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Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Esse mês de outubro a Turma de Uniformização Cível do Juizado Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou o Incidente de Uniformização de Jurisprudência ("IUJ") n.º 0028314-18.2018.8.19.0002, deliberando sobre a existência, ou não, de abusividade na inserção de cláusula  em promessa de compra e venda de unidade imobiliária em construção que estabelece a obrigação de o promitente comprador do pagamento da chamada Taxa de Decoração, e ainda, a definição do prazo prescricional aplicável à hipótese de pretensão de restituição de pagamentos das referidas taxa. Esse julgamento foi relevante sob vários aspectos e por isso vale a pena nos debruçarmos sobre alguns conceitos que podemos extrair da análise da decisão exarada pela Juíza Relatora Simone Gastesi Chevrand. Primeiramente, a relatora ressaltou que estava decidindo em atenção aos precedentes vinculantes firmados pelo Superior Tribunal de Justiça, afastando a aplicação de uma Súmula do próprio Tribunal De Justiça - a Súmula 351 do TJ/RJ1 - esclarecendo que as razões determinantes que sustentavam aquela decisão estaria superado. Nessa esteira, a Juíza aplicou as teses fixadas nos Recursos Repetitivos do STJ, mais especificamente o tema 9382 determinando ser válida a cláusula que estipula como responsabilidade do comprador o pagamento da taxa de decoração, bem como definiu a prescrição trienal para as pretensões relacionadas às hipóteses de ressarcimento de taxa de decoração e de ligações definitivas, tudo na forma do art. 206, §3º, IV do Código Civil. O voto foi acompanhado de forma unânime pelos demais juízes componentes da Turma. A Importância do sistema de precedentes criado pelo Código de Processo Civil de 2015  Sob diversos ângulos, é extremamente elogiável a decisão da Turma de Uniformização do Juizado Especial Civil do TJRJ. Além de o seu teor nos parecer integralmente acertado, nota-se que foi proferida em desacordo com súmula anterior do próprio tribunal, o que, por si só, deve ser visto com bons olhos, porque se deu preferência a aplicação de tese produzida no bojo do julgamento de recursos repetitivos no STJ (tese 938). Percebe-se, nesta conduta dos Magistrados que julgaram o incidente de Uniformização, respeito absoluto ao sistema de precedentes trazido pelo CPC de 2015. Partindo do reconhecimento de que as decisões judiciais e a jurisprudência tem certa dose de carga normativa, na medida em que influenciam diretamente o comportamento dos indivíduos e das empresas na vida em sociedade, o novo Código aperfeiçoou um sistema de precedentes, que, de rigor, já estava esboçado no CPC de 1973 (v., por exemplo, os arts. 543, B e C). Entendeu-se que a isonomia não seria respeitada se cada juiz pudesse interpretar a lei de acordo com sua convicção. Não basta a aplicação da mesma lei para criar-se previsibilidade, para se concretizar a isonomia: em uma palavra, para que haja segurança jurídica. É necessário que a interpretação da lei seja também uniformizada. E isto se faz por meio de vários institutos, mas principalmente por meio dos precedentes vinculantes. Os recursos repetitivos geram precedentes que devem ser respeitados pelos outros Tribunais: eles são a lei, interpretada pelos Tribunais que têm a missão constitucional de dar a última palavra sobre o direito federal (STJ) / e sobre a Constituição Federal [nos casos revestidos de repercussão geral (STF)]. A criação desta figura (precedente vinculante) agiliza o trabalho dos juízes, desembargadores, ministros; melhora a performance do Judiciário; e, sobretudo, proporciona tratamento isonômico aos jurisdicionados. Nem sempre, todavia, os Tribunais de 2.º grau e juízos singulares veem com bons olhos esta sistemática. Existe ainda, uma certa resistência à aceitação deste novo "caminho" para decidir. Muitos entendem que o juiz estaria perdendo indevidamente sua liberdade de interpretar a lei. Outros, ainda, sustentam ser a vinculação a precedentes inconstitucionais. Sim, o juiz perde a liberdade de decidir de acordo com sua interpretação da lei. Mas quem ganha é a sociedade: prevalece o valor maior que é o da segurança jurídica. Por outro lado, nada há de inconstitucional num modelo que prestigia a isonomia e a previsibilidade, valores inerentes ao Estado de Direito.  A necessária observância à Lei de incorporações nº 4591/64, inobstante a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações contratuais de incorporações imobiliárias No caso concreto, se pretendia a declaração de nulidade da cláusula contratual que previa o pagamento de valores a título de "Taxa de Decoração", bem como o ressarcimento em dobro da quantia paga a esse título. É relevante observarmos que já havia sido decidida, em sede de Incidente de Uniformização Jurisprudencial, a abusividade, ou não, na inserção de cláusula em promessa de compra e venda de unidade imobiliária em construção que estabelece a obrigação de o promitente comprador do pagamento da "Taxa de Ligação Definitiva". E a mesma fundamentação desse precedente foi, como não poderia deixar de ser, observada no julgamento relativo à taxa de decoração, verba cobrada dos adquirentes para equipagem das áreas comuns dos empreendimentos imobiliários. Destaca-se que, no julgamento do IUJ nº 0005230-43.2018.8.19.0210, a Segunda Turma Recursal de Uniformização Cível decidiu pela validade da Taxa de Ligação Definitiva, desde que atendidos os seguintes parâmetros: (a) previsão clara da cobrança no instrumento contratual com definição dos serviços públicos abrangidos a serem pagos pelo consumidor, sendo vedada qualquer cobrança em desacordo com o art. 51 da lei 4.591/64 e (b) que o valor total cobrado não corresponda a um percentual desarrazoado ou aleatório do preço do imóvel, que, concretamente, onere excessivamente o consumidor. Veja que do ponto de vista do direito do consumidor, a mensagem que o Poder Judiciário transmite com estas decisões é que, o importante em qualquer acordo contratual é a transparência e a razoabilidade das obrigações assumidas. Nesse sentido, peculiaridades dos mais diversos tipos de negócio jurídico devem ser observadas e não se pode considerar qualquer tipo de taxa como abusiva per se. Havendo transparência na informação sobre a obrigação de pagamento, com ciência prévia e inequívoca da mesma e, ainda, sendo ela razoável e pertinente ao negócio entabulado não há abusividade. Aqui temos um conceito importante que se aplica a esse caso, mas também pode ser estendido para uma série de outras discussões onde se faz necessária aplicação da inteligência da Lei de incorporações nº 4591/64. A Lei de incorporações é uma norma que rege um negócio jurídico cuja função é promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações, ou conjunto de unidades autônomas3. É um negócio complexo que depende da conjunção de obrigações de diversas partes, o incorporador, o corretor, o construtor, o financiador e também os adquirentes. O equilíbrio entre essas obrigações é fundamental para que ao final todos os interesses sejam satisfeitos de forma adequada e é por isso que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor deve ser feita sem que se deixe de lado a sistemática criada pela legislação especial para garantir a conclusão da incorporação imobiliária com sucesso. Dessa forma, o Tribunal do Rio de Janeiro foi muito feliz ao consignar que, embora o Código de Proteção e Defesa do Consumidor seja aplicável às relações de consumo que envolvam compra e venda de imóveis na planta pelo sistema de incorporação imobiliária, não seria possível desconsiderar a lei 4.591/94. No tocante à taxa de decoração, vale destacar que está prevista a possibilidade de o incorporador transferir ao comprador conforme previsão do artigo 51 da Lei de incorporações onde se determina que "nos contratos de construção, seja qual fôr seu regime deverá constar expressamente a quem caberão as despesas com ligações de serviços públicos, devidas ao Poder Público, bem como as despesas indispensáveis à instalação, funcionamento e regulamentação do condomínio". Assim, não há dúvidas de que o enxoval para equipamento das áreas comuns são despesas indispensáveis à instalação e funcionamento do condomínio. E, é exatamente por isso, que tais despesas podem ser transferidas ao comprador por contrato. Importante destacar que no caso concreto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro usou o precedente do Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 1.599.511/SP4, julgado sob o regime dos recursos especiais repetitivos, também como fundamento da decisão. É relevante observarmos que a Corte Superior foi além da inteligência do precedente do Tribunal Estadual, considerando que mesmo verbas negociadas sem previsão legal expressa na lei de incorporações como as relativas a ligações definitivas e taxa de decoração, como é o caso da comissão de corretagem, podem ser livremente negociadas entre as partes. Nesse sentido, fora fixada a tese da validade da cláusula contratual que transfere ao comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem. Não é demais repetir, o que é relevante do ponto de vista do direito do consumidor é a transparência e a proporcionalidade das obrigações estimuladas nos contratos. A razão de ser da sistemática da incorporação imobiliária e da lógica econômica de que os custos e despesas poderão ao final compor o preço total do imóvel, não haverá abusividade em cláusulas em contratos que transfiram ao comprador obrigações de pagar custos e despesas relacionados à incorporação. Como antes esclarecido, a incorporação imobiliária é um negócio jurídico complexo que se consubstancia em um feixe de contratos entre múltiplos agentes. E é por isso que a aplicação da sistemática definida na Lei nº 4.591/64 é relevante, assim como será relevante levar em consideração os aspectos coletivos das obrigações assumidas pelas partes. Com efeito, não é razoável que todos se beneficiem, por exemplo, do enxoval das áreas comuns das edificações, mas somente alguns paguem por isso. Essa ratio deve ser observada inclusive em outros debates, travados no Judiciário hoje no que tange aos contratos de incorporações imobiliárias. Desse modo, destaca-se recente decisão da Min. Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial 1115605/RJ, onde ao apreciar uma demanda relativa a rescisão contratual, considerando o impacto coletivo que existe nas decisões sobre os negócios jurídicos de uma incorporação imobiliária, consignou a importância de "assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes". Todo magistrado, especialmente no sistema de precedentes em decisões de Incidentes de Uniformização de Jurisprudência e Recursos Repetitivos deve considerar as consequências práticas do que for julgar, especialmente se consideramos a importancia econômica e social da atividade da incorporação imobiliária. É inevitável (e desejável!) que se levem em conta os impactos das decisões judiciais sobre a realidade. A projeção destes impactos, na sociedade, deve orientar o juiz a escolher, dentre as possíveis soluções para os casos concretos, a MELHOR. Com isso não se quer, evidentemente, dizer que o juiz possa decidir apenas com base em argumentos consequencialistas. Não é isso, em absoluto. Mas, nos casos em que é possível dar à lei mais de uma interpretação, deve o magistrado optar por aquela cujos reflexos na sociedade COMO UM TODO sejam positivos.  Ainda que não seja oportuna digressão mais aprofundada neste espaço, é interessante se ter presente que as alterações feitas recentemente na LINDB não só autorizam como recomendam que o juiz leve em conta, para decidir, "as consequências práticas" da decisão (art. 20). O art. 21, parágrafo único, alude a que as decisões que invalidam atos, contratos, ajustes etc. não podem ignorar "interesses gerais". Os artigos incluídos pela Lei 13.655/2018, infelizmente, de redação vaga e complexa, apresentam a vantagem de deixar claro que as decisões do juiz devem ter sempre em conta a sociedade, fatos reais, sobre os quais sua decisão vai operar efeitos.  O direito imobiliário é um campo extremamente receptivo a este tipo de argumentação, de índole pragmática, complementar ao fundamento de natureza dogmática. Isto, como demonstramos neste breve artigo, tem sido bem compreendido pelos Tribunais brasileiros. Não podemos olvidar que o mercado imobiliário tem uma representatividade grande na macroeconomia do nosso país dada sua capacidade de gerar empregos e recolhimento de impostos, além é claro de ter como função social o oferecimento de moradia para a população brasileira. Não é por outro motivo que este julgamento mereceu destaque, eis que a Turma de Uniformização se alinhou aos precedentes do Superior Tribunal de Justiça homenageando assim o sistema de precedentes estabelecidos no Código de Processo Civil e levando em conta, também, a Lei especial da Incorporações imobiliária e os impactos econômicos da decisão. Enfim, caminhamos em busca da tão almejada segurança jurídica que beneficia a todos, o mercado, os investidores, os próprios consumidores e a sociedade como um todo. __________ 1 "O pagamento de despesas com decoração das áreas comuns, em incorporações imobiliárias, é de responsabilidade do incorporador, vedada sua transferência ao adquirente". Referência: processo administrativo nº. 0061460-61.2015.8.19.0000 - julgamento em 31/10/2016 - relator: desembargador nagib slaibi. votação por maioria. 2 Discussão quanto à: (i) prescrição da pretensão de restituição das parcelas pagas a título de comissão de corretagem e de assessoria imobiliária, sob o fundamento da abusividade da transferência desses encargos ao consumidor; e quanto à (ii) validade da cláusula contratual que transfere ao consumidor a obrigação de pagar comissão de corretagem e taxa de assessoria técnico-imobiliária (SATI). (i) Incidência da prescrição trienal sobre a pretensão de restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere (artigo 206, § 3º, IV, CC). (vide REsp n. 1.551.956/SP); (ii) Validade da cláusula contratual que transfere ao promitente-comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem; (vide REsp n. 1.599.511/SP); (ii, parte final) Abusividade da cobrança pelo promitente-vendedor do serviço de assessoria técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere, vinculado à celebração de promessa de compra e venda de imóvel. (vide REsp n. 1.599.511/SP). 3 Vide o disposto no parágrafo primeiro do artigo 28 da lei 4.591/64. 4 SJT. Resp n° 1.599.511/SP, Rel. Min Paulo de Tarso Sanseverino DJe. 6/9/2016.
Breve introdução Introdutoriamente, apenas em justificação ao título, a expressão "pagar o pato" é comumente utilizada no Brasil representando, no mais das vezes, ter de suportar consequências de situações cuja pessoa que arca com o ônus não lhe deu origem. É sabido que, por vezes, a fraseologia é empregada no sentido pejorativo, de certa injustiça, visto que geralmente o "pato" é a situação provocada por alguém (o que, acredita-se, não é o caso atual). É importante pontuar também, logo de início, que o presente artigo não tem qualquer intenção (e pretensão) de apresentar teses jurídicas a respeito da possibilidade ou não de revisão ou resolução contratual em relações a negócios jurídicos afetados (direta ou indiretamente) pelos efeitos deletérios da pandemia, mas, sim, expor algumas reflexões a respeito da forma que o Poder Judiciário interviu, intervém e poderá intervir nos contratos de locação, em especial com finalidade não residencial (ou, popularmente, comercial), através de liminares inaudita altera parte (como o próprio termo indica, sem ouvir a outra parte, desconhecendo, desse modo, a condição econômica e social da parte diretamente impactada pela decisão, que suportará o ônus da intervenção). Feitos tais esclarecimentos, vamos às breves reflexões. Contexto fático: A pandemia e as medidas de proteção Infelizmente, com a evolução do vírus mundialmente conhecido como novo coronavírus (que causa a doença Covid-19), que avançou pela Ásia e teve abrupta propagação na Europa, as autoridades competentes dos países em que a escalada de contágio ocorreu posteriormente aos continentes mencionados se apressaram em adotar medidas para evitar a contaminação em massa de suas populações, tendo em vista a trágica realidade noticiada na Itália e na Espanha, por exemplo, cujo sistema de saúde colapsou e acarretou alta taxa de letalidade do vírus.  Nacionalmente, dentre as medidas de enfrentamento ao vírus conhecidas, os Entes Federativos adotaram, em especial, o isolamento (e distanciamento) social, imposto através de decretos, estaduais e municipais, determinando o fechamento de estabelecimentos que exercem atividades consideradas "não essenciais", o que atingiu inúmeras atividades (e esta é, ou era, a finalidade da medida). Tais medidas, embora em consonância com as diretrizes mundiais relacionadas à saúde, causaram (e ainda causam em menor intensidade) significativo impacto econômico e jurídico em inúmeras relações contratuais. Em razão disso, principalmente nos meses de março, abril, maio e junho, surgiram diversas demandas judiciais cujos pleitos se relacionam, direta ou indiretamente, com as restrições impostas e, em última análise, com consequências ainda da pandemia. Primeiros impactos da pandemia nos contratos de locação: Apesar do amparo legal, a negociação se mostrou (e se mostra) imprescindível Trazendo a questão para os contratos de locação, observaram-se inúmeros processos movidos por locatários pleiteando a isenção de aluguel durante o período da pandemia (não somente até o fim das restrições decorrentes dos decreto mencionados, mas até o cenário econômico se reestabelecer - o que não há previsão, assim como a própria pandemia), moratórias/diferimento no pagamento de aluguéis relacionado ao período atingido pelas restrições ou, subsidiariamente, a redução (por vezes drástica) do valor do aluguel ajustado. Reafirmando o que foi exposto acima, não se pretende aqui aprofundar teses jurídicas a respeito da possibilidade, ou não, de revisão ou resolução contratual. Tal questão, em maior ou menor medida, sob uma perspectiva ou outra, já foi brilhantemente exposta em diversos artigos, com maestria e clareza, dos quais destacam-se os produzidos por: (i) José Fernando Simão1-2; (ii) Aline de Miranda Valverde Terra3 (neste trabalho, destaca-se a tese defendida pela aplicabilidade do artigo 567 do Código Civil como fundamento legal para a alteração contratual, isto é, redução do aluguel proporcional à "deterioração", leia-se limitação das faculdades adquiridas pela locação, enquanto esta perdurar); (iii) Flávio Tartuce4; (v) Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva e Antônio Pedro Dias5. Vale destacar também o artigo do professor Alexandre Junqueira Gomide6, para frisar que existem certas relações contratuais que demandam maior atenção caso seja necessária a interferência do Poder Judiciário, visto que uma decisão liminar pode trazer, naquela relação específica, onerosidade excessiva para o credor, tais como os contratos de built to suit, espécie contratual que o referido autor trata brilhantemente em suas obras, que envolve um complexo de obrigações não apenas relacionadas à locação de bem imóvel, mas, a depender da modalidade, de empreitada ou de empreitada e compra e venda somadas à locação do imóvel. Em tais casos, a contraprestação do locatário não remunera apenas o uso do imóvel, mas também todo o investimento realizado pelo locador/empreendedor imobiliário para construir e disponibilizar um imóvel sob medida para o locatário. Cabe menção ainda ao artigo relacionando o tema com o dever de renegociar, fruto de brilhante tese defendida há anos por Anderson Schreiber7, matéria de suma importância e que, diante do atual cenário, mostrou-se questão indispensável ao direito civil, em especial à teoria geral dos contratos. Obviamente, não se ignora que a pandemia é motivo imprevisível ou, ainda que se considere previsível (mesmo nessa hipótese, a situação não compõe a álea normal de grande maioria dos contratos), suas consequências são imprevisíveis8 e podem, sim, causar tanto a desproporção manifesta da prestação devida (artigo 317 do Código Civil) como provocar excessiva onerosidade para uma parte da relação contratual e extrema vantagem para outra9 (artigo 487 do Código Civil), a depender, evidentemente, da análise do caso concreto. De todo modo, cabe, primeiramente aos contratantes (como será justificado a seguir), e, em última instância, ao juiz, buscar o reequilíbrio contratual. Em resumo, a depender dos elementos fáticos do contrato de locação firmado em momento anterior, as consequências advindas da pandemia podem, sim, ensejar a aplicação dos dispositivos autorizadores de revisão (artigo 317 ou 479 do Código Civil, considerando as peculiaridades da demanda) ou resolução contratual (artigo 478 do Código Civil), mas sempre pontual e mínima em tais casos. Vale ressaltar que se aborda, neste artigo, momento anterior ao inadimplemento, razão pela qual não foram citados os artigos 393 e 475 do Código Civil. Antes de adentrar no ponto central do presente artigo, cabe uma breve interrupção para expor que, em tais casos (necessidade de revisão ou resolução do contrato), filio-me à tese de autoria de Anderson Schreiber sobre a existência às partes do dever de renegociar as obrigações (prestações) que se desequilibraram. Tal dever comportamental (adotando a terminologia técnica, é uma obrigação de meio e não de resultado) que se fundamenta implicitamente na norma contida no artigo 422 do Código Civil, que consagra o princípio da boa-fé no plano objetivo, isto é, que determina uma conduta (e não intenção) proba e leal, na conclusão e também durante a execução do contrato. Assim, como bem expõe o Professor Flávio Tartuce10, "tornou-se comum associar a boa-fé objetiva a deveres anexos ou laterais de conduta, que são deveres inerentes a qualquer contrato, e que sequer necessitam de previsão no instrumento11" (não sublinhado no original), podendo, em casos tais, ser representado pela máxima (dever) de mitigação do próprio prejuízo (ou duty to mitigate the loss), visto que a desproporção da prestação ou a onerosidade excessiva podem levar à ruína o devedor e, de tal modo, proporcionar prejuízos ao próprio credor. Ainda sobre o dever de renegociação, enfatizando a sua importância, vale indicar a leitura do artigo do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, publicado no site Migalhas, na coluna Migalhas Contratuais, que sugere a edição de lei federal, de natureza excepcional (assim como a situação em que nos encontramos), determinando o efetivo exercício do dever de renegociar como requisito prévio ou condição de procedibilidade para o ajuizamento de ação destinada a revisar ou resolver contratos12 (reitera-se, de caráter excepcional). Encerrando a exposição deste tópico, não se perde de vista que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (lei Federal 13.874/2019), em especial pelos artigos 2°, incisos I, II e III, e na inclusão do artigo 421, Parágrafo Único, e do artigo 421-A, caput (aqui, vale destacar, voltado aos contratos civis e empresariais) e incisos, todos do Código Civil, reforça a aplicação do dever de renegociar, visto que impõe expressamente limites a revisão judicial dos contratos, devendo a intervenção estatal ocorrer em última instância (positiva os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual) e claramente indica às contratantes, ainda que como faculdade, o caminho a ser seguido, isto é, a definição de parâmetros para interpretação das cláusulas negociais, pressupostos de revisão ou de resolução. Superado esse ponto, e voltando os olhos para os casos em que não houve a renegociação entre os contratantes, a questão que apresenta-se é: havendo elementos no plano fático que justifiquem a intervenção, qual o critério inicial para se estabelecer a revisão do contrato em juízo? Intervenções judiciais: O remédio que, a depender da dose, pode se tornar veneno Demonstrada a necessidade de intervenção judicial, cabe trazer à tona, pois aplica-se perfeitamente ao caso, preocupação que pode ser representada por um famoso dito popular: a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Em análise junto a base do Tribunal de Justiça de São Paulo, observou-se, inicialmente, elevado número de concessão de liminares inaudita altera parte (por óbvio, como a própria expressão revela, tendo o magistrado observado apenas a versão de um dos contratantes) concedendo verdadeiras moratórias, algumas suspensões abarcando o período fixo de três ou quatro meses e outras, no entanto, suspendendo aluguéis referentes aos meses afetados pelas medidas de enfrentamento à pandemia e, ainda, por período de até quatro meses após o término da quarentena (moratória por prazo indeterminado). Em alguns casos impressionou o alcance da decisão, que chegam a isentar totalmente os aluguéis ou suspendem significativamente tal obrigação. Sem citar este ou aquele processo, pois não é este o objetivo e certamente um ou outro caso deve ter chegado ao conhecimento do leitor, o impacto que algumas das liminares, caso mantidas, certamente trouxe e trará grave ônus para o locador do imóvel que, em alguns casos, se verá sem receber os aluguéis durante meses e não poderá fazer nada a respeito (considerando a vigência das liminares). Obviamente, a saída (pelo jeito a única) será o ingresso no feito, apresentando o seu lado da história a fim de tentar modificar o status quo, reestabelecendo o equilíbrio. Veja que, curiosamente, a concessão da liminar que atendeu ao pleito do locatário para sanar um suposto desequilíbrio contratual provocado pela aparição do cisne negro (fato imprevisível ou com efeitos inesperados) proporcionou (ou proporciona) ao locador a assunção de um ônus que talvez não tenha condições de suportar, levando este a recorrer ao Judiciário para não suportar o ônus decorrente de situação que não causou (o busílis de quem irá pagar o "cisne negro" ou "pato"). Preocupado com tal questão, e certamente visando contribuir para que não se instale o caos jurídico em razão de milhares de decisões (ainda mais liminares que surpreendem o prejudicado) adotando critérios díspares, José Fernando Simão propôs interessante método, indicando as seguintes diretrizes para que se busque restabelecer o equilíbrio contratual, quais são: (i) análise do lucro do contrato de acordo com a atividade desenvolvida, indicando que a parcela devida correspondente a remuneração do lucro deve ter o pagamento prorrogado quando do estabelecimento da "normalidade" ou retomada das circunstâncias anteriores; (ii) análise da capacidade econômico-financeira das partes; (iii) análise do ramo de atividade e seu potencial de recuperação da iminente recessão que se aproxima; (iv) evitar a moratória completa (suspensão total do pagamento)13. Tais diretrizes parecem razoáveis e, a princípio, coadunam com o que dispõe o artigo 113, § 1°, inciso V, do Código Civil, que parece ser dispositivo apto a orientar o magistrado na busca pela decisão mais equânime ao caso concreto, dialogando, assim, com o artigo 5° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) - que, acredito, fundamenta a busca (e aplicação) pela justiça do caso concreto, respeitada, evidentemente, a legislação vigente. Aliás, como bem define o Professor Flávio Tartuce14, "equidade pode ser conceituada como sendo o uso do bom-senso, a justiça do caso particular, mediante adaptação razoável da lei ao caso concreto. Na concepção aristotélica é definida como justiça do caso concreto". E não é diferente a postura do Superior Tribunal de Justiça, como se verá. Foi com base na equidade que o STJ resolveu o conhecido caso dos contratos de leasing celebrados em período anterior a 1999, cuja correção monetária das prestações foi atrelada à variação cambial do dólar americano (USD). Na ocasião, como bem observa Jorge Cesa Ferreira da Silva15, embora voto vencido no REsp 268.661/RJ, o Ministro Ari Pargendler proferiu excelente voto que, posteriormente, foi seguido no julgamento de outros acórdãos da Corte Superior, tornando-se posicionamento do STJ16-17, merecendo destaque o seguinte trecho: "A probabilidade de mudanças nesse âmbito, portanto, fazia parte do cenário, mas as partes quiseram, ambas, acreditar que teriam tempo de fazer um bom negócio. Cada qual, por isso, tem uma parcela de (ir) responsabilidade pela onerosidade que dele resultou, e nada mais razoável que a suportem. Tal é o regime legal, que protege o consumidor da onerosidade excessiva, sem prejuízo das bases do contrato. Se a onerosidade superveniente não pode ser afastada sem grave lesão à outra parte, impõe-se uma solução de equidade. O acórdão recorrido, data venia, errou ao aliviar o consumidor daquela parcela de onerosidade que poderia suportar, não excessiva, lesando gravemente o arrendador ao imputar-lhe integralmente os efeitos do fato superveniente". Afastadas as particularidades dos cisnes negros, acredito que, em caso de necessidade de intervenção judicial nos contratos de locação, o juiz deve buscar uma decisão por equidade, postura já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e que encontra amparo em diversos dispositivos legais18, em especial o artigo 113, §1°, inciso V, do Código Civil, e o artigo 5º da LINDB. Trata-se de verificar a ética da situação e alcançar o que Nelson Rosenvald19 chama de norma do caso, visando, sempre, não se afastar da manutenção da segurança jurídica que o jurisdicionado precisa ter. Afinal, como o referido autor expõe, "não há mais espaço para uma tutela jurídica baseada em juízo de plena subsunção. Devemos investigar as peculiaridades das pessoas que vivenciam a relação, a materialidade da hipótese e os diferentes graus de intensidade de atuação do ordenamento diante da riqueza de situações existenciais que concretamente serão detectadas"20. Assim, dada a seriedade e delicadeza das situações observadas, em tais casos não há espaço para uma aplicação binária do ordenamento jurídico. Como orienta a expressão popular "nem tanto ao mar nem tanto à terra", deve-se ter cautela, ainda mais quando trata-se de liminar inaudita altera parte, visto que a outra parte sequer teve a oportunidade de apresentar a sua realidade ao magistrado, que pode igual ou pior a do requerente. Não por acaso, da mesma maneira que se observou nos meses de março, abril, maio e junho uma grande quantidade de concessão de liminares versando sobre modificação de condições essenciais em relações contratuais de locação, atualmente nota-se um grande número de Acórdãos proferidos em sede de Agravo de Instrumento modificam ou até mesmo revogam integralmente as liminares outrora concedidas21 - nesse ponto, vale destacar a responsabilidade da parte que requereu a tutela de urgência aos danos causados pela efetivação da decisão em caso de cessação de sua eficácia (vide artigo 302, III, do Código de Processo Civil22). É preciso dizer (e reconhecer) que os Tribunais têm tido a cautela necessária para analisar tais casos e optado por aprofundar o juízo probatório antes de conceder a liminar pleiteada pelo locatário, visando evitar de forma precipitada onerar demasiadamente o locador - seguindo o dito popular acima mencionado. Essa postura mais conservadora e cautelosa dos Tribunais contribui, e muito, para preservar a confiança no sistema das locações urbanas, como bem expõe o meu colega, brilhante advogado e professor, Jaques Bushatsky23, questão importante e necessária, ainda mais no período de crise que para alguns se aproxima, para outros já chegou e para muitos (boa parte da população brasileira) persiste há alguns anos. Embora de início a situação atual tenha causado certo pânico (inclusive no âmbito jurídico), como bem afirma Humberto Martins24, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, "uma coisa há de ser dita: o Direito Privado brasileiro acumulou grande experiência em lidar com diversos cenários econômicos". Certamente o Poder Judiciário aplicará o direito na melhor forma, buscando trazer segurança aos jurisdicionados. É isto que se tem observado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (e também em outros Tribunais pátrios). Conclusão São tempos difíceis e não há fórmula exata. Não se desconhece que podem existir situações em que a liminar se mostrará necessária. Contudo, espera-se que o julgador busque, sempre, adaptar a aplicação dos dispositivos legais à realidade apresentada no caso concreto, analisando a racionalidade econômica das partes e visando obter um juízo por equidade a fim de não imputar integralmente os efeitos negativos ao locador. Diante das breves reflexões expostas, resta a conclusão de que, diante do cenário atual, embora ninguém queira pagar o "pato" (ou, no caso do presente artigo, o "cisne negro"), infelizmente essa conta será (e deve ser) assumida pelos contratantes - como bem pontua o Professor José Fernando Simão25, "nos momentos de crise, o jogo é de perde-perde". Entretanto, em relação à proporção das perdas, caberá profunda análise do caso concreto, ficando a ressalva, nesse ponto, de que os contratantes devem priorizar a renegociação à judicialização - afinal, ninguém melhor do que locador e locatário para analisar os impactos da pandemia na relação contratual e estabelecer meios criativos de adequar as obrigações convencionadas à nova realidade e, assim, preservar o vínculo de forma harmônica e solidária. Mas, sendo o caso de intervenção judicial, que a equidade e a cautela estejam presentes na análise técnica do julgador. *Guilherme de Freitas Antônio é advogado, pós-graduando em Direito Público e membro da Comissão de Direito Imobiliário da 39ª Subseção da OAB/SP. __________ *Cisne negro - expressão utilizada para conceituar um outlier (em português seria "ponto fora da curva" ou outra expressão que represente dados extremamente destoantes em amostras estatísticas) e que, para a presente leitura, será utilizado para representar o fato imprevisível ou, ainda que previsível para alguns, com efeitos inesperados. Vale ressaltar que o conceito foi desenvolvido por Nassim Nicholas Taleb, cuja ideia ganhou corpo e forma na obra "A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável". 1 "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  2 Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  3 Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  4 O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  5 Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  6 A revisão dos contratos de built to suit em tempos de pandemia. Disponível aqui. Acesso em 25/9/2020.  7 Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  8 Enunciado n° 17 do Conselho da Justiça Federal: A interpretação da expressão "motivos imprevisíveis" constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não-previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis.  9 Enunciado n° 365 do Conselho da Justiça Federal: A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.  10 Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007, p.200.  11 Vale mencionar ainda que "o desenvolvimento da tese dos deveres anexos, no Brasil, é atribuído a Clóvis do Couto e Silva (A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 113)" (TARTUCE, op. cit., p. 200).  12 Disponível aqui. Acesso em 27/4/2020.  13 Vide o artigo "O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio", indicado acima.  14 Manual de direito civil: volume único. 8. ed. rev, atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 24.  15 Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, pp. 183/184.  16 "LEASING. Variação cambial. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Distribuição dos efeitos. A brusca alteração da política cambial do governo, elevando o valor das prestações mensais dos contratos de longa duração, como leasing, constitui fato superveniente que deve ser ponderado pelo juiz para modificar o contrato e repartir entre os contratantes os efeitos do fato novo. Com isso, nem se mantém a cláusula da variação cambial em sua inteireza, porque seria muito gravoso ao arrendatário, nem se substitui por outro índice interno de correção, porque oneraria demasiadamente arrendador que obteve recurso externo, mas se permite a atualização pela variação cambial, cuja diferença é cobrável do arrendatário por metade" (REsp 401.021/ES. Quarta Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, R. p/acórdão Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 17/12/2002).  17 "CIVIL ARRENDAMENTO MERCANTIL. CONTRATO COM CLÁUSULA DE REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAMBIAL. VALIDADE. ELEVAÇÃO ACENTUADA DA COTAÇÃO DA MOEDA NORTE-AMERICANA. FATO NOVO. ONEROSIDADE EXCESSIVA AO CONSUMIDOR. REPARTIÇÃO DOS ÔNUS. LEI N. 8.880/94, ART. 6º. CDC, ART. 6º, V. I. Não é nula cláusula de contrato de arrendamento mercantil que prevê reajuste das prestações com base na variação da cotação de moeda estrangeira, eis que expressamente autorizada em norma legal específica (art. 6º da lei 8.880/94). II. Admissível, contudo, a incidência da lei 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pacto celebrado, consubstanciado, no caso, por aumento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento. III. Índice de reajuste repartido, a partir de 19.01.99 inclusive, eqüitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez legal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimplemento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e também alheio à sua vontade. IV. Recurso especial conhecido e parcialmente provido." (REsp 473.140/SP. Segunda Seção, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, R. p/acórdão Min. Aldir Passarinho Júnior, julgado em 12/2/2003).  18 Artigo 413 do Código Civil; Artigo 140, Parágrafo Único, do Código de Processo Civil.  19 Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 73.  20 Op. cit., p. 74.  21 Nesse sentido: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL - LOCAÇÃO COMERCIAL - SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICO-FINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM - INSURGÊNCIA DOS REQUERIDOS - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 300 DO CPC - RECURSO PROVIDO. O contrato de locação comercial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Inexiste também prova do perigo de dano, pois não há notícia sobre qualquer notificação de mora ou de despejo por parte dos locadores, que certamente estão passando pelos mesmos percalços financeiros e, de acordo com o documento juntado aos autos, aventaram a possibilidade de resolução do contrato sem imposição de sanções. Consigne-se, ainda, que o cenário atual é de flexibilização das regras de isolamento e de retomada gradual das atividades comerciais, o que possibilitará o aumento do faturamento das empresas. Recurso provido para revogar a tutela de urgência concedida na origem." (TJSP; Agravo de Instrumento 2159124-87.2020.8.26.0000; Relator (a): Francisco Carlos Inouye Shintate; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/08/2020; Data de Registro: 26/8/2020).  22 "Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:  (...)  III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal";  23 Preservar a confiança no sistema das locações urbanas. Disponível aqui. Acesso em 25/9/2020.  24 Disponível aqui. Acesso em 28/4/2020. 25 Vide o artigo "O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio", indicado acima.
quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Regime jurídico geral do contrato fiduciário

Visando à criação de um ambiente de segurança jurídica compatível com as necessidades de reativação da atividade econômica, o PL 4.758/2020, do deputado Enrico Misasi, propõe a regulamentação do regime jurídico geral da operação de fidúcia, alinhado ao conceito básico do trust enunciado no art. 2º da Convenção de Haia de 1985. A iniciativa adota anteprojeto sugerido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros1, fundado em estudos de direito comparado e na experiência extraída de precedentes do direito brasileiro, nos quais "aspectos e funções pontuais do trust em função de garantia e de administração (gestão) têm sido apreendidos por via legislativa"2. Originário do direito inglês, o trust é negócio jurídico pelo qual um sujeito, denominado settlor (fiduciante) transmite a propriedade de bens a um trustee (fiduciário), que os recebe para aplicação em um específico escopo e se obriga a retransmiti-los a um cestui que trust (beneficiário) ou ao próprio settlor (fiduciante). Nessa operação, a despeito de receber a propriedade, o trustee (fiduciário) não é investido no feixe de direitos subjetivos inerentes à fruição em seu próprio proveito, mas, sim, no poder-dever de exercer a propriedade em proveito do settlor (fiduciante) ou de um beneficiário por este indicado.   Por força desse negócio, os bens transmitidos são afetados a um determinado fim, mecanismo que confere incomparável segurança jurídica em relação a determinadas modalidades de negócio cuja administração de ativos, por exigir expertise, é confiada a terceiros, profissionais especializados, em situações nas quais é necessária ou conveniente a atribuição da propriedade ao administrador, para que possa exercer eficientemente os investimentos; há outras situações em que a segregação patrimonial é necessária para efeito de garantia ou é recomendável para efeito de limitação de responsabilidade na realização de investimentos ou em certas atividades empresariais; em qualquer dessas situações é essencial que o negócio e os interesses das partes envolvidas sejam tutelados em termos precisos, mediante legislação que regulamente a atribuição fiduciária ou a afetação como meio de blindagem patrimonial visando à preservação de ativos para realização do fim específico do negócio e proteção patrimonial dos interessados. Situação das mais frequentes, que reclama a máxima eficácia da segurança jurídica dos investimentos privados, é a diversificação e multiplicação dos meios de captação de recursos do público, envolvendo milhões de interessados, sobretudo pequenos e médios investidores e poupadores, que confiam a aplicação dos seus recursos a empresas especializadas. Casos como o dos fundos de investimento reclamam a criação de um patrimônio de afetação no qual sejam alocados os bens que constituirão a carteira de investimento, que é indispensável para impedir que os aportes financeiros do investidor se confundam com outros bens numa única massa no patrimônio da empresa administradora do fundo, o que possibilitaria a fraude do regime de vinculação dos recursos ao escopo específico para o qual foram afetados, tornando o investidor um simples credor quirografário da companhia administradora. Situações como essas se encontram dentro do fenômeno da titularidade por conta de terceiros, "que é característica precípua das formas modernas de gestão da riqueza"3, nas quais é necessário colocar num patrimônio separado os bens e demais recursos  integrantes do acervo de determinado negócio, visando à tutela do investidor-fiduciante, o que, em geral, se faz mediante constituição de propriedade fiduciária. O mecanismo é típico do trust e, como já observou Waldemar Ferreira, por servir a uma infinidade de situações, "responde fundamentalmente ao desejo de dar ao direito privado nacional a flexibilidade necessária para que permita alcançar fins de impossível ou difícil realização dentro dos esquemas tradicionais"4. A despeito dos obstáculos de natureza histórica e estrutural que impedem a translação pura e simples do trust para os sistemas do civil law, a extraordinária utilidade da atribuição fiduciária da propriedade vem justificando a atualização da fidúcia de forma a viabilizar a conformação de figuras de natureza fiduciária capazes de produzir efeitos jurídicos e econômicos semelhantes aos do trust, sem, contudo, afrontar os princípios fundamentais dos sistemas de tradição romano-germânica. Com efeito, considerando-se que o trust tem como elementos essenciais um patrimônio determinado e uma afetação, é possível obter os efeitos econômicos e jurídicos do trust mediante constituição de um patrimônio autônomo e sua vinculação à realização de um escopo específico, isto é, mediante a atribuição de um direito patrimonial - propriedade fiduciária - a alguém, para que o administre no interesse de outrem ou mediante simples afetação patrimonial independente de transmissão fiduciária. A afetação isola o patrimônio autônomo, que não se comunica com o restante do patrimônio do fiduciante, afasta os bens e direitos que o integram do risco de constrição por execução de dívidas não vinculadas ao negócio que constitui o escopo específico, tal como ocorre com o Fundo de Investimento, em que o patrimônio do administrador é separado dos recursos aportados pelos cotistas. Traço característico da natureza jurídica do patrimônio de afetação, ou de destinação, é, como anota Ferrara, sua subordinação a um regime de responsabilidade própria, pelo qual só responde pelas "obrigações e responsabilidade que dele nascem, e que não suporta os efeitos das obrigações várias do titular do patrimônio". Sendo essa limitação de responsabilidade necessária para consecução de determinada finalidade econômica ou social, o núcleo patrimonial a ela destinado permanece incomunicável, visando a que a consecução da sua finalidade não seja inviabilizada por efeitos negativos de eventual desequilíbrio do patrimônio geral do instituidor da afetação; afinal, esses núcleos patrimoniais, como observa Enneccerus, são instituídos "no interesse de determinado fim e especialmente com referência à responsabilidade por dívidas são tratados sob certos aspectos como um todo distinto do patrimônio restante"5. É com essa conformação que vem sendo reconstruída a figura da fidúcia, frequentemente sob forma de fideicomisso, visando a alcançar efeitos semelhantes àqueles propiciados pelo trust6. O mecanismo é de tal importância que se espraiou por todos os continentes, seja na forma de trust, seja numa versão moderna da fidúcia. Está presente desde a Austrália, Escócia, África do Sul, passa pela Itália, Portugal, Espanha, Luxemburgo, segue até a China, o Japão, instala-se no Líbano, em Dubai, vai até Quebec e espalha-se por toda a América latina. Vejam-se a operação de fidúcia do direito francês e o contrato de fideicomisso tipificado pelo Código Civil argentino de 2014, que identificam os "negócios fiduciários como modelo jurídico apto a receber com caráter geral - embora limitado em alguns relevantes aspectos - funções cometidas ao trust nos direitos anglo-saxões, sendo hoje indiscutida a utilidade, se não mesmo a necessidade, de inserir essa figura flexível, elástica e genérica no arsenal jurídico dos distintos países de tradição romanística, ainda que sobrevindas algumas dificuldades de ordem sistemática"7. No Brasil, a ideia também vem sendo assimilada, mas para situações específicas, sob a forma de contratos de transmissão de bens e direitos em garantia fiduciária, a partir da regulamentação da propriedade fiduciária atribuída a empresas administradoras dos fundos de investimento imobiliário (lei 8.668/1993), do regime fiduciário para securitização de créditos imobiliários e da cessão fiduciária de direitos creditórios (lei 9.514/1997), da segregação patrimonial de cada empreendimento na atividade da incorporação imobiliária (lei 10.931/2004), entre outras situações específicas. Por meio dessas normas legais o direito brasileiro veio permitir a afetação patrimonial para determinadas situações, mas o tratamento casuístico, errático e disperso limita o campo de aplicação desse importante mecanismo, dificulta sua compreensão e dá causa a dúvidas e incertezas, sendo de todo recomendável a sistematização das normas sobre a matéria em termos completos e abrangentes. A instituição de um regime geral da transmissão fiduciária da propriedade e da afetação constitui elemento de previsibilidade e de calculabilidade de incomparável eficácia como mecanismo de limitação de responsabilidade e estímulo a investimentos e financiamentos, na medida em que define em termos específicos o risco do negócio e o circunscreve aos limites do patrimônio autônomo criado especificamente para realização do seu fim. Por essa forma, ao lançar-se a empreendimentos organizados sob regime fiduciário, o investidor dispõe de elementos seguros para estimação do seu risco, dado o regime de vinculação de receitas a que se submete o patrimônio de afetação, certo de que os bens e direitos destinados àquele negócio específico permanecerão a ele vinculados com exclusividade e não responderão por obrigações estranhas ao seu escopo. O mecanismo não compromete nem prejudica o direito dos credores não-vinculados ao negócio específico, pois a atribuição fiduciária e a afetação submetem-se aos mesmos requisitos de validade e eficácia da alienação ou oneração de bens, em geral, isto é, aos mesmos controles a que se sujeitam quaisquer atos de disposição de bens ou constituição de garantia. Assim, do mesmo modo que é anulável ou ineficaz qualquer ato de venda, doação, hipoteca, alienação fiduciária etc em que se caracterizar fraude a credores ou à execução, é igualmente anulável ou ineficaz a transmissão fiduciária ou a constituição de um patrimônio de afetação em que se caracterizar fraude, tal como já suficientemente disciplinado na legislação comum. Em nosso país, a despeito do casuísmo das normas sobre a segregação patrimonial, sua aplicação prática já vem produzindo precedentes judiciais que demonstram sua efetividade como mecanismo de preservação dos recursos vinculados ao fim a que são destinados pela afetação. São casos da afetação de determinados empreendimentos de empresas incorporadoras imobiliárias que vieram a submeter-se ao procedimento de recuperação judicial, cuja incomunicabilidade e vinculação de receitas têm sido preservadas pela jurisprudência, que exclui os patrimônios de afetação do plano de recuperação, de modo a assegurar que seus recursos sejam destinados prioritariamente à execução da obra e à entrega dos imóveis aos adquirentes, vedado seu redirecionamento a fins estranhos a esse escopo8. É a partir desses pressupostos que o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou a Indicação 246/2011, que preconiza a sistematização das normas sobre a fidúcia mediante instituição de um regime geral de fidúcia. A proposição não prejudica as leis especiais que regulamentam relações fiduciárias específicas, tais como a alienação fiduciária em garantia, a atribuição fiduciária para administração dos fundos de investimento, entre outras, às quais esse regime geral se aplica subsidiariamente. Nos termos da proposição, trata-se de negócio jurídico pelo qual uma pessoa, denominada fiduciante, transmite a outra, denominada fiduciário, certos bens ou direitos para que este, o fiduciário, os administre em proveito de uma terceira pessoa ou do próprio fiduciante, de acordo com o estabelecido no ato de constituição da fidúcia. Estabelece os requisitos e elementos do contrato de fidúcia, entre os quais a individualização dos bens transmitidos fiduciariamente, a condição ou o prazo a que estiver subordinada a relação fiduciária, bem como a destinação dos bens e direitos quando implementada a condição, a menção à natureza fiduciária da propriedade transmitida, com a indicação das limitações impostas pelo regime fiduciário no caso específico, os direitos e as obrigações das partes e dos beneficiários, a definição da extensão e dos limites dos poderes do fiduciário, com indicação dos requisitos a serem observados na transmissão dos bens ao fiduciante ou a terceiros e na consolidação da propriedade e as normas sobre a prestação de contas, entre outros requisitos. Os bens e direitos objeto de propriedade fiduciária são segregados em um patrimônio de afetação, destinado ao cumprimento da finalidade da fidúcia, e serão administrados pelo fiduciário de acordo com o disposto no respectivo contrato e só respondem pelas dívidas e obrigações vinculadas à destinação da fidúcia. Pode ser fiduciário qualquer pessoa física ou jurídica capaz de direitos e obrigações na ordem civil e comercial, salvo quando a implementação da fidúcia implicar captação de recursos do público, hipótese em que a atividade de fiduciário é privativa das instituições financeiras ou de entidades especialmente autorizadas pelo Conselho Monetário Nacional ou pelo Banco Central e deve ser exercida conforme as normas editadas por esses órgãos. Dentre os deveres do fiduciário ressaltam a manutenção de patrimônio separado integrado pelos direitos e obrigações correspondentes à fidúcia, a prestação de contas periodicamente e a entrega dos bens, ao final do prazo ou mediante implemento da condição. O Projeto estabelece as hipóteses em que o fiduciário pode ser substituído. A fidúcia pode ser revogada pelo fiduciante. Coerentemente com o Enunciado 628 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, os bens e direitos objeto de atribuição fiduciária não se submetem aos efeitos de falência ou recuperação de empresa e prosseguirão sua atividade de acordo com o regime jurídico a que estiverem subordinados, permanecendo separados do falido ou da empresa em recuperação até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento da sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou da empresa em recuperação, ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. Extingue-se a fidúcia  pelo implemento da condição ou decurso do prazo, pela revogação, pela renúncia ou morte do beneficiário, sem sucessor indicado pelo fiduciante, por acordo entre o fiduciante e o beneficiário, respeitados os direitos do fiduciário, por decisão judicial, quando, omitindo-se o ato de constituição sobre as condições pelas quais a fidúcia prosseguiria, falecer o fiduciário. Por efeito da extinção, os bens e direitos revertem de pleno direito ao patrimônio do fiduciante ou seus sucessores, salvo se o ato de constituição determinar a consolidação no patrimônio do beneficiário. Nos termos em que está estruturado, o PL 4.758/2020 sintoniza nosso direito positivo no contexto internacional, mediante adequada assimilação de certos elementos do trust e dos nossos próprios precedentes legislativos e jurisprudenciais, ao preconizar a instituição de um regime jurídico geral da fidúcia caracterizado como mecanismo de prevenção de riscos e limitação de responsabilidade. De fato, a experiência extraída do tratamento legal casuístico dado pelo direito positivo brasileiro e dos precedentes judiciais construídos em relação à sua aplicação prática dão mostras da efetividade desse mecanismo, e na medida em que se estreitam e se intensificam as relações internacionais, dão respaldo à instituição de um regime jurídico geral capaz de estimular os investimentos da iniciativa privada, inclusive no plano externo, mediante delimitação de riscos por meio da afetação patrimonial, conferindo maior segurança jurídica aos negócios. Além dessa indiscutível relevância para o fomento das relações econômicas, a assimilação de elementos do trust pelo nosso direito positivo pode igualmente contribuir para a promoção de interesses existenciais, ao potencializar a proteção dos vulneráveis. Isso porque viabilizaria a atribuição a instituição especializada da gestão dos bens destinados aos menores e às pessoas com discernimento comprometido. Por esse meio, a instituição estaria investida no poder de administrar os bens para alcançar o melhor resultado econômico-financeiro possível, desde que em conformidade com as diretrizes previamente estabelecidas e no melhor interesse dos beneficiários. A par dessas situações que estão contempladas no regime jurídico da fidúcia nos termos propostos, a atribuição fiduciária oferece igualmente suporte legal adequado à estruturação de planejamento sucessório com segurança jurídica, nos limites fixados pelo direito comum. Para essas e inúmeras outras situações em que é necessária a segregação patrimonial para efeito de garantia ou de administração de ativos por terceiros, a proposição contempla adequada delimitação de riscos e de preservação de recursos necessárias à proteção do negócio, em favor dos beneficiários, revestindo a operação de fidúcia de incomparável efetividade como mecanismo de segurança jurídica e de estímulo a investimentos. *Melhim Chalhub é advogado, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. **Gustavo Alberto Villela Filho é advogado, membro do Instituto os Advogados Brasileiros. ***Milena Donato Oliva é advogada, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, professora de Direito Civil e do Consumidor da UERJ. __________ 1 Trata-se da Indicação nº 246/2011, que apresenta anteprojeto proposto pelo advogado Melhim Chalhub na monografia Negócio Fiduciário, aprovada em 1998 pela banca da Universidade Federal Fluminense no Curso de Especialização em Direito Privado. O anteprojeto foi apreciado pelas Comissões de Direito Civil e de Direito Empresarial do IAB, nas quais contou com parecer da saudosa Professora Dora Martins de Carvalho, e relatoria de Gustavo Alberto Villela Filho e Milena Donato Oliva. 2 MARTINS-COSTA, Judith, O trust e o direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 12, Jul - Set / 2017, p. 165 - 209. 3 GAMBARO, Antonio. Trattato di diritto privato - la proprietà. Milão: Giuffrè, 1990, p. 251. 4 FERREIRA, Waldemar, O trust anglo-americano e o fideicomisso latino-americano. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, LI, p. 182. 5 SERPA LOPES, Miguel Maria de, Curso de direito civil - Direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962, v. VI, p. 69. 6 CHALHUB, Melhim Namem, Afetação patrimonial no direito contemporâneo. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 29, jan-mar/2007, pp. 111/147. TRUST - Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração e garantia. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.pp. 42 e seguintes. 7 MARTINS-COSTA, Judith, O trust e o direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 12, Jul - Set / 2017, p. 165 - 209. 8 TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2023264-85.2018.8.26.0000, rel. Des. Cláudio Godoy, DJe 12.9.2018. TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2180109-48.2018.8.26.0000, rel. Des. Vito Guglielmi, j. 8.10.2018.TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2207013-71.2019.8.26.0000, rel. Des. José Roberto Furquim Cabella, j 1º.11.2019. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2023917-19.2020.8.26.0000, rel. Des. Moreira Viegas, j. 6.3.2020. TJRJ, 7ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 0032240-42.2020.8.19.0000, rel. Des. Luciano Rinaldi, j. 30.9.2020.
Introdução1 Após indicativos que teríamos um promissor 2020, depois de anos de crise econômica que assolou, sobretudo, o mercado imobiliário brasileiro, a pandemia da Covid-19 deu origem a um novo ciclo de incertezas, dessa vez em nível global. No intuito de conter a propagação do vírus, medidas restritivas severas foram impostas pelo Poder Público, determinando a suspensão de atividades consideradas "não essenciais" ou mesmo o caso de municípios que decretaram lockdowns2. O mercado imobiliário não ficou isento desse cenário, testemunhando canteiros de obra completamente parados, mão de obra escassa, fornecedores impossibilitados de suprir às necessidades dos empreendimentos. Diante desse contexto, nesse breve artigo, abordaremos as consequências jurídicas dessa realidade pandêmica no mercado imobiliário. Elegeu-se um tema de relevância às incorporações, que vem a ser a possibilidade de que a obra seja entregue após o prazo de tolerância previsto contratualmente sem a configuração de mora e/ou inadimplemento do incorporador, diante da configuração de caso fortuito e força maior ("CFFM"). I. Prazo de tolerância na incorporação imobiliária Passa-se a uma aproximação acerca do artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964, cujo prazo contemplado no seu caput se popularizou no mercado imobiliário e no Poder Judiciário, antes mesmo da sua positivação, como "prazo de tolerância". Esse dispositivo legal prevê a possibilidade da inclusão de cláusula contratual, nos contratos de incorporação imobiliária, que estabeleça um prazo de tolerância de até 180 dias para entrega da unidade. Nesse caso, se a entrega da unidade ocorrer dentro do referido prazo, o incorporador não incorrerá em mora, nem em hipótese de inadimplemento contratual. Diferentemente, constituiu-se a hipótese em que findo o prazo de tolerância estipulado, sem que o empreendimento seja concluído. Nesse caso, o adquirente terá a faculdade de: (i) faze jus a multa moratória de 1% (um por cento) ao mês dos valores pagos, no período que exceder o prazo de tolerância; (ii) buscar a resolução do contrato, sem prejuízo do recebimento da integralidade dos valores desembolsados pela unidade imobiliária e das penalidades estabelecidas; ou (iii) celebrar um distrato pela incorporadora pelos termos acordados pelas partes3. O artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964 positivou o entendimento de diversos tribunais estaduais, com destaque ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo4, assim como ao entendimento que vinha sendo consagrado pelo STJ desde 2017, quando do julgamento do Recurso Especial 1.582.318/RJ5. Ao nosso sentir, tanto a fundamentação do STJ na decisão sobre a matéria, quanto a positivação do prazo de tolerância na Lei nº 4.591/1964 foram acertadas. Isso porque a lei não pode ser avessa à realidade, devendo o legislador - e o aplicador do direito - considerar a realidade para bem aplicar a lei. No caso das incorporações imobiliárias, a complexidade desses empreendimentos - que envolvem a articulação de diversos fatores de produção sujeitos à imprevisibilidade - impossibilita, em parcela considerável dos casos, precisar uma data exata para a entrega das unidades aos adquirentes. Diante dessa realidade e da enxurrada de ações judiciais sobre o tema, a jurisprudência e, posteriormente, o legislador, pacificaram a validade da cláusula de tolerância. Isso não significa que o incorporador não deverá aplicar toda a diligência possível a fim de não exceder o prazo de 180 dias pois, nesse caso, sofrerá as consequências da verificação do descumprimento contratual e legal. Assim resta claro que a cláusula de tolerância foi necessária em razão da considerável complexidade e imprevisibilidade envolvida na viabilização das incorporações imobiliárias em território nacional. Aqui, chama-se a atenção à sujeição dos empreendimentos à liberação da carta de habitação por Prefeituras de Municípios que não estão aparelhadas para dar o retorno dentro de um prazo razoável. De outro lado, uma vez entendida a necessidade da existência do prazo de tolerância no âmbito das incorporações imobiliárias, surge o debate relativo a quais seriam os efeitos caso ultrapassado esse prazo. Isto é, mesmo com a aplicação do prazo de tolerância de até 180 dias, poderia haver uma flexibilização, de sorte que o incorporador não incorre em mora e/ou inadimplemento mesmo diante da entrega da obra após ultrapassado o prazo de tolerância? A celeuma foi intensificada em decorrência dos céleres e inesperados efeitos trazidos pela Covid-19, que acarretaram, em muitas localidades, a paralisação e/ou suspensão dos fatores de produção. II. Caso fortuito e força maior em tempos de pandemia É notório que o coronavírus impactou diretamente as relações contatuais, notadamente aquelas celebradas antes da pandemia. Nesse cenário, passou-se a discutir os efeitos jurídicos da Covid-19 nos contratos, invocando-se, com uma frequência jamais vista, os institutos do CFFM. Dessa forma, antes que passemos à análise da possibilidade da extensão do prazo de tolerância em tempos pandêmicos, é necessário analisar brevemente o artigo 393 do Código Civil. Enquanto o caput do artigo 393 do Código Civil delimita os efeitos do CFFM - isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos dele resultantes (quebra do nexo de causalidade) - seu parágrafo único caracteriza sua ocorrência, afirmando que "o caso fortuito e de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". Denota-se que o CFFM configura-se por um evento inevitável (necessário), cujus efeitos são irresistíveis ao devedor quando da sua ocorrência (não era possível evitar ou impedir). Ademais, o devedor que invoca a ocorrência de CFFM só se exime de responsabilidade caso não tenha contribuído para o resultado danoso. Ou seja, o fortuito insere-se no âmbito dos eventos que exorbitam os deveres gerais de diligência que o devedor está adstrito. A aplicação do instituto começa, portanto, onde a diligência se torna inútil para evitar o resultado. Nesse contexto a pergunta que se faz é: os efeitos trazidos pela Covid-19 configuram hipótese de excludente de responsabilidade do devedor em razão do caso fortuito ou força maior? A resposta, como quase tudo que circunda o mundo do direito, é "depende". Conforme antes exposto, CFFM restam configurados6 quando a obrigação for impactada por um evento imprevisível que torne impossível seu cumprimento pelo devedor. Contudo, não se pode ceder à tentação simplista e descolada da boa técnica jurídica de afirmar que o coronavírus repercutiu de maneira idêntica em todos os contratos. Nem acontecimentos gravíssimos, como uma pandemia, causam impactos idênticos a todos os contratos, dependendo a sua caracterização7 da análise de causa e efeito da pandemia no negócio jurídico objeto de análise, bem como da impossibilidade do devedor de evitar tais consequências. Assim, compete à parte prejudicada a demonstração de que a obrigação tornou-se, efetivamente, impossível devido à pandemia. Em suma, para que o incorporador tenha êxito ao invocar a excludente resultante da configuração de CFFM, deverá demonstrar, com base em fatos concretos, que os efeitos da pandemia geraram consequências que o impediram de realizar a prestação em conformidade com aquilo que foi estabelecido. Como antes mencionado, a prestação devidamente cumprida pelo incorporador reveste-se na conclusão do empreendimento dentro do prazo de tolerância estipulado pelas partes. Assim, percebe-se a importância da mensuração do elemento culpa do incorporador8 no sucesso ou insucesso na sua eventual pretensão de invocar a excludente em razão de CFFM. III. Interpretação do prazo de tolerância à luz do Código Civil - o necessário diálogo entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil Assentadas as bases que tocam ao presente estudo, quais sejam, o prazo de tolerância previsto na Lei 4.591/1964 e o CFFM, disciplinados pelo Código Civil, passamos ao questionamento que nos guiou até aqui: pode o prazo de 180 dias previsto no artigo 43-A da Lei 4.591/1964 ser estendido em razão de consequências oriundas da pandemia? Ao nosso sentir, o prazo de tolerância considera uma "imprevisibilidade genérica". Não estão abarcados pela referida disposição, portanto, todos os eventos que possam atrasar o cronograma de obra, incluindo-se as hipóteses que podem ser trazidas em razão da configuração do CFFM. Com isso em mente, temos que não há qualquer conflito entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil. Isso é, o prazo de tolerância e a excludente de responsabilidade trazida pelas hipóteses de CFFM coexistem em perfeita harmonia, sendo ambos institutos aplicáveis em diferentes contextos. Por essa razão, não podemos excluir a possibilidade de o incorporador que, comprovadamente, tiver o seu cronograma impactado pelos efeitos da pandemia buscar a exclusão da sua responsabilidade ancorado no fortuito que impediu a entrega das unidades aos adquirentes no prazo pactuado, por não incorrer o incorporador em mora9. Inclusive, essa é a dicção do artigo 396 do Código Civil, dispondo este que "[n]ão havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." Ressalta-se que a eventual postergação na entrega da obra, invariavelmente, tem o condão de prejudicar de forma igual, ou mesmo maior, o incorporador, que se vê cerceado de receber grande parte da parcela do preço, que costuma ocorrer após a expedição do habite-se, por meio de financiamento imobiliário aos adquirentes. Pode-se arguir que, em determinados estados da federação, obras de construção civil foram paralisadas apenas por um certo período, eis que logo em seguida à paralisação generalizada das atividades a construção civil foi incluída em muitos locais no rol das chamadas atividades "essenciais". Contudo, para a incidência dos institutos do CFFM, o prazo de paralização é apenas mais um elemento a se verificar. Isso porque o atraso na obra pode ser ocasionado por diversas razões além da expressa determinação de paralização das obras pelo Poder Público, como a falta de mão de obra ou de escassez de materiais de construção no mercado. De outro lado, a arguição genérica de CFFM não exime a responsabilidade daquele incorporador inadimplente em razão de atrasos a ele imputáveis. Assim, passa-se à análise da conduta exigida do incorporador para a caracterização da excludente de responsabilidade ora analisada. IV. Incorporação imobiliária e caso fortuito e força maior - conduta exigida do incorporador É importante reconhecer que a possibilidade de o incorporador invocar a hipótese de CFFM não significa acobertar a sua inércia. Mesmo diante de um fato dito irresistível, exige-se uma conduta ativa do agente, decorrente dos deveres anexos à boa-fé objetiva, consagrada no artigo 422 do Código Civil. O fato de o cronograma de obra ter sido prejudicado em razão dos efeitos de uma pandemia não afasta o legítimo interesse do adquirente de ser informado do status da obra. Dessa forma, resta claro que o incorporador tem o dever de manter os adquirentes atualizados sobre o estado do empreendimento e de possíveis atrasos com a maior antecedência possível. Frisa-se que a configuração de CFFM é, realmente, exceção à regra. Ademais, o Poder Judiciário poderá aplicar a exceção de forma modulada, trazendo uma solução que não onere em demasiado uma parte, ainda que tal excludente seja o instituto cabível para se buscar o equilíbrio contratual por si só10. Como exemplo, pode-se ventilar o pagamento de um aluguel mensal pelo incorporador ao adquirente, em caso de superação do prazo de tolerância, em valor entre 0,5% a 0,35% ao mês, em vez do percentual de 1% ao mês, previsto pelo artigo 43-A, § 1º da Lei 4.591/1964. A análise do elemento culpa do incorporador será crucial para essa quantificação. Tendo em vista que a prova quanto à ocorrência de CFFM dependerá do incorporador em eventual judicialização posterior, é aconselhável que todos os eventos que atrasem o cronograma de entrega sejam devidamente documentados. Apenas para citar alguns exemplos, o incorporador deverá: (i) registrar no relatório diário de obra, os atrasos, faltas e número de empregados disponíveis no canteiro de obra; (ii) reunir todos os decretos e outras regulações que impeçam ou suspendam atividades no canteiro de obras ou que impactem no fornecimento de matéria-prima; (iii) reunir e-mails e outras comunicações aos adquirentes em relação a anormalidades e eventuais atrasos como resultado direto do efeitos da pandemia; (iv) fazer prova das paralisações dos órgãos públicos em relação à emissão da carta de habite-se como resultado direito da pandemia; e (v) fazer prova da conduta proativa para dirimir os efeitos do retardamento da obra, na medida do possível e da razoabilidade, entre várias outras comprovações. Ditas precauções serão o passaporte não apenas para eventualmente isentar a responsabilidade do incorporador efetivamente impactado pela pandemia, mas para afastar a conduta oportunista daqueles que tentam se esquivar dos efeitos da mora ou mesmo do seu inadimplemento sem um respaldo jurídico. V. Conclusão A seguir, indicamos aquelas conclusões que, ao nosso entender, melhor refletem as corretas soluções ao tema ora tratado: (i) Os reflexos da pandemia, como regra geral, não isentam a responsabilidade do incorporador pela postergação da obra após o prazo de tolerância pactuado; (ii) É recomendável que incorporador, para que possa comprovar a configuração da excludente de CFFM, disponha de farto conteúdo probatório acerca da ocorrência de eventos que tenham causado interferência na execução e bom termo da obra. Ademais, o incorporador deverá manter os adquirentes informados, minimizando as consequências para eles, bem como deverá atuar com condutas positivas para dirimir interferências no curso da obra e evitar o atraso11; e (iii) O incorporador, dependendo das circunstâncias, poderá isentar-se dos efeitos da mora e/ou do inadimplemento na entrega da obra, mesmo após transcorrido o prazo de tolerância previsto no artigo 43-A, caput da Lei 4.591/1964. ___________ *Fabio Machado Baldissera é advogado e sócio do escritório Souto Correa Advogados. Doutor em Direito pela Universidad de Burgos (Espanha) e especialista em Direito Imobiliário pela FADISP. Diretor Estadual do Ibradim-RS, membro do Conselho Consultivo da Associação Gaúcha do Advogados do Direito Empresarial (AGADIE). **Bernardo Borchardt é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. ___________ 1- Esse artigo constitui-se numa adaptação mais reduzida de um artigo que está em processo de publicação pelo IBRADIM. 2- Esse foi o caso da cidade de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul, cujo Decreto Municipal 6.300/2020 foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Vide: Disponível aqui. Acesso em 17 de set. de 2020. 3- Sobre os limites do distratos, vide: BALDISSERA. Fábio Machado; BORCHARDT. Bernardo. Incorporação imobiliária: alcance do Distrato nos termos do § 13º do artigo 67-A da Lei 4.591/1964. In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Coletânea IBRADIM, Coord. Olivar Vilate, (São Paulo: Quartier Latam, p. 143 - 150. 4- Nesse sentido: TJSP, Apelação 0275522-40.2009.8.26.00, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 07/10/2014; TJSP, Apelação 0159707-78.2012.8.26.0100, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des José Carlos Ferreira Alves, j. 16/09/2014; TJSP, Apelação 1054148-81.2013.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Mauro Conti Machado, j. 14/04/2015. 5-STJ, REsp 1.582.318/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 12/09/2017, DJe 21/09/2017. 6- Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva: "Com alguma frequência, constata-se na prática uma certa confusão entre CF/FM e 'fato necessário', como se qualquer fato necessário, alheio à vontade das partes e, sobretudo, do devedor, gerasse a liberação deste. Essa confusão é identificada em questões postas tais como: seria a pandemia de Covid-19 'um evento' de CF/FM? A resposta inafastável só pode ser uma: depende. De um lado, depende da análise dos efeitos do fato, como se verá a seguir. De outro, depende da causação do evento. Neste âmbito, há conexão com a culpa". FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui.Acesso em 15 ago. 2020. 7- SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos: Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 09 mai. 2020. 8- Vide: FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui. Acesso em 15 ago. 2020. 9- Em sentido análogo: "(...) suponhamos que um incorporador, em um específico empreendimento, tenha comprovado que a Covid-19 impactou aquela obra por 90 dias, e por conta disso, o imóvel somente ficou disponível para entrega 40 dias depois de vencido o prazo de tolerância. Leia-se: o termo pactuado se venceu, e não há mora do incorporador." ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 17 de setembro de 2020. 10- Nesse sentido: "Ordem é o começo de tudo. Saber que o sistema jurídico não elegeu o caso fortuito como gatilho para o reequilíbrio de um contrato é o primeiro passo para estudar e discutir questões mais profundas." ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 16 ago. 2020. 11- Nesse mesmo sentido: "Em qualquer circunstância, as medidas adotadas pelo devedor serão relevantíssimas para a aplicação da excludente. É o caso concreto que definirá tanto essa aplicação quanto os seus efeitos." FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Ocorrência de caso fortuito e força maior como hipótese de isenção, mitigação e da execução de certos deveres.Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Acesso em 16 ago. 2020.
Diversas matérias, ao noticiarem o desfecho do Resp 1.778.522-SP (2018/0294465-9)1, de 04/06/2020, apontaram que o STJ teria decidido 'ser legal a cobrança de despesas condominiais mais elevadas para apartamentos maiores'2. No entanto, não nos parece ter sido essa a ratio decidendi3 do julgado, a despeito de esta correlação entre tamanho e valor da quota condominial ter sido feita no acórdão. No caso concreto, os proprietários da unidade de cobertura pleitearam, sem sucesso4 - em todas as instâncias -, a declaração de nulidade da cláusula de convenção condominial ou de decisão de assembleia de condomínio que prevê o pagamento em dobro ou a maior da cota condominial da unidade de cobertura, haja vista que a respectiva convenção estabelece como critério de rateio das despesas ordinárias a fração ideal e que, à unidade da cobertura, é atribuída 20% (vinte por cento) da fração ideal do terreno, correspondente ao dobro das demais (fração ideal de dez por cento do terreno, para cada uma das demais). A parte autora da referida ação pretendia, portanto, afastar a aplicação da cláusula condominial com base em suposta violação do princípio da isonomia, bem como porque tal situação geraria enriquecimento sem causa, haja vista que o rateio de despesas seria desproporcional. Nessa linha, entre outros argumentos, os autores alegam que a cobertura não gera - exceto pelo valor da água da piscina - gasto adicional ao condomínio e que a taxa condominial se refere a custos de manutenção, melhorias, obras e contraprestação de serviços a que todos os moradores têm direito. Em apertada síntese, o fundamento das decisões foi que a forma de cálculo de divisão das despesas condominiais é realizada, nos termos da convenção de condomínio5, na proporção da fração ideal e que tal forma de rateio é legal, nos termos dos artigos 12 da lei 4.591/646 e 1.336 do Código Civil7. Não temos dúvidas de que a disputa foi decidida no sentido correto. Ocorre que, diferentemente do que as matérias mencionadas no início deste artigo anunciaram, o STJ, assim como as instâncias inferiores, não decidiu que a cobrança de despesas condominiais tem ou deve ter correlação com o tamanho da unidade autônoma, mas sim que a cobrança pode ser feita com base na fração ideal do terreno, independentemente, portanto, do tamanho da unidade autônoma. A diferença pode ser muito sutil e muitos leitores poderão não notar qualquer distinção, mas entendemos ser pertinente destacar que o Resp 1.778.522-SP e julgados anteriores não estabeleceram uma correlação necessária entre tamanho da unidade e valor da quota condominial e, por sua vez, que seria devida a cobrança a maior de unidades de cobertura. Ao menos, não nos parece ser essa a interpretação correta da lei e da jurisprudência. Vejamos a conclusão da decisão de 1ª instância, sendo esta, no nosso entender, a ratio decidendi deste caso: Em suma, não se vislumbra qualquer ilegalidade na cláusula da convenção de condomínio que prevê o rateio das despesas na proporção da fração ideal, de cada condômino, apurada a partir da metragem de cada unidade autônoma, tão pouco na Assembleia Geral Ordinária que decidiu por manter o critério adotado pela convenção8. Da mesma forma, o colegiado da 2ª instância decidiu que: Nesta senda, não há que se falar em invalidade do critério de cobrança da taxa condominial da cobertura, eis que com respaldo na convenção do condomínio e na legislação de regência9. Por fim, a 3ª Turma do STJ seguiu linha similar: Nesse cenário, se a convenção de condomínio estipula o rateio das despesas com base na fração ideal do imóvel - caso dos autos -, inexiste violação de dispositivo de lei federal. De fato, unidades com frações maiores, de acordo com a previsão do citado art. 1.336, I, do CC/2002, pagarão taxa com valor superior às demais unidades com frações menores. A despeito dos fundamentos acima expostos estarem corretos - pagamento conforme a fração ideal é legal e quanto maior for a fração, maior será a cobrança de despesa condominial -, há um equívoco dos tribunais ao considerarem, conforme constou no referido acórdão de 2ª instância, que "a fração ideal é a proporção que cada apartamento tem no empreendimento, ou seja, tudo o que for construído e estiver dentro do terreno, assim, quanto maior for a unidade, maior será a fração ideal" (grifo nosso). Ora, o artigo 1.336 do Código Civil10 apenas menciona que a cobrança será feita conforme a fração ideal do terreno ou outra forma prevista em convenção, a ser livremente estipulada pelos condôminos (o que costuma ser feito pela incorporadora e mantido pelos adquirentes). Entendemos - sem pretender adentrar esse assunto, que demandaria estudo específico, para além, portanto, do escopo deste artigo - que essa forma deve ser equânime, proporcional, razoável e não abusiva, entre outros requisitos. Pode-se citar como tais critérios válidos de rateio aqueles listados por Pedro Avvad em sua obra Condomínio Edilício e transcritos no próprio Resp 1.778.522, a saber: "a) proporcional à fração ideal do terreno, o mais usual porque a lei recomenda na ausência de qualquer definição na convenção; b) pelo número de unidades, o mais simples de todos, mas cabível, apenas, quando todas as unidades forem iguais e com a mesma destinação; c) proporcional à área do imóvel, podendo adotar-se, como indicador, a área útil ou a área construída, critério esse recomendável, a nosso juízo, se houver, no condomínio, as unidades com diferentes áreas, mas se tiverem todas a mesma destinação; d) pelo critério de utilização que divide as despesas proporcionalmente à capacidade ou possibilidade de utilização dos serviços por cada unidade, segundo o qual paga mais quem usa, ou pode usar mais (...); e) proporcional ao valor de cada unidade em relação ao valor total da edificação; e f) critério misto, utilizando-se dois ou mais critérios, aproveitando-se, em geral, o da proporcionalidade às áreas". Percebe-se, assim, que existe um entendimento equivocado pelos tribunais brasileiros acerca do significado11 e, especialmente, de como é calculada a fração ideal, pois nos mencionados julgados considerou-se que a fração ideal seria obtida com base no tamanho do imóvel, pressupondo que unidades maiores possuiriam fração ideal maior, o que não é verdade. Como muito bem sinalizou André Abelha, em artigo denominado "O Invencível mito da fração ideal na incorporação imobiliária", de março de 2018, "ao contrário do que muitos supõem, a fração ideal não tem, juridicamente, relação com o tamanho da unidade imobiliária"12. O referido autor explica que, a despeito de, na prática, as incorporadoras utilizarem o conceito de "coeficiente de proporcionalidade"13 para cálculo das frações ideais das unidades autônomas, não existe qualquer obrigação legal neste sentido. Esse mito foi mais uma vez repetido e fortalecido no Resp 1.778.522-SP! Desta feita, a ratio decidendi dos julgados referidos acima deve ser que a cobrança com base na fração ideal é legal, o que apenas ratifica o já disposto de forma expressa no art. 1.336, I do Código Civil. No caso concreto, isso significa que a unidade da cobertura pagará contribuição duas vezes maior que as demais unidades, já que esta possui o dobro da fração ideal das demais unidades, mas não porque possui o dobro da metragem (ainda que seja este o caso). Em outras palavras, mesmo que a unidade de cobertura tivesse metragem quadrada igual às demais unidades, a fração ideal poderia ser maior por diversos critérios, conforme acima exposto, fazendo com que a cobrança de despesa condominial fosse superior, ainda que isso possa parecer "injusto" sob a perspectiva de que a utilização e desgaste do condomínio atrelado a uma unidade de metragem maior - seja de cobertura ou não - é idêntica às demais unidades, senão menor, haja vista que a cobertura muitas vezes dispõe de área de lazer privativa que as outras unidades não possuem. A nosso ver, a cobrança deveria, em regra, ser igual para todas as unidades, salvo se algo justificar que a utilização do condomínio, por motivos objetivos, vinculados à natureza e função de uma unidade autônoma - e não subjetivos, isto é, não atrelados ao perfil e preferências pessoais dos ocupantes de determinada unidade -, tal como, por exemplo, loja comercial em edifício de uso misto que não irá fazer uso, por exemplo, de porteiro, elevador e áreas de lazer do condomínio, tenha utilização reduzida do condomínio e, por isto, faça jus a ter despesa condominial inferior às demais unidades. Destaca-se que apenas "entendemos" que "deveria" ser feita desta forma, porque não há qualquer exigência legal neste sentido. Ademais, cabe notar que nada impede que a cobrança esteja, simplesmente, atrelada à fração ideal e esta, por sua vez, não tenha qualquer relação perceptível com o tamanho, custo de construção ou valor de determinada unidade autônoma ou a sua utilização do condomínio, haja vista que a fração ideal não possui forma de cálculo prevista em lei, ainda que exista uma praxe, do mercado, de calculá-la tomando por base o coeficiente de proporcionalidade. Se eventual cálculo de fração ideal veio a ser realizado sem qualquer fundamento lógico - como tamanho, custo de construção, valor ou utilização do condomínio, antes referidos - e, por isto, pode ser questionado judicialmente, é outra discussão, para além deste curto artigo, mas certo é que o litígio judicial objeto do Recurso Especial ora sob análise não tratou disto, pois no caso concreto a fração ideal atribuída à cobertura era o dobro das demais, provavelmente porque o cálculo da fração ideal foi realizado tendo por base o tamanho e/ou custo-valor da referida unidade autônoma e, portanto, tinha fundamento lógico. Nesse ponto, repisa-se: discordemos ou não da cobrança de despesa condominial com base na fração ideal e não com base na utilização que seus proprietários fazem do condomínio - que na maior parte dos casos é idêntica às demais unidades, sejam maiores ou menores -, a lei previu essa forma de cálculo, que prevalecerá sempre que não for determinada forma diversa. Portanto, salvo se esta forma de rateio for tida como ilícita e o artigo considerado inconstitucional, a cobrança com base em fração ideal é válida. Nessa linha, vale notar que jurisprudência tem afastado qualquer alegação de ilicitude da cobrança de despesas condominiais com base na fração ideal, conforme precedentes citados no próprio julgado de primeira instância antes referido14. Ademais, o Resp 541.317-RS15, citado no próprio Resp 1.778.522, dispôs que é lícito a convenção prever critério igualitário de despesas condominiais, afirmando que "os custos, em sua maior parte, não são proporcionais aos tamanhos das unidades, mas das áreas comuns, cujos responsabilidade e aproveitamento são de todos os condôminos indistintamente". (sic) Conforme já exposto, nos alinhamos com a ratio decidendi do julgado referido no parágrafo acima, discordando, portanto, da doutrina e jurisprudência que dispõe que um apartamento com o dobro de área pagará o dobro no rateio de despesas. Isso é autorizado pelo ordenamento, desde que esse critério de cálculo esteja expressamente previsto na convenção, - o que nunca ocorre, na prática - ou na premissa de que a fração ideal do terreno reflete a área ou valor do imóvel e não, portanto, como mera premissa de que apartamento maior deverá pagar despesa condominial maior. As duas situações mais comuns, na prática, de cálculo da despesa condominial são as seguintes: (i) a previsão na forma da lei, baseada na fração ideal; e (ii) a previsão baseada na igualdade de cobrança entre as unidades, valendo cada unidade como representativa de uma quota, independentemente do seu tamanho ou valor. Por esta razão merece crítica a afirmação - ainda que não seja ratio decidenti do julgado (e sim um obiter dictum16) - de que unidades de cobertura devem pagar quota condominial maior porque no local da cobertura poderiam ter sido construídas mais unidades, no caso, duas ao invés de uma17. No caso concreto, objeto do Recurso Especial sob análise, pelo que se depreende dos julgados publicados, havia apenas "unidades tipo" (de igual metragem) e a cobertura, mas se fosse o caso de um empreendimento com unidades de tamanhos diversos, não faria sentido prever o pagamento de quota condominial superior apenas para a cobertura, pois toda unidade de metragem superior a outras unidades menores deveria ter, proporcionalmente, maior fração de rateio que aquela atribuída às unidades menores. Estar-se-ia, neste caso, criando uma regra de cobrança de despesa condominial tendo por base o tamanho da unidade, no pressuposto de que no lugar de toda unidade maior poderia ser construído uma ou mais unidades menores, não se limitando tal regra, portanto, à cobertura. Esse não deve ser, contudo, o racional para definir se uma unidade deve ou não pagar maior quota condominial. Primeiramente, deve ser analisado o critério previsto em convenção. Segundo, deve ser analisado se esse critério seria, sob a perspectiva constitucional, tutelável, de forma a afastar, excepcionalmente, a sua aplicação em caso de não ter merecedor de tutela. Sobre este segundo ponto acima colocado, no nosso sentir, bem como nos termos da jurisprudência analisada, não merece prosperar o argumento de que haveria enriquecimento sem causa por força de divisão diferenciada no pagamento de despesas condominiais, seja com base na fração ideal de cada unidade ou de outro critério previsto em convenção, pois, ainda que se discorde do critério adotado por não considerá-lo equânime, conforme já abordado, a divisão decorre de previsão contratual, expressamente prevista em lei, o que afasta, portanto, a suposta ausência de causa. Em conclusão: não se pode afirmar que o STJ validou tese no sentido de ser a cobrança de despesa condominial superior para unidades de metragem superior, mas sim que, tão somente, validou a cobrança baseada na fração ideal, e que, no caso concreto, por disposição da própria convenção, tinha fração ideal superior às demais e, portanto, cobrança em valor superior (o dobro das demais), possivelmente por se tratar de unidade de cobertura com área e valor superiores, ainda que a fração ideal não tenha que ter qualquer correlação com o tamanho ou valor da unidade autônoma. Esse artigo pretendeu, portanto, oferecer visão crítica18 sobre determinadas ponderações da Terceira Turma STJ no Resp 1.778.522-SP e das respectivas instâncias inferiores, notadamente sobre o conceito equivocado de fração ideal, buscando alertar para o risco de a doutrina e outros tribunais depreenderem dos referidos julgados que: (i) a fração ideal estaria ligada à área ou valor do imóvel, o que não procede, ainda que, na prática, isso seja extremamente comum por uma prática do mercado; e (ii) apartamentos maiores devem ter contribuição condominial maior por força do seu tamanho, o que também não procede, pois isto dependerá, necessariamente, de previsão expressa, neste sentido, na convenção de condomínio ou de a fração ideal ter sido calculada com base no tamanho e/ou valor do imóvel, o que não é mandatório. *Cristiano O. S. B. Schiller é mestre em Construction Law & Dispute Resolution pela King's College London. Especializado em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Advogado. __________ 1 Resp 1.778.522-SP (2018/0294465-9). Relator. Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. Julgado: 2/6/2020. DJe: 4/6/2020.  2 Vide os seguintes títulos de matérias: "É legal a cobrança de taxa de condomínio mais alta para apartamento maior"; "É legal cobrança maior de condomínio para cobertura com dobro de tamanho dos outros imóveis"; "Não há ilegalidade na taxa de condomínio mais alta para apartamento com fração ideal maior", todas acessadas em 6/9/2020.  3 Expressão em latim que significa a "razão de decidir", correspondente aos fundamentos e à tese jurídica formulados na decisão: "Ora chamado de fundamentos determinantes, ora de entendimento firmado, mas que por comodidade, reunimos sob a expressão ratio decidendi, vem a ser os argumentos principais sem os quais a decisão não teria o mesmo resultado, ou seja, os argumentos que podem ser considerados imprescindíveis". (José Miguel Garcia Medina In Moreira de Paula, Jônatas Luiz; Ribas Maristela Silva Fagundes. Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 19, n. 1, p. 75-85, jan./jun. 2016. Disponível aqui).  4 Os autores perderam em 1ª instância (Foro de Guarujá, 2ª Vara Cível) e, em 2ª instância, por unanimidade de votos, tanto perante a 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (relatoria de Dimas Rubens Fonseca) como perante a Terceira Turma do STJ.  5 Nos termos da decisão de 1ª instância: "pretendem os autores realizar pagamentos similares aos valores pagos pelos demais condôminos, sob o fundamento de que suas despesas são equivalentes. Contudo, razão não lhes assiste. Isto pois, o artigo 3° da convenção condominial preconiza que o rateio das despesas condominiais será realizado 'proporcionalmente à fração ideal de cada unidade autônoma (fl. 41), nesse sentido: "Artigo 3°. A cada apartamento corresponde uma fração ideal do terreno e das partes e coisas comuns, que será observada para a fixação de quota com que cada condômino deverá contribuir para as despesas de condomínio"."  6 "Art. 12. Cada condômino concorrerá nas despesas do condomínio, recolhendo, nos prazos previstos na convenção, a quota-parte que lhe couber em rateio. § 1º Salvo disposição em contrário na Convenção, a fixação da quota no rateio corresponderá à fração ideal do terreno de cada unidade".  7 "Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção".  8 TJSP. Processo nº. 1006823-27.2016.8.26.0223. 2ª Vara Cível de Guarujá. Juiz Auxiliar Leonardo de Mello Gonçalves. Data do Julgamento: 8/8/2017.  9 TJSP. Apelação nº. 1006823-27.2016.8.26.0223. Relator: Dimas Rubens Fonseca. 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Data do Julgamento: 28/3/2018.  10 Vide inteiro teor do artigo na nota 8, acima.  11 Podemos defini-la como sendo a participação ou titularidade do proprietário/condômino na totalidade do terreno sobre o qual aderiram as benfeitorias que compõe as áreas comuns e privativas do empreendimento imobiliário.  12 Disponível aqui. Último acesso em 06/09/2020.  13 Nos termos do item 3.14 da NBR 12.721, o coeficiente de proporcionalidade "é a proporção entre a área equivalente em área de custo padrão total da unidade autônoma e a área equivalente em área de custo padrão global da edificação". Em complemento, "o coeficiente de proporcionalidade é um dado virtual, não métrico, mas atrelado ao valor de custo da unidade. Ele é obtido pela divisão da área de custo equivalente da unidade com o custo total do empreendimento". Último acesso em 6/9/2020).  14 Vide alguns dos procedentes: "AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ARTIGO 544DO CPC/1973) - AÇÃO DE COBRANÇA DE TAXA CONDOMINIAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DOS RÉUS. (...). 2. A ausência de enfrentamento das teses relacionadas aos princípios da isonomia e boa-fé, não obstante a oposição de embargos de declaração, impede o acesso à instância especial, porquanto não preenchido o requisito do prequestionamento, nos termos da súmula 211 do STJ. 3. Nos termos do art. 1.336, inciso I, do Código Civil, é dever do condômino "contribuir para as despesas do condomínio, na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário da convenção". 4. Consoante a jurisprudência desta Corte, é obrigatória a observância do critério de rateio das despesas condominiais expressamente previsto na respectiva convenção do condomínio, especialmente quando o critério eleito é justamente aquele previsto como regra geral para as hipóteses em que ausente tal estipulação. Precedentes. 5. Estando o acórdão recorrido em harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, incide a Súmula nº 83 desta Corte, aplicável por ambas as alíneas autorizadoras.6. Agravo interno desprovido." (AgInt no AREsp 816.278/MG, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/11/2016. DJe 18/11/2016).   "RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE ASSEMBLEIA. ALTERAÇÃO DA CONVENÇÃO CONDOMINIAL. RESPEITO AO QUORUM LEGAL. RATEIO POR FRAÇÃO IDEAL. 1. É legítima a escolha por 2/3 dos condôminos reunidos em assembleia da forma de rateio de despesas condominiais na proporção da fração ideal, conforme assegurado pelo art. 1.336, I, do Código Civil. 2. Tendo em vista a natureza estatutária da convenção de condomínio, não há falar em violação do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito (REsp n. 1.447.223/RS)."3. Recurso especial conhecido em parte e desprovido." (REsp 1458404/RS, Rel. Ministro João Otávio de Noronha. Terceira Turma. Julgado em 07/06/2016. DJe 13/09/2016).   APELAÇÃO CÍVEL DESPESAS CONDOMINIAIS RATEIO MENSAL. Legítimo o pagamento de valor superior pelos condôminos do apartamento 'cobertura'. Proporção da área útil. Divisão feita com base nas frações ideais. Ausência de violação aos princípios da isonomia e proporcionalidade. Previsão expressa na Convenção do Condomínio e respectivas Atas das Assembleias. Precedentes. Sentença mantida RECURSO DESPROVIDO. " (TJSP. Apelação 1003795-57.2015.8.26.0006; Relator(a): Ana Catarina Strauch; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VI - Penha de França - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/06/2016; Data de Registro: 17/06/2016)." (Grifos nossos)  15 Resp 541.317-RS (2003/0064425-4). Relator. Cesar Asfor Rocha. Quarta Turma. Julgado: 09/09/2003. DJe: 28/10/2003.  16 Expressão que corresponde à parte da decisão que é incidental e dispensável, não criando um precedente.  17 Assim constou do julgado: "Também não se pode perder de vista que um apartamento maior pode ocupar o espaço correspondente a uma ou mais unidades imobiliárias no mesmo condomínio. Diante disso, se a construtora/incorporadora, em vez de edificar apartamentos maiores, como ocorre normalmente com as coberturas, usasse essa mesma área para duas ou mais unidades, cada uma delas pagaria individualmente a cota condominial". 18 Cabe à doutrina fazer uma crítica vigorosa da jurisprudência, não se limitando a apenas reportá-la, visando assim corrigir rumos e aperfeiçoar a prática jurídica. Neste sentido, vide opinião de Jan Peter Schmidt, nas palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior: "Em suas conclusões, Jan Peter Schmidt repassou seus principais argumentos e fez uma conclamação a que a doutrina assumisse um papel mais vigoroso e efetivo na crítica jurisprudencial, ao invés de se limitar a narrações descritivas sobre o resultado de julgados. Segundo ele, muito se fala sobre problemas de fundamentação dos julgados, mas pouco se escreve, o que deixa sem repercussão esse tipo de expediente". (Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Boa-fé não pode ser uma varinha de condão nas lições de Jan Peter Schmidt. Conjur. 10/12/2014. Disponível aqui).
1. Introdução A expectativa de vida do brasileiro vem aumentando muito nas últimas décadas. De acordo com dados colhidos em 2018 pelo IBGE, alcançará 76,3 anos de idade, sendo que em algumas regiões como o Estado de Santa Catariana alcança a provecta idade de 79,7 anos como média1. Essa constatação estatística é animadora, mas deve vir acompanhada de medidas que criem condições para que o idoso, além de quantidade maior de vida, tenha também qualidade melhor de vida. Esse texto não se propõe a apontar a realidade da nossa desigualdade social e econômica e a diminuta renda per capita, em regra, do povo brasileiro, seja em decorrência da remuneração que se paga como salário-mínimo, assim como o desdobramento dos rendimentos quando se passa para a aposentadoria para a grande maioria dos brasileiros. Aqui, apenas de modo muito tímido com vistas a incitar uma possível reflexão, gostaríamos de convidar o leitor à reflexão sobre a possibilidade de que com o aprimoramento do Projeto de Lei do Senado 52/2018 que dispõe sobre a "hipoteca reversa", de autoria do ilustre Senador Paulo Bauer (PSDB-SC), pode se tornar possível melhorar a situação financeira do idoso maior de 60 anos que tenha conseguido adquirir um imóvel durante a sua vida, possibilitando que extraia frutos do seu patrimônio a partir da alienação fiduciária do bem a determinada instituição financeira que, nos termos do contrato celebrado, ficaria como devedora fiduciante reversa de determinada importância pactuada a ser percebida mensalmente pelo credor fiduciário reverso, titularizando a posse indireta e a propriedade resolúvel do bem, permanecendo o idoso na posse direta do imóvel em caráter vitalício. Pretendemos, dessarte, defender que a adoção da garantia real prevista na citada lei projetada, com os devidos ajustes, pode contribuir para uma qualidade de vida com maior plenitude em favor do idoso que logrou adquirir um bem imóvel em sua vida, possibilitando uma autonomia financeira condizente com as suas necessidades e expectativas legítimas no inverno da sua existência. 2. A concepção da hipoteca reversa A hipoteca reversa é uma modalidade de direito real de garantia pelo qual uma pessoa, em regra, idosa, grava o seu imóvel em favor do credor com o escopo de receber determinada importância em dinheiro, entregues pelo mutuante de uma só vez ou em parcelas periódicas, valor que somente deverá ser quitado após o falecimento ou alienação do imóvel por parte do mutuário. Essa espécie de hipoteca é utilizada em outros países como, por exemplo, nos Estados Unidos, recebendo a denominação de reverse mortgage e funciona como um produto econômico oferecido pelas instituições financeiras que tem como destinatário a pessoa idosa a fim de que esta, com o notório aumento da expectativa de vida, reúna condições de extrair do patrimônio imobiliário eventualmente granjeado uma liquidez monetária apta a atribuir melhor qualidade de vida sem que com isso a pessoa tenha que se desfazer do patrimônio em vida. Serve como complemento da aposentadoria para o devedor e para o credor há a vantagem de considerável segurança jurídica com relação à satisfação da recuperação do ativo emprestado por dois motivos: 1) a morte é evento futuro e certo e com relação aos idosos, estatisticamente, é mais próxima; 2) os bens imóveis são dotados de perenidade se comparados com os móveis. Aplicam-se, no caso, todas as características da hipoteca com a peculiaridade de que a satisfação do crédito dar-se-á após o momento da morte do devedor ou mesmo da alienação, voluntária ou forçada, do bem onerado. Com o evento morte faz-se um acerto de contas em relação à importância que o credor emprestou e o valor do imóvel afetado ao cumprimento da obrigação. Enquanto a hipoteca clássica, muitas vezes, é feita para facilitar a aquisição de um imóvel para fins de moradia e, conforme vai sendo pago o financiamento, o bem, em proporção ao adimplemento, se incorpora no patrimônio livre do adquirente, nessa modalidade, ainda atípica no Brasil, os recursos entregues ao devedor, se não forem pagos, levarão a perda futura do imóvel que não atingirá a esfera jurídica do devedor, mas dos seus pretensos herdeiros que como sabido possuem sobre a herança apenas expectativa de direito. Sendo o ato de constrição oneroso, sequer há que se falar em preservação da legítima dos herdeiros necessários. Sem lei federal regulamentando, não vemos como ser possível a efetivação dessa modalidade de hipoteca em razão da insegurança jurídica que desmotiva o empreendimento, a especialização é diferente do modelo estabelecido no Código Civil, além das dificuldades de ordem registral para a eficácia da garantia, pois como cediço a tipicidade norteia tal ramo do direito. Em se tratando de constrição imobiliária, se a pessoa for casada, indispensável será a outorga uxória, salvo se o regime for o da separação absoluta de bens (art. 1647, I, CC). Importa ainda esclarecer, nesse passo, a dificuldade que a hipoteca reversa terá para subsistir frente ao direito real de habitação que compete ao cônjuge ou companheiro sobrevivente que somente pode ser renunciado após a sua efetivação com a morte, conforme prevê o enunciado 271 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ: "Art. 1.831: O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.". De efeito, tal proteção que encontra fundamento na proteção da entidade familiar e no direito à moradia é dotada de interesse público, sendo irrenunciável antes de sua efetivação. 3. O projeto de lei do Senado 52/2018 Tramita no Congresso Nacional o PLS 52/2018 que acrescenta o Capítulo II-B, à lei 9.514/97, para dispor sobre a hipoteca reversa de coisa imóvel, de autoria do Senador Paulo Bauer e que, na realidade, cuida de uma nova modalidade de um conhecido instituto que poderia ser chamado de alienação fiduciária em garantia reversa ou simplesmente a compreensão da utilização da propriedade fiduciária sendo utilizada como garantia de uma interessante operação de crédito. O referido projeto de lei visa alterar a lei 9514/97 que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel no direito brasileiro. Nessa toada, o artigo 33-G da lei projetada prescreve que "a hipoteca reversa regulada por esta lei é o negócio jurídico pelo qual o credor hipotecário reverso, com o escopo de garantia contrata a transferência ao devedor hipotecário reverso da propriedade resolúvel de coisa imóvel". Na realidade, utiliza-se a expressão que se tornou clássica no direito estrangeiro - hipoteca reversa - para definir o acerto jurídico da alienação fiduciária em garantia, o que não é conveniente. Não se justifica esse proceder equivocado do legislador em desrespeito a categorias jurídicas com estruturas e funções que não se confundem. O tramitar do projeto deverá corrigir essa dubiedade que macula os bons propósitos da presente iniciativa legislativa. A palavra "reversa" significa que algo se encontra em posição diversa daquela tida como normal. Há uma circunstância que leva o intérprete a crer na existência de um caráter diverso, contrário, àquilo que se espera. Na questão aqui analisada não é diferente, pois pelo projeto de lei a instituição financeira é que será devedora do valor acordado para ser utilizado pela pessoa idosa que em contrapartida, com escopo de garantir o cumprimento da obrigação contraída, transferirá a propriedade em caráter resolúvel (art. 1359, CC). Fundamental é que fique claro que o acerto negocial se verifica com a circunstância de a instituição financeira se tornar devedora, possuidora indireta e proprietária resolúvel do imóvel e o tomador do empréstimo permanece como possuidor direto da coisa até o seu passamento, ou seja, exercerá o idoso todos os poderes de uso e fruição do imóvel até a sua morte, assegurando-se a ele o piso vital mínimo da moradia se for o caso. O objeto do instituto é o bem imóvel e exige-se que o tomador do empréstimo seja proprietário, ainda que em decorrência de enfiteuse ou direito real de superfície, podendo ainda ser usuário, por concessão especial para fins de moradia ou a outro título, desde que o direito alienável e, se for temporário, a concessão do empréstimo e a consequente garantia deverá respeitar o período de vigência do direito real. O artigo 33-H prescreve que a propriedade fiduciária reversa se constitui com o registro do título constitutivo no cartório do registro de imóveis competente como sói acontecer com os direitos reais imobiliários, pecando o parágrafo segundo do dispositivo por estabelecer a indisponibilidade do bem por parte do tomador do empréstimo, salvo consentimento da instituição financeira que figura como proprietário resolúvel do bem gravado. Ora, pela publicidade do registro imobiliário e a característica decorrente da aderência e correspondente sequela dos direitos reais de garantia, eventual adquirente receberá o bem com o gravame que garante a dívida perante a instituição financeira credora. A alienação sem o consentimento do credor pode extinguir o empréstimo a partir da notificação ao credor acerca da realização do negócio jurídico, mas não se justifica a dependência desse assentimento para o exercício do poder de disposição do bem pelo credor, pois como sabido, a alienação à instituição financeira é apenas fiduciária com o objetivo de servir como garantia real da dívida. Pelo artigo 33-I, o contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: "I - o credor hipotecário reverso; II - o devedor hipotecário reverso; III - o valor do imóvel dado em garantia para a hipoteca reversa; IV - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa; V - o valor do pagamento mensal em benefício do credor hipotecário reverso, a taxa de juros e demais encargos incidentes; VI - a cláusula de constituição da propriedade hipotecária reversa, com a descrição do imóvel objeto da hipoteca reversa e a indicação do título e modo de aquisição; VII - a cláusula assegurando ao credor hipotecário reverso a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da hipoteca reversa; VIII - a cláusula de carência da hipoteca reversa assegurando aos herdeiros do imóvel hipotecado em reverso o direito de adquirir o imóvel por herança em caso de falecimento do credor hipotecário nos termos do § 4o deste artigo; IX - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; X - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 33-L". A cláusulas acima citadas são obrigatórias, sob pena de nulidade do negócio jurídico e têm a potencialidade de conferir ao instituto maior segurança jurídica em razão da transparência e da natureza de essencialidade de que se revestem tais disposições, cumprindo o comando normativo e principiológico do Código de Defesa do Consumidor com relação ao dever de informar (art. 6º, III, da lei 8.078/90). Por se tratar de uma espécie de fornecimento de oferta de crédito no mercado de consumo, amolda-se ao disposto no artigo 52 do estatuto consumerista, tão importante quanto por vezes esquecido, verbis: "No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:  I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;  II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III - acréscimos legalmente previstos; IV - número e periodicidade das prestações; V - soma total a pagar, com e sem financiamento.  § 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. § 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos". O conceito de idoso para fins de aplicação dessa lei é a pessoa com mais de 60 (sessenta) anos de idade. Nos termos do artigo 33-I, § 1º, "para a constituição da hipoteca reversa, o credor hipotecário reverso deve ser pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos". A norma projetada apresenta indisfarçável aspecto cogente com relação à idade mínima. Mantendo a concepção jus-filosófica dessa figura jurídica acima referida, o parágrafo segundo do artigo 33-I, § 3º, dispõe que o falecimento do devedor, comprovado por atestado de óbito configura o termo final para a reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa. Se o credor falecer até cinco anos da celebração do contrato (art. 33-I, §4º), o imóvel será entregue aos herdeiros que herdarão também a dívida contraída pelo autor da herança, respondendo, por óbvio, nos limites desta (art. 1792, CC). Com a morte do credor fiduciário reverso (idoso) após o citado prazo legal, a propriedade se consolida nas mãos do devedor fiduciante reverso (instituição financeira) que, a partir desse momento deverá adotar algumas providências (art. 33-J, caput), sobre as quais se falará a seguir. A primeira é a de, no prazo de trinta dias a contar da data do falecimento do credor fiduciário reverso (melhor seria a partir do conhecimento), fornecer ao inventariante ou aos herdeiros em caso de não abertura do inventário, o termo de resolução do contrato, sob pena de multa em favor do espório, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, calculado sobre o valor principal da dívida. Submetido ao oficial do registro de imóveis o termo de resolução do contrato, este providenciará o registro do imóvel em nome da instituição financeira que figura como devedora fiduciante reversa. Por sua vez, o inventariante ou os seus herdeiros, contarão após a notificação do termo de resolução do contrato, com o prazo de trinta dias para retirar os bens que guarnecem o imóvel e levantar eventuais benfeitorias voluptuárias. O projeto de lei chama esse fato jurídico apriorístico decorrente da imediata incidência da condição resolutiva de "consolidação do domínio útil", talvez querendo indicar, o que é verdade, que os herdeiros ainda terão a oportunidade de trazer o imóvel dado em garantia para o espólio do falecido e isto se dará com o adimplemento da obrigação pecuniária deixada pelo falecido frente à instituição financeira. De acordo com os termos contratuais, se a dívida perante o banco vencer e não for paga pelos interessados, a propriedade se consolida definitivamente nas mãos do credor da obrigação pecuniária. O projetado artigo 33-K traz uma série de providências para que seja efetiva a notificação da dívida ao inventariante ou aos seus herdeiros a fim de que estes tenham a oportunidade de purgar a mora no Cartório do Registro de Imóveis, levando ao convalescimento do contrato de alienação fiduciária reversa que terá por efeito a possibilidade de recolhimento do bem alienado para o acervo hereditário deixado pelo falecido devedor. Outras regras podem ser anotadas como a que trata da proibição de o credor fiduciário reverso alugar o imóvel, o que não se justifica (art. 33-L), pois a fruição econômica do bem é dele que, a propósito, está obrigado a arcar com todas as obrigações que incidem sobre o imóvel, tais como impostos, taxas e despesas condominiais até a eventual imissão da posse em mãos do devedor fiduciante reverso (art. 33-M). Assim também, a norma que possibilita a cessão do crédito, objeto da propriedade fiduciária reversa, a terceiros e a do o credor (art. 33-N). 4. Ausência de determinação de venda do imóvel após a consolidação da propriedade fiduciária: grave omissão Peca o projeto de lei por não trazer, à moda da alienação fiduciária em garantia de imóvel clássica, determinação para a venda do imóvel de modo público de modo que os herdeiros possam fiscalizar a estrita satisfação do crédito com a devolução do que sobejar a fim de não se permitir a configuração de enriquecimento sem causa em desfavor do espólio do falecido devedor. Essa omissão pode conduzir ao entendimento de que na alienação fiduciária reversa que, se aprovada, contará com lei especial, é admitido o pacto comissório tido, corretamente, como nulo de pleno direito no artigo 1428 do Código Civil para todos os outros direitos reais de garantia, verbis: "é nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento". Pacto comissório no regime de garantias reais é a cláusula que autoriza o credor com garantia real a ficar imediatamente com a coisa se a dívida não for paga no vencimento2. A par de referendar a odiosa prática do enriquecimento sem causa, como adverte Pontes de Miranda, a permissão dessa prática coloca "o devedor à mercê de explorações usurárias"3 em detrimento dos legítimos interesses do devedor e da própria sociedade, uma vez que é totalmente possível que o bem dado em garantia supere o montante da dívida. Clóvis Beviláqua4 fundamenta a proibição na moral quando assevera que "a proteção do fraco em face da exploração gananciosa do argentário, que usa desse meio para extorquir do devedor por preço irrisório, o bem que este lhe dá em garantia do pagamento". Outra razão justificadora da proibição pode ser encontrada no princípio constitucional processual do devido processo legal, de vez que o artigo 5o, LIV, da CF veda a perda forçada de bens sem o devido processo legal. Concluindo, temos que para que o credor tenha a sua pretensão satisfeita, terá que executar a dívida e, após a observância dos requisitos legais presentes no processo de execução, receber apenas o seu crédito. O que sobejar deverá ser entregue ao devedor. Não se reveste de abusividade eventual norma especial que à semelhança do pa parágrafo único do artigo 1.428 do Código Civil possibilite que, após o vencimento da obrigação, o credor da prestação pecuniária aceite receber o bem objeto da garantia em pagamento. A hipótese seria de uma dação em pagamento, cuja natureza é a de ato negocial que enseja a extinção do pagamento mediante a entrega de objeto diverso do que era devido (arts. 356 a 359, CC). A despeito de não ser tecnicamente correto falar em vedação ao pacto comissório na alienação fiduciária em garantia tradicional, pois o bem é alienado, com escopo de garantia, exatamente para o credor5, não tendo sentido proibir que alguém fique com aquilo que já lhe pertence. No caso da propriedade fiduciária reversa, com a consolidação da propriedade após a morte do tomador de empréstimo da instituição financeira e o não pagamento da dívida pelos seus herdeiros, o bem passa a pertencer ao credor, a ensejar que na teoria perderia o sentido em se falar na vedação ao pacto comissório. Entretanto, pelos mesmos fins que animam a proibição no penhor, hipoteca e anticrese, na alienação fiduciária, o consolidar o domínio diante do inadimplemento, o credor é obrigado a alienar o bem a terceiro, amortizando a dívida com o produto da venda e devolvendo eventual saldo ao devedor. Não por outro motivo, o artigo 1365 do Código Civil6, ao tratar da propriedade fiduciária genérica estabelece que "é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta". Figurando como credor uma instituição financeira, o contrato se submeterá à incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e essa consolidação da propriedade sem prestação de contas, ofende a não mais poder princípios e regras desse ramo do direito, sendo digno de destaque que a pessoa idosa pode ser considerada hipervulnerável (art. 39, IV, lei 8.078/90). Registre-se que o artigo 53 da lei consumerista7 fulmina com a pena de nulidade absoluta a chamada cláusula de decaimento que de modo oblíquo e, portanto, em fraude à lei, pode acabar por se concretizar, na medida em que os herdeiros do idoso falecido poderão perder o imóvel gravado pelo autor da herança em razão da dívida deste. Evidente que aqui não se trata da vedação de perda de todas as prestações pagas em razão das que se deixou de pagar, mas pode ocorrer um prejuízo patrimonial significativo para o consumidor se a dívida não for quitada pelos herdeiros. Se o imóvel tiver um valor de um milhão de reais e a dívida for de cem mil reais? A consolidação da propriedade em mãos do credor ensejará enriquecimento sem causa e perda da propriedade sem o devido processo legal, pois como dito acima, a alienação se dá apenas com o escopo de garantia, tratando-se como se trata de negócio fiduciário8. É possível até que seja positivado, por opção legislativa, o denominado pacto marciano, no qual como salienta Moreira Alves9, "se o débito não for pago, a coisa oderá passar à propriedade plena do credor pelo seu justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiro". Ainda que não concordemos com tal pactuação em contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor10, somos obrigados a aceitar que em tese a questão merece discussão mais aprofundada, pois é da essência de tal pacto que não ocorra o enriquecimento sem causa a partir da busca do justo valor para o bem alienado fiduciariamente e o posterior acerto de contas justo e transparente entre credor e devedor. Não é possível juridicamente que a propriedade plena passe para as mãos da instituição financeira sem o exato equilíbrio no momento do pagamento forçado, evitando-se o possível enriquecimento sem causa. Permanecendo tal equívoco na aprovação da lei, ainda que o idoso já esteja falecido por ocasião da perda peremptória do imóvel, é importante lembrar que o momento jurídico a ser considerado para a análise da validade do negócio é o da contratação. Falta de boa fé objetiva, transparência, locupletamento, desequilíbrio contratual em desfavor do vulnerável são alguns pontos que devem ser discutidos perante o Poder Judiciário.  5. Notas conclusivas  Deve ser resolvido o equívoco da nomenclatura do projeto que denomina de hipoteca reversa aquilo que define como alienação fiduciária em garantia reversa!!! Imperioso, igualmente, que se dê tratamento jurídico adequado à sensível questão do justo acerto de contas entre o valor da dívida deixada pelo falecido e a do imóvel gravado a fim de se evitar possível enriquecimento sem causa e apropriação do bem alheio sem o devido processo legal. Esta falha nos parece tão grave que ousamos afirmar que o esforço e os bons propósitos do projeto se perdem completamente, devendo ser recomendado realmente a sua não aprovação como indica pesquisa na página do Senado Federal do dia 22/08/2020. Sanadas as irregularidades acima e com as melhorias redacionais e de mérito que decorrem naturalmente do procedimento legislativo, temos que o instituto pode ser de grande valia para atribuir ao idoso maior autonomia e independência financeira e, por conseguinte, uma vida com mais qualidade e dignidade em cumprimento ao comando constitucional (art. 230) e do artigo 2º do Estatuto do Idoso, o qual preconiza que além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, ao idoso deve ser garantidas "todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.". Queremos encerrar esse estudo com uma passagem que colhemos de um estudo feito pela Federação Espírita do Paraná denominado "As Quatro Estações da Vida"11: "Enfim, um dia chega o inverno. A mais inquietante das estações. Muitos temem o inverno, como temem a velhice. É que esquecem a beleza misteriosa das paisagens cobertas de neve. Época de recolhimento? Em parte. O inverno é também a época do compartilhamento de experiências. Quem disse que a velhice é triste? Ela pode ser calorosa e feliz, como uma noite de inverno diante da lareira, na companhia dos seres amados. Velhice também pode ser chocolate quente, sorrisos gentis, leitura sossegada, generosidade com filhos e netos. Basta que não se deixe que o frio enregele a alma. Felizes seremos nós se aproveitarmos a beleza de cada estação. Da primavera levarmos pela vida inteira a espontaneidade e a alegria. Do verão, a leveza e a força de vontade. Do outono, a reflexão. Do inverno, a experiência que se compartilha com os seres amados". Oxalá que o aprimoramento do projeto alcance o seu nobre objetivo de colaborar para a efetividade da dignidade da pessoa idosa sem que se perca nos terrenos sombrios do abuso do direito e da usura. 6. Referências bibliográficas  1. ALVES, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973. 2. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. 3. CHALHUB, Melhim Namem.  Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 4. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055. 5. MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019. 6. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. 6. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; Simão, José Fernando; DELGADO, Mário; MELO, Marco Aurélio Bezerra. Código Civil Comentado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020. 8. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015. *Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor Titular de Direito Civil do IBMEC. Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). __________ 1 Disponível aqui. 2 Sobre o tema: MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019, p. 429. 3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 30. 4 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 36. 5 CHALHUB, Melhim Namem.  Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 373/375. 6 Ver nossos comentários ao dispositivo in Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência / Anderson Schreiber ... (et al.). 2. ed. - Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020, p. 1043/1044. 7 Sobre o tema: TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 325-338; MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055. 8 Sobre a natureza de Negócio Fiduciário da transferência da propriedade na alienação fiduciária em garantia: SAAD, Renan Miguel. A Alienação Fiduciária Sobre Bens Imóveis. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 73-82. GOMES, Orlando.  Alienação Fiduciária em Garantia. 2ª ed. São Paulo: RT, 1971, p. 31-32. 9 Alves, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 127. 10 Enunciado 626, da VIII Jornada de Direito Civil do CJF/STJ: "Art. 1.428: Não afronta o art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede o da dívida)". 11 Disponível aqui. Acesso em: 22/8/2020.
1. A natureza jurídica do contrato built to suit O contrato built to suit é modelo de negócio jurídico em que o empreendedor imobiliário reforma ou edifica determinado imóvel sob medida ao ocupante e, finalizada a obra, cede o uso da edificação por período determinado1. Como se nota, algumas prestações obrigacionais estão presentes nessa modalidade contratual. Podemos dizer que o contrato built to suit sempre possuirá a prestação da locação, uma vez que haverá a cessão da fruição e uso da coisa (obrigação de dar), mediante remuneração. Da mesma forma, sempre haverá a prestação da empreitada (obrigação de fazer), porque o built to suit requer a realização de construção ou substancial reforma do imóvel que será cedido ao ocupante. Também poderá haver a prestação da compra e venda quando, por exemplo, o empreendedor adquire o imóvel onde será realizada a construção. Nesses termos, é possível imaginarmos: a) Empreitada + Locação = Built to Suit b) Compra e Venda + Empreitada + Locação = Built to suit No contrato built to suit, a prestação da locação não é referencial. As prestações da empreitada e, eventualmente, da compra e venda, também possuem extrema relevância. É justamente a somatória das prestações que faz surgir o built to suit. O contrato built to suit não é, portanto, contrato típico, porque a prestação de fazer decorrente da empreitada desnatura a tipicidade da locação. A prestação da locação não é tipo dominante, a nosso ver. Não é, portanto, mais locação e menos empreitada, mas, sim, locação e empreitada, o que justifica a atipicidade. Embora atípico, o contrato built to suit possui previsão na Lei do Inquilinato que, por sua vez, expressamente determina que "prevalecerão as condições livrememente pactuadas no contrato respectivo" (art. 54-A). Assim, nesse modelo de contrato, onde os contratantes normalmente são empresas, a alocação de riscos estabelecida no contrato deve ser respeitada pelo intérprete. O respeito às cláusulas do contrato built to suit é imprescindível para o negócio em si, considerando, por exemplo, os elevados riscos envolvidos ao empreendedor, que se obriga a construir imóveis imponentes, dada a promessa de remuneração ao longo dos próximos anos. Ademais, o respeito à alocação dos riscos envolvidos no contrato built to suit não decorre apenas da natureza jurídica desse contrato, mas, também, nos termos da Lei de Liberdade Econômica que, recentemente, alterou o Código Civil para determinar que, nos contratos civis e empresariais, deve o intérprete observar e respeitar a alocação de riscos definida pelas partes (art. 421-A, inciso II). 2. Built to suit e a revisão contratual. Em tempos pandêmicos, questão controversa é saber se os efeitos do coronavírus podem permitir ao ocupante de um imóvel em contrato built to suit a redução das parcelas mensais, ou seja, a revisão do contrato. Antes de avançarmos nesse tema, relevante relembrar que o empreendedor imobiliário, ao celebrar um contrato built to suit, está sujeito a maiores riscos do que o futuro ocupante. O empreendedor, responsável pela construção (ou substancial reforma), despenderá elevados recursos financeiros para desenvolver e entregar o imóvel. Recebido o imóvel, o ocupante também pagará uma elevada soma em dinheiro, mas de forma diluída ao longo dos próximos anos. O ocupante não remunera apenas a cessão do uso (obrigação de dar), mas, também, a construção do imóvel (obrigação de fazer). Em razão dos substanciais valores a que o empreendedor está sujeito para a construção do imóvel é que normalmente os contratos built to suit possuem elevada cláusula penal para o caso de denúncia antecipada do vínculo. Além disso, o artigo 54-A, § 1º, permite que os contratantes renunciem ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação. O objetivo é que o empreendedor, sujeito aos maiores riscos do contrato, tenha maior previsibilidade e segurança de que o valor prometido pelo ocupante pela remuneração do contrato, será pago ao longo dos próximos anos. Até porque, reitere-se, os riscos do ocupante (que não realiza investimentos para construir o imóvel) são substancialmente inferiores aos riscos do empreendedor. A ação revisional de aluguéis tem por fundamento ajustar a remuneração ao preço de mercado. Assim, a considerar a permissão à renúncia da ação revisional, ainda que a avaliação imobiliária determine que a remuneração mensal é elevada, o pacto dos contratantes é que se impõe, razão pela qual o valor não poderá ser alterado. Ainda que a disposição da lei permita às partes afastarem a ação revisional, resta saber se, em razão da pandemia, o ocupante do imóvel pode pleitear a redução da remuneração mensal (ainda que por curto período) não em decorrência de queda do valor de mercado locativo, mas das dificuldades impostas no cumprimento do contrato em decorrência dos efeitos da pandemia. Em artigo escrito em coautoria com José Fernando Simão2, tratando a respeito dos efeitos da pandemia do covid-19 nos contratos, destacamos que [..] fosse acolhida a ideia de que a dificuldade financeira superveniente autorizaria a revisão contratual, a segurança das relações jurídicas estaria ameaçada sobremaneira, e aniquilado estaria o princípio do pacta sunt servanda. Não há dúvidas de que o argumento da dificuldade econômica seria tese sedutora ao devedor que pretendesse inadimplir ou mesmo obter melhores condições da sua contraprestação obrigacional. A alegação de dificuldade financeira para o cumprimento da obrigação pecuniária, em nossa opinião, não pode ser o fundamento para a revisão do contrato. Contudo, reconhecemos a possibilidade de revisão do aluguel, em contratos de locação, quando o fundamento é a drástica alteração da base objetiva do negócio jurídico decorrente da pandemia com efeitos não previsíveis3. Assim, o fechamento do comércio, por exemplo, que impede o locatário utilizar a coisa, pode ser fundamento para a revisão. Mas é necessário atentar que, na locação, o aluguel remunera apenas a prestação referente à cessão do uso do imóvel. Já no contrato built to suit, o valor pago mensalmente tem por escopo remunerar não apenas a prestação da cessão do uso, mas, também, a construção do imóvel, prestação muitas vezes superior à primeira. Assim, a revisão da remuneração da prestação que é paga pelo ocupante requer maior atenção e cautela, pelo magistrado. Em nossa opinião, somente será possível a revisão do preço no contrato built to suit quando restar provado que o ocupante ficou impedido de utilizar o imóvel. Trata-se de situação excepcional, considerando que os imóveis construídos nesse tipo de operação, em sua maioria, são utilizados para farmácias, supermercados, centros de logísticas e assim por diante. Contudo, se o imóvel é uma academia, um prédio comercial, a alteração da base objetiva do negócio jurídico pode, excepcionalmente, ensejar a revisão do preço. Nessa hipótese, a revisão deve atentar que, no built to suit, a remuneração mensal tem por objetivo remunerar não apenas a cessão do uso, mas, sobretudo, a construção do imóvel. É por isso que, em nossa opinião, no contrato built to suit, a excepcional revisão deve buscar, primordialmente, o diferimento do pagamento ao longo do tempo e não a redução do valor da prestação. Imaginar que as premissas para a revisão do contrato built to suit são as mesmas para a revisão do contrato típico de locação é um enorme equívoco. Daí a necessidade de reafirmarmos que o contrato built to suit, por suas particularidades, riscos envolvidos e demais características, não se amolda ao contrato típico de locação. A atipicidade, como se vê, não é meramente uma discussão acadêmica. _________ 1 Segundo Rodrigo Leonardo Xavier, o o built to suit é um contrato em que um empreendedor se obriga a construir ou reformar um imóvel para adaptá-lo às necessidades específicas de um usuário que, por sua vez, receberá o direito ao uso e/ou fruição desse bem por determinado prazo, mediante o pagamento de uma contraprestação que engloba a remuneração pelo uso e, também, a restituição e retribuição do investimento realizado. (LEONARDO, Rodrigo Xavier. O contrato built to suit. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. t. IV. São Paulo: Revista dos Tribunais - Thomson Reuters, 2016, p. 421). 2 GOMIDE, Alexandre Junqueira; SIMÃO, José Fernando. Incorporação imobiliária: resolução/revisão dos contratos de promessa de compra e venda em tempos de pandemia. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 30 jul. 2020. 3 Nesse sentido, vide SIMÃO, José Fernando. Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 29 jul. 2020. _________
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Flávia Lara Vogel Domiciano Introdução O presente trabalho analisará a Lei n° 13.777 de 20 de dezembro de 2018, objetivando demonstrar as principais características da multipropriedade imobiliária e as controvérsias mais relevantes das disposições específicas relativas às unidades autônomas de condomínios edilícios. Embora mais conhecida no ramo hoteleiro, a propriedade fracionada pelo tempo tem alcançado cada vez mais diferentes setores, como comércios, bens móveis, unidades residenciais e os condomínios edilícios, os quais daremos ênfase, seguindo a dinâmica de uma economia compartilhada. Assim, como questionamentos, teremos: Quando a norma estipula deliberação por maioria absoluta de condôminos, se trataria de metade dos votos mais um ou seria correspondente a dois terços dos votos? O titular poderá contratar uma empresa de intercâmbio para sua unidade de tempo num condomínio edilício, mesmo se a convenção não mencionar a permissão? As sanções serão aplicadas imediatamente do conhecimento da infração pelo titular do bem, seja ele periódico ou não? A obrigatoriedade de um administrador profissional para condomínios edilícios com sistema multiproprietário fere os princípios gerais da atividade econômica? Quem poderá fazer parte do quórum da deliberação de adjudicação e alienação da fração de tempo atingida pela inadimplência? Seriam constitucionais as restrições para possibilidade da renúncia dos direitos de multipropriedade? Qual o motivo de não poder renunciar em face de outro condômino? Para o desenvolvimento desta obra, utilizamos de referências bibliográficas e dos métodos dedutivo e indutivo, por meio de leis, julgados e doutrinas, visando soluções mais precisas das problemáticas apresentadas. Surgimento do Instituto de Multipropriedade (Time Sharing) O surgimento do Instituto de Multipropriedade, comumente conhecido como Timeshare ou Time Sharing ("compartilhamento de tempo", em tradução livre) , se deu no final da década de sessenta na França , ganhando espaço na Europa como um todo e também nos Estados Unidos na tentativa, pelos empreendedores, de proporcionar uma oportunidade facilitada de aquisição de imóveis destinados principalmente ao período de férias, permitindo que diferentes pessoas (multiproprietários) desfrutem de um mesmo bem, separada cada utilização por períodos de tempo previamente estabelecidos durante todo o ano. Sequencialmente, o modelo de multipropriedade também se baseou na tendência mundial do sharing economy ("economia compartilhada", em tradução livre), impulsionada nos anos noventa, pelo qual, tem como uma das características, converter bens de acesso restrito a pessoas com maior capital econômico, como por exemplo, carros de luxo ou uma segunda residência de férias, "em bens abundantes (servindo a múltiplos usuários ou mesmo múltiplos donos) e, portanto, de mais amplo acesso" (SECOVI-SP, 2019, p. 32). Embora o multiproprietário não possa usar irrestritamente a coisa a qualquer tempo, estando sujeito às regras temporais e acordos preestabelecidos, com o compartilhamento terá acesso a determinado bem com menor investimento de seu capital. Genericamente, Gustavo Tepedino (1993, p.1) definiu a multipropriedade como "relação jurídica de aproveitamento econômico de bem móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam cada qual, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua". Deste modo, por avaliarem o maior aproveitamento da coisa, suas consequências empreendedoras, econômicas e sociais, o estudo da possibilidade de se adquirir a fração de tempo de um determinado bem passou a ser considerada cada vez mais relevante por doutrinadores e legisladores, de modo que foram desenvolvidas diferentes modalidades de multipropriedade. Clique aqui para conferir o artigo na íntegra. ____________ *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP (2017). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito FADISP (2009). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Européia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, Toledo/ES (2018). Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino ITE (2010). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito - EPD (2008). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2005). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes - LFG; Professor visitante em cursos de pós-graduação lato sensu. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Experiencia na área de Direito, com ênfase em Direito Privado, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito da Infância e Juventude e Processo Civil. **Flávia Lara Vogel Domiciano é advogada, graduada em Direito pela PUC-Campinas (2016); Extensão Universitária em Contratos e Comércio Internacional pela PUC-Campinas (2017) e pós-graduanda em Direito Imobiliário Aplicado pela Escola Paulista de Direito (2020).
Texto de autoria de André Abelha Houston, we have a problem. Preocupação no mercado imobiliário1. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu as centrais eletrônicas de registro de imóveis ("Centrais") de cobrar quaisquer valores dos usuários finais das suas plataformas. O que está em jogo? Para entendermos, precisamos voltar brevemente no tempo2. Parece uma eternidade, mas o público em geral só começou a ter acesso à internet em 1996. Ainda estávamos em 1998, e os paulistas já saíam na frente na prestação de serviços registrais eletrônicos, quando a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (ARISP) disponibilizou um serviço integrado para pedidos de certidões na Capital. Era o pontapé inicial. Mais de uma década se passou sem grandes novidades, até que em 2009, a Lei nº 11.977 trouxe a previsão oficial para a implementação, no Brasil, do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, para interconectar os cartórios e viabilizar serviços registrais em elevado padrão técnico. A Lei, no art. 38, p. único, previu que os cartórios deveriam disponibilizar "serviços de recepção de títulos e de fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico". Seis anos depois, o CNJ editou o Provimento 47/2015, cujo artigo 3º estabelece que o intercâmbio de documentos eletrônicos e informações ficaria a cargo das Centrais a serem criadas nas 27 Unidades Federativas, uma única em cada local. O mesmo Provimento determinou: (i) que as Centrais seriam criadas pelos próprios registradores, e reguladas por ato da Corregedoria local; (ii) onde não fosse possível ou conveniente a criação da Central local, poderia ser utilizada a Central de outro Estado ou do DF; e (iii) que as Centrais deveriam se coordenar para universalizar o acesso ao tráfego eletrônico em todo o País. Como o marco normativo da universalização do acesso ao registro eletrônico estava finalmente posto, as principais entidades registrais3 comprometeram-se, em 2016, a criar a Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis4. Esse esforço resultou na criação do portal (Portal E-Registradores)5, que disponibiliza diversos serviços virtuais: Resumidamente, as Centrais fornecem os seguintes serviços eletrônicos:  Serviços enquadrados na Lei 11.977/2009: (i) E-protocolo, para a recepção de títulos; (ii) Certidões digitais, para o fornecimento de matrículas; e (iii) Pesquisa de bens, para a busca de bens imóveis em nome da pessoa física ou jurídica pesquisada;  Serviços corporativos: (i) Intimações e consolidação da propriedade fiduciária, centralizando e padronizando o envio de documentos pelas instituições financeiras; (ii) Pesquisa prévia, que fornece relatório das matrículas associadas a uma pessoa; (iii) Matrícula on-line, que permite a consulta instantânea dos dados de uma matrícula; (iv) Monitor registral, que monitora as ocorrências de uma matrícula em determinado período, avisando o usuário; (v) Repositório confiável de documento eletrônico, que permite o armazenamento de documentos para atos registrais, tais como contratos sociais, certidões, procurações e outros, evitando nova apresentação a cada pedido de registro ou averbação; e  Serviços gratuitos: (i) Central Nacional de Indisponibilidade, que distribui uma ordem de indisponibilidade para os cartórios ligados à plataforma; (ii) Penhora on-line, que permite ao Judiciário e entidades beneficiadas pela gratuidade o protocolo de ordens de penhora, arresto e sequestro, e ainda pesquisa de bens e obtenção de matrículas; e (iii) Ofício eletrônico, utilizado por órgãos federais, autarquias e entes públicos, evitando a necessidade de uso de papel, impressão e postagem. Atualmente já estão integradas ao Portal as Centrais do Distrito Federal (DF) e dos Estados indicados em verde: Hoje o sistema já contabiliza mais de um bilhão de atos. Enquanto escrevo, a soma é de 1.006.297.4166 de atos, e ao ser lido por você esse número já cresceu bastante. Recapitulando: 2009, a previsão do SREI e dos serviços eletrônicos; 2015, o Provimento CNJ 47 prevendo as Centrais; 2016, criou-se a Coordenação Nacional das Centrais e implementou-se o portal e-Registradores. Chega o ano de 2017, e com ele a Lei nº 13.465, uma norma multitemática que tratou de regularização fundiária e muito mais, e ali no meio estabeleceu que o SREI seria implementado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), este regulado pelo CNJ. O parágrafo 6º do art. 76 previu que os serviços eletrônicos seriam disponibilizados sem ônus "ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo federal, ao Ministério Público, aos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e aos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos". O Provimento CNJ nº 89, de 18 de dezembro de 2019, também tratou do SREI e do ONR, na linha da Lei nº 13.465/17. E, no espírito da Lei 11.977/09 e do Provimento CNJ 47/2015, reforçou o papel das Centrais. Entre as novidades, vieram o Código Nacional de Matrícula (CNM) e o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC), o qual, nos termos do art. 16, p. único, é "uma plataforma eletrônica centralizada que recepciona as solicitações de serviços apresentadas pelos usuários remotos e as distribui às serventias competentes". Já em 2020, o CNJ, em decisão plenária do dia 23 de junho7, ratificou a liminar concedida pela Corregedoria Nacional de Justiça, que proibira a cobrança de taxas e contribuições por serviços prestados pelas Centrais, sob o fundamento de que "não cabe a nenhuma central cartorária do País efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal", e que "a atividade extrajudicial é um serviço público, exercido em caráter privado, cujos valores dos emolumentos e das taxas cartorárias pressupõem a prévia existência de lei estadual ou distrital". Essa decisão motivou, no dia seguinte, a edição do Provimento CNJ nº 107, de 24 de junho de 2020, o qual, proibiu "a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços prestados pelas centrais registrais e notariais, de todo o território nacional, ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal". De acordo com o Provimento: (i) os custos de manutenção, gestão e aprimoramento dos serviços prestados pelas centrais devem ser ressarcidos pelos delegatários, interinos e interventores vinculados as entidades associativas coordenadoras; (ii) as entidades associativas podem custear tais despesas, em nome de seus associados; e (iii) as Corregedorias locais devem inserir as Centrais em seu calendário de correições e inspeções, com a finalidade de verificar a observância das normas vigentes que lhe são afetas. A própria Corregedoria Nacional de Justiça, ao tomar conhecimento, pela imprensa8, de notícias sobre a inclusão de custos cartorários nos financiamentos imobiliários da Caixa Econômica Federal, proferiu decisão no dia 3 de julho, já com base no Provimento CNJ 107/2020, suspendendo a contratação, pelas Centrais, de qualquer contrato ou convênio com a Caixa para a inclusão de custos operacionais. As Centrais alegam que o recente posicionamento do CNJ contraria o entendimento pacificado do próprio órgão, que por várias vezes teria reconhecido expressamente a legalidade de tal cobrança, para reembolso dos custos. Ainda segundo as Centrais, se mantida a proibição, é preciso criar uma alternativa para o custeio dos serviços, pois: (i) os registradores somente estão obrigados a implementar plataformas individuais em suas próprias serventias para se integrarem ao sistema, não tendo que custear os serviços interoperacionais das Centrais; (ii) associações privadas não podem ratear o custeio entre os registradores não-associados, nem podem impedir que os registradores associados deixem de sê-lo; e (iii) ainda que prevaleça o Provimento CNJ 107/2020, sua interpretação e aplicação não pode abarcar os Serviços Corporativos, que são facultativos, e ofertados como forma de tornar o acesso à informação ainda mais eficiente. Este é o cenário, caro leitor. Urge que se encontre uma solução que mantenha ativos os serviços que, em seu conjunto, representaram verdadeiro avanço para a celeridade e segurança dos negócios imobiliários. _____________ 1 Confira matéria veiculada no Valor Econômica, com o título "Fim de plataforma eletrônica preocupa incorporadoras". Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.2 Este não é um artigo opinativo, e visa apenas a ordenar os fatos para sua melhor compreensão.3 O compromisso foi firmado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB), com a participação da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) e de associações do DF e de 10 Estados: DF, SP, TO, AM, SE, MS, MG, PA, GO, RS e PA.4 O Comitê Gestor da Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis é formado por membros do IRIB, da ANOREG/BR e das entidades locais que já possuam Central em funcionamento.5 Com a denominação de Portal de Integração dos Registradores de Imóveis do Brasil.6 Informação disponível em clique aqui. Acesso em 19.ago.2020.7 Nos autos do Pedido de Providência nº. 0003703-65.2020.2.00.0000, em que foi requerido o Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. Íntegra disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.8 A decisão citou a notícia veiculada pelo UOL, com a manchete "Caixa vai incluir imposto e custo cartorário em financiamento de imóvel". Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.
Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima Durante a pandemia do COVID-19, o mercado imobiliário foi gravemente impactado. Estudos do SECOVI/SP, apresentados em webinário realizado pela Comissão Especial de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da OAB/RJ1 demonstraram, por exemplo, quedas significativas no valor de compra de imóveis e no valor de alugueis. Em outra ocasião, em seminário da ABRAINC em que se debatia o futuro do mercado imobiliário após a pandemia, a consultoria BRAIN concluiu pelo aumento da desistência da intenção de aquisição de imóveis, em especial pela incerteza da duração da pandemia2. Igualmente, no cenário das locações estratégicas, setor especialmente relevante para securitização de créditos oriundos de operações imobiliárias, o grande volume de demandas revisionais (neste momento referidas sem maior apego técnico) colocou em risco a credibilidade desse tipo de operação. Exemplo disso foi a comunicação de fato relevante por parte da administradora do Fundo de Investimento Imobiliário Rio Bravo Renda Varejo - FII, comunicando aos cotistas a existência de ações judiciais buscando a revisão dos contratos de locação não-residencial firmados3. Nessa conturbada e fluida conjuntura, a operação dos Fundos de Investimento Imobiliário ("FIIs"), objeto da presente reflexão, é afetada com consequências para sua performance e conduzindo muitas vezes à insatisfação dos seus cotistas. Para entender um pouco melhor a posição e temor dos cotistas de FII, é preciso lembrar que por se tratarem de condomínios fechados (o que será esclarecido adiante), não há por parte deles direito a resgatar os aportes realizados. Assim, nos termos do art. 2º da Lei nº 8.668/93, passam a depender da liquidez das cotas para recuperar os valores investidos em caso de pretensão de saída4. Os FIIs são entes despersonalizados representativos da comunhão de recursos, sob regime condominial , destinados à aplicação em operações imobiliárias, cujas cotas são captadas por meio de sistema de distribuição fiscalizado pela Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). E, assim, o acervo de operações imobiliárias (CRIs, CCIs, imóveis para locação, imóveis para venda e etc), que será objeto das operações do FII nos termos de seu regulamento e das decisões da Assembleia Geral, é adquirido pela instituição administradora sob o regime fiduciário6, o que, inclusive, torna altamente controversa a aplicabilidade da Lei nº 8.078/90 ("CDC"), nas suas relações e conflitos recíprocos. Nessa linha, os FIIs são obrigatoriamente geridos por entidades administradoras autorizadas pela CVM e com estrutura e lastro econômico condizente (art. 5º da Lei nº 8.668/93), a fim de dar a máxima garantia de eficiência e segurança aos investidores. Como dito anteriormente, a queda de performance dos FIIs tem se tornado, com cada vez mais frequência, alvo de questionamentos de cotistas, que, no início do primeiro semestre de 2020, aguardavam um novo "boom" do mercado imobiliário em decorrência da baixa dos juros7, o que não ocorreu. A tônica destes questionamentos, que vão desde solicitações nas ouvidorias dos FIIs até consultas a advogados, diz respeito à responsabilização civil dos administradores pela baixa performance e por eventuais perdas financeiras experimentadas pelos cotistas. Como é de notório conhecimento, para restar caracterizado o dever de indenizar é preciso a demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil, a priori, por parte do lesado, o que, nos casos dos FIIs, se apresenta como um desafio à parte. A primeira indagação que pode vir à mente é acerca da incidência do CDC. Inicialmente, a incidência parece ser afastável. Isto porque a administradora dos FIIs, fiduciária de seu acervo, cumpre papel definido no art. 8º da Lei nº 8.668/93, respondendo somente nos casos de má-gestão, gestão temerária, conflito de interesse ou violação do regulamento ou das decisões da Assembleia Geral, sem prejuízo da demonstração dos demais elementos da responsabilidade civil. Neste diapasão, o legislador, na norma especial, fez clara opção de eleger a culpa como nexo de imputação da responsabilidade civil da administradora, característica da responsabilidade subjetiva, sendo este entendimento ratificado pela CVM8. Obviamente, esta culpa não se investigaria na psiquê humana para dali vislumbrar uma agenda nociva, omissão orquestrada ou despreparo técnico consciente, mas sim a chamada culpa normativa, originada do descumprimento de um standard de diligência razoável9, pautada na observação do mercado e de suas práticas. Esta leitura se adequa com as recentes alterações introduzidas na Lei nº 10.406/2002 ("CC") pela Lei nº 13.874/2019, conhecida "Lei de Liberdade Econômica", trazendo como elemento interpretativo do negócio jurídico, e dos atos lícitos em geral, os "usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio", nos termos do art. 113, §1º, II. Assim, a regulação da CVM atua como verdadeiro repositório do acervo técnico e deontológico da atuação das administradoras dos FIIs10, sem prejuízo das conclusões decorrentes do caso concreto que se possam verificar, nos termos do art. 375 da Lei nº 13.105/2015. Sendo certo que a gestão dos FIIs é feita por meio de escolhas estratégicas do administrador, é sobre esta tomada de decisão que se debruça o debate da responsabilidade. Feitas estas considerações, ter-se-ia afastado o CDC diante da especialidade da legislação sobre FIIs e sua temporalidade (mais recente que o diploma consumerista). Some-se a isso o fato de que, naqueles FIIs de distribuição de esforço restrito11, a qualificação dos cotistas afastaria ainda mais a incidência do diploma protetivo12, entendimento esse também já capitaneado pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ")13. Ocorre que, em geral, o STJ entende pela incidência do CDC nos casos que envolvam investidores de varejo. Analisando diversos julgados, percebe-se a formação de entendimento acerca da caraterização de relação de consumo entre os cotistas não-profissionais (imensa maioria) e as administradoras de Fundos de Investimento em geral14, aí incluídos os FIIs. Todavia, a aplicabilidade do CDC não importa em cheque em branco para a responsabilização. Antes de aprofundar esta temática, é preciso destacar que o STJ, ao passo que aplica do CDC, entende a obrigação das administradoras dos Fundos de Investimento como de meio15, aqui entendida como o dever de "empregar todas as técnicas, recursos e esforços ao alcance do contratado, ainda que esse não seja alcançado"16. Neste ponto, necessário tecer alguns comentários. A ideia de obrigação de meio, via de regra, diz respeito à responsabilidade civil do profissional liberal, sendo termo recorrente em julgados e textos doutrinários sobre a responsabilidade médica, por exemplo. Contudo, a dicotomia meio/resultado vem observando seu entardecer na boa doutrina, que a vê como incompleta e insuficiente17. Na hipótese dos FIIs isto é ainda mais contraditório, uma vez que, como dito, a função de administração deve ser exercida por "banco múltiplo com carteira de investimento ou com carteira de crédito imobiliário, banco de investimento, sociedade de crédito imobiliário, sociedade corretora ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários, ou outras entidades legalmente equiparadas", o que atrairia ainda mais a responsabilidade objetiva, esculpida no art. 14 do CDC. Contudo, nestes casos concretos, o que ocorre é uma investigação subjetiva, a fim de verificar uma falta do standard comportamental e de conformidade daquele tipo de atuação da administradora, justificado, talvez, na aplicação dialogada do art. 8º da Lei nº 8.668/93. Nesse controvertido cenário, constroem-se os julgados no sentido de que cabe à administradora tão somente agir com diligência e não necessariamente alcançar resultados/rentabilidade, afastando assim sua responsabilidade. A afirmativa é verdadeira, porém é preciso esclarecer melhor da estruturação a hipótese de não-responsabilização. Não se pode negar que o objetivo comum entre cotistas e administradoras é a rentabilidade ou o resultado positivo dos investimentos realizados, não sendo razoável presumir que alguém, por motivos lícitos, pretenda um negócio desvantajoso ou economicamente inviável. Todavia, este objetivo comum não se traduz integralmente como a obrigação avençada pelas partes. O dever de gestão dos FIIs se traduz, na verdade, na tomada de decisões estratégicas, de acordo com o perfil do fundo, seu regulamento, deliberações da Assembleia Geral e as boas práticas do mercado. Neste atuar, percebe-se que o risco dessas escolhas é parte integrante do negócio; é o que possibilita a escalada de rentabilidade; é da natureza e essência dos FIIs. Partindo da premissa da aplicabilidade do CDC, esposada pelo STJ, o que se teria, em verdade, é, para determinar a responsabilidade civil das administradoras por danos sofridos por investidores em vista da tomada de decisão, a verificação da abrangência do risco do serviço prestado pela administradora aos cotistas do fundo e correlação causal entre a escolha estratégica e o resultado danoso aos cotistas, em outras palavras, o nexo de imputação e o nexo causalidade. Apenas para fins de adequação teórica, inseridos na lógica responsabilidade objetiva trazida pelo CDC, diferencia-se o nexo de imputação do nexo de causalidade, na medida em que o primeiro importará na avaliação, qualificação e individualização do risco produzido pela atividade para fins de responsabilização, ao passo que o segundo importa na averiguação de uma causa etiológica entre fato e dano18, levando igualmente à responsabilidade. Sobre o nexo de imputação, é preciso lembrar que, por sua natureza, os FIIs são operações de risco e, portanto, é natural e aceitável não alcançar os resultados almejados sempre. Ademais, existe certa transitoriedade nos resultados danosos da tomada de decisão. Assim, a decisão estratégica que pode produzir prejuízo hoje, pode ser altamente lucrativa amanhã. Essa essência que conta com determinada álea mais agressiva, somada a própria incerteza no resultado da tomada de decisão, produz para os FIIs um interessante conceito: a insegurança ou risco tolerável. E aqui não se está a vislumbrar uma assunção declarada de risco por parte do consumidor investidor, o que poderia caracterizar uma abusiva cláusula de não-indenizar. O que se tem é a constatação da natureza do negócio em si, sendo o risco integrante de sua lógica econômica. A afirmação acima está completamente em sintonia com as disposições do art. 14 do CDC, que em seu §1º, II, afirma que não se caracteriza o defeito do serviço o que levaria à responsabilidade do fornecedor, se os riscos são esperados, integrando a experiência do consumidor e, portanto, não integrantes o nexo de imputação da responsabilidade civil. Neste diapasão, é preciso diferenciar, nos FIIs, a relação da administradora com os cotistas dos serviços em geral. O risco do insucesso da decisão é exatamente o que possibilita sua alta chance de êxito. Nesse sentido, o dano oriundo do risco tolerável não importa na responsabilização objetiva da administradora, desafiando investigação acerca da sua culpa, sob um espectro técnico/objetivo, deslocando a responsabilidade civil em direção ao art. 8º da 8.668/93. Em outras palavras, dentro do universo risco tolerável, para fins de responsabilidade, investigar-se-ia a adoção, por parte da administradora, das boas práticas do mercado e da diligência exigível para o tipo de operação, lembrando do fundamental papel do administrador dos Fundos de Investimento em geral de buscar investimentos melhores e mais seguros19. Feitas as ponderações acima, sem prejuízo da posição a ser adotada acerca da aplicação ou não do CDC, a aquisição de cotas de FII posiciona o cotista no locus de assunção e tolerância de certos riscos, incluídos a impossibilidade de alcançar a rentabilidade pretendida, especialmente em tempos de pandemia. Noutro giro, sobre o nexo de causalidade, necessário pontuar que, para que ocorra a responsabilização, mesmo diante de sua modalidade objetiva, é imprescindível a demonstração da correlação causal entre o fato provocado pelo agente e o dano sofrido. Nesta reflexão, o nexo causal será analisado a partir do art. 403 do CC, que, na realidade, expressa a noção de grau de relevância do fato em relação ao dano, devendo-se buscar sempre uma causa de interrupção do nexo anterior, tornando o fato avaliado o protagonista do dano investigado. O que se tem é uma apuração probabilística, em que se terá somente causa adequada aquele que comumente ou tipicamente produz determinado resultado. Caso contrário, não se caracteriza o nexo causal e, por consequência, a responsabilidade20. Não sem querer, esta teoria passou a ser conhecida como teoria da causalidade adequada, utilizada com entusiasmo pelo STJ21. Inclusive, é preciso lembrar que, de acordo com o grau de relevância da causa para o evento danoso, é possível a redução do quantum indenizatório, nos termos do art. 944 do CC. Isto se faz imprescindível, pois em tempos de pandemia, a tomada de decisão das administradoras, via de regra, visa mitigar prejuízos já amargados, oriundos de causas alienígenas, que protagonizam exclusivamente a probabilidade do acontecimento danoso, qual seja a baixa rentabilidade ou a baixa liquidez das cotas. Nessa toada, pode-se vislumbrar também que a decisão possa de fato influenciar em eventuais prejuízos, mas, por sua pequena relevância para o acontecimento, permitir-se-ia vislumbrar a redução de eventual quantum indenizatório. A pandemia criou cenários nos quais nem mesmo as mais conservadoras estratégias são capazes de frear perdas financeiras, quedas de performance e retrações de mercado, não podendo ser simplesmente imputadas à administradora. Em verdade, se apresentam verdadeiros casos fortuitos ou eventos de força maior que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC, excluem a responsabilidade civil ante o rompimento do nexo causal. Em linha de conclusão, as distorções mercadológicas introduzidas pela pandemia do COVID-19 não parecem, a priori, passíveis de induzir a responsabilização das administradoras dos FIIs. A fim de se manter a higidez desse relevante modelo de negócio, não se pode permitir que demandas indenizatórias em face das administradoras FIIs passem a servir como mecanismos travestidos de resgate de cotas ou manobras de grupos minoritários de cotistas, alvoroçados pelas sequelas da pandemia em curso. Conforme exposto, para eventual responsabilização é preciso promover verificação pormenorizada das condutas e decisões estratégicas da administradora, constando-se sua conformidade, ou não, ao regulamento, às decisões da Assembleia de Cotistas, às práticas de mercado e às diretrizes da CVM. Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Sócio do Bragança & Feijó - Sociedade de Advogados. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário do IAB. Vice-presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ. Membro da IBRADIM. Professor (convidado) da UERJ e da UCAM. ____________ 1 Disponível em: clique aqui.2 Disponível em: clique aqui.3 Disponível em: clique aqui.4 Vale lembrar que diversos FIIs optam pela contratação de formadores de mercado para viabilizar a liquidez das cotas, conforme pelo art. 31-A da Instrução CVM nº 472. 5 Esta posição vem sendo bastante criticada na doutrina especializada, que entende os FIIs como tipos societários. Conferir: FREITAS, Ricardo de Santos. Natureza jurídica dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latim, 2005.6 Sobre este ponto, vale transcrever o art. 1.368-A da Lei nº 10.406/2002: "Art. 1.368-B. A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor".7 Disponível em: clique aqui.8 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador RJ nº 22/2005, Dir. Relator. Marcos Barbosa Pinto, julgado em 26 de agosto de 2008. Disponível em:. Acesso em:26/07/2020.9 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais, vol. 854, dez./2006. Pág. 9110 O art. 30 da Instrução CVM nº 472 esclarece diversos deveres do administrador do FII, o que pode auxiliar na concepção do standard comportamental para a verificação da culpa normativa. Disponível em: clique aqui.11 As ofertas públicas distribuídas com esforços restritos deverão ser destinadas exclusivamente a investidores profissionais, conforme definido em regulamentação específica, e intermediadas por integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, nos termos da Instrução CVM nº 476.12 EIZIRIK, Nelson. Temas de Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 54713 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.187.365/RO. Relator: Luis Felipe Salomão. Julgado em 22 de maio de 2014. Disponível em:. Acesso em: 26/07/2020.14 Idem.15 (STJ - REsp: 799241 RJ 2005/0119523-6, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 14/08/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/02/2013 RSTJ vol. 229 p. 450)16 LEOCÁDIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BARBOSA BRANCO, Luizella Giardino. Responsabilidade Civil na questão da qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005.17 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade Civil. 4ª ed. Rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 81918 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Ed. RT, 2007. Pág. 20219 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das obrigações 2ª parte. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.pág. 6720 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002. Pág. 240.21 STJ - REsp: 1808079 PR 2019/0098045-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 06/08/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/08/2019; STJ - REsp: 1637611 RJ 2016/0261016-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 22/08/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/08/2017; STJ - REsp: 1535888 MG 2015/0130964-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 16/05/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/05/2017
Texto de autoria de Fábio Machado Baldissera e Demétrio Beck da Silva Giannakos Introdução O objetivo deste breve artigo é chamarmos a atenção para o fato de que, não raras vezes, verifica-se uma inadequada intervenção do Poder Judiciário nos contratos. Por essa razão, pinçamos uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a qual, ao nosso sentir, desvirtuou o que as partes originalmente acordaram em um contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Desafortunadamente, tal decisão alterou o que havia sido avençado de forma cristalina pelas partes no contrato, sem que existissem elementos no processo que pudessem justificar a fundamentação adotada em tal decisão. Aliás, a decisão restou fragilmente alicerçada e em desacordo com a normativa processual civil, em especial no seu artigo 4891. Para piorar, valeu-se da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a fim de dar azo à discricionariedade dos julgadores. Espera-se que essas decisões sejam cada vez mais isoladas. Nesse contexto, a incorporação da Lei de Liberdade Econômica no nosso sistema jurídico parece ter vindo em boa hora e poderá ser um valioso instrumento para inibir o conhecido ativismo judicial. Análise da decisão do TJRJ que reduziu a cláusula penal da promessa de compra e venda de imóvel Feitas as considerações iniciais, passamos a analisar a decisão do TJ/RJ que julgou a Apelação Cível nº 0232054-13.2012.8.19.0001, fundamentando a decisão por meio de princípios contratuais usados de forma inadequada. Tal decisão, em nosso entender, teve um cunho acentuadamente discricionário, na medida em que existe falta de suporte legal e, aparentemente, contratual e fático2, para a radical modificação do contrato imobiliário3 firmado entre as partes4. O recurso de apelação versou, de forma resumida, sobre cláusula penal estabelecida entre as partes, no valor de R$ 500.000,005, caso uma delas descumprisse o contrato de promessa de compra e venda de imóvel, esse com valor estipulado em contrato no montante de R$ 360.000,00. Contudo, o TJRJ, ao julgar o recurso, reduziu a cláusula penal para o montante de R$ 30.000,00. Em apertada síntese, o TJRJ mencionou que a decisão se pauta na "primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes", bem como que a decisão se encontrava alicerçada conforme os "princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação ao enriquecimento ilícito". Destaca-se, de outro lado, o acerto do acórdão ao invocar o artigo 412 do Código Civil6, para limitar a cláusula penal, conforme previsto no citado artigo. Contudo, excedeu-se quando reduziu abruptamente a cláusula penal com base na sua discricionariedade. Ao analisar os autos do processo, salvo melhor juízo, não há indicativo de descumprimento do contrato de promessa de compra e venda, a fim de que pudesse ser legitimada a redução da cláusula penal em desfavor do autor e beneficiário da cláusula penal. A decisão foi contrária às disposições legitimamente acordadas pelas partes no caso concreto, como se pode depurar da Cláusula 6.2 do contrato, "O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)". Desse modo, o Poder Judiciário poderia reduzir a multa até o montante da obrigação, ou seja, R$ 360.000,00, escorado pelo artigo 412 do Código Civil. Não obstante, reduziu a cláusula penal para R$ 30.000,00, ou seja, num patamar 16 vezes menor do que a cláusula penal originalmente pactuada e 12 vezes menor do que a obrigação avençada no contrato. Quais os parâmetros para a redução tão abrupta da cláusula penal em desprestígio à autonomia privada? A decisão se equivocou ao utilizar importantes princípios contratuais que servem para dar sustentação ao julgador, sobretudo em hipóteses onde se faz necessária uma interpretação do todo, reduzindo-os como argumento retórico. A redução para o valor de R$ 30.000,00 é baseada em uma concepção moral7 e subjetiva dos julgadores de que, em suas visões, tal valor seria suficiente para ressarcir o descumprimento abrupto do contrato. Uma pena. Frisa-se que, no caso em tela, estamos tratando de uma relação simétrica, na qual não há descompasso entre os contratantes. Portanto, decisões que escapam geometricamente à vontade das partes são inconcebíveis8. Ademais, elas causam um efeito indesejado ao sistema, pois estimulam a judicialização9, trazendo insegurança jurídica, pois um contrato não respeitado sob a chancela do Poder Judiciário pode criar um efeito manada (ou efeito dominó). Tal efeito é maléfico à sociedade e ao próprio Judiciário. A Lei da Liberdade Econômica: um alento à autonomia privada trazido pelo legislador Em 20 de setembro de 2019, o legislador trouxe a resposta que vinha sendo reivindicada pela sociedade e, especialmente, pelo mundo empresarial, editando-se a chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019). Destaca-se a inserção pelo novel texto legal do §1º ao artigo 113 e do artigo 421-A ao Código Civil, bem como a nova redação conferida ao seu artigo 421, os quais prestigiam a autonomia da vontade. A intenção trazida pela modificação legislativa, ao nosso entender, foi de reduzir a discricionariedade10 judicial e a busca da preservação do autorregramento e da liberdade das disposições contratuais pactuadas pelas partes. Como resultado, espera-se que os novos dispositivos da Lei da Liberdade Econômica sirvam para prestigiar a segurança jurídica e a autonomia das partes, que são basilares ao desenvolvimento de qualquer nação. Na prática, o conhecimento por uma das partes sobre a possibilidade de decisões que intervenham de forma despropositada no contrato alinhado pode motivar comportamentos oportunistas que comprometem o mecanismo de mercado, prejudicando a eficiência econômica e a virtude das trocas que visam a gerar ganhos esperados de bem-estar para as partes envolvidas11. Dessa forma, eventuais decisões dos Tribunais, que sejam proferidas sem a melhor técnica jurídica, trazem o risco de estimularem o descumprimento contratual por parte do devedor que, sabendo desse posicionamento, vê-se incentivado a descumprir a avença quando lhe for conveniente. Com o advento da Lei da Liberdade Econômica, intenta-se reduzir a esfera de intervenção nas relações contratuais, tendo como exceção, na dicção do caput do art. 421-A do Código Civil, situações que apresentem elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção de paridade e simetria das partes. Contrariamente no que se encontra nas relações de trabalho e de consumo, a assimetria nas relações civis e empresariais não é presumida, ao invés, tem-se como requisito a sua comprovação. As modificações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica não são incólumes de críticas, notadamente no que tange a uma possível mais clara redação12. Contudo, a nova normativa era necessária. Ela prestigiou de forma salutar a autonomia e a vontade das partes nas relações contratuais, nas quais se presume a simetria, sem prejuízo de que seja identificado pelo julgador a presença de elementos que alicercem o excepcional tratamento assimétrico, o qual deve ser passível de comprovação, nos termos da lei. Conclusões Como principais conclusões desse breve estudo destacam-se: (i) Os princípios contratuais não devem servir como tábua de salvação para descumprimento contratual, sob pena do seu esvaziamento e do aumento do custo de transação que traz prejuízos a sociedade. (ii) O Judiciário deve ter o cuidado de fundamentar as suas decisões com exacerbada discricionariedade, subjetividade e/ou com escassez de adequada técnica jurídica e reflexão, sob pena de enfraquecer o sistema jurídico. (iii) A Lei de Liberdade Econômica está posta para que os julgadores distingam, com maior clareza, a aplicação da lei e dos princípios contratuais, modulando-os conforme o caso concreto e a intenção das partes. *Fábio Machado Baldissera é advogado, sócio de Souto Correa Advogados, doutor em Direito pela Universidad de Burgos, especialista em Direito Imobiliário pela FADISP, diretor estadual do IBRADIM - RS, diretor da AGADIE, professor em cursos de pós-graduação e autor de diversos artigos e obras jurídicas. Rede social: @fabiombaldissera. **Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, associado do IBRADIM. Rede social: @demetriogiannakos. __________ 1 Nesse sentido, vide: O impacto do Novo CPC no Direito Contratual: a exigência de Fundamentação das decisões e a Aplicação do princípio da boa-fé. In: Impactos do novo CPC e do EDP no Direito Civil Brasileiro (Coord. Marcos Ehrhardt Jr., Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 37-54, em especial, p. 49-52. 2 Nesse sentido, buscamos acesso integral aos autos, a fim de não cometer justamente a falha do sistema que indicamos nesse breve artigo. 3 André Abelha ao analisar os dispositivos trazidos pela Lei dos "Distratos" (Lei 13.786, de 28.12.2018), pondera que a redução da cláusula penal pelo juiz somente será legítima para coibir excessos: "(...) não se pode afastar a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada nos contratos imobiliários, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/18. Isto não significa, contudo, um cheque em branco para o juiz. O dispositivo em questão traz uma condição claríssima para a redução: excesso manifesto. Reparem: não basta um excesso qualquer; ele deve ser manifesto, ululante, exagerado". ABELHA. André. Lei 13.786/18: Pode o juiz reduzir a cláusula penal? Acesso 24 de julho de 2020. 4 (...) Negócio jurídico entabulado sob condições específicas, visando a autorização judicial da venda, momento em que seria concretizado o pagamento do preço avençado, mediante depósito em juízo. 3. Sentença de improcedência do pleito autoral fundamentada, em síntese, no princípio da exceção de contrato não cumprido. 4. Autor que, todavia, logrou comprovar documentalmente ter adotado as providências pactuadas que lhe cabiam para obtenção da autorização judicial de venda. 5. Caso concreto que denota ulterior desequilíbrio financeiro do contrato ocorrido por motivos alheios à vontade das partes contratantes. 6. Prejuízos do autor advindos da quebra do contrato que deve ser abrandado pela existência de circunstâncias fáticas que ensejaram tal descumprimento pelos réus, com primazia dos ditames da equidade, da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem prevalecer à convenção das partes. 7. Aplicação da cláusula penal que se impõe, reduzida a patamar que se amolde as circunstâncias fáticas em tela, em adequação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 8. Provimento parcial do recurso do autor e desprovimento do recurso dos réus. (Des(a). Elton Martinez Carvalho Leme - Julgamento: 01/06/2016 - Décima Sétima Câmara Cível - 0232054-13.2012.8.19.0001 - Apelação). 5 6.2. O não cumprimento de qualquer das cláusulas ou, ainda, a rescisão unilateral ensejará uma multa de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). 6 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal. 7 Lenio Luiz Streck, sobre a temática dispõe: "Quero dizer, simplesmente, que na Democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais. Simples assim". STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. 1 ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 11. O que se pretende demonstrar aqui é que o Direito não pode ser corrigido pela moral. 8 Conforme: KLOH, Gustavo. Teoria econômica da propriedade e dos contratos. In: Direito e economia: diálogos (coord. Armando Castelar Pinheiro, Antônio J. Maristello Porto, Patrícia Regina Pinheiro Sampaio, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2020, p. 304, "O grande desafio é o equilíbrio entre um possível excesso de intervencionismo e as dificuldades dessa intervenção, encontrar um meio-termo onde não haja uma restrição ao funcionamento do mercado e altos custos fiscais impostos para atingir a eficiência esperada". 9 Este ponto também é importante ao debate. O indivíduo que ajuíza uma ação no Brasil contribui em média com apenas 10% do custo do novo processo gerado. Há, assim, um evidente incentivo para que muitas ações sejam ajuizadas, levando ao esgotamento da atividade jurisdicional como bem comum. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 87. 10 É preciso compreender a discricionariedade como sendo o poder arbitrário (antidemocrático) em favor do juiz para "preencher" os espaços "vazios" do modelo de regras (leis). Discricionariedade, no modo como ela tem sido praticada, acaba, no plano da linguagem, sendo sinônimo de arbitrariedade. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 75-84. 11 COULON, Fabiano Koff; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Lei da Liberdade Econômica e o comportamento oportunista dos contratantes. Jota. Acessado em 09 de julho de 2020. 12 Ver: TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória n. 881/2019 (Liberdade Econômica) e as alterações do Código Civil. RJLB, ano 5 (2019), n. 4, 871-904.
Texto de autoria de Melhim Chalhub A Medida Provisória 992, de 16 de julho de 2020, dispõe sobre a concessão de crédito a microempresas e empresas de pequeno e de médio porte no âmbito do Programa de Capital de Giro para Preservação de Empresas - CGPE, sobre o crédito presumido apurado com base em créditos decorrentes de diferenças temporárias pelas instituições financeiras e pelas demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, exceto as cooperativas de crédito e as administradoras de consórcio e sobre o compartilhamento de alienação fiduciária. Dentre essas medidas, desperta especial atenção a possibilidade de ampliação do potencial da garantia fiduciária de bens imóveis como elemento catalisador da atividade econômica, destinado a impulsionar a reativação da economia. Trata-se sem dúvida de direito real de garantia cujos efeitos práticos vêm demonstrando sua decisiva importância na expansão do crédito e na circulação da riqueza desde sua entronização no direito brasileiro em 1965, notadamente nos mercados de financiamento de bens móveis para consumo e de produção e comercialização de imóveis. Sua superior efetividade em relação às garantias hipotecária, pignoratícia e anticrética decorre, fundamentalmente, de dois fatores: (i) blindagem do bem objeto da garantia em um núcleo patrimonial de afetação, que protege o direito do credor, excluindo-o dos efeitos de situações de crise do devedor fiduciante, notadamente de sua insolvência, e (ii) simplicidade e celeridade da realização da garantia, na medida em que, uma vez caracterizado o inadimplemento da obrigação garantida, opera-se a consolidação da propriedade no patrimônio do credor por procedimento extrajudicial, seguida de leilão para venda do bem. A ideia do compartilhamento da garantia previsto nesse novo texto legal pode contribuir para a abertura de novas linhas de crédito bancário destinado à atividade produtiva. Trata-se de ideia que, em certa medida, pode ser suprida por outra figura já existente no direito positivo, isto é, a alienação fiduciária da propriedade superveniente, e vem complementada por mecanismos operacionais modernizadores. Entretanto, antes mesmo da inovação de mecanismos de aplicação dessa garantia é necessário suprir algumas distorções e lacunas da legislação original, para as quais há muito vimos nos manifestando tendo em vista que podem comprometer a efetividade da inovação agora encaminhada ao Congresso Nacional. De fato, o emprego generalizado da garantia fiduciária, sobretudo sobre bens imóveis, vem proporcionando a formação de massa crítica que, a despeito de confirmar sua importância no mercado de crédito, põe em destaque alguns aspectos merecedores de atenção, inclusive em face de inovações do novo Código de Processo Civil de 2015, em relação às quais propusemos alteração legislativa no II Congresso Nacional do IBRADIM, realizado em 2019. Recorde-se que ao regulamentar a alienação fiduciária de bem imóvel, a lei 9.514/1997 prevê a exoneração da responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante por eventual saldo remanescente da dívida, caso no leilão do imóvel não se apure quantia suficiente para seu resgate integral. O precedente em que se inspirou a lei 9.514/1997 é a lei 5.741/1971, que, na execução de crédito hipotecário habitacional vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação - SFH, exonera o tomador de financiamento para moradia própria da responsabilidade pelo saldo remanescente caso não se alcance no leilão quantia suficiente para pagamento integral da dívida1, operando-se a satisfação do crédito mediante atribuição do imóvel ao credor. Trata-se de norma de exceção, de proteção do adquirente de moradia, instituída em 1971 para afastar o risco de superendividamento, mas, ao transportar essa norma excepcional para as operações de crédito com garantia fiduciária, a Lei 9.514/1997 institui-a como regra geral, que incide sobre toda a gama de operações de crédito, inclusive para fins empresariais. Para correção dessa grave distorção basta alterar os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997, restringindo a exoneração de responsabilidade aos créditos destinados à aquisição ou construção de moradia, mas o legislador, na tentativa de corrigi-la, quando da formulação das leis 11.795/2008 (§ 6º do art. 14) e 13.476/2017 (arts. 3º ao 9º), trata da matéria em relação ao autofinanciamento de grupo de consórcio e à operação bancária denominada "abertura de limite de crédito", esquecendo-se, todavia, de adequar a redação daqueles dispositivos da lei 9.514/1997 que impedem o credor de aceitar quantia inferior ao saldo devedor, impondo-se compulsoriamente a apropriação do imóvel pelo valor da dívida. Ora, na medida em que os §§ 2º, 5º e 6º do art. 27 da lei 9.514/1997 impedem o credor fiduciário de aceitar lance inferior ao saldo devedor e o compelem a ficar com o imóvel em pagamento da dívida por esse valor, considerando, em consequência, "extinta a dívida", não haverá qualquer saldo remanescente após o segundo leilão, sendo, portanto, estéreis essas duas leis que pretenderam submeter o devedor fiduciante, nessas hipóteses, ao princípio geral da responsabilidade patrimonial. Associada à necessidade de correção dessa distorção relacionada à responsabilidade patrimonial, outra situação merecedora de atenção diz respeito a eventual desproporção entre o valor da dívida e o do imóvel, que reclama adequação da legislação sobre alienação fiduciária de bem imóvel às normas sobre a vedação de preço vil. No primeiro caso, a lei 9.514/1997 deve adequar-se à regra geral do art. 1.366 do Código Civil, segundo a qual se, no leilão, o produto da venda do bem não bastar para pagamento da dívida, encargos e despesas da execução, o devedor fiduciante responde pelo saldo remanescente, cobrável por ação de execução. Em caráter excepcional, aplicar-se-ia a exoneração da responsabilidade somente em relação aos tomadores de financiamentos habitacionais, exceto nas operações autofinanciamento em grupos de consórcio. No segundo caso, é necessária alteração legislativa que estabeleça como lance mínimo pelo menos 50% do valor da avaliação, visando afastar o risco de arrematação por preço vil. Considerando que, pela consolidação da propriedade, o imóvel é incorporado ao patrimônio do credor pelo valor da dívida, caso se frustre o leilão e o imóvel nele permaneça por esse valor, a consolidação caracterizaria aquisição pelo credor por preço vil se o valor da dívida for inferior a 50% do valor da avaliação; esse risco poderá ser afastado mediante pagamento ao devedor fiduciante da diferença entre o valor da dívida e o correspondente a 50% da avaliação, se este for maior. Merece também atenção com vistas à adequação da garantia fiduciária imobiliária à realidade do mercado de crédito em geral a excussão da garantia quando composta por dois ou mais imóveis. Neste caso, considerando que a realização de leilão de todos os imóveis simultaneamente pode ser dificultada, sobretudo em relação a imóveis situados em localidades distintas, é recomendável a realização de leilões sucessivos, eventualmente em datas distintas e na medida em que seja liberada a certidão de averbação da consolidação de cada imóvel. Assim, se o produto do leilão do imóvel ofertado em primeiro lugar não for suficiente para satisfação integral do crédito, os outros continuariam respondendo pelo saldo remanescente, em conformidade com o princípio da indivisibilidade da garantia2, e deveriam ser ofertados em segundo leilão pelo valor desse saldo, pois todos os imóveis objeto da garantia permanecem vinculados à dívida até que ela seja extinta3. Esse critério é coerente com a regra do art. 899 do CPC, segundo a qual o leilão de vários bens penhorados deve ser suspenso tão logo apurada quantia suficiente para satisfação do crédito, encargos e despesas da execução. Nesse procedimento, para atender ao princípio da menor onerosidade da execução, o imóvel a ser ofertado em segundo lugar só deveria ser objeto de consolidação depois da conclusão do leilão do primeiro imóvel, e assim sucessivamente, na medida em que se torne necessário complementar a quantia suficiente para satisfação do crédito. Assim, alcançada essa finalidade, os imóveis que não chegaram a ser excutidos e, portanto, ainda se encontrem sob regime da propriedade fiduciária, seriam reincorporados ao patrimônio do devedor mediante simples averbação na respectiva matrícula independente de pagamento dos encargos tributários e dos emolumentos relativos a duas operações, que não chegariam a ser realizadas e, portanto, não os tornariam exigíveis, quais sejam, (i) a consolidação, na qual seriam devidos o ITBI e os emolumentos de averbação, e (ii) reversão da propriedade ao devedor, para a qual seriam também exigíveis novo ITBI e os emolumentos de registro no Registro de Imóveis. Independente desse procedimento, nada impede que nas operações garantidas por dois ou mais imóveis os contratantes convencionem a vinculação de cada um deles a uma parcela da dívida e a consequente exoneração da garantia na medida em que satisfeita essa parcela. Questão das mais relevantes, que tem sujeitado a execução fiduciária de bens imóveis a judicialização, é a imunidade do direito do credor fiduciário diante de atos de constrição, de qualquer natureza, sobre o direito aquisitivo do devedor fiduciante. Como se sabe, a penhora, a indisponibilidade de bens ou qualquer outro ato de constrição sobre os direitos do devedor fiduciante (CPC, art. 835, XII) "não tem o condão de afastar o exercício dos direitos do credor fiduciário resultantes do contrato de alienação fiduciária, pois, do contrário, estaríamos a permitir a ingerência na relação contratual sem lei que o estabeleça. Até porque os direitos do devedor fiduciante, objeto da penhora, subsistirão na medida e na proporção que cumprir com suas obrigações oriundas do contrato de alienação fiduciária"4. Assim, a penhora ou a indisponibilidade dos direitos de que o devedor fiduciante é titular sobre o imóvel, em execução contra ele movida por terceiro ou até pelo credor fiduciário, limita-se ao seu direito aquisitivo e, portanto, não impede o livre exercício do direito do credor caso esse devedor fiduciante venha a se tornar inadimplente, estando assegurada ao credor a consolidação da propriedade e o leilão. Assim dispõe o art. 7º-A do decreto-lei 911/19695, que trata da garantia fiduciária de bem móvel infungível, mas em relação aos bens imóveis a lei 9.514/1997 é omissa sobre a situação, e essa omissão tem dado causa a interrupção do procedimento de realização da garantia e a judicialização da questão perante o juízo que decretou a constrição, retardando desnecessariamente a execução e onerando injustificadamente a execução, em prejuízo de ambos os contratantes. A controvérsia quanto aos limites da incidência desses atos de constrição, em conformidade com o art. 835, XII, do CPC, pode ser afastada mediante inclusão de um parágrafo ao art. 27 da lei 9.514/1997, em termos semelhantes a proposição legislativa aprovada na reunião anual da Academia Brasileira de Direito Civil, realizada em setembro de 2018, verbis: "os direitos reais de garantia ou constrições de qualquer natureza incidentes sobre o direito real de aquisição de bem móvel ou imóvel de que seja titular o fiduciante não obstam sua consolidação no patrimônio do credor e a venda do imóvel, mas sub-rogam-se no direito do fiduciante à percepção do saldo que eventualmente restar do produto da venda". Essas e outras situações semelhantes têm dado causa à judicialização do procedimento extrajudicial de execução fiduciária imobiliária, postergando a recuperação do crédito e agravando os danos provocados pelo inadimplemento, ao frustrar a celeridade do procedimento extrajudicial e onerar excessivamente a execução, evidenciando a necessidade de adaptação legislativa que assegure a plena efetividade dessa garantia como elemento catalisador do crédito. O compartilhamento da garantia fiduciária previsto na recente Medida Provisória 92/2020 pode, de fato, contribuir para a expansão do crédito bancário, mas seus efeitos práticos dependem da adequação legislativa em relação aos aspectos aqui suscitados e outros capazes de revestir esse contrato de garantia da segurança jurídica necessária a assegurar sua efetividade no processo de reativação do desenvolvimento econômico. *Melhim Chalhub é advogado e parecerista. Cofundador e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil, da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Autor das obras Alienação Fiduciária - Negócio fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outras. __________ 1 A dispensa do pagamento de eventual saldo remanescente na execução hipotecária é objeto do art. 7º da lei 5.741/1971, que institui procedimento especial de execução judicial de crédito hipotecário vinculado a financiamento habitacional do Sistema Financeiro da Habitação, do seguinte teor: "Art. 7º Não havendo licitante na praça pública, o juiz adjudicará, dentro de quarenta e oito horas, ao exequente o imóvel hipotecado, ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida". Tratamos da matéria mais detidamente em nosso Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário (Gen-Forense, 6. ed., 2019, item 6.10.1), sustentando a necessidade de alteração legislativa que restrinja o benefício aos tomadores de financiamento habitacional, mantendo as operações de crédito em geral subordinadas às normas dos arts. 586 e 1.366 do Código Civil. 2 Código Civil: "Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação". 3 A indivisibilidade, como se sabe, não diz respeito ao bem, mas, sim, ao direito de garantia, ainda que essa seja representada por um conjunto de bens. 4 REsp 1.697.645-MG, rel. Min. Og Fernandes, DJe 25.4.2018. 5 Decreto-lei 911/1969: "Art. 7º-A Não será aceito bloqueio judicial de bens constituídos por alienação fiduciária nos termos deste Decreto-Lei, sendo que, qualquer discussão sobre concursos de preferências deverá ser resolvida pelo valor da venda do bem, nos termos do art. 2o".
Texto de autoria de Melhim Chalhub O Superior Tribunal de Justiça selecionou para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos o Recurso Especial nº 1.871.911-SP. Trata-se de ação de resolução de contrato de compra e venda de imóvel e financiamento com pacto adjeto de alienação fiduciária, proposta pelo devedor fiduciante sob alegação de incapacidade de pagamento, fundamentando-se em que a caracterização do negócio como relação de consumo oriunda de contrato de adesão lhe conferiria direito de denúncia do contrato e de restituição parcial das quantias pagas. O pedido foi julgado improcedente por falta de interesse processual, já que a operação de crédito não é passível de resolução, de que trata o art. 475 do Código Civil, mas, sim, de execução do crédito seguida de excussão do imóvel nos termos do art. 27 da lei 9.514/1997. Confirmada a sentença em recurso de apelação, sobreveio o mencionado Recurso Especial, selecionado como representativo de controvérsia, tendo em vista a grande quantidade de processos em que se discute o modo de extinção forçada do contrato de crédito com garantia fiduciária, destacando-se que só no Tribunal de Justiça de São Paulo foram "analisados 160 reclamos por esta matéria em 2019 e cerca de 80 apenas nos 3 primeiros meses de 2020, o que indica importante aumento em seu impacto social e econômico". Colocam-se, de um lado, a jurisprudência já sedimentada do STJ, segundo a qual a execução do crédito garantido por propriedade fiduciária de imóvel sujeita-se ao rito especial dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/19971, que contempla a excussão do imóvel em leilão e a restituição do saldo, se houver, ao devedor, e, de outro lado, decisões divergentes das instâncias ordinárias, que julgam procedentes pedidos de resolução de operação de crédito fiduciário, com fundamento no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)2 e na Súmula 543/STJ3, impondo ao credor fiduciário a restituição de quantia arbitrada pela sentença, independente de leilão. Fundamentam-se essas decisões divergentes, não raras vezes, na caracterização dessa operação de crédito como "relação de consumo e contrato de adesão", que conferiria ao devedor fiduciante direito potestativo de "postular a rescisão da avença, em virtude de sua incapacidade financeira para continuar honrando as parcelas"4 ou mesmo em virtude de desinteresse em continuar no contrato. Nesse contexto, não se questiona a incidência das normas do CDC nos contratos de promessa de compra e venda e de crédito com garantia fiduciária, quando caracterizem relação de consumo, pois, sendo lei geral de proteção dos consumidores, esse Código incide sobre qualquer contrato nos aspectos correspondentes à relação de consumo5. Os casos de aparente antinomia entre o CDC e normas de lei especial são solucionados com base nos critérios da especialidade e da cronologia6, prevalecendo a lei especial sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, como definido na tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 636.331-RJ, com repercussão geral7. Logo, também não se questiona a prevalência da lei 9.514/1997, que tipifica o contrato de alienação fiduciária de bens imóveis, sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, por ser lei especial e posterior a esse Código. O que se questiona são os efeitos do art. 53 do CDC, que é o fundamento invocado pelas decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP para substituir o procedimento de execução do crédito fiduciário pela ação de resolução do contrato de crédito fiduciário e para condenar o credor fiduciário a restituir quantia fixada em sentença (Súmula 543/STJ), negando vigência ao § 4º do art. 27 da lei 9.514/1997, segundo o qual a restituição ao devedor fiduciante corresponde ao saldo, se houver, do produto da excussão da garantia. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Melhim Chalhub é advogado, parecerista, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM, do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Brasileira de Direito Civil. Autor dos livros Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outros. __________ 1 "A lei 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor - CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial. 3. Agravo interno não provido". (REsp 1.822.750-SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.11.2019). "Recurso Especial. Direito civil e processual civil. Compra e venda de imóvel. Alienação fiduciária de bem imóvel. Pedido de resolução. Desistência da compra e venda. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no artigo 27, §§ 4.º, 5.º e 6.º da lei 9.514/97 em detrimento da regra do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. Recurso especial provido". (STJ, 1773047-SP, rel. Ministro Paulo de Sanseverino, DJe 22/5/2020). 2 Lei 8.078/1990: "Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado". 3 Súmula 543/STJ: "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". 4 Veja-se, a título de ilustração, acórdão que acolhe pretensão de "rescisão" de compra e venda com financiamento e pacto adjeto de alienação fiduciária mediante aplicação da Súmula 543/STJ, relativa à promessa de venda: "Apelação - Compra e venda com alienação fiduciária em garantia rescisão contratual motivada pelo desinteresse do adquirente parcial procedência - Inconformismo da ré Acolhimento em parte. Deve ser afastada a tese das rés de impossibilidade da rescisão do contrato, com base na submissão a regime jurídico específico da lei 9.514/97 - Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ainda que adquirido o imóvel com cláusula de alienação fiduciária - Propriedade não consolidada em nome da vendedora e credora fiduciária Possibilidade de o adquirente pleitear a rescisão do contrato com restituição das quantias pagas - Súmulas nº 543 do STJ e nº 1 do TJ/SP - Restituição das partes ao estado anterior - Devolução dos valores pagos, com retenção - Sentença que determina a devolução de 90% dos valores pagos - Acolhida em parte a pretensão da ré para majorar o percentual de retenção - Caso concreto que demonstra ser razoável a retenção de 20% dos valores pagos a título de indenização pelas despesas geradas, segundo entendimento do STJ e precedentes desta C. Câmara. Deram provimento parcial ao recurso". (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1007132-43.2016.8.26.0451, rel. Des. Alexandre Coelho, DJe 13/3/2019). 5 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2005, p. 618. 6 "O CDC, como lei geral de proteção dos consumidores, poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual (...). Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC e mais específica for a norma 'contrária' da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade, e, então, é de ser afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova". (MARQUES, Cláudia Lima, Contratos ..., cit., pp. 632-633). 7 Ao apreciar aparente conflito entre as normas gerais do CDC e as da Convenção de Varsóvia, que se classifica como lei ordinária especial, a respeito de indenização por extravio de bagagem, o Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331-RJ, com repercussão geral, fixou tese segundo a qual "devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista se tratar de lex specialis".
Texto de autoria de Márcio Martins Bonilha Filho Pela primeira vez, compareci a um Tabelionato de Notas, sem a finalidade de realizar uma Correição, quer pela Corregedoria Permanente, ou pela Corregedoria Geral da Justiça, onde, à época da edição da lei Federal 8.935/94, fui assessor da equipe do extrajudicial. Também não compareci na condição de usuário para me servir de seus préstimos. Recebi convite para passar um dia no Tabelionato de Notas da capital e tentar obter as informações práticas e instruções técnicas das novas ferramentas tecnológicas, a serem empregadas na execução do Provimento 100/2020, do CNJ. Nada melhor do que receber tais esclarecimentos por parte de um profissional qualificado, que é referência em processamento de dados e vocacionado para lidar com aplicativos e recursos tecnológicos. Daniel Agapito é o Substituto da Tabeliã Priscila Agapito, titular da Delegação do 29º Tabelionato de Notas da Capital, cuja desenvoltura para processamento de dados já testemunhara, quando na Banca Examinadora do 7º Concurso de outorga de Delegações das serventias extrajudiciais, ele, a pedido do Exmo. Presidente da Comissão, Des. Donegá Morandini, concebeu uma engenhosa planilha para facilitar a soma dos pontos dos Títulos dos candidatos. Minha ideia era acompanhar a rotina, no aspecto prático, do sistema implantado a partir do advento do Provimento nº 100 e seguintes, do Conselho Nacional da Justiça. Nesse sentido, vivenciei meu primeiro contato com o e-Notariado e suas múltiplas funções. Constatei com muita satisfação que, realmente, o futuro chegou e irá revolucionar o Direito Notarial. A sensação positiva é que a burocracia medieval cederá espaço para uma dinâmica que conjuga segurança jurídica, fé-pública e eficiência. Os atos serão praticados a distância, de qualquer parte do mundo, inexistindo a necessidade do comparecimento às dependências da Serventia. Às partes e aos advogados bastará providenciar a documentação, para dar início à concepção do ato notarial a ser executado. A videoconferência, que pode ser considerada uma audiência envolvendo os interessados na lavratura da escritura, constitui recurso tecnológico, que permite, a distância, o contato visual e sonoro entre as pessoas envolvidas no ato notarial, tornando possível a comunicação dos interlocutores em tempo real. As partes participam da videoconferência e exibem seus respectivos documentos de identidade. O Tabelião, antes de efetuar a leitura do ato a ser lavrado, trava um diálogo com cada participante, aquilatando sua capacidade volitiva, higidez mental e efetiva intenção para prosseguirem com a escritura. As partes deverão manifestar concordância com os termos da escritura. Para garantir a transparência e autenticidade, todas as videoconferências serão gravadas e arquivadas, com a finalidade de materializar e conservar, na íntegra, todo o ritual, atos preparatórios, qualificação das partes, identificação documental, conversas sobre os detalhes do ato a ser escriturado, alcance e consequências do aludido ato, confirmação da vontade dos envolvidos, leitura da escritura, anuência, etc. Em dia e horário conveniente para todos, sem perder de vista questões relacionadas com o fuso-horário, pois nada impede que residentes no exterior se utilizem dessa ferramenta que foi concebida para conjugar modernidade e segurança jurídica, o Tabelião define o momento da videoconferência, enviando com antecedência um 'link', para que cada interessado, ao clicá-lo, passe a participar da videoconferência. Realizada a videoconferência, seguirá oportunamente a assinatura do ato, que ocorre, acessando a plataforma do e-Notariado, com o respectivo certificado digital. Aliás, muito simples a obtenção do certificado digital do e-Notariado. O usuário exibe documentos de identidade, certidão de nascimento ou casamento (se for o caso), comprovante de residência, seguida da identificação e da validação biométrica, nos moldes do cadastramento que ocorre perante a Justiça Eleitoral. Ato contínuo, já poderá baixar o aplicativo no celular, tornando-o apto, quando necessário, para participar de videoconferência e assinar escrituras no sistema do e-Notariado. E, para a obtenção do referido certificado digital, não haverá incidência de qualquer cobrança. Aperfeiçoada a escritura eletrônica, colhida as assinaturas por intermédio do certificado digital, cuja autenticidade seja conferida pela 'internet' por meio do e-Notariado, esse ato constituirá instrumento público para todos os efeitos legais e será eficaz para os registros públicos. Em suma, um revolucionário avanço, que, além de conferir modernidade, aliada à segurança jurídica e à fé-pública, terá o condão de estabelecer uma padronização nas escrituras em âmbito nacional, sem perder de vista que a plataforma, concebida no Provimento 100/2020, do CNJ, possibilitará a formação de metadados, mediante a Central Notarial de Autenticação Digital (CENAD), o Cadastro Único de Clientes do Notariado (CCN), o Cadastro Único de Beneficiários Finais (CBF) e o Índice Único de Atos Notariais (IU). Inúmeros atos já estão sendo lavrados, em todos os Tabelionatos do Brasil, em observância a essa ousada e criativa inovação, valorizando a atividade notarial, respeitado o critério da territorialidade e as orientações traçadas pelas diretrizes legais e normativas, de tudo se inferindo que para os Tabelionatos de Notas o futuro chegou e já é um sucesso. *Márcio Martins Bonilha Filho é desembargador aposentado do TJ/SP e advogado no escritório Barcellos Tucunduva Advogados.
segunda-feira, 22 de junho de 2020

Não queremos dizer adeus a Sylvio Capanema

Texto de autoria de André Abelha Foram 83 dias e noites de ansiedade, torcida e energia coletiva, terminados sem final feliz. Talvez fosse uma nova fake news. Mas desta vez era verdade. A madrugada de sábado começou com uma tristeza profunda e concentrada, que pela manhã foi se transformando em comoção espalhada por todo o Brasil. Não sei se há um queridômetro capaz de medir o quanto alguém é unanimemente benquisto. Se existir, você atingiu o grau absoluto. Gente normal vem ao mundo com algum dom, e ao longo da vida desenvolvemos ao menos um valor: simpatia, inteligência, humor, cultura, conhecimento, sabedoria, comunicação, simplicidade, honestidade, respeito, carisma, zelo, paixão. E pouquíssimos iluminados, não se sabe bem como, simplesmente reúnem todas essas virtudes, e até outras, numa só mente e corpo. Pela análise combinatória, algo extremamente raro. E você era raríssimo. Felicidade de quem o tinha sempre por perto, e sorte também de quem cruzou o seu caminho por alguns instantes tão efêmeros quanto memoráveis. No triste sábado, um sábado que ninguém queria, as milhares de manifestações emocionadas foram uma pequena prova da legião de fãs que você cultivou. Cada um de nós tinha uma história inspiradora para relembrar, algo para agradecer, e um discurso eletrizante para rever, e rever, e rever novamente. E se emocionar. Pessoas assim são hipnotizantes, são inspiradoras. Elas nos tiram da inércia quando estamos parados, nos fazem levantar se estamos caídos, e nos fazem correr quando estamos andando. Elas nos fazem entender o passado, abrir os olhos para o presente e mirar um futuro cheio de esperança. Se os dias passarem e tivermos que aceitar um mundo sem você, como ficaremos sem suas aulas inigualáveis, sem os discursos arrebatadores, sem suas tiradas hilariantes, sem seu abraço fraterno? Não queremos lhe dizer adeus, Capanema. Não podemos nos dar por vencidos. Não parta! Fique por nós! Dê um jeito e volte! 82 anos não passam de uma idade cronológica, e você é atemporal. Se esse tanto seria o tanto bastante para alguns, certamente não era para você, que estava cheio de energia, com uma mente inquieta e uma biografia pronta para mais grandezas. Mesmo órfãos, seguiremos em homenagem a seu vasto legado. Afinal, você foi lei especial, foi doutrina majoritária e foi jurisprudência dominante. E isso não foi nem a metade. Você nos legou a riqueza verdadeira: o estalão de uma bela vida, vivida com plenitude, honradez, simplicidade, generosidade e leveza. Uma vida para os outros, mais do que para si mesmo. Levaremos seu exemplo em nossos corações para sempre. Pois você é imortal.
Texto de autoria de André Abelha Não se preocupe com a perfeição - você nunca irá consegui-la. A frase de Salvador Dali amolda-se bem à Lei nº 14.010/20, famosa desde o útero, quando ainda era o PL 1.179/2020, e que nasce hoje, sob aplausos e críticas, e com vetos importantes1. Concebida no início da pandemia de Covid-19 por um grupo de notáveis, sua sigla é sisuda: RJET - Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado. Pronuncie, quando falar, "érre-jet". Seguindo a trilha de alguns países, a exemplo de Portugal e Alemanha, que inauguraram leis emergenciais, agora temos uma Lei Failliot2 para chamar de nossa. Sinal dos tempos, e de um mundo conectado e veloz: na I Guerra Mundial, a lei francesa só foi aprovada em 1918, quando o longo conflito já caminhava para o fim. Um século depois, foram necessárias apenas algumas semanas para a gestação da nova Lei. Em uma emergência legislativa, há opções básicas a escolher: ou produzimos uma lei curta e genérica, com parâmetros gerais; ou tentamos ser mais específicos; ou ambos. Não há escolha perfeita. Cada caminho tem seus benefícios, riscos e problemas. Os autores do anteprojeto que originou o PL 1.179/20 elegeram a terceira via, sendo (corretamente) genéricos quanto à prescrição e decadência, e mencionando situações especiais: reuniões e assembleias pessoas jurídicas de direito privado; regras pontuais sobre revisão e resolução de sobre contratos; suspensão do prazo de reflexão de 7 dias para certas entregas domiciliares; e suspensão de certas regras do regime concorrencial, da prisão civil por dívida alimentícia e do prazo para abertura e ultimação do inventário judicial e política nacional de mobilidade urbana. Além disso, a Lei tratou de temas afetos ao Direito Imobiliário, que são o foco deste breve artigo. Antes, contudo, de passarmos por eles, precisamos falar de datas. Marcos temporais A Lei do RJET, em nome da segurança jurídica, tinha que eleger certos marcos temporais. E assim o fez, corretamente. As três datas relevantes são as seguintes: (i) 20/03/2020: termo inicial dos eventos derivados da pandemia, não por acaso, a data do Decreto Legislativo nº 6, que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil; (ii) 12/06/2020: início de vigência legal. Não custa lembrar a regra constitucional de que a lei não pode retroagir para afetar o ato jurídico perfeito. Portanto, prescrições e decadências consumadas até 11/06/2020 não podem ser ressuscitadas. Se a Lei dissesse diferente, seria fatalmente inconstitucional; e (iii) 30/10/2020: até essa data, certos atos estarão permitidos e algumas regras suspensas ou com modificação provisória3. Por que outubro, e não agosto ou dezembro? Ora, porque essa foi a estimativa do legislador para o arrefecimento da crise e do confinamento. Não importa se a vida voltará ao (novo) normal antes ou depois. Escolha arbitrária e legítima, da qual podemos até discordar, porém temos que aceitar. E cuidado: não há data de extinção. A Lei vigorará mesmo depois de outubro, ainda que seja revogada por outra. O regime é provisório, mas seus efeitos, uma vez produzidos, são perenes. Prescrição e decadência Os prazos prescricionais e decadenciais ficam impedidos (não começam a correr) ou suspensos entre 12 de junho e 30 de outubro de 2020. Se um menor completar 18 anos nesse período de 140 dias, eventual prazo prescricional ou decadencial só começará a correr em 31 de outubro. Se já era capaz, e havia prazo correndo, a contagem se suspende. Não existe inadimplemento de direito potestativo. O titular do direito exerce-o ou não. Certas faculdades são permanentes (v.g., o direito à separação e ao divórcio, e à extinção do condomínio voluntário); outras, para não se perderem, precisam ser exercidas em certo tempo, em juízo ou fora dele. Embora isso não esteja expresso, a regra emergencial aplica-se somente às pretensões e direitos potestativos a serem exercidos em juízo. Isso inclui, na seara das locações urbanas (Lei nº 8.245/91), os prazos de ajuizamento das ações de preferência (art. 33) e renovatórias (art. 51, §5º). Spoiler: o prazo para o locatário purgar a mora (art. 62, II), mesmo decadencial, não se suspende. Explicarei no capítulo das locações. No Código Civil, ficam suspensos, por exemplo4: (i) os prazos prescricionais para os tabeliães, árbitros e peritos ajuizarem ação de cobrança de emolumentos, custas e honorários (art. 206, §1º, III); e para a cobrança judicial de aluguéis (art. 206, §3º, I), para o pleito de reparação civil (art. 206, §3º, V) e para a cobrança de títulos de crédito imobiliários ou não (art. 206, §3º, VIII); e (ii) os prazos decadenciais para anular o negócio jurídico imobiliário (art. 119, p. único; e arts. 178 e 179); e para o condômino (art. 504) ou o titular da construção-base ou da laje (art. 1.510-D, §1º) ajuizarem a ação de preferência; Insisto no ponto, por considerá-lo essencial: estão suspensos todos os prazos prescricionais, por serem, sempre e obrigatoriamente, exercidos em juízo, mas a suspensão não se aplica aos direitos potestativos sujeitos a prazos decadenciais que podem ser exercidos fora dele. Assim, permanecem inalterados, sem suspensão, os seguintes prazos: (i) prazo de denúncia da incorporação: obviamente, o desempenho de venda da imensa maioria dos empreendimentos foi prejudicado pela pandemia. O incorporador que comprovar tal circunstância poderá pedir ao juiz a prorrogação do prazo (art. 34 da Lei nº 4.591/64); (ii) prazo de purga da mora do devedor fiduciante: para evitar as consequências legais, mesmo no período de pandemia, o devedor que tiver sido regularmente notificado deverá comprovar, no caso concreto, eventual impossibilidade de realização do ato no período (art. 26, §4º, da Lei nº 9.514/97); (iii) prazos da Lei do Inquilinato: por não serem exercidos em juízo, também permanecem fluindo mesmo na vigência da nova Lei: (a) o prazo de 90 dias para o adquirente do imóvel denunciar o contrato sem cláusula de vigência (art. 8º, §2º); (b) o prazo para o locatário manifestar sua aceitação à proposta para exercício da preferência (art. 28); (c) o prazo de purga da mora do locatário; e, entre outros, (d) o prazo para o locatário oferecer nova garantia, sob pena de desfazimento da locação (art. 40, p. único). Usucapião Estão igualmente suspensos, por 140 dias (12/06/2020 a 30/10/2020), os prazos de aquisição da propriedade imobiliária5, em qualquer das modalidades de usucapião. Obviamente, a posse é um fato e não se suspende. O que se paralisa é um (apenas um!) dos efeitos decorrentes da posse ad usucapionem. Os demais efeitos, como o direito à sua defesa, continuam em pleno vigor. Locações de imóveis urbanos O Presidente da República vetou o controverso artigo 9º do anteprojeto, segundo o qual "não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo" nas hipóteses ali especificadas, quando o processo tiver sido iniciado a partir de 20/03/2020. Pela interpretação literal do dispositivo, se a ação de despejo fosse ajuizada no dia 20 de março ou depois, ficaria expressamente proibida a liminar nos seguintes casos: (i) descumprimento do acordo para desocupação com prazo mínimo de 6 meses; (ii) rescisão do contrato de trabalho; (iii) exoneração do fiador sem substituição da garantia; (iv) denúncia vazia da locação não residencial; e (v) falta de pagamento de aluguel e encargos em contrato sem garantia. Pela interpretação literal do vetado art. 11, a sistemática seria a seguinte: Confesso não ter captado a lógica. Porque retomar um imóvel de temporada seria, como regra, mais urgente que retomar o imóvel de um locatário que não está pagando os aluguéis, se isso pode estar afetando seriamente as finanças do locador? Além disso, qual seria a razão de ser do art. 9º da Lei do RJET senão evitar a execução de despejos com riscos à saúde das pessoas direta (oficial de justiça, chaveiro, transportadora, locatário-morador e sua família ou lojista) e indiretamente (funcionários e moradores) envolvidas no ato? O art. 11, também vetado, ao tratar dos condomínios, deixava isso bem claro: "como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do coronavírus". Ora, se o objetivo era evitar a propagação do vírus, por que a restrição não se aplicaria a qualquer despejo, liminar ou definitivo? Por que, aliás, não se aplicaria a liminares ou execuções de sentença para atos de imissão ou reintegração na posse? E por que não executar a liminar ou sentença quando comprovadamente for possível fazê-lo sem risco às partes e à saúde pública? Ao que parece, a norma, nesse ponto, traria mais dúvidas que certezas, e seu veto pareceu correto. E uma coisa parece clara como a luz do Sol: o que o legislador quis impedir não é propriamente a decisão judicial que defere o desalijo antecipado, e sim o cumprimento do mandado de despejo. Entre a decisão e sua efetiva execução, podem decorrer semanas, até meses. Mesmo nas hipóteses de vedação, não haveria qualquer razão para esperar o fim de outubro para só então o juiz apreciar a liminar. Assim, o mais correto em tais casos de restrição seria (caso o veto seja derrubado pelo Congresso Nacional) o deferimento da liminar, com a observação de que o termo inicial do prazo de 15 dias para a desocupação voluntária, previsto no art. 59, §1º, da lei 8.245/91, somente começaria a fluir a partir do dia 31/10/2020. Com tal medida, preservar-se-ia o objetivo da Lei, o direito das partes e o bom andamento do processo, evitando-se prejuízos injustificados ao locador. Um ponto não afetado pelo veto ao art. 9º, que requer análise, diz respeito à purga da mora do locatário. Considerando que o art. 6º da Lei do RJET suspende os prazos decadenciais, temos duas perguntas a responder: (i) o prazo para o locatário purgar a mora tem natureza decadencial? e (ii) se a resposta for positiva, ele se suspende até 30/10/2020? A primeira resposta é sim. A natureza do prazo de purga da mora é decadencial porque a faculdade de evitar a resolução do contrato (nos termos do art. 62, II, "o locatário e o fiador poderão evitar a rescisão da locação..." é um direito potestativo que, para ser exercido, não requer que o locador cumpra uma obrigação6. O fato de muitas vezes ser efetivada em juízo não faz dela um prazo processual, e tanto é assim que a purga da mora é uma alternativa à contestação do pedido, este, sim, de natureza procedimental. Isto quer dizer que os locatários, por força do art. 3º, §2º, da Lei do RJET, têm pelo menos até 30 de outubro para purgarem sua mora? Aqui a resposta é não. Como já vimos, o RJET aplica-se aos prazos decadenciais, porém somente àqueles que, forçadamente, só podem ser exercidos em juízo, tais como o ajuizamento de ações renovatórias e de preferência. Ninguém pode ajuizar uma ação no banco ou em cartório. Mas a mora do locatário, assim como a mora de qualquer devedor, pode ser purgada em juízo ou fora dele. Para ser específico: a fim de extinguir sua mora, o locatário não precisa aguardar sua citação judicial na ação de despejo. O art. 62, II, da Lei de Locações, estabelece, simplesmente, um termo final para que isto aconteça. A existência da expressão "mediante depósito judicial" em nada muda essa realidade, por três razões: (i) especialmente se o contrato prevê o pagamento dos aluguéis mediante transferência bancária, beiraria o absurdo decretar a resolução do contrato se o locatário comprovar que realizou a transferência no prazo legal para conta de titularidade do locador, e parece razoável que o mesmo raciocínio se aplique mesmo no silêncio do pacto; (ii) pode ser que o locador, porque deseja logo receber seu crédito, forneça os dados bancários que o locatário não tinha, ou lhe mande um boleto no valor da dívida com seus acréscimos, e também nesse caso não haverá purga da mora em juízo; e (iii) mesmo que o locador se recuse, e o inquilino não possua os dados bancários, não é necessário peticionar ao juiz solicitando emissão de guia. Lembre-se, estamos diante de uma faculdade do locatário, que poderá obter a guia judicial diretamente, fazendo o depósito em favor do juízo, e ainda assim fora dos autos. Em outras palavras, a expressão "mediante depósito judicial" deve ser interpretada como mediante depósito comprovado em juízo. A comprovação do exercício do direito potestativo é que se dá em juízo, e não seu exercício propriamente dito. O inquilino cuja preferência foi violada precisa comprovar em juízo que aderiu à proposta no prazo de 30 dias, mediante envio de resposta extrajudicial. Da mesma forma, o locatário em débito tem que comprovar em juízo (juntada de petição com comprovante) que realizou, extrajudicialmente (pagamento de boleto ou guia, ou transferência bancária) o pagamento integral da dívida no prazo do art. 62, II, da lei 8.245/91. Pela mesma razão, inclusive, o locatário tem que fazer o pagamento da dívida no prazo legal mesmo que os prazos processuais estejam suspensos. Por fim, o que vale para a denúncia da incorporação prevalece para a purga da mora: se o locatário (ou qualquer devedor) conseguir comprovar, no caso concreto, a efetiva impossibilidade temporária de realização do pagamento, terá ele direito à realização do ato em data posterior, sem a perda do direito, o que necessariamente depende de pronunciamento judicial liminar ou definitivo. Condomínios edilícios Em relação ao condomínio edilício, o projeto de lei 1.179/20, nos artigos 11 e 12, de modo provisório, ou seja, até 30 de outubro: (i) no artigo 11, aumentava o rol de poderes do síndico, autorizando-o expressamente a restringir, nas áreas comuns ou nas unidades imobiliárias, atividades que gerem aglomeração de pessoas e/ou aumento de circulação de pessoas no condomínio e/ou elevação do risco de contaminação e propagação da Covid-19, tais como reuniões e festas, uso de academia e áreas de lazer, e realização de obras não-urgentes (VETADO); e (ii) no artigo 12, permite expressamente a realização de assembleia geral virtual e prorroga os mandatos dos síndicos nos casos em que não foi possível a realização de assembleia virtual. Pergunta: o art. 11, caso não tivesse sido vetado, teria transformado o síndico em um semideus, para decidir, a seu bel prazer, e de acordo com seus medos pessoais, quem entra e sai do condomínio, quem pode usar as áreas comuns, e o que cada pessoa pode fazer dentro da sua casa ou do seu escritório? Obviamente que não. O art. 11, é bom dizer, apenas explicitava poderes que o síndico já possuía. Pois cabe a ele, nos termos do art. 1.348: (i) praticar, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns; (ii) cumprir e fazer cumprir a convenção; e (iii) diligenciar a conservação e guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores. Isto significa que cabe ao síndico fazer com que as regras legais e convencionais sejam respeitadas no condomínio. Soa até óbvio. Ora, se o art. 1.336, IV, impõe aos condôminos e possuidores o respeito à saúde e sossego dos demais moradores, parece lógico que o síndico deve garantir que tal regra seja observada por todos, dentro ou fora das unidades imobiliárias. Na prática, o art. 11 deixava isso explícito, para tornar esse silogismo desnecessário, e evitar dúvidas, especialmente dos leigos. Uma lei clara tem mais chance de ser cumprida. Insisto: o síndico não tem faculdades. O que ele pode fazer, deve fazê-lo de acordo com o interesse da coletividade de moradores. Poder-dever. Para proibir, quando prudente, e para permitir, sempre que cabível. Independentemente de manifestação assemblear. A missão está em suas mãos. Talvez seja esperar demais que um síndico jovem ou idoso, especialista ou leigo, com ou sem noção de medicina ou saúde pública, saiba distinguir com clareza, num mar de situações duvidosas, quando é melhor proibir ou permitir. Se nem a Organização Mundial da Saúde está convicta do próximo passo a dar, como exigir algo diferente do síndico? Ainda assim, ele tem que decidir. Mesmo que não haja essa obrigação, é prudente contar sempre com a opinião do conselho, se existir um no prédio, ou mesmo dos moradores, em consulta informal. Se você é síndico, e o cenário é nebuloso, procure não decidir sozinho, e use sempre o bom-senso como farol, evitando a lógica binária. Pois entre o "sim" e o "não" há o "sim, com restrições". E se o condomínio conta com o apoio de uma administradora, use-a! Uma recomendação escrita poderá ser um escudo pessoal contra eventuais reclamações. De fato, o texto do artigo 11 não era um primor. Quanto às obras, porque o legislador não usou, simplesmente, o termo "urgentes"? Ao mencionar obras "de natureza estrutural ou realização de benfeitorias necessárias", a norma atenta contra seu próprio objetivo, que é trazer segurança jurídica. Há obras estruturais que podem esperar e há benfeitorias necessárias não-urgentes, expressamente referidas no art. 1.341, §3º, do Código Civil. Aliás, obra estrutural já é uma benfeitoria necessária. Para que distinguir? Estaria o legislador referindo-se a obras para evitar a ruína iminente da edificação? Enfim, o melhor critério, definitivamente, não era a natureza da obra, e sim: (i) a premência de sua execução; e (ii) a possibilidade de fazê-la sem aumento de risco para a coletividade. Tais critérios são complementares: se uma obra for exequível sem aumentar o risco para os demais moradores, ela não deve ser proibida, mesmo que não seja uma benfeitoria necessária, e ainda que não seja urgente. Sublinhe-se: a premissa não é a existência ou não de risco, e se sim a obra aumenta ou não o risco que já existe. Para ser específico, imaginemos 2 situações concretas em um dado condomínio: (i) se pela portaria, mesmo nesses dias de isolamento social, passam cerca de 100 pessoas por dia (moradores, empregados, visitantes e entregadores), não há qualquer razoabilidade em proibir uma obra com 2 operários que vá aumentar a circulação para 102 pessoas ao dia, a não ser que ela seja um puro capricho do titular do imóvel; e (ii) se a obra for urgente, e sua plena execução dobrar o número de pessoas que circulam nas áreas comuns (de 20 para 40 pessoas), nada mais lícito que o síndico, sem a proibir completamente, restrinja-a a um número máximo de operários. Isto diz respeito à segurança. A saúde dos moradores também deve entrar nessa balança. Isso é dito tantas vezes por dia, e mesmo assim é bom repetir: a propriedade não é direito absoluto, e ninguém pode usá-la sem limites. Na sua unidade imobiliária, é evidente, você pode muito mais do que poderia numa área de lazer ou na portaria. Pode muito, mas não pode tudo. O art. 1336, IV, do Código Civil7 impõe restrições. Ninguém, de dentro da sua casa, tem o direito de fazer algo que prejudique o sossego, a saúde ou a segurança dos demais moradores, ou que atente contra os bons costumes. Essa regra deve ser apreciada de acordo com as características de cada condomínio. Apesar do veto, tais regras continuam valendo! Só que agora, no meio do caos, será indubitavelmente mais difícil encontrar um consenso a seu respeito. Ruim com o artigo 11, pior sem ele. Infelizmente a atitude da Presidência da República causa imensa insegurança jurídica, passando à sociedade a mensagem equivocada e perigosa de que agora tudo pode. Uma pena. O Congresso Nacional ainda apreciará os vetos, não só ao artigo 11, como aos demais. Se forem rejeitados, podem voltar ao texto da Lei. Aguardemos! Enfim, a Lei possível Legislar em tempos normais já é uma tarefa suficientemente difícil. Nem a Escola da Exegèse e o Code Civil, que pretendiam reduzir o papel do juiz a la bouche de la loi, tiveram sucesso. A complexa e infinita realidade sempre vence. Escrever uma lei perfeita é uma missão que já nasce fadada ao insucesso. Imagine então fazer isso às pressas, em meio a uma crise mundial sem precedentes. Por isso, temos a Lei possível, e devemos abraçá-la, para dela extrairmos o melhor, a fim de alcançarmos seu objetivo essencial em tempos tão extremos: menos caos e mais segurança jurídica. __________ 1 Foram vetados: (i) o artigo que explicitava os poderes do síndico para restringir atividades nas partes comuns e privativas do condomínio; (ii) o artigo que proibia certos despejos liminares; (iii) o artigo que orientava pessoas jurídicas de direito privado a observarem restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30/10/2020; (iv) os artigos que tratavam de certos efeitos da pandemia na resolução e revisão de contratos; (v) os dispositivos que determinavam a empresas de transporte privado individual de passageiros a redução em 15% da fatia arrecadada em cada viagem e reduziam na mesma proporção os encargos e outorgas cobrados de taxistas; e (vi) o artigo que autorizava a flexibilização do controle do peso de veículos nas estradas e ruas. 2 A Lei Failliot, publicada 21 de janeiro de 1918, trouxe regras excepcionais de intervenção judicial nos contratos franceses afetados pela I Guerra Mundial. Para acessar o texto da lei, com um interessante contexto histórico: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A célebre lei do deputado Failliot e a teoria da imprevisão. Acesso em 11.06.2020. 3 Permissão: assembleias virtuais de condomínios (art. 12). Regras suspensas: prazos de prescrição e decadência (art. 3º), direito de desistência do consumidor (art. 8º), prazo de usucapião (art. 10), certas regras do regime concorrencial (art. 14), prisão civil por dívida alimentícia (art. 15), prazo para abertura e ultimação do inventário judicial (art. 16). Regra provisória: prorrogação do mandato do síndico se a assembleia virtual for inviável (art. 12, p. único). 4 Há outros prazos decadenciais e prescricionais no próprio Código Civil (arts. 505, 1302 e outros) e na legislação especial que, em nome da coesão, deixam de ser citados. 5 Idem para a usucapião de bens móveis 6 Nesse sentido, v.g.: TJSP, apelações 1004146-45.2015.8.26.0001, 0009427-64.2011.8.26.0445 e 992.05.068319-4. Há outros acórdãos espalhados pelo país na mesma linha, que deixo de citar em nome da coesão. Existe precedente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que o prazo da purga da mora deve ser contado a partir da juntada aos autos do mandado, por ser um ato endoprocessual (REsp 1.624.005, Min. Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2016). Ali, porém, o STJ não discutiu a natureza do prazo. Apenas analisou seu termo a quo. De fato, a decisão está correta, não só por gerar mais segurança jurídica, mas especialmente por não haver qualquer impedimento - pelo contrário, é o esperado! - para que uma lei processual defina o termo inicial para a prática de uma faculdade com prazo decadencial a ser exercida nos autos de um processo. Frise-se novamente que o RJET se volta à suspensão de prazos decadenciais de faculdades a serem exercidas em juízo. 7 O art. 10, III, da Lei nº 4.591/64 já trazia regra idêntica.
Texto de autoria de José Fernando Simão e Alexandre Junqueira Gomide Introdução A pandemia decorrente do coronavírus, causador da Covid-19, traz (e certamente continuará trazendo) efeitos nefastos para a economia mundial. O mercado imobiliário, que até pouco tempo ameaçava a sua retomada econômica, certamente não passará incólume à esperada e longa crise. Duas tradicionais incorporadoras (embora com dificuldades financeiras pré-crise) pediram recuperação judicial já no mês de abril e outras tantas passarão por enormes dificuldades nos próximos anos e meses1. Essa mesma situação dramática se verifica com relação aos muitos brasileiros que já perderam (e outros tantos que ainda perderão2) os seus empregos ou têm abrupta diminuição de suas receitas porque são comerciantes ou profissionais autônomos, cujas atividades estão paralisadas. Considerando que o cenário é desolador na economia, afinal afirma-se que 80% do PIB mundial colapsou em razão do confinamento, a economia globalizada passou por um abalo nunca dantes ocorrido (nem na crise da bolsa de Nova Iorque em 1929, nem na crise do petróleo nos anos 1970), muitos artigos jurídicos estão sendo produzidos para analisar os efeitos da pandemia nos contratos em geral e, sobretudo, no âmbito da locação3. Contudo, poucos artigos acadêmicos trataram, pelo menos como objeto principal do presente estudo, da resolução ou revisão da promessa de compra e venda na incorporação imobiliária quando o fundamento é a pandemia. Antes, contudo, necessária uma breve análise do funcionamento e estrutura da incorporação imobiliária, bem como do regime específico da extinção dos contratos de promessa de compra e venda, nos termos da lei 4.591/1964. A estrutura da incorporação imobiliária e a extinção do vínculo contratual nos termos da Lei 4.591/1964 A incorporação imobiliária, segundo Melhim Chalhub4, é "a atividade de coordenação e consecução de empreendimento imobiliário, compreendendo a alienação de unidades imobiliárias em construção e sua entrega aos adquirentes, depois de concluídas, com a adequada regularização no Registro de Imóveis competente"5. Tal como determina a lei 4.591/1964 (artigo 32), o incorporador fica autorizado a alienar unidades futuras de empreendimento a ser desenvolvido, a partir do registro do memorial de incorporação na matrícula do terreno. O memorial da incorporação imobiliária requer a apresentação de uma série de documentos, dentre eles (i) título de propriedade do terreno ou de cessão de direitos ou permuta; (ii) certidões negativas do incorporador; (iii) projeto de construção aprovado pelas autoridades; (iv) cálculo das áreas das edificações; (v) memorial descritivo das especificações da obra projetada; (vi) discriminação das frações ideais de terreno; (vii) minuta da futura convenção de condomínio, dentre outros. O objetivo da Lei, como se nota, é conferir maior segurança jurídica ao adquirente, que somente pode adquirir a futura unidade com o registro do memorial de incorporação que comprova a viabilidade técnica do empreendimento e a saúde financeira da empresa que pretende erigir a obra. A análise dos referidos documentos compete ao Registro de Imóveis responsável pela circunscrição onde o empreendimento será construído. Realizado o registro do memorial da incorporação imobiliária e uma vez firmado o compromisso de compra e venda da unidade autônoma, o incorporador compromete-se a construir e entregar a obra no prazo estipulado no contrato. O adquirente, por sua vez, compromete-se a realizar o pagamento do preço, seja à vista ou, tal como ocorre na grande maioria dos casos, ao longo do tempo. Embora o incorporador tenha prazo certo para o cumprimento de suas obrigações, a lei 4.591/64 permite-lhe fixar, no já referido memorial, um 'prazo de denúncia6', no prazo decadencial de 180 dias a contar do registro da incorporação (artigo 33), dentro do qual é lícito exercer direito potestativo para se arrepender da incorporação (artigo 34, da lei 4.591/64), mesmo após a venda das unidades. Como direito potestativo que o é, o empreendedor o exerce sem pagamento de qualquer tipo de indenização ao adquirente. É uma clara exceção ao princípio da obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda). Assim, enquanto não transcorrido o prazo de arrependimento, o incorporador possui a seu favor verdadeiro termômetro para verificar o sucesso (ou não) do empreendimento, bem como refletir a respeito da viabilidade econômica das obrigações a que se incumbiu perante uma coletividade7. Após dar início às vendas, percebendo que todas as unidades foram praticamente vendidas nos primeiros dias, o empreendedor deixa transcorrer o prazo de carência, porque há relativa segurança que haverá recursos para a construção da obra. Caso contrário, percebendo o insucesso das vendas e a incerteza quanto à viabilidade financeira da obra, pode manifestar expressamente o exercício do arrependimento e, ato contínuo, extinto o vínculo de forma ex tunc, devolve os valores recebidos aos adquirentes. Como se nota, a Lei 4.591/64, desde a sua concepção, sempre conferiu a possibilidade de o incorporador, em prazo determinado, mesmo após a celebração do contrato, desistir do contrato firmado com o adquirente, quando previsto no memorial de incorporação o prazo de denúncia. Por óbvio, como se trata de direito potestativo unilateral, o empreendedor não precisa justificar a razão para "denunciar" o contrato, exercendo seu direito de arrependimento. Isso significa que mesmo sendo economicamente viável poderá haver a denúncia, assim como mesmo sendo inviável, pode o empreendedor assumir o risco e prosseguir com o negócio. Em sentido contrário, até a edição da lei 13.786/2018, não havia nenhuma disposição na Lei de Incorporação Imobiliária que expressamente permitisse ao adquirente exercer o direito de arrependimento. Na realidade, sendo uma relação de consumo, até poder-se-ia dizer que, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (artigo 49), facultou-se ao adquirente, no prazo de sete dias a contar da assinatura do contrato, exercer o direito de arrependimento nas vendas celebradas fora do estabelecimento comercial do fornecedor8. Contudo, em razão de ausência de regra específica prevista na Lei 4.591/1964, a jurisprudência não era unânime a esse respeito, muitas vezes declarando, corretamente, a impossibilidade de resilição do contrato de compra e venda com fundamento naquele dispositivo legal9. Clique aqui e confira a íntegra do texto. *José Fernando Simão é livre docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista. **Alexandre Junqueira Gomide é doutorando e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e Diretor Regional do IBRADIM em SP. Advogado. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). __________ 1 Nesse sentido, a tradicional incorporadora Esser e João Fortes. As informações constam, respectivamente, aqui e aqui. Acesso em 20/5/2020. 2 Segundo dados recentes, a pandemia fecha 1,1 milhão de vagas de trabalho no Brasil, contabilizando, apenas no mês de abril, 860 mil demissões, pior resultado para o mês em 29 anos. Disponível aqui. Acesso em 29/5/2020. Ainda a esse respeito. Acesso em 20.05.2.020. 3 Nesse âmbito, verificar, por exemplo, inúmeros artigos escritos nas colunas Migalhas Edilícias e Migalhas Contratuais. 4 CHALHUB, Melhim. Incorporação imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 8. 5 Segundo o conceito da própria lei 4.591/1964 (artigo 28, parágrafo único) é "a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas". 6 Segundo Pontes de Miranda "a denúncia extingue a relação jurídica duradoura. [...] Quem denuncia extingue relação jurídica negocial desde aquele momento, ou no futuro. [...] A denúncia diz 'aqui acaba a relação jurídica'" [...] In: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Parte Especial. Tomo XXV. 2ª ed. Borsoi: Rio de Janeiro, 1.959, p. 294 e seguintes. Nos termos do Código Civil, a resilição unilateral, nos casos em que a lei expressamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte (artigo 473). É exatamente o presente caso. Havendo previsão na lei 4.591/64, o artigo 34 permite a resilição unilateral (mediante denúncia) para declarar que, a partir daquele momento, os efeitos do contrato foram cessados. Mas a resilição, novamente citando Pontes de Miranda, "só tem eficácia ex nunc: só resolve desde agora". Assim o é, por exemplo, com relação ao contrato de locação, fornecimento de energia elétrica, água, gás, etc. Parece-nos mais apropriado dizer que a denúncia referida no artigo 34 da Lei 4.591/64, embora seja hipótese de resilição unilateral, representa verdadeiramente um direito de arrependimento que, conforme já exposto em outra oportunidade, extingue o contrato com efeitos retroativos. O exercício do direito conferido no artigo 34 retorna as partes ao statu quo ante, de modo que a extinção contratual opera como se o contrato nunca houvesse sido firmado e os valores recebidos pelo incorporador são devolvidos ao adquirente. A respeito do direito de arrependimento, verificar mais em: GOMIDE, Alexandre Junqueira. Direito de arrependimento nos contratos de consumo. São Paulo: Almedina, 2014. p. 95 e seguintes. 7 Quanto à justificativa do prazo de denúncia, Melhim Chalhub assevera "esses pressupostos de formação, execução e extinção do contrato de incorporação, que identificam como fonte de alimentação financeira o produto da alienação do seu próprio ativo, explicam e justificam a faculdade legalmente atribuída ao incorporador de valer-se de um prazo de carência, no qual poderá aquilatar, com razoável grau de precisão, a receptividade do produto ofertado, podendo, então, confirmar ou desistir da realização do empreendimento". (CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, abr-jun/2016). 8 Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. 9 A esse exemplo, vide "COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Desistência do negócio - Rescisão por iniciativa do compromissário comprador - Arrependimento dentro de sete dias - Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor - Inaplicabilidade - Contrato firmado em estande de vendas - Possibilidade de o consumidor verificar e analisar, pessoalmente, o que está adquirindo - Ausência de provas de compra por impulso e do uso de técnicas contratuais abusivas - Ação de procedimento ordinário - Impossibilidade de formulação de pedido contraposto, previsto no CPC/1973, apenas para ações de procedimento sumário - Cobrança da multa que dependia de reconvenção não apresentada - Recurso provido em parte. (TJSP; Apelação Cível 1025804-25.2015.8.26.0196; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/08/2017; Data de Registro: 16/08/2017).
Texto de autoria de Marcio Martins Bonilha Filho Além das reiteradas notícias sombrias, tristes, alarmistas e impactantes sobre as trágicas consequências impostas pelo novo coronavírus, tanto na área médico-hospitalar, como, também, nas repercussões de ordem econômica, fragilizando empresas, com redução do mercado de trabalho e um indesejável antagonismo político reinante no país, surge forte o sentimento já exteriorizado por capacitados profissionais, de diversas áreas, de que a sociedade será outra após a quarentena, deflagrada em razão da pandemia, com transformações culturais e comportamentais. O isolamento serve para evitar a propagação do vírus e tem o condão de aprofundar reflexões. Nesse contexto, diante de um cenário que exige mudança de hábitos, em especial para conjugar a continuidade das inúmeras práticas do dia a dia e atos inerentes aos negócios, atos jurídicos, etc., surgiu a necessidade de implantar, no âmbito dos serviços extrajudiciais, notadamente em relação aos Tabelionatos de Notas, instrumentos tecnológicos, para facilitar a vida dos usuários, assegurando, ao mesmo tempo, segurança jurídica permeada pela fé pública. Inspirados nesse panorama, com a colaboração das respeitadas entidades de classe dos serviços extrajudiciais, o Corregedor Nacional de Justiça editou o provimento nº 100, do CNJ, publicado no dia 26 de maio de 2020, dispondo sobre prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE, dentre outras providências. A rigor, o provimento nº 100, do CNJ, constitui um dos maiores avanços positivos, na eliminação de burocracia, e na racionalização de trabalho, facilitando a vida dos usuários, sem prejuízo da manutenção da fé pública, circunstância que representa revolucionária vantagem, ao regulamentar o uso de instrumentos tecnológicos. A eficiência do serviço, que já constituía obrigação legal, sem dúvida será aprimorada com a adoção de ferramentas tecnológicas, pormenorizadamente descritas no aludido Provimento (cf. artigos 2º a 5º), destacando-se a assinatura eletrônica notarizada, certificado digital notarizado, assinatura digital, biometria, videoconferência, ato notarial eletrônico, digitalização ou desmaterialização, papelização ou materialização, transmissão eletrônica, dentre outros, além da criação da CENAD: Central Notarial de Autenticação Digital, que consiste em uma ferramenta para os notários autenticarem os documentos digitais, com base em seus originais, que podem ser em papel ou natos-digitais. Para a prática do ato notarial eletrônico, o Provimento estabelece os seguintes requisitos: I - videoconferência notarial para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico; II - concordância expressada pelas partes com os termos do ato notarial eletrônico; III - assinatura digital pelas partes, exclusivamente através do e-Notariado; IV - assinatura do Tabelião de Notas com a utilização de certificado digital ICP-Brasil; V - uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital. Para garantir a necessária segurança jurídica, o Provimento prevê que a gravação da videoconferência notarial deverá conter, no mínimo: a) a identificação, a demonstração da capacidade e a livre manifestação das partes atestadas pelo tabelião de notas; b) o o consentimento das partes e a concordância com a escritura pública; c) o objeto e o preço do negócio pactuado; d) a declaração da data e horário da prática do ato notarial; e e) a declaração acerca da indicação do livro, da página e do tabelionato onde será lavrado o ato notarial. O Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal manterá um registro nacional único dos Certificados Digitais Notarizados e de biometria. Outra importante inovação, consiste na obrigatoriedade, para a lavratura do ato notarial eletrônico, de o notário utilizar a plataforma e-Notariado, através do link www.e-notariado.org.br com a realização da videoconferência notarial para captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais, certo que a matéria da competência para a prática dos atos regulados neste Provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, à luz do artigo 9º, da lei 8935/94. Com o objetivo de interligar os notários, permitindo a prática de atos notariais eletrônicos, o intercâmbio de documentos e o tráfego de informações e dados; aprimorar tecnologias e processos para viabilizar i serviço notarial em meio eletrônico; implantar, em âmbito nacional, um sistema padronizado de elaboração de atos notariais eletrônicos, possibilitando a solicitação de atos, certidões e a realização de convênios com interessados e implantar a Matrícula Notarial Eletrônica - MNE, fica instituído o Sistema de Atos Notariais Eletrônicos, e-Notariado, disponibilizado na internet pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, dotado de infraestrutura tecnológica necessária à atuação notarial eletrônica. O referido Provimento disciplina obrigações aos notários, pessoalmente ou por intermédio do e-Notariado, em especial para o acesso das informações à Administração Pública Direta, em regra exclusivamente estatística e genéricas, vedado o envio e o repasse de dados, salvo disposição legal ou judicial específica. Também preconiza ao Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, para implementação e gestão do sistema e-notariado, o dever de adotar diversas medidas operacionais, com a coordenação da implantação, funcionamento dos atos notariais eletrônicos e emissão de certificados eletrônicos, bem como estabelecer normas, padrões, critérios e procedimentos de segurança referentes às assinaturas eletrônicas, certificados digitais e emissão de atos notariais eletrônicos e outros aspectos tecnológicos atinentes ao seu bom funcionamento. Um dispositivo de crucial importância diz respeito à assinatura de atos notariais eletrônicos, estabelecendo que é imprescindível a realização de videoconferência notarial, para captação do consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico, a concordância com o ato notarial, a utilização da assinatura digital e assinatura do Tabelião de Notas com o uso do certificado digital, segundo a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP (artigo 9, parágrafo 3º). O e-Notariado, segundo o Provimento, disponibilizará as seguintes funcionalidades: I - matrícula notarial eletrônica; II - portal de apresentação dos notários; III - fornecimento de certificados digitais notarizados e assinaturas eletrônicas notarizadas; IV - sistemas para realização de videoconferências notariais para gravação do consentimento das partes e da aceitação do ato notarial; V - sistemas de identificação e de validação biométrica; VI - assinador digital e plataforma de gestão de assinaturas; VII - interconexão dos notários; VIII - ferramentas operacionais para os serviços notariais eletrônicos; IX - Central Notarial de Autenticação Digital - CENAD; X - Cadastro Único de Clientes do Notariado - CCN; XI - Cadastro Único de Beneficiários Finais - CBF; XII - Índice Único de Atos Notariais - IU. Fica, ainda, instituída a Matrícula Notarial Eletrônica - MNE, que servirá como chave de identificação individualizada, facilitando a unicidade e rastreabilidade da operação eletrônica praticada. O número da Matrícula Notarial Eletrônica, composta por 24 (vinte e quatro) dígitos e organizada em 6 (seis) campos, de acordo com o artigo 12 e seus parágrafos, integra o ato notarial eletrônico, devendo ser indicado em todas as cópias expedidas. De acordo com a legislação processual, os atos notariais eletrônicos reputam-se autênticos e detentores de fé pública. A identificação, o reconhecimento e a qualificação das partes, de forma remota, será feita pela apresentação da via original de identidade eletrônica e pelo conjunto de informações a que o tabelião teve acesso, podendo utilizar-se, em especial, do sistema de identificação do e-Notariado, de documentos digitalizados, cartões de assinatura abertos por outros notários, bases biométricas públicas ou próprias, bem como, a seu critério, de outros instrumentos de segurança. Está prevista a implantação da funcionalidade eletrônica para o compartilhamento obrigatório de cartões de firmas entre todos os usuários do e-Notariado. A competência territorial foi contemplada, consoante previsão contida no artigo 19 do Provimento, que assim dispõe: "Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes", ressalvando, na hipótese de existência de um ou mais imóveis de diferentes circunscrições, no mesmo ato notarial, que será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas. A seguir, há uma outra situação prevista no parágrafo 2º, artigo 19 do Prov. 100/20, assim redigida: "Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato". Respeitosamente, a redação empregada permite a ideia de alargamento da competência territorial, extrapolando os limites da circunscrição, o que merecerá, certamente, ajustes para uma aplicação não tão abrangente, como a empregada na diretriz normativa. Por seu turno, o Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal manterá o Cadastro Único de Clientes do Notariado - CCN, o Cadastro Único de Beneficiários Finais - CBF e o Índice Único de Atos Notariais, nos termos do Provimento nº 88/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça. Em periodicidade não superior a quinze dias, os notários ficam obrigados a remeter ao CNB-CF, por sua central notarial de serviços eletrônicos compartilhados - CENSEC, os dados essenciais dos atos praticados, que compõem o Índice Único. Consoante previsão expressa, os dados essenciais são: I - a identificação do cliente; II - a descrição pormenorizada da operação realizada; III - o valor da operação realizada; IV - o valor da avaliação para fins de incidência tributária; V - a data da operação; VI - a forma de pagamento; VII - o meio de pagamento; e VIII - outros dados, nos termos de regulamentos especiais, de instruções complementares ou orientações institucionais do CNB-CF. O Provimento, dividido em sete capítulos, nas disposições finais prevê que os atos notariais eletrônicos, cuja autenticidade seja conferida pela internet por meio do e-Notariado, constituem instrumentos públicos para todos os efeitos legais e são eficazes para os registros públicos, instituições financeiras, juntas comerciais, Detrans e para a produção de efeitos jurídicos perante a administração pública e entre particulares. A comunicação adotada para atendimento a distância deve incluir os números dos telefones da serventia, endereços eletrônicos de e-mail, o uso de plataformas eletrônicas de comunicação e de mensagens instantâneas como WhatsApp, Skype e outras disponíveis para atendimento ao público, com ampla divulgação. Há, também, expressa observância à lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), em relação aos dados das partes que somente poderão ser compartilhados entre notários e, exclusivamente, para a prática de atos notariais. Resta, ainda, mencionar a criação da possibilidade da realização de ato notarial híbrido, posto que autorizada a prática do ato com uma das partes assinando fisicamente o ato notarial e a outra, a distância. Fica vedada a prática de atos notariais ou remotos com recepção de assinaturas eletrônicas a distância sem autorização do e-Notariado, que veio a ser implementado com a publicação do Provimento, ocorrida no dia 26 de maio do corrente ano, e, no prazo máximo de seis meses, naquilo que houver necessidade de cronograma técnico. Nas unidades da Federação onde exigidos selos de fiscalização, o ato notarial eletrônico deverá ser lavrado com a indicação do selo eletrônico ou físico, exigido pelas respectivas Normas de Serviço. Caso se descumpram essa observância, os atos eletrônicos lavrados serão considerados nulos. Na essência, ao tempo em que se enaltece o esforço daqueles que contribuíram positivamente para a concepção dessa ousada e revolucionária implantação da modernidade nos serviços de notas, que traduz oportuno avanço para facilitar a vida da sociedade, inimaginável há uma década atrás, cabe reconhecer que haverá um desafiador trabalho pela frente, que será bem desincumbido pelos capacitados profissionais da área, aos quais rendo minhas homenagens. *Marcio Martins Bonilha Filho é desembargador aposentado do TJ/SP. Advogado do escritório Barcellos Tucunduva Advogados.
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Renato Mello Leal "É urgente eliminarmos da mente humana a ingênua suposição de que seja possível sairmos da grave crise em que estamos mergulhados, usando o mesmo pensamento que a produziu".Albert Einstein A pandemia da covid-19 tem imposto a todos nós uma série de restrições, reflexões, necessidades de adaptações e quebras de paradigmas. No âmbito condominial não poderia ser diferente, especialmente nesta fase de isolamento social, em que todos aqueles que podem, ou seja, todos aqueles que não atuam naquelas atividades consideradas essenciais, têm ficado diuturnamente em suas residências, muitas das vezes em seus apartamentos, especialmente nos grandes centros urbanos. Tal cenário tem provocado uma natural concentração maior de pessoas nos condomínios residenciais, em contrapartida a uma diminuição no fluxo e permanência de pessoas dentro dos condomínios comerciais. Essa peculiaridade faz com que haja algumas diferenças nas soluções e tratamentos jurídicos para alguns dilemas que nos são apresentados nesta dificílima crise mundial decorrente da pandemia. Não é o caso, no entanto, do tema que pretendemos abordar neste artigo, haja vista que a possibilidade ou não de realização de assembleias virtuais é um dilema que se apresenta tanto para os condomínios residenciais quanto para os condomínios comerciais. Alguns juristas têm escrito sobre o assunto, muitos deles se manifestando pela impossibilidade de realização das assembleias condominiais em ambiente virtual, especialmente quando a convenção do condomínio não trouxer expressa autorização nesse sentido. Ocorre que a ausência de autorização expressa, na convenção condominial, para a realização de assembleias virtuais, certamente abrange a grande maioria dos casos, seja porque boa parte dos condomínios e respectivas convenções são mais antigas, tendo sido redigidas quando nem sequer se cogitava tal possibilidade, seja porque ainda hoje a praxe dos condomínios e administradoras é a realização de assembleias na modalidade presencial, e seja finalmente porque a nossa geração e aquelas que nos precederam não vivenciaram situação semelhante à que vivemos hoje, e, ainda que tivessem vivido, não detinham a tecnologia que detemos atualmente para a realização de assembleias virtuais. A título de exemplo dessa visão mais restritiva quanto à realização de assembleias virtuais, Rodrigo Karpat1, em recente edição do Blog do Fausto Macedo, em versão digital do jornal Estadão, publicou um artigo com o provocativo título As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos, abordando especialmente a hipótese de vencimento do mandato do síndico, a impossibilidade de realização de assembleia presencial por conta da necessidade de isolamento social e a suposta insegurança jurídica na realização de assembleia virtual. Como solução, o articulista recomenda o ajuizamento de uma ação de jurisdição voluntária, para a prorrogação do mandato do síndico enquanto perdurar o quadro pandêmico. Em que pese a eloquência dos argumentos e a viabilidade da alternativa apresentada, ousamos discordar de que essa seja realmente a melhor opção. Em primeiro lugar, discordamos do entendimento de que somente seria possível a realização de assembleia na modalidade virtual se a convenção do condomínio contiver expressa autorização nesse sentido. Ora, em se tratando de Direito Condominial, matéria eminentemente de Direito Privado, não se aplica o princípio da estrita legalidade, típico do direito público, regente, por exemplo, do direito administrativo, em que o agente público só pode praticar aquilo que a lei expressamente o autorizar. No Direito Condominial e no Direito Privado em geral, impera o princípio da legalidade em sua acepção ampla, no sentido de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Trata-se inclusive de um direito fundamental do cidadão, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. E, por ser direito fundamental, trata-se também de uma cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Carta Magna. Uma das principais decorrências dessa diretriz normativa, consubstanciada no princípio da legalidade lato sensu, é que se permite fazer tudo aquilo que não estiver vedado pelo ordenamento jurídico. Hely Lopes Meirelles2, ao tratar do tema, já afirmava que "enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza". Registre-se, por oportuno, que a administração condominial é evidentemente uma administração particular e a convenção condominial é considerada lei em sentido amplo, pois é o instrumento que regula as relações entre os condôminos, reunindo todas as suas principais regras, ou seja, é o verdadeiro estatuto do condomínio. Em reforço a esse raciocínio, valhamo-nos dos ensinamentos de Flávio Tartuce3: No que concerne à convenção de condomínio, essa constitui o estatuto coletivo que regula os interesses das partes, havendo um típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada. Enuncia o art. 1.333 do CC/2002 que a convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais, tornando-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção. Para ser oponível contra terceiros (efeitos erga omnes), a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Todavia, consigne-se que, conforme a Súmula 260 do STJ, a convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos (efeitos inter partes), o que é salutar. Determinado o caráter normativo e de direito privado da convenção condominial, parece-nos lícito afirmar que, não havendo no Código Civil, em nenhuma lei esparsa e tampouco na convenção condominial qualquer regra proibindo que as assembleias sejam realizadas virtualmente, tal modalidade de realização é perfeitamente admissível. Na linha de todo o raciocínio desenvolvido até aqui, só prevaleceria aquele entendimento de que as assembleias virtuais apenas seriam possíveis quando as convenções condominiais expressamente as permitissem se estivéssemos, quanto ao tema, sob a égide do princípio da estrita legalidade. Mas não. Na matéria sob análise, vimos que a regência se dá pelo princípio da legalidade em sentido amplo, ou seja, se a convenção condominial não veda, é perfeitamente possível que a assembleia se realize em ambiente virtual, desde que atendidos todos os requisitos de validade e de eficácia previstos em lei. Quanto a isso, e nos termos do que preveem os artigos 1.347 a 1.356 do Código Civil de 2002, basta que se observe, também para as assembleias virtuais, todas as regras relativas à convocação, quóruns de deliberação, lista de presença, lavratura de ata, registro, etc. Deve ser registrado que todas essas providências citadas também são objeto de demandas judiciais, ou seja, não se limitando às assembleias virtuais. Neste sentido: CONDOMÍNIO. ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA. AUMENTO DE TAXA CONDOMINIAL - COMUNICAÇÃO NO EDITAL DE CONVOCAÇÃO. FORMA DE CONVOCAÇÃO DOS CONDÔMINOS NÃO OBSERVADA. VOTO MINERVA - AUSÊNCIA DE CRITÉRIOS DE DESEMPATE DE VOTAÇÃO EM CONVENÇÃO - NECESSIDADE DE DELIBERAÇÃO PELA ASSEMBLÉIA. NULIDADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Os artigos 1.331 e seguintes do Código de Civil esboçam as regras gerais disciplinadoras sobre os assuntos condominiais, entretanto, a convenção de condomínio constitui o estatuto coletivo que regula as relações jurídicas entre as partes, sendo típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada e possui, pois, força vinculante, nos termos do art. 1.333 do CC. 2. A ausência de convocação para assembléia na forma determinada pela convenção condominial e/ou a ausência de quórum especial para deliberação acerca da mudança no rateio das despesas, gera a nulidade da decisão da assembléia. 3. No caso, dispõe o art. 28 da Convenção de Condomínio do João de Barro Candango que as assembléias gerais Ordinárias e Extraordinárias serão realizadas mediante convocação por circular assinada pelo Síndico e colocada em local visível por todos e enviada por carta registrada ou sob protocolo, a cada condômino e com antecedência mínima de 8 dias da data fixada para a sua realização e só tratará de assuntos mencionados na pauta, o qual também indicará o dia, hora e local da reunião? (ID 11427971 - Pág. 18). 4. A referida convenção dispõe ainda que, findo cada exercício, será realizada Assembléia Geral Ordinária dos condôminos à qual caberá principalmente, dentre outras, aprovar o orçamento do ano em início? (ID 11427971 - Pág. 18). 5. No caso, o Edital de Convocação para Assembléia Geral Ordinária do Condomínio Par João de Barro Candango convocou os condôminos para, em 13/05/2019, deliberar sobre prestação de contas do primeiro trimestre do ano de 2019; deliberação do orçamento para o ano de 2019; assuntos gerais (deliberação quanto a biometria, deliberação quanto a estrutura do escritório e outros)? (ID 11427959 - Pág. 1). Assim, na referida assembléia houve deliberação sobre aumento da taxa de condomínio. 6. O item 2 do edital de convocação prevê a deliberação sobre o orçamento para o ano de 2019. Dessa forma, considerando que orçamento trata de receita (valor arrecadado ou disponível) e despesa (previsão de gastos), entende este julgador que o tema aumento de aumento de taxa condominial destinada a fazer face ao custeio de despesas está inserida dentro do tema orçamentário. Dessa forma, não há que se falar em nulidade do aumento da taxa condominial por esse motivo, ainda mais no caso em que a Convenção de Condomínio estipula os principais assuntos a serem tratados em assembléia ordinária, sendo um deles a aprovação de orçamento para o ano em início. 7. Entretanto, vislumbro dois outros motivos capazes de anular a deliberação sobre o aumento da taxa condominial deliberado na assembléia de 13/05/2019. Primeiro: o art. 28 da Convenção de Condomínio prevê que a convocação para assembléias ordinárias e extraordinárias deve ser feita por circular assinada pelo síndico e colocada em local visível por todos e enviada por carta registrada ou sob protocolo (ID 11427971 - Pág. 18). Não tendo sido emitida para o autor a convocação na forma estipulada na Convenção, resta caracterizada falha no ato convocatório, capaz de gerar a nulidade da assembléia. 8. Segundo: a Convenção de Condomínio Par João de Barro Candango não prevê a forma de procedimento no caso de empate na votação. Ausente critério de desempate na convenção de condomínio é necessário que se estipule, antes do início das deliberações, mediante proposta aprovada pela maioria dos presentes, o direito do voto de minerva para um dos condôminos presentes, viabilizando resolver os temas da ordem do dia. 9. No caso, depois de realizada a votação e constatado o empate sobre o ?aumento da taxa condominial?, a presidente da mesa, após ouvir orientação no sentido de que ?geralmente o voto minerva é dado pelo presidente da assembléia?, atribuiu o voto minerva ao Síndico do condomínio (ID 11427960). Verifica-se, assim, irregularidade na definição do critério de desempate: a) porque não houve votação da assembléia para esse fim; e b) porque o critério fora definido depois de realizada a votação e constatado o empate. 10. Mantenho, pois, a sentença, embora por fundamento diverso. 11. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 12. Súmula de julgamento servindo de acórdão, na forma do artigo 46 da Lei nº 9.099/95. 13. Diante da sucumbência, nos termos do artigo 55 da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), condeno o recorrente ao pagamento das custas processuais. Sem condenação em honorários advocatícios, ante a ausência de contrarrazões. (TJ-DF 07052458820198070009 DF 0705245-88.2019.8.07.0009, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 12/11/2019, Terceira Turma Recursal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 22/11/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.) Ademais, atualmente, muitas são as ferramentas tecnológicas que viabilizam, inclusive gratuitamente, a realização de assembleias virtuais, tais como Zoom, Skype, Google Meet, Microsoft Teams, dentre outras. Quanto à segurança jurídica, é provável que as assembleias virtuais assegurem uma fidelidade ainda maior a tudo aquilo que for discutido e deliberado no encontro, pois tais ferramentas conferem uma facilidade muito grande de gravação de áudio e imagem, de tal modo que não será apenas a assinatura em uma lista de presenças que registrará a participação de cada condômino na reunião, havendo a possibilidade de, em caso de dúvidas, a parte interessada se socorrer a qualquer tempo à imagem e ao som de como se manifestou cada um dos condôminos participantes da reunião virtual. Essa é uma realidade, há muito se debate a sociedade da informação e o acesso às novas tecnologias4. Referidas ferramentas devem servir à sociedade de modo a ser não somente um serviço de facilitação das relações intersubjetivas, mas sim de utilidade pública, em especial buscando a preservação da integridade e do bem-estar das pessoas. Outro elemento que deve ser lembrado é a necessidade de as atividades condominiais não estarem em descompasso com os reflexos e avanços sociais. Nesse sentido, estamos diante de um novo fato social denominado pelos especialistas de Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial5. Referido fato social apresenta um novo conceito, que engloba automação e tecnologia da informação, combinados com elementos estruturantes com as principais inovações tecnológicas naqueles ramos de atuações. As novas gerações já estão sendo moldadas dentro dessa realidade, utilizam e utilizarão aas ferramentas disponíveis de automação e tecnologia da informação, superando os eventos que conhecemos hoje, em especial as assembleias presenciais. Como se vê, seja quanto à forma, seja quanto ao conteúdo, não há óbice algum que as assembleias condominiais sejam realizadas em ambiente virtual, não apenas durante esta fase de pandemia da covid-19, mas mesmo depois, quando retornarmos ao tão almejado estado de normalidade. Exatamente quanto a isso, Yuval Noah Harari6, em suas obras, já vinha nos alertando, ao elencar as mudanças que se anunciavam, mas, na atual situação pandêmica, percebe-se que alguns anos se transformaram em meses, e o crivo de Cronos foi muito mais sentido que o de Themis. É preciso extrair lições positivas de experiências negativas. Esta crise sanitária mundial, vivenciada num momento histórico de franca globalização, fator que indubitavelmente a agrava, tem nos punido severamente nos mais diversos aspectos, mas, por outro lado, tem nos ensinado a lidar de modo mais inteligente, solidário e assertivo com algumas rotinas que até então nos consumiam de tal modo que nos ofuscavam a visão acerca de melhores alternativas. Temos vivido, nas últimas décadas, um constante e salutar processo de desjudicialização. Trabalho árduo, que tem como base os ensinamentos de Cappelletti7, segundo o qual o Processo Civil transitou por fases, em especial por "ondas", quais sejam: a primeira onda, de assistência judiciária aos pobres; a segunda onda, de tutela dos interesses difusos; e, por fim, a terceira onda, do acesso à Justiça em uma concepção mais ampla, ou seja, de acesso a uma ordem jurídica justa, o que inclui e valoriza a desjudicialização. Exemplos disso são a arbitragem, os divórcios e inventários extrajudiciais, a negociação, a mediação e a conciliação, dentre outros meios mais adequados de solução de conflitos. Não nos parece que, num cenário como esse, em que a escassez de recursos financeiros é um elemento marcante, a propositura de ações judiciais, em especial para a prorrogação do mandato do síndico, seja a melhor alternativa, quando temos essa praticamente gratuita e muito eficaz opção de realização de assembleias virtuais. Estejamos todos cada vez mais preparados e adaptados às ferramentas tecnológicas, à solidariedade e ao desapego às formalidades exacerbadas, pois uma nova e melhor realidade, nos mais diversos aspectos, há de emergir desta crise sem precedentes. Mas como operacionalizar isso? Bem, isso será objeto de um próximo artigo. REFERÊNCIAS CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988 HARARI. Yuval Noah, 21 lições para o século 21. Companhia das Letras, 2018 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1997. SANSON, Cesar. Quarta revolução industrial revolução 4.0.  Acesso em: 28 abr. 2020. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - v. 4 - 12. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020. TELLAROLI, Taís Marina; ALBINO, João Pedro. Da sociedade da informação às novas tic's: questões sobre internet, jornalismo e comunicação de massa. Acesso em: 28 abr. 2020. KARPAT, Rodrigo. As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos. Acesso em: 28 abr. 2020. Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor da pós-graduação do Centro Universitário Mackenzie. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado em SP. Renato Mello Leal é mestrando em Função Social do Direito pela FADISP. Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito - EPD. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Autor de artigos jurídicos. Advogado em SP. __________ 1 KARPAT, Rodrigo. As pseudo-assembleias virtuais e seus perigos. Acesso em 28/4/2020. 2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed., atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 82. 3 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - v. 4 - 12. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 407. 4 TELLAROLI, Taís Marina; ALBINO, João Pedro. Da sociedade da informação às novas tic's: questões sobre internet, jornalismo e comunicação de massa. Acesso em 28/4/2020. 5 SANSON, Cesar. Quarta revolução industrial revolução 4.0. Acesso em 28/4/2020. 6 HARARI. Yuval Noah, 21 lições para o século 21. Companhia das Letras, 2018 7 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988
Texto de autoria de André Abelha SUMÁRIO. I. Introdução. II. Impacto nº 1 (dois em um): Impossibilidade definitiva e frustração do fim do contrato. III. Impacto nº 2: Impossibilidade temporária. IV. Impacto nº 3: Desequilíbrio superveniente. V. Impacto nº 4: Deterioração da situação financeira do devedor (exceção da ruína). VI. Outras figuras jurídicas aplicáveis. VII. Conclusão. Referências Bibliográficas. I. Introdução Tente simplificar o Direito, e quando abrir os olhos, você estará mergulhado nas profundezas de uma caverna subaquática, sem treino, sem fôlego, sem luz e sem direção. Esquematizar categorias jurídicas costuma ser um flerte com a imprecisão, um salto para o precipício acadêmico1. Então, antes de trilhar este caminho, entenda e aceite os perigos que te acompanharão no percurso. De fato, reduzir situações tão complexas a mero sistema lógico-formal é quase uma renúncia à análise das infinitas nuances e possibilidades que nascem da realidade. Mesmo assim, há momentos em que tal recurso visual pode sim trazer algum benefício. Desenhar o cenário geral nos ajuda a enxergar além da neblina, e nos leva a flutuar acima das copas das árvores, para vermos a floresta inteira. Desde que a pandemia explodiu (n)o Brasil, iniciou-se uma intensa produção de textos com distintos enfoques, analisando os efeitos da pandemia sobre os contratos. Caso fortuito, força maior, rebus sic stantibus, imprevisão, onerosidade excessiva, quebra da base objetiva, pacta sunt servanda, desequilíbrio, exceção de contrato não cumprido e boa-fé objetiva são apenas algumas das figuras invocadas. Mas como dar ordem a tudo isso e contemplar o quadro geral? Caso se anime a continuar a leitura, tentaremos juntos montar, em melhor perspectiva, esse complicado quebra-cabeças. Alguns autores brilhantes, bem antes da Covid-19, e outros, mais recentemente, já nos forneceram peças valiosas. Só precisamos tentar juntá-las, sem inventar a roda. Ordem é o começo de tudo. Saber que o sistema jurídico não elegeu o caso fortuito como gatilho para o reequilíbrio de um contrato é o primeiro passo para estudar e discutir questões mais profundas. Reconhecer que lesão e estado de perigo só podem ser invocados como vício originário, sendo inútil brandi-los em situação de desequilíbrio superveniente, é a base para uma sã conversa sobre revisão contratual. Eis, portanto, caro leitor, o objetivo deste arriscado artigo: levá-lo para o alto, para voarmos sobre a densa floresta que se formou, e termos uma vista panorâmica, com GPS, dos quatro impactos mais comuns provocados pela Covid-19, que podem incidir isolada ou cumulativamente sobre uma relação contratual: (i) a impossibilidade permanente de adimplemento da prestação ou, com efeito parecido, a frustração do fim do contrato; (ii) a impossibilidade momentânea de cumprir a obrigação no vencimento; (iii) o desequilíbrio superveniente da prestação; e (iv) a deterioração da situação financeira do devedor2. E antes de decolarmos, uma premissa valiosa: se o contrato, sendo paritário e simétrico, regular os efeitos da força maior ou caso fortuito, com alocação de riscos, as regras consensuais prevalecem sobre as regras legais (CC, artigos 113, 393 e 421-A). Este texto busca apenas explicar o que pode acontecer no silêncio do contrato e na ausência de acordo. II. Impacto nº 1 (dois em um): Impossibilidade definitiva e frustração do fim do contrato Imagine que você, um dos maiores oradores de todos os tempos, foi contratado a peso de ouro, exclusivamente para uma sustentação oral no primeiro julgamento virtual da história do Supremo Tribunal Federal (STF), em litígio de grande repercussão econômica. Mas, infelizmente, você foi contaminado pelo coronavírus, e agora, tossindo, sem ar e acamado, nada é capaz de fazê-lo discursar. O julgamento não foi adiado, a causa foi julgada sem você e o cliente perdeu, sucumbiu. Não haverá outra chance. A sustentação neste processo tornou-se impossível para todo o sempre, e sua obrigação de fazer jamais será cumprida. Juridicamente, então, o que acontece? De acordo com o art. 248 do Código Civil, "se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação". A regra, nesta hipótese, é reforçada pelo art. 607 do Código Civil, segundo o qual o contrato de prestação de serviço termina "pela impossibilidade da [sua] continuação, motivada por força maior". O contrato está resolvido, de pleno direito. Com exceção da obrigação de pagar, a ser tratada adiante, a mesma regra de resolução se aplica às prestações de dar coisa certa ("se... a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes...", art. 234 CC) e de não fazer ("extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar", art. 250 CC). De forma diferente, porém semelhante o suficiente para ser agrupada sob o mesmo tipo de impacto: haverá casos em que a prestação pode ser cumprida, mas sua utilidade desapareceu. Houve, por assim dizer, a frustração do fim do contrato3. Se comprei com uma agência de turismo um pacote incluindo passagens aéreas, hotel e ingresso para um show cancelado em definitivo, o que adianta a agência conseguir me transportar para outra cidade e me hospedar no hotel, se o objetivo da compra era o evento? Então, para fincarmos nossa primeira estaca: (i) a Covid-19 não é, a priori, genericamente, um caso fortuito ou de força maior; a parte tem o ônus de comprovar, na sua realidade contratual, que a pandemia desencadeou um fato necessário, irresistível, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (art. 393, p. único, do CC4), e que esse fato gerou a impossibilidade de cumprimento da prestação (arts. 234, 248, 250 ou 607 do CC)5, ou a frustração do objetivo do contrato (CC, art. 421); (ii) se a Covid-19, no caso concreto, provocou uma das situações acima tratadas, a consequência será a resolução do contrato; (iii) o caput do art. 393 do Código Civil não traz regra de resolução, e sim de exclusão de responsabilidade, rompendo o nexo causal e eximindo o devedor de indenizar o credor pelos prejuízos resultantes de fortuito ou força maior; e (iv) se não há impossibilidade da prestação, nem frustração de seu fim, o contrato tem que ser cumprido, e se não o for, caberá execução específica, ou então resolução por inadimplemento, e a parte inocente poderá pleitear indenização, aplicando, se prevista a respectiva cláusula penal. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Professor de cursos de extensão e pós-graduação em Direito Imobiliário em diversas instituições. Advogado. __________ 1 STRECK, Lenio. O coronajúris e "por que gostamos tanto de simplificar o Direito?". Acesso em 18.abr.2020. 2 Está excluída da abrangência deste artigo a análise do impacto da pandemia sobre as relações público-privado e trabalhistas. 3 Cite-se, neste ponto, o Enunciado 166 do Conselho da Justiça Federal (CJF), aprovado na III Jornada de Direito Civil: "A frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil". 4 Releva desde já registrar que "a imprevisibilidade não é requisito necessário da força maior e do caso fortuito, podendo um fato ser previsível mas irresistível e ser, por esse motivo, considerado como caso fortuito ou força maior" (WALD, Arnoldo. Direito Civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos, 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2011). A Covid-19 pode desencadear um fato que seja, ao mesmo tempo, um fato irresistível, extraordinário e imprevisível, ou apenas extraordinário e imprevisível ensejando, se os demais requisitos estiverem presentes, a revisão do contrato (Impacto nº 3). 5 SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Resolução contratual nos tempos do novo coronavirus. Acesso em 20.abr.2020.
Texto de autoria de Fabio Tadeu Ferreira GuedesA incorporação imobiliária é uma atividade complexa, que envolve inúmeras variáveis e uma gama considerável de relações jurídicas simultâneas. O trabalho do incorporador é gerir essa atividade e canalizar todas essas relações jurídicas para um único fim: a construção de um determinado empreendimento.A atividade do incorporador passa pela localização de terrenos apropriados, elaboração de projetos, registros e averbações, obtenção de alvarás e licenças, contratação de profissionais, compra de materiais, execução das obras projetadas, obtenção dos certificados pertinentes, especificação das unidades e constituição do condomínio edilício e, por fim, a venda das unidades autônomas construídas ou a construir e sua entrega futura aos adquirentes.A atividade é desenvolvida ao longo de muito tempo e anos transcorrem desde a idealização do empreendimento até a entrega da chave da unidade construída ao adquirente. Assim, fica fácil de se perceber que a incorporação imobiliária é uma atividade de risco que precisa ser minuciosamente projetada. Qualquer equívoco na alocação e avaliação dos riscos pode comprometer o sucesso da incorporação.A vida de um empreendimento começa muito antes de o mercado de consumo tomar conhecimento de sua existência. Meses e anos de trabalho antecedem ao lançamento de uma edificação ao público em geral e outro período considerável acompanha a fase de sua efetiva construção.Na prática, isso que dizer que o incorporador precisa antever o futuro e antecipar aquilo que os consumidores terão interesse em adquirir alguns anos depois. Não aquilo que seja um consenso naquele momento em que o empreendimento é concebido, mas que poderá sê-lo no momento em que ele for finalizado. É preciso estar sempre um passo adiante, antecipar tendências, interesses e, principalmente, comportamentos sociais e econômicos. De nada adiantará o trabalho realizado se, quando as vendas começarem, nenhum interessado aparecer para comprar as unidades, seja porque a economia não está bem e ninguém tem dinheiro em caixa para uma aquisição vultosa, seja porque o produto não desperta mais o desejo dos consumidores.Obviamente que as vendas são de suma importância para o sucesso do empreendimento. Não se constrói por construir e não há altruísmo no mercado capitalista. O objetivo é mesmo a venda de todas as unidades.Mas, ao contrário do que possa parecer a um leigo, o incorporador não é o único beneficiado com o sucesso na venda das unidades. Todos ganham quando a incorporação atinge seu objetivo, inclusive (e principalmente) os adquirentes.Não se esquece de que o incorporador desenvolve uma atividade econômica e seu objetivo final seja obter lucro com a venda de unidades construídas. Mas esse objetivo, vale frisar bem, é apenas o último passo de toda essa cadeia de atividades desenvolvida para que a construção chegue ao seu final. Eventual lucro é uma consequência do trabalho realizado e uma coisa é certa: o resultado econômico positivo não se verifica durante a fase de desenvolvimento e de construção do empreendimento. Até que se obtenha o Certificado de Conclusão de Obra ("Habite-se"), a incorporação imobiliária é uma atividade deficitária por natureza.Enquanto o resultado financeiro não chega, de certa forma, todos os envolvidos partilham alguns riscos. Até que se obtenha qualquer espécie de lucro, significa que os custos necessários para a construção do empreendimento ainda não foram angariados. Se o dinheiro parar de entrar no caixa, em tese, pode não haver fluxo financeiro para finalizar a construção.Ao contrário do senso comum de que as construtoras possuem caixa em abundância e que podem suportar tranquilamente a construção de um empreendimento com recursos próprios, a prática empresarial demonstra que não é exatamente isso que ocorre. A saúde financeira de um empreendimento depende substancialmente da venda das unidades ainda na fase de construção.Em termos gerais, os números só começam a se tornar favoráveis quando o Certificado de Conclusão da Obra é expedido e os adquirentes passam, de forma sistemática, a celebrar instrumentos de financiamento com as instituições financeiras para pagamento de seu saldo devedor.É comum se dizer na construção civil que o valor obtido com a venda das unidades ainda na planta é convertido em "tijolo". De fato, O incorporador depende do recebimento das parcelas obtidas com a venda dos imóveis "na planta". Ao receber as parcelas, o dinheiro é revertido para a construção. Esse valor, em certa medida, "financia a própria obra".O que se pretende demonstrar é que a saúde financeira do empreendimento depende substancialmente do recebimento dessas parcelas e a interrupção desse fluxo de pagamento pode comprometer a continuidade das obras, os prazos, o cumprimento de obrigações em geral e, inclusive, a conclusão do empreendimento.Fosse essa preocupação apenas abstrata, não seria nem mesmo necessária a promulgação da lei 13.786, de 27/12/2018, a chamada "Lei dos Distratos". No fundo, o que essa lei faz é, basicamente, proteger a saúde financeira do empreendimento que está sendo construído, na medida em que expressa diversas regras aplicáveis para as hipóteses em que o adquirente, além de manifestar seu interesse em não mais contribuir com as parcelas a que havia se obrigado (resilir o contrato), ainda pretende retirar do caixa do empreendimento os valores que já pagou (restituição dos valores pagos).Para evitar que um movimento de saída dos adquirentes venha a desfalcar o fluxo financeiro da obra, paralisando-a ou inviabilizando-a, foram reforçadas regras básicas para balizar os valores que serão restituídos ao comprador "desistente" e como se dará essa restituição.O intuito principal da Lei foi o de reestabelecer prioridades. Colocando-se o término da construção como o principal objetivo, dosou-se quanto e como se dará a restituição de valores àqueles que não mais contribuirão para o resultado final da incorporação, resguardando o direito desses adquirentes, na exata medida em que também se protege os demais adquirentes do mesmo empreendimento. A Lei trouxe uma verdadeira ponderação de interesses, com a escolha clara para a blindagem e segurança do objetivo comum envolvido em detrimento do interesse individual de cada adquirente.Sem o intuito de ser repetitivo, o objetivo maior é a proteção da coletividade de adquirentes ao se colocar a construção do empreendimento como meta principal, ainda que o exercício do direito de um ou de outro adquirente, individualmente, tenha de ser postergado para após a conclusão das obras (no caso de restituição de valores pagos, por exemplo).Para entender o fundamento que está por trás desse posicionamento, é preciso olhar para a incorporação e vê-la como uma atividade que necessita se autoalimentar. A incorporação depende, para ter sucesso, de fontes de autossustentação. Se não dispuser de meios de captação de recursos lastreados na própria construção, a incorporação estará fadada a sofrer seríssimos problemas financeiros.A história já nos mostrou na prática o que acontece com as empresas que, em determinado momento de sua trajetória, perdem a capacidade de autossustentação em cada empreendimento e passam a atuar com fluxo cruzado de capital, onde os recebíveis de um empreendimento são direcionados para cobrir custos de outro empreendimento. Começa um "jogo do cobertor curto" e alguma parte acaba ficando descoberta. Até que o mecanismo não se sustenta mais e a empresa quebra, deixando inúmeros adquirentes e suas famílias desamparados.Após famoso episódio de grande magnitude, em razão dessa prática e que levou uma das maiores construtoras do país à falência, iniciou-se um movimento que resultou na aprovação da lei 10.931/04 e na instituição do chamado Patrimônio de Afetação, que tem por objetivo segregar, do patrimônio geral do incorporador, as obrigações e os direitos decorrentes de um determinado empreendimento específico. Constituído o patrimônio de afetação, todos os recebíveis decorrentes de um empreendimento ficam a ele vinculados, até que sua construção seja finalizada. Evita-se que os valores recebidos sejam empregados para saldar outras obrigações do incorporador que não sejam decorrentes do empreendimento que o originou. Realiza-se uma espécie de blindagem patrimonial da incorporação, tanto para os recebíveis quanto para as obrigações a serem cumpridas.Mais uma vez, prioriza-se a construção do empreendimento. Resguarda-se o objetivo comum de todos os envolvidos naquela determinada incorporação (onde se incluem os próprios adquirentes), protegendo-se o caixa da incorporação. É mais um exercício de autossustentação.É justamente nesse contexto, em que se coloca o interessa da coletividade como prioridade, que se destaca a importância do prazo de carência para que o incorporador possa denunciar a incorporação e "desistir" do empreendimento.Nos termos do artigo 34, da lei 4.591/64, "o incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência, dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento".Isso quer dizer que, mesmo depois de muito trabalho, registros, lançamento do empreendimento ao público e até depois do início das vendas das unidades, o incorporador pode refletir se deve ou não seguir adiante com o empreendimento.É no momento em que o incorporador realiza o lançamento do empreendimento ao público que todas as suas expectativas serão colocadas à prova. Será que o mercado receberá bem o produto projetado? Como reagirá o mercado de consumo hoje sobre o empreendimento idealizado meses ou anos atrás? Será um sucesso de vendas ou um fracasso?Por mais que o empreendedor entenda o mercado e por mais que ele tenha planejado minuciosamente o produto que colocará à venda, apenas os resultados concretos lhe darão subsídios para a tomada de decisões empresariais importantes. Será nesse momento que o incorporador poderá sentir a viabilidade econômico-financeira do empreendimento.Afinal, o empreendimento será autossustentável?Se as vendas se mostrarem promissoras e se o trabalho desenvolvido até então estiver dentro do planejado, o incorporador terá a confirmação de que o empreendimento chegará ao resultado esperado. É hora de partir para a construção.Se a resposta for negativa, um problema grave já se apresenta antes mesmo do início das obras. Verificada provável dificuldade com o fluxo de caixa, a considerar os resultados das vendas iniciais, é viável seguir em frente com um empreendimento que não conseguirá se manter financeiramente? Ao incorporador consciente, talvez seja o momento de dar um passo atrás e evitar um problema maior.Não sendo confirmada a viabilidade econômico-financeira da obra, o incorporador poderá denunciar a incorporação ao Registro de Imóveis. Em seguida, deverá comunicar sua posição aos adquirentes.Veja-se, uma vez mais, a preocupação com a conclusão do empreendimento, em benefício de toda a coletividade de interessados na aquisição de unidades. Se o empreendimento não se mostrar viável, é melhor interromper a incorporação nesse momento do que levá-la adiante, evitando-se que os adquirentes sejam prejudicados no futuro, ou que outros interessados venham a adquirir um empreendimento fadado ao insucesso.Para se valer da denúncia, é preciso que o incorporador tenha arquivado junto ao Cartório de Registro de Imóveis uma declaração onde expressamente tenha fixado o prazo de carência (nos termos dos artigos 32, "n", e 34, § 1º, da lei 4.591/64) e as condições que o autorizarão a desistir do empreendimento. Trata-se de direito potestativo do incorporador e basta-lhe cumprir as formalidades exigidas, denunciar a incorporação ao Registro de Imóveis e comunicar a cada um dos adquirentes.Determina o já referido artigo 34, que o incorporador poderá desistir da incorporação dentro do "prazo de carência". De acordo com o seu parágrafo segundo, "em caso algum poderá o prazo de carência ultrapassar o termo final do prazo de validade do registro ou, se for o caso, de sua revalidação". O parágrafo sexto ainda é categórico ao afirmar que "o prazo de carência é improrrogável". Ou seja, cabe ao próprio incorporador estipular um possível prazo de carência, dentro do qual poderá desistir do empreendimento.De modo coerente, visando a segurança jurídica de todos os envolvidos, determinou-se um prazo máximo para que essa carência seja estipulada: o "termo final do prazo da validade do registro ou, se for o caso, de sua revalidação". Buscando auxílio no disposto no artigo 33, ainda da lei 4.591/64, e no artigo 12, da lei 4.864/65, observa-se que é de "180 (cento e oitenta) dias o prazo de validade de registro da incorporação".De fato, cento e oitenta dias é um prazo razoável para criar um ambiente de segurança jurídica tanto para o incorporador quanto para os adquirentes. Nem é um prazo exíguo para o incorporador analisar a viabilidade financeira do empreendimento e nem deixa o adquirente em longa incerteza acerca de sua efetivação.Pois bem. O que se tentou demonstrar até aqui é que o objetivo principal da incorporação deve ser buscado com muita ênfase. Deve-se proteger a coletividade de adquirentes para viabilizar que a construção do empreendimento se torne uma realidade. Aqueles que acreditaram na incorporação e entregaram seu dinheiro ao incorporador esperam receber e devem receber aquilo que compraram. A posse da unidade autônoma deve ser entregue ao adquirente. E, para materializar esse objetivo, diversos mecanismos legais foram criados para esse mister, protegendo o patrimônio da incorporação e o próprio patrimônio da coletividade de adquirentes.Ocorre que, no presente tempo de crise, de incertezas nas relações jurídicas, muito tem se falado a respeito da flexibilização de obrigações, renegociações contratuais, extensão de prazos para pagamento, dentre outras possíveis consequências provocadas pela pandemia do coronavírus.As dificuldades têm gerado inúmeras discussões doutrinárias, ainda embrionárias e predominantemente hipotéticas, a respeito de como deverão ser enfrentadas juridicamente suas consequências. Os casos mais corriqueiros geraram os primeiros burburinhos, mas, aos poucos, vão surgindo inúmeros outros que afetam igualmente uma parcela significativa da sociedade.A preocupação que nos toma agora é saber como as relações jurídicas serão afetadas. E, principalmente, qual será a postura do Poder Judiciário diante de demandas que postulem a alteração de obrigações contratuais. O tema ainda está indefinido e, neste momento, ainda está em votação o PL 1.179/2020, que deverá trazer algum norte para esse debate.Por isso, a ideia aqui é chamar a atenção não só pela hipótese de que essa estrutura da incorporação será fortemente impactada e sofrerá interferência direta do Poder Judiciário, como para o fato de que a fluência do prazo de carência para a denúncia da incorporação, nesse momento, é inócua e igualmente prejudicial.Embora a venda das unidades na planta seja importante e indispensável para gerar fluxo financeiro para a construção, é igualmente certo que o incorporador financiará o custo da obra junto a instituições financeiras. Provavelmente, quando houver o lançamento do empreendimento ao público em geral, o incorporador já tenha celebrado um contrato de financiamento bancário.Ocorre que, mais uma vez, ao contrário do que o senso comum possa sinalizar, o agente financeiro não entregará qualquer valor de imediato para a construção. Antes disso, o empreendimento terá de atingir certos objetivos e demonstrar sua viabilidade econômico-financeira.Esse contrato de financiamento estará certamente subordinado a diversas cláusulas suspensivas e resolutivas. A principal delas deverá conter disposição no sentido de que o contrato de financiamento se aperfeiçoará se, e somente se, as vendas atingirem uma determinada quantidade mínima de unidades. Ou seja, o contrato de financiamento ficará subordinado à venda de uma porcentagem do empreendimento, o que indicará que o próprio empreendimento é viável e autossustentável.Com esse contrato em mãos, o incorporador promoverá o lançamento do empreendimento e se empenhará em realizar a venda do maior número de unidades que conseguir dentro do prazo de carência. Atingido o número mínimo de vendas contratualmente definido junto ao agente financeiro, e que provavelmente deverá superar 40% do total das unidades antes do início das obras, o incorporador terá condições de avaliar se o empreendimento será viável e autossustentável ou não.Se esse número mínimo de vendas não se tornar uma realidade, é hora de reflexão e, possivelmente, de tomar a decisão de desistir da incorporação e denunciá-la.Problema grave que ocorre em tempos de pandemia e de isolamento social é que esse momento de reflexão está absolutamente prejudicado. A principal razão pela qual existe o prazo de carência não faz sentido neste momento.Não adianta promover o lançamento de empreendimentos novos durante o confinamento dos pretensos adquirentes porque ninguém comparecerá ao estande de vendas. Na Cidade de São Paulo, por exemplo, foram editados Decretos Municipais e Estaduais determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais e de estandes de vendas.A venda remota de imóveis também não é algo que, neste momento, surta resultados expressivos. A compra de um imóvel é um grande evento na vida dos brasileiros, que lutam para que esse momento se torne realidade. Logo, é um momento tão importante na vida das pessoas, que o adquirente necessita ir ao local, quer ver as plantas do condomínio, ter o prazer de visitar as unidades decoradas, precisa tirar dúvidas com os corretores e, enfim, deseja viver o momento da realização do sonho da casa própria. Só que a venda presencial, neste momento, está inviabilizada.Some-se a isso a própria insegurança financeira da atual conjuntura da sociedade, que naturalmente já contribui para a redução das vendas. Situação essa que se agrava com o crescente número da população que vem perdendo o emprego a cada dia que a pandemia avança pelo país.E com os lançamentos já realizados, a situação é ainda pior. Já houve todo um esforço canalizado para lançar o empreendimento e divulgá-lo ao mercado. Certamente já há um fluxo de vendas em andamento e que foi interrompido pelo isolamento social.Ou seja, a análise da confirmação de viabilidade econômico-financeira do empreendimento estava em andamento, mas foi abruptamente interrompida pela pandemia. Os números atuais já não refletem a tendência real de vendas e/ou de aceitação do mercado. Simplesmente surgiu uma paralisação temporal das relações contratuais em geral.O grande problema é que o prazo de carência segue em curso, alheio à pandemia que nos rodeia. Neste momento, há mais incertezas do que respostas. Quanto tempo a pandemia permanecerá? Depois dela, tudo voltará a ser como era antes?O prazo de carência, como afirmado, é um direito potestativo conferido ao incorporador. Independe, portanto, da aceitação dos eventuais adquirentes. Presentes as condições, cabe exclusivamente ao incorporador exercer ou não esse direito.A natureza jurídica do prazo de carência, vale lembrar, é decadencial. Isso quer dizer que, não exercido o direito dentro do prazo fixado, extinto estará. Não pode ser estendido por mera vontade do incorporador ou por sua exclusiva conveniência. Extinto o direito, o incorporador não poderá mais desistir da incorporação e estará obrigado a seguir com o empreendimento.A dilação do prazo de carência merece atenção. Não é prudente, no cenário atual, forçar o incorporador a tomar a decisão de denunciar ou não a incorporação. Trata-se de medida que atinge diretamente muitos interessados. O momento pede calma e maior reflexão.O Conselho Nacional de Justiça, atento ao problema vivido no país, já sinalizou que "os prazos de validade da prenotação, e os prazos de qualificação e de prática dos atos de registro serão contados em dobro" (CNJ, Provimento nº 94, art. 11). A mesma disposição foi replicada pelo Provimento CG nº 7, expedido pela Corregedoria Geral de Justiça São Paulo (Comunicado 231/2020), em seu artigo 2º.Todavia, ainda não está claro qual será o tratamento que será concedido ao prazo de carência e à validade do registro da incorporação, nem se haverá tratamento diferente para a hipótese em cada localidade, a considerar a extensão continental de nosso país e suas especificidades regionais.O projeto de lei 1179/2020, já aprovado pelo Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados, "dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus (COVID-19)".O Projeto fixa como termo inicial dos eventos derivados da pandemia o dia 20 de março de 2020 (art. 1º, § único). Mas determina que, a partir da entrada em vigor da lei, caso o Projeto venha a ser aprovado, "os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso", "até 30 de outubro de 2020" (art. 3º, caput). E a mesma disposição se aplicará às hipóteses de decadência. Para afastar qualquer dúvida acerca da extensão do impedimento ou da suspensão da fluência aos prazos decadenciais, o parágrafo segundo, do art. 3º, expressamente determina que essa disposição "aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no artigo 207, da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)"1.Há um momento de insegurança e o debate se faz necessário.O Provimento nº 94, do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 11, e/ou o Provimento CG nº 7, expedido pela Corregedoria Geral de Justiça São Paulo (Comunicado 231/2020), em seu artigo 2º, duplicam o prazo de carência para a denúncia da incorporação? Uma vez aprovado o texto do artigo 3º, do projeto de lei 1179/2020, o prazo de carência ficará suspenso entre a aprovação da lei e o dia 31 de outubro de 2020, ficando igualmente impedido de começar a fluir os novos prazos que se iniciariam nesse período?A suspensão do prazo de carência certamente resolveria um problema latente da incorporação e evitaria decisões precipitadas de denúncia da incorporação e, de outro lado, evitaria que os adquirentes fossem prejudicados em outras situações em que o incorporador tenha de optar por seguir com o empreendimento mesmo sem a convicção, neste momento, de que a incorporação seja autossustentável.__________1 Art. 207, CC: Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.
Texto de autoria de Fábio Azevedo Este ensaio, de forma muito simples e objetiva, pretende demonstrar algumas razões dogmáticas que sustentarão a conclusão de que um lojista de shopping center não deve ser compelido a pagar aluguel e demais despesas necessárias ao desenvolvimento da operação, especificamente quando o empreendimento fechou suas portas e suspendeu temporariamente suas atividades por determinação do poder público. Tal reflexão tem por objeto a repreensível conduta, verificada por alguns shoppings centers após a pandemia do covid-19, que a despeito do empreendimento estar transitoriamente fechado, posicionam-se de forma inconcebível para exigir do locatário o pagamento integral dos alugueres e despesas, no máximo concedendo um termo para diluir parte do pagamento. Isso reflete uma unilateral e ilegal alocação de risco, realizada a posteriori, sem que os negócios jurídicos tenham mapeado tal possibilidade e disciplinado seus efeitos, como até autoriza o art. 421-A, inciso II, do CC1, a partir da lei de liberdade econômica. Dessa forma, em decorrência dos reflexos da pandemia do covid-19, o lojista vê seu faturamento zerar resignadamente. Por outro lado, o shopping decide unilateralmente que irá continuar a faturar alugueres e outras receitas, mesmo sem entregar a contrapartida que justificou a contratação, arbitrariamente elegendo quem deve suportar os riscos desse inesperado acontecimento. Como se dissesse aos lojistas: "se o poder público fechou o shopping e te prejudicou, o problema é seu e não meu, e vou continuar a faturar aluguel e encargos". Se a covid-19 não é atribuível ao lojista ou ao empreendedor, por que cada qual não arca com os próprios riscos e prejuízos nessa travessia transitória? O lojista fica sem receita de vendas (sem shopping). O shopping fica sem alugueres e encargos (sem aluguel). Daí o título atribuído para estas reflexões. E cada qual buscará recursos para sobreviver nesse período transitório. Se assim não for, açoita-se, a um só tempo, o sinalagma contratual, a interpretação do negócio jurídico em conformidade com a boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, CC2) e a mais racional alocação de riscos. E se impõe ao lojista injustamente arcar com dois riscos de uma só vez: os próprios de seu negócio, que não são poucos; e os riscos do empreendedor, transferidos sem razão palatável para o lojista, como se uma tragédia mundial concedesse ao locador imunidade em relação aos efeitos da pandemia. Com as portas fechadas, o shopping center descumpre o dever que lhe impõe o art. 22, II, da lei 8.245/91, de acordo com a qual o locador é obrigado a "II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado". Não há dúvida de que o inadimplemento do empreendedor de shopping nesse caso é fortuito e não culposo. O reconhecimento da calamidade pública somada a decretos estaduais que impedem o desenvolvimento da atividade são acontecimentos tão imprevisíveis (caso fortuito) quanto inevitáveis (força maior), que não decorrem de qualquer comportamento reprovável e inculpável ao shopping center. Mas culposo ou não, o shopping não está adimplindo a prestação para a qual deve ser remunerado. E esse fechamento é o risco imprevisto que deve ser examinado e distribuído entre as partes com base na boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, CC). Note-se que o longevo debate sobre a natureza locatícia, ou não, do vínculo existente entre empreendedor e lojista está solidamente superada já há algumas décadas, pois o art. 543 da lei 8.245/91 expressamente qualifica tal relação como locatícia, atraindo a incidência do referido art. 22, II, da lei 8.245/91. Ainda que se adote a sensata, embora minoritária qualificação de coligação contratual, a aplicação desse art. 22, II, não deve ser afastada como disciplina jurídica adequada para a fração locatícia desse arranjo contratual, que reúne uma gama de negócios jurídicos funcional, necessária e voluntariamente reunidos para viabilizar a operação econômica do shopping center . Se não há culpa do empreendedor pelo fechamento, por outro lado é preciso reconhecer não haver igualmente culpa do lojista pelo trágico episódio. Esse raciocínio impede que o locatário, por exemplo, deva ser indenizado por lucros cessantes, alegando que deixou razoavelmente de obter lucros em razão do encerramento da atividade. E isso porque o art. 393 do Código Civil estabelece que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se não houver se responsabilizado por eles expressamente". Ocorre que o debate aqui é outro, recaindo sobre o dever de pagar aluguel e acessórios. O aluguel representa a contrapartida do contrato de locação, um contrato sinalagmático (com prestação e contraprestação que devem ser equivalentes). Se o locador não cumpre o dever que lhe impõe o art. 22, II, da lei 8.245/91 e o locatário não pode explorar econômica e plenamente a posse e o funcionamento do empreendimento, suprime-se a própria causa para o recebimento do aluguel. Como bem observa Darcy Bessone4, "de um modo geral, ensinam os doutrinadores que, no contrato bilateral, as obrigações devem ser principais e correlativas, apresentando-se uma como causa das outras, ou, no dizer dos franceses, donnant donnant". Some-se ao cenário descrito a necessidade de a execução do contrato ser pautada e conduzida pela boa-fé objetiva no desenvolvimento do processo contratual (art. 422 do CC5). Para além das prestações de locatário (pagar aluguel e despesas) e locador (assegurar o uso do espaço, ceder e gerenciar o seu fundo empresarial), é preciso que ambos se comportem da mesma forma que uma pessoa proba atuaria em seus lugares (o chamado arquétipo ou standard de conduta), notadamente em relação aos deveres fiduciários ou anexos de proteção, informação e lealdade, cooperando reciprocamente para o êxito de obrigação. Assim, não poderia uma parte continuar a pagar e a outra nada entregar. Faça-se o exercício de colocar homens probos e leais no lugar das partes, e a conclusão será a de que cada qual arcará com seu prejuízo, suspendendo-se temporariamente as prestações até a reabertura do shopping. É preciso compreender ligeiramente o substrato que se examina para identificar corretamente sua disciplina, examinando a operação econômica do shopping center e seus irremediáveis reflexos no direito contratual. Concebido pelos americanos na década de 60, o shopping center reúne em mesmo espaço uma multiplicidade de atividades, de modo que esse mix torne o empreendimento um centro de atração irresistível de público que será potencial cliente de cada um dos lojistas. Os shoppings têm sua própria clientela, freguesia, aviamento, marca, insígnia, estrutura física, de conforto e diversos outros elementos corpóreos e incorpóreos que formam um autônomo e próprio fundo empresarial (art. 1142 do CC). Essa azienda é absolutamente autônoma em relação a de cada lojista, daí porque se cogita a existência de um sobrefundo ou duplicidade de fundo empresarial. Por isso o empreendimento é construído, planejado e administrado de forma centralizada (isso o distingue dos condomínios comerciais ou shoppings vendidos). Em última análise, essa capacidade de atração de frequentadores torna o empreendimento atraente para os lojistas interessados nesse público, sendo essa a ratio social e econômica que leva à contratação da locação. Dessa forma, o lojista não paga apenas o aluguel, fixo ou percentual, aí se incluindo o 13º aluguel, pois se dirigem à remuneração do ponto. Ocorre o pagamento inicial de uma res sperata, pela cessão do uso do fundo empresarial (distingue-se das luvas, pois esta é mais circunscrita e remunera somente o ponto), assim como despesas diversas (encargos, fundo de promoção e outros) para a manutenção mensal e desenvolvimento desse fundo empresarial, respeitadas as limitações e vedações de cobrança estabelecidas pelo art. 54, § 1º, da lei 8.245/91. Sendo esse cenário contextualizado pela boa-fé objetiva (art. 422 e art. 113, § 1º, II, CC), revela-se que a cobrança de alugueres durante a suspensão das atividades assinala a já mencionada transferência desleal de riscos. É certo que cada parte aloca riscos na operação de shopping center. Por exemplo, se o público frequentador do shopping for inferior ao esperado, o lojista não deve ser indenizado por lucros cessantes, já que esse fluxo estimado por estudos de viabilidade representa mera perspectiva de riscos para ele e o empreendedor. Vê-se que a epidemia da covid-19, uma triste calamidade pública, parece assinalar que o risco de fechamento transitório do shopping pelas autoridades públicas é alocado para o empreendedor, responsável pelo projeto e criação desse templo de atração de frequentadores e consumo. São esses investidores imobiliários que usufruem as locações de espaços localizados nesse ambiente propício ao consumo de produtos e serviços. Basta pensar que o lojista paga um aluguel mínimo ou fixo, ainda que não venda um único centavo com as portas abertas. É um risco dele, o alto - percentualmente - risco de malogro empresarial. Se o faturamento é abissal, o empreendedor deixa de cobrar o aluguel fixo e passa a cobrar um percentual incidente sobre o faturamento bruto do locatário, arrecadação que é objeto de rigorosa fiscalização. Esse modelo, no passado, levou equivocadamente parte da doutrina a enxergar a existência de uma sociedade entre lojista e empreendedor. Uma sociedade que só se verificaria no lucro do lojista, nunca no seu prejuízo. O debate, incandescente na década de 80, está sepultado pelo art. 54 da lei 8.245/01. Nada há de ilegal nisso. São cláusulas que refletem as particularidades desse arranjo contratual. Porém, fica muito claro, pela estrutura do negócio jurídico, quais são os riscos de cada lado. O empreendedor promete se empenhar para atrair fluxo significativo de pessoas, criando uma obrigação de meio e não de resultado, com a segurança, para o lojista, de que ele é interessado no incremento das vendas, já que é remunerado percentualmente. O lojista, por sua vez, aloca para si riscos extraordinários. Não sabe se o público do shopping vai quantitativamente corresponder aos números projetados. Não sabe se qualitativamente, pela renda média da região, e conforme apontaram os estudos de viabilidade, se os frequentadores corresponderão às expectativas de capacidade financeira criadas. E isso sem falar no custo operacional e nas despesas correntes de cada loja, com folha de pagamento, tributos, fornecedores e com o próprio shopping. Dessa forma, compreendido o cenário em sua totalidade, considerando o dever legal e contratual do shopping não apenas de assegurar o uso da loja (art. 22, II, da lei 8.245/91), mas especialmente de criar a estrutura de prospecção de público que é a contrapartida para o lojista alcançar a capacidade de fazer frente às altas - e lícitas - despesas cobradas pelo shopping center, o risco do fechamento deve ser alocado exclusivamente pelo locador e não pelo locatário. E o que poderia fazer o locatário, diante da opressão da alocação unilateral de risco e a inquietude causada pela possibilidade de despejo e cobrança? Abrem-se alguns caminhos possíveis. Em primeiro lugar, valer-se de uma defesa substancial em ação que venha a ser ajuizada, consistente na exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC), com o ônus de demonstrar que o empreendedor não cumpriu sua parte na obrigação e que tal risco, com relação ao aluguel, recaia sobre o shopping center (art. 113, § 1º, II, CC). Em segundo lugar, buscar a resilição do contrato, com base na faculdade que lhe confere o art. 4º6, da lei 8.245/91, sem pagamento de cláusula penal, por não haver "fato ou omissão imputável ao devedor" (art. 396 do CC), inclusive podendo o locatário valer-se da consignação em pagamento se houver recusa pelo locador no recebimento das chaves. Todavia, com o ônus de o locatário demonstrar o nexo entre a resilição e o episódio covid-19. Em terceiro lugar, buscar a revisão judicial do contrato, sobretudo com base no art. 317 do CC7 e sua interpretação ampliativa8. O negócio seria revisto para suspender a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento9. Para isso, terá o lojista o ônus de demonstrar a ausência da correlata prestação que justifica o pagamento do aluguel durante o fechamento, ou seja, o encerramento temporário e total da atividade. Para a revisão, em razão da lacuna contratual, o contrato deverá ser interpretado (art. 113, § 1º, II, CC), sobretudo pelo parâmetro da boa-fé objetiva e da racionalidade econômica, esta última para extrair o comportamento que as partes adotariam se pudessem prever a pandemia por ocasião da contratação. Não se trata, portanto, de um debate exclusivo e delimitado pelo desequilíbrio econômico-financeiro, mas da ausência de sinalagma contratual e identificação do responsável pelo específico risco de não ocorrer a correlata prestação como efeito da pandemia. Dito de modo diverso, identificar se o locatário assumiu o risco de pagar alugueres e encargos ainda que o shopping fosse fechado por uma imprevisível pandemia de dimensão mundial. Em quarto lugar, para a eventualidade de se entender inaplicável o art. 317 do CC, buscar a revisão judicial, com base no art. 422 do CC, de modo a afastar a exigibilidade de qualquer pagamento pelo locatário durante o período de fechamento do shopping center. O art. 422 deve ser interpretado de modo a alcançar a revisão judicial (Enunciado 176 do CJF10) e afastar a exigência da "extrema vantagem para a outra" como elemento essencial para a qualificação da categoria jurídica (Enunciado 365 do CJF11). Convém que a técnica da tutela provisória antecipada (art. 300 e seguintes do CPC) seja utilizada para que os efeitos de uma decisão futura de revisão sejam imediatamente produzidos, sendo esta ação conexa com eventual ação de despejo que venha a ser ajuizada (art. 55, § 3º, CPC). . Por fim, duas observações finais parecem ser importantes. Primeiro, cientificamente não existe análise de desequilíbrio econômico-financeiro ou ausência de correlação sinalgmática em abstrato12, pois tais categorias precisam ser sempre particularizadas de forma minuciosa (ex. eventual loja que esteja em atividade e faturando escapa do raciocínio da suspensão total de pagamento aqui desenvolvido). Caso fortuito, força maior, imprevisibilidade e extraordinariedade são expressões às vezes invocadas de forma pouco científica e muitas vezes divorciadas de suas funções categoriais, além de não significarem nada fora de um contexto específico e de seu significado correto, muitas vezes ocultando da memória um tema complexo e desafiador que não tem merecido a centralidade que merece: a alocação de riscos. Segundo, e lamentavelmente, a covid-19 criou um ambiente favorável para os astuciosos e vigaristas de plantão, que buscarão "surfar essa onda" e debitar na calamidade pública um inadimplemento sem nexo de causalidade com a pandemia, a recomendar cautela redobrada pelos operadores, e, especialmente, dos competentes magistrados brasileiros na verificação desse relação causal (Enunciado 443 do CJF13). Feita a admoestação quanto à cautela em tempos de incerteza sobre o futuro, e saudando a velha boa-fé subjetiva e tanta falta que ela faz para a sociedade, sonha-se que possamos continuar esperançosos por dias melhores e solidários, desejando que tome forma a crença do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: "enquanto houver um louco, um poeta e um amante, haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança". __________ 1 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: ... II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) 2 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) ... III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) 3 "Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei". 4 Do contrato, Ed. Forense, 1960, pag. 98. 5 "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 6 "Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada". 7 Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 8 Nesse sentido, leia-se o artigo publicado no Migalhas pelo qualificado José Fernando Simão, denominado "o contrato nos tempos da covid-19". "Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio". 9 Em sentido diverso, defendendo a revisão parcial pela integração com o art. 567 do Código Civil, confira-se o bem escrito artigo "Covid-19 e os contratos de locação em shopping center", de autoria da competente e admirada Aline de Miranda Valverde Terra Aline e publicado no Migalhas. 10 "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual". 11 A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena. 12 Anderson Schreiber, em artigo publicado no Migalhas e denominado "Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional", afirma acertadamente que "Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como "inevitáveis", "imprevisíveis", "extraordinários" para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É a mesma posição de Flavio Tartuce, em artigo (Migalhas) denominado O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade 13 "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida".
quarta-feira, 8 de abril de 2020

A aplicação do dever de renegociar

Texto de autoria de André Roberto de Souza Machado O presente artigo consiste na síntese de uma proposta metodológica de aplicação de um Dever de Renegociação no direito brasileiro, a partir das lições doutrinárias1 que reconhecem a existência desse dever, como corolário da Cláusula Geral de Boa-fé, insculpida no artigo 422, do Código Civil, objetivando delimitar os contornos desse dever, identificar o direito subjetivo correlato à renegociação e, especialmente, os mecanismos de tutela que poderão ser utilizados nos casos práticos que emergem deste cenário extraordinário e imprevisível trazido pelo novo coronavírus. O dever de renegociar Em toda relação contratual é possível identificarmos três categorias de deveres, a saber: Os deveres (obrigações) principais, que consistem em deveres de satisfazer o objeto central da contratação, a razão objetiva pela qual o negócio foi celebrado, isto é, o dever de prestação e de contraprestação respectivos, como por exemplo, em uma compra e venda, o dever do comprador de pagar o preço (prestação) e o dever do vendedor de transferir o domínio da coisa (contraprestação); Os deveres (obrigações) acessórios, consistentes em obrigações complementares, de reforço, de garantia, de sanção etc. São obrigações que não subsistem por si sós, pois dependem da existência das obrigações principais. As obrigações acessórias dependem de previsão legal ou de cláusula contratual, como são os exemplos da cláusula penal moratória por atraso no cumprimento da obrigação principal, a cláusula de garantia por vício oculto da coisa, a cláusula de caução, dentre outras; Os deveres anexos ou laterais decorrentes da Cláusula Geral de Boa-fé, prevista no artigo 422, do Código Civil, e que são considerados como deveres implícitos aos contratos em geral. O dever de renegociar está inserto, via de regra2, na terceira categoria, como um dever anexo da boa-fé objetiva, implícito, consistente em dever e conduta em prol da conservação do negócio jurídico diante de fatos supervenientes que tenham alterado, substancialmente, as circunstâncias (objetivas ou subjetivas) sobre as quais se assentou a base da contratação. O dever de renegociar é, assim, um dever jurídico que encontra fundamento positivo no art. 422, do Código Civil Brasileiro, impondo aos contratantes (todos) uma obrigação de meio, isto é, de efetivamente renegociar e de fazer isso com coerência e lealdade, não existindo obrigação de alcançar o resultado (novo consenso, aditivo ao contrato). Nas lições da Professora Judith Martins-Costa: "...a boa-fé serve para pautar a conduta na fase negociatória. Não há dever de resultado (concluir o aditivo), mas há dever de meios (renegociar com lealdade), de modo que a boa-fé atuará como standard do comportamento devido, pautando eventual ilicitude no modo do exercício da renegociação (Código Civil, art. 187). Poderia, inclusive, ser caracterizado o inadimplemento imputável de dever contratual, passível de conduzir, segundo as circunstâncias, ou à indenização pela mora ou - se atingido gravemente o interesse contratual - ao exercício do poder formativo de resolução (lato sensu)"3. Em se tratando, portanto, de uma obrigação de meio, mas não de resultado, surge a dificuldade prática de sua aplicação em caso de recusa ou de comportamento desleal durante a renegociação. Seria esse dever apto a ser objeto de uma tutela judicial coercitiva? Como se daria a atuação judicial nesse caso? Como conferir eficácia concreta ao dever de renegociar? Tais dúvidas há tempos permeiam as discussões em torno do denominado dever de renegociar, desde aqueles que entendem não haver um dever jurídico em si, mas somente um dever ético, sem consequências objetivas de sua violação (senão no aspecto reputacional), até aqueles que reconhecem a sua existência e defendem a sua força coercitiva. Em um dos trabalhos recentes mais importantes sobre o tema, desenvolvido pelo professor Anderson Schreiber4, o autor enfrenta o problema profundamente, sob a ótica da renegociação por desequilíbrio contratual. Entendemos que o âmbito de autonomia privada e de liberdade contratual conferido às partes no momento da renegociação do contrato, não pode ser o mesmo, devendo ter a sua amplitude reduzida quando comparada com a ampla autonomia e liberdade existentes ao tempo da contratação, sob pena de se esvaziar a função da renegociação como um dever. É preciso, portanto, que se tenha a liberdade contratual e autonomia privada como mitigadas pelo Princípio da Conservação do contrato, como dever assumido previamente de envidar esforços para que o contrato cumpra a sua finalidade, que seja possível superar a crise e dar exequibilidade substancial ao que havia sido originalmente contratado (adimplemento substancial como finalidade). Desse modo, tanto o oferecimento de uma proposta, quanto a sua recusa devem ser pautados em razões legítimas e objetivamente demonstráveis, e não mais em anseios egoístas ou mero querer (ou não querer) como até seria tolerável no momento de formação original do contrato. Nosso propósito, neste breve artigo, é oferecer uma formulação objetiva e sintética, um guideline, para a aplicação prática do instituto, em especial neste momento de alteração das circunstâncias por conta da pandemia de Covid-19. Não se trata de uma resposta definitiva ou aplicável genericamente, mas uma contribuição para a construção de caminhos para o enfrentamento desse tão tormentoso assunto. O direito à renegociação Ao admitirmos a existência de um dever de renegociação e caracterizarmos a sua natureza como uma obrigação contratual de meio, implícita nos contratos por força da Cláusula geral de boa-fé (art. 422, do Código Civil), é consequente reconhecer que no outro polo da relação obrigacional existe um direito subjetivo correspectivo, que é o direito à renegociação do contrato. Traçaremos, em linhas gerais, os contornos que vislumbramos desse direito. Defendemos aqui tratar-se de um direito contratual exigível da outra parte, desde que preenchidos certos pressupostos que tornarão legítimo o seu exercício. Não se trata, portanto, de um direito potestativo a um novo contrato, à revelia das legítimas expectativas já estabelecidas em razão do contrato vigente. Não se trata, tampouco, de um direito tardio ao arrependimento ou um salvo-conduto para não cumprir o que fora contratado, por mera perda de interesse ou por oportunismo negocial. Ao revés, defende-se aqui que o exercício regular do direito à renegociação pressupõe a ocorrência de fatos supervenientes e extraordinários ao risco inerente e previsto (ou previsível, conforme a teoria adotada) na base original do negócio e que, por isso, tenha alterado substancialmente a base objetiva (desequilíbrio entre o valor das prestações contrapostas) ou a base subjetiva (perda involuntária por caso fortuito, Força Maior ou fato do Príncipe, da capacidade de pagamento), tal como se verifica nas hipóteses previstas nos arts. 317, 393 e 478, do Código Civil, por exemplo. Não se trata aqui, portanto, de autorizar o exercício de um direito à renegociação pura e simplesmente por ter se concretizado um risco previsto ou muito previsível do negócio, mesmo que indesejado, lembrando que continuará existindo circunstâncias que deverão ser tratadas como fortuito interno da atividade, bem como, circunstâncias que afetarão apenas e somente o contratante, não caracterizando um fenômeno excepcional ao mercado no qual aquele contrato está inserido. Dito isso, podemos reconhecer que existe um direito subjetivo à renegociação do contrato, exercitável legitimamente sempre que presentes os pressupostos autorizadores, verificáveis à luz do caso concreto e de acordo com o tipo de desequilíbrio ocorrido, se objetivo ou subjetivo, em contraposição a um dever de renegociar, com lealdade, da outra parte. Tal direito é, portanto, passível de tutela, inclusive pelos meios judiciais de cumprimento forçado e, por conseguinte, sua violação pode ensejar responsabilidade contratual por inadimplemento ao dever de renegociar. Proposições para a tutela do direito à renegociação Por opção metodológica, apresentaremos nossas proposições, como um guia passo a passo, que possa servir de norte aos contratantes, ressalvando-se a necessidade de se atentar para eventuais peculiaridades do caso concreto. Passo 1 O contratante, ao se deparar com uma situação real de dificuldade de cumprimento do contrato, deverá se perguntar se a situação em si foi ou não motivada exclusiva ou preponderantemente (nexo de causalidade) por um fato extraordinário e não previsto (expressa ou implicitamente) como risco inerente do negócio. Somente se a resposta for afirmativa é que, a nosso ver, estará legitimado o exercício regular do direito à renegociação, resultando em uma possível revisão do contrato. Passo 2 O contratante em situação de dificuldade deverá, então, cumprir com o seu próprio dever de boa-fé e procurar a outra parte, extrajudicialmente, expondo objetivamente os fatos e propor uma renegociação do valor (se o desequilíbrio foi objetivo) ou a forma de cumprimento (se o desequilíbrio foi subjetivo) ou mesmo ambos. Isso não significa que estejamos nos filiando à corrente doutrinária que entende o dever de renegociar apenas como um ônus condicionante da propositura de uma ação de revisão ou resolução judicial5, mas como modo legítimo de constituição em mora (do dever de renegociar) da outra parte, tal como estabelece o art. 397, Parágrafo Único, do Código Civil. Passo 3 Em caso de insucesso na tentativa de abrir extrajudicialmente uma renegociação, por recusa expressa, silêncio ou morosidade exagerada da outra parte, estar-se-ia caracterizada a mora ex persona, dando ensejo ao manejo dos instrumentos de tutela judicial do direito à renegociação e da corolária imputação de responsabilidade por inadimplemento do dever de renegociar. Passo 4 Em que pese a controvérsia, propomos que há uma tutela específica do dever de renegociar. Sendo tal dever uma obrigação de fazer, de meio, sua disciplina legal se encontra nos artigos 247 a 249, do Código Civil, e os mecanismos processuais de tutela nos artigos 497 a 501, do Código de Processo Civil, ou, em se tratando de relação de consumo, no artigo 84, do Código de Defesa do Consumidor. Observe-se que o direito à renegociação está umbilicalmente ligado ao legítimo interesse na conservação do contrato, razão pela qual defendemos que a busca da tutela específica e, na sequência, do resultado prático equivalente, é o caminho lógico, aplicando-se a conversão em perdas e danos (art. 499, do CPC), somente se for impossível a manutenção do contrato. Será, assim, possível ao contratante que necessita da revisão do contrato, requerer ao juízo que determine ao Réu que, num prazo compatível, se ofereça à renegociação, apresentando os fundamentos objetivos de sua proposta ou demonstre a impossibilidade de se promover qualquer alteração no contrato, sob pena de, uma vez que se mantenha inerte, autorizar o juiz a conferir por sentença o resultado prático equivalente, se equitativamente possível o arbitramento judicial. Passo 5 Nos casos enquadráveis nos artigos 317 e 478, do Código Civil (Teorias da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva), bem como no art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor (Teoria da Quebra da Base), estará o juiz autorizado a promover a revisão do contrato para afastar a onerosidade excessiva e restabelecer o equilíbrio entre o valor das prestações. Todavia, entendemos que, também nos casos não enquadráveis nas respectivas teorias, por ter ocorrido um desequilíbrio subjetivo para um dos contratantes (perda substancial de receita, por exemplo) sem que tenha havido perda do valor das prestações em si, isto é, sem que tenha ocorrido também um desequilíbrio objetivo, também poderá ser considerada a tutela do dever de renegociar como um comportamento do credor de mitigar as próprias perdas, sempre que a solução proposta pelo devedor for capaz de satisfazer substancialmente o credor, com menor prejuízo do que o inadimplemento absoluto e a resolução do contrato. Vejamos, como exemplo, um locador residencial que espera receber R$ 1.000,00 de aluguel por cada mês de uso do imóvel pelo locatário. Ocorre que em virtude do Fato do Príncipe que determinou a paralisação de atividades econômicas, o locatário teve, comprovadamente, uma redução salarial de 50%, mas que continua utilizando, plenamente e sem redução de utilidade, o imóvel locado. Neste exemplo não houve quebra na sinalagma objetiva do contrato a ensejar as teorias da Imprevisão, da Onerosidade Excessiva ou da Quebra da Base Objetiva do negócio. Entretanto, não parece haver dúvida de que as razões para o locatário não conseguir arcar com os mesmos R$ 1.000,00 de aluguel são extraordinárias e não imputáveis a ele, à título de responsabilidade (art. 393, do Código Civil). Haveria, então, duas alternativas para o Locador: não renegociar nem o valor e nem a forma de pagamento e, por conseguinte, pretender a resolução do contrato, sem multas já que não houve culpa de nenhuma das partes pelo cenário pandêmico; ou admitir a renegociação para reduzir temporariamente ou para diferir a data de vencimento dos aluguéis, conforme o caso, a fim de manter a finalidade legítima da locação residencial. Há de se atentar que se o imóvel fosse imediatamente esvaziado pelo locatário, sem multa é importante lembrar, ficaria o locador sem receber aluguel algum até uma nova locação, o que não se daria de forma imediata, ficando sem nenhum crédito a receber por esse período de imóvel vazio, além de arcar com as obrigações propter rem do mesmo. Nesse cenário, não negociar representa um comportamento que agrava as próprias perdas desse locador, o que pode ser visto como uma violação ao dever de mitigar as próprias perdas, já consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça, com fundamento na Boa-fé6. Passo 6 Finalmente, haverá situações concretas onde o julgador não terá condições objetivas de suprir o consentimento da outra parte, não sendo juridicamente possível a revisão judicial, quer por conta do caráter personalíssimo da obrigação contida no contrato, quer pela ausência de informações suficientes para se estabelecer com segurança uma solução equitativa, ou ainda por ser impossível a execução útil da prestação de forma diversa da que foi pactuada originalmente. Nessas situações o contrato restará resolvido, com ou sem perdas e danos, conforme o caso. Sendo a resolução motivada por um fato que exclui o nexo causal entre a conduta do devedor e a sua mora, esta se dará sem a consequente imputação do dever de indenizar a que alude o art. 475, do Código Civil, mas apenas a necessidade das partes pagarem ou restituírem aquilo que receberam e para o que não existirá mais a respectiva contraprestação, mera consequência do desfazimento do negócio. Entretanto, caso a resolução do contrato decorra de abuso de direito do credor de recusar-se a uma solução por renegociação, caso em que não seja possível o suprimento pelo juiz, ou que a revisão tenha se tornado impossível justamente pela demora do credor em renegociar, estaremos, a nosso sentir, diante de responsabilidade desse contratante culpado pela frustração definitiva do contrato, sendo possível cogitar-se, por exemplo, em imputação da cláusula penal compensatória em favor do contratante inocente (que se dispôs a renegociar com lealdade) ou, na sua falta, à apuração judicial dessas perdas e danos. Conclusão Por tudo que se expôs, parece-nos que há razões objetivas para que as partes contratantes busquem a renegociação dos contratos afetados realmente pela pandemia e por suas medidas correlatas, sob pena de suportarem não apenas o esvaziamento útil do contrato mas, sobretudo, pelo risco palpável de sujeição a uma sentença que lhes imponham uma revisão não negociada ou sua responsabilização civil pelos danos decorrentes de uma conduta abusiva (art. 187, do Código Civil) na defesa de seu exclusivo interesse de crédito. *André Roberto de Souza Machado é advogado e professor de Direito Contratual, cofundador de SMGA Advogados e membro da Comissão de Negócios Imobiliários do IBRADIM. Doutorando em Direitos, Instituições e Negócios e Mestre em Direito das Relações Econômicas. __________ 1 Por todos, SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, 1ª.edição. Saraiva. 2 Excepcionalmente, o dever de renegociar pode aparecer como obrigação expressa no contrato, como por exemplo nos negócios que adotam a Teoria do Contrato Incompleto, como modo de gestão dos riscos. Sobre o tema, ver BANDEIRA, Paula Grecco. Teoria do Contrato Incompleto. Atlas editora, 2015. 3 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, 2ª. edição. Saraiva. 4 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 1ª. edição. Saraiva. 5 Nesse sentido, assinala Schreiber: "Parte da doutrina estrangeira que defende um dever de renegociação sustenta que tal dever deve ser encarado não como um dever em sentido estrito, mas como mero encargo (...). Nessa direção, sustenta-se que o dever de renegociação configuraria tão somente um ônus do contratante que pretende obter em juízo a revisão ou a resolução do contrato, competindo-lhe demonstrar, como uma espécie de condição de admissibilidade do pleito judicial, que já tentou razoavelmente obter, por negociação, uma revisão extrajudicial do contrato". (ob. Cit.) 6 REsp 758.518-PR.
Texto de autoria de Marcelo Barbaresco Na última semana, foi aprovado pelo Senado Federal, o projeto de lei 1.179/2020 que, através de seu artigo 11, amplia e, até 15 de outubro de 2020, os poderes de gestão do síndico nos condomínios edilícios. O ótimo seria descobrir o fundamento da data. No elenco desses poderes extraordinários, excepcionais, com prazo de duração limitado, se fez constar além da possibilidade de meramente restringir a utilização das áreas comuns do condomínio e, exatamente, por conta do covid-19, restringir ou proibir - percebam a elevação da ação para o proibir - a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros e, inclusive e, notadamente, nas áreas de propriedade privativa do condômino, isto é, em sua unidade autônoma, ou seja, em seu apartamento ou conjunto empresarial. As únicas exceções previstas e, desde logo autorizadas pela futura norma, isto é, não passíveis de restrição ou proibição pelo Síndico se limitam a apenas três circunstâncias, quais sejam: atendimento médico, benfeitorias necessárias e obras de natureza estrutural. Afora estas três singelas hipóteses, o Síndico poderia restringir ou proibir, reprise-se: mesmo que no interior da unidade autônoma, qualquer atividade. Em face desta proposta e, não desacreditando que grande parte dos Síndicos buscará, quando da futura definição da norma interna, conciliar os interesses de toda a coletividade condominial de forma que interesses conflitantes ao da sua vontade ou da maioria possam, também, ser atendidos de forma que a convivência com sossego e segurança desejada por aqueles que vivem e "Respiram e Aspiram suas Vidas" nos condomínios edilícios sejam alcançadas, a proposta encampada pela futura norma demanda muito cuidado. É sentido e sabido que o atual cenário brasileiro e mundial é sensível e que medidas variadas devem ser adotadas, especialmente, nas esferas da saúde, da cultura, da economia e do direito tudo de forma a tranquilizar e buscar fazer passar, com o menor drama possível, este momento da dramática história mundial. Entretanto, como nos encontramos em um estado democrático de direito, o direito também deve ser preservado. E preservar o direito significa dizer preservar além das instituições mas, também, os direitos fundamentais, dentre eles e, especialmente, para os fins do recorte deste artigo, o direito à saúde, à moradia e o de propriedade. Certamente que, entre a preservação do direito à saúde e a preservação do direito à propriedade, o primeiro deve prevalecer sobre o segundo. Não há duvida sobre isso. Todavia, para que se possa afetar, mesmo que minimamente, o direito à propriedade, devem existir razões e fundamentos comprováveis pela ciência médica aplicada que seria a única medida razoável a ser adotada. Afinal, sabemos e reconhecemos que, sem exceção, todos os direitos fundamentais devem ser preservados. E dentre eles, o direito à saúde, à moradia e à propriedade, repito. E preservar a propriedade significa dizer, inclusive, não impedir, de qualquer forma não autorizada constitucionalmente, que um condômino possa usar e gozar de sua coisa, isto é, de sua unidade autônoma, de seu apartamento ou de seu conjunto, em havendo medidas outras que possam ser por ele adotadas ou pelo condomínio em que residir ou trabalhar de forma a preservar a saúde por conta do covid-19. O impedimento, a restrição, a proibição deve constituir uma norma excepcional, admitida apenas em situações de exceção e de restrição constitucional de direitos; o que não é, definitivamente, a hipótese. Ilustrativamente, e de forma a trazer o que se disse para a realidade vivida e sentida, importa mencionar algumas medidas que, segundo notícias, são adotadas por Síndicos em condomínios edilícios e que podem ilustrar que a dose do remédio é excessiva e, portanto, pode ocasionar a falência da ordem e dos direitos, com a consequente elevação do número de ações judiciais. São elas: Síndico proibindo o regresso (i.e. a entrada) de condôminos ao condomínio ao retornarem de viagem, sob a alegação de que devem cumprir quarentena e poderão contagiar os demais; Síndico proibindo o ingresso de visitantes na unidade autônoma após determinado horário; Síndicos obrigando a tomada de temperatura corporal e, se acima de determinado grau, vedando o ingresso no condomínio; Síndicos impedindo a mera pintura de paredes dos apartamentos ou a substituição de pisos gravemente danificados e que impedem o residir com segurança e, com isso, impedindo o acesso à moradia; Síndicos impedindo a entrega de geladeiras, fogões e demais bens, sob o argumento do aumento de pessoas transitando pelo condomínio e, por fim, Síndicos impedindo que pessoas passem a residir no condomínio, sob a alegação de que a circulação das pessoas da transportadora ocasionarão a elevação do número de contato de pessoas estranhas aos próprios condôminos. Os exemplos poderiam preencher ainda mais espaço neste artigo mas, servem apenas para ilustrar o que a norma, como colocada, tende a incentivar. Assim, pergunta-se: qualquer uma dessas medidas é razoável? Estariam elas observando e conferindo sentido prático e efetivo ao fundamento da República Federativa do Brasil no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária conforme determina o artigo 3º. da Constituição do Brasil? Estariam estes Síndicos preocupados com consigo mesmo e com os demais e menos, muito menos, com a totalidade dos condôminos? A solidariedade residiria na circunstância de resguardar quais interesses? De todos, de vários, de alguns? Ela somente alcança sua máxima e desejável potência quando ampara a todos e não menos do que todos aqueles interesses e interessados. Neste sentido, o que o Síndico e as Administradoras devem pensar é no caminho mais longo, mais estratégico, menos trágico, menos traumático, menos custoso que consiste, simplesmente, no proibir; no restringir; no aniquilar, mesmo que temporariamente, direitos fundamentais. E assim deve ocorrer de maneira a ser realizada uma ponderação entre os princípios que, de um lado, perseveram pela inafastável saúde, de outro pela sagrada moradia e, por fim e também relevante, pela preservação da propriedade. Neste sentido, a regra proposta pelo projeto de lei acima mencionado, especificamente, em seu artigo 11, fere direitos individuais constitucionais e sem pedir licença prévia. Estabelece e, em nome da proteção à saúde, séria restrição ao uso da propriedade. Isso, como afirmado, na contramão de estabelecer regras de proteção aos moradores em equilíbrio de todos e dos usos possíveis sem que se comprometa - longe disso - a saúde. Percebe-se que, nas e para as áreas comuns - piscina, quadra, sala de leitura, salão de festa, auditórios, bibliotecas, dentre outras - o Síndico pode restringir. Mas, por sua vez, para as unidades autônomas, o Síndico também pode proibir. Seu poder é ampliado mesmo no sagrado lar. Qual a diferença deste tratamento? Sejam as áreas comuns e, como se sabe, o inviolável recinto em que se mora ou no qual se exerce atrabalho, diferentes em sua essência acerca dos aspectos que demandam cuidados? Certamente não. Os cuidados devem ser igualmente distribuídos por todas as partes da propriedade, seja ela privativa ou comum. Ademais, na letra da norma, se afirma que o Síndico pode proibir reuniões. Reuniões? O que seria isso? Mero encontro de entes da família, a exemplo de pais e filhos? Ou, então, em se tratando dos condomínios corporativos, uma reunião física com a participação de apenas duas pessoas? Dois amigos em situação de urgência - sob o prisma de sua subjetividade - e os porteiros proibindo o ingresso? Parece que se partiu de uma premissa, sempre necessária e inafastável, de um adensamento "reunicional" (Sic!) que pudesse e, por conta da aglomeração, causar dano por conta da também intransponível possibilidade de contágio. Se assim o fosse, o que seriam dos médicos que, na linha frontal de tratamento, usam os tão em falta mundialmente equipamentos de proteção individual? Portanto, não seria o caso de incentivar esta utilização nos condomínios edilícios e, não, simples e facilmente, proibir o uso e gozo da propriedade? Não seria mais equilibrado sob a ótica da solidariedade constitucionalmente insculpida como fundamento da República? O que se deve buscar, digo e repito a todo instante, é a conciliação de interesses e, não, medidas que pensem apenas em um dos lados. O autoritarismo não pode retornar; não deve prevalecer, mesmo que apenas pressuposto. Parece que se esta prestes a consolidar a morte ou, então, quando bem menos, a suspensão de direitos fundamentais em nome e por conta da medida pouco pensada e refletida, mesmo reconhecendo e desde já parabenizando o autor e revisora do projeto de lei 1.179/2020, uma vez que diversos outros dispositivos do projeto de lei são essenciais para o momento de transição e apara a segurança jurídica das relações (a exemplo, da suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais; da possibilidade da realização de assembleias remotas, dentre outros). Enfim, o que se deve impedir, ou melhor, não incentivar é a Ditadura do Síndico ou dos Conselhos ou Assembleias Gerais. E, em sendo aprovado este artigo e neste projeto de lei, lembremo-nos: se a proibição for para causar um bem maior por conta do desejo de apenas um ou da maioria, aquele que sofrer a restrição terá o direito de, uma vez comprovado o dano, dividir com os demais condôminos as perdas e danos que suportar. Pois, apenas assim, se estará efetivando um dos fundamentos constitucionais da República, ou seja, o da solidariedade. Pensar em resposta diversa, simplesmente, faria elevar o individualismo e o protecionismo exacerbados que, talvez, nos tenham conduzido a esta atual realidade. Pensemos, também, acerca do prazo de validade do regime excepcional, se aprovado, o que não se espera. Seria ele adequado? Seria pertinente restringir ou proibir o uso e gozo da propriedade mesmo que, como querem todas as forças e energias, ocorrer a superação da pandemia antes de outubro de 2020? Parece-me, novamente, que não. A regra do artigo 11 deveria adotar o critério legislativo da norma em branco e, em assim o sendo, ser preenchida sua lacuna em conformidade com as regras a serem publicadas em cada Estado da Federação ou, quando mais, por cada Município, especialmente, por tratar-se de norma de interesse local e, jamais, nacional, especialmente, em face das particularidades de cada pedaço de terra deste Brasil. Por fim, um lema: Proteger: sempre. Proibir: nunca. Equilíbrio: algo inafastável. E que se diga não a atos descabidos e despidos de fundamentação sob a ótica da ciência médica. *Marcelo Barbaresco é doutorando em Direito Comercial pela PUC/SP. Mestre em Direito Político e Econômico. Fundador e vice-presidente do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e presidente de sua Comissão de Shopping Centers. Advogado e professor na FGV Direito SP - FGV Law, no INSPER, na FAAP, assim como em outras instituições de ensino superior.
Texto de autoria de Luiz Augusto Haddad Figueiredo Leis, medidas provisórias, decretos, instruções normativas, resoluções, provimentos, portarias, dentre outros, muitos são os instrumentos jurídicos que têm sido adotados como suporte ao combate à disseminação do coronavírus e com a intenção de atenuar os reflexos danosos daí advindos para a economia e a sociedade em geral. A pandemia de covid-19 tem levado à imposição de medidas de isolamento social e quarentena mundo afora, as quais acabam por impactar, consideravelmente, as atividades e o cotidiano de empresas, pessoas e instituições em geral. No Estado e cidade de São Paulo, por exemplo, foram editados pelo governador e pelo prefeito, respectivamente, o decreto 64.881, em 22/3/2020, e o 59.298, em 23/3/2020, com o propósito de restringir, temporariamente, o acesso presencial de público a estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, excetuados aqueles voltados a atividades definidas como essenciais. Igualmente, por autorização das autoridades judiciárias competentes, os serviços notariais e de registro tiveram seu funcionamento afetado mediante suspensão ou redução de atendimento presencial, implantação de regime de plantão, prática de atos por meio virtual ou remotamente (telefone, e-mail, WhatsApp, Centrais Eletrônicas etc.), rodízio de funcionários e suspensão de alguns prazos. Durante o plantão, o tráfego de documentos físicos é admitido através dos Correios ou mensageiros, desde que mantido o devido controle de recebimento e devolução. Em caso de atendimento presencial, uma série de medidas de prevenção à infecção devem ser observadas. É possível, ainda, a transmissão eletrônica de títulos e documentos nato-digitais e daqueles digitalizados com observância dos padrões técnicos, inclusive nos moldes do decreto Federal 10.278/2020 (ressalvada eventual exigência quanto à posterior apresentação do original). Salvo algum tratamento particular decorrente da competência normativa das Corregedorias locais, estas são as diretrizes gerais constantes dos Provimentos 91/2020 e 94/2020 expedidos pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão integrante do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), assim como, em território paulista, dos Provimentos 07 e 08 de 2020 oriundos da Corregedoria Geral de Justiça, órgão responsável no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado1. As novas regras, cuja vigência é temporária e vinculada à situação emergencial de saúde, atingem, sobretudo, os usuários das Serventias Extrajudiciais, especialmente no que diz respeito aos prazos para a prática dos atos cartoriais. Tanto é que as normas editadas versam sobre o assunto (ex.): No âmbito da CGJ/TJSP, previu-se, inicialmente, a contagem em dobro (com pontuais exceções) para prazos "de validade do protocolo, de qualificação e de prática dos atos notariais e de registro" (art. 2º do Prov. CG 07/2020) e, em seguida, estipulou-se que os prazos relativos a atos de notas e registro não terão curso "durante o período de suspensão do expediente" (art. 2º do Prov. CG 08/2020). Neste contexto, uma importante questão se coloca: Como fica o andamento dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, previstos expressamente nos arts. 33 e 34 da lei 4.591/1964 (combinado com o art. 12 da lei 4.864/1965)? O poder-dever normativo do Poder Judiciário acerca da fiscalização, organização e disciplina dos serviços delegados de cartório encontra amparo nos arts. 103-B, § 4º, III, e 236, § 1º, da Constituição Federal, mas está limitado aos contornos estabelecidos por lei. Isto significa que, como normas administrativas infralegais, estas podem buscar aperfeiçoar o sistema, harmonizar procedimentos e conferir a melhor interpretação à legislação, a fim de proporcionarem eficiência e segurança jurídica na prestação dos serviços aos usuários. Na dicção do inciso XIV do art. 30 da lei 8.935/1994, os notários e oficiais de registro devem observar as normas técnicas fixadas pela autoridade judicial competente. Portanto, as regras contidas nos aludidos Provimentos não podem contrariar, modificar ou inovar a lei, ou seja, não poderiam, em princípio, dilatar os referidos prazos da Lei de Incorporações Imobiliárias. Ocorre que, na prática, o regular cumprimento de prazos, notadamente quanto a exigências formuladas em notas devolutivas, resta prejudicado por circunstâncias de força maior, como reconhecido nos Provimentos 91 e 94 da CNJ (arts. 2º e 11, § 2º, respectivamente). Note-se que o citado Prov. 91 menciona suspensão de "prazos legais dos atos submetidos ao notário, registrador ou responsável interino pelo expediente". Ainda que se possa argumentar que o prazo da lei suspenso está circunscrito a ato a ser realizado pelo delegatário, o fato é que o prazo referente a ato de incumbência do usuário também foi atingido indiretamente (a validade do protocolo e o período para qualificar refletem no tempo para cumprir exigências) ou, até, de modo direto, como deixa transparecer o parágrafo único do art. 2º do Prov. CG 07/2020, ao elencar as hipóteses não sujeitas a prorrogação de lapso temporal. Mesmo assim, seria arriscado concluir que houve extensão do prazo de validade do registro de incorporação já efetuado. No entanto, a revalidação do registro, legalmente admitida, pode ser impactada pela nova normatização, de maneira a ampliar o prazo total de validade ora examinado, o que, em tese, poderia repercutir no prazo de carência concedido ao incorporador para desistir do empreendimento, a depender das condições estipuladas no memorial de incorporação (art. 34, § 2º, da lei 4.591/1964). Isto é, o prazo de carência, normalmente, acompanha o prazo de validade (ou revalidado) do registro da incorporação, como já decidido em processo de dúvida registral apreciada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul2. Eis aí outra relevante questão: As normas administrativas poderiam definir a forma de contagem dos prazos no campo registral? Em relação ao prazo de carência propriamente dito, cuida-se de mecanismo destinado a mitigar os riscos quanto à inviabilidade econômico-financeira do empreendimento (o futuro insucesso e os prejuízos daí derivados), sendo útil a todas as partes envolvidas no negócio: incorporador, construtor, adquirentes, terrenistas e agentes financiadores. Neste período de carência, a rigor improrrogável (§ 6º do art. 34 da lei 4.591/1964), é lícito ao incorporador desistir de levar adiante a incorporação quando presentes certas condições, desde que assim declarado e regulado no memorial arquivado junto ao Registro de Imóveis. Em tal hipótese e sob as penas da lei, após denunciada e averbada a desistência, deverão ser restituídas aos pretendentes à aquisição de unidades as quantias por estes desembolsadas. Contudo, no atual momento, vale lembrar apenas a título exemplificativo, os Decretos municipal e estadual de São Paulo impedem a abertura de estandes de vendas ao público, como divulgado por entidades empresariais do setor imobiliário (Abrainc e Secovi-SP)3. Esta e outras restrições, acrescidas aos demais percalços socioeconômicos resultantes do estado de calamidade pública, alteram a velocidade de venda dos imóveis, a despeito de haver outros canais de oferta disponíveis (internet etc.). É o que sinaliza, inclusive, recente pesquisa apurada entre empreendedores dos setores imobiliário e turístico (Adit Brasil e Grupo Prospecta)4. Ora, se a lógica de existir um prazo de carência é justamente ter a chance de mensurar, com enfoque especial, a adesão à comercialização das unidades integrantes de um empreendimento, resta evidente que o alcance desta finalidade sofrerá distorções diante da nova realidade surgida. Além disso, há outros aspectos que podem afetar, notadamente num cenário de pandemia, a análise de viabilidade de uma construção em sua fase inicial: escassez ou aumento excessivo dos custos de material e mão de obra, conjuntura econômica, interferências no ritmo das obras, disponibilidade de equipamento e maquinário etc. Estas circunstâncias fáticas indicam que a natural fluência do prazo de carência, no contexto ora vivido, pode acabar por frustrar a utilidade deste mecanismo legal de proteção ao mercado. Assim, sem prejuízo das ponderações já suscitadas a respeito da dilação de prazos na esfera correicional, seria apropriado (e juridicamente mais seguro) a edição de medida provisória destinada a permitir a temporária suspensão dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, dando adequado tratamento a uma situação igualmente atingida pelas negativas consequências provocadas pela crise atual. Cuida-se de providência coerente com tantas outras já adotadas, tais como: a). a Resolução 152/2020 do Comitê Gestor do Simples Nacional, que estipula novas datas para pagamento de tributos federais no âmbito daquele regime; b). a Portaria Conjunta RFB/PGFN 555/2020, que prorroga a validade de certidões negativas e positivas com efeitos de negativas de débitos; e c). a MP 927/2020, que diferiu o recolhimento de FGTS, facultando o pagamento parcelado livre de encargos. Isso permitiria, a um só tempo e com segurança jurídica, o desenvolvimento racional de uma atividade tão importante para a sociedade (moradias, empregos, tributos etc.), com a adequada proteção aos adquirentes de imóveis, preservando, enfim, a saúde do mercado imobiliário. Luiz Augusto Haddad Figueiredo é mestre em Direito pela PUC/SP. Membro do IBRADIM. Advogado e sócio do escritório Tavares, Haddad e Vanetti Advogados Associados. __________ 1 Disponíveis, respectivamente, aqui e aqui. Acesso em 30/3/2020. 2 "REGISTRO DE IMÓVEIS. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. PEDIDO DE REVALIDAÇÃO DE REGISTRO DE INCORPORAÇÃO E PRAZO DE CARÊNCIA. Inexistindo vedação legal, é legítimo o interesse do incorporador em cancelar a incorporação. Ao revés, a própria lei de regência (Lei n º 4.591/64, artigos 32, alínea 'n', 33, 34 e seus parágrafos e art. 36), autoriza a revalidação do prazo de registro do empreendimento. Diante do caso concreto, revela-se viável a revalidação do prazo de registro da incorporação, bem como de prorrogação do prazo de carência, pois, na espécie, a incorporação se concretiza ou se efetiva quando: 1) vencido o prazo de carência, sem denúncia da incorporação ou pedido de prorrogação; 2) as condições de mercado resultarem na comercialização de um número mínimo razoável de unidades autônomas a sustentar o custo inicial do empreendimento, bem como sinalizar o sucesso de sua integral realização. DÚVIDA JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME." (TJRS, 18ª Câm. Cível, Apel. 70014283279, rel. Des. Mario Rocha Lopes Filho, j. 24.8.2006). 3 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020. 4 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020.
Texto de autoria de Jaques Bushatsky O planeta quase totalmente paralisado pela pandemia, é indiscutível a repercussão nas relações jurídicas, mostrando-se de fácil identificação os prejuízos resultantes. O cenário sensibilizou o parlamento, vindo o oportuno projeto de lei 1179/20, do senador Antonio Anastasia, prontamente relatado pela senadora Simone Tebet. Foram trabalhos exigidos pelo momento (se não agora, quando? Era a pergunta do sábio Hilel, dois mil anos atrás), parecendo em geral bem recebidos pela sociedade e pela crítica jurídica, sendo somente pontuais as ideias levantadas para o aperfeiçoamento da legislação de emergência. No que diz com as locações imobiliárias urbanas, o relatório suprimiu o original artigo 10 e, ao artigo 9º foi proposta a seguinte redação: "Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020"1. Passou a ser permitida a liminar, por conseguinte, nas situações que o art. 59, da lei 8.245/91 contemplou nos seus incisos III (pertinente à desocupação do imóvel alugado por temporada), IV (situações de invasão do imóvel quando falecido o locatário), VI (necessidade de reparações urgentes no imóvel). A manutenção da possibilidade de suspensão quanto às demais hipóteses há de ter decorrido do balanceamento que foi possível tentar entre o exercício do direito e o dano decorrente da sua postergação, a justificar que se mantivessem - nessa lógica - as previsões do Projeto original do senador Anastasia. Entretanto, é exatamente diante do necessário balanceamento das vantagens e desvantagens da regra nova que cabe ponderar que seria de todo conveniente manter a possibilidade de liminar para a hipótese prevista no inciso IX do art. 58, da Lei das Locações: "- a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo". As razões são extremamente relevantes, mas passíveis de breve síntese. Por primeiro deve ser recordado que a introdução dessa possibilidade ocorreu há 11 anos, através da lei 12.112, de 9/12/2009 que resultou de projeto aprovado à unanimidade pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, a demonstrar o acerto técnico da alteração legislativa então realizada; por segundo, foi inovação que se mostrou extremamente justa aos olhos do Poder competente: o Judiciário, que logo disseminou a utilização dessa consequência imediata do inadimplemento, certamente devido à terceira e maior razão: a sociedade prestigiou crescentemente a nova relação de confiança entre os contratantes, sem a participação de garantidores. Em suma, a supressão dessa liminar mais que abalar direito do credor locador, traria dano ao próprio sistema legal das locações urbanas. Sim, o enorme avanço experimentado - graças à conjunção de legalidade, acolhimento pelo Judiciário e disseminação entre os interessados - serviu de laboratório, até, a quantos pensassem em legislações voltadas a outros setores da vida, pois foi restaurada a confiança, restabelecido o império da boa-fé - a guardar-se não somente na celebração, mas igualmente na execução do contrato, como querem Código Civil e os esperados costumes. Outra não foi a conclusão popular: para que fiadores, seguros, cauções e demais constrangimentos ou custos, se bastava o apalavrar, garantido pela certeza de que o rompimento da promessa teria consequência imediata e suficiente? Parece evidente que a liminar ora cuidada, sob o aspecto conceitual, sob o prisma da oportunidade e sob a visão da adequação e aceitação, se inseriu magnificamente na Lei de Locações, diploma que na sua integralidade vem se prestando muito bem à defesa não do locador ou do locatário, mas das locações propriamente ditas e da paridade contratual; a lei permitiu a substancial redução de ações judiciais; passou a existir - algo impensável há 30 anos - segurança em investir na construção de imóveis para locação - aí estão tantos novos prédios esteados em contratos de locação. Pois bem e respeitados os parâmetros que a urgência impõe (a lei de emergência virá em prazo curtíssimo): essa aceitação pela Sociedade e cuja supressão apenaria os que acreditaram na lei (ao passo que aqueles incrédulos, que preferiram não confiar na lei e insistiram na obtenção de garantias do locatário, findariam confortados), esse grandioso passo com inequívoco espraiamento social, esse avanço do modo de contratar em direção à modernidade e à agilidade não podem ser enfraquecidos. É quanto em síntese indica a necessidade de incluir-se dentre as possibilidades de concessão de liminar, a situação do inciso IX, do art. 59 da Lei das Locações, prestigiando-se a locação celebrada com base única na boa lei e na confiança de que os contratantes agirão com boa-fé. Afinal, se não preservarmos agora a boa-fé e o sistema tão bem construído, deixaremos isso para quando? *Jaques Bushatsky é advogado, coordenador da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM. __________ 1 redação do PLS: "9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59 da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (locações de imóveis urbanos), até 31 de dezembro de 2020".
Texto de autoria de Olivar Vitale O presente trabalho tem como objetivo analisar legislação, doutrina, tanto brasileira quanto italiana, e um pouco de jurisprudência, a respeito da onerosidade excessiva e a possibilidade de revisão contratual (modificação quantitativa), em especial por razão da Covid-19. Introdução Desde meados de fevereiro, começo do mês de março de 2020, estamos vivendo momento único no mundo. Inúmeros países, por seus governos, estão determinando o isolamento social, também chamado de lockdown. Com isso, as ruas estão vazias, os comércios e shopping centers em geral estão fechados, algumas fábricas com operação suspensa e a população trancafiada em suas residências. A imprevisibilidade do que se está vivendo parece óbvia. Soubessem os cidadãos da situação que passaríamos, decerto diversas relações jurídicas não seriam entabuladas. Se entabuladas, provavelmente preveriam a atual situação e as consequências diversas a cada contrato. Mas a questão principal é: diante desse evento imprevisível, que direitos e deveres remanescem às partes contratantes? Nas contratações pecuniárias, permanece a obrigação do devedor efetuar o pagamento? Pode o devedor requerer a resolução do contrato ou a sua revisão? É direito do credor simplesmente não aceitar a resolução? E a revisão? Alguns disclosures são importantes antes de adentrar na argumentação em si. O presente artigo não persegue a questão da força maior e do caso fortuito, delimitados no artigo 393 do Código Civil. A lei é clara ao determinar em mencionado dispositivo que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes da força maior ou do caso fortuito, a não ser que tenha se responsabilizado expressamente por eles. Entretanto, nada trata em relação à avença em si, às obrigações contraídas, sua conservação, revisão ou até mesmo resolução, motivo pelo qual o tema força maior/caso fortuito não foi encaixado nesse estudo. Além disso, fundamental registrar que as relações objetivas nesse arrazoado, apesar de serem de direito privado, propositadamente não englobam relações consumeristas, eis que o específico novel, em seu artigo 6º, assegura expressamente ao consumidor, ora devedor, o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão por motivo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (teoria da base objetiva do negócio jurídico). Pois bem. Com menos de um mês da declaração da Pandemia, pululam inúmeros artigos jurídicos a respeito das consequências da covid-19. A maioria deles recomendando a serenidade e negociação entre as partes. A razão da elaboração desse artigo, entretanto, é focar na questão das posições de devedor e credor diante da inusitada situação imprevista, especialmente à luz da legislação civilista em vigor e, ultrapassada sem sucesso toda a senda conciliatória, a alternativa, ou não, de resolução ou revisão do contrato entabulado. 1. Dos princípios do Código Civil Antes mesmo de adentrar na questão em si, fundamental à conclusão do raciocínio pontuar os princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, mais precisamente o Código Civil. Diante de inusitada situação vivida com a Pandemia Covid-19, o que se espera das partes envolvidas, em quaisquer situações jurídicas ora postas em prova, é a aplicação dos princípios que norteiam a relação em sociedade em nosso país. São eles, principalmente, boa-fé objetiva1, conservação dos contratos2, função social do contrato3 e equilíbrio econômico. O princípio da boa-fé objetiva, como bem pontuado por Judith Martins-Costa, é regra de conduta que pauta a atuação das partes quando da aplicação ou renegociação das cláusulas de acomodação do contrato às circunstâncias, sendo incidente ao exercício jurídico4. Já o princípio da conservação dos contratos trata da busca pela conservação, tanto do legislador quanto do intérprete, do negócio jurídico realizado pelos agentes5. Ainda, o princípio da função social do contrato, nas palavras de Maria Helena Diniz, "não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana". Ou seja, resumindo em apertada síntese, limita a autonomia contratual no que toca à dignidade da pessoa humana. Ao se falar em contrato firmado, cujos efeitos estão abalados pelo momento de Pandemia, não se cogita o não atendimento à sua função, especialmente considerado o equilíbrio no momento de sua celebração. Por fim, o princípio do equilíbrio econômico, na opinião do mesmo Junqueira de Azevedo, é um "princípio interpretativo", eis que leva em conta os institutos da lesão6 e onerosidade excessiva, ambos, esses sim, previstos expressamente em nosso ordenamento civil. A mesma Judith Martins-Costa ensina que o princípio do equilíbrio econômico é deduzido de um conjunto de regras e de institutos contidos no Código Civil, parecendo incontroverso estarem o seu sentido e os seus limites orientados por aquelas mesmas regras e institutos. Explanado cada um deles, importante pontuar que o real motivo de iniciar esse artigo pelos princípios diz respeito à importância do entendimento de que são importantíssimos à interpretação legal mas, principalmente, para nortear a conduta das partes, do legislador e do Judiciário, mormente em situações singulares como a presente, da covid-19. Não têm aludidos princípios, entretanto, o condão de se sobrepor a regras específicas do mesmo Código Civil, norma legal do qual os próprios exsurgem. Isto é, ao tratarmos adiante dos artigos 478 e 479 do Código Civil, tais princípios decerto a esses artigos não se sobrepõem, e nem poderiam, como também não ocorre em outras inúmeras situações específicas previstas no mesmo Código Civil. Não se nega que nesse momento, de desequilíbrio em todos os sentidos, fundamental a aplicação dos princípios acima. Tanto pelas partes quanto pelo intérprete da lei ao acomodar a vontade das partes. Por assim dizer, em necessária negociação para reanálise de alguma contratação, sem dúvida cabe às partes conduta a respeitar a boa-fé objetiva, buscando a melhor acomodação das condições do contrato à nova realidade. O mesmo se argumenta no tocante ao almejado reequilíbrio econômico da situação jurídica, visando sempre à conservação da avença, mantendo-se assim, inclusive, a função social do contrato. 2. Da onerosidade excessiva. Resolução e/ou Revisão (modificação equitativa) Como operadores do Direito, nessa esteira, sem dúvida nos cabe a orientação para as partes agirem conforme os ditames acima elencados, explanados e legalmente previstos. Certamente no mais das vezes isso evitará a indesejada resistência de pretensão do devedor, ora alegadamente incapaz de cumprir o quanto pactuado, em razão do Covid-19 e suas consequências. Mas nem sempre o desejado é alcançado. E por corolário demandas judiciais serão propostas tendo como motivação a covid-19 e como matéria de fundo o desejo do devedor em romper a sua obrigação ou, ao menos, torná-la menos onerosa. Para tanto, fundamental o estudo do ordenamento jurídico, de maneira a tentar elucidar o que há de direito e dever de cada uma das partes em momento inusual como o presente. Pois bem. Prevê o artigo 478 do Código Civil que "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação". Por sua vez, e na sequência, eis a dicção do artigo 479 do mesmo códex: "a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato". Que o Covid-19 é acontecimento extraordinário e imprevisível parece não restar dúvida, conforme anteriormente argumentado. Cabe à parte devedora, portanto, na atual existência de Pandemia, comprovar que a sua continuada ou diferida prestação se tornou excessivamente onerosa na situação jurídica entabulada, e ao menos ligeiramente demonstrar inovada e considerável vantagem para a outra. Nesse caso, se assim comprovado, poderá o devedor pleitear a resolução do contrato, eximindo-se da obrigação. A dúvida que remanesce é se o devedor poderia requerer a revisão contratual, em vez de sua resolução. Muito argumentam que sim. Como se verá, até mesmo parte da jurisprudência pátria. E mais do que isso. Alguns se apoiam nos princípios civilistas acima delineados, como se todo um sistema de direito civil fosse regrado por princípios a se sobrepor às regras específicas contidas na mesma norma. Razão não lhes assiste, por mais que venha ganhando corpo essa malfadada corrente. E isso porque o regramento legal é cristalino e tem a sua razão de ser. As partes apresentam as suas condições e então contratam. Cada qual só aceita se amarrar à avença porquanto atendidas aquelas suas debatidas e negociadas condições. Um evento imprevisível e extraordinário surge e ameaça tudo quanto ajustado pelas partes. O legislador brasileiro, bebendo da fonte do ordenamento jurídico italiano que também assim regra a matéria, bem previu que desde que comprovado o imprevisto e demonstrada a onerosidade excessiva ao devedor, e a vantagem do credor, pode o primeiro se eximir da obrigação, rompendo o quanto contratado. Por outro lado, o mesmo legislador, visando conservar o contrato, empoderou o credor, permitindo que esse oferte a revisão da avença, por meio da modificação equitativa de sua prestação. Diferente não poderia ser. Facultasse ao devedor requerer judicialmente a revisão do contrato por onerosidade excessiva, e não apenas a sua resolução, teria o legislador imputado ao credor o dever de aceitar condições contratuais que talvez jamais aceitasse no momento da contratação, impondo a ele ônus econômico por vontade alheia, sem o seu consentimento7. Isso é fundamental eis que respeita toda uma base equilibrada entre essas partes, conferindo a exclusividade da força da revisão a quem optaria por manter o quanto contratado mas, por razões alheias à sua vontade, é obrigado a decidir entre aceitar a resolução ou, minorando a sua perda, oferecer a revisão. A pergunta ainda latente é se seria justo impor ao devedor que a avença seja mantida, mesmo tendo esse requerido a sua resolução, caso o credor se valha do artigo 479 do Código Civil. E nesse caso a resposta é positiva. Trata-se de direito potestativo do credor. Note-se que, de uma forma ou outra, a obrigação do devedor será menos gravosa que aquela contratada originalmente, motivo pelo qual há presunção segura de que algum benefício ele terá. Além disso, a lei é clara ao definir que a modificação há que ser equitativa, isto é, o Juízo instado a decidir a respeito da lide deverá, para a fixação da nova prestação contida na avença mantida, fazê-lo com equidade, ou seja, visando ao restabelecimento do devido equilíbrio contratual. Importante pontuar que essa sistemática do Código Civil brasileiro segue a legislação italiana, e a doutrina majoritária por lá, que, no mesmo sentido, confere ao devedor o direito de pedir a resolução do contrato em situação não prevista, mas apenas ao credor pleitear a sua revisão. Ainda, haverá quem defenda a possibilidade da revisão do contrato pelo devedor, valendo-se de regra geral do artigo 317 do mesmo Código Civil. Ledo engano, conforme ora se explica. O artigo 317 do Código Civil prevê que "quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação". Primeiramente, está aqui a tratar única e exclusivamente de montante específico previsto em prestação, ou seja, pecúnia. No mais, como se depreende inclusive do inicial projeto de lei convertido em lei, no caso o nosso Código Civil, com todas as alterações que geraram o texto final, estar-se-á tratando única e exclusivamente da aplicação da correção monetária, tão importante em um país que sucedeu diversos planos econômicos, com intervenções governamentais, que geraram o desequilíbrio contratual a ser restabelecido. Não menos importante é o fato do artigo 317 aparecer no capítulo "do objeto do pagamento e sua prova" e do artigo 315 do mesmo códex, logo anterior ao 317, prever que "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes" (grifamos). A jurisprudência pátria, no que diz respeito à onerosidade excessiva, é praticamente uníssona no sentido de que os requisitos são "contrato de execução continuada ou diferida, vantagem extrema de outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor"8. Evocando a título exemplificativo a única jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema encontrada em favor da possibilidade de revisão contratual pelo devedor em caso de onerosidade excessiva, em que há um perigoso e a nosso ver equivocado mix dos artigos 478 e 479, com o 317, todos do Código Civil, a ministra Nancy Andrighi mescla os institutos aqui mencionados, inclusive o Código de Defesa do Consumidor em relação não consumerista, o que resulta em grande confusão, decidindo que "não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02, entendo ser possível aplicar o instituto também na mesma direção indicada pelo CDC - e respeitados, obviamente, os requisitos específicos estipulados na Lei civil - especialmente pela necessidade de se dar valor ao princípio da conservação dos negócios jurídicos que foi expressamente adotado em diversos outros dispositivos do CC/02... É de ser citado, ainda, o art. 317 do mesmo Código, que guarda maiores proporções com o tema aqui versado..." Tudo para, a final, por razões alheias ao aqui estudado, decidir pela "não ocorrência da onerosidade excessiva, faltando à pretensão a verificação da circunstância fática exigida pelo art. 478 do CC/02"9. Essa fundamentação acima esposada, que nem sequer resultou na revisão do contrato pelo devedor, por razões outras, não é recente (2009) e, ao menos pelo que estudamos, é isolada. Mantem-se, portanto e entretanto, o regramento cristalino legal de que o pedido do devedor em caso de onerosidade excessiva há que ser tão somente o da resolução do contrato, sob pena de impor ao credor a aceitação de prestação necessariamente inferior à ajustada por sua vontade originariamente, sem que concorra para tanto, o que é não admitido em nosso ordenamento civil. Como se vê, por mais que parte da doutrina10 e da jurisprudência tente fazer do artigo 317 uma extensão da interpretação dos artigos 478 e 479, todos do Código Civil, por vezes inclusive invocando os princípios gerais contidos no Código Civil, fato é que o artigo 317 nada tem que ver com modificação equitativa, tal qual previsto no artigo 479, tratando somente da eventual intervenção judicial para aplicação de correção monetária à obrigação pecuniária, nada além disso. 3. Conclusão O legislador brasileiro prevê socorro ao devedor que, diante de fator extraordinário e imprevisto como o Covid-19, esteja diante de ônus excessivo no cumprimento das obrigações previstas em contrato entabulado, desde que demonstre ainda a surgida vantagem ao credor. Esse socorro, entretanto, é o de se eximir da obrigação, não o de rever as condições do negócio, à revelia do credor em que momento algum buscou se furtar do quanto pactuou. Por fim, pode ainda o credor, esse sim já ciente de que as bases contratuais não serão mantidas por manifestação do devedor, pleitear a conservação do contrato, propondo uma modificação equitativa, a qual, uma vez não prontamente aceita pelo devedor, o que se espera tendo em vista que a pretensão foi judicializada, será devidamente apurada e decidida pelo julgador, obrigando as partes a cumprir a nova condição. *Olivar Vitale é advogado, sócio fundador do VBD Advogados. Presidente do IBRADIM. Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo. Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP. Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC.  Professor e coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da especialização/MBA da POLI-USP, professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino. __________ 1 Código Civil, Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 2 Código Civil, Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada, Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante, Art. 157, § 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito e Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade. 3 Código Civil, Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 4 Martins-Costa, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, Marcial Pons, 2015, p. 607 5 Junqueira de Azevedo, Antonio. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição, Saraiva, SP, 2010. p. 66 6 Código Civil, Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. 7 Marino, Francisco Paulo de Crescenzo, Revisão Contratual, Ed Almedina, fev/2020, p. 73 8 Resp nº 1.034.702/ES, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 05.05.2008 9 STJ, Resp 977.007, GO, negado provimento, V.U., 24 de novembro de 2009. 10 Dinis, Maria Helena, Código Civil Anotado, Ed. Saraiva, 14ª edição, São Paulo, 2009, p. 398.
Texto de autoria de Alexandre Junqueira Gomide e Kleber Zanchim O covid-19 está induzindo a elaboração de diversas propostas legislativas em variados campos, do societário ao tributário, passando por contratos em geral e por tipos contratuais em especial. Entre estes está a locação de imóveis urbanos. O projeto de lei 1.179/20, de relatoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG) (clique aqui), traz dispositivos sobre o que podemos intitular "moratória locatícia". A versão inicial propõe, no art. 10, a possibilidade de pagamento parcial do aluguel na locação residencial ou até mesmo a suspensão total de 20 de março de 2020 até o final de outubro de 2020. Sem entrar no mérito da proposta em si do ponto de vista político ou socioeconômico, é preciso cuidado para criar soluções jurídicas com o mínimo de subjetividade possível e que não favoreçam comportamentos oportunistas. Nossas contribuições a referido Projeto de Lei, encaminhadas ontem, foram nesse sentido. Em primeiro lugar, privilegiam a livre negociação entre locador e locatário, não tornando mandatória a aplicação de qualquer desconto. Sugerimos que a nova norma preveja direito de o locatário fazer proposta de renegociação ao locador referente a aluguéis vencidos a partir de 20 de março de 2020 e vincendos até 30 de outubro de 2020. Para tanto, os locatários precisam evidenciar que sofreram impacto econômico-financeiro resultante de dispensa de emprego, diminuição de remuneração, impossibilidade de exercício de atividade comercial ou, ainda, queda abrupta de sua receita. A proposta de renegociação precisa ser escrita, justificada e tem de ser apresentada até 15 (quinze) dias da entrada em vigor da nova lei. Se não houver acordo em contrário, o locador tem 10 (dez) dias para, de forma fundamentada, responder à proposta. Caso apresente contraproposta, o locatário tem mais 10 (dez) dias para responder, também fundamentadamente. Não havendo acordo, o locatário poderá, observados os requisitos elencados supra sobre sua condição econômico-financeira, deixar de pagar até 30% (trinta por cento) do valor dos aluguéis vencidos e vincendos. Se o fizer, a partir de 1º de novembro de 2020 ficará obrigado a pagar, em até seis parcelas mensais consecutivas, o valor então abatido, corrigido pelo índice previsto no contrato. Com esse desenho, há prazos predefinidos e consequências já estabelecidas para a "moratória locatícia". O locatário ganha um "fôlego" nos meses mais difíceis e o locador pode se programar tendo em vista um recebimento futuro, o que equilibra a relação. É importante reforçar que, independentemente de qualquer movimento legislativo, o mais recomendável aos contratantes é estarem abertos a negociar pautados na boa-fé. Também reputamos necessário ajuste na proibição contida no Projeto de Lei para toda e qualquer liminar de despejo em contratos de locação de imóveis urbanos. A depender do fundamento do despejo (necessidade de realização de obras urgentes, inadimplemento anterior ao Covid-19, descumprimento de outras obrigações), não se pode negar ao locador, ao menos, pleitear o seu direito. Estamos certos de que, em tempos de crise, o despejo deve ser medida excepcionalíssima. Ainda assim, não se pode simplesmente desautorizá-lo por completo. No mais, também realizamos sugestões referentes ao direito de arrependimento nos contratos de consumo e, ainda, à ampliação dos poderes conferidos aos síndicos, no âmbito dos condomínios edilícios. Abaixo a íntegra de nossas propostas: CAPÍTULO V - DAS RELAÇÕES DE CONSUMO Art. 8º: Até 30 de outubro de 2.020, os fornecedores poderão celebrar a venda de produtos ou serviços por entrega domiciliar sem conferir o direito de arrependimento aos consumidores (art. 49), desde que haja renúncia prévia do consumidor. JUSTIFICATIVA: O direito de arrependimento é uma das principais proteções contratuais conferidas aos consumidores. A pandemia do COVID-19 certamente limita os transportes e a produção, de modo que o exercício do direito de arrependimento pode trazer prejuízos aos fornecedores. Assim, com renúncia prévia dos consumidores, os fornecedores poderão restringir o exercício de tal direito potestativo. Isso fará que os consumidores, cientes previamente da limitação da proteção, tenham maior cautela nas compras a serem realizadas. Alguns consumidores, por outro lado, cientes da limitação da proteção contratual, poderão restringir suas compras apenas a produtos essenciais, deixando para momento mais oportuno a aquisição de bens ou serviços não essenciais. Consigne-se, ainda, que em tempos de isolamento domiciliar, os consumidores estão mais sujeitos às aquisições pela internet, razão pela qual o direito de arrependimento não pode ser pura e simplesmente ignorado. CAPÍTULO VI - DAS LOCAÇÕES OU CESSÕES DE IMÓVEIS URBANOS Art. 9º: Não se concederá liminar, por falta de pagamento, para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, inciso IX, da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, nem para reintegração de posse de imóveis objeto de cessão onerosa, nos termos dos artigos 560 e seguintes do Código de Processo Civil, até 31 de dezembro de 2.020. § 1º O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2.020 que envolvam falta de pagamento pelo locatário ou cessionário a partir daquela data. Art. 10. Os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, comprovadamente decorrente de demissão ou diminuição de remuneração, poderão propor ao locador a renegociação dos alugueis vencidos a partir de 20 de março de 2020 e vincendos até 30 de outubro de 2.020. § 1º A proposta de renegociação referida no caput pode ser apresentada por locatários ou cessionários de imóveis comerciais que comprovarem a impossibilidade de exercício de sua atividade comercial ou, ainda, a queda abrupta de sua receita. § 2º A proposta de renegociação dos alugueis deve ser manifestada por escrito pelo locatário ou cessionário até 15 (quinze) dias da entrada em vigor desta lei. § 3º Salvo acordo em contrário, o locador terá 10 (dez) dias para responder, de forma fundamentada, à proposta do locatário ou cessionário. Se houver contraproposta do locador, o locatário ou cessionário terá 10 (dez) dias para, também de forma fundamentada, responder. § 4º Não havendo acordo, o locatário ou cessionário poderá, observados o caput e o §1º deste artigo, deixar de pagar até 30% (trinta por cento) do valor dos aluguéis vencidos e vincendos. § 5º Na hipótese do §4º, a partir de 1 º de novembro de 2020 o locatário fica obrigado a pagar, em até seis parcelas mensais consecutivas, o valor até então abatido dos alugueis, corrigido pelo índice de correção previsto no contrato. JUSTIFICATIVA: A Lei do Inquilinato confere a possibilidade de despejo por diversas hipóteses, dentre elas descumprimento do contrato, término da locação por temporada, necessidade de se produzir reparos urgentes, dentre outros fundamentos. A COVID-19 traz prejuízos aos inquilinos, sobretudo no poder de pagamento dos alugueres (sobretudo nas locações comerciais). Contudo, impedir o despejo para as demais hipóteses parece-nos demasiadamente prejudicial aos locadores. Além disso, não se mostra razoável permitir a mora de inadimplemento de alugueres antes da pandemia. Da mesma forma, não nos parece razoável permitir a mora dos alugueres residenciais em qualquer hipótese, sem que haja comprovada redução da capacidade de pagamento do locatário. Na hipótese de comprovada alteração econômico-financeira, deve surgir ao inquilino a possibilidade de renegociar os valores. A renegociação, cremos, poderá esvaziar as pretensões judiciais, permitindo às partes firmarem acordos extrajudiciais. Inexistindo êxito na renegociação dos valores, nasce outro direito potestativo aos inquilinos, qual seja, reduzirem o valor do aluguel mensal em até 30% (trina por cento), prorrogando aos próximos meses a redução acumulada nos meses anteriores. CAPÍTULO IX - DOS CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS Art. 15 - Incluir o § 2º ao artigo 15. [...] § 2: As restrições ao uso das áreas comuns adotadas unilateralmente e emergencialmente pelo síndico deverão, em até cinco dias, serem aprovadas em assembleia extraordinária convocada e realizada por meios virtuais, oportunidade que prevalecerá a decisão do síndico, desde aprovada pela maioria dos presentes. Alguns síndicos já se mostram autoritários com relação a algumas medidas de limitação de uso das áreas comuns. Nesse sentido, embora seja permitido ao síndico adotar algumas medidas emergenciais, tais medidas devem ser referendadas em assembleia virtual, aprovada pela maioria. Tal medida não limita o poder do síndico em adotar medidas emergenciais, mas evita que sejam extrapolados os poderes para limitação da propriedade. Autores das propostas Alexandre Junqueira Gomide é doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogado. Colaborador do Blog Civil e Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Diretor Estadual (SP) do IBRADIM. Kleber Zanchim é doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor do Insper Direito. Sócio de SABZ Advogados.
Texto de autoria de Roberto Wilson Renault Pinto 1. Introdução Com o progresso tecnológico, as plataformas digitais tornaram-se instrumentos estratégicos na divulgação e nas vendas de produtos em geral, incluindo, pois, os lojistas de shopping centers, que, cada vez mais, se dedicam a essa prática empresarial. Em contrapartida, o consumidor de produtos ofertados online deixou de ser, ao menos em parte, a pessoa que vai ao shopping center, fato este que afeta a relação contratual empreendedor/lojista, no que concerne ao pagamento do aluguel, mínimo e/ou percentual. Esse trabalho destina-se a uma análise inicial sobre essa forma relativamente recente da realidade do mercado, no que tange à incidência do aluguel devido pelo lojista sobre os negócios jurídicos iniciados por plataformas digitais, previstos, ou não, nos contratos de cessão de uso de espaço entre este e o empreendedor de shopping center, que, ademais, podem ser afetados em razão de contrato entre lojista/ franqueado e franqueador, nos casos em que o franqueado recebe produtos do franqueador, a título de depósito, com a finalidade de entregá-los aos clientes do franqueador que adquirem os produtos deste pelas redes sociais, nas dependências do shopping center. 2. Relações jurídicas entre lojistas e empreendedor do shopping center e daqueles com os clientes Neste contexto, podem-se vislumbrar, primeiramente, três tipos de relação jurídica na questão apresentada: uma entre empreendedor e lojistas; outra entre estes e seus clientes e uma terceira entre o lojista franqueado e o franqueador. Na primeira e na terceira, a relação é empresarial, por força do art. 421-A do Código Civil1 (CC) e do inciso VIII do art. 3º da Lei nº 13.874, de 20.9.20192 (Lei da Liberdade Econômica), que consolidaram o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a interpretação das normas contratuais na relação jurídica em apreço, como paritárias. De fato, empreendedor, lojista e franqueador são empresários, cujos direitos e deveres se presumem equilibrados, sem que nenhuma das partes possa ser intitulada de vulnerável, devendo prevalecer a comutatividade nas relações contratuais, a menos que se apresente algum desequilíbrio nessas relações, a ser tutelado pelos princípios gerais de Direito. Essas exceções decorrem das limitações à liberdade de contratar, quando cláusulas contratuais colidem, especialmente, com os princípios da função social do contrato3 e da boa-fé objetiva4. Por outro lado, nas relações entre lojista e/ou franqueador e cliente se aplica a legislação consumerista, conforme artigos 2º e 3º do Código de Proteção ao Consumidor (lei 8.078/90 - CDC)5, também chancelada pela doutrina e jurisprudência, que, no artigo 306 da lei consumerista, alcança a obrigação de o fornecedor realizar a venda de produtos online7 nas condições oferecidas, tal como nas vendas em geral de Direito Privado (art. 427 do CC8). No presente trabalho, destaca-se a relação entre empreendedor e lojistas de shopping centers, vis à vis da questão apresentada, em que se busca alcançar a correta interpretação da incidência, ou não, do aluguel sobre a compra e venda iniciada através de plataformas digitais, isto é, fora do ambiente do shopping center, estendendo-se à relação entre lojista/franqueado e franqueador, em que se aproveita da estrutura organizacional e do espaço físico do centro comercial, para depósito e entrega aos clientes do franqueador, por intermédio do lojista, de produtos adquiridos através das redes sociais. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 "Art. 421-A Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais [...]". 2 "Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e crescimento econômicos do País, [...]: VIII ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária, exceto as normas de ordem pública". 3 "Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato". 4 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". 5 "Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". "Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entres despersonalizados que desenvolvem atividade de [...] comercialização de produtos ou prestação de serviços". 6 "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". 7 LÔBO, Paulo. DIREITO CIVIL - CONTRATOS. São Paulo: Saraiva. 4ª ed. 2015. p 76. 8 "Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso".
Texto de autoria de Rodrigo Toscano de Brito e Alexandre Junqueira Gomide 1. Notas Introdutórias Em sua obra clássica a respeito do direito das coisas, ao tratar das características fundamentais do direito de propriedade, Lafayette Pereira1, nos idos anos de 1943, asseverou que tal direito "é ilimitado e como tal inclui em si o direito de praticar sobre a coisa todos os atos que são compatíveis com as leis da natureza". O caráter "ilimitado2" do direito de propriedade era conferido no art. 527, do Código Civil de 1916, ao determinar que "o domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário"3. Contudo, com o passar dos anos, o exercício ilimitado da propriedade passou a sofrer restrições. Atente-se que o art. 1.231, do atual Código Civil, não mais estabelece que a propriedade se presume ilimitada, mas, sim, "plena e exclusiva". Passo importante nesse sentido certamente foi a promulgação da Constituição Federal de 1988 que dispôs, expressamente no art. 5º, inciso XXIII, a determinação de a propriedade atender a sua função social4. De todo modo, embora tenha sofrido restrições em sua forma de exercício, não se perca de vista que desde o Código Civil revogado5 até o vigente6, o proprietário continua tendo como principais atributos o direito de usar, gozar e dispor da coisa. Os tempos modernos requerem análise atenta a respeito dos atributos do direito de propriedade e suas limitações, nomeadamente no exercício do direito de usar e gozar da coisa. Destaque-se que as limitações ao direito de propriedade podem ser ainda mais frequentes no âmbito do condomínio edilício, a considerar que a convenção condominial pode estabelecer certas limitações não previstas no texto legal. Não é objetivo do presente artigo tratar de limitações ao direito de propriedade já conhecidas e tratadas pela doutrina7 e jurisprudência, a exemplo disso, (i) limitação para inadmitir animais domésticos; (ii) limitação de uso ao condômino antissocial; (iii) limitação para cessão do uso do imóvel via aplicativos de locação/hospedagem de curta temporada; (iv) limitação para locação da unidade à república de estudante; (v) limitação de serviços essenciais ao condômino inadimplente. O objetivo do presente artigo é tratar do impacto imediato da COVID-19 nos condomínios edilícios e algumas questões controversas. 2. O Coronavírus e os Impactos Imediatos À Vida Condominial Diante do número expressivo de informações que estamos recebendo sobre o Coronavírus (COVID-19), já se sabe que os efeitos da doença serão devastadores - seja na saúde dos brasileiros, seja no tocante aos impactos na economia ou, ainda, no que diz respeito ao relacionamento social. A bem da verdade é que na data de fechamento deste artigo, sequer poderíamos fazer previsões seguras a respeito das dimensões que o vírus ainda poderá causar à vida das pessoas. Também no Direito, a COVID-19 trará consequências das mais diversas. O Direito Condominial, por si só, já é uma das áreas mais controversas na doutrina e jurisprudência. O vírus poderá ampliar as discussões envolvendo a matéria condominial. Analisemos. 3. Impactos nas Assembleias e Utilização de Meios Virtuais de Deliberação O condomínio edilício não é administrado pelo síndico, isoladamente. Isso porque o condomínio deve obedecer às normativas advindas da assembleia de condôminos, como regra geral. As decisões no âmbito do condomínio edilício são, portanto, assembleares, ou seja, dependem da assembleia de condôminos. O síndico executa as determinações da assembleia e deve seguir as regras de convocação previstas na convenção do condomínio ou, na sua falta, na lei civil. Diz-se isso para deixar esclarecido que o síndico não pode, por si só, determinar atos que não estejam previstos nas deliberações assembleares, nem na convenção. De toda forma, é importante ressalvar que cada caso deve ser analisado à luz da convenção específica, especialmente no capítulo que versa sobre as atribuições do síndico, embora existam regras gerais que devam ser observadas. Diante desses aspectos e das questões relativas à pandemia decorrente do coronavírus, os síndicos, ainda que estejam agindo de boa-fé e com espírito comunitário ao proibir o uso e fruição de determinadas áreas comuns, haverão de observar as regras gerais dispostas na lei civil. Uma delas é a convocação de assembleia geral extraordinária, de caráter emergencial, diante das questões especiais que envolvem a prevenção de contaminação da COVID-19, para que a assembleia possa deliberar quais medidas de proteção à saúde dos moradores devem ser tomadas pelo condomínio. Parece-nos que o síndico só estaria desobrigado de convocar a assembleia se a questão envolver a necessidade de uma decisão com alto grau de urgência. Caso contrário, ainda que de maneira excepcional, é obrigado a convocá-la, podendo, em razão da necessidade de decisão urgente, desconsiderar regras relativas ao prazo mínimo de convocação, bem como questões burocráticas. Portanto, quanto ao modo de convocação, a assembleia pode ser realizada por meios eletrônicos. Embora a convocação possa ser flexibilizada, não pode ser desconsiderada. De igual modo, em razão da proibição pública de aglomerações e reuniões, conforme for a quantidade de moradores, a realização da assembleia pode utilizar-se de mecanismos eletrônicos, hoje de facílimo acesso, tais como WhatsApp, Zoom, Skype, etc. Observem que tudo isso se afirma considerando situações extremas, até porque em muitas localidades brasileiras, ainda é possível realizar as reuniões conforme estabelecido na convenção, tendo em vista que sequer há casos notificados de infecção pela COVID-19. Mesmo assim, por cautela e em razão da urgência eventual, é possível a realização de reuniões por meios eletrônicos, com a ressalva da excepcionalidade da forma, depois referendados durante a reunião. Apesar de considerar opiniões importantes em sentido contrário8, ou seja, por parte daqueles que pensam não ser necessária a convocação da assembleia de condôminos, vale observar que existem decisões por parte de síndicos que são razoáveis; outras, não. Mais adiante, vamos observar neste artigo que já existem casos em que o síndico determinou unilateralmente a proibição de passagem de moradores que são profissionais da área de saúde, tais como médicos, enfermeiros, dentistas. O exemplo serve para se observar que, nem o síndico pode determinar essa limitação por ato isolado, nem mesmo a assembleia o pode, mas a assembleia deve ser convocada (pelos meios eletrônicos, como já se disse para evitar contatos e aglomerações) para decidir quais os limites serão impostos à propriedade condominial. Deve-se levar em conta que os problemas condominiais que surgem, diante da excepcionalidade provocada pela pandemia da COVID-19, não encontram soluções já postas no Código Civil. E aqui há uma discussão realmente interessante. Na regra geral do Código Civil, as decisões no âmbito do condomínio edilício são assembleares e, parece-nos que, para evitar decisões autoritárias e totalmente ilegais por parte de alguns síndicos, deve continuar sendo essa a regra. Não que se deva passar necessariamente pela burocracia regular e recomendável das assembleias em períodos normais, mas há necessidade de se certificar que todos tenham tomado conhecimento da notificação (hoje isso é facilmente controlado mesmo em aplicativos simples, como Whatsapp) e que haja a deliberação de como limitar o uso da propriedade condominial. A vida em condomínio, ainda que em períodos fora do comum, como o que vivemos, deve preservar decisões comunitárias, como é o grande sentido da norma. É interessante o esforço interpretativo de que o síndico pode determinar limitações por ato unilateral dele a partir da regra do art. 1.348, V, do Código Civil, mas observem a regra ali posta: "Art. 1.348. Compete ao síndico: (...) V - diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns". O dispositivo diz respeito à conservação da coisa em si, não propriamente ao uso, nem à possibilidade de se criar limitação ao uso, um dos elementos relevantes do direito de propriedade. A estipulação da limitação ao uso das áreas condominiais é privativa da assembleia, que deve se reunir, excepcionalmente, por videoconferência, deliberar e votar pelos meios possíveis, evitando contato e aglomerações para tanto. É importante observar que alguns síndicos têm tomado medidas razoáveis de prevenção à contaminação, criando algumas limitações ao uso da propriedade condominial, sem criar discussões por parte dos demais condôminos. Nesse caso, parece muito interessante a solução interpretativa dada por Rubens Carmo Elias Filho e Rodrigo Karpat, no parecer já referenciado aqui, dado no âmbito da comissão de direito imobiliário da OAB-SP. No citado parecer, sugere-se a aplicação analógica do art. 1.324, do Código Civil, que assim prevê: "Art. 1.324. O condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se representante comum". Observem que o artigo está contido no regramento do condomínio voluntário e, em sua interpretação finalística de fato: caso não haja oposição dos demais, presume-se a aceitação. É o que está acontecendo na maior parte dos casos brasileiros, sem gerar a necessidade da assembleia previamente. Há uma consciência geral da gravidade do problema trazido pela COVID-19 e, em boa parte dos casos, os síndicos criaram soluções limitativas que agradaram a todos. Nesse caso, a ausência da assembleia não macula a decisão isolada do síndico, que acaba sendo referendada tacitamente pelos demais condôminos. Por outro lado, decisões como proibir ingresso ou passagem por áreas comuns por parte de profissionais da área de saúde ou outras limitações severas ao direito de propriedade ou mesmo à pessoa, como, por exemplo, exigir que o condômino faça medição da sua temperatura corporal, parece-nos que devem observar a regra geral da natureza assemblear. Claro que, repita-se, evitando a aglomeração de condôminos, daí a necessidade de se usar os mecanismos de videoconferência, sempre na certeza de que todos foram avisados para deliberar, seja por e-mail, telefone, mensagens eletrônicas, interfone, ou qualquer outro meio inequívoco. Numa eventual discussão concreta, em vista da natureza comunitária do condomínio, a deliberação deve ser em assembleia, em conjunto, em grupo de interessados, mas nunca monocrática do síndico. Um só não pode limitar direito dos demais condôminos. Também é bastante claro que se a circunstância não permitir, por razões que fogem da possibilidade de realização absoluta da assembleia, o síndico decidirá isoladamente e pode referendar sua decisão depois em assembleia virtual. Mas esta não pode ser a regra durante um, dois, três meses de quarentena, sobretudo na existência de síndicos pouco ou quase nada razoáveis, como em alguns casos. 4. Limitações de Uso das Áreas Comuns A mais relevante das batalhas para enfrentarmos a pandemia é a reclusão das pessoas em suas residências. Embora o afastamento interpessoal completo seja desejável, diversas situações nos impedem de nos mantermos absolutamente afastados uns dos outros. Basta pensarmos que, embora reclusos em nossas residências, continuamos dependendo de visitas aos supermercados, farmácias, visita a um familiar que precisa de socorro, dentre outras situações. Nos condomínios edilícios, da mesma forma, sempre que um condômino deixa a sua unidade autônoma, regra geral, precisará acessar o elevador, transitar pelas áreas comuns até que consiga acessar a rua. Limitar, portanto, o direito de transitar nas áreas comuns não se mostra medida razoável ou possível. Evidentemente que é possível ao condomínio limitar o trânsito de pessoas, mas não impedir que as pessoas acessem suas unidades autônomas. Mas ainda no que diz respeito ao trânsito de pessoas, indaga-se a possibilidade de o condomínio, por exemplo, limitar o direito de uso para profissionais da área de saúde, ou seja, pessoas que certamente possuem maior risco de contágio da doença. É possível proibir, por exemplo, que o condômino médico ou enfermeiro que, conforme a especialidade, esteja no grupo de risco profissional, acesse sua unidade utilizando-se do elevador e das demais áreas comuns do prédio? Evidentemente o condômino-médico não pode ser impedido de transitar pelas áreas comuns do prédio que dão acesso ao elevador, partindo do portão ou garagem. Além de tal medida cercear demasiadamente o direito de uso da propriedade, também fere outros direitos fundamentais. Além disso, em tempos de elevado grau de solidariedade, não se espera que os condomínios limitem que profissionais da saúde, atualmente responsáveis por salvar milhares de vidas (colocando a sua própria em risco), tenham tamanha restrição ao direito de propriedade. Assim, não há licitude, muito menos razoabilidade, obrigar, por exemplo, médico de sessenta e cinco anos acessar sua unidade no trigésimo andar pelas escadas, saindo ou regressando à sua unidade, após um dia de trabalho, ainda que esteja em serviço específico de atendimento a doentes da COVID-19. Sem prejuízo, é possível, por medida de segurança, que haja determinação para que os condôminos sujeitos aos maiores riscos de contágio (médicos, enfermeiros, dentistas, idosos, dentre outros) façam uso individual do elevador, proibindo que outro morador compartilhe o mesmo espaço. As questões de maior controvérsia, contudo, dizem respeito à limitação de acesso de áreas não essenciais, tais como piscina, academia, quadras esportivas, salão de festas, espaço "kids", salas de cinemas, entre outras áreas comuns dessa natureza. Quando do início da doença, enquanto ainda não se falava em pandemia, poderíamos entender ilícita a vedação total de uso de tais áreas comuns de lazer. Contudo, com o avançar da doença, as escolas, academias, clubes esportivos, cinemas, teatros, foram totalmente proibidos de funcionar9. A princípio, parece-nos, portanto, legítima (senão recomendável) a possibilidade de restrição das áreas comuns de lazer por tempo indeterminado, até que as autoridades médicas digam o contrário. Contudo, reconheça-se que, em tempos de reclusão compulsória, muitas famílias terão dificuldades de ficar confinadas em suas unidades autônomas, muitas com cinco ou seis membros familiares. A situação é ainda mais crítica quando imaginamos a presença de crianças em apartamentos. Assim, o condomínio poderá, em situações bastante específicas, controlar o uso de algumas áreas, estabelecendo, por exemplo, horários de reserva de uso individual por parte do condômino ou para uso do seu núcleo familiar, com quem já convive em sua unidade. Nessa mesma linha de raciocínio, o uso da academia pode, eventualmente, ser permitido com grandes limitações, por exemplo, a um morador por vez, em horário específico, previamente agendado e reservado, com a obrigação imposta ao condômino de comunicar ao condomínio o fim do período de uso para que haja uma limpeza específica da área, com o fito de evitar a contaminação dos objetos usados e pôr em risco a saúde dos demais moradores. A questão é distinta quanto à possibilidade de realização de festas e recepções no ambiente condominial e uso da piscina. Aqui a ponderação entre os direitos fundamentais de propriedade e à saúde da coletividade é relevante. É sabido que a aglomeração em festas com grande concentração de pessoas durante o período de quarentena põe em risco a saúde da coletividade de modo mais explícito, considerando que os números demonstram que a reunião de pessoas foi fator facilitador da propagação do vírus até agora. Nessa ponderação, é recomendável a proibição completa de festas nas áreas comuns e na própria unidade autônoma, considerando que a festa aumenta o fluxo de pessoas no ambiente condominial. O uso da piscina é também um aspecto que pode levar a decisões polêmicas por parte do condomínio. Abstraindo-se aqui do aspecto científico de ser ou não possível a transmissão do vírus pelo simples uso da piscina, ainda que isoladamente, pensamos que a solução pode ser a mesma sugerida para outros equipamentos de uso comum, salvo a hipótese de comprovação de que a piscina não é um facilitador de transmissão da COVID-19. Vale dizer, poderá o condomínio limitar o uso, permitindo, eventualmente, o uso individual, com hora marcada e reservada, afastando de riscos de contaminação os demais condôminos. A visita de pessoas ao condomínio também pode ser limitada, estabelecendo-se, por exemplo, a impossibilidade de visita de pessoas para a realização de festas, ou questões que não sejam eminentemente essenciais. Os corretores de imóveis, da mesma forma, ainda que autorizados pelos proprietários, também poderão sofrer limitação para acessarem o condomínio com terceiros interessados na comercialização de unidades autônomas. Embora essa medida seja bastante prejudicial ao proprietário do imóvel e, naturalmente, aos profissionais da intermediação imobiliária, pensamos que tal restrição protege a saúde dos condôminos e das demais pessoas que já trabalham no ambiente condominial. Inobstante a discussão a respeito da possibilidade ou não de ser limitada a locação por curta temporada, também nos parece lícito, nesse momento, impedir o uso das unidades por inquilinos dessa natureza. As obras nas áreas comuns ou mesmo nas unidades autônomas também devem ser suspensas. Somente devem prosseguir serviços comprovadamente emergenciais, cuja suspensão poderá acarretar maiores riscos aos condôminos (obras estruturais, por exemplo), ou para realização de serviços emergenciais, tais como, a manutenção de um vazamento de água em determinada unidade. Mesmo assim, o condomínio pode criar restrições, como uso de proteções adequadas, horário limitado e quantidade máxima de pessoas, sempre no intuito de evitar aglomerações. Para qualquer desses atos de proibição ou limitação nas áreas comuns, a competência decisória é assemblear. No entanto, a considerar a urgência em algumas ações, o síndico, havendo fundamento jurídico, conjuntamente com o corpo diretivo, pode adotar medidas antes da assembleia, que visem resguardar a saúde dos condôminos. Tais medidas, posteriormente, deverão necessariamente ser ratificadas em assembleia. Por último, existe outra questão que tem suscitado algumas dúvidas e que perpassa também por direitos da personalidade. Trata-se da discussão em torno de se poder, ou não, requerer aos condôminos e terceiros realizarem o exame para aferir a temperatura corporal. A questão é complexa: pode-se ou não impor a pessoa a realizar o teste de temperatura para ingressar no condomínio? Parece-nos que a solução está no espelhamento do que ocorre no ambiente público. Vale dizer, é normal que em aeroportos, rodoviárias, e outros ambientes públicos, haja barreiras sanitárias para se aferir a temperatura do corpo da pessoa, em função do interesse da coletividade. Assim, na ponderação entre o direito de a pessoa não ser obrigada a se submeter a tal exame e à saúde da coletividade, deve prevalecer o interesse da coletividade de condôminos. De qualquer forma, a aferição da temperatura deve ser realizada de modo a resguardar a intimidade, segurança e saúde do condômino ou terceiro. Assim, é possível, por exemplo, a utilização, de termômetro infravermelho, que permite a aferição, sem tocar na pessoa. Na hipótese de o condômino negar-se a realizar o exame, as restrições e limitações de uso da área comum podem ser ampliadas. Se houver provas suficientes que o condômino contaminado não atende às determinações de limitações, colocando em risco a vida dos demais moradores, medida judicial restritiva pode ser solicitada. Havendo a comprovação de sintomas da COVID-19, o condomínio, embora não possa proibir o acesso à residência do condômino (sobretudo porque o morador pode estar retornando do hospital para quarentena, por exemplo), pode avançar nas limitações de uso da propriedade, sob pena de multa por descumprimento. Imprescindível, contudo, resguardar o direito de privacidade do condômino, não sendo permitido ao condomínio revelar a identidade do infectado. 5. NOTAS CONCLUSIVAS O tema aqui enfrentado é polêmico em razão do trânsito necessário por vários pontos relacionados ao conflito de direito fundamentais como a vida, a saúde, a propriedade e a liberdade, de forma que não restam dúvidas que qualquer decisão a que se chegue no âmbito do condomínio, dependerá também de análise tópica e concreta. De toda forma, é importante destacar que os assuntos relacionados à prevenção da CONVID-19 devem ser levados muito a sério por toda a sociedade, devendo cada um tomar seus cuidados preventivos. Ademais, é dever do condômino não fazer uso da edificação de modo a prejudicar a segurança dos demais moradores (art. 1.336, IV, Código Civil). O condômino que teve contato direto ou indireto com qualquer pessoa infectada pelo vírus deve restringir ao máximo o uso das áreas comuns e, nesse caso, certamente não utilizar as áreas comuns de lazer. Para os condôminos que possuem os sintomas da COVID-19, recomenda-se quarentena domiciliar, nos termos das determinações do Ministério da Saúde. Essa obrigação decorre não apenas de recomendações sanitária, mas também dos deveres laterais da boa-fé objetiva. Confirmada a doença, sugere-se que o condômino leve tal informação para o síndico que, sem identificar o morador, deve fazer um comunicado sobre a confirmação de condômino identificado pelo vírus, de modo a restringir ainda mais o uso da edificação e aumentar as cautelas para evitar a transmissão. É tempo de solidariedade, renúncia e limitações. A sociedade poderá dar o seu exemplo e, em especial, aqueles que vivem em condomínio. Toscano de Brito é doutor e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor de Direito Civil da UFPB e da UNIESP, nos cursos de graduação e pós-graduação. Diretor Regional do IBRADIM-PB. Advogado. Alexandre Junqueira Gomide é mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br). Fundador e Diretor Estadual (SP) do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Advogado. __________ 1 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. 5. ed. vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. p. 99. 2 Segundo José de Oliveira Ascensão, a expressão 'propriedade absoluta' é equívoca, mas queria se referir à propriedade ilimitada. Criticando o caráter ilimitado, Ascensão afirma que "quando se fala de propriedade absoluta pensa-se normalmente no ius utendi, fruendi et abutendi, que se reporta ao Direito Romano. A este atribui a paternidade de todas as manifestações que esta concepção viria a ter. Possivelmente com injustiça. Basta pensar que o direito inglês foi pouco influenciado pelo direito romano, e todavia em país algum a titularidade dos bens assumiu um aspecto tão acentuadamente egoísta. Por exemplo, ainda hoje existem na Inglaterra os 'muros da inveja': um sujeito pode fazer erguer um muro unicamente com a finalidade de privar o seu vizinho de visitas ou luz, em que a este assista qualquer recurso para se opor ao acto emulativo". ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Reais. 5. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2000. p. 139. 3 Em sentido próximo, o art. 2.170º, do Código Civil Português de 1867 declarava: "O direito de propriedade, e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange não têm outros limites senão aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário ou por disposição expressa da lei". 4 Parece-nos adequado o conceito de função social da propriedade conferido por Luciano Camargo Penteado. Para o autor, "a função social da propriedade é uma cláusula geral que onera as situações jurídicas de direito das coisas, impondo ao titular da mesma o dever de atuar: (i) de modo geral, sem ofender fins da comunidade política em que está estabelecido, determinando diferentes obrigações, sujeições e ônus, como situações jurídicas cujo conteúdo é o respeito ao meio ambiente sadio e equilibrado, o patrimônio histórico e cultural, bem como o atender a certos fins transindividuais, como a paz; (ii) de modo específico, quando titular de bens de produção, otimizando sua capacidade geradora, a fim de que compartilhe o benefício com a coletividade em que se insere. Em face disto, a função social da propriedade tem duas claras funções: 1) criar um espaço geral de licitude na atuação dos direitos sobre bens corpóreos e, ao mesmo tempo, programaticamente, 2) implementar políticas públicas no sentido de produtividade, para permitir um efeito redistributivo da propriedade para a comunidade em que o titular do direito se insere. (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 222). 5 Código Civil de 1916: Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reave-los do poder de quem quer que injustamente os possua. 6 Código Civil de 2002: Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. 7 Para tanto, verificar GOMIDE, Alexandre Junqueira. Novas limitações aos direitos de uso e fruição em condomínios edilícios. Publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/305667/novas-limitacoes-aos-direitos-de-uso-e-fruicao-em-condominios-edilicios. Acesso em 25/03/2020. 8 Cf. ELIAS FILHO, Rubens Carmo e KARPAT, Rodrigo. Parecer sobre fechamento de áreas comuns e cancelamento de assembleias - OAB-SP. Publicado em: https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/direito-imobiliario/noticias/parecer-sobre-fechamento-de-areas-comuns-e-cancelamento-de-assembleias. Acesso em 25. mar. 2020. 9 Em São Paulo, o Decreto Municipal nº 59.283 de 16 de março de 2020 suspende o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e o funcionamento de casas noturnas e outras voltados à realização de festas e eventos ou recepções.