teria culpa pelos acontecimentos, não podendo ser obrigado a pagar por medições de obra ainda não concluídas, nem por custos trabalhistas durante o período de suspensão da execução das obras, mesmo que tal fato venha a onerar a folha de pagamento do construtor. Já custos com o aumento extraordinário do preço de materiais e de outras despesas abrangidas pelo contrato poderão ser considerados legítimos para que o empreiteiro pleiteie a revisão do preço global contratado, invocando a incidência do artigo 478, do Código Civil, uma vez preenchidos os requisitos legais respectivos, a saber: 1) Desequilíbrio econômico-financeiro, acarretando onerosidade excessiva para um dos contratantes em comparação à prestação oposta: este requisito é fundamental e o ponto de partida para que se possa cogitar aplicar o disposto no artigo 478. Isto significa que o direito civil brasileiro positivou o desequilíbrio objetivo, a perda da equivalência (ou comutatividade) entre as prestações, originalmente esperada pelos contratantes. Assim, não basta que ocorra um desencaixe financeiro para um dos contratantes e que tal acontecimento dificulte a continuidade dos pagamentos, mas sim que ocorra um desequilíbrio entre o valor da prestação exigida (no caso, a construção) e o da contraprestação recebida (neste caso, o preço). 2) Acontecimento superveniente, extraordinário e imprevisível: o fato gerador ou a consequência gerada devem se traduzir em um acontecimento superveniente ao momento da contratação (acontecimentos anteriores, mesmo quando descobertos depois4, não se enquadram para esse fim); extraordinário ao risco próprio do que foi contratado e que se encontra expressa ou implicitamente abrangido pelo negócio; imprevisível, isto é, que as partes não puderam prever, mesmo atuando com a diligência normal esperada; 3) Contrato de execução futura (continuada ou diferida): é indispensável que a discussão se opere sobre prestações futuras e ainda não vencidas ao tempo da superveniência do acontecimento que ocasionou a onerosidade excessiva, como no exemplo, seria a elevação acentuada do preço dos insumos. Atente-se que no caso de prestações executadas anteriormente, ainda quando o acontecimento superveniente afete a expectativa de lucro, não se enquadra nos institutos ora sob exame. Uma vez verificada a presença de todos os pressupostos, poderia ser formulado pedido de revisão judicial do contrato, com o objetivo de afastar o desequilíbrio, através de uma sentença que venha a arbitrar um novo valor para a empreitada ou novas condições objetivas de cumprimento do contrato, tal como preceituam os artigos 317 e 479, do Código Civil. A alternativa da revisão, ao contrário de um pedido de resolução do contrato, teria a vantagem de conservar a relação contratual vigente e, com isso, permitir que a atividade econômica relacionada não fosse definitivamente frustrada. Por outro lado, caso o empreiteiro já se encontrasse em mora ao tempo da ocorrência do fato superveniente que acarretou maior onerosidade, dificilmente encontraria acolhida para uma pretensão revisional ou mesmo resolutória, uma vez que o artigo 3995, do Código Civil, pois como a prova de isenção de culpa a que se refere o legislador diz respeito ao fato anterior que o colocou em mora, e não ao evento superveniente (COVID-19) que onerou ou impossibilitou a prestação, seria objetiva a sua responsabilidade pelos riscos de agravamento ou mesmo impossibilidade da prestação durante o atraso. Na outra ponta da operação econômica, entretanto, se encontram os adquirentes das unidades residenciais em construção, consumidores finais cuja relação contratual se encontra regida pelo Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990) e, neste outro contexto normativo, poderia o incorporador, fornecedor do empreendimento imobiliário, exercer pretensões equivalentes àqueles alegadas pelo empreiteiro? Sem dúvida que aqui a questão é distinta e mais delicada, por envolver a possibilidade ou não de se enquadrar a hipótese como um fortuito externo ao risco do empreendimento e, com isso, romper o nexo causal essencial para a responsabilidade objetiva do fornecedor. A nosso ver, contudo, o COVID-19 possui todas a características para ser enquadrado como fortuito externo à atividade do incorporador, afastando, por conseguinte, a sua responsabilidade pela eventual mora na entrega das chaves, desde que comprovadamente decorrente das atuais e excepcionais circunstâncias, independente do atraso superar o prazo de tolerância de 180 dias. Desse modo, ao que nos parece, não incidiriam os encargos moratórios e nem o dever de indenizar pelo período de atraso associado ao novo coronavirus. Já o aumento de custos dos insumos tenderia a ser absorvido pelo reajuste contratual atrelado ao INCC ou outro índice apropriado, possibilitando um repasse em momento posterior, ao preço final da unidade. Esse aumento só se mostraria um problema efetivo se o mesmo provocar um descasamento entre o valor de mercado do imóvel e o preço reajustado contratualmente, de forma a ensejar hipótese concreta de excessiva onerosidade superveniente para o consumidor. Em se tratando de relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro adotou uma teoria correlata, denominada Teoria da Base Objetiva ou Quebra da Base, no art. 6º, V, do referido diploma legal. Seus pressupostos diferem daqueles exigidos pela Código Civil, tornando mais flexível a sua aplicação. É fundamental ter em vista que para invocar esta teoria será preciso que o adquirente concretamente se enquadre como consumidor, para estar amparado pelo rol de direitos básicos definidos no mencionado Código de Defesa do Consumidor6. Pelo disposto no art. 6º, V, do CDC, é direito básico do consumidor a revisão do contrato de consumo quando, por fato superveniente, sobrevier onerosidade excessiva para o consumidor. Dispensou-se, assim, o requisito da imprevisão, limitando-se a lei a exigir que o fato seja superveniente e seja extraordinário às condições originalmente pactuadas, acarretando excessiva onerosidade para o consumidor. Assim sendo, na hipótese descrita, parece perfeitamente possível ao consumidor pleitear uma revisão de preço que, em função de um repasse acentuado de custos extraordinariamente inflacionados pelo COVID-19, tenham tornado desequilibrada a relação de equivalência entre o valor do bem adquirido e o preço a ser pago por ele, independente de se estabelecer, em discussão mais profunda, os fundamentos da variação que tenha tornado a operação excessivamente onerosa. Refiro-me a um eventual pedido de revisão pelo consumidor adquirente, por não vislumbrar de imediato uma legítima pretensão à resolução do contrato, a popular rescisão de contrato, uma vez que, para isso, a prestação (imóvel) precisaria perder substancialmente a sua utilidade para o adquirente, a ponto de caracterizar um inadimplemento absoluto. Não me parece que isso ocorreria de forma generalizada e automática. Outra operação imobiliária que consideramos, para tecer estas primeiras reflexões, foi a de natureza locatícia, especialmente aquela relacionada à locação não residencial de lojas e salas comerciais em shopping center e em centros comerciais congêneres. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o Poder Executivo determinou o fechamento dos shoppings centers e estabelecimentos congêneres (Decreto 46.973/2020), impedindo o funcionamento das mais variadas atividades ofertadas nesses estabelecimentos. As despesas correntes, entretanto e a priori, continuarão a ser exigidas desses mesmos lojistas, dentre elas o aluguel mensal pelo uso dos imóveis locados no interior desses empreendimentos comerciais e as cotas de manutenção das áreas comuns. Ocorre que a sinalagma estabelecida neste tipo de contrato estará nitidamente afetada, quer pelo desequilíbrio superveniente entre o custo (aluguel e encargos) e o proveito (uso regular da coisa e dos serviços agregados), quer até mesmo pela absoluta destruição da contraprestação no caso de fechamento compulsório e absoluto desses estabelecimentos comerciais. No primeiro caso, em que se esteja diante de um proveito reduzido, mas ainda existente, o valor de troca terá se tornado desproporcional, a ensejar possivelmente a sua revisão com fundamento nas denominadas Teoria da Imprevisão ou Teoria da Onerosidade Excessiva, previstas nos artigos 317 e 478, ambos do Código Civil Brasileiro, situação que poderá se verificar também em outras tantas relações contratuais comerciais e civis. Todavia, como já apontado acima, merece atenção redobrada a verificação da presença dos pressupostos legais exigíveis para o acolhimento de pretensões dessa natureza, de forma que realmente sejam aplicáveis uma das Teorias mencionadas e não se acabe gerando mais frustrações, em virtude de uma má compreensão do âmbito de aplicação. No segundo caso, em se tratando de impossibilidade absoluta de funcionamento do shopping center ou centro comercial congênere, parece-me que estaremos diante da total ausência de contraprestação, tornando inexigível o aluguel e demais consectários do período, sendo hipótese de inadimplemento não culposo do empreendedor locador que, embora lhe afaste o dever de indenizar o lojista locatário por lucro cessante, o impediria de cobrar as contraprestações respectivas, justamente pelo contrato não cumprido (inteligência do artigo 4767, do Código Civil) A redução do aluguel, equitativamente à redução do proveito do empreendimento imobiliário ou mesmo a ausência de aluguel no período de fechamento compulsório, é medida perfeitamente compatível com os parâmetros legais da Teoria da Imprevisão e da Exceção de Contrato não Cumprido. De sorte que o aluguel somente retornaria ao parâmetro originalmente contratado após a cessação da causa de desequilíbrio ou de impossibilidade. Concluindo, o caso do COVID-19 tem tudo para reverberar durante anos em nossos tribunais e em nossa literatura jurídica, exigindo uma necessária (re) leitura de suas bases teóricas e referências empíricas, a fim de que se assegure uma resposta ao mesmo tempo justa e adequada ao caso concreto, sem descuidar de seus preceitos objetivos, para que não se acuse a correta aplicação das teorias mencionadas de serem um indevido "atentado ao pacta sunt servanda". André Roberto de Souza Machado é advogado e professor de Direito Contratual, cofundador de SMGA Advogados e membro da Comissão de Negócios Imobiliários do IBRADIM. Doutorando em Direitos, Instituições e Negócios e Mestre em Direito das Relações Econômicas. __________ 1 Art. 619. Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra. Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou. Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada. 2 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 3 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 4 Não confundir com institutos como a lesão, o erro ou o dolo. 5 Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 6 Conforme já afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp n. 1.321.614-SP. 7 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Texto de autoria de André Luiz Junqueira 1. INTRODUÇÃO Não é incomum se encontrar em convenções de condomínios antigas previsão sobre moléstias contagiosas. Desde que existe compartilhamento de posse/propriedade, sempre houve o receio com doenças que poderiam ser facilmente disseminadas em ambiente coletivo. Roma temia a lepra (hanseníase), a "Peste Negra" (leptospirose) na Europa da Era Medieval e por aí vai. O avanço das ciências biomédicas gerou uma relativa segurança da sociedade contemporânea, tanto que não se vê mais com tanta frequência previsão sobre doenças em convenções. Por outro lado, essa sensação de segurança de vez em quando é desafiada, agora é a vez do novo Coronavírus (COVID-19). Seguindo a essência do Direito de Vizinhança, o artigo 1.336, IV, do Código Civil Brasileiro (CCB) determina que é dever do condômino não prejudicar a saúde dos demais. Fazendo uma leitura conjunta com as atribuições do síndico previstas no art. 1.348, também do Código Civil, chega-se à conclusão de que cabe ao condomínio fiscalizar tal dever, especialmente no que toca o uso das partes comuns e exposição aos demais condôminos e ocupantes. Muito embora os vizinhos também possam tomar suas medidas individuais, com base no art. 1.277 do CCB. Esse breve trabalho tem como objetivo listar de forma sumaríssima quais medidas um condomínio pode adotar para combater doenças infectocontagiosas, mas com fundamento administrativo e jurídico. Em primeiro lugar, deve-se atentar que, quando se fala em formas de conter doenças, há necessidade de fundamento biomédico para se promover determinada ação condominial. Citam-se duas fontes que podem ser utilizadas como base para determinada ação do condomínio: ato público ou parecer de profissional ou entidade especializada em doenças infectocontagiosas. Levando em conta que todas ou quase todas as medidas provavelmente restringirão os condôminos/ocupantes em suas propriedades/posses, é imperativo que as ações tenham fundamento técnico. Tal fundamento pode ser retirado de um Decreto do Poder Executivo, de uma orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS), de uma regra da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), dentre outros. Em resumo, não se deve tomar medidas sem consultar um especialista antes. 2. RESTRIÇÕES DE ACESSO À EDIFICAÇÃO - SERVIÇO ESSENCIAL Dependendo de como é o acesso ao condomínio, a porta de entrada pode ser um foco de contágio, uma vez que pode ser tocada por um número muito grande de pessoas. Nesse caso, o ideal é viabilizar a abertura remota da porta. Se existe um porteiro com esse acionamento remoto, é o que deve ser priorizado, bem como qualquer outra forma disponível. A utilização do sistema de entrada e saída através de identificação biométrica deve ser evitada também e pelos mesmos motivos. Como se trata de forma de acesso à edificação, é possível se regulamentar tal acesso, mas não se deve proibir que novos moradores/ocupantes ou visitantes adentrem o condomínio quando autorizados pelo proprietário da unidade, salvo hipótese extrema, como uma quarentena rígida imposta pelo Poder Público - como a feita na China, proibindo entrada de visitantes em prédios. Não se pode deixar de mencionar a importância de se proibir atividades de hospedagem, como as negociadas via Airbnb ou Booking, pois têm natureza não residencial e expõe a coletividade à grande rotatividade e, consequentemente, risco de contágio. Muito embora, dadas as circunstâncias, seria de grande ousadia alguém se arriscar oferecer hospedagem ou se hospedar nesse momento. 3. RESTRIÇÕES DE USO DO ELEVADOR, ESCADAS E DEMAIS DEPENDÊNCIAS DE ACESSO - SERVIÇO ESSENCIAL A preocupação com o elevador se funda no espaço curto entre os usuários dentro do aparelho de transporte em ambiente fechado e ventilação limitada ou inexistente. Sem eliminar o uso do elevador, é possível reduzir o limite de pessoas que podem utilizar o elevador ao mesmo tempo, deixando esse limite facultativo para os ocupantes da mesma unidade imobiliária ou quem mais desejar. Cautela extra se impõe com os botões do elevador (internos e externos) que se tornam também focos de contágio. Também é possível implementar restrições semelhantes para o uso das escadas e outras dependências de acesso (como a portaria e corredores), mas com avaliação proporcional do tamanho do ambiente e, especialmente, sem prevalecer em caso de escape - situação em que naturalmente se terá maior quantidade de pessoas utilizando a parte comum como fuga. 4. INTERDIÇÃO PARCIAL OU TOTAL DE ÁREAS COMUNS NÃO ESSENCIAIS Piscina, academia, salão de festas, sauna, quadra poliesportiva e outros espaços semelhantes podem ser fechados ou impostas regras que reduzam seu funcionamento (redução de horários ou de pessoas utilizando simultaneamente). Muito embora tal determinação afete de forma direta a propriedade dos condôminos, ainda maior é o prejuízo em potencial à saúde coletiva. 5. FORMALIDADE PARA A ADOÇÃO DAS MEDIDAS MENCIONADAS Em se tratando de uso de áreas comuns, a competência para se criar regras é da assembleia. No entanto, dependendo do embasamento, o síndico pode e deve tomar as decisões que entender mais adequadas para resguardar a saúde dos ocupantes da edificação. Posteriormente, mas oportunamente, convocará assembleia para prestar contas de seus atos e ratificar suas decisões ou o responsabilizar por elas. Essencial que tenha fundamento jurídico para cada ato que praticou para evitar ser responsabilizado cível, criminal e administrativamente. Porém, a própria realização de assembleia pode ser um fato nocivo à saúde dos condôminos - ponto que será avaliado a seguir. 6. ASSEMBLEIAS - REUNIÃO VIRTUAL - VOTO À DISTÂNCIA - VOTO POR ESCRITO - ASSEMBLEIA PERMANENTE Mais preparados são os condomínios que já fazem uso de tecnologia para viabilizar a participação de condôminos à distância - o que pode ser facilmente implementado com avaliação de seu jurídico. Participação e voto viabilizado por, por exemplo, whatsapp, skype, zoom etc. Com a adequada preparação jurídica, a parte presencial da assembleia pode ser substituída por uma conferência online em tempo real e coleta individualizada de voto, também à distância. Sob outro aspecto, embora não tão eficiente, também os condomínios que já regulamentaram internamente forma de se realizar assembleias permanentes, também podem minimizar o contato coletivo, estabelecendo sessões de deliberação com um pequeno número de pessoas. O uso dessa via também deve ser bem trabalhado pelo jurídico do condomínio, para evitar fraudes ou invalidação judicial. Se nenhuma das hipóteses acima puderem ser utilizadas, somente as assembleias imprescindíveis devem ser realizadas. Para tanto, deve-se ter em mente o seguinte: - Realizá-las em ambiente aberto, mesmo que não seja o costume; - Permitir em caráter excepcional, envio de votos por escrito (que, na prática, não é diferente de uma procuração), preferencialmente, digitalizados; - Substituir a lista de presença por gravação e/ou registro da presença pela presidência da assembleia; - Declarar como prejudicados itens que possam ser adiados, encurtando o tempo da assembleia presencial; - Reduzir o tempo de duração da reunião com uma condução mais célere pelo presidente e fechando a ata nos dias seguintes; - Deixar espaço físico obrigatório entre os participantes e exigir o uso de máscaras; - Barrar a participação de pessoas que aparentem ter problemas de saúde - claramente é uma discriminação e ineficiente, levando em conta que nem sempre um portador de doença infectocontagiosa apresenta sintomas, mas trata-se de filtro que reduz os riscos e a pessoa pode enviar procurador para representá-la. Um grande receio dos condomínios é para o item de eleição de síndico que, se não votado, poderá prejudicar a representação do condomínio perante bancos e a Receita Federal. Apesar de ser uma preocupação válida, entende-se que, sob o risco de contágio, há fundamentação jurídica suficiente para se obter autorização excepcional para manter tal representação perante terceiros, mesmo que com o apoio do Poder Judiciário. Deve-se ter em mente que dificilmente o Poder Judiciário invalidará assembleia que teve o máximo de cautelas jurídicas por uma ou outra falta de conformidade, especialmente considerando o risco de contágio. Se dará mais atenção ao conteúdo do que a forma. Por essa razão, é importante que se discutam apenas itens essenciais, que não demandem quórum qualificado e que cada passo tenha fundamento de fato e de direito. 7. DAS OBRIGAÇÕES DE PROTEÇÃO E INFORMAÇÃO DE QUEM ESTÁ DOENTE OU COM SUSPEITA Todo condômino tem o dever de não prejudicar a segurança, saúde, sossego dos demais e respeitar os bons costumes (art. 1.336, IV, do CCB). Por essa razão, dependendo do risco, pode-se exigir que: - Se utilizem máscaras e luvas descartáveis enquanto estiverem em qualquer parte comum, especialmente em áreas confinadas, como o elevador; - Que comuniquem ao condomínio suspeita ou confirmação de existência de doença infectocontagiosa que possa afetar os demais. 8. CONCLUSÃO Mesmo sem autorização da assembleia, o síndico pode comandar gastos relacionados a equipamentos de proteção individual (EPI) para seus funcionários (máscaras, luvas, água e sabão para os funcionários, assim como álcool em gel ou líquido 70% para a limpeza de superfícies). Também é recomendável a instalação de dispensers com álcool em gel nas áreas comuns do condomínio, embora o fornecimento de álcool seja um custo, é uma vantagem para o condomínio mantendo o ambiente mais limpo e diminuindo a disseminação do vírus nas áreas comuns. Vale lembrar que o SUS desenvolveu um aplicativo com o objetivo de conscientizar a população sobre o COVID-19, e para isso, o aplicativo conta com diversas funcionalidades e ainda realiza uma triagem virtual, indicando se é necessário ou não a ida ao hospital em caso de suspeita e infecção do Coronavírus. Essa informação precisa ser disseminada entre os ocupantes, funcionários e prestadores de serviço do prédio. Por fim, o descumprimento de regras que visam proteger a saúde dos ocupantes está sujeito à multa e outras medidas judiciais de emergência. Destacando que são crimes contra a saúde pública propagar doenças (art. 267 do Código Penal - CP) e descumprir determinações do poder público para evitar propagação de doença contagiosas (art. 268 do CP). O gestor condominial deve ter a cautela de solicitar parecer do seu jurídico antes de praticar qualquer dos atos mencionados ou recomendados nesse trabalho. André Luiz Junqueira é professor, advogado e autor do livro "Condomínios - Direitos & Deveres". Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Certificado em Negotiation and Leadership pela Universidade de Harvard (HLS). Professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RJ, SECOVIRio, ABADI, ABAMI e GáborRH. Membro da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário (CDUDI) da OAB/RJ, Coordenador do Grupo de Trabalhos de Condomínios. Membro da Comissão de Turismo (CT) da OAB/RJ. Membro e ex-diretor jurídico da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI). Conselheiro do Núcleo de Estudo e Evolução do Direito (NEED). Colunista dos portais SíndicoNet e Universo Condomínio. Consultor da Revista Condomínio etc. da empresa CIPA e da Revista Síndico da empresa APSA. Sócio titular da Coelho, Junqueira & Roque Advogados.
Texto de autoria de Rogério Camello Introdução Atribui-se a origem da multipropriedade à França nos finais dos anos 60, atualmente difundido por vários países, como Estados Unidos, Itália, Espanha e Portugal1. No Brasil, conforme Maya Garcia2, o primeiro empreendimento em multipropriedade nasceu em 1983, o condomínio Paubá Canto-Sul, e naquela oportunidade não havia nenhuma legislação sobre o assunto. Antes da lei, havia controvérsia sobre a natureza jurídica da multipropriedade. Um dos maiores civilistas brasileiros, Gustavo Tepedino, já defendia que a multipropriedade se incluía dentro do direito real de propriedade e, por isso, poderia ser instituída com base na Lei n. 4.591/64 (Tepedino, 2019). Aliado a isso, em 2016, o STJ3 chegou a sinalizar a permissão da instituição de direitos reais sem previsão legal expressa. Posição corroborada pela Corregedoria Geral de Justiça do TJSP no item 229.14, portanto naquela oportunidade o judiciário já demonstrava tendência no sentido de reconhecer a multipropriedade como um direito real. Entretanto, em que pese às disposições favorecendo a multipropriedade, alguns estados e sobretudo no interior das capitais, pouco se falava ou discutia sobre o assunto, o que naturalmente gerava uma grande incerteza jurídica perante os registradores e consequentemente em que desejasse se aventurar nessa seara. Consolidada em vários países, a multipropriedade só veio a ser regulamentada com a publicação da lei 13.777, de 19 de dezembro de 2018, e só tratou sobre bens imóveis. Na doutrina, a multipropriedade segundo Arnaldo Rizzardo5: [.] Representa um condomínio edilício no prédio e um condomínio na unidade. Conjugam-se dois condomínios - um envolvendo as unidades em relação ao prédio, e outro relativamente aos vários coproprietários ou cotitulares da mesma unidade. Ou seja, existe um edifício dividido em unidades, com áreas comuns, mas com a diferença do condomínio comum no fato de que várias pessoas são titulares de cada unidade individualizada, já que a elas se opera a venda. A unidade é compartilhada entre os condôminos, abrangendo os móveis e utensílios, estabelecendo-se o uso em períodos definidos e divididos no tempo, no semestre ou no ano, geralmente para fins de fazer ou de turismo. A multipropriedade está prevista entre os artigos 1.358-B e 1.358-U do Código Civil e artigos 176 e 178 da Lei de Registros Públicos6 e de modo subsidiário será regida pelas regras do condomínio edilício que estão no CC (arts. 1.331 e seguintes) e na Lei n. 4.591/64. O art. 1.358-C do Código Civil, a multipropriedade é definida como: [...] regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada. Já Gustavo Tepedino em seu artigo denominado "A multipropriedade e a retomada do mercado imobiliário7" conceitua a multipropriedade da seguinte forma: Trata-se do fracionamento no tempo da titularidade dominical. Dividem-se em frações semanais os imóveis oferecidos aos multiproprietários, que terão, assim, sua casa de campo ou de praia em determinado período do ano. Portanto, com advento da lei, o que outrora demonstrara ser um risco aos consumidores e construtores, trouxe a segurança jurídica necessária. O mercado imobiliário finalmente ganha esse atrativo produto para novos investimentos no segmento dos imóveis para férias. 2 - Análise crítica à implementação da multipropriedade no condomínio edilício. a) O quorum para implementação. A legislação contemplou a implementação da multipropriedade em condomínio edilício tradicional desde que aprovado por "maioria absoluta dos condôminos", seguindo os ditames do inciso II do art. 1.358-O8 do Código Civil, o que desde já visualizamos como o primeiro conflito de interpretação que pode ser dado à norma: qual é o quórum de maioria absoluta dos condôminos? Seria 50% mais um dos condôminos ou 2/3 dos condôminos? Esse quórum corresponde aos condôminos presentes à assembleia ou a toda a coletividade condominial? Qual o contexto da palavra "absoluta" colocada na norma? Num caso hipotético de um condomínio com 20 unidades e uma assembleia com 10 presentes, 6 aprovam a implementação da multipropriedade. Se computarmos os presentes, superou o quórum de maioria, que deveria ser 5 pessoas, portanto a votação está legal; entretanto, se for computado o total de unidades, a multipropriedade deveria ser aprovada por mais de 10 pessoas, portanto ilegal sua adoção. Qual o correto? As dúvidas acima são pertinentes, pois os diversos tipos de quórum previstos no Código Civil no que refere ao condomínio edilício, embora em vigor desde 2003, até hoje promove dúvidas na doutrina e jurisprudência, vejamos: O art. 1.341 do CC ao tratar sobre o quórum para realização de obras assim dispõe: Art. 1.341. A realização de obras no condomínio depende: [...] II - se úteis, de voto da maioria dos condôminos. Daí retornamos à dúvida: o que podemos definir como "maioria dos condôminos"? Seria os presentes à assembleia ou de toda a coletividade condominial? Na doutrina, segundo Arnaldo Rizzardo9: [.] A realização de obras úteis: maioria dos condôminos (Art. 1341, Inc. II), computando-se essa maioria de conformidade com os artigos 1.352 e 1.353, isto é, em primeira convocação tendo em conta os votos dos condôminos presentes que representam pelo menos metade das frações ideais, e em segunda convocação terá maioria em conta dos condôminos presentes em assembleia. Nesse mesmo entendimento, os seguintes julgados: EMENTA: CONDOMÍNIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE ASSEMBLEIA. PLAYGROUND. ÁREA DE ENTRETENIMENTO INFANTIL PREEXISTENTE. OBRAS DE MELHORIA. QUORUM. VOTAÇÃO PELA MAIORIA. 1. Não é benfeitoria voluptuária mas útil a obra de restruturação e melhoria do playground de condomínio de grande porte e densidade de moradores, posto que prevista na constituição do condomínio a área de entretenimento infantil, sendo essencial não só a sua existência como também o funcionamento satisfatório e seguro dos equipamentos que o guarnecem. 2. Tratando-se de melhoria que constitui benfeitoria útil é inexigível quórum especial, podendo a deliberação ser tomada pela maioria dos condôminos ou dos presentes, em segunda convocação (Código Civil, artigo 1.341, II, c.c. artigo 1.353). Sentença reformada. Recurso provido para julgar a ação improcedente. Apelação n. 1000294-04.2015.8.26.0004 - Comarca: São Paulo - F. Reg. da Lapa - 3ª Vara Cível - Relator Des. Felipe Ferreira em: 01/08/2017 AÇÃO ANULATÓRIA DE ASSEMBLEIA. Condomínio edilício. Assembleia geral extraordinária que deliberou, por maioria, pela construção de cobertura do estacionamento do andar térreo, a ser custeado por rateio entre todos os proprietários. Necessidade de aprovação por maioria para a realização de benfeitorias úteis, como a da espécie Art. 1341, II, do CC/02. Em não havendo referência legislativa à necessidade de maioria absoluta, basta a simples." (TJSP - Apelação n. 1009284-76.2014.8.26.0114, Des. Rel. PAULO EDUARDO RAZUK, 1ª Câmara de Direito Privado, j. em 11 de novembro de 2014). Em sentido oposto Scavone Júnior10: Nada obstante, alguns julgados, em razão da equivocada interpretação do Art. 1.35311 do código civil, admitem a votação pela maioria simples dos presentes em segunda convocação, ainda que se tratem de obras úteis ou voluptuárias, o que significa evidente afronta ao dispositivo mencionado, posto que, nesses casos, a toda evidência, a lei exigiu quorum especial nos arts. 1.341 e 1.342 do Código Civil. Corroborando a tese de Scavone, Romeo Boettcher12: Em se tratando de obra voluptuária, sua autorização depende do voto favorável de dois terços do total dos proprietários no condomínio (Inciso I do Art. 1.341 do CC - maioria especial). [.] Em se tratando de obra útil, sua autorização depende dos votos favoráveis dos proprietários que representem a maioria no condomínio com base no inciso II do Art. 1.341 do CC - maioria qualificada dos votos. Nesse sentido julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o Desembargador com maestria justificou seu voto separando a maioria dos presentes da maioria de toda coletividade, vejamos: Ressalte-se, aliás, que os artigos 1.341 e 1.342 falam em "aprovação de dois terços dos votos dos condôminos". Não se trata, portanto, de exigência de quórum mínimo de participantes para a instauração da assembleia, a qual poderá, então, decidir por maioria simples. Exige-se na verdade, maioria qualificada de dois terços dos habilitados a votar em assembleia, e não apenas dos condôminos presentes... Tribunal de Justiça de São Paulo - Apelação n. 0146185-03.2006.8.26.0000 - Cível/anulação de assembleia em condomínio. Relator: Des. Francisco Loureiro. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 05/03/2009. Data de registro: 24/03/2009. Outros números: 4863044800, 994.06.146185-0. Ação declaratória de nulidade - Condomínio - Assembleia de condôminos em que foi aprovada a realização de obras voluptuárias em área comum - Compra e instalação de parque infantil - Artigo 1.342 do Código Civil - Realização de obras em áreas comuns carecem da aprovação por 2/3 dos condôminos aptos a votar - No caso concreto apenas 213 dos condôminos estiveram presentes e ao menos o autor não anuiu com a realização de tais obras de forma que não observado o preceito legal - Nulidade em assembleia não pode ser convalidada por abaixo-assinado - Reunião dos condôminos é o momento adequado para a exposição dos motivos da dissidência e discussão das questões de maior relevo - Sentença improcedente - Recurso provido. Essa segunda interpretação entendemos ser a mais adequada, qual seja, que o quórum se refere a toda a coletividade condominial e não apenas aos presentes à assembleia. No caso em discussão ainda há mais um ponto garantidor dessa interpretação, que foi o emprego da palavra "absoluta" no texto legal, portanto a aprovação por "maioria absoluta dos condôminos" seguindo os ditames do inciso II do art. 1.358-O do Código Civil, afastaria essa discussão, mas as divergências não se encerram, pois a palavra "absoluta" já foi utilizada antes no Código Civil, ao dispor do quórum para destituição do Síndico. Vejamos: Art. 1.349. A assembléia, especialmente convocada para o fim estabelecido no § 2o do artigo antecedente, poderá, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, destituir o síndico que praticar irregularidades, não prestar contas, ou não administrar convenientemente o condomínio. Portanto, seguindo a orientação de Scavone Júnior, Romeo Boettcher e do Des. Francisco Loureiro, a maioria absoluta a que se refere o texto seria de toda a coletividade condominial. Corroboramos o mesmo entendimento, eis que em um texto de lei, cada palavra empregada deve ter uma função, um sentido prático, caso contrário ela não estaria lá; portanto, nosso entendimento é que no texto a palavra: "absoluta" tem a função de indicar que deveria ser maioria dos apartamentos integrantes do condomínio, e não dos presentes em assembleia. Nesse mesmo sentido seguem as lições de Arnaldo Rizzardo13, para quem é exigida a "maioria absoluta dos membros da assembleia geral, a qual representa a totalidade dos condôminos. Daí a maioria absoluta corresponde à metade mais um dos condôminos. Não se restringe aos participantes da assembleia". Posição essa referendada por Romeo Boettcher14: "Para os efeitos da base de cálculo aplicável na apuração da maioria absoluta necessária, entende o autor que devem ser considerados como membros da assembleia todos os proprietários no condomínio aptos a votar, e não somente os participantes do encontro assemblear". Nesse mesmo sentido o julgado abaixo: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESTITUIÇÃO DOS SÍNDICOS. CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO. REGULARIDADE NA CONVOCAÇÃO DA ASSEMBLÉIA. IRREGULARIDADE NA DESTITUIÇÃO. VOTOS INSUFICIENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO 1. A Convenção de Condomínio fixa, em seu art. 18, que para haver convocação de Assembléia Geral Extraordinária, é necessário que seja convocada por, no mínimo, 1/4 (um quarto) dos condôminos. Preenchido esse requisito, é regular a convocação das Assembléias. 2. O art. 21, §3º da Convenção de Condomínio, diz que "é lícita aos condôminos que representem no mínimo 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos destituir o síndico, mesmo que não seja por justa causa...". 3. Não tendo alcançado a quantidade mínima de votos para exigidos no art. 21, §3º da Convenção de Condomínio, a destituição do síndico é irregular. Agravo de Instrumento 0012211-69.2013.8.17.0000 TJPE, 6º Câmara Cível. Rel. Antônio Fernando de Araújo Martina, Dt. Publicação: 20/03/2014 Entretanto, esta matéria não é pacífica nos tribunais havendo julgados em sentido contrário, vejamos: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CONDOMÍNIO. SÍNDICO. DESTITUIÇÃO. QUÓRUM DE VOTAÇÃO. ART. 1.349 DO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO. MAIORIA DOS MEMBROS PRESENTES NA ASSEMBLEIA. 1. O quórum exigido no Código Civil para a destituição do cargo de Síndico do Condomínio é a maioria absoluta dos Condôminos presentes na Assembleia Geral Extraordinária. 2. Interpretação literal e teleológica do artigo 1.349 do Código Civil. 3. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (grifo nosso)" (REsp 1266016/DF n. 2011/0165343-2 3ª Turma Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO São Paulo 18/12/2014). Tão pouco entre os doutrinadores o assunto é pacífico: Para Hamilton Quirino15: "Com efeito, o artigo 1.349 condiciona a destituição ao voto da maioria absoluta dos membros da assembleia". No mesmo sentido, Zulmar José16: "Quanto ao quórum exigido, o entendimento majoritário e predominante é o de maioria dos condôminos presentes (50% mais um), em assembleia especialmente convocada para este fim [.]. Note-se que se trata da maioria dos condôminos presentes a assembleia". Por fim, Pedro Elias Avvad17: "O quórum fixado na lei para destituição do síndico acompanha a mesma facilidade instituída para a criação das circunstâncias para o afastamento. Basta o voto da maioria dos membros da assembleia". Portanto, com as posições doutrinárias e jurisprudenciais restou demonstrado que a matéria não está pacificada, portanto, somente o tempo e as relações poderão pôr fim à discussão sobre o quórum a que se referia o legislador ao dispor sobre "maioria absoluta dos condôminos" previsto no inciso II do art. 1.358-O do Código Civil, sendo nossa opinião a de que estaria tratando de 50% mais um de toda a coletividade condominial. b) O quórum para implementação da multipropriedade e o conflito com o quórum para alteração da convenção do condomínio edilício e mudança de destinação - aparente antinomia no texto legal. Sabe-se que a lei aqui analisada, por ser bastante recente, ainda não possui entendimentos jurisprudenciais assentados, bem como análises doutrinárias acerca do assunto, sendo esta portanto a hora mais conveniente para expor os eventuais conflitos com que os operadores poderão se deparar. O legislador, ao dispor no Código Civil sobre o quórum para alteração da convenção de condomínio o fez nos seguintes termos: Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos. Vamos tratar da primeira parte do art. 1.351, "Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção" em conjunto com o inciso II do art. 1.358-O: "O condomínio edilício poderá adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, mediante: [...] II - deliberação da maioria absoluta dos condôminos". Nesse caso, parece haver uma antinomia entre as normas, pois se o quórum para alterar a convenção do condomínio edilício é de 2/3, como poderia a instituição da multipropriedade no condomínio edilício possuir um quórum menor? Sendo antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir com exatidão as consequências jurídicas da adoção de um ou de outro artigo, esvaziando, portanto, o sentido do Direito que seria trazer pacificação social. Posta assim a questão, numa eventual instituição da multipropriedade, a única forma de contemplar os art. 1351 e o 1.358-O e evitar uma discussão, seria a adoção do quórum de pelo menos 2/3, deixando o art.1.358-O sem função. Noutra toada, e fazendo uso da segunda parte do art. 1.351, "mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos", a instituição da multipropriedade no condomínio edilício exclusivamente residencial não estaria alterando a destinação do uso? Essa já é uma discussão atual18 e está causando diversos conflitos no judiciário, qual seja, o uso de unidades para locação de curtíssima temporada, sobretudo com o uso dos aplicativos de intermediação. Instituir a multipropriedade em um condomínio edilício demandaria toda sorte de alteração na gestão do condomínio, com a administração do envio dos boletos, cobranças, comunicados, execução de taxas, administração dos votos em assembleia, etc., além da maior rotatividade de pessoas. Vamos considerar um condomínio com 20 unidades, sendo duas em multipropriedade com 10 multiproprietários cada uma. Nesse caso, teríamos 18 proprietários em condomínio edilício e 20 em multipropriedade, perfazendo o total de 38 proprietários. Naturalmente, no condomínio tradicional, essa mudança implicaria na necessidade de implementação de uma gestão mais eficiente e profissional, atraindo para si uma gestão bastante assemelhada à gestão hoteleira. Nesse cenário, não estaríamos alterando a vocação do condomínio tradicionalmente residencial para comercial? Nesse desenvolvimento de raciocínio, haveria necessidade de aprovação de unanimidade dos condôminos para se instituir a multipropriedade. Entretanto, as normas não devem ser interpretadas apenas de forma literal, há necessidade de verificar qual o sentido da norma de forma sistemática, teleológica e sociológica. Sistemática, porque a norma está inserida num contexto que deve estar em sincronia com outras normas; teleológica, porque concentra suas preocupações no fim a que a norma se dirige, e sociológica porque a norma deve corresponder às necessidades reais e atuais da sociedade. Ao que me parece, esse segundo dilema é superado interpretando a norma além da literalidade do texto, ou seja, não precisaria de unanimidade dos presentes. Ademais, se esse fosse o caso, conseguir aprovação de toda coletividade condominial seria praticamente impossível. Conclusão Não há dúvidas que o advento da lei 13.777/2018 foi uma excelente iniciativa para trazer segurança jurídica nas relações de uso e aquisição de unidades fracionadas no tempo. Entretanto, a legislação da multipropriedade é muito recente, já a legislação de condomínio edilício data de 196419 e foi parcialmente alterada pelo Código Civil de 2002, portanto, entre essas datas a dinâmica das relações sociais mudou consideravelmente, tornando-se necessário a adequação da antiga norma a nova realidade. Em relação às dúvidas de interpretação das novas normas, caberá aos doutrinadores e ao Judiciário saná-las, pacificando as relações sociais, afastando os pontos sensíveis identificados. Referências Bibliográficas AVVAD, Pedro Elias. Condomínio Edilício. Rio de Janeiro: Forense, 2017. BOETTCHER, Romeo. Estou Síndico e Agora?! Sou Condômino. O que devo saber?! Direito e Deveres e outras abordagens. Porto Alegre: AGE, 2015. BRASIL. Lei das Incorporações e Condomínio. Lei n. 4.591 de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Brasília, 1964. BRASIL. Lei dos Registros Públicos. Lei n. 6.015 de 31 de dezembro de 1973. 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Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 9. 2 GRACIA, Maya. O business da multipropriedade no Brasil e necessidade de regulação jurídica. Blog Civil & Imobiliário. 3 de abril de 2019. Entrevista concedida a Alexandre Gomide. Disponível em: https://civileimobiliario.web971.uni5.net/entrevista-maya-garcia-multipropriedade/. Acesso em 14 e jul. 2019 3 STJ, REsp 1546165/SP, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, DJe 6/9/2016. 4 Na hipótese de multipropriedade (time sharing) serão abertas as matrículas de cada uma das unidades auto^nomas e nelas lançados os nomes dos seus respectivos titulares de domínio, com a discriminação da respectiva parte ideal em função do tempo 5 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 55. 6 Lei 6.015 de 1973. 7 Disponível em: . Acesso em: 5 de jul. 2019. 8 Art. 1.358-O. O condomínio edilício poderá adotar o regime de multipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas, mediante: II - deliberação da maioria absoluta dos condôminos 9 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 203. 10 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Direito Imobiliário: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 933. 11 Art. 1.353. Em segunda convocação, a assembleia poderá deliberar por maioria dos votos dos presentes, salvo quando exigido quórum especial. 12 BOETTCHER, Romeo. Estou Síndico e Agora?! Sou Condômino. O que devo saber?! Direito e Deveres e outras abordagens. Porto Alegre: AGE, 2015, p. 388. 13 RIZZARDO, Arnaldo, citado por ELIAS FILHO, Rubens. Condomínio Edilício: Aspectos de Direito Material e Processual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 216. 14 BOETTCHER, Romeo. Estou Síndico e Agora? Sou Condômino. O que devo saber?! Direitos e outras abordagens. Porto Alegre: AGE, 2015, p. 473. 15 CÂMARA, Hamilton Quirino. Condomínio Edilício. Manual Prático com Perguntas e Respostas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 421 16 KOERICH JUNIOR, Zulmar José. Manual para Síndicos, Membros do Conselho e Administradores em 351 Perguntas e Respostas. Comentários e Jurisprudência. São Paulo: Scortecci, 2018, p. 23. 17 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio Edilício. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 147. 18 Para detalhamento consultar. Acesso em 28 out. 2019. 19 Vide lei 4.591 de 1964.
Texto de autoria de Sarah Jones Tema recente e palpitante se instaurou na comunidade jurídica e social a partir do início do julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça no dia 10 de outubro do corrente ano afeto a locação por temporada por meio da plataforma digital nos condomínios edilícios em contraposição às disposições previstas na Convenção Condominial, normativa interna esta cogente aos que ali residem estendidas à terceiros quando devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Neste desiderato, alguns pontos sensíveis são alvo de apreciação pela Corte Superior, quais sejam: a natureza jurídica desta modalidade de locação/hospedagem advinda das inovações tecnológicas que permeiam o mundo ao qual estamos inseridos a par de enquadrá-la como atividade comercial ou meramente residencial; a possibilidade ou não de restrição de um dos direitos mais nobres previstos na Carta Constitucional inserto no art. 5º, inciso XXII, a dizer, propriedade; e mais sensível ainda, a (im) possibilidade das normativas internas condominiais abolirem um dos atributos da propriedade representados pela disposição do bem pelo condômino. O primeiro ponto a ser desvencilhado neste artigo e de forma a não esgotar as discussões que permeiam sobre o tema remonta a configuração da natureza jurídica híbrida ou mista do AIRBNB e assemelhados ao tocar em pontos que se assemelham à natureza de locação ao disponibilizar por certo espaço de tempo o uso e gozo da propriedade, ao passo em que se reveste de certa característica de hospedagem a partir do anúncio do espaço residencial para efeito de alojamento mediante reserva de acomodação, caso assim seja aceita pelo anfitrião. Desta forma, os aplicativos possuem uma natureza unicamente intermediária, assim como as empresas de administração de imóveis. Suplantado este ponto, mesmo que precariamente, partimos para o enfrentamento do tema correlato a possibilidade ou não de limitação do direito de propriedade no condomínio edilício quando o proprietário disponibiliza a unidade autônoma por prazo não superior a 90 (noventa) dias a terceiros na modalidade intermediada pelo AIRBNB ou aplicativos assemelhados. Para tanto cumpre trazer lições preliminares sobre o conceito de condomínio edilício delineado por Luiz Antônio Scavone Júnior ao assim tecer: "é definido como o conjunto de propriedades exclusivas em uma edificação considerada unitária, com áreas comuns que se vinculam às unidades autônomas"1. Uma vez elaborada a convenção condominial, segundo determina o art. 1.331 do Código Civil, esta deve ser subscrita pelos titulares por, no mínimo, dois terços das frações ideais, tornando-se obrigatória para os adquirentes e para todos que ali residem e exerçam sobre o imóvel a posse ou detenção. Conforme alude o artigo 1.351 do Código Civil "Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da unanimidade dos condôminos". Ademais disso, no que tange ao conceito de propriedade, em que pese o Código Civil não o defina expressamente, seu conceito se escora na disposição inserta no artigo 1.228 do referido normativo legal ao elencar os atributos do proprietário ao se ter como norte o estudo dos direito reais do Código Civil, senão vejamos: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar, e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha". Elencados os devidos conceitos, eis o liame causador do imbróglio jurídico e doutrinário acerca da definição da natureza jurídica da locação por temporada pela modalidade AIRBNB ou assemelhados, e se a sua utilização desnatura a destinação tida por residencial. Para aqueles que entendem que se trata de serviço de hospedagem enquadrados na lei 11.771/2008 haveria a necessidade de alteração da destinação do imóvel ou de algumas de suas unidades, devendo-se, para tanto, a deliberação da totalidade dos condôminos para se exigir a eficácia da utilização da plataforma AIRBNB ou assemelhados na disposição da unidade imobiliária. Para os que a enquadram como locação por temporada, e caso a convenção preveja destinação residencial, não haveria qualquer óbice para utilização da plataforma digital, ao se entender pela viabilidade de aplicação desta modalidade contratual disciplinada no art. 48 da lei 8.245/91. O cerne da discussão e causador de posicionamentos controversos recai sobre as disposições legais previstas no artigo 232 da Lei da Geral do Turismo (lei 11.771/08) e o artigo 483 da lei 8.245/91 especificamente. Apenas para demonstrar ambos os argumentos sobre o enquadramento da natureza jurídica de prestação de serviço, para os que assim entendem, e outro pelo argumento que a consideram como locação, cumpre exemplificar a primeira linha de convencimento com supedâneo em um trecho constante no Parecer elaborado pela OAB/SP4, in verbis: "A possibilidade hoje, de exploração pelos proprietários ou assemelhados nos termos da lei para hospedagens de terceiros (possuidores) em modalidade de uso similar ao 'AirBnB' ou qualquer outra forma de utilização não prevista na Lei de Locação, bem como outros contratos atípicos de cessão onerosa do espaço e, eventual permissivo legal encontra óbice claro na Convenção do Condomínio e Regimento Interno, instrumentos máximos de normatização da comunidade condominial. (...) Assim, a utilização da unidade condominial residencial em desconformidade com o previsto na Convenção e Regimento Interno do Condomínio pode sim, levar ao questionamento por qualquer condômino que se sinta prejudicado, seja em razão das questões de segurança envolvidas nesta modalidade de locação atípica ou de hospedagem, em face da entrada ou saída indiscriminada de pessoas no condomínio, muitas vezes, sem controle algum, como já assentado em jurisprudência dos Tribunais,quer pelo superuso das instalações, infraestrutura e equipamentos de uso comum a todos, previstos originalmente de forma igualitária pelo instituidor do Condomínio, mas que,em razão deste tipo de uso de alta rotatividade beneficia uma única unidade condominial com um uso anormal daí, a teoria do "superuso" aludida por J. Nascimento Franco (Condomínio, ed. RT, 5ª ed. 195), também agassalhada por nossa jurisprudência, quer seja pela destinação diversa das unidades condominiais em relação àquela prevista originalmente pelo instituidor do Condomínio, que pode ter sido fator preponderante para a decisão de aquisição daquela unidade pelo condomínio insatisfeito. E nessa hora, poderá o condômino questionar judicialmente a decisão, inclusive, responsabilizando pessoalmente o Síndico no caso de omissão dolosa." Em sentido contraposto, eis o posicionamento defendido pelo Ministro Luis Felipe Salomão no início do julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: "A jurisprudência delimita de maneira clara o contrato de hospedagem - que tem como atividade predominante nesse tipo de serviço o complexo de prestações. O contrato de hospedagem compreende a prestação de múltiplos serviços, sendo essa se não a tônica do contrato (...) elemento inerente à sua configuração". "(...) A alegação de alta rotatividade de pessoas, ausência de vínculo dos ocupantes e suposto incremento patrimonial dos recorrentes, não demonstrado, não servem para a configuração da exploração comercial dos imóveis, sob pena de desvirtuar a própria caracterização da atividade". Neste sentir, o ministro considerou, no caso concreto, que há evidência de locação por temporada - seja no imóvel em que os recorrentes alugam cômodos ou no imóvel que alugam em sua totalidade, por prazos de curta duração: "As relações negociais mais se aproximam aos contratos locação por temporada". Ademais disso, em termos práticos, qual previsão comumente é disciplinada nas Convenções Condominiais no que concerne aos direito e deveres dos condôminos? São elas, de forma exemplificativa: "São direitos dos condôminos usar, gozar e dispor de sua unidade autônoma, de acordo com o respectivo destino, desde que não prejudique a segurança e solidez do edifício, que não cause dano aos demais condôminos e não infrinja as normas legais e as disposições desta convenção". Ou ainda: "O condomínio se destina exclusivamente para fins residenciais, sendo expressamente proibi-lo usá-lo para fins de qualquer outra natureza". Nota-se que as disposições transcritas apenas retratam os atributos da propriedade e a sua destinação sendo silentes sobre a possibilidade expressa da utilização ou impossibilidade de locação da unidade imobiliária por temporada intermediada por aplicativos de AIRBNB ou assemelhados. Essa realidade é notória nas convenções condominiais elaboradas pelas incorporadoras em momento anterior ao surgimento da plataforma de locação por dispositivo digital, a citar, o AIRBNB, nascido em São Francisco (EUA) no ano de 2007. Pela disposição convencional ali delineada e para aqueles que trilham o posicionamento pelo enquadramento na modalidade de locação ao qual me filio, compreende-se pela viabilidade da transação da propriedade por inexistir no ordenamento jurídico pátrio disposição expressa sobre o tema. Noutro passo, para aquelas convenções condominiais que proíbem expressamente a locação pelas plataformas digitais, haveria uma restrição legítima da propriedade? Reconhecendo nessa modalidade de utilização do imóvel uma locação por temporada, nos termos previstos em lei, não seria razoável a sustentação pela sua proibição. Calcando-se nos ensinamentos tecidos por Maria Helena Marques Braeeiro Daneluzzi e Maria Lígia Coelho Mathias5: "Se a lei não só prevê como autoriza e regulamenta essa modalidade de locação, não há como subsistir argumentação em sentido contrário. De duas uma, ou se está utilizando terminologia imprópria para a figura jurídica ainda em construção ou não se está e, por conseguinte, a faculdade legal para tanto, prevista no art. 48 da lei de locação não pode ser obstada em respeito ao direito de propriedade". Nessa linha de entendimento, o condomínio não poderá deliberar sobre a proibição da atividade, pois, ainda que aprovada por maioria absoluta, tratar-se-ia de ato jurídico nulo, por não traduzir a forma prescrita em lei, nos termos do artigo 166, inciso IV, do Código Civil Brasileiro. Esta conduta violaria o direito de propriedade e de fruição através da locação, amplamente garantidos por leis federais, bem como uma garantia constitucional do princípio da legalidade descrito no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, assim dizente: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Em sentido diverso, tramita no Senado Federal Projeto de lei sob o nº 2.474 de 20196 apresentado pelo Senador Ângelo Coronel (PSD/BA) ao propor o acréscimo do art. 50-A na Lei do Inquilinato, que estabelece como regra a vedação de aluguel por temporada por site e/ou aplicativos. A exceção é a autorização para tal aluguel permitida apenas se houver autorização expressa na convenção do condomínio, a qual estabelecerá regras mínimas, a fim de evitar outros conflitos. Eis o teor da redação proposta, in verbis: "Art. 50-A. É vedada a locação para temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação em condomínios edilícios de uso exclusivamente residencial, salvo se houver expressa previsão na convenção de condomínio prevista no art. 1.333 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002(Código Civil). § 1º Caso a convenção do condomínio autorize, a locação para temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação sujeita-se às seguintes regras: I - o prazo da locação será expresso em dias, semanas ou meses, observado o limite do art. 48 desta Lei. II - o locador, independentemente de culpa, é, perante o condomínio edilício e os demais proprietários ou moradores, civilmente responsável pelos danos causados por pessoas que, em razão da locação, tenham tido acesso ao imóvel ou às áreas comuns do condomínio edilício, ainda que essas pessoas não constem formalmente do contrato de locação. III-a locação poderá ter por objeto uma unidade imobiliária parte de condomínio edilício ou apenas um ou mais cômodos ou recintos. IV - o locador é considerado consumidor perante o titular do aplicativo ou plataforma de intermediação.§ 2º Não se aplica ao locador, seja proprietário ou apenas possuidor, a obrigação do cadastro prevista no art. 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008, desde que não realize a atividade de locação do imóvel profissionalmente (art. 966 do Código Civil)." (Grifos nossos) Esse projeto tem por justificativa a regulação do mercado de locações residenciais de curta temporada ao passar por enorme expansão a partir de plataformas tecnológicas que permitem aos proprietários alugar seus imóveis de forma mais ágil, e a turistas e viajantes diversos encontrarem opções de hospedagem diferentes das que são oferecidas pelos meios tradicionais, como hotéis e pousadas. Pelas razões aduzidas na justificativa: "São enormes os impactos decorrentes da chamada 'economia do compartilhamento', em geral realizada por meio de aplicativos e plataformas de intermediação disponíveis na internet. Não se pode negar o impacto positivo do avanço tecnológico, mas também não é razoável ignorar variáveis que acabam desvirtuando formas de usufruir da propriedade privada, principalmente quando interferem nos direitos de outros proprietários. O atual 'vazio legislativo' contribui para o aumento de conflitos nessa área. Conflitos surgem dessa nova forma de negociar por que de um lado estão aqueles que não querem ver o condomínio residencial se transformar em um espaço de hospedagem concorrente de hotéis e pousadas, que não querem a elevação da rotatividade de pessoas que passam a circular pelo condomínio, que não querem a redução do nível de segurança para os moradores, que não querem a elevação dos gastos com limpeza e manutenção predial, etc. De outro lado estão aqueles que, baseados também no direito de usufruir de sua propriedade privada, querem dar a ela uma destinação com maior aproveitamento financeiro, que querem ter uma renda extra, etc. Em razão das diversas variáveis que impactam o tema, é preciso estabelecer regras claras e objetivas que contribuam para a segurança jurídica dessas relações. A proposição que trazemos considera a vontade dos condôminos como o principal fator a ser considerado nesses casos. Prevalecendo entre os condôminos o sentimento de que essa forma de aluguel não traz prejuízo àquela coletividade de proprietários, poderão autorizar esse tipo de uso das unidades habitacionais. Se houver em outro condomínio resistência à ideia, também fica aberta a possibilidade de proibição da medida por meio de processo de votação adequado. Com isso, estará protegida a função social da propriedade e do próprio condomínio, e ainda o respeito à original destinação do condomínio e ao bem geral daquela coletividade". Quanto ao quórum de aprovação a ser considerado pelo condomínio, assim considera o Projeto de Lei, in verbis: "O quórum escolhido para que o condomínio mude sua convenção coletiva e autorize a locação por temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação está em harmonia com o que já prevê o Código Civil. Nos artigos 1.333e 1351está estabelecido que o quórum para aprovação e alteração da convenção é de 2/3 dos condôminos. Entendemos ser este o percentual adequado, pois permite que o condomínio faça uma opção de forma consolidada, após processo de votação com ampla participação dos condôminos." Por fim elenca ainda o projeto de lei que: "Havendo a autorização expressa da convenção do condomínio, regras mínimas devem ser estabelecidas a fim de evitar outros conflitos." Diante desse mar ainda revolto sem definições claras, não há dúvidas de que o direito de propriedade poderá sofrer restrições por inexistir direito absoluto no ordenamento jurídico brasileiro. Havendo limitações disciplinadas na convenção condominial, entendo plausível e razoável respeitar a vontade comum dos que ali residem cabendo à administração condominial representada pelo síndico, síndico profissional e/ou administradora condominial procederem alterações mais rígidas no regramento interno causadores de problemas vinculados a perturbação ao sossego, segurança e saúde quando atualmente ineficientes. Ademais disso, cumpre ainda disciplinar regramentos específicos sobre a nova prática de locação via plataforma digital por fugir à regra da locação usual adotada pelos proprietários, bem como a implantação de treinamento dos profissionais que ali laboram no intuito de se adequar à realidade presente no seio condominial valendo, sempre, pelo bom senso dos seres habitantes. Viver em comunidade não é tarefa fácil, porém exige certa dose de educação e respeito com o próximo, uma vez que a propriedade "compartilhada" exige comportamentos diversos da vontade individual quando estamos diante do direito de vizinhança. * Sarah Jones é advogada especialista em Direito do Estado pela UFBA. MBA em Direito Imobiliário pela DALMASS e árbitra da 2ª Câmara de Conciliação e Arbitragem de Goiânia/GO. __________ 1 SCAVONE JÚNIOR. Luiz Antônio. Direito Imobiliário - Teoria e prática. - 13ª ed. rev. e atual. e ampla. - Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 890. 2 Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária. § 1o Os empreendimentos ou estabelecimentos de hospedagem que explorem ou administrem, em condomínios residenciais, a prestação de serviços de hospedagem em unidades mobiliadas e equipadas, bem como outros serviços oferecidos a hóspedes, estão sujeitos ao cadastro de que trata esta Lei e ao seu regulamento. 3 Art. 48. Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel. 4 BRASIL. PARECER JURÍDICO ELABORADO PELA OAB/SP SOBRE HOSPEDAGEM AIRBNB EM CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS EXCLUSIVAMENTE RESIDENCIAIS. Acesso em 11 de novembro de 2019. 5 BRASIL. Artigo jurídico. Acesso em 10 de outubro de 2019. 6 BRASIL. SENADO FEDERAL. PROJETO DE LEI 2.474 DE 2019. Acesso em: 18 de dezembro de 2019.
Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio 1. A propriedade privada é consagrada pela Constituição da República - CR tanto como um direito fundamental (art. 5º, XXII) quanto como um princípio geral da atividade econômica (art. 170, II), porém vinculada ao atendimento de sua função social (art. 5º, XXIII, e art. 170, III). O regime jurídico da propriedade privada não é monolítico, sendo particularmente conspícua a clivagem feita pelo Poder Constituinte em propriedade urbana (arts. 182 e 183) e propriedade rural (art. 184 a 191). Enquanto os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural são fixados pela própria Constituição, ainda que segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei (art. 186), as "exigências fundamentais" para o cumprimento da função social da propriedade urbana são expressas no plano diretor (art. 182, § 2º). Por isso, promover o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, em área incluída no plano diretor, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4º), não equivale a cumprir sua função social. Do contrário, estar-se-ia implicitamente admitindo que o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado situado fora da área demarcada pelo plano diretor prescinde do cumprimento de sua função social. E mais, sendo a lei específica que exige seu adequado aproveitamento uma faculdade do Poder Público municipal, a tutela da função social da propriedade urbana deixaria de ser um poder-dever do Executivo, passando a ser uma mera possibilidade aberta pela Constituição. Além disso, a função social não mais seria uma imposição do plano diretor, mas da lei específica que (e se) viesse a ser editada. Logo, as penas previstas nos incisos do art. 182, § 4º, CR são sanções administrativas pela violação do dever de parcelar e/ou edificar o solo em determinada área onde se planeja adensar a cidade, muito embora a Súmula 668 do STF conclua - e mal - que são formas de assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana. Reproduzindo esse equívoco, as recentíssimas lei 11.181, de 08 de agosto de 2019, que aprovou o Plano Diretor de Belo Horizonte - PD, e lei 11.216, de 04 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre a aplicação dos instrumentos de política urbana previstos nos Capítulos II, III e IV do Título II do PD, vinculam o parcelamento ou edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação-sanção ao cumprimento da função social da propriedade urbana. 2. Antes de mais, convém lembrar que a Constituição determina que lei municipal específica, nos termos da lei federal, exigirá o adequado aproveitamento do solo urbano. A esse respeito, o STF está analisando se tal especificidade é de ordem material ou formal, ou seja, se basta à lei conferir tratamento específico à matéria ou se é preciso lei autônoma e monotemática (ADI 5.154/PA). O julgamento está sobrestado desde 2015, com votação parcial (5 a 4) favorável à posição formalista1. A se confirmar o resultado, o Capítulo II da Lei 11.216/2020 poderá eventualmente ser declarado inconstitucional ou, ao menos, seus arts. 4º e 5º, §§ 3º e 4º, que não estarão "nos termos da lei federal" (arts. 5º e 7º, § 1º, do Estatuto da Cidade - ECi, respectivamente). Em se revertendo o placar atual, o art. 4º da lei 11.216/2020, que fixou prazos para a aprovação do projeto de parcelamento do solo (inciso I) e de edificação (inciso II), para o início (inciso III) e a conclusão das obras (inciso IV), deveria ser emendado para incluir o prazo para protocolo do projeto de obra, que não pode ser inferior a um ano, consoante o art. 5º, § 4º, I, ECi. A lei 11.216/2020 deveria estabelecer, ainda, conforme o art. 40, § 4º, PD, a possibilidade excepcional de conclusão de empreendimentos de grande porte em etapas. 3. Se o sentido de imóvel não edificado é autoevidente e o de subutilizado é aquele "cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente" (art. 5º, § 1º, I, ECi), só se pode interpretar não utilizado como não parcelado. Primeiro porque, ao não impor sanção de utilização compulsória, apenas de parcelamento e edificação compulsórios, somente assim o art. 182, § 4º, CR seria articulável com seu inciso I. E depois porque o art. 5º, §§ 4º e 5º, ECi fala em protocolo de projeto, início das obras e empreendimentos de grande porte, nitidamente remetendo à ideia de parcelamento e edificação no terreno. Nessa linha, não se justifica o conceito de "imóvel não utilizado" adotado pelo plano diretor (art. 42), que tanto se aplica à gleba não parcelada ou ao lote não edificado (inciso I) quanto ao imóvel abandonado (inciso II), edificado sem uso comprovado há mais de cinco anos (inciso III) ou com obra paralisada (inciso IV). Ora, lote não edificado e obra paralisada são casos de solo não edificado; imóvel abandonado deve ser arrecadado como bem vago (art. 1.276 do Código Civil e arts. 64 e 65 da lei Federal 13.465/2017); e imóvel edificado sem uso comprovado há mais de cinco anos não se articula nem com a pena de parcelamento nem com a de edificação compulsória. 4. Quanto ao alcance territorial do dever de promover o adequado aproveitamento do solo urbano, o plano diretor definiu que o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios são aplicáveis à integralidade do município (art. 40, § 1º). Todavia, as áreas sem coeficiente de aproveitamento mínimo determinado somente se sujeitam a utilização compulsória (art. 40, § 2º). Já os terrenos nos quais exista impossibilidade técnica de implantação de infraestrutura de saneamento, de energia elétrica ou de sistema de circulação (art. 40, § 3º, I) ou impedimento de ordem ambiental a sua ocupação ou utilização (art. 40, § 3º, II) estão imunes às referidas sanções administrativas. Com isso, o art. 40, § 1º, PD criou a possibilidade de se instituir uma obrigação generalizada de parcelar, edificar e utilizar o solo urbano do município inteiro, salvo nas hipóteses dos parágrafos 2º e 3º. Essa opção legislativa é questionável, porquanto rivaliza com a diretriz geral da política urbana de evitar o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana (art. 2º, VI, c, ECi). Por sua vez, o art. 40, § 2º, PD é absolutamente injustificável. Primeiro porque o coeficiente de aproveitamento mínimo só se aplica à edificação compulsória, não fazendo sentido o afastamento do parcelamento compulsório em determinada área onde aquele não exista. E depois porque viola o princípio da proporcionalidade da pena, ao punir não utilizar (infração mais leve), mas não punir não parcelar ou não edificar (infração mais grave). E o art. 40, § 3º, PD, ao não prever exceção em caso de inviabilidade econômica, cria situação de grave injustiça, pois compele os proprietários a parcelarem, edificarem e/ou utilizarem compulsoriamente seus imóveis, independentemente da lei da oferta e da procura. Por essa lógica, merece elogio o art. 2º, parágrafo único, da lei 11.216/2020, em cujos incisos são elencadas porções territoriais onde é plenamente justificável o adensamento da cidade, por meio do parcelamento, da edificação e da utilização compulsórios, tais como áreas de centralidades (inciso III) e terrenos adjacentes a eixos de transportes coletivos (inciso V). Sem embargo, como o plano diretor não manda - apenas faculta - aplicar esses três instrumentos jurídicos da política urbana, seria desejável a alteração do art. 2º, parágrafo único, da lei 11.216/2020 para restringir a aplicação do parcelamento, da edificação e da utilização compulsórios exclusivamente - e não prioritariamente - às porções territoriais arroladas em seus incisos. 5. O consórcio imobiliário é "forma de viabilização de planos de urbanização, de regularização fundiária ou de reforma, conservação ou construção de edificação por meio da qual o proprietário transfere ao poder público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas, ficando as demais unidades incorporadas ao patrimônio público" (art. 46, § 1º, ECi). O Plano Diretor de Belo Horizonte andou bem ao prever a possibilidade de o Executivo adotar programas voltados a aproximar os proprietários notificados para o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e os agentes interessados no desenvolvimento de empreendimentos imobiliários (art. 43, § 3º). O art. 7º, § 1º, da lei 11.216/2020 merece elogios por admitir que o plano ou projeto de urbanização ou edificação visando à constituição de consórcio imobiliário seja elaborado, além do órgão municipal responsável pelo planejamento urbano, pelo parceiro privado, hipótese em que deverá ser aprovado pelo referido órgão. O art. 7º, § 3º, da lei 11.216/2020, repetindo o art. 43, § 3º, PD, prevê que "o Executivo poderá adotar programas voltados para aproximação entre proprietários notificados para o parcelamento, edificação e utilização compulsórios e agentes interessados no desenvolvimento de empreendimentos imobiliários". Trata-se de inteligente opção da legislação belo-horizontina, porque estimula o mercado a custear as obras, desonerando as finanças da Prefeitura Municipal. Por último, o art. 7º, § 5º, da lei 11.216/2020 confere ao Município o poder de descontar os débitos existentes em seu favor, relativos ao imóvel, do valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário após a realização das obras. Para se evitarem futuras alegações de sanção política, configurada pelo uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo, vedada pela Súmula 323 do STF, o instrumento de formalização do consórcio imobiliário deverá prever cláusula expressa admitindo a compensação de crédito. *Vinícius Monte Custodio é doutorando em Direito Econômico e Economia Política na USP. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra. Advogado. E-mail: [email protected]. ___________ 1 A título de registro, o parecer do Procurador do Município de Belo Horizonte Fernando Couto Garcia (Processo Administrativo 01-068101-11-03), datado de 12 de julho de 2011, aprovado pelo então Procurador-Geral Adjunto do Município Rúsvel Beltrame, concluiu que a lei específica mencionada no art. 182, § 4º, CR significa "lei exclusiva", "lei que não pode tratar de nenhum outro tema".
Texto e autoria de Hamilton Quirino Câmara Repercussões do caso Encol Ao se falar em incorporação imobiliária, e particularmente em retomada de obras paralisadas, não há como ignorar o chamado Caso Encol, do qual participamos desde o final de 1997 e cuja experiência foi relatada por nós em livro específico1. Com a paralisação de obras em todo o país (mais de setecentas!), verificamos o seguinte quadro em milhares de transações firmadas entre a empresa e os compradores: falta de instrumentos públicos de promessa de compra e venda; falta, em muitos empreendimentos, do memorial de incorporação perante o Registro de Imóveis; existência, em vários casos, de hipotecas que gravavam o terreno e as benfeitorias e centenas de ações judiciais em curso. Mesmo assim, milhares de compras foram realizadas - muitas delas à vista, numa demonstração de que muitas pessoas adquirem imóvel na planta sem a devida cautela. Houve ainda pedidos de falência contra a empresa, ajuizados em Brasília. Posterior pedido de concordata distribuído e deferido em Goiânia deslocou para a capital do Estado de Goiás o foro competente, sendo ali, afinal, decretada a falência. Como foi amplamente divulgado na época, houve grande clamor popular, mas o Governo não ajudou e nada se conseguiu dos bancos oficiais. Ao contrário, o Governo, ou mais precisamente o Banco do Brasil, é que teria apressado o processo de quebra, na detalhada e documentada versão do então dono da Encol, Pedro Paulo de Souza2. Assim, os próprios adquirentes, com recursos próprios, é que assumiram a grande maioria das obras, seguindo o passo a passo da lei 4.591/64: criação das Comissões de Representantes (artigo 50); averbação do direito real junto ao Registro de Imóveis (artigo 35, § 4o); destituição da incorporadora (artigo 43,VI); obtenção de alvarás judiciais para assunção das obras abandonadas (no caso de empresa falida -artigo 43, III) e leilões extrajudiciais em relação às unidades inadimplentes (artigo 63). Além do livro já mencionado, que escrevemos contando a história de alguns empreendimentos do Rio de Janeiro, merece ser lido também "O Esqueleto Ressuscitado" - "Como um grupo de vítimas da Encol conseguiu resolver seus problemas". O grupo relata a experiência vivida para retomar e concluir o empreendimento Maison Bouganville, em Santo André, no ABC paulista. Uma frase de Platão mencionada no livro dá bem a noção deste trabalho: "Sejamos razoáveis, busquemos o impossível"3. Mas o certo é que, passados mais de vinte anos, mesmo tendo atingido cerca de 42 mil famílias, o caso Encol não foi suficiente para evitar que, ainda hoje, muita gente continue a comprar imóvel na planta sem uma assessoria jurídica prévia, correndo sérios riscos. Embora em escala menor, não são poucas as empresas que deixaram e vêm deixando de concluir as obras dos empreendimentos imobiliários. Tal fato decorre de má-gestão ou mesmo de má-fé, pois a atual legislação dá mais segurança jurídica e financeira aos investidores imobiliários (bancos, incorporadoras e outros agentes), através da alienação fiduciária e do patrimônio de afetação. Outra questão relevante diz respeito à situação das hipotecas que gravam imóveis construídos ou em fase de produção, quando surge o problema de caixa. A Encol possuía cerca de 250 empreendimentos (parados ou prontos) com hipoteca pendente. Até então (anos noventa), a tendência era a prevalência da hipoteca em detrimento do comprador, o que veio a mudar radicalmente, a partir de centenas de ações judiciais, visando à declaração judicial da ineficácia do gravame, culminando com a Súmula 308 do STJ: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel." DJ 25.04.2005. De toda forma, o caso Encol, que teve relação direta com a criação do patrimônio de afetação e os seguros destinados a garantir o término da obra, veio a despertar grande interesse no mundo acadêmico, como se pode ver da monografia da advogada Janiara Decker, de Canoas, RS, da Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis, com o título "Falência do incorporador, a proteção e os efeitos sobre o adquirente de boa-fé"4. A autora, em trabalho de grande pesquisa científica, demonstra a evolução ocorrida após o caso Encol em relação ao direito do consumidor, enfatizando o próprio Código Civil de 2002, que incorporou princípios importantes como a função social do contrato e a boa fé objetiva. Hoje ainda há obras paralisadas de grande número de edifícios, de diversas incorporadoras, mas em menor número. O que se observa com frequência alarmante é o atraso de um, dois e até três anos. São jovens que vão se casar, um filho que vai sair de casa, alguém que lutou para conseguir o primeiro imóvel, e tais atrasos geram um grande número de problemas, difíceis de serem ressarcidos pela via judicial. O mesmo se pode dizer de empreendimentos comerciais ou mistos. Retomada das obras pelos compradores: Ainda é uma boa solução Diante de uma obra com atraso considerável, ou mesmo abandonada, ainda é muito comum a distribuição de ação que postula a rescisão do negócio, com devolução do valor pago, mais perdas e danos materiais e morais. Se formos pesquisar a jurisprudência, inclusive do STJ, vamos encontrar inúmeros acórdãos condenando a incorporadora a indenizar o comprador, em caso de obra abandonada ou com grande atraso. Nada há de errado nesse tipo de ação judicial, que, inclusive, ganhou nova roupagem com o advento da lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, que "altera as leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano". Contudo, se a empresa está com dificuldade financeira grave, às beiras da insolvência, é arriscado trocar uma fração de terreno e benfeitorias adicionadas, por uma sentença que pode tornar-se inexequível (é o conhecido jargão de ganhar e não levar). Assim, muitas vezes, independente de eventual ação para cobrar o prejuízo, sem postular a rescisão, pode-se recorrer à retomada das obras, para o que existe, naturalmente, um longo caminho a percorrer, mas que, muitas vezes, é a melhor solução. O ponto de partida será a notificação judicial do incorporador, para que retome a obra, sob pena de destituição, na dicção do artigo 43 da lei 4.591: Art. 43 - Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (...) VI - se o incorporador, sem justa causa, devidamente comprovada, paralisar a obra por mais de 30 (trinta) dias, ou retardar-lhes excessivamente o andamento, poderá o juiz notificá-lo para que no prazo de 30 (trinta) dias as reinicie ou torne a dar-lhes o andamento normal. Desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se aos interessados prosseguir na obra. Inicialmente, a única providência judicial exigida é a prévia notificação, para constituição em mora do incorporador, ao dizer o texto legal que "o juiz notificará". Fora daí, todo o desenrolar da destituição do incorporador, com as consequências advindas, é feita de forma extrajudicial (inclusive o leilão a ser feito em relação aos inadimplentes). Quando o empreendimento está sob a tutela do patrimônio de afetação, mais atribuições são outorgadas aos compradores, como a outorga de escritura definitiva pela Comissão de Representantes, conforme o artigo 31-F, § 5º. De toda forma, a intenção clara do legislador é que todo o processo se faça fora da via judicial. Como está claríssimo no texto legal transcrito, "desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se aos interessados prosseguir na obra". Assim, o mais difícil, até então, é reunir a metade absoluta (metade mais um) dos adquirentes, para destituir o incorporador, pois essa nova situação, de fato e de direito, não depende de chancela judicial. Imissão de posse para a efetiva retomada das obras O ponto mais nevrálgico vem a ser a imissão da posse do empreendimento, após destituído o incorporador. Afinal de contas, ao tomar para si o empreendimento abandonado, os adquirentes assumem também o ônus relativo à segurança do local e dos riscos deixados pelo incorporador. O autor do projeto que resultou na lei 4.591 (Caio Mário), ressalta os pontos principais desta garantia legal dada aos compradores: "Verificado o fato - paralisação ou retardamento excessivo - o incorporador será notificado para reinicia a obra ou imprimir-lhe andamento normal". "Realizada esta, e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se reiniciem ou o andamento readquira a normalidade, os interessados não precisam a juízo para resolver o contrato, porque a lei lhes oferece a faculdade de, pela sua vontade, destituírem o incorporador". "Na verdade, lançá-los nos azares de uma demanda para, ao fim de luta porfiada, conseguirem com a resolução do contrato a liberdade de prosseguir com outro incorporador, ou tomarem diretamente a direção da edificação, sempre constituiu o maior obstáculo para que os interessados se movimentassem". "Desde porem que a destituição se pode fazer sem necessidade de recurso à autoridade judicial, os interessados já têm a faculdade de examinar a oportunidade de deliberarem". "Destituído o incorporador, os interessados se libertam dos compromissos e poderão prosseguir nas obras, sem que àquele assista mais qualquer direito". "Ao revés, restam-lhe apenas deveres, dos quais é imediato o de restituir as importâncias comprovadamente devidas, que lhe poderão ser reclamadas por via executiva (art. 43, alínea VI)5. Na grande maioria das vezes, o incorporados não se opõe e até colabora nessa fase, pois, afinal, se ele está com dificuldade de terminar a obra, os próprios compradores irão fazer isso no seu lugar. E assumir os demais ônus daí decorrentes. Só excepcionalmente é que isso não ocorre, quando, então, torna-se indispensável recorrer à Justiça, com ação de imissão de posse, e pedido de tutela de urgência. Com efeito, para prosseguir a obra, é indispensável exercer a posse do empreendimento, pois é impossível fazê-lo à distância. Em algumas cirurgias é possível fazer pela medicina robótica. Mas na construção civil ainda não existe outra fórmula que não seja meter a mão na massa. Neste sentido, recorre-se à jurisprudência do TJ/RJ, citando-se decisão constante da apelação cível 0050623-22.2012.8.19.0203, relator o Desembargador Gabriel de Oliveira Zefiro, em julgamento de 17 de abril de 2015, na 13ª Câmara Cível: Civil. Ação de imissão de posse ajuizada por Comissão de Adquirentes em face da incorporadora de empreendimento imobiliário. Sentença de procedência do pedido. Julgamento antecipado da lide corretamente efetivado, com escopo na prova documental adunada aos autos, porquanto bastaram para o convencimento do destinatário (art. 130 do CPC), não havendo necessidade de prova pericial. Rejeição da preliminar de cerceio de defesa. Prova dos autos a evidenciar que o incorporador não registrou o memorial descritivo de incorporação e não providenciou a renovação da licença de construção, o que denota constrangimento ao artigo 32, "g", da lei 4591/64 e às normas de polícia edilícia. Além disso, a demandada foi notificada para regularizar o andamento da obra no prazo de 30 dias, ao qual não acudiu, o que culminou na sua destituição pela maioria dos votos dos adquirentes em assembleia legitimamente constituída, nos termos do art. 49, §1º, da lei 4591/64, em que a presença do incorporador ou construtor só é obrigatória quando convocantes, conforme exegese que resulta do §3º do art. 49 da referida lei. Sentença de procedência do pedido corretamente prolatada. Desprovimento ao recurso que pretendia revertê-la, porquanto manifestamente improcedente. Decisão pautada no art. 557, caput, do CPC. Conclusão Ferramenta colocada à disposição dos compradores de imóveis na planta, a retomada de obras abandonadas ainda é pouco utilizada, por desconhecimento de muitos, ou pela prática, habitual, de simplesmente ir a Juízo. Contudo esse procedimento, que não depende de tutela judicial, salvo a prévia notificação de constituição em mora, e eventual ação de imissão de posse, é feita pelos próprios adquirentes, através das deliberações de sua Assembeia Geral. Hamilton Quirino Câmara é fundador e ex-presidente da CIMA - Câmara Imobiliária de Mediação e Arbitragem. Vice-presidente Imobiliário e árbitro do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Mediador do TJ/RJ e SECOVI RIO. Membro da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB/RJ, da ABAMI e do IBRADIM. Autor dos livros Manual do Sindico, Gestão Condominial, Condomínio Edilício e Falência do Incorporador Imobiliário (Caso Encol). Colaborador dos jornais O GLOBO e EXTRA acerca das questões imobiliárias. __________ Referências bibliográficas Câmara, Hamilton Quirino - Falência do Incorporador Imobiliário, o Caso Encol, 2004, Ed. Lumen Juris Souza, Pedro Paulo de, Encol, O Sequestro - Tudo o que você nao sabia. 2010, Bremen Mituo Terame, Fausto Cestari Filho, Wilson Carrillo Dburanello, Odair Moretto e Paulina de Cássia Sanches Fildélfio, Ediões Inteligentes, Sao Paulo, 2006. Pereira, Caio Mario da Silva, Condomínio e Incorporações, Forense, 11ª edição, págs. 252/253, (texto atualizado por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Challub). __________ 1 Câmara, Hamilton Quirino, Falência do Incorporador Imobiliário, o Caso Encol, 2004, Ed. Lumen Juris 2 Souza, Pedro Paulo de, Encol, O Sequestro - Tudo o que você nao sabia. 2010, Bremen 3 Mituo Terame, Fausto Cestari Filho, Wilson Carrillo Dburanello, Odair Moretto e Paulina de Cássia Sanches Fildélfio, Ediões Inteligentes, Sao Paulo, 2006. 4 Decker, Janiara, Falência do incorporador, a proteção e os efeitos sobre o adquirente de boa-fé, UniRitter, Canoas, RS, 2011. 5 Pereira, Caio Mário da Silva, Condomínio e Incorporações, Forense, 11ª edição, págs. 252/253, (texto atualizado por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Challub).
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide Introdução O objetivo do presente estudo é analisar brevemente1 a natureza e a disciplina jurídica do contrato de cessão de uso de espaço de unidades em shopping center. Trata-se, substancialmente, de contrato em que o empreendedor que administra determinado shopping center (ou centro comercial, como preferem os portugueses) cede espaço para que o lojista, mediante remuneração mensal, possa ocupá-lo e desenvolver sua atividade comercial. Embora, tal como referido acima, o contrato de shopping center tenha como principal prestação a cessão do uso do espaço, há diversas particularidades que o distinguem de um contrato de locação comercial ou arrendamento para fins não habitacionais. Nesses contratos não há apenas uma simples cessão do uso. O lojista é obrigado a cumprir diversas obrigações, recebendo em troca benefícios de obrigações a serem cumpridas pelo gestor2. No Brasil, o contrato é normalmente qualificado pela doutrina3 como "contrato de locação em shopping center" enquanto a doutrina portuguesa4 com maior cautela, não se refere à prestação, mas, simplesmente, como "contrato de cedência de espaço (ou utilização) em centro comercial". A questão da qualificação jurídica não é uma questão de terminologia ou de capricho acadêmico. Sendo o referido contrato qualificado como locação não residencial (ou arrendamento para fins não habitacionais) isso o classificará como contrato típico e o regime jurídico será enquadrado pela lei brasileira 8.245/1991 ou pelo Código Civil português. Caso tal contrato possua particularidades que o distingam dos contratos típicos referidos, poderá ser considerado atípico, tendo por consequência o afastamento daquelas regras, privilegiando-se as disposições contratuais. Assim, a questão da tipicidade e atipicidade, evidentemente, traz consequências relevantes na disciplina jurídica aplicável. Nesses termos, a partir da experiência de cada um dos países e pela modalidade da microcomparação5, pretende-se realizar a comparação do referido contrato nos diferentes sistemas, para que se possa identificar similitudes, divergências e as controvérsias jurisprudenciais. Confira a coluna na íntegra. __________ 1 Destacamos, desde já, que estamos finalizando artigo mais completo e abrangente a respeito do tema, que pretendemos publicar em breve. 2 Dentre as obrigações do lojista, cite-se, por exemplo (i) submissão à fiscalização para fins de apuração do percentual (aluguel variável); (ii) impossibilidade de mudar o ramo de negócio, sem prévia autorização; (iii) impossibilidade de cessão, transferência ou sublocação do espaço sem prévio consentimento; (iv) submissão do projeto da loja imposto pelo empreendedor; (v) pagamento de 13ª aluguel, em alguns casos; (vi) obrigação de manter a loja aberta nos dias determinados pelo empreendedor, dentre outras obrigações. Como contrapartida de suas obrigações, o empreendedor é normalmente obrigado a (i) fornecer segurança e limpeza ao empreendimento, (ii) realizar reformas ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel - pintura (fachada, esquadrias, etc.); (iv) realizar obras de paisagismo nas partes de uso comum; (v) realizar promoção e divulgação do shopping center ou centro comercial. 3 No Brasil, não há uma designação uníssona. Rodrigo Barcelos intitula simplesmente como "contrato de shopping center" (BARCELLOS, Rodrigo. O Contrato de Shopping Center e os Contratos Atípicos Interempresariais. São Paulo: Atlas. 2009). Caio Mário da Silva Pereira prefere "contrato de locação em shopping center" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Shopping centers: aspectos jurídicos. Coordenação: José Soares Arruda e Carlos Augusto da Silveira Lôbo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984), assim como Custódio da Piedade Ubaldino Miranda (MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Locação de imóveis urbanos: Comentários à lei 8.245/1991.2ª ed. São Paulo: Atlas, 1998) enquanto, Álvaro Villaça de Azevedo, tal como alguns portugueses, utiliza o nome "contrato de utilização de unidade em centros comerciais" (AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Atipicidade Mista do Contrato de Utilização de Unidade em Centros Comerciais e Seus Aspectos Fundamentais. Revista dos Tribunais, ano 84, vol. 716, p. 112-137, jun. 1995). 4 Também não há uma designação uniforme na doutrina portuguesa a respeito do contrato em análise. Rafael Vale e Reis qualifica o contrato em estudo como "contrato de cedência de espaço em centro comercial" (REIS, Rafael Vale e. Contrato de cedência de espaço em centro comercial: natureza jurídica. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita. v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. Já Inocêncio Galvão Telles prefere intitulá-lo como "contrato de utilização de espaço nos centros comerciais" (TELLES, Inocêncio Galvão. Contratos de utilização de espaços nos centros comerciais. O direito. Ano 123. 1991. Ana Afonso, por sua vez, preferiu designá-lo "contrato de instalação de lojista em centro comercial" (AFONSO, Ana. Anotação ao acórdão do STJ de 13 de setembro de 2007: o problema da qualificação e regime dos contratos de instalação de lojista em centro comercial. Revista de ciências empresariais e jurídicas. Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto. nº 13. 2008). 5 A microcomparação (ou comparação institucional), segundo Dário Moura Vicente, tem por objetivo comparar problemas jurídicos particulares, por exemplo, a responsabilidade civil do produto, a condição dos filhos nascidos fora do casamento, mediante a indagação dos tipos de soluções acolhidos por cada ordenamento. (VICENTE, Dário Moura. Direito comparado: introdução, sistemas jurídicos em geral. v. I, 4ª ed. São Paulo: Almedina, 2018).
Texto de autoria de Daniele Akamine Após um longo período de vacas magras, o mercado imobiliário brasileiro vive, novamente, um bom momento. A cidade de São Paulo, por exemplo, vem se transformando em um canteiro de obras, com novos empreendimentos surgindo em todas as regiões. Dados da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) mostram que houve um aumento de 23,9% no volume de lançamentos no País no terceiro trimestre na comparação ao mesmo período do ano anterior. As vendas também tiveram uma alta expressiva, de 15,4% no mesmo período, segundo dados da própria CBIC e do SecoviSP. São números que, sem dúvida, refletem uma recuperação do setor depois de uma estagnação de quase 5 anos. Mas o que podemos esperar para 2020? É importante ressaltar que o mercado imobiliário depende de um tripé composto por taxa de juros baixas, confiança em alta e emprego também em alta. Outro item de suma importância é a confiança jurídica. Experimentamos este ano a menor taxa do credito imobiliário desde o início da série histórica. Se, de 2015 a 2017, os juros alcançavam os dois dígitos, hoje eles estão na casa de um dígito e super competitivos. Para se ter uma ideia, os financiamentos do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) são oferecidos com taxas de 8,472 % ao ano para clientes com renda entre R$ 4 a 7 mil e de 9,555% para clientes com renda entre R$ 7.000,01 e 9 mil. Já no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) os bancos privados têm oferecido taxas a partir de 7,3% aa. A Selic, taxa básica de juros, caiu de 14,5% para 5%, menor patamar da história desde que o Copom foi criado, em 1996. Ela influencia diretamente os juros do credito imobiliário, embora seja somente um dos componentes do chamado spread bancário - 85% se referem à atividade em si, sendo que, desse total, os custos associados à inadimplência correspondem a 37%; as despesas tributárias, regulatórias e o Fundo Garantidor de Créditos (FGC), a 23%, e os gastos administrativos a 25%. A previsão é de que a SELIC encerre 2019 em 4,5%, nível que deverá se manter em 2020, conforme indica o relatório Focus, do Banco Central, que reúne as projeções dos analistas de mercado. Cabe lembrar que o credito imobiliário é a linha de financiamento que sofreu o maior reflexo da queda da Selic. Outras linhas, mesmo nesse cenário, mantiveram ou até mesmo aumentaram os juros - vide, por exemplo, o cartão de crédito. A questão, aqui, é que o financiamento imobiliário é uma modalidade de credito de longo prazo, que fideliza o tomador e possui um menor índice de inadimplência. A concorrência entre os cinco maiores bancos que atuam no mercado brasileiro também está acirrada. Este ano, a Caixa, que detém uma fatia de cerca de 70% do mercado imobiliário, anunciou duas reduções das taxas de juros, numa tentativa de fazer frente às instituições privadas. O banco também lançou uma linha de credito com juros inferior a 5%, mas com a correção atrelada ao IPCA e promete, para o próximo ano, uma linha de credito prefixada. A importância da queda na taxa de juros pode ser analisada mais de perto com base em um estudo da ABRAINC (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), segundo o qual para cada ponto percentual de redução nos juros imobiliários, pelo menos 2,8 milhões de famílias passariam a ter condições de contratar crédito. No caso dos imóveis de médio alto padrão, isso significa um aumento de 20% no número de famílias elegíveis para ter acesso ao crédito. Marcos regulatórios como a Lei 13.786/2018 (Lei do Distrato), corroboram com o aquecimento do mercado, pois trazem segurança às partes. Nesse caso específico, a segurança decorre justamente do fato de que regulamenta os casos de distrato, bem como o percentual a ser devolvido e o prazo para tal. Dados da ABRAINC referentes a setembro mostram que o número de distratos este ano caiu 34,1% em relação a 2018. Apenas para dar um exemplo, no caso da construtora MRV, esses índices despencaram 66,1% no acumulado de julho a setembro na comparação com trimestre anterior. Esses números, é bom esclarecer, não são frutos da Lei de Distrato. Pelo menos não diretamente, considerando que a norma só vale para os Compromissos de Venda e Compra firmados após a sua publicação. Consideramos que, nesse caso, o impacto da nova lei é indireto, já que o tema foi bastante discutido e abordado nos meios de comunicação. Acreditamos, portanto, que boa parte dos compradores já está ciente da existência da norma. Outro fato importante para o setor foi a alteração recente na Lei 12.414/2011, que torna automática a adesão de pessoas físicas e jurídicas ao Cadastro Positivo. Esse cenário favorece o bom pagador na obtenção de credito e reduz o risco do superendividamento, além de possibilitar uma gama maior de informações na hora da concessão do credito. No nosso entender, o Cadastro Positivo é um importante fator no processo de bancarização de uma parcela da população que hoje está fora do mercado de trabalho formal, podendo permitir que tenham acesso ao credito imobiliário. A capacidade de pagamento atestada pelo cadastro positivo é de suma importância para os planos de retomada do setor. De nada adianta a redução dos juros se as novas taxas não chegarem aos mutuários que dispõem apenas dessa comprovação para o perfil de bom pagador. O Índice de Expectativas do brasileiro aumentou 2,8% em outubro na comparação com o mês de setembro, maior valor desde janeiro de 2011, segundo dados da CNI - Confederação Nacional da Industria. Os brasileiros estão confiantes na recuperação da economia e, aparentemente, estão otimistas também em relação ao emprego. Essa confiança impulsiona o mercado; afinal, ninguém entra em um financiamento imobiliário quando tem medo de perder o emprego. A maioria dos indicadores reflete, portanto, um cenário de otimismo para o próximo ano. Mas existe uma ponta desse tripé que precisa ser equalizada e cujo cenário ainda não está tão claro e é justamente a questão do emprego. Segundo dados do CAGED, o Brasil gerou 157.213 vagas formais em setembro, o melhor dado para o mês desde 2013; no entanto, o País ainda tem 12,5 milhões de desempregados e 38,8 milhões de pessoas na informalidade - o que representa 41,4% da população ocupada. São considerados informais os trabalhadores no setor privado e empregados domésticos sem carteira de trabalho assinada, além de empregadores e trabalhadores por conta própria sem CNPJ. Precisamos de uma política pública capaz de gerar empregos e, mais do que isso, empregos formais. A tão celebrada reforma trabalhista, aprovada há dois anos, ainda não mostrou a que veio nesse aspecto. A reforma da previdência, tida como solução para todos os problemas do País, por si só, não será capaz de resolver nossos problemas no curto prazo; se será efetiva no médio e longo prazo só o tempo dirá e a nova bola da vez é a reforma tributária. Mas será que a simples desoneração da folha tem força para gerar os empregos de que o País precisa? O ano de 2020, como mencionamos, começa com boas perspectivas para o setor imobiliário. No entanto, para concretizar essas perspectivas, precisamos equalizar, além da questão do emprego, o orçamento dos recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), visto que este terá o menor volume de recursos de volume de sua história. As medidas de liberação do FGTS como forma de incentivo à economia também influenciam negativamente o setor habitacional. Nesse sentido, existe até mesmo uma perspectiva que em 2022 o fundo não possua mais recursos suficientes para dar conta da demanda por financiamento habitacional. Projetos de lei que liberem indiscriminadamente o uso do Fundo, assim como a exclusão da multa de 10% no caso de rescisão do contrato de trabalho, impedem o avanço do programa Minha Casa Minha Vida, que, ao longo dos anos de tormenta, foi o único programa resiliente, proporcionando algum alento à economia nos anos de recessão. O mercado imobiliário parece ter, finalmente, encontrado o caminho da retomada. Mas é preciso evitar as armadilhas de simplesmente ignorar os entraves que ainda existem. Caso contrário, cometeremos os mesmos erros do passado. ____________ *Daniele Akamine é advogada especialista em direito imobiliário, com MBA pela FIPE em Economia da Construção e Financiamento Imobiliario, sócia da Akamines Advogados e Negocios Imobiliarios e palestrante.