COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
1. Introdução Promissor instrumento para fomentar o turismo no Brasil, a multipropriedade imobiliária finalmente recebeu tratamento normativo próprio através da lei 13.777/18, em vigor desde fevereiro de 2019. Merecedora de aplausos, a norma trouxe segurança jurídica para incrementar a exploração desse instituto, por meio do qual se concretiza uma relac¸a~o juri'dica real de aproveitamento econômico sobre um bem imóvel1, dividido em unidades fixas de tempo, de forma que múltiplos titulares possam utilizar-se da coisa de modo exclusivo e perpétuo, cada qual a seu turno.2 Trata-se de instituto que dialoga com a economia do compartilhamento, tema bastante em voga atualmente, voltado a ampliar o acesso e o uso eficiente e mais racional dos bens, especialmente em áreas de veraneio, recantos de repouso, férias e regiões turísticas em geral - estas abundantes em nosso país de dimensões continentais. Note-se que esse regime especial de condomínio se consubstancia ainda em interessante produto de investimentos mundo afora, em especial no Estados Unidos, o que evidencia seu inequívoco potencial. A respeito de sua disciplina normativa, verifica-se que ao mesmo tempo em que acalentou discussões, a lei suscitou dúvidas, pois se de um lado contém dispositivos que eliminam incertezas e trazem maior previsibilidade para empreendedores, adquirentes e investidores, configurando um importante incentivo ao setor imobiliário3, de outro, deixou margem a interpretações que podem comprometer sua eficiência, como por exemplo ocorre com o artigo 1.358-L, §2º inserido no Código Civil, objeto do presente estudo. Com efeito, se na multipropriedade, mais do que nas outras espécies de condomínio, a estrita observância dos deveres pelos condôminos é essencial para a eficiência do empreendimento, para a boa conservação do imóvel e para uso adequado do bem com vistas ao pleno atingimento de suas finalidades, especialmente diante da existência de múltiplos proprietários, cumpre à doutrina debruçar-se sobre o tema, a fim de pacificar discussões. Em vista de tanto, bem como do fato de que o inadimplemento nessa modalidade condominial pode assumir múltiplas facetas, dedicou-se o presente estudo à investigação acerca do regime de responsabilidade pelo pagamento dos encargos condominiais entre multiproprietários, bem como da sucessão dessas obrigações quando nascidas anteriormente à transmissão do direito real, a fim de analisar se a responsabilidade perante o condomínio será do alienante ou do adquirente. 2. Multipropriedade Imobiliária 2.1. Breve histórico e qualificação Expressão de uma relação jurídica complexa com grandes potenciais, a multipropriedade imobiliária, conforme se aludiu em sede introdutória, teve seu regime próprio instituído no Brasil pela Lei nº 13.777/18, que a definiu expressamente como sendo o regime de condomínio especial em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.4 Concebida na França no final da década de 60, num cenário de pós guerra em que a Europa se viu mergulhada em profunda crise econômica, a multipropriedade espraiou-se pelo velho continente e posteriormente pelos Estados Unidos como uma forma de permitir às camadas menos abastadas da população o acesso à segunda moradia em regiões turísticas, à casa de veraneio no campo ou nas praias, já que os elevados custos de aquisição e manutenção desses imóveis poderiam ser repartidos entre os múltiplos proprietários. Nos anos 80, assumiu a forma de investimento imobiliário para famílias de classes média e alta, incentivando a introdução de grandes cadeias imobiliárias e hoteleiras no mercado.5 Interessante notar que na experiência estrangeira, a multipropriedade foi e até hoje é explorada sob diferentes formatos, os quais poderiam ser agrupados em quatro espécies: a multipropriedade societária, por meio da qual os sócios de uma empresa têm o direito contratualmente assegurado de utilização de um bem por esta titularizado, durante temporada fixa, que se repete anualmente, por prazo indeterminado; a multipropriedade imobiliária, situada no campo dos direitos reais sobre bens imóveis, a qual oferece maior estabilidade e segurança pelas situações jurídicas de natureza real que enseja, objeto do presente estudo; a multipropriedade hoteleira, que não consiste propriamente numa espécie autônoma, já que se manifesta através de uma das primeiras, mas envolve uma estrutura hoteleira responsável por sua gestão e exploração, atraindo, por isso mesmo, disciplina jurídica própria; e, por fim, a multipropriedade como direito real sobre coisa alheia, caso em que o multiproprietário adquire o direito de utilização de certo bem imóvel por uma fração de tempo que se repete anualmente, contudo este bem continua sob titularidade do empresário responsável pela gestão do empreendimento.6 Na Itália, à guisa de exemplo, desenvolveu-se inicialmente sob o modelo acionário, com estrutura societária, que mais se assemelhava a multijouissance ou droit de jouissance à temps partagé do sistema francês, casos em que o direito de utilização do bem era assegurado por meio de contrato.7 Em Portugal, por sua vez, é até hoje explorada como direito real de habitação periódica, uma espécie de direito real limitado sobre coisa alheia, transmissível contratualmente, por meio do qual a pessoa física ou jurídica que promove o negócio é a proprietária do conjunto imobiliário sobre o qual incidem os direitos limitados (estes asseguram aos respectivos titulares a utilização da fração de tempo), reiteradamente, em caráter limitado ou perpétuo.8 Sem prejuízo dessa diversidade, verifica-se que o modelo mais bem sucedido foi inequivocamente o da multipropriedade imobiliária, explorado em países como Espanha, Bélgica e posteriormente na Itália9, por meio do qual restou privilegiada a situação jurídica de natureza real. Chegando ao Brasil nos anos 80, foi instalado no litoral norte de São Paulo o primeiro empreendimento multiproprietário10, existente e bem sucedido até os dias de hoje. Desde seu surgimento, revelou-se através de duas modalidades principais: como multipropriedade imobiliária e como multipropriedade hoteleira (organizada também sob a forma imobiliária) sendo que em ambas os multiproprietários, na qualidade de titulares de direito real sobre bem imóvel - tornando-se condôminos do prédio e de seus acessórios, inclusive móveis e utensílios, cabendo a cada qual uma fração ideal sobre o todo - vinculavam-se a uma escritura de convenção condominial11 e a um regulamento interno os quais definiam os direitos e obrigações de cada qual. Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
Afinal, o que é exatamente a incorporação imobiliária? No início da minha carreira e nos primeiros contatos com o direito imobiliário, confesso que tive muita dificuldade para realizar o correto enquadramento da incorporação imobiliária. Seria um tipo contratual? Incorporar é o mesmo que construir? A incorporadora e a construtora exercem atividades distintas?  O objetivo do presente artigo é apenas e tão somente conferir ao leitor uma introdução da incorporação imobiliária e aspectos práticos do seu desenvolvimento.  Em sentido geral, incorporação significa inclusão, união, introdução ou ligação de uma coisa no corpo de outra a que ficará pertencendo, ou agremiação, congregação, agrupamento promovido entre pessoas para a formação de um só corpo (do latim, incorporatio, de incorporare: dar corpo, juntar, unir1.  O conceito da incorporação imobiliário é trazido pela própria lei 4.591/1964. Segundo o artigo 28, parágrafo único, a incorporação imobiliária é "a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas". Preferimos, contudo, a definição de Melhim Chalhub2:  [...] a expressão incorporação imobiliária tem o significado de mobilizar fatores de produção para construir e vender, durante a construção, unidades imobiliárias em edificações coletivas, envolvendo a arregimentação de pessoas e a articulação de uma série de medidas no sentido de levar a cabo a construção até sua conclusão, com a individualização e discriminação das unidades imobiliárias no Registro de Imóveis.  A incorporação imobiliária, como se nota, é marcada sobretudo em razão da possibilidade de venda antecipada de unidades a construir. Tal permissão é imprescindível ao incorporador para obter os recursos necessários à concepção do empreendimento.  É natural que, ao permitir ao adquirente pagar o preço por algo que ainda será construído, a lei 4.591/1964 impôs a observância de uma série de obrigações ao incorporador. É relevante destacar, contudo, que antes da comercialização das unidades, há necessidade de o memorial de incorporação (uma espécie de dossiê documental que comprova técnica e financeiramente a viabilidade do empreendimento) estar devidamente registrado na matrícula do bem. Esse ato prévio traz maior segurança ao adquirente, uma vez que comprova ao menos que a incorporadora é titular de determinado terreno e possui um projeto construtivo aprovado pela municipalidade.  Para melhor compreensão da incorporação imobiliária, comecemos pela figura do incorporador. É ele quem faz a articulação de todas as medidas necessárias para viabilizar o futuro empreendimento. Segundo Caio Mário da Silva Pereira3, o incorporador é "a chave do negócio". Nesses termos, compete a ele planejar a obra, redigir as propostas e os contratos, obter o projeto arquitetônico, fazê-lo aprovar pela autoridade, tudo em termos tais que o edifício seja construído segundo o plano do incorporador e o condomínio constituído na forma da minuta da convenção condominial por ele redigida4. É o incorporador, portanto, quem planeja a construção do empreendimento que se pretende erigir.  Não se confunda o incorporador com os demais agentes que participam ativamente da incorporação imobiliária. É verdade que o incorporador pode ser responsável não apenas pela incorporação, mas também pela execução da obra. O incorporador também pode custear diretamente a construção ou financiar a aquisição da unidade autônoma, pelo comprador. Todavia, se assim não preferir, pode conferir a construção da obra para empresa especializada. Sem prejuízo, assim como ocorre na grande maioria dos casos, são as próprias instituições financeiras que acabam por conceder o crédito imobiliário, seja para a construção, seja para a aquisição das unidades.  A compra e venda das unidades, embora seja negócio jurídico celebrado entre incorporador e adquirente, também passa pela intermediação realizada por corretores de imóveis, tal como determinam a lei 6.530/1978 (artigo 3º) e o decreto 81.871/1978 (artigo 2º). O corretor de imóvel, portanto, é mais um importante partícipe da incorporação imobiliária. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 9. 2 CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 7. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 244. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 245.
Introdução  Este trabalho pretende esclarecer ao leitor a duração e abrangência da responsabilidade decorrente de vícios da construção para aquele que constrói ou aliena um imóvel, uma temática que nos parece ser repleta de dúvidas e controvérsias1. Adiantando tais discussões, pode-se afirmar, à primeira vista, em uma leitura apressada e isolada do art. 6182 do Código Civil - que trata da garantia legal da obra - que a responsabilidade do construtor é de 5 anos e, a partir de então, ele não responde por defeitos estruturais do imóvel. Seria, contudo, admissível que um prédio devidamente conservado se torne inabitável em virtude de falhas estruturais depois de 20 anos contados da entrega da obra e disto não decorra responsabilidade para o construtor, haja vista o encerramento do prazo de garantia legal? Evidente que não. Conforme veremos a seguir, o empreiteiro continua sendo responsável por força do regime geral da responsabilidade civil, cujo prazo prescricional se inicia a partir da ciência do vício oculto. Até quando, porém? A responsabilidade não pode, por evidente, ser eterna. E quanto ao vendedor de imóvel pronto e acabado, usado, com vícios ocultos, qual é a extensão da sua responsabilidade? A venda pode ser desfeita em caso de vício oculto? É cabível ação indenizatória neste caso, após ter sido ultrapassado o prazo previsto na lei para exercício de ação redibitória ou estimatória? Responderemos essas perguntas cientes de que elas não estarão livres de questionamentos e entendimentos diversos. Dividimos o presente trabalho da seguinte forma: no item 2, tratamos da responsabilidade do construtor ou incorporador por vícios da obra; no item 3, tratamos da responsabilidade do alienante de imóvel com vícios ocultos; no item 4, sintetizamos as principais conclusões deste trabalho. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. *Cristiano Schiller é mestrando em Direito Civil Contemporâneo pela PUC-Rio. Mestre em Construction Law & Dispute Resolution pela King's College London. Especializado em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Advogado. __________ 1 Demostrando as dúvidas e controvérsias sobre o tema, vide decisões judiciais do Foro de Santos, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com entendimentos diversos versando sobre o mesmo caso, envolvendo vício construtivo em empreendimento hoteleiro: (i) 1021977-96.2020.8.26.0562; (ii) 1027251-75.2019.8.26.0562; (iii) 2198903-49.2020.8.26.0000; e (iv) 2272551-62.2020.8.26.0000 2 "Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito."
A suspensão do uso dos aviões Boeing 737 Max 8 ao redor do mundo, por cerca de um ano e meio (entre 2019 e 2020), em razão de dois acidentes com aviões do mesmo modelo, deveria servir de exemplo para a engenharia civil e para a sociedade brasileira como um todo. Por que? Porque a criação e observância de procedimentos rígidos para a mitigação de riscos evita prejuízos desnecessários e, em diversas situações, pode salvar vidas, cujo valor é inestimável. A aviação civil está sempre preocupada em identificar tudo que possa interferir em sua atividade e leva a segurança a sério não só na teoria, mas também na prática. Havendo dúvidas sobre a segurança daquela aeronave, ela simplesmente deixou de voar. Não há um "talvez". E o setor como um todo concorda e segue incondicionalmente a diretriz adotada. Há um esforço conjunto para corrigir o que se apresenta como um potencial problema, independentemente de quem seja o responsável ou de quem sofrerá as consequências de um possível acidente. Segue-se a determinação e trabalha-se para a obtenção de soluções. Isso só se faz possível porque a aviação civil, em geral, trabalha muito bem com dois conceitos simples, que não podem se confundir: as figuras do perigo e do risco. O perigo das atividades desenvolvidas no dia a dia é inevitável. Perigo sempre existirá e está presente em tudo que fazemos em nossas vidas. O grande problema é como nos relacionamos com ele. O perigo está relacionado à natureza das coisas, sendo algo intrínseco à própria coisa ou atividade desenvolvida. O perigo é, de certa forma, inevitável. Mas, quando conhecemos o perigo e suas variáveis, podemos reduzir os riscos a que estamos expostos, tornando "administrável" o relacionamento mantido com ele. É o controle do perigo que traz segurança para nossas atividades. Daí a necessidade de procedimentos que sejam efetivamente respeitados. É aqui que entra a figura do risco. O risco está relacionado com a probabilidade de um acidente acontecer e varia de acordo com a exposição que se tem ao perigo. Ou seja, a probabilidade de ocorrer um acidente estará diretamente relacionada ao quanto você se expõe ao perigo sem os cuidados necessários. Tomemos o "fogo" como exemplo, que é inegavelmente perigoso. O contato da pele com o calor do fogo causa ferimentos e, fora de controle, o fogo é capaz de destruir dezenas de quilômetros quadrados de florestas (vide o ocorrido na região do Pantanal em 2020). Mas o fogo também foi algo imprescindível para a evolução da humanidade e, atualmente, todas as residências são guarnecidas com fogões, que levam o seu manejo para dentro de nossas casas. Isso quer dizer que o fogo é perigoso por natureza. Mas, observados certos procedimentos e cuidados, o risco representado pelo fogo é tranquilamente administrável pelas pessoas. No caso da aviação civil, o perigo é latente. Problemas durante o voo podem causar a morte de dezenas ou centenas de pessoas de uma vez só. Com esses fatores, é natural que haja uma preocupação absoluta com o manejo dos riscos envolvidos. Não é por outro motivo que, presente a figura do risco possivelmente relacionado diretamente a algum problema de um determinado modelo de avião, a sua utilização é imediatamente suspensa até que os riscos sejam reavaliados e novamente mitigados. Presente dúvida sobre a causa dos dois acidentes aéreos, entendeu-se por reduzir o risco a zero: o modelo daquele avião deixou de voar em qualquer parte do planeta. Esse tipo de preocupação a respeito do manejo de riscos deveria ser a prioridade do mundo contemporâneo. Mas a regra do que sê observa no Brasil, infelizmente, não é essa. A crença de que "Deus é brasileiro", de que tudo terminará bem e um desapego geral a regras e a procedimentos é a receita perfeita para acidentes como os que assombram o país de tempos em tempos, como no conhecido caso da "Boate Kiss", as repetidas tragédias de Mariana e de Brumadinho e o desabamento de edifícios inteiros, como no Rio de Janeiro (abril/2019) e em Fortaleza (dezembro/2019). E o que esses eventos têm em comum? Nada mais nada menos do que o desprezo por regras técnicas de mitigação de riscos. Infelizmente, na prática, a observância a procedimentos que contornariam ou reduziriam os riscos a patamares insignificantes fica relegada a planos de pouca ou nenhuma preocupação. Talvez uma mistura de falta de fiscalização com a alegria Tupiniquim decorrente da falta de educação básica da sociedade como um todo contribua determinantemente para esse contexto. Mas isso precisa mudar ou continuaremos vendo episódios trágicos com frequência. Essa é a crítica feita à engenharia, que assiste passivamente ao desrespeito de seus preceitos - que existem, mas não são cumpridos -, deixando a impressão de que está tudo bem. Disso já nos alerta Tito Livio Gomide, especialista em inspeções prediais, há bastante tempo! Em seus artigos intitulados "Tragédia anunciada", já profetiza um iminente desfecho trágico para as construções que nos rodeiam porque, em regra, não sofrem qualquer tipo de manutenção. Não deve ser novidade para ninguém que qualquer construção possui um prazo de vida útil e que, com o tempo, ela pode vir à ruína. Técnicas de manutenção periódica podem evitar o desgaste acelerado de estruturas e repor a sua funcionalidade ao longo do tempo. A preocupação que a sociedade tem com a manutenção e revisão dos automóveis, curiosamente, não tem qualquer aplicação aos imóveis. O sujeito cuida perfeitamente de seu veículo, faz constantes manutenções, todo ano retorna à concessionária para realizar uma revisão, porque, afinal, não pode perder a garantia que acompanha o seu bem. Mas esse mesmo sujeito compra um imóvel, que custa dez vezes mais do que um automóvel, e não é capaz de dedicar seu tempo para recompor o desgaste natural que o tempo provoca nesse bem que é tão caro ao brasileiro - "a casa própria". A engenharia, de fato, possui regras para evitar o caos profetizado. Mas precisamos cumpri-las, antes que seja tarde demais! Não adianta ter procedimentos perfeitos se não forem aplicados. E não adianta apenas lamentar. É preciso fazer com que as normas sejam cumpridas. Apenas como exemplo, podemos citar a NBR 5.674, válida desde 1999, e que trata do procedimento de "Manutenção de Edificações". "Esta Norma fixa os procedimentos de orientação para organização de um sistema de manutenção de edificações" e deveria servir como uma espécie de mantra para os condomínios. Mas aí surge a pergunta: quantos síndicos já ouviram falar desta norma? Quantos seguem algum procedimento de manutenção periódica e/ou preventiva no condomínio que administra? A sociedade precisa perceber que todos têm papel importante e decisivo para contribuir reciprocamente com a segurança. O construtor deve empregar as técnicas necessárias para que as pessoas possam morar nas edificações construídas por ele. Mas o morador não pode se esquecer de que a forma como ele se relaciona com a sua moradia impactará na integridade de sua moradia. A construção é como uma corrida de revezamento, onde o usuário pega o bastão das mãos do construtor, mas deve continuar em movimento, dentro daquilo que dele se pode esperar, para que a linha de chegada seja alcançada. Se algum risco não sopesado surgir no meio do percurso, medidas devem ser tomadas de forma breve e incisiva, para aquilo que já se sabe iminente não volte a ocorrer. Ilustrativamente, lembra-se o ocorrido em Londres, em 2017, em incêndio que destruiu um edifício residencial, deixando dezenas de vítimas fatais. Apurado que o revestimento utilizado na fachada, para dar maior conforto térmico à edificação, foi um grande vetor para as chamas, medidas imediatas foram adotadas por todo o território inglês. Nos dias que se seguiram ao incêndio, apurou-se que cerca de 600 edifícios possuíam o mesmo tipo de revestimento e uma força-tarefa foi constituída para que esses materiais fossem substituídos. Em poucas semanas, esse risco estava mitigado. Não foram apenas lamentos. As vozes técnicas foram ouvidas e respeitadas. Devemos parar de achar que Norma Técnica não precisa ser seguida. O risco banal deve ser mitigado. É necessário criar mecanismos para exigir o cumprimento de regras de manutenção e a engenharia precisa querer ser ouvida e respeitada. Ou veremos cada vez mais presente a ocorrência das ditas "tragédias anunciadas". *Fabio Tadeu Ferreira Guedes é mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Especialista em Processo Civil e em Direito Imobiliário pela PUC/SP. Fundador e colaborador do blog www.civileimobiliario.com.br. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM.
Direito e economia são ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, mas há muito já se identificou repercussões recíprocas e conexões inegáveis. Malgrado o respeito do Poder Judiciário brasileiro às milenares categorias jurídicas do Direito Privado, não raro o magistrado é desafiado para solucionar questão jurídica com importantes reflexos econômicos, assim como o legislador que recentemente houve por bem editar a chamada Lei de Liberdade Econômica. Exemplo significativo dessa interseção é a contemporânea economia de compartilhamento que trouxe para a humanidade tecnologia e arranjo contratual apto a melhorar a circulação das pessoas nas cidades (Uber), multipropriedade imobiliária (lei 13.777/18), hospedagem diversificada e com preço mais em conta (Airbnb). Outras práticas podem ser lembradas e em todas se verifica intensa possibilidade de circulação de riquezas e geração de serviços que podem, por exemplo, complementar a remuneração do trabalhador, assegurar rendimentos para pessoa aposentada ou sem rendas formais, assim como proporcionar uma vida mais feliz. Em todas essas situações, temos exemplos de economia de compartilhamento. Para uma saudável e harmônica atividade negocial, a economia de compartilhamento necessita, sobretudo, de respeito à autonomia privada, ao direito de propriedade e segurança jurídica. Nessa toada, a atividade de hospedagem intermediada pelo AIRBNB une locadores e locatários, denominados pela plataforma como "anfitrião" e "hóspede", contados aos milhões em diversos espaços do planeta. Não raro, o destinatário de tais serviços, na qualidade de anfitrião, depara com uma delicada situação de insegurança jurídica, posto que o imóvel que pretende disponibilizar para o hóspede, mediante retribuição, constitui-se em uma unidade autônoma em condomínio edilício e, por vezes, o condomínio proíbe essa modalidade de utilização da propriedade privada. Daí, surge um dilema jurídico de difícil solução sob a ótica da ordem jurídica pátria: o condomínio edilício pode proibir os condôminos de alugarem as suas unidades pela via dos serviços prestados pelo Airbnb? Inexiste norma jurídica federal específica que resolva esse conflito. A propósito, se existisse e independentemente da opção adotada, dificilmente não seria posta à prova diante de um exame de sua constitucionalidade. Uma corrente de pensamento defenderia os valores, por exemplo, da autonomia privada, da livre iniciativa, na economia de compartilhamento com as suas vantagens para a sociedade e, sobretudo, no direito de propriedade com os seus poderes inerentes, enquanto outra orientação jurídica poderia buscar na função social da propriedade condominial outro resultado hermenêutico. À falta de um norte legislativo especial, vamos tentar buscar em outras fontes do Direito a resposta para a indagação acima, sobretudo na recente decisão, sobre o tema, do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete, à luz do texto constitucional, dentre outras relevantes funções, uniformizar a interpretação da lei federal. À guisa de exemplificação, trazemos decisão de junho de 2018, na qual a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já reputou como válida cláusula que impõe obrigação de não fazer aos condôminos no sentido de proibir que o proprietário de unidade autônoma alugue imóvel para turistas pelo AIRBNB (TJRJ, AI 0064628-03.2017.8.19.0000, Rel. Des. Valeria Dacheux Nascimento). A despeito de nos parecer ser essa realmente o entendimento majoritário dos tribunais estaduais, na interpretação do artigo 1336, IV, do Código Civil, vamos encontrar decisões em sentido contrário, demonstrando o quão delicada é a questão aqui debatida como, por exemplo, a decisão a seguir oriunda do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Apelação Cível - Condomínio Edilício - Declaratória de nulidade de ato jurídico - Alteração da Convenção do Condômino - Proibição de locação por temporada inferior a 90 dias - Sentença de improcedência - Locação por temporada não desvirtua a destinação para residência prevista na Convenção - Inteligência do art. 45 da lei 8245/91 - Não configuração de contrato de hospedagem - Inteligência do art. 23, "caput", da lei 11.771/08 - Eventuais danos, perturbações ou infrações à Convenção ou Regulamento interno devem ser sancionadas nos termos daquelas, não sendo permitida a proibição de locação do bem como sanção - Inteligência do art. 1.337 do CC - Indevida limitação ao direito de propriedade, constitucionalmente garantido. Recurso provido". (TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Proc. nº 1008757-15.2018.8.26.2008, Rel. Des. Francisco Carlos Inouye Shintate, julg. em 01/02/2021). Diante dessa polêmica, adiro, à inteireza, ao bem lançado voto do eminente Ministro Luis Felipe Salomão (STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.819.075/RS) que no dia 10 de outubro de 2019 deu início ao julgamento dessa questão no sentido de que os condomínios não podem proibir aos proprietários de realizar locação de curta temporada via Airbnb. Sua excelência afastou a conotação de hospedagem prevista na Lei 11.771/2008 que incluiria a prestação de diversos serviços, os quais não se verificam no Airbnb. Destacou que a economia de compartilhamento com a utilização de uma plataforma digital como são exemplos o Uber e o Airbnb, é uma realidade importante para os interesses do País, com grande soma de investimentos, não sendo razoável a sua proibição, nada obstante possa o condomínio adotar medidas para regular o seu funcionamento, como o cadastramento dos anfitriões na portaria, dentre outras. Na realidade, o contrato não é de hospedagem, mas sim de locação por temporada, nos moldes previstos na Lei 8.245/1991, com as diferenças típicas da pós-modernidade trazida pela economia compartilhada via plataforma digital. Decerto, o artigo 1335, I, do Código Civil assegura - e não poderia ser diferente sob a ótica da legalidade constitucional - o direito de usar, fruir livremente dispor das suas unidades e não vemos como razoável a referida limitação ao exercício do direito de propriedade. Releve-se que se configuraria irrazoável pensar em proibir o proprietário de unidade autônoma de alugar quarto em sua residência, ainda que situada em condomínio edilício. Dessa forma, como entender diferente na atividade de intermediação por meio de aplicativo digital entre aquele que pretende ceder onerosa e temporariamente a sua unidade autônoma e outro que a queira utilizar? Essa não foi, entretanto, a orientação adotada pelo eminente Ministro Raul Araújo que abriu a divergência, sendo acompanhado por outros dois julgadores na sessão do dia 20 de abril de 2021, formando a maioria no sentido da possibilidade de o condomínio edilício com previsão de destinação residencial das unidades autônomas proibir a realização de oferta de imóveis por meio de plataformas digitais via Airbnb. A despeito de ainda não ter sido disponibilizado o acórdão, verificamos que o colegiado, por maioria, considerou que se trata de contrato atípico de hospedagem regido com regulamentações específicas e, portanto, distinto da locação para fins de temporada regulada pela lei 8245/91. Foi destacado no voto vencedor, em análise do caso concreto, a existência de alta rotatividade no local sendo disponibilizados para várias pessoas em curto espaço de tempo, com oferta inclusive de serviços como lavagem de roupas. Na visada do ministro Raul Araújo, "tem-se um contrato atípico de hospedagem, expressando uma nova modalidade, singela e inovadora, de hospedagem de pessoas sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas". Ao concluir, disse o ilustre julgador que "o direito do proprietário condômino de usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da lei 4.591/1964, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício". Assim, o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi mantido, com a orientação de que a atividade desenvolvida pelo condômino seria comercial e proibida pela convenção do condomínio. Inegável que é fundamental a preservação da convivência harmônica entre os condôminos, equilibrando-se com justiça, para tanto, o direito da propriedade exclusiva do condômino com a propriedade condominial sobre as áreas comuns, os quais encontram no artigo 1336 do Código Civil importantes efeitos, além da própria convenção condominial e regimento interno, desde que tais restrições sejam razoáveis e não obstaculizem o exercício legitimo do direito de propriedade exercido com exclusividade na unidade autônoma. Por exemplo, o Tribunal da Cidadania, já tem uma orientação firme no sentido da nulidade de eventual cláusula que proíba a utilização de área comum por condômino inadimplente, assim como não vê correção em determinação cega de proibição de animais no interior das unidades autônomas, ou seja, estes somente serão proibidos se colocarem em risco o sossego, a segurança ou a saúde dos demais condôminos. A questão está longe de ser resolvida na jurisprudência, bastando para tanto observar o placar apertado de 3 a 2 na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, além do que o caso concreto tinha algumas peculiaridades apontadas pelo Tribunal de origem que são incomuns na maioria dos casos de ofertas de unidades autônomas em locação pela via de plataforma digital e, desse modo, há indicativo de que a decisão em comento não configure precedente para situações que, embora parecidas e referentes ao Airbnb, não possuam as mesmas particularidades concretas. Em nosso modo de ver, com a devida vênia aos entendimentos em sentido contrário, a proibição não se coloca como razoável, ofende o direito de propriedade, coloca em risco a segurança jurídica, a livre iniciativa e com ela a própria liberdade econômica, valores que encontram no capítulo dos direitos fundamentais, a sua fonte normativa. Em tempos de pós-modernidade, a dificuldade na identificação das categorias jurídicas - se locação por temporada ou contrato atípico de hospedagem - não pode ser óbice para uma prestação de serviços que tem atraído e felicitado os destinatários, conferindo à propriedade imóvel importante funcionalidade, além de estar movimentando fortemente a economia nacional. Situações de abuso do direito por parte dos condôminos e possuidores eventuais podem e devem ser corrigidas pontualmente, no âmbito da dialética do caso concreto, não sendo razoável, contudo, que, de forma abstrata e apriorística, se possa proibir tal modalidade de utilização compartilhada da propriedade imobiliária. Frise-se, por fim, que o anfitrião continua a ser condômino, tendo assim, que respeitar todas as regras de saúde, sossego e segurança que regem a vida condominial. O cumprimento desses preceitos é sua obrigação - devendo ser repassado aos hóspedes - sendo ele, condômino, o responsável por eventuais sanções previstas na convenção por mau exercício da posse por parte de hóspede. *Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ, doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá. Titular de Direito Civil do IBMEC/RJ e emérito da EMERJ.
Quando Isaac Newton, ainda em 1687, publicou os três volumes do Principia, revelando, para um mundo assombrado, suas leis do movimento e da gravitação universal, quem poderia imaginar que Albert Einstein, após dois séculos e meio de verdades absolutas, demonstraria, com sua teoria da relatividade, que as coisas não eram bem assim? Por essas e por outras, o filósofo Karl Popper, também um gênio, dedicou parte de sua vida defendendo, com seu racionalismo crítico, que a lógica indutiva e as certezas dela extraídas são um mito, e que o erro é componente inevitável de toda teoria científica; é o motor pelo qual a ciência se move1. No Direito também temos nossas certezas, e precisamos revisitá-las de vez em quando. Este artigo, frise-se, não traz nenhuma descoberta revolucionária. Contamos a história acima apenas porque o exemplo extremado costuma servir bem à didática. Como se sabe, para vender sua fração ideal de um imóvel a estranhos o proprietário deve ofertá-la ao(s) seu(s) condômino(s) pelo mesmo preço e condições ajustados com o terceiro; e, em caso de violação dessa preferência, o condômino prejudicado tem direito à adjudicação compulsória da fração indevidamente alienada, desde que inicie a ação judicial ou procedimento arbitral no prazo decadencial de até 180 dias (art. 504 do Código Civil). A Lei de Locações traz regra parecida em favor do locatário, porém de maneira bem mais completa. Enquanto o Código Civil se omite, abrindo espaço para a regulação caso a caso em convenção condominial, a lei 8.245/91 é expressa em prever, além de outros aspectos: (i) o prazo decadencial de 30 dias para o locatário aderir à proposta do locador (art. 28); e (ii) o termo a quo do prazo de seis meses para a ação de preferência se conta "do registro do ato no cartório de registro de imóveis" (art. 33). Disto decorrem pelo menos duas regras gerais quanto ao prazo decadencial: (i) o locatário deve contar os seis meses a partir do registro do instrumento de alienação na matrícula do imóvel; e (ii) o condômino iniciará a contagem dos 180 dias no termo a quo previsto na convenção de condomínio, ou, em caso de omissão ou inexistência de convenção, também a contar do registro do instrumento de alienação, por aplicação analógica da Lei de Locações. Aqui, o dever ser. Porém, raramente as coisas são como deveriam ser, e o desrespeito à preferência acontece no mundo real. Uma primeira forma recorrente de violação é a simulação: o alienante oferta o imóvel por um preço, quando, sorrateiramente, ajustara com o comprador um valor menor2. Um segundo modo ilícito de agir é comunicar a intenção de alienar, mediante prévia notificação, e então, mesmo com a adesão do condômino ou do locatário à proposta, simplesmente ignorá-lo, seguindo em frente com a venda para o terceiro. Há ainda uma terceira, que está no foco deste artigo: o silêncio absoluto. Neste mau caminho, nada é dito ao preferente; nem antes, nem depois. Como raramente o condômino ou locatário monitora a matrícula imobiliária, a transmissão só vem à tona muitos meses, quiçá anos mais tarde, quando o prazo decadencial já se esvaiu. Sim, pois o art. 33 da lei 8.245/91 fixa o termo a quo do prazo decadencial da ação de preferência na data do registro. E não só a Lei. O Enunciado 545 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, na mesma linha, estabelece que o prazo para a ação anulatória de venda de ascendente a descendente, quando cabível, se conta "da ciência do ato, que se presume absoluto, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis". Presunção absoluta de ciência do ato? Eis a verdade sobre a qual precisamos refletir, senão para encontrar respostas, ao menos para levantar perguntas. Não se discute que o registro do negócio jurídico na matrícula do imóvel tem o condão de torná-lo público, acessível a todos, o que traz como essencial efeito a presunção de ciência por terceiros. O ato registrado pode não ser verdadeiramente conhecido de alguém, mas é indubitavelmente conhecível. A lei 8.245/91 e o Enunciado 545 do CJF partem precisamente dessa premissa, convenhamos, lógica e razoável. Contudo, precisamos ter cuidado com as consequências de tal publicidade sobre as pessoas. Quando o oficial conclui o registro na matrícula, não há intimação dos interessados afetados direta ou indiretamente pelo ato. Não há, por assim dizer, o que se denomina "publicidade ativa". A montanha não vai a Maomé, apenas espera por ele, caso ele decida ou precise vir. O ato será conhecido se e somente por quem pedir uma certidão da matrícula ou, por algum modo, tiver sido avisado do negócio. A compra, se não tiver sido feita pelo filho do Presidente da República ou por outro famoso de interesse da imprensa, ou se não estiver no bojo de uma megaoperação imobiliária, dificilmente virá à superfície, mantendo-se além do horizonte, fora do alcance dos olhos distraídos do locatário ou do condômino prejudicado, e quando ficar à vista, se ficar, provavelmente será tarde demais. A publicidade do ato registral é, assim, passiva e limitada. E por isso mesmo, em nome da coerência do sistema, seus efeitos devem ser interpretados na mesma extensão. Situações diferentes devem ser interpretadas distintamente. Você já se perguntou por que uma averbação premonitória, um registro de penhora ou de arresto, ou de existência de ação, produz plenamente seus efeitos contra terceiros? Que terceiros? Os bilhões de pessoas físicas e jurídicas restantes do planeta? Ao que parece, o terceiro a que a publicidade efetivamente se dirige é o possível adquirente do imóvel, o interessado que, espontaneamente, aliás, obrigatoriamente, obterá uma certidão da matrícula, com a chance real e concreta de descortinar, para sua surpresa, decepção ou indiferença, o gravame ali registrado3. E se no momento da aquisição a penhora, a averbação premonitória, o arresto, a menção à existência da ação ou a indisponibilidade ainda não estiverem na matrícula do imóvel? Ainda assim haverá fraude à execução? Ou, não havendo registro, não há publicidade nenhuma, e por isso, a presunção de boa-fé do adquirente é absoluta? Não há binarismo. Depende. A Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça responde a parte da pergunta. Segundo seu enunciado, o reconhecimento da fraude depende do registro da penhora, ou, não havendo registro prévio de penhora ou ato similar de publicidade, "da prova de má-fé do terceiro adquirente". Siga conosco: se a penhora (ou ato similar) está registrada, fica caracterizada a má-fé, isto é, o conhecimento da demanda ou da constrição; se não há registro, o exequente tem que provar que o adquirente sabia. Entretanto, pode ser que o ônus da prova caia sobre o adquirente; pois se este, por sua condição negocial habitual, deveria saber, ou ao menos, deveria ter sido diligente, não haverá aquisição de boa-fé, e o bem se sujeitará à execução, como o próprio STJ já decidiu mais de uma vez4. A jurisprudência, enfim, reconhecendo que a boa-fé objetiva é uma via de mão dupla, imputa ao adquirente empresarial a comprovação de que foi diligente na aquisição do bem, isto é, que cumpriu adequadamente o ônus de se informar5. Entre o branco e o preto há um mar de cinza na riqueza das situações concretas. Há outro caso que também nos ajuda a chegar onde queremos. O art. 8º da Lei de Locações trouxe a regra "venda rompe locação", ou seja, em caso de alienação do imóvel locado o adquirente tem direito a denunciar o contrato, mesmo aquele protegido pelo direito à renovação compulsória, a não ser que: (i) a locação esteja vigorando por prazo determinado;  (ii) haja cláusula de vigência de caso de alienação; e (iii) o contrato esteja previamente averbado na matrícula do imóvel. Três requisitos concomitantes, e o terceiro deles esbarra no tema tratado neste artigo: a presunção de conhecimento do ato registrado por terceiros. Contudo, embora a lei exija do locatário o preenchimento de três requisitos, o STJ analisou um processo em que o contrato não estava averbado, mas se provou que o adquirente, ao comprar o imóvel, sabia da locação. Isso foi o bastante para a interpretação teleológica do artigo: se a função da exigência de prévia averbação era permitir o conhecimento do contrato pelo terceiro, e se, mesmo sem a averbação, o objetivo estava alcançado, o adquirente não poderia se beneficiar dessa questão meramente formal para retirar o inquilino do imóvel6. Qual é o pano de fundo, o divisor de águas nas questões acima expostas sobre fraude à execução e venda rompe locação? A boa-fé objetiva. A boa-fé tem sido exaustivamente estudada pela doutrina e sistematicamente aplicada pela jurisprudência, especialmente no contexto de que a função de uma categoria jurídica é tão ou mais importante que sua estrutura, condicionando-a. Jogue um líquido amarelo num pote de tinta azul, e algo diferente sairá dessa mistura. Nessa perspectiva funcional e transformadora da boa-fé, uma cláusula geral, se extraem três papéis principais: (i) oxigenar a concepção do contrato e de cada obrigação nele contida, para modernamente enxergá-la como um processo, um encadeamento dinâmico de atos com um fim a tutelar: a legítima expectativa das partes (CC, art. 422)7; (ii) atuar no plano da interpretação das declarações negociais e das condutas das partes (CC, art. 113); e (iii) funcionar corretivamente, balizando o modo do exercício de um direito (CC, art. 187). A correção se opera, fundamentalmente, no plano das condutas, e no momento do exercício dos direitos, faculdades, pretensões, ações, exceções e ônus. Se, então, a boa-fé objetiva pode, deve, e vem sendo utilizada pelo próprio STJ para temperar sua Súmula 375 e o art. 8º da Lei de Locações, porque o mesmo não poderia ocorrer com o art. 33 da Lei do Inquilinato (ou com eventual cláusula convencional) em caso de alienação subterrânea, furtiva, sem qualquer aviso ao locatário ou condômino?8 Portanto, e rumo à conclusão, nos parece certo afirmar que nas alienações silenciosas, violadoras da preferência, o comportamento do alienante agride a boa-fé e fere a legítima expectativa do condômino ou locatário de que seria avisado da intenção de venda, o mesmo se dizendo do adquirente que, sabendo da existência de condômino ou de locatário, decide seguir em frente com a aquisição sem ao menos uma declaração do vendedor de que a preferência estaria sendo respeitada. Em tais casos, o efeito da publicidade passiva decorrente do registro deve ser mitigado, não ocorrendo a presunção de conhecimento pelo titular da preferência profanada, e o prazo decadencial não contará da data do registro da alienação. Sem a presunção militando em seu favor, caberá aos capciosos alienante e adquirente a prova de que o autor da ação teve ciência da transmissão em data anterior ao ajuizamento da ação ou da data por ele alegada, para fins de fixação do termo inicial da decadência. Naturalmente, tal mitigação é excepcional, e deve ser conservadoramente aplicada, levando-se em conta os seguintes critérios: (i) alienação sem prévio aviso: se o titular da preferência, comprovadamente, foi de alguma forma alertado, o dever de monitorar a matrícula permanece sobre seus ombros; (ii) circunstâncias do caso concreto: se, mesmo no silêncio absoluto, havia razões circunstanciais, como um fato notório, que justificassem a atenção do locatário ou condômino diligente, o dever de monitoramento registral igualmente existirá; e, finalmente, (iii) grau de profissionalismo do locatário ou do condômino: ocorrendo a venda silenciosa, não se pode tutelar a confiança de um fundo de investimento com a mesma intensidade de uma pessoa física leiga9. A confiança é o cimento, a base para qualquer convivência social e humana10; um dos fundamentos da boa-fé, que norteia a interpretação legal e contratual, estabelecendo um standard jurídico de probidade para o comportamento das partes e atuando corretivamente em caso de abuso do direito, a fim de tutelar a legítima expectativa. A boa-fé, enfim, funcionaliza e transforma as relações jurídicas contratuais e reais, sendo ingrediente fundamental na interpretação e aplicação das normas legais e cláusulas contratuais. Não podemos nos acomodar diante de certas verdades jurídicas esmagadoras, grandes ou pequenas, importantes ou não, revisitando suas premissas e questionando seu alcance. O direito de preferência, se visto e interpretado com as lentes da boa-fé objetiva, pode ter seu potencial elevado, contribuindo para negócios imobiliários cada vez mais impregnados de lealdade. Que assim seja.   *André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador, Vice-Presidente e Diretor Administrativo do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário. Sócio de Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados.  **Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS, associado do IBRADIM e da AGADIE. Instagram: @demetriogiannakos. __________ *Este artigo é uma versão desenvolvida a partir do texto publicado no Jornal do Notário nº 202, disponível aqui. Acesso em 23.abr.2021.  1 POPPER, Karl. R. A Lógica da Pesquisa Científica. 18. edição. São Paulo: Cultrix, 2012. 2 Neste sentido, confira a seguinte ementa de caso julgado pelo STJ: "RECURSO ESPECIAL. CIVIL. VENDA DE QUINHÃO DE COISA COMUM INDIVISA. DIREITO DE PREFERÊNCIA... INOBSERVÂNCIA AO DIREITO DE PREEMPÇÃO DOS DEMAIS CONDÔMINOS... RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO... Praticado preço simulado pelas partes, fazendo constar da escritura pública preço a menor, que não reflita o valor real do negócio, deve prevalecer aquele exarado na escritura devidamente registrada para fins do direito de preferência, sendo que o registro do título (que tem como atributo dar publicidade da alienação imobiliária a toda a sociedade, conferindo efeito erga omnes) é o ato substitutivo da notificação, que deveria ter sido anteriormente remetida ao coproprietário, mas não foi, não podendo o condômino alienante valer-se da própria torpeza, a qual denota o abuso do direito infringente da boa-fé objetiva.." (REsp 1.628.478/MG, Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. Turma, j. em 03/11/2020, DJe 17/11/2020). 3 Apenas para exemplificar: "AGRAVO DE INSTRUMENTO... ANULAÇÃO ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. REGISTRO DA CITAÇÃO OCORRIDA EM AÇÃO REAL OU PESSOAL REIPERSECUTÓRIA NO ÁLBUM IMOBILIÁRIO. A determinação de registro da citação de ação real ou pessoal reipersecutória na matrícula junto ao registro de imóveis atende ao princípio da publicidade. A medida não constitui restrição ao direito de alienar o imóvel e evita o risco de lesão a terceiros de boa-fé interessados na aquisição do bem. No caso concreto, considerando a pretensão de nulidade da cessão de direitos hereditários, que poderá atingir os negócios jurídicos posteriores, o registro da citação deve recair sobre o imóvel descrito no R-2-5330, e não apenas sobre a meação da agravada. Agravo de instrumento provido" (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70058334566, 19ª Câmara Cível, Rel. Des. Marco Antonio Angelo, j. em 14.08.2014). Grifos nossos. 4 Confiram-se os seguintes trechos: (i) "Destaca-se que a presunção de  fraude  à  execução  quando a alienação  do  bem  do  devedor ocorre após a citação é relativa, ou seja, admite prova em contrário, sendo invertida pelo adquirente que comprova  que  agiu  com  boa-fé  na  aquisição  do  bem, mediante a apresentação  de  certidões  pertinentes  ao  local  onde se situa o imóvel,  além  de  demonstrar  desconhecer  a existência da Execução Fiscal ou da inscrição em dívida ativa em desfavor do alienante" (EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1225829/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1. Turma, j. 14/02/2017); (ii) "Está demonstrada a boa-fé do terceiro adquirente quando este junta aos autos certidões de distribuição cível e de protestos obtidas no domicílio da alienante e no local do imóvel. Não se pode exigir que o adquirente tenha conhecimento de ações ajuizadas em outras comarcas" (REsp 1015459/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19/05/2009); e (iii) "Acrescente-se, apenas, que a boa-fé do adquirente não ficou demonstrada nos autos pois tinha sido cientificado da ação de despejo que poderia resultar em obrigações ao fiador/executado/alienante e especialmente porque dispensou as certidões dos cartórios distribuidores. Com efeito, só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição" (AgRg no REsp 721.960/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª. Turma, j. 14/10/2014). 5 Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, com propriedade, sustentam que "incumbe ao credor, dentro das suas concretas possibilidades, o ônus de empreender esforço razoável para a obtenção - ou, ao menos, para a solicitação - das informações necessárias à formação do seu convencimento ou ao desempenho da prestação assumida no bojo do contrato", que "a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação", e que, "dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar - ou, ao menos, de solicitar - as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado". (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. Acessado em 24 de abril de 2021). 6 Confira-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. COMPRA E VENDA. MANUTENÇÃO CONTRATO DE LOCAÇÃO. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO COMPRADOR... Na hipótese, trata-se de ação de despejo proposta por comprador de imóvel em face de locatário. Discute-se a possibilidade do comprador de imóvel locado proceder à denúncia do contrato de locação ainda vigente, com fundamento na inexistência de averbação da referida avença na matrícula do respectivo imóvel. 4. O Tribunal de origem, após analisar a documentação apresentada pelas partes, que retratava toda a negociação de compra e venda do bem, até a lavratura da respectiva escritura, entendeu que, não obstante ausente a averbação do contrato na matrícula do imóvel, o adquirente tinha a obrigação de respeitar a locação até o seu termo final. 5. Afastada a possibilidade da recorrente denunciar o contrato de locação com base na ausência da sua averbação na matrícula do imóvel porque ela tinha inequívoco conhecimento da locação e concordara em respeitar seus termos em instrumentos firmados com o locador e proprietário anterior... Negado provimento ao recurso especial" (REsp 1269476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 19/02/2013). 7 SILVA, Clovis Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 17. 8 Vitor Frederico Kümpel, ao criticar o Enunciado 545 do CJF, explica justamente a importância de se diferenciar as publicidades ativa e passiva, e que de acordo com o enunciado teria se "operado a decadência do direito dos descendentes, o que por si só é um absurdo" (KÜMPEL, Vitor Frederico. Publicidade passiva X publicidade ativa. Disponível aqui. Acesso em 8.mar.2021). 9 Novamente na lição de Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, a extensão do dever de informar haverá de ser investigada à luz, entre outros fatores, do grau de vulnerabilidade ou assimetria informacional das partes na relação contratual; por um lado, quanto maior a assimetria informacional, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar; por outro lado, quanto menor a assimetria informacional, menos intenso é o dever de informar e mais intenso é o ônus de se informar. Cumpre ao intérprete, portanto, investigar a existência e a exata medida da assimetria informacional entre as partes, por ser justamente essa disparidade originária de informações um dos principais critérios para a definição da intensidade do dever de informar e do ônus de se informar em cada caso concreto. (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo, ob. cit.). 10 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé Objetiva e o Adimplemento das Obrigações. Revista Brasileira de Direito Comparado, v. 25, 2004, p. 229-284. A boa-fé subjetiva, por sua vez, é um estado psíquico, uma crença de estar agindo corretamente. Aqui, o direto protege a crença legítima na juridicidade de certos estados, fatos, atos ou comportamentos.
"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". Essa passagem, em tradução livre, contida no livro "Para Além do Bem e do Mal", de Nietzsche, representa a grande preocupação que a comunidade jurídica tem apresentado no combate do monstro da pandemia pelos poderes da República. A pandemia demonstrou o quanto pode se tornar maquiavélico o enfrentamento de um problema global, não em sentido pejorativo, mas sim de supressão de um racional na escolha dos meios, e sem solução aparente, nos remetendo aos mais primitivos temores da humanidade: a morte. Temos que constatar e reconhecer que, salvo raras exceções, falhamos ou tardamos em estabelecer estratégias eficazes para lidar com crises, o que se prova pela constante adoção de soluções que indicam curta visão e longos problemas. Feito este negativo preâmbulo, é de notório conhecimento a tramitação, no Congresso Nacional, do PL1026/21, que pretende pré-fixar o IPCA como índice de reajuste anual da locação residencial e comercial, sugerindo a inclusão de um parágrafo único ao art. 18 da Lei do Inquilinato: "Art. 18 ..................................................................................... Parágrafo único. O índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao índice oficial de inflação do País medido pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo), ou outro que venha substitui-lo em caso de sua extinção. É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário."(NR) Aqui vale destacar alguns itens sobre os quais não se pretende a análise nestas linhas: (i) a incongruência da alteração, fixando o índice para depois tornar possível suposta dispensabilidade e (ii) a aplicação temporal da Lei, se aprovada (por mais que pareça clara a irretroatividade). Prosseguindo, como passaremos a esclarecer, se trata de mais uma intervenção inconstitucional na economia, ferindo de morte a parte final do art. 174 da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB"). O Constituinte foi claro em dizer que o Estado, "agente normativo e regulador", será determinante para iniciativa econômica pública e indicativo para a privada. Mas o que isto significa? Parece adequado o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para quem a intervenção estatal deve se ater a uma justificativa determinante, como o funcionamento anormal da iniciativa privada ou a necessidade de sua reorganização1. Ademais, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o Estado "deve para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade"2, mostrando-se compreensivo apenas na presença de justificativas sólidas e marcante interesse social3. Há alguns anos, vê-se um movimento, por parte do Poder Legislativo, de leitura míope da Constituição, em que se simula um confronto intransponível entre valores constitucionais, devendo um deles prevalecer pelo bem comum (seja lá qual for o seu significado). Como consequência, temos uma profusão de projetos de Lei demasiadamente intervencionistas. Tal fenômeno também se verifica no Poder Judiciário. Todavia, nestas linhas, deixaremos de lado a apreciação do seu papel na equação desse enclosure da iniciativa privada. A bem da verdade, essa polarização constitucional soa intuitiva. Na sua sustentação, apresenta-se comumente um discurso eloquente, moralmente afinado e capaz de carrear salvas de palmas, mas que pode impor danos irreparáveis ao tecido jurídico. É de sabença que a escolha de valores constitucionais para solução de questões, notadamente no campo legislativo, não pode ceder a uma opção discricionária entre eles. Assim, não se deve buscar a prevalência, mas sim a sua aplicação simultânea, compatibilizada e harmônica4. Sob a lente do equívoco da polarização constitucional, o PL debatido transforma o IGP-M em um "monstro-moinho" da pandemia, seu inimigo número um. Assim, em uma versão quixoteana do direito social à moradia e na sua necessária proteção, afirma, sem nenhuma base racional, que o IPCA é o índice eleito para supostamente salvaguardá-lo, sob a alegação de que o IGP-M se apresentou demasiadamente elevado no período pandêmico. Como dito, esta solução, oriunda de uma leitura enviesada da CRFB, ignora a premissa da ordem econômica levantada no princípio deste ensaio, que coloca o Estado no exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, mas não de interventor ilimitado5. É preciso respeitar a máxima de Carlos Maximiliano, repetida pela jurisprudência nacional6, que dizia que não se pode presumir a inutilidade das palavras na Lei, especialmente aquelas proferidas pelo Constituinte. É preciso respeitar, ao menos, o núcleo semântico do vernáculo. Ao afirmar que o Estado é indicativo para a inciativa privada, é aberrante imaginar que poderia o legislador intervir como quisesse em dinâmicas contratuais. Por óbvio, não se pode esquecer do direito social à moradia, devendo o Estado fiscalizar abusos, incentivar formas mais econômicas de locação (talvez a social) e planejar políticas públicas habitacionais. Porém, sua invocação não autoriza uma intervenção direta no plano legislativo sobre o preço e sua rentabilidade, aspectos pactuados pelas partes em um contrato civil, presumidamente paritário e, portanto, com igual proteção constitucional. Parece-nos adequada a seguinte conclusão: não cabe ao Estado ditar regras de preço ou definir índices de seu reajuste, para a iniciativa privada, quando se está diante de nichos não regulados ou na ausência de fundamentos que autorizem a excepcionalidade. E aqui é preciso afirmar que o mercado locatício não é mercado regulado, não se podendo admitir a interpretação de que a tipicidade contratual o elevaria a tal categoria. Claramente, não se nega a relevância social do contrato, mas tal constatação igualmente não autoriza a intervenção indireta na forma pretendida. Necessário rememorar, que o reajuste do preço do aluguel, previsto na Lei do Inquilinato e na Lei nº 9.069/95, tem por objetivo histórico manter em dia o racional econômico (posto pelas partes) do contrato civil, evitando seu rompimento e garantindo, aí sim, o direito social à moradia e a legítima expectativa econômica das partes. Não se pode admitir que, por uma argumentação populista, desprovida de razoabilidade ou proporcionalidade, se ignore o importante vetor econômico da locação imobiliária. Isto porque a locação de bens imóveis é um negócio típico, inserido em um mercado maduro, com práticas e costumes já consolidados. Obviamente, o legislador pode (e deve) abordar questões acessórias e periféricas: periodicidade, condutas abusivas e normas protetivas, mas nunca ditar ou limitar a rentabilidade de uma operação, mais uma vez, presumidamente paritária, inclusive por novel diploma infraconstitucional7. Sendo certo a imprescindibilidade de justificativa para a intervenção, nos deparamos com o fato de que não há fundamento jurídico em "congelar" o índice de forma perene, senão vejamos: (i) o IPCA é variável (podendo potencialmente ultrapassar o IGPM ou gerar deflação não esperada), bem como pode ter, a qualquer momento, seu método de cálculo modificado; (ii) não se pode equiparar os vetores econômicos da locação residencial e "comercial", ante a sua distinta natureza e razão econômica; (iii) a pandemia é circunstancial e passageira, por mais que não se possa precisar o tempo. É marcante a contatação de que a escolha do IPCA carece de razoabilidade na medida em que não apresenta solução juridicamente aceitável para os fins preconizados e admitidos pela CRFB8. A baixa variação do IPCA não o torna o índice mais adequado, até, historicamente, já esteve mais elevado que o IGP-M. Assim, o que de fato pretende o legislador é, única e exclusivamente, reduzir a rentabilidade da locação, o que não pode ser admitido. Um alerta: não se pode colocar panos quentes na verdadeira hecatombe que o COVID-19 se tornou, ceifando as vidas de milhares, sendo certo que qualquer medida que busque ironizar, menosprezar ou negar o seu significado e cicatriz na sociedade brasileira, beira atitude criminosa. Contudo, analisando com a serenidade necessária a medida legislativa proposta, constata-se que, para além de não resolver o problema, cria uma solução equivocada e desproporcional; em outras palavras, tenta vencer um moinho com uma lança. Noutro ponto, a irrazoabilidade do PL se caracteriza também no desprestigio dos remédios de intervenção judicial postos pelo legislador infraconstitucional para enfrentar eventuais descompassos produzidos por eventos imprevisíveis e extraordinários, com ampla aplicação concreta pelo Poder Judiciário. É preciso compreender que a pandemia deve ser combatida, não regulamentada. Pode-se vislumbrar um regime transitório, mas nunca um regime geral, com consequências nocivas a posteriori. Em uma abordagem mais consequencialista, pensando na política habitacional por exemplo, essa intervenção pode desestimular a oferta de imóveis para locação residencial, o que fortaleceria ainda mais as mazelas deixadas pela pandemia. Em conclusão, por mais nobre que possa ser o intento das Casas Legislativas, intervenções dessa natureza flertam perigosamente com a subversão do espírito constitucional, vocacionado, acima de tudo, ao equilíbrio dos valores e direitos cuidadosamente construídos pelos Constituintes. Devemos ser cautelosos e conscientes, pois o abismo tenta nos mirar e uma lança não vence moinhos. *Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor convidado dos programas pós-graduação da UERJ, NUFEI e UCAM. Secretário-geral da Comissão Especial de Direito Imobiliário e Direito Urbanístico da OAB/RJ. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Privado Patrimonial e Direito Imobiliário. **Vinicius Bragança é advogado. Presidente da Comissão de Litigation e Gestão de Contencioso da 57ª Subseção da OAB/RJ. OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Processual Civil. __________ 1 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226: 187-212, out./dez. 2001. Pág. 204-205. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 958252 MG - MINAS GERAIS. 3 Idem. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE : ADI 1950 SP - SÃO PAULO. 4 SARLET, Ingo Wolfgang apud LIMA, George Marmelstein, A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navegandi. Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. 5 Disponível aqui. Acessado em 21/04/2021. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO: ARE 1002041-89.2018.8.01.0000 AC - ACRE. 7 Lei de Liberdade Econômica (lei13.874/2019). 8 BARROSO, Luís Roberto. "Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional". Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998. Pág. 71.
Introdução A pandemia da Covid-19 exigiu dos governantes mundiais a tomada de medidas drásticas a fim de garantir o necessário distanciamento social da população, o que acarretou a suspensão de atividades comerciais não essenciais à sociedade, bem como a proibição de atendimento presencial em estabelecimentos comerciais. Nesse contexto, a pandemia tem sido responsável por uma crise econômica sem precedentes, que afetou as diversas indústrias brasileiras em diferentes níveis. Entre os setores afetados está o da construção civil que, embora tenha sido enquadrado como setor essencial da sociedade, tem visto o aumento constante de preços dos insumos necessários à sua consecução, principalmente em relação aos materiais de construção, com constante aumento da demanda1. A questão tem alcançado tamanha proporção que a falta ou o alto custo de matéria-prima foi considerado o principal problema enfrentado por empresários do setor ainda no quarto trimestre de 20202. Materiais como ferro, aço, alumínio, PVC e tijolos são alguns dos que tiveram oferta insuficiente nos últimos meses3, e a pouca oferta apresentou aumentos de 40 a 70% de seus preços em condições normais. Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) quantificou a dificuldade na aquisição de insumos: "Ao todo, 68% das empresas pesquisadas relataram dificuldades para comprar insumos no mercado doméstico. Ou seja, cerca de dois terços das indústrias. Pouco mais de 55%, que usam insumos importados, estão com dificuldades de comprá-los no mercado internacional. E, para piorar, mais de 80% das indústrias perceberam que os preços subiram. Cerca de 30%, inclusive, disseram que a alta foi acentuada. Está aí a prévia do IPCA 15 de outubro do IBGE que não deixa mentir.  A sondagem especial da CNI mostrou ainda que 44% das empresas estão com dificuldades de atender os pedidos dos clientes e as principais razões apontadas são falta de estoque (47%), demanda maior que a capacidade (41%) e incapacidade de aumentar a produção (38%). Sendo que a incapacidade de produzir mais vem por conta da falta de insumo e a falta de insumo vem por conta de que ninguém tem estoque, e assim vai num círculo vicioso. Nas previsões da CNI, a falta de produtos pode durar três meses ainda.4" Segundo o setor da construção civil, esta alta pode ser atribuída ao aumento do dólar e à escassez mundial de produtos, o que provoca a exportação de matéria prima mais atrativa para os fornecedores brasileiros. Fato é que o encarecimento expressivo dos insumos básicos à indústria da construção civil ocasiona o aumento do custo da obra, afetando os contratos firmados entre fornecedor e construtora, construtora e incorporadora, e, em última instância, prejudica a mantença dos contratos já firmados entre incorporadora e adquirentes. Tendo em vista tal cenário, esse arrazoado pretende tratar da recente situação de aumento expressivo do preço dos insumos em percentual acima do praticado nos últimos anos, em razão da escassez de produtos por conta da pandemia, e também diante de obras já contratadas, lançadas e com unidades vendidas, não se estendendo para hipóteses em que seja possível equilibrar as contas com o repasse ao consumidor final, isto é, antes do lançamento do empreendimento imobiliário. Isto porque, em que pese a possibilidade de pleito judicial de reequilíbrio de contratos já assinados, não se faz possível pleitear a redução de preços ofertados ao mercado em contratos ainda não firmados, por se tratar de tentativa de interferência na lei da oferta e da demanda, e até mesmo na interferência do Poder Judiciário na esfera econômica. Hipóteses Legais de Revisão Contratual A lei civil brasileira, inspirada por legislações estrangeiras, permite que em situações excepcionais a rigidez de um contrato celebrado entre partes igualitárias possa ser flexibilizada. Esta previsão encontra-se positivada no Código Civil em seus artigos 421-A, III de maneira genérica, 478 a 480, com o chamado instituto da "onerosidade excessiva", no artigo 317 quando se trata de correção do preço contratado, e, no que se refere à matéria específica objeto desta análise, no artigo 625, I nos contratos de empreitada. Há também a previsão de revisão contratual na legislação consumerista de forma mais ampla, apenas para o consumidor, em seu artigo 6º inciso V, o que será tratado mais adiante. a) Instituto da onerosidade excessiva O artigo 478 do Código Civil prevê a possibilidade de rescisão do contrato de execução continuada ou diferida caso a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, desde que cumpridos alguns requisitos. São estes requisitos: (i) que o contrato seja de trato continuado ou diferido; (ii) que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa; (iii) que a outra parte da relação contratual receba uma extrema vantagem ao mesmo tempo, e; (iv) que a razão desta onerosidade excessiva seja por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O artigo 579, seguinte, permite que a parte que recebeu a vantagem exagerada evite a rescisão contratual, desde que concorde em modificar equitativamente o contrato. Trata-se do restabelecimento do equilíbrio, ou da presunção de paridade prevista no caput do artigo 421-A. Em tese, as partes iguais têm, no momento da formação contratual, todas as informações e experiências necessárias para acordar as condições contratuais, sejam elas inerentes à sua parte na avença, ou externas mas que possam influenciar no desempenho contratual. Quando um evento externo e imprevisível, como inquestionavelmente a pandemia de Covid-19 é, ocorre e produz efeitos na relação contratual, o instituto da onerosidade excessiva permite que a parte que comprovadamente sofreu prejuízos expressivos resolva o contrato sem dever de indenizar. A revisão contratual pela parte que recebe a vantagem exagerada não se trataria de regra, mas sim uma faculdade. O Poder Judiciário, contudo, por muitas vezes ignora tal faculdade, e a interpreta como uma obrigação do credor em revisar os termos contratuais, fazendo isso por ele. Vejamos: Agravo de instrumento - locação de imóvel comercial - ação revisional de alugueres - insurgência contra r. "decisum" que trouxe indeferida tutela de urgência - pretendida redução nos locativos, dentro em o período de quarentena imposto pelo poder público, do equivalente a 50% (cinquenta por cento) - pandemia do coronavírus acomodada ao conceito de fato superveniente imprevisível desencadeador de onerosidade excessiva, e por isso a autorizar a revisão do contrato de locação - exegese dos artigos 317, "caput", e 478, "caput", ambos do Código Civil - aplicabilidade, ainda, da teoria da imprevisão - requisitos alicerçadores da excepcional medida evidenciados em sede de cognição sumária - redução dos locativos no percentual de 50%(cinquenta por cento) - distribuição equitativa dos prejuízos oriundos da conjuntura - decisão reformada - recurso provido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2119914-29.2020.8.26.0000; Relator Tercio Pires; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 10/09/2020) Revisional. Contrato bancário. Tutela deferida para suspensão das parcelas de contrato pelo prazo de 120 dias. Agravo de instrumento. Empresa que atua no ramo de educação ministrando cursos livres. Inteligência do art. 300, NCPC. Pandemia. Caso de força maior. Contexto econômico que impõe risco de dano irrecuperável ao devedor, diante do risco de quebra. Boa-fé contratual. Inteligência dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil. Possibilidade de se aplicar mudanças no instrumento contratual de modo equitativo a fim de evitar o rompimento do laço contratual. Medida transitória. Verossimilhança do direito alegado. Presença do 'periculum in mora'. Presentes os requisitos para a concessão da tutela provisória de urgência. Suspensão da cobrança de títulos e de juros e encargos decorrentes enquanto durar a suspensão das atividades decorrentes do Decreto Estadual de que estabeleceu a quarentena no Estado de São Paulo. Agravo de instrumento provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2109131-75.2020.8.26.0000; Relator: Virgilio de Oliveira Junior; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/09/2020) Ainda que tecnicamente contestável aludido posicionamento do Poder Judiciário, fato é ser possível, desta forma, suscitar a onerosidade excessiva no rompimento e na tentativa de revisão contratual aos contratos em curso, desde que preenchidos os requisitos anteriormente citados, o que ocorre nas relações contratuais firmadas entre fornecedores, construtoras e incorporadoras. b) O artigo 317 e a correção monetária Em que pese o emprego comum pela jurisprudência pátria na fundamentação do deferimento da revisão contratual com a aplicação do artigo 317 do Código Civil, combinado aos artigos relativos à onerosidade excessiva anteriormente citados, as razões dos motivos do projeto de lei que se tornou o Código Civil, bem como a literalidade de seu texto, permitem a interpretação de que o legislador visava unicamente aplicar a devida correção monetária a prestações contratuais que, por motivos imprevisíveis, não foram atendidas, ou quando sua correção absolutamente não acompanhou corretamente a inflação. Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Conforme ensina José Fernando Simão, o objetivo do legislador foi "permitir, exclusivamente, que o juiz fixe correção monetária em contrato no qual as partes não avençaram". Todavia, tem sido admitida a aplicação mais abrangente do referido artigo como aponta o próprio Simão em Código Civil Comentado5: "A doutrina viu no dispositivo uma cláusula geral de revisão da prestação contratual que se altera entre o momento da formação do contrato (plano de existência) e o momento de sua execução ou cumprimento (plano de eficácia). Para que o juiz possa realizar a revisão contratual, deve haver i) manifesta desproporção entre o valor da prestação no momento da formação e execução e ii) a desproporção decorrer de motivos imprevisíveis." c) Suspensão dos contratos de empreitada Sem prejuízo da observância e suscitação judicial dos dispositivos anteriores, há especial previsão no Código Civil de suspensão das obras nos contratos de empreitada firmados, quando ocorrer algum motivo de força maior, ou quando sobrevierem dificuldades imprevisíveis que onerem a empreitada e o dono da obra rejeitar a possibilidade de revisão do preço. Art. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra: I - por culpa do dono, ou por motivo de força maior; II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços; In casu, o motivo de força maior a ser suscitado não haveria de ser o mero encarecimento de materiais, mas sim o agravamento da pandemia, que ocasiona a escassez de material, e por consequência o aumento abusivo e imprevisível de preços. As flutuações de preços do mercado são consideradas pela jurisprudência como fatos previsíveis e fortuito interno incapaz de afetar a base contratual, como se verifica pelos julgados abaixo. RECURSOS DE APELAÇÃO E EX OFFICIO EM AÇÃO ORDINÁRIA. ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. REEQUILIBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. 1. Contrato administrativo celebrado para execução de obra em regime de empreitada integral, descumprimento contratual da CDHU em reajustar os preços contratados em periodicidade anual, reajustes que foram realizados e aplicados no 13º mês, prejuízo configurado, compensação financeira devida. 2. Aumento dos insumos e mão de obra acima do valor médio de mercado, situação que configura mera flutuação de preço de mercado, inexistência de situação imprevisível, inevitável e extremamente onerosa ao contratado a autorizar o reequilíbrio econômico e financeiro do contrato. 3. Sentença mantida. Aplicação do disposto no art. 252 do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça. Recursos desprovidos  (TJSP; Apelação Cível 0009205-55.2004.8.26.0053; Relator Marcelo Berthe; Órgão Julgador: 3ª Câmara Extraordinária de Direito Público; Data do Julgamento: 25/11/2014) CONTRATO ADMINISTRATIVO. Fornecimento de madeiras. Descumprimento parcial do objeto contratual. Aplicação das penalidades de rescisão contratual, multa e suspensão de licitar e contratar com o Poder Público. Cabimento. Entrega dos materiais fora do prazo, por diversas vezes, de responsabilidade da autora. Ausência de Documento de Origem Florestal que deveria acompanhar a entrega. Previsão no edital e no contrato. Alegação de quebra do equilíbrio econômico-financeiro, em razão do aumento do preço dos insumos. Inocorrência. Variação dos preços de mercado que constitui fato previsível. Autora que, ciente, assumiu o risco inerente ao negócio à época da contratação. Penalidades legais e devidas, por descumprimento do contrato. Demanda improcedente. Recurso não provido.  (TJSP; Apelação Cível 0007809-53.2008.8.26.0554; Relator Edson Ferreira; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 15/12/2010) Contudo, o cenário atual, em que declarada calamidade pública, e as consequências recentes do agravamento da pandemia no cenário da construção civil conforme anteriormente delineados, desde que devidamente comprovadas as dificuldades de atendimento ao prazo de obra, como por exemplo com diário de obras ou outros elementos similares, constituem motivos de caso fortuito externo capazes de justificar a suspensão da execução da mencionada obra. A relação consumerista As relações entre fornecedores e consumidores têm proteção especial no Direito brasileiro, sendo reguladas pelo Código de Defesa ao Consumidor (CDC), o qual estabelece como direito básico do consumidor em seu artigo 6°, inciso V, a revisão de cláusulas contratuais por onerosidade excessiva, tendo como único requisito que essa seja causada por fato superveniente. A relação entre o adquirente da unidade e o incorporador merece distância de tratamento das relações entre fornecedor, construtor e incorporador, por se tratar, à luz da lei e da doutrina, de uma relação entre partes desiguais. Assim, de acordo com o CDC, a única possível revisão contratual haveria de advir em benefício do consumidor, e somente se requerida por ele. Isto porque a lei presume que a posição do consumidor seja a mais frágil da relação, e por isso faculta a este a possibilidade de equilibrá-la. Não nos parece haver empecilho, contudo, para a aplicação da teoria da onerosidade excessiva, insculpida nos artigos 478 e seguintes do Código Civil, caso o incorporador seja aquela parte mais prejudicada pelo fato superveniente e imprevisível. Por óbvio que neste caso possivelmente a jurisprudência se tornará mais rígida em averiguar a presença de todos os requisitos legais do artigo, os quais deverão ser cabalmente demonstrados em uma lide, a fim de possibilitar apenas a rescisão contratual, jamais a revisão de preços. Ou seja, o incorporador deverá abrir seus números para comprovar que quando o VGV do empreendimento foi montado, quando ocorreu o lançamento do empreendimento, e quando a unidade imobiliária foi precificada e vendida, era imprevisível a alta expressiva dos insumos, a qual foi motivada por sua escassez durante a pandemia. Será necessário comprovar, por meio de estudos fundamentados, que tal alta tem relação direta com o agravamento da pandemia, e que ao tempo dos eventos descritos no item anterior não era possível prevê-la. Deverá ainda demonstrar o incorporador que o consumidor irá adquirir uma unidade por preço inferior ao praticado nos novos lançamentos do mercado, que surgirão já prevendo a alta de preços em seu VGV, e isso colocará o consumidor em posição de extrema vantagem, em prejuízo igualmente extremo do incorporador. Ainda, nesse caso, entendemos que deverá se tratar de uma ação conjunta contra diversos consumidores, possivelmente separados por empreendimento, para demonstrar a globalidade do problema. De toda forma, invocando novamente o artigo 317 do Código Civil, poderá o fornecedor demonstrar, também por laudo fundamentado, que a correção monetária que gerou um aumento expressivo do valor final de mercado do produto antes vendido, não foi expressa no índice eleito no contrato firmado, motivo pelo qual, judicialmente, há que se corrigir corretamente o saldo devedor do preço ajustado, de modo a ser mantida a base contratual, evitando-se assim a sua resolução por onerosidade excessiva. Da perícia técnica a ser realizada, e do valor final a ser apurado para o convencimento do Juízo, ter-se-á o verdadeiro ajuste do preço combinado pelas partes à época da venda da unidade autônoma alienada, que será devido pelo adquirente, por força de decisão judicial.  Conclusão Diante deste cenário, é possível concluir que, guardada a paridade de relações, os contratos firmados no meio da construção civil são passíveis de revisão judicial, seguidos os trâmites e requisitos dos artigos 317, 478 e seguintes do Código Civil, desde que comprovada a anormalidade do aumento dos insumos, que não refletiria o cenário econômico, e nem seria possível a sua previsão quando da contratação entre as partes. *Olivar Lorena Vitale Junior é advogado, sócio fundador do VBD Advogados, Presidente do IBRADIM, Membro do Comitê de Gestão da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo (SMUL), Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP, Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário), Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC,  Professor e Coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da Especialização/MBA da POLI-USP, Professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino. **Regina Céli Silveira Martins é advogada, associada no VBD Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas, membro da comissão de Contencioso Cível no IBRADIM. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 SIMÃO, José Fernando. Código Civil Comentado. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 394 e 395.
A "rescisão" das promessas de compra e venda, em suas várias modalidades, é assunto recorrente na pauta do mercado imobiliário ao menos desde a segunda metade da década passada. Ainda que sem a observância da melhor técnica, convencionou-se chamar o desfazimento do negócio de "distrato". A lei 13.786 de 27 de dezembro 2018, que "altera as leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano" ficou conhecida simplesmente como "Lei dos Distratos". Assim, apenas para melhor compreensão e delimitação do objeto de estudo, cabe fazer um esclarecimento inicial. Para fins deste artigo, e sem qualquer pretensão de estudo amplo e aprofundado dos modos de extinção anormal dos contratos1 por causa superveniente à sua formação, consideremos que o desfazimento de um negócio pode ocorrer por resolução, distrato (por vezes também chamado resilição bilateral) ou resilição unilateral. A resolução é o que ocorre no caso de inexecução do contrato - voluntária ou involuntária, com ou sem culpa. O distrato é o acordo de vontades entre as partes contratantes para colocar fim ao negócio. Por fim, a resilição unilateral é o que ocorre no caso de desistência de um dos contratantes - e mais especificamente para os fins do presente estudo, desistência do adquirente em relação ao contrato de promessa de compra e venda, sem que haja culpa do incorporador pelo pedido de rescisão2. Embora o artigo 473 do Código Civil preveja que a resilição somente é cabível quando o contrato assim o permitir, expressa ou implicitamente, e a despeito da previsão de irretratabilidade e irrevogabilidade das promessas de compra e venda, é firme o entendimento jurisprudencial pela possibilidade de desistência pelo adquirente, que obterá a seu favor a restituição parcial dos valores pagos3. A questão que merece ser examinada é a seguinte: no caso de resilição do contrato (desistência do adquirente), qual o critério a ser utilizado a fim de averiguar a concursalidade do crédito (restituição parcial dos valores pagos) em caso de recuperação judicial do promitente-vendedor? A matéria é relevante porque a crise do mercado imobiliário fez com que algumas das maiores incorporadoras do país ingressassem, nos últimos cinco anos, com pedidos de recuperação judicial, como ocorreu por exemplo com os Grupos Viver, PDG, Tiner, Urbplan e Odebrecht. O artigo 49 da Lei de Recuperações Judiciais e Falências (lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005) estabelece que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". A controvérsia residia em definir o que seriam os "créditos existentes na data do pedido"4. Recentemente, ao analisar o Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça firmou tese nos seguintes termos: Questão submetida a julgamento Interpretação do artigo 49, caput, da Lei n. 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. Tese Firmada Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.                A orientação consolidada no repetitivo veio reafirmar o entendimento que há muito vinha prevalecendo no próprio STJ5-6 e em outros Tribunais7 (não só para os casos envolvendo compra e venda de imóveis, vale mencionar). A análise acerca da sujeição ou não do crédito à recuperação judicial depende do momento de ocorrência de seu fato gerador, sendo irrelevante o momento do trânsito em julgado de eventual decisão condenatória. Nos casos de demandas indenizatórias decorrentes de atraso na entrega do imóvel, por exemplo, o fato gerador é o atraso; sendo este anterior ao pedido de recuperação, o crédito estará a ela submetido8. A questão a ser respondida, então, é a seguinte: qual o fato gerador no caso de desistência do negócio por parte do adquirente (resilição por iniciativa do adquirente), qualquer que seja o motivo? Estamos convencidos de que a resposta, por sua vez, é a seguinte: é a própria celebração do contrato. A análise da ocorrência do fato gerador em tais situações retroage, necessariamente, ao momento da celebração do contrato, que servirá de marco temporal para definir a sujeição (ou não) do crédito à recuperação judicial. Existem alguns elementos que corroboram essa conclusão. Assim, vale destacar o que observou o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no voto condutor proferido por ocasião do julgamento do Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos (grifamos): A existência do crédito está diretamente ligada à relação jurídica que se estabelece entre o devedor e credor, o liame entre as partes, pois é com base nela que, ocorrido o fato gerador, surge o direito de exigir a prestação (direito de crédito). [...] Na responsabilidade civil contratual, o vínculo jurídico precede a ocorrência do ilícito que faz surgir o dever de indenizar. Na responsabilidade jurídica extracontratual, o liame entre as partes se estabelece concomitantemente com a ocorrência do evento danoso. De todo modo, ocorrido o ato lesivo, surge o direito ao crédito relativo à reparação dos danos causados. Em outras palavras, os créditos submetidos aos efeitos da recuperação judicial são aqueles decorrentes da atividade do empresário antes do pedido de recuperação, isto é, de fatos praticados ou de negócios celebrados pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, excetuados aqueles expressamente apontados na lei de regência. [...] Nessa linha, foi editado o Enunciado nº 100 da III Jornada de Direito Comercial, que tem o seguinte teor: "Consideram-se sujeitos à recuperação judicial, na forma do art. 49 da lei 11.101/2005, os créditos decorrentes de fatos geradores anteriores ao pedido de recuperação, independentemente da data de eventual acordo, sentença ou trânsito em julgado." Em resumo, ocorrido o fato gerador, surge o direito de crédito, sendo o adimplemento e a responsabilidade elementos subsequentes, não interferindo na sua constituição.  Portanto, ocorrido o fato gerador, considera-se o crédito existente, estando submetido aos efeitos da recuperação judicial. Frise-se: o STJ concluiu que estão sujeitos à recuperação os créditos "decorrentes da atividade do empresário antes do pedido de recuperação", ou de "negócios celebrados pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial". Daí se poder afirmar que no caso de resilição de contrato celebrado antes do pedido de recuperação, o crédito titularizado pelo adquirente (referente à restituição parcial dos valores pagos) estará sujeito à recuperação judicial, devendo ser recebido nos moldes do plano aprovado. Sem dúvida, "a noção de crédito extraconcursal é reservada às obrigações constituídas pelo devedor durante o período de recuperação, visto que o objetivo deste novo regime jurídico é a preservação da atividade empresarial"9. O direito reconhecido ao adquirente de desistir do negócio nasce no instante imediatamente subsequente ao de sua celebração - sendo este, portanto, o fato gerador do crédito. Se o adquirente desiste do negócio 15 dias ou seis meses depois, o efeito jurídico produzido é o mesmo: desfazimento do negócio e restituição parcial dos valores pagos. Trata-se, todavia, de crédito sujeito a condição suspensiva, que somente será exigível caso o adquirente manifeste seu interesse no desfazimento do negócio; e ilíquido, a exigir a definição da quantia exata a ser efetivamente restituída (a depender do montante pago e da retenção aplicável). Ainda assim, trata-se de crédito existente na data do pedido, como prevê o art. 49 da lei 11.101 de 200510, e por isso sujeito à recuperação judicial11. Embora existam diversos precedentes que fazem menção expressa à data de ocorrência do fato gerador do crédito objeto de discussão, não há definição clara acerca de qual seria este fato gerador nas hipóteses de resilição unilateral por iniciativa do adquirente. Em algumas situações, o TJSP já adotou entendimento de que seria a data de ajuizamento da demanda12, o que parece equivocado. Na verdade, entendimento diverso do aqui sustentado conduziria a uma situação absolutamente ilógica e incompatível com a ordem jurídica. Explica-se. Como dito, no caso de resolução do contrato (rescisão por culpa do vendedor - como ocorre no caso de atraso, por exemplo), o fato gerador é o inadimplemento; sendo anterior à recuperação judicial, o crédito estaria a ela sujeito (seria concursal). Desse modo, adotar marco diverso (do momento da celebração do contrato) para definição do fato gerador no caso de resilição unilateral significaria garantir ao adquirente que injustificadamente desiste do negócio posição tida como mais benéfica que aquela do adquirente prejudicado pelo inadimplemento da parte vendedora. Ou ainda: imagine-se a situação de dois adquirentes de unidades em um mesmo empreendimento, que celebraram seu contrato no mesmo dia; meses após a celebração do negócio, ambos cessam os pagamentos das parcelas devidas. Um deles, entretanto, decide pela propositura da ação de rescisão do contrato (requerendo a restituição dos valores pagos) dias antes do pedido de recuperação judicial. O outro, por sua vez, embora também tenha cessado os pagamentos juntamente com o primeiro, somente propõe a ação semanas após o pedido de recuperação judicial. Parece absolutamente ilógico que apenas um deles tenha seu crédito submetido à recuperação judicial. Admitir situações tão incongruentes significa atentar contra a coerência do ordenamento jurídico. Vale observar que seria diferente a situação daquele que celebra o contrato após o pedido de recuperação judicial. Exigir que este crédito também se submetesse à recuperação (em caso de resilição) representaria absoluto desestímulo à celebração de qualquer negócio com a empresa em recuperação - frustrando os objetivos do próprio instituto. Conforme observado pelo professor Marlon Tomazette: Durante o processo de recuperação judicial a atividade do devedor normalmente prossegue e, consequentemente, são assumidas obrigações, as quais são classificadas como extraconcursais, para não prejudicar as pessoas que mantiveram a negociação com o devedor em recuperação judicial. Pelos mesmos motivos, os atos válidos praticados pelo administrador judicial durante o processo de falência também terão essa classificação. Se não fosse dado esse privilégio, ninguém praticaria tais atos13. Em síntese, é possível imaginar as seguintes situações e soluções:   Adquirente 1 Adquirente 2 Adquirente 3 Adquirente 4 Celebração do contrato Anterior ao pedido de recuperação judicial Anterior ao pedido de recuperação judicial Anterior ao pedido de recuperação judicial Posterior ao pedido de recuperação judicial Fundamento do pedido Inadimplemento do vendedor (resolução) Desistência do adquirente (resilição) Desistência do adquirente (resilição) Desistência do adquirente (resilição) Fato gerador Inadimplemento Celebração do contrato Celebração do contrato Celebração do contrato Ajuizamento da ação Anterior ao pedido de recuperação Anterior ao pedido de recuperação Posterior ao pedido de recuperação Posterior ao pedido de recuperação Conclusão Crédito submetido à recuperação judicial Crédito submetido à recuperação judicial Crédito submetido à recuperação judicial Crédito não submetido à recuperação judicial Somente desse modo é possível garantir tratamento verdadeiramente isonômico aos credores de uma mesma classe na recuperação judicial. A questão também foi analisada pelo Ministro Relator no voto do já citado Recurso Repetitivo, do qual se extrai o seguinte trecho: É oportuno consignar que esse entendimento é o que melhor garante o tratamento paritário entre os credores, pois se a existência do crédito dependesse de declaração judicial, algumas vítimas do mesmo evento danoso poderiam, a depender do trâmite processual, estar submetidas aos efeitos da recuperação judicial, enquanto outras não. Há, evidentemente, resistência do adquirente à sujeição de seu crédito ao concurso de credores. De fato, a submissão à recuperação judicial significa ingressar no final de uma fila (porque o crédito é quirografário) que pode incluir milhares (ou mesmo dezenas de milhares) de outros credores. Além disso, os planos normalmente preveem descontos sobre os créditos concursais e prazos alongados de pagamento. Apesar disso, exame mais cuidadoso permite concluir que a sujeição do crédito à recuperação judicial poderá ser benéfica ao adquirente. A uma, porque melhor atende às finalidades do processo recuperacional, possibilitando a efetiva retomada da atividade que irá permitir a quitação das obrigações pelo devedor; para o credor, é melhor que tenha efetivas condições de honrar com as obrigações assumidas, sem o que se instauraria processo de falência. A duas, por assegurar ao credor a possibilidade de requerer a convolação da recuperação em falência no caso de descumprimento da obrigação, conforme previsto no art. 61, § 1º da Lei 11.101/2005; essa possibilidade é uma importante ferramenta que serve de "incentivo" ao fiel cumprimento da obrigação pelo devedor. A três, porque a execução individual movida perante Juízo diverso do recuperacional seria absolutamente desprovida de enforcement, já que somente o Juízo da recuperação é competente para a prática de quaisquer atos de constrição patrimonial em desfavor do devedor14. De todo modo, há que se considerar que o processo recuperacional jamais pode ser examinado sob o prisma de interesses individuais considerados de forma isolada. A finalidade precípua do processo é a preservação da empresa mediante superação da crise econômico-financeira, conforme se depreende do artigo 47 da já citada lei 11.101 de 2005. Busca-se, portanto, um equilíbrio entre o exercício da atividade e o interesse de todo o contingente de credores, especialmente mediante tratamento isonômico àqueles integrantes de uma mesma classe. Por tudo isso, deverá ser tido como concursal (isso é, sujeito à recuperação judicial) o crédito decorrente de resilição de contrato de promessa de compra e venda celebrado anteriormente ao pedido de recuperação judicial, sendo que a data da celebração do contrato deverá ser considerada como o marco temporal para apuração do fato gerador da obrigação nessas situações. *Bruno de Souza Ferreira Ramos é advogado do Escritório Fazano & De Lucca Advogados. Master of Laws (LL.M) em Direito Societário pelo Insper (em andamento). Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito. Membro das Comissões de Negócios Imobiliários e de Contencioso Imobiliário do IBRADIM. __________ 1 Porque a extinção normal é o adimplemento. 2 A confusão terminológica foi bem explicada pelos brilhantes professores André Abelha e Olivar Vitale em artigo publicado anteriormente nesta coluna, cuja leitura certamente é mais que recomendável. ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 543 do STJ: por que revisá-la? Migalhas. Disponível aqui. Acesso em 08. abr. 2021. 3 Nesse sentido, por exemplo, a Súmula 1 do Tribunal de Justiça de São Paulo e a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça. Nesse particular, ainda que o Enunciado Sumular do STJ faça menção expressa à resolução do contrato, a prática evidencia sua ampla e irrestrita utilização também para os casos de desistência do adquirente. Sem prejuízo das discussões acerca da melhor interpretação e aplicação do entendimento, ou mesmo da revisão das Súmulas, é esse o cenário posto - e é a partir dele que se desenvolve o presente estudo. Também sobre isso, recomenda-se mais uma vez a leitura do texto publicado pelos professores Olivar Vitale e André Abelha (cit. nota 3). 4 O Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, relator dos recursos especiais agrupados para julgamento no Tema 1.051 dos Recursos Repetitivos, aponta em seu voto: "Diante dessa opção do legislador, de excluir determinados credores da recuperação judicial, mostra-se imprescindível identificar o que deve ser considerado como crédito existente na data do pedido, ainda que não vencido. A matéria ganha especial dificuldade no que respeita aos créditos que dependem de liquidação" (grifos do original). 5 Por todos: REsp 1447918/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 16/05/2016. No mesmo sentido: EDcl no AgInt no CC 152.900/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES [Des. convocado do TRF 5ª Região], Segunda Seção, julgado em 08/08/2018, DJe 15/08/2018. 6 VALOR ECONÔMICO. Empresas em recuperação judicial vencem disputa sobre ações indenizatórias. Disponível aqui. Acesso em 07 abr. 2021. 7 Por todos: TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.18.117136-4/002, Relator(a): Des.(a) Pedro Aleixo, 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 17/06/2020, publicação da súmula em 18/06/2020. No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2157417-21.2019.8.26.0000; Relator (a): Maia da Cunha; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data de Registro: 11/09/2019. 8 Por todos: TJSP; Agravo de Instrumento 2187738-73.2018.8.26.0000; Relator (a): Coelho Mendes; 10ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 02/07/2019. No mesmo sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2114096-33.2019.8.26.0000; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data de Registro: 17/10/2019. 9 Decisão proferida no processo de autos n. 0049277-78.2020.8.26.0100, pelo juízo da 27ª Vara Cível, Foro Central Cível, Comarca da Capital, TJSP. Sem grifos no original. 10 Também seria ilíquido, por exemplo, o crédito [indenização por danos morais] eventualmente decorrente de inscrição indevida em cadastro de inadimplentes. O fato gerador nessa situação, todavia, já ocorreu: é a negativação. A iliquidez do crédito, por si só, não significa sua inexistência, tampouco modifica o regime a ser aplicado. 11 "Os direitos expectativos, por serem tuteláveis (art. 130 do CC/2002), submetem-se à recuperação judicial". AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. 4. ed. [[VitalSource Bookshelf version]]. Retrieved from vbk://9788530991357. 12 A orientação foi adotada, inclusive, em acórdão recente, proferido em juízo de retratação após o julgamento do recurso repetitivo pelo STJ: "RESCISÃO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL C.C. RESTITUIÇÃO DE QUANTIAS PAGAS - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE EXTINÇÃO DO PROCESSO - Novo exame, com base no art. 1.030, II, do CPC - Promessa de compra e venda de imóvel - Rescisão do compromisso, por dificuldade financeira do compromissário comprador, com pedido de restituição de parte dos valores pagos - Tese fixada pelo Col. STJ, em julgamento de recurso repetitivo, segundo a qual "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador" - Segundo o Acórdão paradigma, a data do fato gerador do crédito não se confunde com a data da celebração do contrato entre as partes, sendo necessário analisar em cada caso em que consiste o mencionado fato gerador - No caso destes autos, o fato gerador do crédito perseguido pelo agravado somente nasceu com sua manifesta intenção em rescindir a promessa de compra e venda (o que se deu com o próprio ajuizamento da demanda, em 2019) - Antes disso, inexistia qualquer direito de crédito do agravado (que possuía, apenas, o direito de receber a propriedade do imóvel, desde que efetuasse o pagamento do preço) - Fato gerador que consiste no pedido de rescisão do contrato e negativa de restituição de valores pelas promitentes vendedoras - Fato gerador ocorrido em 2019 - Pedido de recuperação judicial postulado em 23/02/2017 - Crédito que não se submete à recuperação judicial, nos termos do art. 49 da lei 11.101/2005 - Desnecessária a modificação do v. Acórdão reexaminado, que fica mantido pelos seus próprios fundamentos - V. ACÓRDÃO OBJETO DE REEXAME, NOS TERMOS DO ART. 1.030, II, DO CPC, QUE FICA MANTIDO" (TJSP; Agravo de Instrumento 2236361-03.2020.8.26.0000; Relator (a): Angela Lopes; 27ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/03/2021). No mesmo sentido: "Processual. Execução fundada em título judicial. Impugnação da executada pretendendo a sujeição do crédito aos efeitos de sua recuperação judicial, com extinção da execução. Descabimento. Pedido de recuperação datado de fevereiro de 2017. Crédito em execução decorrente da resilição de contrato de compromisso de compra e venda imobiliário, com determinação de restituição de parte dos valores pagos. Demanda ajuizada em setembro de 2017, posteriormente portanto ao requerimento de recuperação, e julgada em agosto de 2018. Constituição dos créditos, de modo a perquirir de sua concursalidade ou não, a ser verificado no mais das vezes no plano da relação material entre as partes, não no momento em que proferida a decisão judicial que reconhece sua existência, muito menos no do respectivo trânsito em julgado dessa. Exceção decorrente de decisões de natureza desconstitutiva, que modificam situações jurídicas, como na hipótese dos autos, em que delineado o crédito em execução a partir da desconstituição do contrato de compromisso de compra e venda. Ajuizamento da demanda, de toda forma, que igualmente foi posterior ao pedido de recuperação. Extraconcursalidade reconhecida, à luz do art. 49, caput, da Lei nº 11.101/2005. Possibilidade de prosseguimento da execução. Decisão de rejeição da impugnação ao cumprimento de sentença confirmada, por outros fundamentos. Agravo de instrumento da executada desprovido, com observação" (TJSP; Agravo de Instrumento 2039845-10.2020.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/06/2020, sem grifos no original) 13 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. Vol. 3. Falência e recuperação de empresas. 8. ed. [[VitalSource Bookshelf version]]. Retrieved from vbk://9788553616749. 14 Trata-se de entendimento amplamente consolidado na jurisprudência: "PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DE DIREITO E JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI N. 11.101/05). AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. VALOR DA CONDENAÇÃO. CRÉDITO APURADO. HABILITAÇÃO. ALIENAÇÃO DE ATIVOS E PAGAMENTOS DE CREDORES. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRECEDENTES DO STJ. 1. Com a edição da lei 11.101/05, respeitadas as especificidades da falência e da recuperação judicial, é competente o respectivo Juízo para prosseguimento dos atos de execução, tais como alienação de ativos e pagamento de credores, que envolvam créditos apurados em outros órgãos judiciais, inclusive trabalhistas, ainda que tenha ocorrido a constrição de bens do devedor. 2. Após a apuração do montante devido, processar-se-á no juízo da recuperação judicial a correspondente habilitação, sob pena de violação dos princípios da indivisibilidade e da universalidade, além de desobediência ao comando prescrito no art. 47 da Lei n. 11.101/05. 3. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro (RJ)" (CC 90.160/RJ, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Segunda Seção, julgado em 27/05/2009, DJe 05/06/2009, sem grifos no original). Ainda: "EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO CARACTERIZADA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO DE NATUREZA EXTRACONCURSAL. MEDIDAS DE CONSTRIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. 1. Os embargos de declaração objetivam sanar eventual existência de obscuridade, contradição, omissão e/ou erro material no julgado (CPC, art. 1022). 2. Os atos de execução dos créditos promovidos contra empresas falidas ou em recuperação judicial, sob a égide do Decreto-Lei n. 7.661/45 ou da Lei n. 11.101/05, bem como os atos judiciais que envolvam o patrimônio dessas empresas, devem ser realizados pelo Juízo universal. 3. Ainda que o crédito exequendo tenha sido constituído anteriormente ou após o deferimento do pedido de recuperação judicial (crédito extraconcursal), a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que, também nesse caso, o controle dos atos de constrição patrimonial deve prosseguir no Juízo da recuperação. Precedentes. 4. Embargos de declaração acolhidos para sanar omissão e determinar que os atos de constrição ao patrimônio da empresa em recuperação judicial devem ser submetidos ao juízo recuperacional" (STJ, EDcl no AgInt no AREsp 1416008/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/09/2019, DJe 30/09/2019, sem grifos no original).
Referente à presente questão, existem três situações que envolvem o tema sobre os animais em que as ocorrências pertinentes à convenção condominial determinam a posição proibitiva, permissiva ou silente, como será visto a seguir. É neste sentido que são apontadas três situações que envolvem polêmicas pertinentes às normas condominiais e a posse ou guarda de animais nas dependências do condomínio: 1) convenção que proíbe a estada de animais; 2) convenção que omite as condições da posse ou guarda de animais dentro do condomínio; 3) convenção que permite a posse ou a guarda de animais nas áreas condominiais. Em regra, a omissão e a permissão quanto à posse ou a guarda de animais dentro do ambiente condominial, não expressas em convenção, traduz-se em liberdade, observando a exceção ao se tratar de animais que perturbem ou sejam incompatíveis com o bem-estar e a boa convivência entre os condôminos. Conforme se verifica na doutrina e na jurisprudência, é possível que haja vedação de animais em áreas comuns ou ainda dentro da unidade autônoma. Todavia, a questão vai além e deve ser debatida quanto ao nível de sossego, insalubridade e periculosidade (artigo 1.336, IV, Código Civil), bem como da livre disposição quanto à sua unidade autônoma (artigo 1.335, IV). Sendo assim, deve-se ponderar que a vedação de animais sem fundamentação na legislação civil é abusiva por não ser a mais justa. Toma-se como exemplo o caso de um portador de deficiência visual ter necessidade em adquirir um cão Labrador, bem como um aquário com um peixe Beta, segundo consta na Apelação Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: Ação cominatória - Condomínio - Criação de animal em apartamento - Ausência de prova da perturbação ao sossego, saúde e segurança dos demais condôminos - Proibição contida em norma interna - Inaplicabilidade. O condomínio pode estabelecer regras limitativas do direito de vizinhança, conforme autoriza a Lei 4.591/1964. A regra interna do Condomínio que proíbe a criação de animais deve ser interpretada teleologicamente, apenas se aplicando quando restar demonstrado que está ocorrendo perturbação ao sossego, saúde e segurança dos demais moradores. - Inexistindo provas de que tais danos estão ocorrendo, permite-se a criação dos animais, não se justificando a aplicação de qualquer penalidade por esse motivo (Tribunal de Justiça de Minas Gerais - Processo TJ/MG 2.0000.00.488929-4/000(1) - Rel. Des. Heloísa Combat - j. 09.03.2006). Neste sentido, foi apresentado por esse colunista e aprovado o Enunciado 566 do Conselho da Justiça Federal, da VI Jornada de Direito Civil, que dispõe: "A cláusula convencional que restringe a permanência de animais em unidades autônomas residenciais deve ser valorada à luz dos parâmetros legais de sossego, insalubridade e periculosidade." A referência legislativa consta do Código Civil, artigo 1.335, I, e lei 4.591/64, artigo 19. Cabe, neste momento, fazer uma observação para os casos de animais domésticos. Apesar de alguns condomínios determinarem as regras para os animais domésticos, a lei não proíbe que os condôminos os tenham. Outra questão está relacionada ao evento causado por animal em condomínio, como segue: INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELO FATO DA COISA. Ferimento no abdômen e região genital de funcionário de condomínio causados por ataque de cão da raça pitbulL Responsabilidade objetiva dos donos do animal Proprietários que descumpriram o dever de guarda e vigilância de seu animal feroz. Evento danoso causado por culpa exclusiva dos donos do animal Sentença que condenou no pagamento das despesas médicas e ressarcimento dos custos causados ao condomínio pela falta do funcionário. Recurso desprovido. (TJSP; APL 994.05.110189-8; Ac. 4374942; Santos; Quarta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Teixeira Leite; Julg. 11/03/2010; DJESP 12/04/2010 ). Então, o Superior Tribunal de Justiça já determinou que, ainda que seja estabelecida a proibição em convenção condominial, os animais domésticos devem ser admitidos, desde que haja respeito à determinação legal no que concerne ao sossego, à segurança e à saúde dos demais condôminos, condição que, em ocorrendo violação, deverá ser rechaçada e passível de multa. A justificativa pelo enunciado supramencionado trata do assunto da seguinte forma: A proibição prevista na convenção de condomínio à presença de animais em unidades autônomas residenciais deve ser analisada de acordo com os níveis de sossego, saúde e segurança do condomínio, bem como com as especificidades do caso concreto, como por exemplo, a utilização terapêutica de animais de maior porte. Evita-se, assim, a vedação abusiva na convenção. Com este norte, no que diz respeito à presença de animais domésticos em condomínios, entende-se que, anteriormente, dependia da posição determinada pela convenção condominial, ou seja, da proibição, da permissão ou da omissão. Atualmente, porém, a jurisprudência entende que os animais domésticos devem ser permitidos, ainda que a convenção condominial proíba, observando que esta é uma cláusula considerada ilegal e inconstitucional, haja vista afrontar o princípio da propriedade protegida pelo artigo 5º, XXV, da Constituição Federal e artigo 1.228 do Código Civil.Como bem acrescenta a doutrina: (...) Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade. Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio. (...) Os acórdãos e as lições expostas tornam a convenção letra morta, em prol de uma interpretação mais condizente com os valores coletivos e sociais (funcionalização social). (...) Na doutrina consolidada tem-se entendido de forma semelhante. Tanto isso é verdade que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado n. 566, de autoria do Professor Cesar Calo Peghini (...). A justificativa do enunciado doutrinário menciona as "especificidades do caso concreto, como por exemplo, a utilização terapêutica de animais de maior porte. Evita-se, assim, a vedação abusiva na convenção"1. Corroborando esta mesma posição doutrinária, assevera-se que: Outra discussão relevante nesse campo diz respeito à possibilidade de regimento interno vedar completamente a criação ou guarda de animais domésticos nas unidades autônomas. O STJ já decidiu, acertadamente, que tais restrições se estabelecidas de modo genérico, afiguram-se desarrazoadas, devendo-se sempre considerar o risco à segurança e à tranquilidade dos demais moradores como critério legitimador de eventuais proibições regimentais. Essa interpretação se harmoniza com a já apontada tendência contemporânea de se atribuir um regime diferenciado aos animais, especialmente aqueles objetos de afeição humana, contribuindo para a realização dos interesses existenciais da própria pessoa natural.2 Em suma, a questão dos animais no ambiente condominial é uma história sem fim? Nos parece que não, pois nota-se que a jurisprudência e a doutrina seguem a mesma perspectiva no que diz respeito à permissão da permanência de animal nas dependências condominiais, desde que respeitados os direitos dos coproprietários em ter preservado o sossego, a saúde e a segurança. Sendo assim, ainda que na prática a questão ainda verifique muitos debates, a questão nos parece já delineada tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina. Referências SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. *Cesar Peghini é advogado especializado em atividade Condominial. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito FADISP. Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Européia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, Toledo/ES. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino ITE. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito - EPD. Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Professor Titular permanente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu (mestrado) da Faculdade Escola Paulista de Direito - EPD. Professor dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola Paulista de Direito - EPD; Professor convidado no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Professor visitante em cursos de pós-graduação lato sensu. __________ 1 TARTUCE, 2020. Op. cit., p. 1526 e 1527. 2 SCHREIBER, 2020. Op. cit., p. 1109.
Estas primeiras linhas não têm como razão apreciar tema relacionado à possibilidade ou impossibilidade quanto a realização das assim nominadas assembleias virtuais em condomínios edilícios disciplinados pelos artigos 1331 e seguintes do Código Civil, isto é, sua legalidade ou ilegalidade. O recorte que propõe a abordagem parte de premissa de que, superadas as avaliações precedentes, decidiu-se por sua realização. E ao assim decidir, determinadas premissas devem ser observadas, rigorosamente, a partir, inclusive, da elaboração do edital de sua convocação de maneira que nulidades ou anulabilidades não se verifiquem. Mas, antes da observação das cautelas práticas necessárias à sua formulação, formalização e divulgação, alguns pontos e relacionados à função de uma assembleia geral devem ser coloridos de maneira a iluminar e conduzir o pensamento. Isso, pois, seja física ou virtual, tal colorido deverá ser observado. Desde a muito se discorre acerca da função de uma assembleia geral. Em apertada síntese serviria de fórum institucional de discussão e deliberação de temas afetos às relações estabelecidas entre os titulares de direito sobre a coisa imóvel em regime de condomínio edilício. Neste sentido, seu fundamento, isto é, sua razão de existir é a formação da vontade de um determinado grupo a partir das vontades de cada um daqueles que dele participa. Cada manifestação, portanto, se faz importante. Desde aquela de isolada pessoa, recém chegada ao condomínio edilício, até daquelas que há anos nele reside; assim como daquele que sempre se manifesta isoladamente, como daqueles que sempre formam a maioria necessária para a aprovação de suas decisões. E assim se justifica, talvez, por conta daquilo que Ortega y Gasset coloca como sendo inerente ao humano, ou seja, suas circunstâncias vividas e observadas que, por vezes, são capazes de influenciar outros. Assim, neste ambiente conformado por apresentações, indagações, observações, relacionamentos, tons de voz, gesticulações (pois o corpo fala!), argumentações, discursos, ideias variadas, por vezes concordantes e, outrora, conflitantes, entendimentos são conformados, mantidos, adaptados e, em outras circunstâncias, completamente reformulados. Não raras vezes, inclusive, se depara com ideia até então impensada, mas que, por conta da ambiência democrática, da livre exteriorização do pensamento, constrói-se e, assim, convence, se não a todos, a grande parte. Situação essa que, no silêncio das ideias, poderia até ser alcançada, mas, com maior sofrimento do espirito. Surge, assim, do conflito e da conjugação de ideias, a formação da vontade, não individual, mas coletiva, amparando as decisões constituídas, legitimamente, em foro adequado à discussão. Vontade esta conformada em linha com um interesse, qual seja, o condomínio edilício e, portanto, em contradição às vontades egoísticas de poucos, mesmo que, de alguns. Há, assim, neste contexto, de regular assembleia, a formação da assim chamada vontade soberana, emanada através de órgão originário e cujo poder de assim decidir não depende de qualquer outro. E, por conta de sua soberania, em regra, obriga não apenas os presentes, mas, inclusive os ausentes e que dela não participaram por qualquer motivo. A assembleia geral, assim, ao aprovar ou reprovar determinada matéria submetida à sua apreciação, conforma a vontade e as direções a serem observadas quando da gestão da coisa coletiva, como autêntico órgão legiferante de normas (sic!) e condutas a serem observadas, assim como fiscalizando a legalidade tudo quanto se fez e fará naquele condomínio edilício. Há, certamente, limites às decisões assembleares, mas, estes, demandariam variadas outras observações não contidas no recorte destas primeiras linhas. Percebe-se, portanto, em face destas circunstâncias, a importância do processo de formação da vontade. Vontade esta que se forma e conforma pelo direito de voz, pelo direito de ouvir, pelo direito de ser ouvido, pelo direito de debater, pelo direito de concordar, pelo direito de discordar, pelo direito, enfim, de manifestar-se através de qualquer meio e da maneira mais ampla e irrestrita possível; sempre com o devido acatamento. E, mesmo após larga participação, pode o condômino decidir por, simplesmente, calar-se, isto é, não exercitar o seu direito de votar. Assim, pois, direito seu, também, de manifestar-se conclusivamente, ou não. Neste contexto, portanto, em que a preservação da construção das ideias é da essência de uma assembleia geral, todo e qualquer sistema informatizado deve ser detidamente avaliado sob o manto de sua observância. Dito de outra forma, a plataforma escolhida deve ser capaz de proporcionar e, para a ambiência de uma assembleia geral virtual, tudo quanto foi esclarecido, sempre em tempo real, isto é, "ao vivo e a cores", admitindo-se, apenas, certa organização das falas durante o procedimento e, sempre, desde que de qualquer forma não comprometa os direitos assegurados por sua função da qual decorre sua essência. Desta feita, escolhido determinado sistema, devem ser observados e, durante todo o prazo de duração da assembleia, sem qualquer interrupção, sem qualquer interferência, sem qualquer espécie de controle, sem a existência de qualquer ambiente privado ou de qualquer forma controlado e, portanto, com ampla publicidade de tudo o quanto é nela debatido e colocado por cada um e por todos, cada um dos direitos alhures relatados. Atuar de maneira diversa significaria o comprometimento do esperado resultado de uma ambiência, sob seu aspecto formal e, portanto, passível de ser declarada sua nulidade. A assembleia virtual, portanto, deve ocorrer como que em natural transposição do ambiente físico ao virtual, significando reprodução fiel de ambiente democrático. Em face deste cenário, quando da elaboração dos editais de convocação para uma assembleia geral, deve-se ter em mente estas primeiras linhas, tudo de maneira que não sejam estabelecidos procedimentos que de alguma forma comprometam os direitos relacionadas à essência de uma assembleia geral, tais como: (i) que manifestações de condômino somente serão visualizadas e, portanto, acessadas, por grupo determinado de pessoas, tais como as integrantes da administração do condomínio (i.e. Síndico, Conselhos e Administradora) que, em entendendo pertinente, responderão; (ii) que o direito de voz não será permitido, isto é, os condôminos não terão acesso a microfones; (iii) que o direito de ver pessoas e de ser visto enquanto pessoa não será admitido ou, em sendo, assim o será parcialmente a critério da presidência da assembléia; (iv) que somente serão admitidas manifestações escritas e por meio dos assim nominados Chat's e, (v) que inexistirá o direito de indagar e debater, durante a assembleia, qualquer tema relacionado à sua ordem do dia havendo, apenas, o voto de aprovação ou reprovação. Estipulações como essas ferem a função de uma assembleia geral em condomínio edilício. Representam autêntico espirito ditatorial avesso à formação de uma vontade democrática e, portanto, deliberações assim realizadas, são nulas de pleno direito uma vez inexistir ambiente formador de uma vontade que, apenas assim se qualifica, se livre. De outro lado, importa iluminar que não se pode admitir, inclusive, qualquer procedimento, seja através do edital de convocação, seja durante a assembleia geral, que venha a afrontar e, por conta desse fato, reduzir ou de qualquer forma, limitar, a possibilidade de participação de todo e qualquer condômino interessado, desde que apto e habilitado legalmente. A este respeito, cabe atenta e diligente observação dos termos da lei e da convenção de condomínio edilício uma vez que as assembleias se operacionalizam na forma e através do modo estabelecido, especialmente, na respectiva convenção de condomínio. A lei e a convenção constituem a base que deve ser observada. Nem mais, tampouco menos. Desta forma, inclusive, a divisão de poderes e de competências através delas insculpidos e estipulados devem ser estritamente observados. Neste sentido, não é válido estabelecer, dentre outras variadas estipulações e, em contradição ao quanto estipulado em Convenção de Condomínio que (i) os interessados à Presidência de determinada assembleia geral deverão se candidatar até determinada data, não se admitindo candidaturas posteriores ou ao momento em que será realizada a assembleia geral; (ii) aqueles que forem representar outras unidades autônomas deverão encaminhar, obrigatoriamente, os respectivos mandatos até determinada data, sob pena de não ser aceita a apresentação, por tardia, de procuração no momento da assembleia geral; (iii) haverá plantão de dúvidas, acerca dos temas da ordem do dia, em determinado intervalo de datas e horários, sendo que apenas em tal momento serão prestados esclarecimentos e, portanto, inexistindo no horário da assembleia geral. Importa iluminar que não se esta a discutir acerca da conveniência de qualquer uma de mencionadas estipulações de forma a, de alguma maneira, tornar a assembleia geral mais efetiva. O que se discute é acerca da legalidade de sua obrigatoriedade quando em contradição ao quanto estabelecido por determinada Convenção de Condomínio Edilício. Assim o sendo, é possível o estabelecimento das mesmas, enquanto uma faculdade e, não, como obrigação, pode conduzir a caminho de maior efetividade. Em face, portanto, da lapidação deste cenário que teve por finalidade, apenas, realizar um recorte de maneira a iluminar e assim discutir determinados aspectos das assembleias gerais realizadas em ambiente virtual é que se encerram estas primeiras linhas. Isso tudo, pois, como coloca Platão, na República [2014, p. 315], "a dialética é o único processo investigatório que [...] suprimindo hipóteses [...] oferece segurança e confirmação." Estão abertas, portanto, as portas para os contrários, mesmo que em todo ou parte. Marcelo Barbaresco é doutorando em Direito Comercial pela PUC/SP. Mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado em Direito Empresarial, em Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, em Direito Processual Civil, em Direito do Consumidor e em Direito Imobiliário, com capacitação para Mediador. Professor na FGV Direito SP - FGV Law, na FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado, na Faculdade Baiana de Direito, assim como em outras instituições de ensino superior. Fundador do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, exercendo uma de suas vice-presidências, estando presidente da Comissão de Estudos de Shopping Centers. Membro da Mesa de Debates de Direito Imobiliário (MDDI) de São Paulo. Membro Efetivo da Coordenadoria da Comissão de Locação, Shopping Center e Compartilhamento de Espaços da OAB/SP.
Alienação fiduciária e sua importância para o financiamento imobiliário. Passados significativos vinte e três anos de vigência da lei que a instituiu (lei 9.514, de 20 de novembro de 1997), não restam dúvidas a respeito da enorme importância da alienação fiduciária de coisa imóvel para a sociedade brasileira. Seu advento, combinado com as inovações implementadas pela lei 10.931, de 2 de agosto de 2004, criou os pilares sobre os quais se ergueu um sólido, moderno e efetivo Sistema de Financiamento Imobiliário, imprescindível para o desenvolvimento do mercado imobiliário em particular e da economia como um todo1. Para ilustrar tal afirmação de forma bastante simples, didática e livre de preconceitos, assuma-se, como premissa de raciocínio, que bens imóveis - seja para morar, seja para desenvolver atividades econômicas, seja para atender a outras finalidades - são necessários à vida das pessoas, tanto físicas quanto jurídicas. No entanto, são raríssimas aquelas que dispõem de recursos próprios suficientes para comprá-los à vista. Por tal razão, os interessados na aquisição de imóveis, em regra, dependem de financiamento; isto é, necessitam de crédito, e, para obtê-lo, recorrem a quem se disponha a emprestar-lhes, antecipadamente, o dinheiro para pagamento do preço do bem pretendido. Considerando que o valor dos imóveis é relativamente alto - quiçá o mais expressivo dentre os bens adquiridos pelo homem médio - o montante emprestado haverá de ser restituído em longo prazo, normalmente de mais de uma década. Na economia de mercado, para que alguém se interesse em emprestar dinheiro a outrem, tenderá a fazê-lo como investimento, contra o pagamento de juros e mediante a legítima expectativa de que, no prazo programado, terá de volta o que emprestou mais os juros combinados. No que tange aos negócios de venda e compra de imóveis, o volume de recursos disponíveis para financiar as aquisições deve ser expressivo (porque igualmente expressivos a demanda e o valor necessário para atendê-la), o prazo para restituição deve ser longo e a taxa de juros não pode ser elevada, de modo a que o empréstimo possa ser efetivamente pago. Neste ciclo, ganha o comprador (que obtém antecipadamente o montante necessário para adquirir o imóvel contra a obrigação de restituir no futuro os valores antecipados, acrescidos de juros ), ganha o vendedor (que recebe o preço cobrado pelo imóvel), ganha o construtor (que recupera o capital empregado na produção e o ganho correspondente), ganham os investidores (que recebem de volta os recursos disponibilizados, acrescidos dos juros pactuados), ganham os fornecedores de produtos e serviços para a construção civil (que disponibilizam material e mão de obra necessários para construir os empreendimentos) e ganha a sociedade como um todo (que se beneficia da geração de emprego e renda, da redução do déficit habitacional, do aumento da oferta de edificações comerciais e industriais etc.). Para que o sistema se viabilize, dois sólidos alicerces são indispensáveis para apoiá-lo. O primeiro é a ampla captação de recursos privados destinados ao financiamento imobiliário2 - inclusive junto aos "cidadãos comuns", pulverizados na sociedade civil, que corriqueiramente aplicam seu dinheiro no mercado financeiro ou no mercado de capitais visando à obtenção de retorno satisfatório e seguro -. O segundo, que aqui nos interessa mais de perto, é a garantia de retorno do crédito liberado ao tomador. Esta não pode falhar, para que se assegure a realimentação financeira do sistema e, em consequência, a contínua reaplicação em novos empréstimos. Para esse fim, deve proporcionar não apenas a segurança de que os recursos captados serão restituídos, mas também municiar o credor dos mecanismos destinados a, no caso de falta de pagamento por parte do tomador, permitir a restituição forçada dos valores devidos, de forma efetiva e célere3. A tais propósitos o arcabouço jurídico instituído pela lei 9.514/97 vem se prestando com alto grau de efetividade. A experiência haurida no emprego em larga medida da alienação fiduciária de coisa imóvel em garantia do financiamento imobiliário - e, havendo inadimplemento, da técnica de execução extrajudicial que lhe é correlata (arts. 26 e ss. da lei 9.514/97) - ao longo desse período de mais de duas décadas permitiu efetiva expansão do crédito imobiliário, importante redução da taxa de juros e, por conseguinte, torna realidade o propósito de mais e mais brasileiros adquirirem sua casa ou seu local de trabalho. Essa mesma experiência, por outro giro, fez com que surgissem ao longo do tempo questões jurídicas relevantíssimas a respeito de tal garantia e de sua excussão. As soluções dadas a essas questões pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência - algumas delas, por sua relevância, positivadas por meio de ajustes na lei 9.514/97 -vêm, de modo geral, contribuindo para o desejável aperfeiçoamento dos procedimentos legais. No entanto, importa advertir: equívocos nas soluções, no mais das vezes cometidos em razão da não compreensão dessas figuras jurídicas, podem levar à sua perigosíssima e indesejável derrocada e à ruptura do sistema, em prejuízo de toda a sociedade. Dentre tantas outras questões que merecem acurada reflexão, dedica-se este breve ensaio a tecer considerações sobre o regime jurídico a ser adotado na hipótese de, em contrato de venda e compra de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, o adquirente -  que pagou o preço com recursos do crédito que tomou de um banco ou do próprio vendedor e, em garantia, depois que se tornou proprietário, alienou o imóvel fiduciariamente ao credor, constituindo-se então como devedor fiduciante - no mais das vezes sob alegação de dificuldades financeiras, vir posteriormente manifestar desinteresse na aquisição do imóvel e postular a extinção do contrato e restituição (ainda que parcial) do preço pago, mormente na particular situação de fazê-lo quando ainda está adimplente - isto é, postular o desfazimento do contrato antes de deixar de pagar parcelas do preço. A análise dessa específica questão - qual seja, do regime jurídico a ser aplicado à hipótese de o devedor fiduciante manifestar seu desinteresse no prosseguimento do negócio antes de estar inadimplente - impõe que seja antes examinada em seu contexto e apartada de outras a ela assemelhadas, mas que com ela não se confundem. Como pano de fundo, tenha-se em vista o fenômeno caracterizado pela ruptura do contrato de promessa de compra e venda por iniciativa do promitente comprador de imóvel, sem que tenha havido inadimplemento do promitente vendedor. De há muito essa situação é objeto de atenção da doutrina e, especialmente, da jurisprudência. A rigor, reconhecendo-se que a promessa de venda e compra é irretratável, superadas eventuais hipóteses de arrependimento, não poderia ser lícita a desistência imotivada do promitente comprador, que, por ato unilateral de vontade, pusesse fim ao vínculo por resilição. Demais disso, repugnaria ao sistema jurídico que o comprador invocasse a sua própria falta como fundamento para impor a resolução do contrato ao vendedor. No entanto, o fenômeno - quiçá potencializado pela instabilidade econômica brasileira - grassava no tecido social, irrompia nos Tribunais e alguma solução pacificadora haveria de ser encontrada. Se "(A)s primeiras decisões foram no sentido da impossibilidade, sob consideração de que não cabe ao inadimplente pleitear a resolução do contrato", ao menos a partir do final da década de 1990 a jurisprudência se encaminhou em sentido contrário e passou a admitir que "(M)esmo que o inadimplemento seja decorrente de fato imputável ao devedor, a ação pode ser de sua iniciativa"4. A construção jurisprudencial5 buscou fundamento jurídico na teoria do inadimplemento antecipado e no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. De um lado, o promitente comprador invocava incapacidade patrimonial superveniente, não dolosa, que impossibilitava que o contrato atingisse suas finalidades social e econômica, tanto para si quanto para o promitente vendedor: as parcelas do preço não mais poderiam ser pagas, a transferência dominial não poderia ser concretizada6. De outro, insensível à ruína financeira do promitente comprador, vislumbrava-se abusiva e injusta inércia do promitente vendedor em aceitar a ruptura do contrato e recusa em restituir parcialmente o preço pago pelo adquirente, impondo-lhe, na prática, o perdimento total das quantias pagas. Para essa peculiar situação passou-se a admitir o desfazimento do vínculo contratual por iniciativa do promitente comprador7. O fenômeno em questão se manifestou de maneira especialmente intensa na última década8. Os Tribunais, na prática, flexibilizaram os requisitos para admitir o desfazimento do vínculo por culpa e iniciativa do promitente comprador não mais diferenciaram o inadimplemento antecipado - mais condizente com os parâmetros de boa-fé - do inadimplemento já verificado. Tantas vezes a matéria foi julgada que acabou sumulada no Superior Tribunal de Justiça (Súmula 5439) e no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Súmulas 110 e 211), e, por final, veio a ser regulada em lei específica12. Nesse processo de construção jurisprudencial ficou pacificado o entendimento segundo o qual, em compromissos de venda e compra de imóveis, são legítimos os pleitos tanto de resolução do vínculo por iniciativa do promitente comprador - esteja ele adimplente ou não no momento do pleito - quanto de restituição, ainda que parcial, do preço até então pago13. Inadimplemento da obrigação de pagamento do preço na venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária. Provavelmente impulsionadas pelas mesmas causas do fenômeno em tela, avolumaram-se nos Tribunais, em anos mais recentes, as disputas nas quais se pretendia aplicar aos contratos de venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia solução jurídica idêntica àquela concebida para as hipóteses de simples promessas de venda e compra de imóveis. Fiduciantes que se desinteressaram da aquisição imobiliária, em regra inadimplentes, muitos já confrontados por iniciativas dos fiduciários para recebimento dos valores não solvidos - em especial, pela instauração do procedimento extrajudicial para excussão da garantia, regrado pelos artigos 26 e ss. da Lei 9.514/97 - defenderam em juízo seu suposto direito de pôr fim à compra do imóvel e do consequente dever do credor fiduciário de a eles restituir o preço até então pago, ainda que parcialmente. Invocaram, para tanto, a proteção do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor e a aplicação do regime jurídico reconhecido pelas Súmulas retro mencionadas, em detrimento da disciplina específica da lei 9.514/97. Neste ponto, é necessário estabelecer a premissa fundamental para o exame da matéria em tela. A promessa de venda e compra de imóveis e a venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia são figuras jurídicas distintas, que reclamam tratamento jurídico igualmente distinto. O primeiro é um contrato preliminar que apenas estabelece vínculo pelo qual as partes se comprometem a futuramente celebrar negócio de compra e venda. Enquanto não quitado o preço, esse contrato não produz efeito de transmissão do domínio ao promitente comprador e, muitas vezes, sequer transmite a posse do imóvel. No segundo - compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária -, ainda que amalgamados em instrumento único, compreendem-se negócios jurídicos distintos, de financiamento (i. é, antecipação dos recursos necessários ao pagamento do preço de aquisição do imóvel, seja concedido pelo incorporador imobiliário, por instituição financeira ou por terceiro), de venda e compra do imóvel (com efetiva transmissão de posse e propriedade ao adquirente) e de subsequente transferência da propriedade fiduciária e da posse indireta (pelo adquirente que, ao fazê-lo, convola-se em devedor fiduciante) em favor do credor fiduciário, como garantia do financiamento14. A clareza na distinção15 é sobremaneira importante para enfrentar as consequências jurídicas de sua extinção anômala por iniciativa do devedor que, por razões financeiras, perde o interesse no contrato. No caso de promessas de venda e compra de imóveis, como se viu, admitem-se a resolução do contrato e a restituição ao menos parcial do preço pago, solução jurídica amparada pela jurisprudência, posteriormente consignada nas súmulas retro mencionadas e mais recentemente contemplada na Lei 13.786/18, notadamente nos artigos 35-A e 67-A por ela inseridos na lei 4.591/64. De maneira bastante diversa, nos contratos de venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, no momento em que o devedor fiduciante (que tomou crédito para pagar o preço de aquisição) manifesta interesse no rompimento do negócio, a venda e compra já se exauriu, o preço do bem já foi quitado com os recursos antecipados pelo credor, a propriedade já foi adquirida pelo comprador e ato contínuo transmitida a propriedade fiduciária ao credor em garantia de pagamento do financiamento. Ao credor fiduciário cabe apenas receber e ao devedor fiduciante cabe apenas pagar o valor antecipado acrescido dos juros pactuados. Efetivado o pagamento, a garantia se extingue, a propriedade fiduciária se resolve e a propriedade plena reverte ao patrimônio do (então) fiduciante. Inadimplida a obrigação de pagar, a propriedade fiduciária é incorporada ao patrimônio do (então) fiduciário, mediante consolidação, devendo ele ofertar o imóvel em público leilão para obter a satisfação do crédito em dinheiro, com o produto do leilão. Por bem compreender a distinção, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado no sentido de que, nos contratos de venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, em havendo inadimplemento do pagamento do preço, aplicam-se as regras próprias da lei 9.514/9716. Logo, às promessas de venda e compra se aplica o regime jurídico pertinente a tal modalidade contratual, forjado na jurisprudência, cristalizado na Súmula 543 do STJ e atualmente regrado pela lei 13.786/18. Já aos contratos em que se pactua a alienação fiduciária em garantia, diferentemente, o regime jurídico é diverso e está normatizado na lei 9.514/97, como é pacífico na jurisprudência daquele Tribunal Superior; a eles não se aplicam as regras dos artigos 35-A e 67-A da lei 4.591/6417, introduzidos pela lei 13.786/18. Tal entendimento, permanece - e há de permanecer - estável na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não apenas por ser juridicamente correto, mas por ser de extraordinária importância também sob aspecto social e econômico. Do contrário, a confiabilidade do contrato de alienação fiduciária em garantia seria ferida de morte e as estruturas de todo o sistema de crédito brasileiro, sobretudo o crédito imobiliário, seriam fortemente abaladas. A propósito, bem faria o Superior Tribunal de Justiça se, em nome da isonomia, da previsibilidade e da segurança jurídica - para evitar julgamentos divergentes que vez por outra continuam a ocorrer em instâncias inferiores - assentasse, em precedente qualificado (enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de Recurso Especial Repetitivo18), o entendimento, tantas vezes repetido, de que "ocorrendo o inadimplemento de devedor em contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, a quitação da dívida deverá observar a forma prevista nos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, o que afasta, por consequência, a aplicação do art. 53 do CDC"19. Pretensão de resolução antecipada manifestada por devedor fiduciante adimplente. Alcança-se, agora, a particularidade de o devedor fiduciante manifestar seu desinteresse no prosseguimento do negócio antes de estar inadimplente. Teria ela o condão de afastar o regime jurídico da lei 9.514/97? Justificaria a resolução antecipada do contrato? Se sim, poderia o fiduciante postular a restituição parcial dos valores pagos, como se de promessa de venda e compra se tratasse? Tal hipótese20 foi recentemente examinada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, por unanimidade de votos, decidiu pela viabilidade jurídica da resolução por inadimplemento antecipado, motivada pelo desinteresse em prosseguir com o negócio; resolução que, nada obstante, daria ensejo à aplicação do regime jurídico próprio da alienação fiduciária. Fundamenta-se a decisão no entendimento de que o pedido de resolução, por si só, denota comportamento contrário à manutenção do contrato ou ao direito do credor fiduciário, a caracterizar inadimplemento antecipado. Por tal razão, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, o pedido de resolução "configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente". Transcreve-se, por sua relevância, o trecho final do voto do I. Ministro relator: "Na especial conformação do contrato de compra e venda celebrado, em que presente alienação fiduciária em garantia, há de ser acatada a possibilidade de resolução do contrato pelo desinteresse do adquirente em permanecer com o bem, mas a devolução dos valores pagos pelo autor não se dará na forma do art. 53 do CDC, em que, ressarcidas as despesas do vendedor mediante a retenção de parte do pagamento, devolve-se o restante ao adquirente. A devolução dos valores pagos deverá observar o procedimento estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97, pelo qual, resolvido o contrato de compra e venda, consolida-se a propriedade na pessoa do credor fiduciário, para, então, submeter-se o bem a leilão, na forma dos §§1º e 2º do art. 27, satisfazendo-se o débito do devedor demandante ainda inadimplido e solvendo-se as demais dívidas relativas ao imóvel, para devolver-se o que sobejar ao adquirente, se sobejar. Assim, em resumo, a formulação pelo adquirente de pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia sem a imputação de culpa ao vendedor, mas por conveniência do adquirente, representa quebra antecipada do contrato e, assim, satisfaz o requisito para a incidência dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97. Resolvido o contrato, a devolução dos valores adimplidos pelo adquirente deverá observar o quanto disposto no §4º do art. 27 da Lei 9.514/97, segundo o qual, uma vez exitoso o 1º ou o 2º leilão, "o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação (...)"21. Não se trata de solução uníssona naquele Tribunal Superior. O próprio aresto aponta divergência de entendimentos a respeito da questão. Confira-se: "Os integrantes das duas Turmas que compõem a Colenda Segunda Seção desta Corte em relação aos recursos conhecidos, interpostos em sede de ações de resolução do contrato ajuizadas pelos adquirentes, ora têm feito prevalecer o entendimento de que, resolvido o contrato, não há aplicar o quanto disciplinado no art. 53 do CDC atinente à devolução dos valores pagos pelo adquirente, senão o procedimento próprio, previsto na legislação especial a dispor sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e a alienação fiduciária de coisa imóvel, estabelecido nos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97, ora tem reconhecido que a ausência de inadimplemento por parte do adquirente afasta a adoção do procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade na pessoa do credor fiduciário e submissão do bem a leilão"22. A hipótese, realmente, reclama atenção especial. É bem verdade que a declaração de vontade do fiduciante, no sentido de resolver o contrato, por impossibilidade superveniente de pagamento, manifestada em juízo antes do efetivo inadimplemento, representa inequívoco e formal anúncio de sua intenção de não pagar as prestações vincendas. No mínimo, há fundada perda da confiança do credor de que receberá o montante que lhe é devido. Nesse sentido, não é desarrazoado cogitar-se de inadimplemento antecipado, ou quebra antecipada do contrato, ou vencimento da obrigação antes do termo. Há que se considerar, de outro lado, a premissa fundamental retro invocada: diferentemente da promessa de venda e compra, uma vez firmado o contrato de venda e compra de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia não há mais venda e compra a ser resolvida. Esta já se aperfeiçoou e já se exauriu no exato momento em que o comprador se tornou proprietário do imóvel e, ato contínuo, transferiu a propriedade fiduciária a quem lhe financiou a aquisição, em garantia do pagamento do financiamento. O que resta é o negócio jurídico subsequente, cuja natureza jurídica é de mútuo (financiamento), que se aperfeiçoou na ocasião do fornecimento de recursos (pelo fiduciário) - desempenhado na largada, para que o comprador pudesse quitar o preço do imóvel perante o vendedor - cuja contrapartida (pelo fiduciante) é a restituição do crédito tomado, acrescido dos juros pactuados, restituição esta garantida pela propriedade fiduciária. Nesse contexto, na ocasião em que manifestada pelo fiduciante a pretensão de resolução do negócio, a única obrigação pendente de adimplemento é a de restituição do crédito tomado ao fiduciário, isto é, de pagamento do financiamento, por meio de entrega de quantia pecuniária, líquida e certa. Tal obrigação de pagamento, porque garantida, não pode ser afastada por dificuldade ou impossibilidade de pagamento superveniente do devedor: ou bem o devedor quita o mútuo, ou o credor executa o crédito e excute a garantia. Em hipótese alguma haverá a resolução da venda e compra e nem a restituição de parte do preço pago23. A execução da garantia, disciplinada nos artigos 26 e 27 da lei 9.514/97, por sua vez e como é de conhecimento corrente, tem por finalidade proporcionar recursos, por meio de expropriação do direito aquisitivo do fiduciante e posterior venda do bem em leilões públicos, para, independentemente ou mesmo contra a vontade do devedor, satisfazer o crédito garantido - vale dizer, entregar ao credor pecúnia em valor equivalente ao saldo devedor do mútuo - e, após pagamento de despesas e encargos, restituir ao devedor fiduciante eventual saldo que sobejar do produto do leilão (art. 27 §4º). Tem, pois, natureza de execução forçada. E para que se possa promover a execução forçada, necessário que a obrigação seja não apenas líquida e certa, mas também exigível (art. 783 do CPC). Em vista de tais considerações, a aplicação da teoria do inadimplemento antecipado à operação de crédito com pacto adjeto de alienação fiduciária passa a merecer detida reflexão, tanto em relação a razões de natureza teórica, como por razões de ordem eminentemente prática. Dentre as primeiras, o enquadramento do ato como inadimplemento antecipado, extremando-o das figuras do simples risco de inadimplemento e da mera desistência, reclama o deslinde de questões de direito e de fato, o que exige cognição incompatível com o regime da alienação fiduciária contratada em garantia do pagamento de um crédito. Ademais, a obrigação de pagar quantia não se torna impossível ou inútil ao credor (o inadimplemento é relativo). A três, há divergências teóricas a respeito da exigibilidade da prestação vencida antes do termo; dentre outros aspectos passíveis de discussão24. Dentre os segundos, por mais que o fiduciante anuncie antecipadamente que não efetuará os pagamentos, e ainda que, em tese, esse anúncio possa proporcionar o vencimento antes do termo, difícil conceber que isso por si só atribua ao fiduciário o direito de - ou, pior, imponha ao fiduciário o ônus de - iniciar os trâmites para o recebimento de seu crédito pela excussão da garantia. É razoável supor que o fiduciário, na prática, aguardará o prazo de carência previsto em contrato e, só depois de seu decurso, e desde que persista efetiva falta de pagamento, é que promoverá a intimação do devedor para constituí-lo em mora (art. 26 §§ 1º e 2º). Nesse interim, ou bem o fiduciante adimplirá normalmente a prestação; ou, se deixar de fazê-lo e por isso vier a ser intimado, poderá purgar a mora por meio do pagamento das parcelas vencidas até então, acrescidas dos consectários moratórios (art. 26 § 1º) e fazer convalescer o contrato (art. 26 § 5º). Não parece factível considerar que a manifestação de não pagar apresentada em juízo, não seguida de efetiva falta de pagamento, ponha fim ao financiamento, justifique, por si só, a consolidação da propriedade em nome do fiduciário e os subsequentes leilões públicos para a satisfação coercitiva de todo o saldo devedor antecipadamente vencido. Também não é razoável cogitar de que tal manifestação permita o depósito em juízo ou autorize o magistrado a determinar a suspensão da exigibilidade das parcelas vincendas. A vontade do devedor é a de não mais efetuar pagamento algum, o que implica extinção anômala do mútuo (não da venda e compra). O credor, por seu turno, não pode ser privado do direito à satisfação de seu crédito. Portanto, o que desencadeará o procedimento de excussão da garantia, nos termos dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 será, invariavelmente, o efetivo inadimplemento da prestação, e não a manifestação antecipada da intenção de não pagar. Se o efetivo inadimplemento não ocorrer, o contrato (isto é, a obrigação de restituir ao credor fiduciário o montante emprestado ao devedor fiduciante) se extinguirá pelo pagamento, como preconiza o art. 25 da Lei 9.514/97, sem deflagração da execução coercitiva. Conclusão Ao fim e ao cabo, o que importa deixar assentado - e nisso andou muito bem a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça - é que, ao contrato de venda e compra de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, aplica-se o regime jurídico próprio da lei 9.514/97. Desse regime decorre que, se as parcelas forem adimplidas a tempo e modo, a propriedade fiduciária se resolve (art. 25 da lei 9.514/97); já se houver inadimplemento, não sanado após formal constituição em mora, ou se executa o crédito, promove-se a excussão do bem em leilões públicos e se restitui ao antigo fiduciante eventual importância que sobejar após a satisfação do crédito do fiduciário e pagamento de demais despesas (arts. 26 e 27 da lei 9.514/97), ou, como alternativa à execução e com a anuência do fiduciário, mediante transação, o fiduciante dá seu direito eventual em pagamento da dívida (art. 26 § 8º da lei 9.514/97). Não se aplica à operação de crédito com pacto adjeto de alienação fiduciária a solução jurídica concebida para o inadimplemento (antecipado ou não) da obrigação de pagar o preço nas promessas de venda e compra. Por tal razão, processos judiciais instaurados para buscar resolução do contrato de crédito com garantia fiduciária e restituição de valores pagos - à semelhança do que se passaria na ação de resolução de promessa de compra e venda -, ainda que esteja adimplente o devedor fiduciante, não devem prosperar25. Em conclusão, a particularidade de o devedor fiduciante manifestar seu desinteresse no prosseguimento do negócio antes de estar inadimplente não justifica a resolução da compra e venda e nem permite a restituição parcial dos valores até então pagos ao credor fiduciário. A solução jurídica deve ser extraída da lei 9.514/97, para que não se viole o direito positivo e nem se comprometam a eficiência do financiamento imobiliário e do crédito com garantia fiduciária, em prejuízo da sociedade. *Melhim Chalhub é advogado, parecerista, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outros.   **Umberto Bara Bresolin é advogado, doutor e mestre em direito processual pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Revelia e seus Efeitos e Execução Extrajudicial Imobiliária: aspectos práticos.  __________ 1 A despeito do enfoque deste ensaio, é de se ressalvar que a alienação fiduciária de bens imóveis não se restringe às operações do Sistema Financeiro Imobiliário. Pode ela ser contratada por qualquer pessoa (física ou jurídica), para estabelecer garantia imobiliária aos créditos em geral. 2 Sobre o tema, tratando dos instrumentos para desenvolvimento do mercado secundário de créditos imobiliários, v. CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 282 e ss. 3 A respeito da relação entre segurança e efetividade da garantia e satisfação coercitiva do crédito imobiliário, v. Bresolin, Umberto Bara. Execução Extrajudicial Imobiliária: aspectos práticos. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 81 e ss. 4 AZEVEDO JR., José Osório de. Compromisso de Compra e Venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.205. 5 Alicerçada sobretudo em decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementada: "Compromisso de compra e venda. Rescisão por parte do compromissário inadimplente. Ação improcedente. Inadimplemento antecipado do contrato. Fato imputável ao devedor. Interesse legítimo para discutir alcance das perdas e danos. Retenção de importâncias pagas. Inércia das compromitentes. Justiça pelas próprias mãos. Rescisão admitida pelas compromitentes. Art. 1.163 do CC. Observância do princípio da força obrigatória do contrato. Perdas e danos extraordinárias não comprovadas. Incidência do art. 53 do CDC. Impossibilidade de perda total. Devolução parcial (80%) ordenada" (TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Ap. 9077057-83.1996.8.26.0000, Rel. Des. José Osório de Azevedo Júnior, j. 18.06.1998). 6 "Em síntese, o contrato perdeu sua função social, ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de provável ausência de pagamentos do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência de remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera" (CARDOSO, Luiz Philipe de Azevedo. O inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. Tese de Doutorado. USP, 2014, p. 170). 7 Bem pondera AZEVEDO JR. que "(É) preciso que haja motivação ética e econômica suficiente para justificar o comportamento do compromissário, como, por exemplo, desemprego, graves dificuldades financeiras, morte ou doença na família etc., compelindo-o a dar por findo o contrato, diante da inércia do promitente vendedor que se recusa a resolver amigavelmente a questão, deixando o promitentena contingência de arcar com perdas e danos exageradas" (AZEVEDO JR., José Osório de. Compromisso de Compra e Venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.209.). 8 Sobre o tema, v. a aprofundada análise de GOMIDE, Alexandre Junqueira. Tempos de crise: controvérsias envolvendo a extinção do compromisso de venda e compra de imóveis. Disponível aqui; acesso em 18.11.2020. 9 "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". 10 "O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem". 11 "A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição". 12 Lei 13.786/2018, que inseriu o art. 67-A na lei 4.591/64 a fim de permitir, na hipótese de contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, a resolução postulada pelo adquirente com fundamento em inadimplemento absoluto de obrigação devida por ele mesmo (adquirente); caso em que fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, delas abatidas a pena convencional e demais verbas previstas no referido dispositivo. 13 A flexibilização, no entanto, não chegou ao ponto de reconhecer ao promitente comprador uma espécie de direito potestativo. Como explica ABELHA, "é verdade que a jurisprudência, culminada com a Súmula 543 do STJ, permite que o adquirente promova a extinção do contrato se perder o emprego e em outras situações que o impeçam, pessoalmente, de pagar o saldo do preço do imóvel. Porém, não há direito à resilição unilateral ("não pago simplesmente porque não quero"). A resolução por inadimplemento do próprio autor da ação ("não pago porque não posso mais") não é imune a consequências: o consumidor inadimplente pode livrar-se do negócio, mas só terá direito a ter de volta uma parte do que desembolsou (Súmula 543 do STJ), incidindo em favor do incorporador a cláusula penal e outras retenções" (ABELHA, André. Quatro impactos da Covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta in ISMAEL, Luciana e VITALE, Olivar (coords.). Impactos da Covid 19 no Direito Imobiliário. Porto Alegre: Paixão, Ibradim, 2020, p. 33). 14 A respeito do tema, v., de maneira ampla, CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária: Negócio Fiduciário. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, item 6.10.3). 15 É de muito fácil percepção a diferença entre os negócios de financiamento, de venda e compra e de alienação fiduciária nos casos em que as posições jurídicas de vendedor e credor fiduciário são ocupadas por sujeitos diferentes; como ocorre, por exemplo, nos casos em que o vendedor é um incorporador imobiliário e o credor fiduciário é um banco. Quiçá não tão nítida à primeira vista sob a ótica do comprador, a diferença continua inequívoca ainda que as posições de vendedor e credor fiduciário sejam tituladas pelo mesmo sujeito, porque flagrantemente distintos os objetos desses diferentes negócios jurídicos, como aqui evidenciado. 16 É paradigmático o precedente de lavra do Min. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, assim ementado: "(...) Alienação fiduciária de bem imóvel. Alegada violação do art. 53, do CDC. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no art. 27, §§4º, 5º e 6º, da lei 9.514/97 (...)" (STJ, 4ª Turma, AgRg no Agravo de Instrumento nº 932.750-SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 10.12.2007). 17 Embora prudente para evitar discussões, a rigor não era necessário que os artigos 32-A da Lei 6766/79 e 67-A da lei 4591/64, introduzidos pela lei 13.786/18, ressalvassem, respectivamente, em seus § 3º e § 14, a aplicação do regime próprio da lei 9.514/97 às hipóteses de alienação fiduciária. A evidente diferença de regime jurídico já teria sido suficiente para alcançar tal conclusão. 18 Houve recentes oportunidades de fazê-lo, mas os recursos tidos por representativos da controvérsia não foram hábeis, por razões formais, para deflagrar o julgamento da questão sob os moldes de recurso especial repetitivo (v. REsp 1.851.592-PR, Rel. Min. Antonio Carlos Fereira, j. 10.03.2020; REsp nº 1.871.911-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.08.2020 e REsp 1.873.334-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 09.09.2020). Reitera-se, no entanto, que a "superação dessa controvérsia pelo rito dos recursos repetitivos mostra-se efetivamente indispensável para afastar dúvidas e incertezas decorrentes de aplicação uniforme da norma do art. 53 do CDC aos distintos contratos de promessa de compra e venda e de crédito com pacto adjeto de alienação fiduciária, mediante interpretação que considere a distinta natureza jurídica desses contratos, à luz da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 636.331-RJ e da jurisprudência do STJ" (CHALHUB, Melhim Namem. A execução do crédito com garantia fiduciária e a relação de consumo. Disponível aqui; acesso em 26.11.2020). 19 V., dentre tantos, STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1.849.834/SP, Rel. Min. Raul Araújo, v.u., j. 11.05.2020; ou STJ, 3ª Turma, AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1.865.396/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 26.10.2020. 20 Que, a propósito, estava presente nos já mencionados REsps 1.851.592-PR e 1.873.334-SP. 21 STJ, 3ª Turma, REsp 1.867.209-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 08.09.2020, v.u. 22 REsp 1.867.209-SP, retro referido. Em abono do entendimento divergente, o aresto indica, dentre outros, julgado da 4ª Turma, no qual, por unanimidade de votos, negou-se provimento ao agravo regimental interposto contra decisão de inadmissão de recurso especial, decisão esta na qual constou que "O art. 26 da lei 9514/97 é aplicado quando o fiduciante não paga, no todo ou em parte, a dívida, e é constituído em mora, o que não é o caso dos autos conforme relatado na decisão ora recorrida, verbis: 'A fórmula do artigo 26 diz respeito à inadimplência do fiduciante, que, caso se converta em mora, irá redundar na solução do artigo 27, com a promoção do leilão público para alienação do imóvel. Na hipótese, a situação de fato é outra. Os autores não têm a inadimplência juridicamente definida e não foram constituídos em mora'. (fl. 251) Alterar a situação fática firmada nas instâncias ordinárias é inviável, em razão da Súmula 7/STJ". (STJ, 4ª Turma, AgReg no Ag 550820-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 17.03.2011, v.u.). 23 Com razão pondera CARDOSO que "a se cogitar de eventual inadimplemento antecipado por impossibilidade relativa em alienação fiduciária, não há declaração de inadimplir possível, não há pedido de resolução possível, ou restituição do que foi pago. A solução para um problema econômico superveniente do adquirente deve se pautar por mecanismos de mercado: é preferível que o adquirente antes de cair em mora coloque o bem à venda, para que possa, sem incidir no mecanismo de leilões extrajudiciais, nem ter que arcar com encargos contratuais, quitar a dívida e ficar com a diferença para si" (CARDOSO, Luiz Philipe de Azevedo. O inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. Tese de Doutorado. USP, 2014, p. 179). 24 Sobre o tema, de maneira geral, v. TERRA, Aline de Miranda Valverde. O chamado inadimplemento antecipado, in Revista de Direito Privado, v. 60, out.-dez. 2014, pp 135-157. 25 Sobrevindo desejável fixação do entendimento em sede de Recurso Especial Repetitivo, será caso de improcedência liminar do pedido (art. 332, II, do CPC). Até que isto ocorra, o processo há de ser extinto sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir, em razão de flagrante e insanável inadequação da via eleita, passível de constatação in statu assertionis - a justificar até mesmo o indeferimento da petição inicial (art. 330, III, do CPC); ou, em prestígio da primazia do julgamento de mérito, ter antecipadamente declarados improcedentes os seus pedidos por fundamento de direito (art. 355, I, do CPC). V., a propósito, CHALHUB, Melhim Namem, Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário, 7. ed. 2021, item 6.10.3.
No último dia 19  foi noticiado que o STF decidirá até 4 de março se a questão da penhorabilidade do único bem imóvel do fiador em contrato de locação comercial será novamente reapreciada em repercussão geral. Aqui não se pretende abordar as teses jurídicas acerca do tema ou ainda relembrar que esta questão em 2010 já foi alvo de decisão proferida pelo pleno do mesmo órgão. Na ocasião se sedimentou os inúmeros julgados da Corte após a análise do RE 407.688/SP sob a batuta do Min. Cesar Peluzo. Pelo julgado inicial e a sua majoritária corrente, em 2010 o STF patrocinou o tema 295 norteando ainda mais a  interpretação quanto a viabilidade da penhora do bem único do fiador, por sua constitucionalidade, firmando tema sem qualquer distinção de ser sua origem derivada de locação comercial ou residencial. Aliás, sempre vale registrar que o leading case do tema 295 junto ao RE 612.360/RS sob a relatoria da Min. Ellen Gracie, deu-se em sede de locação comercial. Mas, repita-se,  aqui não será o palco para discussão técnica, mas, uma observação à vida real e os impactos que uma indesejada revisão irão impactar neste importante segmento econômico. Veja-se que para viabilizar a reapreciação da matéria, foi eleito pelo Supremo Tribunal Federal, um leading case, o RE1307334 derivado de julgado realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo caso concreto de origem representa com exatidão a praxe e precisa ser resgatado. Trata-se de uma locação comercial, na qual foram seus fiadores os seus respectivos sócios. A mesma pessoa que assinou o contrato como fiadora, assinou também como locatária, visto ser a administradora da empresa. Isso não surpreende, visto que já se apurou em recente pesquisa do tipo "sondagem em nível Nacional"1, num universo de cerca de 20.000 mil contratos comerciais, verificou-se que dentre as de menor porte, com valor médio de R$ 3.377,00 (três mil trezentos e setenta e sete reais), 78% delas eram garantidas por fiadores e dentre essas  mais de 90% contam com os sócios na condição de garantes da relação locatícia. A constatação é simples e o lógico objetivo é minimizar os custos da jornada econômica da empresa e  maximizar o emprego dos recursos financeiros na própria atividade. A fiança é a única modalidade gratuita prevista em lei. As demais modalidades, na seara comercial, irão impor um custo adicional médio de 1,5 a 2 aluguéis ao ano. Pois bem, voltando ao caso concreto em discussão,  o contrato de locação fora firmado em dezembro de 2016, para ter vigência por pelo prazo de 36 meses,  que se encerraria apenas em 2019, sendo que em Fevereiro de 2018 a locatária deixou de pagar os alugueres, o que deu causa a respectiva ação de despejo por falta de pagamento. O fato que merece destaque é que os fiadores do caso em tela, como sói acontecer em expressiva maioria de mercado, eram da mesma forma os comerciantes que vieram a inadimplir. Na ação de despejo por falta de pagamento não apresentaram contestação, mas, no momento da execução trouxeram o tema da impenhorabilidade à tona. Ou seja, no momento da contratação, estavam lá obtendo as vantagens de serem seus próprios garantes otimizando a locação,  mas, com a ciência do seu lastro patrimonial. No instante que não prosperaram na atividade se arvoram em não cumprir a obrigação pactuada e a lei, visto que a penhora do bem único do fiador está expressa claramente na lei inquilinária. De outro norte, o locador que entrou "no jogo" com a certeza de que conheceria as regras definidas pelo STF em sede de repercussão geral e assentada no tema 295, agora se vê a beira de novo julgamento que revisitará a questão, podendo assim mudar o seu entendimento. E note-se,  nem sequer o argumento retórico de que tal viabilidade de penhora usurparia o princípio da isonomia, pois ao fiador seria dado uma tratamento mais duro do que ao inquilino faz sentido nesse caso, afinal locatário e fiadores se confundem, que repisa-se é o mais corriqueiro no mercado. Difícil explicar à qualquer um, a lógica deste raciocínio. Tal possibilidade é um verdadeiro contrassenso ao princípio da segurança jurídica e à própria finalidade do instituto da repercussão geral, ainda mais quando se sabe que o caso que gerou tal tema também, o que se chama de leading case,  operou-se num caso de locação comercial. Por fim, se bem sucedida a empreitada dos fiadores para afastar a penhorabilidade de seu bem, milhares de outros locatários e pretendentes à locação,  que preferem usar da fiança para garantir seus próprios negócios vez que a única modalidade gratuita, serão prejudicados. Esta modalidade certamente não mais será aceita e haverá uma corrida para se exigir a substituição por garantias onerosas em nefasto período ainda afetado pela pandemia em que muitos comerciantes lutam diuturnamente pela manutenção e equilíbrio de seus negócios. Vale acrescentar que a perda da propriedade dos fiadores em hasta pública não atinge 0,2% de todas as execuções neste mercado. Com a segurança imposta pelo tema 295 as negociações fluem e a dívida é adimplida. Uma eventual mudança do entendimento, criando-se uma distinção da penhora de acordo com o objetivo da locação, não só criaria uma distinção (onde a lei não a prevê) como lançaria todo o mercado a impor outras garantias para a conquista da locação. Assim, este julgamento não só abala o sistema jurídico e prejudica milhares de locatários que cumprem seus compromissos, mas afronta a "justiça do caso concreto". É preciso ter cuidado!    *Leandro Ibagy é empresário e advogado formado em 1988 na UFSC - especializado no Direito Imobiliário, diretor jurídico da Ibagy Imóveis Ltda., ex-professor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor permanente da ESA - Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina, presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SC e coordenador de Locação da CBCSI/CNC, Câmara Brasileira de Comércio e Serviços Imobiliários da Confederação Nacional de Comércio.   **Moira Regina de Toledo Bossolani é advogada, mestre em Direito Civil pela USP. É diretora executiva da vice-presidência de Administração de Imóveis e Condomínios do SECOVI-SP. Membro do Conselho Consultivo eleito da AABIC - Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo, das comissões de Locação e Condomínio do Ibradim e coordenadora adjunta da Comissão de Locação da OAB/SP. __________ 1 Fonte: Rede Avançada de Locações em setembro de 2020.   
No final do ano passado na sessão do dia 10 de novembro de 2020, a 1ª Turma do CARF (órgão máximo no âmbito administrativo) pela primeira vez decidiu pela impossibilidade jurídica da tributação da operação de permuta, sem torna, de bens imóveis pelas pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido. (Proc 110080.001020/2005-94).  Há muitos anos a Receita Federal do Brasil vem efetuando autuações pretendendo a tributação dessa operação e os contribuintes vem debatendo esse tema administrativo e judicialmente sem êxito no âmbito administrativo, mas depois de algumas decisões importantes no Poder Judiciário sempre pela neutralidade da expressão econômica e patrimonial do negócio permuta, finalmente temos uma decisão do CARF reconhecendo que a tributação do valor de bem recebido na troca por outro bem contraria a inteligência do artigo 43 do Código Tributário Nacional.  Com efeito, o artigo citado determina que o imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: (I) - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos ou (II) - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior. Fato gerador do imposto de renda pressupõe, portanto, a existência de um acréscimo patrimonial, que represente efetivo ingresso financeiro que se integra ao patrimônio do contribuinte com aumento do patrimônio líquido. Definitivamente isso não acorre na operação de permuta, sem torna, de bens imóveis.  Em um negócio jurídico, como na operação de permuta, onde não há efetivamente uma receita e nem mesmo um acréscimo patrimonial, a tributação se apresenta claramente ilícita.   O entendimento que vinha sendo defendido pela Receita Federal do Brasil para justificar tal tributação se baseia em uma ficção jurídica de tributação com base na receita bruta (no caso do lucro presumido) lançada somente para efeitos contábeis das unidades que foram permutadas. O argumento levava em conta a analogia entre a permuta e a compra e venda. Contudo, esta suposta receita nunca existiu posto que não há em tal operação uma efetiva venda das unidades imobiliárias trocadas. Há uma mera substituição de ativos, sem qualquer acréscimo patrimonial para a pessoa jurídica permutante.  Essa situação era inaceitável e não é por outro motivo que a doutrina especializada rechaça essa pretensão de tributação como vemos em trecho da obra praticabilidade de Justiça tributária - exequibilidade da lei tributária e direitos do contribuinte da ministra Regina Helena Costa citado no voto condutor da referida decisão inédita do CARF:  (...) forçoso concluir que o direito tributário não comporta o emprego de presunções absolutas para efeito de determinar o nascimento de obrigações tributárias, a teor dos princípios da verdade ou da realidade material, da capacidade contributiva e da discriminação constitucional de competências. (2007, pp.167/169)  Nesse sentido, cristalina as lições de Miguel Delgado Gutierrez na obra A Tributação do Ganho de Capital nas Operações de Permuta, onde concluí pela impossibilidade de tributação nas operações de permuta:  "Assim, não se pode afirmar que na permuta ocorre um ganho para qualquer uma das partes, pois, ao realizar o contrato, elas entendem que os bens permutadas possuem valores equivalentes. Por isso, aceitam a troca de um bem pelo outro, como se tivessem igual valor, ainda que de fato não tenham." (2012 p. 73)  Não é por outra razão que a jurisprudência do Tribunal Regional da 4ª região já se manifestou de forma expressa no sentido da impossibilidade de Tributação da permuta (Proc 5010221-77.2016.4.04.7200), decisão essa que foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça que corroborou tal entendimento asseverando que "a mera previsão de aplicação das disposições de compra e venda à permuta/troca não parece suficiente a ensejar que, nos negócios jurídicos de permuta, haja receita para fins de tributação, no que tange especificamente ao valor do imóvel objeto da transação."  Vale destacar que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 108, parágrafo primeiro, ao tratar da interpretação e integração da legislação tributária veda expressamente que o uso de analogia possa gerar exigência de tributo não previsto em lei. Logo, a tentativa de tributar a permuta pela analogia com a compra e venda viloa frontalmente o espirito da lei.  Assim, é com alívio que os contribuintes recebem a notícia dessa decisão inédita no âmbito da CSRF, já que termos que enveredar pelo caminho do recurso administrativo já sabendo que provavelmente o seu desfecho seria negativo, o que levaria ao necessário ingresso em um processo judicial longo e custoso, a fim de ver reconhecido um direito evidente, é totalmente contraproducente e acarreta uma destruição de valor enorme para sociedade. *Rafaella Carvalho Corti é advogada e executiva das áreas jurídica e compliance. Pós-graduada em Direito Empresarial e Direito Registral e Notarial. MBA em Gestão Empresarial.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Súmula 543 do STJ: por que revisá-la?

Introdução*  Um assunto tão discutido, e ainda estranhamente incompreendido. Há décadas o Poder Judiciário vem sendo chamado a enfrentar o tema da extinção da promessa de compra e venda em incorporações imobiliárias a fim de decidir sobre seu cabimento e consequências daí advindas. Estando o incorporador em dia com suas obrigações, o adquirente pode desistir da unidade que prometeu comprar, resilindo unilateralmente o contrato? Resilir, rescindir, resolver, distratar: há um ou mais termos corretos a empregar em cada caso? Extinto o contrato, o incorporador deve devolver o que o adquirente pagou? Quanto? Quando? Com juros a partir de que momento? Em 2015, a crise do mercado imobiliário e a explosão de ações judiciais envolvendo as incorporações já haviam se instalado. O índice de quebras contratuais, amigáveis e litigiosas, superava espantosos 40%: de cada 100 imóveis negociados, mais de quarenta, por distintas razões, eram devolvidos às incorporadoras. "Devolvido" é força de expressão, pois na grande maioria dos casos a obra ainda estava em andamento.  Entre erros e acertos, bombordos e estibordos, a jurisprudência caminhou ao longo dos anos até chegar, em agosto do mesmo calendário de 2015, à Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)1. De acordo com a Súmula, na hipótese de inadimplemento da incorporadora o consumidor teria direito a recuperar tudo o que pagou, mas somente um pedaço se ele é quem deu causa à resolução. De um jeito ou de outro, o reembolso das quantias deveria ser imediato, sendo inválida a disposição contratual que abusadamente previsse seu parcelamento ou postergação.  Como o tempo passava e a Súmula 543 cumpria limitadamente seu papel de uniformizar a jurisprudência e aumentar a segurança jurídica, no apagar das luzes de 2018 chegou, sob aplausos e vaias, a lei 13.786, de 28 de dezembro, justamente para regular o desfazimento e outros aspectos de contratos de alienação de imóveis celebrados não apenas no regime da incorporação imobiliária, mas também no bojo de loteamentos. O que mudou, e a partir de que momento, com a chegada da novel legislação? Qual é, ou deveria ser, se é que houve algum, o seu impacto sobre a Súmula 543 do STJ? O enunciado merece revisão? Em que medida? Este artigo tem precisamente o objetivo de responder a tais perguntas. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador, VP e Diretor Administrativo do IBRADIM. Presidente da Comissão Nacional de Direito Notarial e Registral da OAB. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil (PUC-Rio, UERJ, EMERJ, ESA-PGE/RJ, Instituto Nêmesis, Damásio, ILMM e CERS). Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário. Sócio de Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados. Olivar Vitale é advogado, fundador e presidente do IBRADIM, Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP, Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário), Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC,  Professor e Coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da Especialização/MBA da POLI-USP, Professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino, Sócio Fundador do VBD Advogados. __________ *Agradecemos a Juliana Velloso e Marilia Nascimento, fundamentais na desafiadora tarefa de pesquisa, sem a qual teria sido impossível escrever este artigo. 1 Súmula 543 - Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. (Súmula 543, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 31/08/2015).
1. A promessa de venda de imóveis tipificada pela lei 4.591/1964 O contrato de promessa de compra e venda foi tipificado no direito positivo brasileiro pelo decreto-lei 58/1937 para comercialização de lotes de terreno resultantes de parcelamento do solo urbano,1 vindo a lei 4.591/1964 a instituir tipificação especial para a promessa de venda de imóveis integrantes de incorporação imobiliária. A instituição de regimes jurídicos diferenciados para esse contrato preliminar é justificada pela necessidade de adequá-lo à racionalidade econômica desses sistemas produtivos e à relevância do interesse social relacionado à urbanização e construção de conjuntos imobiliários para moradia.2 Em relação aos imóveis objeto de incorporação imobiliária, a lei 4.591/1964 (arts. 28 e seguintes) qualifica a promessa de venda como negócio jurídico pelo qual o incorporador se obriga a transmitir a propriedade de unidades imobiliárias que integrarão conjunto imobiliário e, ainda, a promover sua construção, por si ou por terceiro, responsabilizando-se pela entrega dos imóveis no prazo programado (arts. 29 e 43,3 dentre outros). Em contraprestação, os promitentes compradores se obrigam a pagar o preço das unidades que se comprometeram a adquirir, em geral em parcelas. A celebração desses contratos tem como pré-requisito o arquivamento e o registro, no Registro de Imóveis da situação do empreendimento, de um Memorial de Incorporação composto pelos documentos enumerados no art. 32, entre eles a discriminação das frações ideais em que é dividido o terreno, que passarão a constituir os direitos de propriedade a serem comercializados, o projeto de construção aprovado pelas autoridades, a descrição e caracterização do futuro conjunto imobiliário e das unidades que se vincularão a essas frações ideais, o orçamento da construção, além de outros documentos. Por força do art. 35-A, todo contrato de alienação desses imóveis, enquanto em construção, deve ser iniciado por um quadro-resumo que destaca determinados elementos do seu conteúdo necessário, entre eles: (i) a identificação do financiamento da construção, se houver, e da garantia incidente sobre o imóvel; (ii) a identificação do regime da construção, se contratadas destacadamente a venda da fração ideal e a prestação dos serviços de construção; (iii) as condições de execução da obra, prazo de conclusão e suas eventuais prorrogações, penalidades por inadimplemento das obrigações do incorporador; (iv) as condições de pagamento do preço e encargos, índices e critérios de reajustamento e da taxa de juros, se houver; (v) a indicação das obras e serviços não incluídos no preço, que deverão ser pagos separadamente pelo adquirente, tais como as ligações dos serviços públicos, a decoração da portaria etc; (vi) as cláusulas penais, moratórias e compensatórias; (vii) a indicação das hipóteses de resolução do contrato, explicitando os procedimentos de realização de leilão extrajudicial, se for o caso. Na fase de execução do contrato a lei atribui ao incorporador determinados deveres relacionados à prevenção e mitigação de riscos e ao desenvolvimento do programa contratual, tais como a captação de recursos e sua aplicação na construção, o controle orçamentário da incorporação e a entrega de relatórios periódicos sobre o andamento da obra, dentre outros deveres inerentes à gestão da incorporação imobiliária. Traço marcante dessa espécie de promessa de compra e venda, que a distingue do regime geral definido pelo Código Civil, é a dupla função que a qualifica como (i) contrato preliminar de transmissão da propriedade e, simultaneamente, (ii) instrumento de captação de recursos, já que é por esse meio que o incorporador levanta os recursos necessários à realização do objeto da incorporação imobiliária - execução da obra, entrega das unidades, liquidação do passivo e retorno do investimento do incorporador. A existência de fluxo de caixa proveniente das vendas em volume suficiente para execução do projeto é indispensável para obtenção de financiamento destinado à execução do empreendimento, pois os créditos derivados dessas promessas em regra são cedidos fiduciariamente ao banco financiador e seu produto é destinado prioritariamente à execução da construção e à amortização desse financiamento. Essa estrutura econômico-financeira aproxima a conformação da incorporação imobiliária da estrutura das operações de Project finance, cujo objeto também é a realização de determinado empreendimento sustentado exclusivamente por "uma rede de contratos coligados que, buscando uma adequada alocação de riscos, viabilize o desenvolvimento de um empreendimento com base nos recursos por este gerados e nas garantias dele exclusivamente derivadas".4 Do mesmo modo que um Project finance, a incorporação imobiliária também se realiza com o produto da exploração do seu próprio ativo e no limite da sua capacidade de geração e preservação das receitas auferidas com essa exploração. Em ambos os casos, a realização do objeto do negócio só se viabiliza se for possível demonstrar a liquidez do empreendimento, como condição para seu financiamento, até porque a principal garantia do financiador é a vinculação das receitas das vendas à liquidação do seu passivo.5 Dada essa limitada capacidade de autossustentação, a lei impõe ao incorporador deveres inerentes à gestão dos recursos orçamentários mediante "boa administração" e "preservação do patrimônio de afetação" (art. 31-D, I),6 visando a preservação do fluxo financeiro proveniente das vendas e seu direcionamento prioritário à execução da obra. O conceito de "boa administração" é explicitado pelo inciso III desse mesmo art. 31-D, que remete a todas as demais disposições da lei 4.591/1964 a ele correspondentes, ao exigir a aplicação das receitas das vendas "na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra."7 É igualmente em razão da necessidade de rigoroso controle orçamentário, justificado pela limitada capacidade de geração de receitas, que a lei contempla outros mecanismos de proteção patrimonial, dentre os quais ressaltam (i) blindagem dos direitos e obrigações de cada empreendimento em um patrimônio de afetação (lei 4.591/1964, arts. 31-A e seguintes), (ii) irretratabilidade das promessas de venda (lei 4.591/1964, § 2º do art. 32), (iii) preservação das receitas mediante impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas (novo CPC, art. 833, XII), (iv) recomposição do fluxo financeiro da incorporação, em caso de inadimplemento do adquirente, mediante procedimento extrajudicial de resolução, seguido de leilão (lei 4.591/1964, art. 63) e (v) destituição do incorporador em caso de injustificado retardamento ou paralisação da obra por mais de 30 dias (lei 4.591/1964, art. 43, VI). Os elementos da racionalidade econômica dessa espécie de contrato, assim identificada na lei, evidenciam que a existência de um interesse comum subjacente a cada promessa de venda condiciona sua interpretação à funcionalidade econômica da incorporação imobiliária, na medida em que a satisfação das legítimas expectativas de cada contratante está subordinada à consumação do empreendimento e à entrega das unidades construídas a todos os adquirentes. É essencialmente a partir desses pressupostos que, ao tipificar a promessa de venda de imóveis a construir por esse regime, a lei 4.591/1964 institui procedimento extrajudicial de resolução do contrato que prioriza a recomposição do fluxo de caixa do empreendimento, tendo em vista que, como observa Caio Mário da Silva Pereira, "a mora dos adquirentes desequilibra a caixa e, consequentemente, altera o plano financeiro da obra", situação que repercute sobre "todo o conjunto dos candidatos às demais unidades autônomas."8 A prioridade assim conferida pela lei à recomposição do fluxo financeiro da incorporação imobiliária é justificada pela limitação do lastro para formação de capital ao próprio ativo do empreendimento.  2. Função social do contrato de promessa de venda de imóveis integrantes de incorporação imobiliária  A caracterização dessa espécie de promessa de compra e venda em conformidade com as disposições dos arts. 28 e seguintes da lei 4.591/1964 põe em relevo o interesse comum da coletividade dos contratantes e a necessidade de harmonização entre o interesse individual de cada contratante e os interesses supraindividuais ou coletivos, "sob pena de ser desvirtuada a sua própria causa, ou função econômico-social."9 É que, a despeito de constituir uma relação jurídica individual, cada promessa de venda, quando contratada pelo regime da incorporação imobiliária, está coligada às demais promessas e a outros contratos (construção, financiamento da construção, hipoteca, cessão fiduciária etc), cuja execução extravasa o limite de cada relação jurídica e vincula todas elas, indissoluvelmente, por um fim comum, que se realiza com a participação coordenada dos demais contratantes da incorporação. Assim ligados por um nexo funcional correspondente à realização do objeto da incorporação imobiliária, esses contratos de promessa conformam um ambiente no qual os efeitos de cada contrato de promessa repercutem inevitavelmente sobre toda a coletividade dos contratantes e contribuem para a realização - ou frustração - da função social dessa espécie de contrato e para preservação - ou rompimento - do equilíbrio da relação obrigacional.10 Nesse ambiente, o interesse comum da coletividade dos contratantes prepondera sobre a relatividade dos efeitos de cada contrato de promessa e pode implicar, eventualmente, "não apenas a privação de efeitos dos negócios que afrontam tais interesses, mas também a conservação ou o tratamento jurídico diferenciado de um contrato que tenha grande repercussão no atendimento de um interesse socialmente relevante."11 A relevância hermenêutica desse interesse comum sobre o interesse individual do adquirente inadimplente é objeto do acórdão proferido no REsp 1.115.605-RJ, que ressalta a "funcionalidade econômica da incorporação imobiliária e a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes, e não dos interesses individuais de seus integrantes", como bem ressalta o acórdão.12 Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Melhim Chalhub é advogado, parecerista, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Incorporação Imobiliária, entre outros. **Alexandre Junqueira Gomide é doutorando e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Advogado. Parecerista. Fundador e Diretor Estadual do IBRADIM.  __________ 1 A promessa de venda de imóveis não loteados está prevista no art. 22 do mesmo decreto-lei 58/1937, alterado pelas deis 649/1949 e 6.014/1973, vindo a ser introduzida no Código Civil nos arts. 1.417 e 1.418. 2 Muito embora o Código Civil tenha tipificado essa espécie contratual nos seus arts. 1.417 e 1.418, subsiste a tipificação especial das promessas de venda de imóveis loteados e dos integrantes de incorporação imobiliária em razão das singularidades que justificam sua tutela especial. 3 Quando indicarmos apenas os números dos arts. estamos nos referindo à dei 4.591/1964. 4 MUNIZ, Igor, et alii, Temas de direito bancário e do mercado de capitais. Coordenadores: Luiz Leonardo Cantidiano e Igor Muniz. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2014, p. 195. "Project finance é uma forma de engenharia/colaboração financeira "sustentada contratualmente pelo fluxo de caixa de um projeto, servindo como garantia à referida colaboração os ativos desse projeto a serem adquiridos e os valores recebíveis ao longo do projeto" (BORGES, Luiz Ferreira Xavier, Project finance e infra-estrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, V. 5, N. 9, p. 105-121, jun/1998)." 5 Observam Maurício Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado que essa modalidade de operação [Project finance] "leva em conta os riscos inerentes ao projeto (...), e como, em regra, a principal garantia dos financiadores é a vinculação das receitas operacionais futuras, os financiadores têm forte interesse em evitar qualquer insucesso na concessão." (RIBEIRO, Maurício Portugal, e PRADO, Lucas Navarro, Comentários à Lei de PPP - Parceria Público-Privada. São Paulo: Malheiros, 1. ed., 2007, pp. 244/245). 6 Lei 4.591/1964: "Art. 31-D. Incumbe ao incorporador: I - promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais;" 7 Lei 4.591/1964: "Art. 31-D. Incumbe ao incorporador: (...); III - diligenciar a captação dos recursos necessários à incorporação e aplicá-los na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra;" 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Condomínio e Incorporações. Atualizadores: Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 13. ed. revista e atualizada, 2018, p. 342. 9 "Na apreciação desses contratos, os direitos subjetivos de cada um dos contratantes não podem ser vistos de modo atomístico, como se cada um fosse uma entidade isolada, envolvido na hobbesiana luta de todos contra todos. Dessa compreensão resulta a afirmação da transindividualidade ou comunitariedade que está no fulcro da operação jurídica e econômica de tais contratos. (...). nesses casos, a idéia de uma comunitariedade ou transindividualidade dos interesses em causa não pode ser afastada sob pena de ser desvirtuada a sua própria causa, ou função econômico-social." (MARTINS-COSTA, Judith, Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos, in O Direito da Empresa e das Obrigações. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas/Quartier Latin, 2006, p. 241). 10 Tratamos da função social do contrato de promessa de venda nas incorporações imobiliárias no contexto do sistema de proteção do adquirente no Capítulo X do nosso Incorporação Imobiliária (GenForense, 5. ed., 2019).  11 KONDER, Carlos Nelson, O novo Processo Civil brasileiro - temas relevantes. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2018, v. I, pp. 205/206. 12 "Processual civil e imobiliário. Incorporação. Falência Encol. Término do empreendimento. Comissão formada por adquirentes de unidades. Contratação de nova incorporadora. Possibilidade. Sub-rogação da nova incorporadora nos direitos e obrigações da Encol. Inexistência. Sistemática anterior às alterações impostas à lei 4.591/64 pela lei 10.931/04. [...].  2. Embora o art. 43, III, da lei 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes. 3. Apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da lei 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria. 4. Recurso especial provido." (REsp 1.115.605-RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 18.4.2011).
O presente artigo tem como objeto central o de analisar o art. 36 do CTM do Recife, questionando sobre a real necessidade do adquirente ou alienante ter que proceder com a alteração no registro da propriedade junto ao cadastro imobiliário urbano, no instante em que tal procedimento já restou devidamente cumprido junto aos cartórios imobiliários. A finalidade do artigo é demonstrar que, com base no sistema de registro de imóveis brasileiro, assim como, pelas próprias determinações e andamentos já estabelecidos no próprio Código Tributário municipal, tal exigência passa a ser identificada como apenas um ato burocrático adotado pelo Fisco Municipal que desestabiliza as searas administrativas e judiciárias com procedimentos inequívocos. Posto isso, demonstraremos como a própria Administração Pública pode trazer para si o protagonismo até então exigido dos pólos da relação contratual, seja pela formalização de convênios com os cartórios imobiliários ou, ainda, pelas próprias informações recepcionadas ao próprio Fisco Municipal. Introdução São históricas as dificuldades encontradas no Brasil ao que tange a questão de administrar, sistematizar e produzir técnicas que facilitem a fiscalização a ser feita pela Administração Pública. A existência de um Estado implica a busca de recursos financeiros para sua manutenção e proteção do bem comum social, como sabiamente nos ensina Luís Eduardo Schoueri1. Há muito tempo os problemas derivados no mercado imobiliário brasileiro são apenas observados pelos poderes responsáveis, o que levanta questionamentos por aqueles que investem e, que de alguma forma, tiram seu valor de subsistência financeira da prática do respectivo ramo. Assim, indagados por advogados, engenheiros, administradores e demais cidadãos, decidimos iniciar os estudos sobre a temática, mesmo que de forma indireta, sempre procurando pesquisar, dialogar e retirar conhecimento das melhores formas possíveis. Na verdade esse projeto inicial é obra de muitos, que de alguma forma cooperaram para sua construção. Posto isso, o artigo foi feito de uma forma que não só os militantes da área jurídica tenham uma fácil leitura dos argumentos apresentados, mas para todos aqueles que se interessem pelo estudo, já que apesar de se restringir ao Município de Recife, a eficácia proposta se expande aos demais municípios (em casos semelhantes).  Todos esses fundamentos serão arguidos na intenção de demonstrar por quais motivos o artigo 36 do Código Tributário Municipal do Recife (bem como das demais disposições existentes no território nacional, que sejam neste mesmo sentido) se trata de uma medida meramente burocrática, afinal, no instante em que os requisitos cíveis já foram cumpridos no ato de registro junto ao cartório de imóvel, demonstra-se incabível a aplicação do dispositivo, uma vez que existem procedimentos que fornecem a situação jurídica do bem imóvel ao próprio Fisco. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Gabriel Bezerra Lins da Silva é graduado em Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduando em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito. Membro do Grupo de Pesquisa Logos: Processo, Linguagem e Tecnologia do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD-Unicap-CNPq). Membro Colaborador da Comissão de Direito imobiliário da OAB/PE. Membro da Comissão de Direito Condominial do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Assessor Jurídico de Direito Imobiliário no escritório de advocacia Queiroz Cavalcanti.  **Leandro Nogueira Constantino é graduado em Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Advogado tributarista no escritório de advocacia Tenório & Guedes Advogados.  __________ 1 SCHOURI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2019, p.17.
O Direito está cheio de temáticas que, reiteradamente, resultam em posicionamentos díspares nos Tribunais, seja pela mudança da composição de alguns colegiados, seja pela mudança/transformação do Direito no tempo. Neste ano, a lei 8.009/90 completa trinta anos de vigência. Trata-se de um dos diplomas mais importantes em nossa legislação e acreditamos que o debate que paira sobre o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990 é um bom demonstrativo dessa mudança. Vejamos. Recentemente, Daniel Ustárroz fez um apanhado do alcance do conceito de bem de família, chegando a conclusões cruciais para a compreensão do instituto: (i) O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas (súmula 364/STJ); (ii) A proteção contida na Lei nº 8.009/1990 alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis indispensáveis à habitabilidade de uma residência e os usualmente mantidos em um lar comum (AgRg no REsp nº 606301/RJ, 4. T., Rel. Min. Raul Araújo. DJE 19.09.2013); (iii) "Não há que se falar em prazo decadencial ou prescricional para a arguição da oponibilidade de bem de família, pois a jurisprudência do STJ orienta que a impenhorabilidade de bem de família é matéria de ordem pública, suscetível de análise a qualquer tempo e grau de jurisdição, operando-se a preclusão consumativa somente quando houver decisão anterior acerca do tema". (AgInt no REsp 1639337/MG, 4. T., Rel. Min. Marco Buzzi. DJe 23/10/2020); (iv) É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família (súmula 486/STJ)1. Em seu art. 1º, a referida lei prevê o seguinte: "O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei". Porém, como toda a regra geral, comporta exceções. E, no presente artigo, nos debruçaremos justamente sobre o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990. O dispositivo legal afirma, categoricamente, o seguinte: A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Em outras palavras, o legislador criou uma exceção à regra geral, no sentido de que o bem de família do fiador em contrato de locação poderá ser penhorado pelo locado, caso o locatário não cumpra com as suas obrigações contratuais. Acerca do desiderato almejado pelo legislador, cabe referir o que aduz Gleydson Oliveira, ao explanar que o propósito normativo era "fomentar a moradia e o livre mercado de locações de imóveis e diminuir os custos das transações"2, em clara convergência de Direito e Economia, visando a criar um panorama mais seguro ao mercado locatício. O autor complementa a análise conjuntural, expondo que, até a edição da lei 8.245/91 - que proporcionou a inclusão do inciso VII à lei 8.009/90 -, a "atividade de locação de imóveis tinha um desempenho abaixo do seu potencial, sobretudo diante da ausência de um modelo que ofertasse segurança e estabilidade jurídicas aos sujeitos envolvidos"3. Infere-se, assim, a grande importância ostentada pela inovação normativa para o fortalecimento do mercado e para a facilitação de negociações no segmento locatício. Em esfera jurisprudencial, no ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar essa questão, no julgamento do RE 407.688, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, decidiu pela legitimidade da penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, reconhecendo a compatibilidade da exceção com o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana. Consequentemente, tal orientação foi alçada como precedente jurisprudencial no Tema 295 do STF: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no artigo 3, VII, da lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no artigo 6 da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000", e na Súmula 549 do STJ: "É válida a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação". Porém, recentemente, no RE 605.709/SP, a 1ª Turma do STF, em maioria apertada, adotou entendimento diametralmente contrário, no sentido de que a dignidade da pessoa humana e a proteção à família impedem a penhora do bem de família do fiador em locação comercial, sob pena de privilegiar a satisfação do crédito do locador do imóvel comercial ou o livre mercado. Outro fundamento suscitado por parcela doutrinária minoritária funda-se na alegada quebra da isonomia, em virtude do tratamento jurídico díspar entre locatário e fiador4. Cléo Siveira e Tassia Ruschel Ibrahim, ao analisar essa temática, resumiram tal julgamento do RE 605.709/SP da seguinte forma: "Em resumo, entendeu o STF que, apesar da existência de determinação legal de que o imóvel de família do fiador pode ser alienado para a quitação da dívida locatícia, a regra não valeria para todos os casos. Isso é, afastou-se a pacificação construída nos últimos anos para se firmar entendimento de que (i) se o contrato de locação for comercial; (ii) se o locatário se tornar inadimplente; (iii) se a garantia for fiança; e (iv) se o fiador possui somente um imóvel, este imóvel não pode mais ser penhorado para liquidação do débito locatício. Assim, declarou-se que a previsão do art. 3°, VII, da lei 8.009/90, permissiva à penhora do bem de família para satisfazer fiança concedida em contrato de locação residencial, não abrangeria os contratos de locação comercial"5. O referido acórdão, até segunda ordem, está pendente de embargos de divergência para fixação de nova tese sobre a temática. A partir do julgamento do RE 605.709/SP, alguns Tribunais passaram a, gradativamente, modificar seus entendimentos antes pacificados sobre a temática, causando maior insegurança jurídica. Por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, possui entendimentos divergentes entre Câmaras Cíveis: recentemente, a 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Agravo de Instrumento n. 2222923-07.2020.8.26.0000, de relatoria da Desembargadora Rosangela Telles, determinou a impenhorabilidade do imóvel de um fiador em contrato de locação comercial, justamente com base no julgamento do recurso extraordinário do STF. Em suas razões, a relatora fez distinção entre a natureza do contrato de locação (no caso analisado, tratava-se de locação comercial) para fins de afastar a Súmula 549 do STJ. Porém, a 31ª Câmara Cível do mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de apelação 1010423-13.2018.8.26.0344, de relatoria do desembargador Francisco Casconi6, possui entendimento diametralmente diverso, afirmando, inclusive, que o entendimento do RE 605709/SP é decisão isolada, desprovida de vinculatividade, que não tem o condão de afastar as conclusões tomadas em sede de recurso extraordinário com repercussão geral. A 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente, posicionou-se, também, de forma contrária ao RE 605.709/SP, no sentido de não reconhecer a impenhorabilidade do bem de família do fiador7. Neste, o que mais chama a atenção, é justamente a preocupação da desembargadora relatora em manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, com fulcro nos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil. Trata-se do mesmo posicionamento explicitado pelo Subprocurador-Geral da República, Wagner Natal Batista, em parecer exarado em 30/07/2020 no bojo do processo 0232323-06.2019.8.21.7000, ao sustentar que a decisão proferida quando do julgamento do Recurso Extraordinário n. 605.709 consistiu em entendimento isolado, sem o condão de representar efetiva relativização da compreensão cediça no âmbito da Suprema Corte. Em sua visão, cuidou-se de mero "decisum pontual, não unânime, que não tem efeito multiplicador"8. O membro do parquet arremata seu abalizado parecer, com a seguinte ponderação acerca da importância de um entendimento uníssono a respeito da (im)penhorabilidade envolvendo o bem de família do fiador em contratos de locação imobiliária: "Se essa Excelsa Corte entende que a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação residencial não ofende o art. 6º da Constituição da República, mesma orientação deve ser aplicada às hipóteses que envolvem contrato de locação comercial."9 Outrossim, cumpre reforçar que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça - autoridade jurisdicional máxima em se tratando de uniformização hermenêutica da legislação federal -, o tema resta, inclusive, sumulado desde 2015, quando da edição do Enunciado nº 549, conforme já mencionado anteriormente. Referido enunciado sumular foi o resultado de múltiplos precedentes exarados pelas Turmas de Direito Privado da Corte Superior10-11-12, dando ensejo à consolidação temática pela 2ª Seção do STJ, para o fim de dar concretude a valores tão caros à dogmática processual civil instaurada com o advento do Código de Processo Civil vigente: valorização dos precedentes, uniformização e estabilização jurisprudenciais. Este é o ponto! O art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 prevê, de forma objetiva e direta, a exceção do caso de impenhorabilidade do bem de família no caso de fiança em contrato de locação. Ressalta-se, ainda, que o legislador não faz distinção sobre a natureza do contrato de locação, independentemente se a fiança for na locação residencial ou comercial. Acerca do tema, não se pode olvidar que o inciso VII do art. 3º da lei 8.009/90 foi introduzido no ordenamento jurídico pela lei 8.245/91. A lei de regência locatícia é repleta de dispositivos idiossincráticos às locações residenciais (v.g. art. 4613) e às locações não residenciais (v.g. art. 5114); isto é, o legislador ordinário foi expresso em conferir tratamentos díspares às espécies locatícias naquilo que entendia prudente distinguir, ao passo que unificou os tratamentos jurídicos nos temas que supunha análogos. Há de se concluir, portanto, que inexiste qualquer substrato a justificar a presunção de que o legislador se omitiu ao não criar regras particulares à penhorabilidade do bem de família do fiador no contrato de locação não residencial; o silêncio do legislador representou, desse modo, escolha legislativa deliberada (silêncio eloquente). No entanto, o RE 605.709/SP traz resultado diverso, pois, não declara a inconstitucionalidade do dispositivo legal (constitucionalidade essa já reconhecida no RE 407.688, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, já em 2006), mas sim cria uma distinção nova, sequer realizada pelo legislador, qual seja, a distinção da fiança em locação comercial e residencial. Tal resultado, no nosso sentir, se apresenta como típico caso de ativismo judicial. A temática do ativismo judicial já foi diversas vezes analisada, até mesmo em sede de matéria imobiliária115. Existe no Brasil uma lógica de que o Direito é qualquer coisa, desde que dito por aquele que pode dizer qualquer coisa. Novamente visitando Streck: "Porque o sujeito põe o Direito como bem entende e diz que aquilo é Direito. E a doutrina vai e repete. E está dado o círculo"16. A pergunta que fica é a seguinte: de que forma o juiz pode se negar a aplicar a lei (sem que o dispositivo legal tenha sido declarado inconstitucional)? Se o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990 é constitucional, por que só se aplica a um tipo de contrato de locação? No caso concreto, o que se apresenta é a vontade do intérprete em não aplicar a lei. Nessa busca por fundamentos contra legem, opta pela adoção de conceitos indeterminados para fundamentar sua aplicação contrária ao dispositivo legal. Por fim, no nosso entender, a problemática causada pelo entendimento fruto do RE 605.709/SP passa a ser extremamente prejudicial à segurança jurídica, de forma contrária ao que prevê a legislação específica e processual. Toda e qualquer modificação demandaria, impreterivelmente, alteração normativa pelas vias próprias, mediante o legítimo exercício da atividade legiferante do Estado, e não em decorrência de interpretações casuísticas e contra legem adotadas pelo Poder Judiciário, com o que, naturalmente, não se compactua. *Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados. Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS. Associado do IBRADIM e da AGADIE. Rede social: @demetriogiannakos. **Rafael Vieira Duarte Pereira é advogado, especialista em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS. Associado do IBRADIM e da AGADIE. Rede social: @rafaelduarteadv. __________ 1 USTÁRROZ, Daniel. Bem de família: dez lições do STJ. Espaço Vital. Acessado em 07 dez. 2020. 2 OLIVEIRA, Gleydson. A (im)penhorabilidade do bem de família do fiador em locação comercial. Consultor Jurídico, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020. 3 Ibidem. 4 "[...] parte da doutrina, principalmente formada por civilistas da nova geração, sustenta ser essa previsão inconstitucional, por violar a isonomia. Isso porque o devedor principal (locatário) não pode ter o seu bem de família penhorado, enquanto o fiador (em regra, devedor subsidiário) pode suportar a constrição." (TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 5: Direito de Família. 12. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 377). 5 SILVEIRA, Cléo; IBRAHIM, Tassia Ruschell. Impenhorabilidade do bem de família. In: Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza / [Coordenado pro André Abelha]. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 578. 6 EMBARGOS À PENHORA - SENTENÇA QUE ACOLHEU TESE DOS FIADORES EM LOCAÇÃO COMERCIAL E AFASTOU PENHORA SOBRE IMÓVEL POR ESTES TITULARIZADO, RECONHECENDO TRATAR-SE DE BEM DE FAMÍLIA - TESE DE IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA APRECIADA NA LIDE - QUESTÃO DE ORDEM EXCEÇÃO LEGAL, PREVISTA NO ART. 3º, VII, DA LEI Nº 8.009/1990 - ENTENDIMENTO DO STF DE QUE A EXCEPCIONALIDADE DA PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA É CONSTITUCIONAL (REXT Nº 407.688/AC E REXT Nº 612.630/SP), CORROBORADO PELOS DIZERES VEICULADOS NA SÚMULA Nº 549 DO STJ - NOTÍCIA DE DECISÃO ISOLADA DO STF, DESPROVIDA DE VINCULATIVIDADE, QUE NÃO TEM O CONDÃO DE AFASTAR AS CONCLUSÕES TOMADAS EM SEDE DE ANTERIOR RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL E, POR ISSO, DE JUSTIFICAR A REVISITAÇÃO DO TEMA QUANTO À POSSIBLIDADE DE PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DE FIADOR DE CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL - RECURSO PROVIDO.  (TJSP;  Apelação Cível 1010423-13.2018.8.26.0344; Relator (a): Francisco Casconi; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/09/2019; Data de Registro: 19/09/2019). 7 AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. LOCAÇÃO RESIDENCIAL. PENHORA DE BEM IMÓVEL PERTENCENTE AO FIADOR. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE NÃO RECONHECIDA. Dentre as espécies de garantias locatícias, nos termos do artigo 37 da Lei de Locações, está a fiança, garantia eleita para o contrato objeto do recurso em exame. O artigo 3º, inciso VII, da lei 8.009/90 excetua a impenhorabilidade do bem de família se a obrigação for decorrente de "fiança concedida em contrato de locação". Constitucionalidade do referido dispositivo legal reconhecida pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (RE 407.688). A penhorabilidade do imóvel bem de família do fiador do contrato de locação não ofende o art. 6º da Constituição Federal. Tema 708 dos Recursos Repetitivos, tese jurídica assentada pela Segunda Seção do STJ; enunciado da Súmula 549 do STJ: "É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação." Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Os juízes e os tribunais observarão as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmulas vinculantes, os acórdãos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Inteligência dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil. Jurisprudência deste Órgão Julgador não conforta a tese arguida pelos agravantes. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO PROVIDO.(Agravo de Instrumento, Nº 70084387455, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Thereza Barbieri, Julgado em: 21-10-2020). 8 BRASIL, Ministério Público Federal. Processo n. 0232323-06.2019.8.21.7000. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020. 9 Ibidem. 10 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 624.111/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma. Brasília. DJ: 10/03/2015. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020. 11 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de instrumento 1.181.586/PR. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma. Brasília. DJ: 05/04/2011. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020. 12 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental em Recurso Especial 160.852/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma. Brasília. DJ: 21/08/2012. Disponível aqui. Acesso em: 07 dez. 2020. 13 "Art. 46. Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. § 1º Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir - se - á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato. § 2º Ocorrendo a prorrogação, o locador poderá denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para desocupação." 14 "Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente: I - o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado; II - o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos; III - o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos. § 1º O direito assegurado neste artigo poderá ser exercido pelos cessionários ou sucessores da locação; no caso de sublocação total do imóvel, o direito a renovação somente poderá ser exercido pelo sublocatário. § 2º Quando o contrato autorizar que o locatário utilize o imóvel para as atividades de sociedade de que faça parte e que a esta passe a pertencer o fundo de comércio, o direito a renovação poderá ser exercido pelo locatário ou pela sociedade. § 3º Dissolvida a sociedade comercial por morte de um dos sócios, o sócio sobrevivente fica sub-rogado no direito a renovação, desde que continue no mesmo ramo. § 4º O direito a renovação do contrato estende - se às locações celebradas por indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo. § 5º Do direito a renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo do contrato em vigor." 15 STRECK, Lenio Luiz; GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Pode o juiz arbitrar redução de aluguel dispensando prova? Acessado em 07 dez. 2020. 16 STRECK, Lenio Luiz. O Sereníssimo Direito! Quando Nebrask vira Caneca!  Acessado em 07 dez. 2020.
A nova Lei de Distratos, dentre as suas principais inovações, estabeleceu a limitação do percentual de retenção do incorporador em 25% do valor pago pelo adquirente na hipótese de desfazimento do contrato por iniciativa do comprador, percentual este que pode chegar a 50%, se o empreendimento estiver sujeito ao Patrimônio de Afetação. Compreendemos que os referidos percentuais possuem natureza de cláusula penal compensatória, definindo a quantia que será devida ao incorporador diante da inadimplência absoluta do adquirente. Uma particularidade, que talvez passe despercebida ao intérprete menos atento, é a utilização da expressão "até" no dispositivo legal (artigo 67-A da lei). Ou seja, em tese, o percentual de retenção poderia variar do 0,01% até o 50%, considerando a presença da afetação. Talvez se pense que o incorporador sempre se valerá dos limites legais em seus contratos, aplicando 25% ou 50%, ou até outro percentual que entenda ser relevante ou variável conforme a evolução da incorporação, desde que observados os limites legais. Por outro lado, o adquirente tentará se aproximar ao máximo do menor percentual possível. Considerando que o legislador deu atenção exclusiva à definição de um percentual máximo, sem se preocupar com algumas nuances, tais como o momento do distrato face a evolução do empreendimento, ao valor que já foi pago pelo adquirente, o prejuízo ao incorporador com despesas administrativas, dentre outros fatores, certo é que o Judiciário ainda será convocado a se manifestar sobre a dicotomia existente entre o melhor interesse das pretensões do incorporador e do adquirente (ou ex-adquirente), a despeito de entendermos que a real intenção do artigo 67-A teria sido a de limitar a "tarifação" da indenização. Sobre a limitação da autonomia privada na fixação do montante da clausula, sugerimos artigo da colega Aline de Miranda Valverde Terra, publicado recentemente nesta coluna1, no qual a autora compreende: "(...) que a cláusula contratual relativa à retenção dispensa o promitente vendedor de ir a juízo liquidar suas perdas e danos; tudo se passa extrajudicialmente: a resolução e a produção de seus respectivos efeitos indenizatório (retenção do percentual contratualmente previsto pelo promitente vendedor) e restitutório (restituição do que sobejar ao promitente comprador)."  Muito embora concordemos que a lei veio para possibilitar a resolução do conflito e do contrato extrajudicialmente, desde que claras as previsões contratuais, inexiste impeditivo legal para o pleito de revisão dos percentuais pelo Judiciário. Vejamos um exemplo hipotético em que o adquirente de uma unidade na planta, já tendo quitado R$ 50.000,00 do preço do imóvel, procura o incorporador para realizar o distrato, sob o argumento de incapacidade financeira. O incorporador, precavido, aplica a retenção de 50% de prevista em contrato e oferece R$ 25.0000,00 de devolução. O adquirente se nega a aceitar o valor sugerido por acreditar ser uma retenção abusiva, sustendo que o empreendimento ainda está na fase de lançamento e o que valor pago representa, no nosso exemplo, apenas 10% do preço. Diante da falta de consenso, a saída será uma demanda judicial. Reparem que, nesta demanda, muito embora o adquirente pleiteie a declaração da extinção da relação contratual, interessa-lhe, sobretudo, a definição de um percentual de devolução pelo Poder Judiciário mais justo aos seus olhos àquilo que fora contratado. O incorporador não se negou a realizar distrato, apenas se negou a restituir percentual distinto ao que fora pactuado em razão da inadimplência do adquirente. Partindo da premissa de que não houve pretensão resistida pelo incorporador quanto à extinção da relação contratual, e isso é fácil se demonstrar quando, na própria contestação, faz-se prova das tratativas com o adquirente sobre o distrato, assim como, in incontinenti, pode-se depositar o valor incontroverso nos autos (aquilo que está previsto em contrato), entendemos que sequer haveria interesse de agir quanto ao pedido declaratório, estando a unidade inclusive disponível para ser comercializada com terceiro independentemente de pronunciamento judicial. Retomando o nosso exemplo, vamos considerar que o juiz de primeira instância, avaliando as particularidades do caso concreto, contraria os percentuais legais e contratuais2 e fixa a retenção em 10%, ou seja, defere 90% de devolução ao adquirente, além de fixar honorários advocatícios em 10% sobre o valor total a ser restituído. Estamos diante do ponto central que queremos tratar aqui: caberiam honorários sobre o valor total a ser restituído, a despeito de a questão discutida nos autos ter se limitado à diferença entre o valor pleiteado pelo adquirente e aquilo que prevê o contrato? A sucumbência deveria se limitar somente sobre a diferença entre o deferido na decisão e aquilo que estava estabelecido em contrato? Ainda no nosso exemplo, suponhamos que o incorporador, depois de se ver obrigado a restituir valor maior ao que está previsto no contrato, decide, por sua vez, apresentar recurso, conseguindo a majoração do percentual de retenção em segunda instância. Haveria sucumbência do incorporador? E mais, há a possibilidade de majoração da verba honorária recursal, regra do § 11º do artigo 85 do CPC quando o Tribunal reajusta a sucumbência ao definir novos valores de retenção e devolução? Sob o enfoque destes questionamentos, destacamos alguns pontos que merecem atenção aos players deste cenário: adquirente, incorporador, advogados e magistrados. Para uma melhor análise da matéria, é importante que tenhamos em mente o conteúdo do artigo 86 do CPC: "Se cada litigante for, em parte, vencedor e vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre elas as despesas." No nosso exemplo, parece-nos evidente que o adquirente somente ajuizou a ação por discordar das cláusulas contratuais que versam sobre o distrato, buscando, portanto, receber percentual superior ao pactuado em contrato (e superior ao que estabelece a Lei). Vejam que, se pensarmos bem, o princípio da causalidade, nesses casos, não pode onerar a uma das Partes, pois a ação somente é ajuizada pelo fato de o adquirente não concordar com as retenções previstas. O distrato não fora negado pelo incorporador em momento pré-processsual. A insurgência do incorporador dizia respeito apenas aos percentuais de devolução, que, na sua compreensão, devem respeitar a Lei e a livre autonomia das partes cristalizada em contrato.  O ponto que se quer chamar a atenção consiste na incongruência gerada quando o Judiciário fixa um percentual de restituição aos adquirentes, e sobre este percentual fixa honorários sucumbenciais, utilizando como base de cálculo todo o valor a ser devolvido, ignorando que existe quantia incontroversa. Ora, se não há pretensão resistida quanto ao distrato, entendemos que o correto seria que a sucumbência em favor dos patronos do Autor fosse fixada em percentual sobre a diferença entre os termos do contrato e a retenção fixada em juízo. E, em algumas hipóteses, deveria ser fixada verba honorários aos patronos da requerida/incorporadora. Se a parte requer 90% de devolução e o magistrado entende que deve ser restituído 80%, por exemplo, estaríamos diante de uma sucumbência ao mínimo parcial. Mais, uma vez que a incorporadora faça prevalecer em seu recurso o percentual fixado em seu contrato, no nosso sentir, sequer seriam devidos honorários ao advogado do adquirente, até porque nunca houve pretensão resistida quanto ao distrato. Este último exemplo nos apresenta um outro cenário: por qual razão o incorporador não poderia dar início à ação para ver confirmado o percentual fixado em contrato, deixando disponível nos autos, em princípio, pelo uso da ação de consignação com a comprovação da notificação de resolução, aquilo que entende devido, nas hipóteses em que adquirente se recusou a celebrar o distrato nos percentuais fixados no contrato? Feitas estas breves ponderações, considerando como premissa que, do lado do incorporador, em regra, não há pretensão resistida ao distrato, ficam aqui as reflexões sobre: i)                    Se de fato há real sucumbência nas ações de distrato quando a discussão se limita ao percentual de retenção - em especial quando o incorporador, não se opondo ao distrato, realiza de imediato o depósito do valor incontroverso e pautado nos percentuais estabelecidos na Lei. ii)                   Se há a sucumbência, não deveria ela ser fixada somente sobre a diferença daquilo que fora pleiteado na ação em paralelo à clausula contratual? iii)                 Se há a possibilidade de o próprio incorporador antecipar os movimentos e iniciar a ação, para que libere tão cedo a unidade, possibilitando a sua renegociação a fim de recompor o fluxo da incorporação, por óbvio, deixando à disposição as parcelas incontroversas - hipótese em que se esquivaria da sucumbência por completo, ressalvado o direito na verdade a receber sucumbência, salvo em caso de minoração da parcela de retenção pelo Judiciário (cabendo retornar à reflexão do item ii deste parágrafo). Quanto à possibilidade de aplicação da regra prevista no § 11º, do artigo 85 do CPC, nessas situações, compreendemos ser oportuno observar casuisticamente os desdobramentos dos percentuais de retenção em fase recursal. Certo é que quando o Tribunal reajusta os percentuais, inegavelmente, também há o reajuste da sucumbência. O Superior Tribunal de Justiça3, no que diz respeito aos honorários recursais, tem se direcionado na linha de que: "A majoração da verba honorária sucumbencial recursal, prevista no art. 85, § 11, do CPC/15, pressupõe a existência cumulativa dos seguintes requisitos: a) decisão recorrida publicada a partir de 18.03.2016, data de entrada em vigor do novo Código de Processo Civil; b) recurso não conhecido integralmente ou não provido, monocraticamente ou pelo órgão colegiado competente; e c) condenação em honorários advocatícios desde a origem no feito em que interposto o recurso." Diante da interpretação dada pelo STJ: primeiro, não há que se falar em majoração da verba honorária recursal diante de provimento parcial de recurso, embora ainda se encontre decisões nesse sentido (ou seja: o recurso é provido ou parcialmente provido e os honorários da parte contrária aumentam); segundo, há a necessidade de fixação na origem de honorários na primeira instância, circunstância esta, a nosso ver, de aplicação cogente se considerada a regra de causalidade prevista no artigo 86 do CPC. Logo, somente caberia a aplicação da verba honorária recursal na hipótese em que os percentuais de retenção e devolução fossem mantidos pelo Tribunal, devendo pesar a moeda tanto para o lado do incorporador (quando ver mantido o percentual diferente do contrato), quanto para o lado do adquirente que, eventualmente, ver confirmada a decisão que determina a aplicação das regras contratuais. Concluímos para dizer que a importância de se dar mais atenção às regras de causalidade nas ações de distrato, pois, muitas vezes, acabamos por nos fixar nos pontos centrais do processo e não na sucumbência que, ao fim e ao cabo, pode não somente remunerar adequadamente o trabalho do advogado como, também, reduzir de maneira significativas os custos em ações dessa natureza. _____________ 1 Clique aqui 2 Cabe aqui uma nota de esclarecimento que não é objeto deste artigo a discussão sobre a legalidade da intervenção do Poder Judiciário para revisar contratos assinados na vigência da Lei 13.786/18, mas tão somente traçar possibilidades casuísticas considerando demandas judiciais que atualmente vem sendo ajuizadas nesse sentido. 3 Acórdãos: AgInt no AREsp 1349182/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/06/2019, DJe 12/06/2019 AgInt no AREsp 1328067/ES, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/05/2019, DJe 06/06/2019 AgInt no AREsp 1310670/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/05/2019, DJe 03/06/2019 REsp 1804904/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/05/2019, DJe 30/05/2019 EDcl no AgInt no AREsp 1342474/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 11/04/2019, DJe 08/05/2019 AgInt nos EDcl no REsp 1745960/MS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 08/04/2019
Consta que dois farsantes, passando-se por exímios alfaiates vindos de terras distantes, dizem ao Rei que trazem consigo tecido tão nobre que apenas as pessoas mais inteligentes e honestas são capazes de enxergar. O Rei, encantado com a singular fazenda, contrata os serviços dos supostos tecelões. Após alguns meses, os embusteiros levam a "roupa nova" ao Rei, que, embora nada vendo, temeroso de que duvidem de sua sabedoria, elogia efusivamente a vestimenta, e decide desfilar pela cidade acompanhado da comitiva real. O povo, atônito com a cena pitoresca, mas não querendo passar por tolo, brada a beleza e suntuosidade da indumentária real, até que uma criança, no meio da multidão, denuncia: "Olha, olha! O Rei está nu!". Ninguém consegue segurar o riso. O Rei, percebendo que foi enganado, muito constrangido, corre a esconder-se no palácio.1 A cláusula resolutiva expressa tem desfilado pelos debates judiciais e acadêmicos de longa data. Instrumento valioso de gestão do risco contratual, encerra mecanismo de autotutela dos interesses do credor, liberando-o de se submeter à atuação judicial para resolver a relação obrigacional que se tornou disfuncionalizada, incapaz de cumprir o programa negocial traçado pelas partes em razão do inadimplemento absoluto do devedor; a resolução se opera por meio de simples declaração receptícia de vontade do credor, nos termos do art. 474 do Código Civil. Note-se que a declaração pela qual o credor faz chegar ao devedor sua opção pela resolução não se confunde com a interpelação do devedor para constituição em mora. Trata-se de declarações distintas, com suportes fáticos e funções que não se confundem: enquanto a declaração sobre a qual se discorre pressupõe o inadimplemento absoluto e tem por função resolver a relação obrigacional, não conferindo ao devedor a possibilidade de cumprir a prestação, a interpelação para constituição em mora requer apenas o inadimplemento relativo, e visa inaugurar a mora do devedor, concedendo-lhe prazo para purgá-la. De todo modo, havendo termo para o adimplemento, a mora é ex re e dispensa qualquer interpelação (art. 397, CC). Algumas leis especiais, por sua vez, exigem a interpelação do devedor para a conversão da mora em inadimplemento absoluto. É o que se passa, justamente, no âmbito de promessa de compra e venda de imóveis loteados (art. 32, lei 6.766/79) e não loteados (art. 1ª, decreto-lei 745/69). Em sistemas em que a resolução se opera por mera declaração do credor, a judicialização da extinção da relação obrigacional pode ocorrer por iniciativa do devedor. Cabe ao devedor, insatisfeito com a resolução, recorrer à intervenção judicial, que será meramente fiscalizadora da legitimidade do exercício da autonomia privada na elaboração da cláusula resolutiva e do efetivo preenchimento dos pressupostos da resolução. A atuação do julgador será a posteriori e, verificada a regularidade da extinção do vínculo, a sentença será declaratória, reconhecendo a resolução ope voluntatis. Por vezes, no entanto, o próprio credor precisa recorrer ao Poder Judiciário para que se produzam os efeitos materiais da resolução, o que não significa que a própria resolução tenha que ser efetivada da mesma forma. A eventual necessidade de ajuizamento de ação para a reintegração de posse ou para a liquidação dos danos, por exemplo, não torna necessário que o credor também recorra ao Judiciário para resolver a promessa de compra e venda: resolve-se a relação extrajudicialmente e ajuíza-se a ação para a reintegração ou liquidação dos danos. Cuida-se de problemas distintos, a serem solucionados em esferas também distintas. Posto a operatividade da cláusula resolutiva expressa seja amplamente reconhecida pela jurisprudência,2 quando a demanda versa sobre promessa de compra e venda de imóveis, o cenário muda, e parte das decisões exige que a resolução se processe judicialmente.3 Todavia, não parece haver, nesses casos, fundamento jurídico que justifique o afastamento do regime legal da cláusula resolutiva expressa. Embora se reconheça que semelhantes contratações envolvem, muitas vezes, especial interesse do promitente comprador - aquisição da casa própria -, revestindo-se de relevância social justificadora da intervenção protetiva do Estado, é preciso considerar, como antes sublinhado, que a própria lei já flexibilizou a disciplina do Código Civil ao exigir a notificação do promitente comprador para constituição em mora, mesmo que do contrato conste termo para adimplemento. Todavia, a única peculiaridade que referidas leis impõem é a notificação para constituição em mora, após a qual, não havendo pagamento e presente a cláusula resolutiva expressa, a resolução se opera extrajudicialmente. Ante a resistência à efetividade da cláusula aposta em promessas de compra e venda, editou-se a lei 13.097/2015, que alterou o artigo 1º do decreto-lei 745/69, cujo parágrafo único passou a reconhecer expressamente a possibilidade de resolução extrajudicial. Embora se mostre auspicioso que decisões posteriores à alteração legislativa tenham reconhecido a plena eficácia da cláusula resolutiva expressa,4 outras não o fizeram ao argumento de que a modificação promovida pela lei 13.097 teria alcançado apenas as promessas referentes a imóveis não loteados, não já os incorporados (lei 4.591/64) e tampouco os imóveis urbanos loteados (lei 6.766/79).5 O entendimento, contudo, não colhe. Isso porque a resolução extrajudicial facultada pela cláusula resolutiva expressa não foi autorizada pela referida alteração. A Lei nº 13.097/2015 apenas ratificou a regra geral constante do art. 474 do Código Civil, que só pode ser afastada por previsão legal específica. E não há, em relação a qualquer espécie de promessa de compra e venda, disposição que excepcione a regra. Ao contrário. A legislação especial parece mesmo apontar para a possibilidade de resolução extrajudicial. No que tange aos imóveis incorporados, a lei 4.591/64, no art. 63, estabelece que "é lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando for o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nele se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato" (grifou-se).6  Note-se que o dispositivo autoriza a "rescisão [sic] do contrato, conforme nele se fixar", ou o leilão do imóvel. Ora, se a lei se refere à "rescisão [sic] do contrato, conforme nele se fixar", é porque o contrato pode prever forma de resolução que não a legal, ou seja, que não aquela decorrente da cláusula resolutiva tácita, o que indica a possibilidade de previsão de cláusula resolutiva expressa e, por consequência, de resolução extrajudicial. Observem-se, ainda, os arts. 35-A e 67-A, introduzidos pela lei 13.786/2018, a Lei dos Distratos Imobiliários. O primeiro estabelece que os contratos de promessa de compra e venda de unidades autônomas integrantes da incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo que, dentre outras informações, deverá conter, nos termos do inciso VI, "as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento de obrigação do adquirente ou do incorporador, com destaque negritado para as penalidades aplicáveis e para os prazos para devolução de valores ao adquirente". O dispositivo, ao admitir o desfazimento do negócio por meio de distrato ou de resolução motivada por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente ou do incorporador, não faz qualquer restrição ao processamento da resolução. Exige-se apenas que as penalidades aplicáveis e os prazos para devolução de valores estejam negritados. Nesse cenário, além de não haver qualquer limitação à eficácia da cláusula resolutiva expressa, sequer se poderia exigir que lhe fosse dado o destaque negritado, já que a resolução extrajudicial não ostenta a natureza de penalidade ao inadimplemento. O art. 67-A, por sua vez, trata das quantias a serem restituídas ao adquirente caso incorra em inadimplemento absoluto. Conforme já se observou em outra sede, a cláusula contratual que prevê a retenção de parcelas e a consequente restituição das demais ao promitente comprador se qualifica como "cláusula penal compensatória, cuja função é prefixar as perdas e danos. O intuito do legislador ao prever referidas porcentagens foi, inequivocamente, limitar a autonomia privada na fixação do montante da cláusula, impondo uma 'tarifação' da indenização devida em caso de desfazimento do contrato".7 Semelhante previsão em nada impede ou embaraça a resolução extrajudicial. Em verdade, reforça-a, já que a cláusula contratual relativa à retenção dispensa o promitente vendedor de ir a juízo liquidar suas perdas e danos; tudo se passa extrajudicialmente: a resolução e a produção de seus respectivos efeitos indenizatório (retenção do percentual contratualmente previsto pelo promitente vendedor) e restitutório (restituição do que sobejar ao promitente comprador).8 Em relação aos imóveis loteados, tampouco se identifica na lei 6.766/79 qualquer restrição à resolução extrajudicial. A rigor, bem analisados os seus dispositivos, a lei parece incentivar a resolução extrajudicial ao conferir ao credor instrumentos de tutela que independem da intervenção do Poder Judiciário. O art. 32, por exemplo, determina que vencida e não paga a dívida, o contrato será considerado resolvido 30 (trinta) dias após a constituição em mora do devedor. Já o § 2º do art. 34, introduzido também pela Lei dos Distratos Imobiliários, prevê que "[n]o prazo de 60 (sessenta) dias, contado da constituição em mora, fica o loteador, na hipótese do caput deste artigo, obrigado a alienar o imóvel mediante leilão judicial ou extrajudicial, nos termos da lei 9.514, de 20 de novembro de 1997" (grifou-se).9 Não há, com efeito, qualquer previsão na lei 6.766/79 que possa conduzir o intérprete a mitigar a eficácia da cláusula resolutiva expressa e vislumbrar a obrigatoriedade de a resolução se processar judicialmente. Por fim, nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor causa embaraço à resolução extrajudicial. O art. 53 se limita a impedir a retenção total das parcelas pagas pelo promitente vendedor, e passa ao largo de qualquer discussão sobre a operatividade da resolução, a remeter a questão, necessariamente, para o art. 474 do Código Civil. Da mesma forma, o art. 51, XI, que fulmina de nulidade cláusula que autorize "o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor" tampouco cuida de resolução, vale dizer, de extinção do vínculo obrigacional em razão do inadimplemento absoluto do consumidor, mas sim de denúncia, ou seja, de extinção do vínculo obrigacional por força de declaração de vontade imotivada do fornecedor. Uma última questão há de ser pontuada. Mesmo que a promessa de compra e venda esteja registrada no Registro de Imóveis, cuidando-se de contratos regidos pela lei 6.766/79 (art. 32, §3º) ou pelo decreto-lei 58/37 (art. 14, §3º), resolvida extrajudicialmente a relação obrigacional, o registrador deve proceder ao cancelamento do registro mediante simples prova do inadimplemento, que se faz por meio da "certidão de não haver sido feito o pagamento em cartório", por força de expressa determinação legal. O procedimento é, portanto, administrativo. Embora a Lei de Incorporação Imobiliária não preveja expressamente a possibilidade de os registradores cancelarem o registro da promessa de compra e venda uma vez resolvida a relação obrigacional, o que pode levá-los a oferecer alguma resistência a fazê-lo, é possível que as próprias partes lhes atribuam essa incumbência por meio de específica disposição contratual, em conformidade com o disposto no art. 63 da referida lei. Com efeito, podem as partes prever cláusula resolutiva expressa segundo a qual o promitente vendedor poderá resolver de pleno direito a relação se o promitente comprador deixar de pagar 3 prestações do preço e, constituído em mora por meio de notificação por cartório, não a purgar perante o referido cartório no prazo de 10 dias. Deve, ainda, o contrato conferir poderes expressos para o registrador cancelar o registro da promessa se o pagamento não for realizado (o que é certificado pelo próprio cartório após o decurso do prazo concedido para a purgação da mora) e o contrato for resolvido, mediante requerimento do promitente vendedor. Nesse cenário, o registrador está absolutamente seguro quanto ao cancelamento, já que há prova inequívoca do inadimplemento bem como autorização expressa das partes para que ele o realize. Assim, tudo ocorre, também, administrativamente. A solução, em verdade, vai ao encontro da desjudicialização dos remédios conferidos ao promitente vendedor, cujo exemplo mais emblemático é o leilão extrajudicial, e se mostra consentânea com o procedimento adotado para as promessas de compra e venda de imóveis loteados e não loteados. De todo modo, se a promessa de compra e venda não contiver referida cláusula, no pior cenário possível, o cancelamento do registro constituirá efeito material da resolução, para cuja efetivação pode ser necessário o pronunciamento judicial por exigência do registrador. Nesse caso, o promitente vendedor resolve a relação obrigacional por simples notificação ao promitente comprador e, na sequência, ajuíza a ação a fim de que o juiz determine o cancelamento do registro. Todos os efeitos da resolução que independam de intervenção judicial se produzem desde a notificação resolutiva, a exemplo da liberação das partes do adimplemento de suas prestações bem como da retenção do valor contratualmente previsto e devolução do excedente ao promitente comprador. Em definitivo, a alteração promovida pela lei 13.097/2015 não pretendeu restringir a possibilidade de resolução extrajudicial às promessas de compra e venda de imóveis não loteados, mas apenas confirmar a forma pela qual se opera a resolução diante de cláusula resolutiva expressa, qualquer que seja o imóvel objeto do contrato. Embora louvável o esforço da doutrina e da jurisprudência em tutelar o promitente comprador, sobretudo tendo em vista a relevância social de que se revestem as promessas de compra e venda, não se identifica, juridicamente, qualquer empecilho à plena eficácia da cláusula resolutiva expressa no âmbito dessas contratações. A resolução extrajudicial - que, a um só tempo, prestigia a autonomia privada e promove segurança jurídica - há de ser garantida, e outros instrumentos de tutela legalmente previstos devem ser utilizados para proteger a posição do adquirente. É chegada a hora de avisar ao Rei que, por aqui, ele está seminu... __________ 1 Baseado no conto O rei está nu, de Hans Christian Andersen. 2 TJ/RJ, 24ª CC, Rel. Des. Sérgio Wajzenberg, AC 0035062-45.2013.8.19.0001, julg. 27.04.2016; TJRJ, 13ª CC, Rel. Des. Gabriel Zefiro, AC 0071083-54.2012.8.19.0001, julg. 16.09.2014; TJPR, 12ª CC, Rel. Umberto Guaspari Sudbrack, AC 70066824764, julg. 30.08.2016; TJSP, 28ª CDPriv., Rel. Des. Gilson Delgado Miranda, AC 0021370-86.2009.8.26.0562, julg. 24.02.2015; TJPR, 7ª CC, Rel. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia, AC 1.187.541-1, julg. 22.07.2014; TJDF, 4ª TC, Rel. Des. Arnoldo Caminho de Assis, AC 20110111863536, julg. 30.01.2013. 3 STJ, 4ª, T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, REsp 204.246/MG, publ. DJ 24.2.2003; STJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Resp. 620.787/SP, julg. 28.04.2009; TJMG, 15ª CC, Rel. Des. José Affonso da Costa Côrtes, AI 1.0024.11.026503-0/001, julg. 19.05.2011. 4 TJ/SP, 1ª CDPriv., Rel. Des. Rui Cascaldi, AI 2079575-67.2016.8.26.0000, julg. 06.07.2016. 5 TJ/SP, 36ª CDPriv., AC 1121866-85.2019.8.26.0100, Rel. Des. Milton Carvalho, julg. 04.08.2020. 6 A Lei 4.864/65, no art. 1º, VI, ratifica que a resolução requer atraso mínimo de 3 meses. 7 TERRA, Aline de Miranda Valverde; MAIA, Roberta Mauro Medina. Notas sobre a natureza e o regime jurídico da retenção de parcelas autorizada pela Lei dos Distratos. In: Migalhas. Migalhas de responsabilidade civil. Publicado em 17 set. 2020. Disponível em: clique aqui. 8 Sobre o tema, seja consentido remeter a TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 204. 9 Caput do art. 34: "Em qualquer caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, as benfeitorias necessárias ou úteis por ele levadas a efeito no imóvel deverão ser indenizadas, sendo de nenhum efeito qualquer disposição contratual em contrário."
Esse mês de outubro a Turma de Uniformização Cível do Juizado Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou o Incidente de Uniformização de Jurisprudência ("IUJ") n.º 0028314-18.2018.8.19.0002, deliberando sobre a existência, ou não, de abusividade na inserção de cláusula  em promessa de compra e venda de unidade imobiliária em construção que estabelece a obrigação de o promitente comprador do pagamento da chamada Taxa de Decoração, e ainda, a definição do prazo prescricional aplicável à hipótese de pretensão de restituição de pagamentos das referidas taxa. Esse julgamento foi relevante sob vários aspectos e por isso vale a pena nos debruçarmos sobre alguns conceitos que podemos extrair da análise da decisão exarada pela Juíza Relatora Simone Gastesi Chevrand. Primeiramente, a relatora ressaltou que estava decidindo em atenção aos precedentes vinculantes firmados pelo Superior Tribunal de Justiça, afastando a aplicação de uma Súmula do próprio Tribunal De Justiça - a Súmula 351 do TJ/RJ1 - esclarecendo que as razões determinantes que sustentavam aquela decisão estaria superado. Nessa esteira, a Juíza aplicou as teses fixadas nos Recursos Repetitivos do STJ, mais especificamente o tema 9382 determinando ser válida a cláusula que estipula como responsabilidade do comprador o pagamento da taxa de decoração, bem como definiu a prescrição trienal para as pretensões relacionadas às hipóteses de ressarcimento de taxa de decoração e de ligações definitivas, tudo na forma do art. 206, §3º, IV do Código Civil. O voto foi acompanhado de forma unânime pelos demais juízes componentes da Turma. A Importância do sistema de precedentes criado pelo Código de Processo Civil de 2015  Sob diversos ângulos, é extremamente elogiável a decisão da Turma de Uniformização do Juizado Especial Civil do TJRJ. Além de o seu teor nos parecer integralmente acertado, nota-se que foi proferida em desacordo com súmula anterior do próprio tribunal, o que, por si só, deve ser visto com bons olhos, porque se deu preferência a aplicação de tese produzida no bojo do julgamento de recursos repetitivos no STJ (tese 938). Percebe-se, nesta conduta dos Magistrados que julgaram o incidente de Uniformização, respeito absoluto ao sistema de precedentes trazido pelo CPC de 2015. Partindo do reconhecimento de que as decisões judiciais e a jurisprudência tem certa dose de carga normativa, na medida em que influenciam diretamente o comportamento dos indivíduos e das empresas na vida em sociedade, o novo Código aperfeiçoou um sistema de precedentes, que, de rigor, já estava esboçado no CPC de 1973 (v., por exemplo, os arts. 543, B e C). Entendeu-se que a isonomia não seria respeitada se cada juiz pudesse interpretar a lei de acordo com sua convicção. Não basta a aplicação da mesma lei para criar-se previsibilidade, para se concretizar a isonomia: em uma palavra, para que haja segurança jurídica. É necessário que a interpretação da lei seja também uniformizada. E isto se faz por meio de vários institutos, mas principalmente por meio dos precedentes vinculantes. Os recursos repetitivos geram precedentes que devem ser respeitados pelos outros Tribunais: eles são a lei, interpretada pelos Tribunais que têm a missão constitucional de dar a última palavra sobre o direito federal (STJ) / e sobre a Constituição Federal [nos casos revestidos de repercussão geral (STF)]. A criação desta figura (precedente vinculante) agiliza o trabalho dos juízes, desembargadores, ministros; melhora a performance do Judiciário; e, sobretudo, proporciona tratamento isonômico aos jurisdicionados. Nem sempre, todavia, os Tribunais de 2.º grau e juízos singulares veem com bons olhos esta sistemática. Existe ainda, uma certa resistência à aceitação deste novo "caminho" para decidir. Muitos entendem que o juiz estaria perdendo indevidamente sua liberdade de interpretar a lei. Outros, ainda, sustentam ser a vinculação a precedentes inconstitucionais. Sim, o juiz perde a liberdade de decidir de acordo com sua interpretação da lei. Mas quem ganha é a sociedade: prevalece o valor maior que é o da segurança jurídica. Por outro lado, nada há de inconstitucional num modelo que prestigia a isonomia e a previsibilidade, valores inerentes ao Estado de Direito.  A necessária observância à Lei de incorporações nº 4591/64, inobstante a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações contratuais de incorporações imobiliárias No caso concreto, se pretendia a declaração de nulidade da cláusula contratual que previa o pagamento de valores a título de "Taxa de Decoração", bem como o ressarcimento em dobro da quantia paga a esse título. É relevante observarmos que já havia sido decidida, em sede de Incidente de Uniformização Jurisprudencial, a abusividade, ou não, na inserção de cláusula em promessa de compra e venda de unidade imobiliária em construção que estabelece a obrigação de o promitente comprador do pagamento da "Taxa de Ligação Definitiva". E a mesma fundamentação desse precedente foi, como não poderia deixar de ser, observada no julgamento relativo à taxa de decoração, verba cobrada dos adquirentes para equipagem das áreas comuns dos empreendimentos imobiliários. Destaca-se que, no julgamento do IUJ nº 0005230-43.2018.8.19.0210, a Segunda Turma Recursal de Uniformização Cível decidiu pela validade da Taxa de Ligação Definitiva, desde que atendidos os seguintes parâmetros: (a) previsão clara da cobrança no instrumento contratual com definição dos serviços públicos abrangidos a serem pagos pelo consumidor, sendo vedada qualquer cobrança em desacordo com o art. 51 da lei 4.591/64 e (b) que o valor total cobrado não corresponda a um percentual desarrazoado ou aleatório do preço do imóvel, que, concretamente, onere excessivamente o consumidor. Veja que do ponto de vista do direito do consumidor, a mensagem que o Poder Judiciário transmite com estas decisões é que, o importante em qualquer acordo contratual é a transparência e a razoabilidade das obrigações assumidas. Nesse sentido, peculiaridades dos mais diversos tipos de negócio jurídico devem ser observadas e não se pode considerar qualquer tipo de taxa como abusiva per se. Havendo transparência na informação sobre a obrigação de pagamento, com ciência prévia e inequívoca da mesma e, ainda, sendo ela razoável e pertinente ao negócio entabulado não há abusividade. Aqui temos um conceito importante que se aplica a esse caso, mas também pode ser estendido para uma série de outras discussões onde se faz necessária aplicação da inteligência da Lei de incorporações nº 4591/64. A Lei de incorporações é uma norma que rege um negócio jurídico cuja função é promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações, ou conjunto de unidades autônomas3. É um negócio complexo que depende da conjunção de obrigações de diversas partes, o incorporador, o corretor, o construtor, o financiador e também os adquirentes. O equilíbrio entre essas obrigações é fundamental para que ao final todos os interesses sejam satisfeitos de forma adequada e é por isso que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor deve ser feita sem que se deixe de lado a sistemática criada pela legislação especial para garantir a conclusão da incorporação imobiliária com sucesso. Dessa forma, o Tribunal do Rio de Janeiro foi muito feliz ao consignar que, embora o Código de Proteção e Defesa do Consumidor seja aplicável às relações de consumo que envolvam compra e venda de imóveis na planta pelo sistema de incorporação imobiliária, não seria possível desconsiderar a lei 4.591/94. No tocante à taxa de decoração, vale destacar que está prevista a possibilidade de o incorporador transferir ao comprador conforme previsão do artigo 51 da Lei de incorporações onde se determina que "nos contratos de construção, seja qual fôr seu regime deverá constar expressamente a quem caberão as despesas com ligações de serviços públicos, devidas ao Poder Público, bem como as despesas indispensáveis à instalação, funcionamento e regulamentação do condomínio". Assim, não há dúvidas de que o enxoval para equipamento das áreas comuns são despesas indispensáveis à instalação e funcionamento do condomínio. E, é exatamente por isso, que tais despesas podem ser transferidas ao comprador por contrato. Importante destacar que no caso concreto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro usou o precedente do Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 1.599.511/SP4, julgado sob o regime dos recursos especiais repetitivos, também como fundamento da decisão. É relevante observarmos que a Corte Superior foi além da inteligência do precedente do Tribunal Estadual, considerando que mesmo verbas negociadas sem previsão legal expressa na lei de incorporações como as relativas a ligações definitivas e taxa de decoração, como é o caso da comissão de corretagem, podem ser livremente negociadas entre as partes. Nesse sentido, fora fixada a tese da validade da cláusula contratual que transfere ao comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem. Não é demais repetir, o que é relevante do ponto de vista do direito do consumidor é a transparência e a proporcionalidade das obrigações estimuladas nos contratos. A razão de ser da sistemática da incorporação imobiliária e da lógica econômica de que os custos e despesas poderão ao final compor o preço total do imóvel, não haverá abusividade em cláusulas em contratos que transfiram ao comprador obrigações de pagar custos e despesas relacionados à incorporação. Como antes esclarecido, a incorporação imobiliária é um negócio jurídico complexo que se consubstancia em um feixe de contratos entre múltiplos agentes. E é por isso que a aplicação da sistemática definida na Lei nº 4.591/64 é relevante, assim como será relevante levar em consideração os aspectos coletivos das obrigações assumidas pelas partes. Com efeito, não é razoável que todos se beneficiem, por exemplo, do enxoval das áreas comuns das edificações, mas somente alguns paguem por isso. Essa ratio deve ser observada inclusive em outros debates, travados no Judiciário hoje no que tange aos contratos de incorporações imobiliárias. Desse modo, destaca-se recente decisão da Min. Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial 1115605/RJ, onde ao apreciar uma demanda relativa a rescisão contratual, considerando o impacto coletivo que existe nas decisões sobre os negócios jurídicos de uma incorporação imobiliária, consignou a importância de "assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes". Todo magistrado, especialmente no sistema de precedentes em decisões de Incidentes de Uniformização de Jurisprudência e Recursos Repetitivos deve considerar as consequências práticas do que for julgar, especialmente se consideramos a importancia econômica e social da atividade da incorporação imobiliária. É inevitável (e desejável!) que se levem em conta os impactos das decisões judiciais sobre a realidade. A projeção destes impactos, na sociedade, deve orientar o juiz a escolher, dentre as possíveis soluções para os casos concretos, a MELHOR. Com isso não se quer, evidentemente, dizer que o juiz possa decidir apenas com base em argumentos consequencialistas. Não é isso, em absoluto. Mas, nos casos em que é possível dar à lei mais de uma interpretação, deve o magistrado optar por aquela cujos reflexos na sociedade COMO UM TODO sejam positivos.  Ainda que não seja oportuna digressão mais aprofundada neste espaço, é interessante se ter presente que as alterações feitas recentemente na LINDB não só autorizam como recomendam que o juiz leve em conta, para decidir, "as consequências práticas" da decisão (art. 20). O art. 21, parágrafo único, alude a que as decisões que invalidam atos, contratos, ajustes etc. não podem ignorar "interesses gerais". Os artigos incluídos pela Lei 13.655/2018, infelizmente, de redação vaga e complexa, apresentam a vantagem de deixar claro que as decisões do juiz devem ter sempre em conta a sociedade, fatos reais, sobre os quais sua decisão vai operar efeitos.  O direito imobiliário é um campo extremamente receptivo a este tipo de argumentação, de índole pragmática, complementar ao fundamento de natureza dogmática. Isto, como demonstramos neste breve artigo, tem sido bem compreendido pelos Tribunais brasileiros. Não podemos olvidar que o mercado imobiliário tem uma representatividade grande na macroeconomia do nosso país dada sua capacidade de gerar empregos e recolhimento de impostos, além é claro de ter como função social o oferecimento de moradia para a população brasileira. Não é por outro motivo que este julgamento mereceu destaque, eis que a Turma de Uniformização se alinhou aos precedentes do Superior Tribunal de Justiça homenageando assim o sistema de precedentes estabelecidos no Código de Processo Civil e levando em conta, também, a Lei especial da Incorporações imobiliária e os impactos econômicos da decisão. Enfim, caminhamos em busca da tão almejada segurança jurídica que beneficia a todos, o mercado, os investidores, os próprios consumidores e a sociedade como um todo. __________ 1 "O pagamento de despesas com decoração das áreas comuns, em incorporações imobiliárias, é de responsabilidade do incorporador, vedada sua transferência ao adquirente". Referência: processo administrativo nº. 0061460-61.2015.8.19.0000 - julgamento em 31/10/2016 - relator: desembargador nagib slaibi. votação por maioria. 2 Discussão quanto à: (i) prescrição da pretensão de restituição das parcelas pagas a título de comissão de corretagem e de assessoria imobiliária, sob o fundamento da abusividade da transferência desses encargos ao consumidor; e quanto à (ii) validade da cláusula contratual que transfere ao consumidor a obrigação de pagar comissão de corretagem e taxa de assessoria técnico-imobiliária (SATI). (i) Incidência da prescrição trienal sobre a pretensão de restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere (artigo 206, § 3º, IV, CC). (vide REsp n. 1.551.956/SP); (ii) Validade da cláusula contratual que transfere ao promitente-comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem; (vide REsp n. 1.599.511/SP); (ii, parte final) Abusividade da cobrança pelo promitente-vendedor do serviço de assessoria técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere, vinculado à celebração de promessa de compra e venda de imóvel. (vide REsp n. 1.599.511/SP). 3 Vide o disposto no parágrafo primeiro do artigo 28 da lei 4.591/64. 4 SJT. Resp n° 1.599.511/SP, Rel. Min Paulo de Tarso Sanseverino DJe. 6/9/2016.
Breve introdução Introdutoriamente, apenas em justificação ao título, a expressão "pagar o pato" é comumente utilizada no Brasil representando, no mais das vezes, ter de suportar consequências de situações cuja pessoa que arca com o ônus não lhe deu origem. É sabido que, por vezes, a fraseologia é empregada no sentido pejorativo, de certa injustiça, visto que geralmente o "pato" é a situação provocada por alguém (o que, acredita-se, não é o caso atual). É importante pontuar também, logo de início, que o presente artigo não tem qualquer intenção (e pretensão) de apresentar teses jurídicas a respeito da possibilidade ou não de revisão ou resolução contratual em relações a negócios jurídicos afetados (direta ou indiretamente) pelos efeitos deletérios da pandemia, mas, sim, expor algumas reflexões a respeito da forma que o Poder Judiciário interviu, intervém e poderá intervir nos contratos de locação, em especial com finalidade não residencial (ou, popularmente, comercial), através de liminares inaudita altera parte (como o próprio termo indica, sem ouvir a outra parte, desconhecendo, desse modo, a condição econômica e social da parte diretamente impactada pela decisão, que suportará o ônus da intervenção). Feitos tais esclarecimentos, vamos às breves reflexões. Contexto fático: A pandemia e as medidas de proteção Infelizmente, com a evolução do vírus mundialmente conhecido como novo coronavírus (que causa a doença Covid-19), que avançou pela Ásia e teve abrupta propagação na Europa, as autoridades competentes dos países em que a escalada de contágio ocorreu posteriormente aos continentes mencionados se apressaram em adotar medidas para evitar a contaminação em massa de suas populações, tendo em vista a trágica realidade noticiada na Itália e na Espanha, por exemplo, cujo sistema de saúde colapsou e acarretou alta taxa de letalidade do vírus.  Nacionalmente, dentre as medidas de enfrentamento ao vírus conhecidas, os Entes Federativos adotaram, em especial, o isolamento (e distanciamento) social, imposto através de decretos, estaduais e municipais, determinando o fechamento de estabelecimentos que exercem atividades consideradas "não essenciais", o que atingiu inúmeras atividades (e esta é, ou era, a finalidade da medida). Tais medidas, embora em consonância com as diretrizes mundiais relacionadas à saúde, causaram (e ainda causam em menor intensidade) significativo impacto econômico e jurídico em inúmeras relações contratuais. Em razão disso, principalmente nos meses de março, abril, maio e junho, surgiram diversas demandas judiciais cujos pleitos se relacionam, direta ou indiretamente, com as restrições impostas e, em última análise, com consequências ainda da pandemia. Primeiros impactos da pandemia nos contratos de locação: Apesar do amparo legal, a negociação se mostrou (e se mostra) imprescindível Trazendo a questão para os contratos de locação, observaram-se inúmeros processos movidos por locatários pleiteando a isenção de aluguel durante o período da pandemia (não somente até o fim das restrições decorrentes dos decreto mencionados, mas até o cenário econômico se reestabelecer - o que não há previsão, assim como a própria pandemia), moratórias/diferimento no pagamento de aluguéis relacionado ao período atingido pelas restrições ou, subsidiariamente, a redução (por vezes drástica) do valor do aluguel ajustado. Reafirmando o que foi exposto acima, não se pretende aqui aprofundar teses jurídicas a respeito da possibilidade, ou não, de revisão ou resolução contratual. Tal questão, em maior ou menor medida, sob uma perspectiva ou outra, já foi brilhantemente exposta em diversos artigos, com maestria e clareza, dos quais destacam-se os produzidos por: (i) José Fernando Simão1-2; (ii) Aline de Miranda Valverde Terra3 (neste trabalho, destaca-se a tese defendida pela aplicabilidade do artigo 567 do Código Civil como fundamento legal para a alteração contratual, isto é, redução do aluguel proporcional à "deterioração", leia-se limitação das faculdades adquiridas pela locação, enquanto esta perdurar); (iii) Flávio Tartuce4; (v) Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva e Antônio Pedro Dias5. Vale destacar também o artigo do professor Alexandre Junqueira Gomide6, para frisar que existem certas relações contratuais que demandam maior atenção caso seja necessária a interferência do Poder Judiciário, visto que uma decisão liminar pode trazer, naquela relação específica, onerosidade excessiva para o credor, tais como os contratos de built to suit, espécie contratual que o referido autor trata brilhantemente em suas obras, que envolve um complexo de obrigações não apenas relacionadas à locação de bem imóvel, mas, a depender da modalidade, de empreitada ou de empreitada e compra e venda somadas à locação do imóvel. Em tais casos, a contraprestação do locatário não remunera apenas o uso do imóvel, mas também todo o investimento realizado pelo locador/empreendedor imobiliário para construir e disponibilizar um imóvel sob medida para o locatário. Cabe menção ainda ao artigo relacionando o tema com o dever de renegociar, fruto de brilhante tese defendida há anos por Anderson Schreiber7, matéria de suma importância e que, diante do atual cenário, mostrou-se questão indispensável ao direito civil, em especial à teoria geral dos contratos. Obviamente, não se ignora que a pandemia é motivo imprevisível ou, ainda que se considere previsível (mesmo nessa hipótese, a situação não compõe a álea normal de grande maioria dos contratos), suas consequências são imprevisíveis8 e podem, sim, causar tanto a desproporção manifesta da prestação devida (artigo 317 do Código Civil) como provocar excessiva onerosidade para uma parte da relação contratual e extrema vantagem para outra9 (artigo 487 do Código Civil), a depender, evidentemente, da análise do caso concreto. De todo modo, cabe, primeiramente aos contratantes (como será justificado a seguir), e, em última instância, ao juiz, buscar o reequilíbrio contratual. Em resumo, a depender dos elementos fáticos do contrato de locação firmado em momento anterior, as consequências advindas da pandemia podem, sim, ensejar a aplicação dos dispositivos autorizadores de revisão (artigo 317 ou 479 do Código Civil, considerando as peculiaridades da demanda) ou resolução contratual (artigo 478 do Código Civil), mas sempre pontual e mínima em tais casos. Vale ressaltar que se aborda, neste artigo, momento anterior ao inadimplemento, razão pela qual não foram citados os artigos 393 e 475 do Código Civil. Antes de adentrar no ponto central do presente artigo, cabe uma breve interrupção para expor que, em tais casos (necessidade de revisão ou resolução do contrato), filio-me à tese de autoria de Anderson Schreiber sobre a existência às partes do dever de renegociar as obrigações (prestações) que se desequilibraram. Tal dever comportamental (adotando a terminologia técnica, é uma obrigação de meio e não de resultado) que se fundamenta implicitamente na norma contida no artigo 422 do Código Civil, que consagra o princípio da boa-fé no plano objetivo, isto é, que determina uma conduta (e não intenção) proba e leal, na conclusão e também durante a execução do contrato. Assim, como bem expõe o Professor Flávio Tartuce10, "tornou-se comum associar a boa-fé objetiva a deveres anexos ou laterais de conduta, que são deveres inerentes a qualquer contrato, e que sequer necessitam de previsão no instrumento11" (não sublinhado no original), podendo, em casos tais, ser representado pela máxima (dever) de mitigação do próprio prejuízo (ou duty to mitigate the loss), visto que a desproporção da prestação ou a onerosidade excessiva podem levar à ruína o devedor e, de tal modo, proporcionar prejuízos ao próprio credor. Ainda sobre o dever de renegociação, enfatizando a sua importância, vale indicar a leitura do artigo do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, publicado no site Migalhas, na coluna Migalhas Contratuais, que sugere a edição de lei federal, de natureza excepcional (assim como a situação em que nos encontramos), determinando o efetivo exercício do dever de renegociar como requisito prévio ou condição de procedibilidade para o ajuizamento de ação destinada a revisar ou resolver contratos12 (reitera-se, de caráter excepcional). Encerrando a exposição deste tópico, não se perde de vista que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (lei Federal 13.874/2019), em especial pelos artigos 2°, incisos I, II e III, e na inclusão do artigo 421, Parágrafo Único, e do artigo 421-A, caput (aqui, vale destacar, voltado aos contratos civis e empresariais) e incisos, todos do Código Civil, reforça a aplicação do dever de renegociar, visto que impõe expressamente limites a revisão judicial dos contratos, devendo a intervenção estatal ocorrer em última instância (positiva os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual) e claramente indica às contratantes, ainda que como faculdade, o caminho a ser seguido, isto é, a definição de parâmetros para interpretação das cláusulas negociais, pressupostos de revisão ou de resolução. Superado esse ponto, e voltando os olhos para os casos em que não houve a renegociação entre os contratantes, a questão que apresenta-se é: havendo elementos no plano fático que justifiquem a intervenção, qual o critério inicial para se estabelecer a revisão do contrato em juízo? Intervenções judiciais: O remédio que, a depender da dose, pode se tornar veneno Demonstrada a necessidade de intervenção judicial, cabe trazer à tona, pois aplica-se perfeitamente ao caso, preocupação que pode ser representada por um famoso dito popular: a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Em análise junto a base do Tribunal de Justiça de São Paulo, observou-se, inicialmente, elevado número de concessão de liminares inaudita altera parte (por óbvio, como a própria expressão revela, tendo o magistrado observado apenas a versão de um dos contratantes) concedendo verdadeiras moratórias, algumas suspensões abarcando o período fixo de três ou quatro meses e outras, no entanto, suspendendo aluguéis referentes aos meses afetados pelas medidas de enfrentamento à pandemia e, ainda, por período de até quatro meses após o término da quarentena (moratória por prazo indeterminado). Em alguns casos impressionou o alcance da decisão, que chegam a isentar totalmente os aluguéis ou suspendem significativamente tal obrigação. Sem citar este ou aquele processo, pois não é este o objetivo e certamente um ou outro caso deve ter chegado ao conhecimento do leitor, o impacto que algumas das liminares, caso mantidas, certamente trouxe e trará grave ônus para o locador do imóvel que, em alguns casos, se verá sem receber os aluguéis durante meses e não poderá fazer nada a respeito (considerando a vigência das liminares). Obviamente, a saída (pelo jeito a única) será o ingresso no feito, apresentando o seu lado da história a fim de tentar modificar o status quo, reestabelecendo o equilíbrio. Veja que, curiosamente, a concessão da liminar que atendeu ao pleito do locatário para sanar um suposto desequilíbrio contratual provocado pela aparição do cisne negro (fato imprevisível ou com efeitos inesperados) proporcionou (ou proporciona) ao locador a assunção de um ônus que talvez não tenha condições de suportar, levando este a recorrer ao Judiciário para não suportar o ônus decorrente de situação que não causou (o busílis de quem irá pagar o "cisne negro" ou "pato"). Preocupado com tal questão, e certamente visando contribuir para que não se instale o caos jurídico em razão de milhares de decisões (ainda mais liminares que surpreendem o prejudicado) adotando critérios díspares, José Fernando Simão propôs interessante método, indicando as seguintes diretrizes para que se busque restabelecer o equilíbrio contratual, quais são: (i) análise do lucro do contrato de acordo com a atividade desenvolvida, indicando que a parcela devida correspondente a remuneração do lucro deve ter o pagamento prorrogado quando do estabelecimento da "normalidade" ou retomada das circunstâncias anteriores; (ii) análise da capacidade econômico-financeira das partes; (iii) análise do ramo de atividade e seu potencial de recuperação da iminente recessão que se aproxima; (iv) evitar a moratória completa (suspensão total do pagamento)13. Tais diretrizes parecem razoáveis e, a princípio, coadunam com o que dispõe o artigo 113, § 1°, inciso V, do Código Civil, que parece ser dispositivo apto a orientar o magistrado na busca pela decisão mais equânime ao caso concreto, dialogando, assim, com o artigo 5° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) - que, acredito, fundamenta a busca (e aplicação) pela justiça do caso concreto, respeitada, evidentemente, a legislação vigente. Aliás, como bem define o Professor Flávio Tartuce14, "equidade pode ser conceituada como sendo o uso do bom-senso, a justiça do caso particular, mediante adaptação razoável da lei ao caso concreto. Na concepção aristotélica é definida como justiça do caso concreto". E não é diferente a postura do Superior Tribunal de Justiça, como se verá. Foi com base na equidade que o STJ resolveu o conhecido caso dos contratos de leasing celebrados em período anterior a 1999, cuja correção monetária das prestações foi atrelada à variação cambial do dólar americano (USD). Na ocasião, como bem observa Jorge Cesa Ferreira da Silva15, embora voto vencido no REsp 268.661/RJ, o Ministro Ari Pargendler proferiu excelente voto que, posteriormente, foi seguido no julgamento de outros acórdãos da Corte Superior, tornando-se posicionamento do STJ16-17, merecendo destaque o seguinte trecho: "A probabilidade de mudanças nesse âmbito, portanto, fazia parte do cenário, mas as partes quiseram, ambas, acreditar que teriam tempo de fazer um bom negócio. Cada qual, por isso, tem uma parcela de (ir) responsabilidade pela onerosidade que dele resultou, e nada mais razoável que a suportem. Tal é o regime legal, que protege o consumidor da onerosidade excessiva, sem prejuízo das bases do contrato. Se a onerosidade superveniente não pode ser afastada sem grave lesão à outra parte, impõe-se uma solução de equidade. O acórdão recorrido, data venia, errou ao aliviar o consumidor daquela parcela de onerosidade que poderia suportar, não excessiva, lesando gravemente o arrendador ao imputar-lhe integralmente os efeitos do fato superveniente". Afastadas as particularidades dos cisnes negros, acredito que, em caso de necessidade de intervenção judicial nos contratos de locação, o juiz deve buscar uma decisão por equidade, postura já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e que encontra amparo em diversos dispositivos legais18, em especial o artigo 113, §1°, inciso V, do Código Civil, e o artigo 5º da LINDB. Trata-se de verificar a ética da situação e alcançar o que Nelson Rosenvald19 chama de norma do caso, visando, sempre, não se afastar da manutenção da segurança jurídica que o jurisdicionado precisa ter. Afinal, como o referido autor expõe, "não há mais espaço para uma tutela jurídica baseada em juízo de plena subsunção. Devemos investigar as peculiaridades das pessoas que vivenciam a relação, a materialidade da hipótese e os diferentes graus de intensidade de atuação do ordenamento diante da riqueza de situações existenciais que concretamente serão detectadas"20. Assim, dada a seriedade e delicadeza das situações observadas, em tais casos não há espaço para uma aplicação binária do ordenamento jurídico. Como orienta a expressão popular "nem tanto ao mar nem tanto à terra", deve-se ter cautela, ainda mais quando trata-se de liminar inaudita altera parte, visto que a outra parte sequer teve a oportunidade de apresentar a sua realidade ao magistrado, que pode igual ou pior a do requerente. Não por acaso, da mesma maneira que se observou nos meses de março, abril, maio e junho uma grande quantidade de concessão de liminares versando sobre modificação de condições essenciais em relações contratuais de locação, atualmente nota-se um grande número de Acórdãos proferidos em sede de Agravo de Instrumento modificam ou até mesmo revogam integralmente as liminares outrora concedidas21 - nesse ponto, vale destacar a responsabilidade da parte que requereu a tutela de urgência aos danos causados pela efetivação da decisão em caso de cessação de sua eficácia (vide artigo 302, III, do Código de Processo Civil22). É preciso dizer (e reconhecer) que os Tribunais têm tido a cautela necessária para analisar tais casos e optado por aprofundar o juízo probatório antes de conceder a liminar pleiteada pelo locatário, visando evitar de forma precipitada onerar demasiadamente o locador - seguindo o dito popular acima mencionado. Essa postura mais conservadora e cautelosa dos Tribunais contribui, e muito, para preservar a confiança no sistema das locações urbanas, como bem expõe o meu colega, brilhante advogado e professor, Jaques Bushatsky23, questão importante e necessária, ainda mais no período de crise que para alguns se aproxima, para outros já chegou e para muitos (boa parte da população brasileira) persiste há alguns anos. Embora de início a situação atual tenha causado certo pânico (inclusive no âmbito jurídico), como bem afirma Humberto Martins24, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, "uma coisa há de ser dita: o Direito Privado brasileiro acumulou grande experiência em lidar com diversos cenários econômicos". Certamente o Poder Judiciário aplicará o direito na melhor forma, buscando trazer segurança aos jurisdicionados. É isto que se tem observado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (e também em outros Tribunais pátrios). Conclusão São tempos difíceis e não há fórmula exata. Não se desconhece que podem existir situações em que a liminar se mostrará necessária. Contudo, espera-se que o julgador busque, sempre, adaptar a aplicação dos dispositivos legais à realidade apresentada no caso concreto, analisando a racionalidade econômica das partes e visando obter um juízo por equidade a fim de não imputar integralmente os efeitos negativos ao locador. Diante das breves reflexões expostas, resta a conclusão de que, diante do cenário atual, embora ninguém queira pagar o "pato" (ou, no caso do presente artigo, o "cisne negro"), infelizmente essa conta será (e deve ser) assumida pelos contratantes - como bem pontua o Professor José Fernando Simão25, "nos momentos de crise, o jogo é de perde-perde". Entretanto, em relação à proporção das perdas, caberá profunda análise do caso concreto, ficando a ressalva, nesse ponto, de que os contratantes devem priorizar a renegociação à judicialização - afinal, ninguém melhor do que locador e locatário para analisar os impactos da pandemia na relação contratual e estabelecer meios criativos de adequar as obrigações convencionadas à nova realidade e, assim, preservar o vínculo de forma harmônica e solidária. Mas, sendo o caso de intervenção judicial, que a equidade e a cautela estejam presentes na análise técnica do julgador. *Guilherme de Freitas Antônio é advogado, pós-graduando em Direito Público e membro da Comissão de Direito Imobiliário da 39ª Subseção da OAB/SP. __________ *Cisne negro - expressão utilizada para conceituar um outlier (em português seria "ponto fora da curva" ou outra expressão que represente dados extremamente destoantes em amostras estatísticas) e que, para a presente leitura, será utilizado para representar o fato imprevisível ou, ainda que previsível para alguns, com efeitos inesperados. Vale ressaltar que o conceito foi desenvolvido por Nassim Nicholas Taleb, cuja ideia ganhou corpo e forma na obra "A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável". 1 "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  2 Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  3 Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  4 O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  5 Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  6 A revisão dos contratos de built to suit em tempos de pandemia. Disponível aqui. Acesso em 25/9/2020.  7 Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 26/4/2020.  8 Enunciado n° 17 do Conselho da Justiça Federal: A interpretação da expressão "motivos imprevisíveis" constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não-previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis.  9 Enunciado n° 365 do Conselho da Justiça Federal: A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.  10 Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007, p.200.  11 Vale mencionar ainda que "o desenvolvimento da tese dos deveres anexos, no Brasil, é atribuído a Clóvis do Couto e Silva (A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 113)" (TARTUCE, op. cit., p. 200).  12 Disponível aqui. Acesso em 27/4/2020.  13 Vide o artigo "O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio", indicado acima.  14 Manual de direito civil: volume único. 8. ed. rev, atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 24.  15 Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, pp. 183/184.  16 "LEASING. Variação cambial. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Distribuição dos efeitos. A brusca alteração da política cambial do governo, elevando o valor das prestações mensais dos contratos de longa duração, como leasing, constitui fato superveniente que deve ser ponderado pelo juiz para modificar o contrato e repartir entre os contratantes os efeitos do fato novo. Com isso, nem se mantém a cláusula da variação cambial em sua inteireza, porque seria muito gravoso ao arrendatário, nem se substitui por outro índice interno de correção, porque oneraria demasiadamente arrendador que obteve recurso externo, mas se permite a atualização pela variação cambial, cuja diferença é cobrável do arrendatário por metade" (REsp 401.021/ES. Quarta Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, R. p/acórdão Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 17/12/2002).  17 "CIVIL ARRENDAMENTO MERCANTIL. CONTRATO COM CLÁUSULA DE REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAMBIAL. VALIDADE. ELEVAÇÃO ACENTUADA DA COTAÇÃO DA MOEDA NORTE-AMERICANA. FATO NOVO. ONEROSIDADE EXCESSIVA AO CONSUMIDOR. REPARTIÇÃO DOS ÔNUS. LEI N. 8.880/94, ART. 6º. CDC, ART. 6º, V. I. Não é nula cláusula de contrato de arrendamento mercantil que prevê reajuste das prestações com base na variação da cotação de moeda estrangeira, eis que expressamente autorizada em norma legal específica (art. 6º da lei 8.880/94). II. Admissível, contudo, a incidência da lei 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pacto celebrado, consubstanciado, no caso, por aumento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento. III. Índice de reajuste repartido, a partir de 19.01.99 inclusive, eqüitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez legal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimplemento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e também alheio à sua vontade. IV. Recurso especial conhecido e parcialmente provido." (REsp 473.140/SP. Segunda Seção, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, R. p/acórdão Min. Aldir Passarinho Júnior, julgado em 12/2/2003).  18 Artigo 413 do Código Civil; Artigo 140, Parágrafo Único, do Código de Processo Civil.  19 Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 73.  20 Op. cit., p. 74.  21 Nesse sentido: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL - LOCAÇÃO COMERCIAL - SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICO-FINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM - INSURGÊNCIA DOS REQUERIDOS - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 300 DO CPC - RECURSO PROVIDO. O contrato de locação comercial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Inexiste também prova do perigo de dano, pois não há notícia sobre qualquer notificação de mora ou de despejo por parte dos locadores, que certamente estão passando pelos mesmos percalços financeiros e, de acordo com o documento juntado aos autos, aventaram a possibilidade de resolução do contrato sem imposição de sanções. Consigne-se, ainda, que o cenário atual é de flexibilização das regras de isolamento e de retomada gradual das atividades comerciais, o que possibilitará o aumento do faturamento das empresas. Recurso provido para revogar a tutela de urgência concedida na origem." (TJSP; Agravo de Instrumento 2159124-87.2020.8.26.0000; Relator (a): Francisco Carlos Inouye Shintate; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/08/2020; Data de Registro: 26/8/2020).  22 "Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:  (...)  III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal";  23 Preservar a confiança no sistema das locações urbanas. Disponível aqui. Acesso em 25/9/2020.  24 Disponível aqui. Acesso em 28/4/2020. 25 Vide o artigo "O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio", indicado acima.
quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Regime jurídico geral do contrato fiduciário

Visando à criação de um ambiente de segurança jurídica compatível com as necessidades de reativação da atividade econômica, o PL 4.758/2020, do deputado Enrico Misasi, propõe a regulamentação do regime jurídico geral da operação de fidúcia, alinhado ao conceito básico do trust enunciado no art. 2º da Convenção de Haia de 1985. A iniciativa adota anteprojeto sugerido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros1, fundado em estudos de direito comparado e na experiência extraída de precedentes do direito brasileiro, nos quais "aspectos e funções pontuais do trust em função de garantia e de administração (gestão) têm sido apreendidos por via legislativa"2. Originário do direito inglês, o trust é negócio jurídico pelo qual um sujeito, denominado settlor (fiduciante) transmite a propriedade de bens a um trustee (fiduciário), que os recebe para aplicação em um específico escopo e se obriga a retransmiti-los a um cestui que trust (beneficiário) ou ao próprio settlor (fiduciante). Nessa operação, a despeito de receber a propriedade, o trustee (fiduciário) não é investido no feixe de direitos subjetivos inerentes à fruição em seu próprio proveito, mas, sim, no poder-dever de exercer a propriedade em proveito do settlor (fiduciante) ou de um beneficiário por este indicado.   Por força desse negócio, os bens transmitidos são afetados a um determinado fim, mecanismo que confere incomparável segurança jurídica em relação a determinadas modalidades de negócio cuja administração de ativos, por exigir expertise, é confiada a terceiros, profissionais especializados, em situações nas quais é necessária ou conveniente a atribuição da propriedade ao administrador, para que possa exercer eficientemente os investimentos; há outras situações em que a segregação patrimonial é necessária para efeito de garantia ou é recomendável para efeito de limitação de responsabilidade na realização de investimentos ou em certas atividades empresariais; em qualquer dessas situações é essencial que o negócio e os interesses das partes envolvidas sejam tutelados em termos precisos, mediante legislação que regulamente a atribuição fiduciária ou a afetação como meio de blindagem patrimonial visando à preservação de ativos para realização do fim específico do negócio e proteção patrimonial dos interessados. Situação das mais frequentes, que reclama a máxima eficácia da segurança jurídica dos investimentos privados, é a diversificação e multiplicação dos meios de captação de recursos do público, envolvendo milhões de interessados, sobretudo pequenos e médios investidores e poupadores, que confiam a aplicação dos seus recursos a empresas especializadas. Casos como o dos fundos de investimento reclamam a criação de um patrimônio de afetação no qual sejam alocados os bens que constituirão a carteira de investimento, que é indispensável para impedir que os aportes financeiros do investidor se confundam com outros bens numa única massa no patrimônio da empresa administradora do fundo, o que possibilitaria a fraude do regime de vinculação dos recursos ao escopo específico para o qual foram afetados, tornando o investidor um simples credor quirografário da companhia administradora. Situações como essas se encontram dentro do fenômeno da titularidade por conta de terceiros, "que é característica precípua das formas modernas de gestão da riqueza"3, nas quais é necessário colocar num patrimônio separado os bens e demais recursos  integrantes do acervo de determinado negócio, visando à tutela do investidor-fiduciante, o que, em geral, se faz mediante constituição de propriedade fiduciária. O mecanismo é típico do trust e, como já observou Waldemar Ferreira, por servir a uma infinidade de situações, "responde fundamentalmente ao desejo de dar ao direito privado nacional a flexibilidade necessária para que permita alcançar fins de impossível ou difícil realização dentro dos esquemas tradicionais"4. A despeito dos obstáculos de natureza histórica e estrutural que impedem a translação pura e simples do trust para os sistemas do civil law, a extraordinária utilidade da atribuição fiduciária da propriedade vem justificando a atualização da fidúcia de forma a viabilizar a conformação de figuras de natureza fiduciária capazes de produzir efeitos jurídicos e econômicos semelhantes aos do trust, sem, contudo, afrontar os princípios fundamentais dos sistemas de tradição romano-germânica. Com efeito, considerando-se que o trust tem como elementos essenciais um patrimônio determinado e uma afetação, é possível obter os efeitos econômicos e jurídicos do trust mediante constituição de um patrimônio autônomo e sua vinculação à realização de um escopo específico, isto é, mediante a atribuição de um direito patrimonial - propriedade fiduciária - a alguém, para que o administre no interesse de outrem ou mediante simples afetação patrimonial independente de transmissão fiduciária. A afetação isola o patrimônio autônomo, que não se comunica com o restante do patrimônio do fiduciante, afasta os bens e direitos que o integram do risco de constrição por execução de dívidas não vinculadas ao negócio que constitui o escopo específico, tal como ocorre com o Fundo de Investimento, em que o patrimônio do administrador é separado dos recursos aportados pelos cotistas. Traço característico da natureza jurídica do patrimônio de afetação, ou de destinação, é, como anota Ferrara, sua subordinação a um regime de responsabilidade própria, pelo qual só responde pelas "obrigações e responsabilidade que dele nascem, e que não suporta os efeitos das obrigações várias do titular do patrimônio". Sendo essa limitação de responsabilidade necessária para consecução de determinada finalidade econômica ou social, o núcleo patrimonial a ela destinado permanece incomunicável, visando a que a consecução da sua finalidade não seja inviabilizada por efeitos negativos de eventual desequilíbrio do patrimônio geral do instituidor da afetação; afinal, esses núcleos patrimoniais, como observa Enneccerus, são instituídos "no interesse de determinado fim e especialmente com referência à responsabilidade por dívidas são tratados sob certos aspectos como um todo distinto do patrimônio restante"5. É com essa conformação que vem sendo reconstruída a figura da fidúcia, frequentemente sob forma de fideicomisso, visando a alcançar efeitos semelhantes àqueles propiciados pelo trust6. O mecanismo é de tal importância que se espraiou por todos os continentes, seja na forma de trust, seja numa versão moderna da fidúcia. Está presente desde a Austrália, Escócia, África do Sul, passa pela Itália, Portugal, Espanha, Luxemburgo, segue até a China, o Japão, instala-se no Líbano, em Dubai, vai até Quebec e espalha-se por toda a América latina. Vejam-se a operação de fidúcia do direito francês e o contrato de fideicomisso tipificado pelo Código Civil argentino de 2014, que identificam os "negócios fiduciários como modelo jurídico apto a receber com caráter geral - embora limitado em alguns relevantes aspectos - funções cometidas ao trust nos direitos anglo-saxões, sendo hoje indiscutida a utilidade, se não mesmo a necessidade, de inserir essa figura flexível, elástica e genérica no arsenal jurídico dos distintos países de tradição romanística, ainda que sobrevindas algumas dificuldades de ordem sistemática"7. No Brasil, a ideia também vem sendo assimilada, mas para situações específicas, sob a forma de contratos de transmissão de bens e direitos em garantia fiduciária, a partir da regulamentação da propriedade fiduciária atribuída a empresas administradoras dos fundos de investimento imobiliário (lei 8.668/1993), do regime fiduciário para securitização de créditos imobiliários e da cessão fiduciária de direitos creditórios (lei 9.514/1997), da segregação patrimonial de cada empreendimento na atividade da incorporação imobiliária (lei 10.931/2004), entre outras situações específicas. Por meio dessas normas legais o direito brasileiro veio permitir a afetação patrimonial para determinadas situações, mas o tratamento casuístico, errático e disperso limita o campo de aplicação desse importante mecanismo, dificulta sua compreensão e dá causa a dúvidas e incertezas, sendo de todo recomendável a sistematização das normas sobre a matéria em termos completos e abrangentes. A instituição de um regime geral da transmissão fiduciária da propriedade e da afetação constitui elemento de previsibilidade e de calculabilidade de incomparável eficácia como mecanismo de limitação de responsabilidade e estímulo a investimentos e financiamentos, na medida em que define em termos específicos o risco do negócio e o circunscreve aos limites do patrimônio autônomo criado especificamente para realização do seu fim. Por essa forma, ao lançar-se a empreendimentos organizados sob regime fiduciário, o investidor dispõe de elementos seguros para estimação do seu risco, dado o regime de vinculação de receitas a que se submete o patrimônio de afetação, certo de que os bens e direitos destinados àquele negócio específico permanecerão a ele vinculados com exclusividade e não responderão por obrigações estranhas ao seu escopo. O mecanismo não compromete nem prejudica o direito dos credores não-vinculados ao negócio específico, pois a atribuição fiduciária e a afetação submetem-se aos mesmos requisitos de validade e eficácia da alienação ou oneração de bens, em geral, isto é, aos mesmos controles a que se sujeitam quaisquer atos de disposição de bens ou constituição de garantia. Assim, do mesmo modo que é anulável ou ineficaz qualquer ato de venda, doação, hipoteca, alienação fiduciária etc em que se caracterizar fraude a credores ou à execução, é igualmente anulável ou ineficaz a transmissão fiduciária ou a constituição de um patrimônio de afetação em que se caracterizar fraude, tal como já suficientemente disciplinado na legislação comum. Em nosso país, a despeito do casuísmo das normas sobre a segregação patrimonial, sua aplicação prática já vem produzindo precedentes judiciais que demonstram sua efetividade como mecanismo de preservação dos recursos vinculados ao fim a que são destinados pela afetação. São casos da afetação de determinados empreendimentos de empresas incorporadoras imobiliárias que vieram a submeter-se ao procedimento de recuperação judicial, cuja incomunicabilidade e vinculação de receitas têm sido preservadas pela jurisprudência, que exclui os patrimônios de afetação do plano de recuperação, de modo a assegurar que seus recursos sejam destinados prioritariamente à execução da obra e à entrega dos imóveis aos adquirentes, vedado seu redirecionamento a fins estranhos a esse escopo8. É a partir desses pressupostos que o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou a Indicação 246/2011, que preconiza a sistematização das normas sobre a fidúcia mediante instituição de um regime geral de fidúcia. A proposição não prejudica as leis especiais que regulamentam relações fiduciárias específicas, tais como a alienação fiduciária em garantia, a atribuição fiduciária para administração dos fundos de investimento, entre outras, às quais esse regime geral se aplica subsidiariamente. Nos termos da proposição, trata-se de negócio jurídico pelo qual uma pessoa, denominada fiduciante, transmite a outra, denominada fiduciário, certos bens ou direitos para que este, o fiduciário, os administre em proveito de uma terceira pessoa ou do próprio fiduciante, de acordo com o estabelecido no ato de constituição da fidúcia. Estabelece os requisitos e elementos do contrato de fidúcia, entre os quais a individualização dos bens transmitidos fiduciariamente, a condição ou o prazo a que estiver subordinada a relação fiduciária, bem como a destinação dos bens e direitos quando implementada a condição, a menção à natureza fiduciária da propriedade transmitida, com a indicação das limitações impostas pelo regime fiduciário no caso específico, os direitos e as obrigações das partes e dos beneficiários, a definição da extensão e dos limites dos poderes do fiduciário, com indicação dos requisitos a serem observados na transmissão dos bens ao fiduciante ou a terceiros e na consolidação da propriedade e as normas sobre a prestação de contas, entre outros requisitos. Os bens e direitos objeto de propriedade fiduciária são segregados em um patrimônio de afetação, destinado ao cumprimento da finalidade da fidúcia, e serão administrados pelo fiduciário de acordo com o disposto no respectivo contrato e só respondem pelas dívidas e obrigações vinculadas à destinação da fidúcia. Pode ser fiduciário qualquer pessoa física ou jurídica capaz de direitos e obrigações na ordem civil e comercial, salvo quando a implementação da fidúcia implicar captação de recursos do público, hipótese em que a atividade de fiduciário é privativa das instituições financeiras ou de entidades especialmente autorizadas pelo Conselho Monetário Nacional ou pelo Banco Central e deve ser exercida conforme as normas editadas por esses órgãos. Dentre os deveres do fiduciário ressaltam a manutenção de patrimônio separado integrado pelos direitos e obrigações correspondentes à fidúcia, a prestação de contas periodicamente e a entrega dos bens, ao final do prazo ou mediante implemento da condição. O Projeto estabelece as hipóteses em que o fiduciário pode ser substituído. A fidúcia pode ser revogada pelo fiduciante. Coerentemente com o Enunciado 628 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, os bens e direitos objeto de atribuição fiduciária não se submetem aos efeitos de falência ou recuperação de empresa e prosseguirão sua atividade de acordo com o regime jurídico a que estiverem subordinados, permanecendo separados do falido ou da empresa em recuperação até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento da sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou da empresa em recuperação, ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. Extingue-se a fidúcia  pelo implemento da condição ou decurso do prazo, pela revogação, pela renúncia ou morte do beneficiário, sem sucessor indicado pelo fiduciante, por acordo entre o fiduciante e o beneficiário, respeitados os direitos do fiduciário, por decisão judicial, quando, omitindo-se o ato de constituição sobre as condições pelas quais a fidúcia prosseguiria, falecer o fiduciário. Por efeito da extinção, os bens e direitos revertem de pleno direito ao patrimônio do fiduciante ou seus sucessores, salvo se o ato de constituição determinar a consolidação no patrimônio do beneficiário. Nos termos em que está estruturado, o PL 4.758/2020 sintoniza nosso direito positivo no contexto internacional, mediante adequada assimilação de certos elementos do trust e dos nossos próprios precedentes legislativos e jurisprudenciais, ao preconizar a instituição de um regime jurídico geral da fidúcia caracterizado como mecanismo de prevenção de riscos e limitação de responsabilidade. De fato, a experiência extraída do tratamento legal casuístico dado pelo direito positivo brasileiro e dos precedentes judiciais construídos em relação à sua aplicação prática dão mostras da efetividade desse mecanismo, e na medida em que se estreitam e se intensificam as relações internacionais, dão respaldo à instituição de um regime jurídico geral capaz de estimular os investimentos da iniciativa privada, inclusive no plano externo, mediante delimitação de riscos por meio da afetação patrimonial, conferindo maior segurança jurídica aos negócios. Além dessa indiscutível relevância para o fomento das relações econômicas, a assimilação de elementos do trust pelo nosso direito positivo pode igualmente contribuir para a promoção de interesses existenciais, ao potencializar a proteção dos vulneráveis. Isso porque viabilizaria a atribuição a instituição especializada da gestão dos bens destinados aos menores e às pessoas com discernimento comprometido. Por esse meio, a instituição estaria investida no poder de administrar os bens para alcançar o melhor resultado econômico-financeiro possível, desde que em conformidade com as diretrizes previamente estabelecidas e no melhor interesse dos beneficiários. A par dessas situações que estão contempladas no regime jurídico da fidúcia nos termos propostos, a atribuição fiduciária oferece igualmente suporte legal adequado à estruturação de planejamento sucessório com segurança jurídica, nos limites fixados pelo direito comum. Para essas e inúmeras outras situações em que é necessária a segregação patrimonial para efeito de garantia ou de administração de ativos por terceiros, a proposição contempla adequada delimitação de riscos e de preservação de recursos necessárias à proteção do negócio, em favor dos beneficiários, revestindo a operação de fidúcia de incomparável efetividade como mecanismo de segurança jurídica e de estímulo a investimentos. *Melhim Chalhub é advogado, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. **Gustavo Alberto Villela Filho é advogado, membro do Instituto os Advogados Brasileiros. ***Milena Donato Oliva é advogada, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, professora de Direito Civil e do Consumidor da UERJ. __________ 1 Trata-se da Indicação nº 246/2011, que apresenta anteprojeto proposto pelo advogado Melhim Chalhub na monografia Negócio Fiduciário, aprovada em 1998 pela banca da Universidade Federal Fluminense no Curso de Especialização em Direito Privado. O anteprojeto foi apreciado pelas Comissões de Direito Civil e de Direito Empresarial do IAB, nas quais contou com parecer da saudosa Professora Dora Martins de Carvalho, e relatoria de Gustavo Alberto Villela Filho e Milena Donato Oliva. 2 MARTINS-COSTA, Judith, O trust e o direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 12, Jul - Set / 2017, p. 165 - 209. 3 GAMBARO, Antonio. Trattato di diritto privato - la proprietà. Milão: Giuffrè, 1990, p. 251. 4 FERREIRA, Waldemar, O trust anglo-americano e o fideicomisso latino-americano. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, LI, p. 182. 5 SERPA LOPES, Miguel Maria de, Curso de direito civil - Direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962, v. VI, p. 69. 6 CHALHUB, Melhim Namem, Afetação patrimonial no direito contemporâneo. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 29, jan-mar/2007, pp. 111/147. TRUST - Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração e garantia. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.pp. 42 e seguintes. 7 MARTINS-COSTA, Judith, O trust e o direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 12, Jul - Set / 2017, p. 165 - 209. 8 TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2023264-85.2018.8.26.0000, rel. Des. Cláudio Godoy, DJe 12.9.2018. TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2180109-48.2018.8.26.0000, rel. Des. Vito Guglielmi, j. 8.10.2018.TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2207013-71.2019.8.26.0000, rel. Des. José Roberto Furquim Cabella, j 1º.11.2019. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2023917-19.2020.8.26.0000, rel. Des. Moreira Viegas, j. 6.3.2020. TJRJ, 7ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 0032240-42.2020.8.19.0000, rel. Des. Luciano Rinaldi, j. 30.9.2020.
Introdução1 Após indicativos que teríamos um promissor 2020, depois de anos de crise econômica que assolou, sobretudo, o mercado imobiliário brasileiro, a pandemia da Covid-19 deu origem a um novo ciclo de incertezas, dessa vez em nível global. No intuito de conter a propagação do vírus, medidas restritivas severas foram impostas pelo Poder Público, determinando a suspensão de atividades consideradas "não essenciais" ou mesmo o caso de municípios que decretaram lockdowns2. O mercado imobiliário não ficou isento desse cenário, testemunhando canteiros de obra completamente parados, mão de obra escassa, fornecedores impossibilitados de suprir às necessidades dos empreendimentos. Diante desse contexto, nesse breve artigo, abordaremos as consequências jurídicas dessa realidade pandêmica no mercado imobiliário. Elegeu-se um tema de relevância às incorporações, que vem a ser a possibilidade de que a obra seja entregue após o prazo de tolerância previsto contratualmente sem a configuração de mora e/ou inadimplemento do incorporador, diante da configuração de caso fortuito e força maior ("CFFM"). I. Prazo de tolerância na incorporação imobiliária Passa-se a uma aproximação acerca do artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964, cujo prazo contemplado no seu caput se popularizou no mercado imobiliário e no Poder Judiciário, antes mesmo da sua positivação, como "prazo de tolerância". Esse dispositivo legal prevê a possibilidade da inclusão de cláusula contratual, nos contratos de incorporação imobiliária, que estabeleça um prazo de tolerância de até 180 dias para entrega da unidade. Nesse caso, se a entrega da unidade ocorrer dentro do referido prazo, o incorporador não incorrerá em mora, nem em hipótese de inadimplemento contratual. Diferentemente, constituiu-se a hipótese em que findo o prazo de tolerância estipulado, sem que o empreendimento seja concluído. Nesse caso, o adquirente terá a faculdade de: (i) faze jus a multa moratória de 1% (um por cento) ao mês dos valores pagos, no período que exceder o prazo de tolerância; (ii) buscar a resolução do contrato, sem prejuízo do recebimento da integralidade dos valores desembolsados pela unidade imobiliária e das penalidades estabelecidas; ou (iii) celebrar um distrato pela incorporadora pelos termos acordados pelas partes3. O artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964 positivou o entendimento de diversos tribunais estaduais, com destaque ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo4, assim como ao entendimento que vinha sendo consagrado pelo STJ desde 2017, quando do julgamento do Recurso Especial 1.582.318/RJ5. Ao nosso sentir, tanto a fundamentação do STJ na decisão sobre a matéria, quanto a positivação do prazo de tolerância na Lei nº 4.591/1964 foram acertadas. Isso porque a lei não pode ser avessa à realidade, devendo o legislador - e o aplicador do direito - considerar a realidade para bem aplicar a lei. No caso das incorporações imobiliárias, a complexidade desses empreendimentos - que envolvem a articulação de diversos fatores de produção sujeitos à imprevisibilidade - impossibilita, em parcela considerável dos casos, precisar uma data exata para a entrega das unidades aos adquirentes. Diante dessa realidade e da enxurrada de ações judiciais sobre o tema, a jurisprudência e, posteriormente, o legislador, pacificaram a validade da cláusula de tolerância. Isso não significa que o incorporador não deverá aplicar toda a diligência possível a fim de não exceder o prazo de 180 dias pois, nesse caso, sofrerá as consequências da verificação do descumprimento contratual e legal. Assim resta claro que a cláusula de tolerância foi necessária em razão da considerável complexidade e imprevisibilidade envolvida na viabilização das incorporações imobiliárias em território nacional. Aqui, chama-se a atenção à sujeição dos empreendimentos à liberação da carta de habitação por Prefeituras de Municípios que não estão aparelhadas para dar o retorno dentro de um prazo razoável. De outro lado, uma vez entendida a necessidade da existência do prazo de tolerância no âmbito das incorporações imobiliárias, surge o debate relativo a quais seriam os efeitos caso ultrapassado esse prazo. Isto é, mesmo com a aplicação do prazo de tolerância de até 180 dias, poderia haver uma flexibilização, de sorte que o incorporador não incorre em mora e/ou inadimplemento mesmo diante da entrega da obra após ultrapassado o prazo de tolerância? A celeuma foi intensificada em decorrência dos céleres e inesperados efeitos trazidos pela Covid-19, que acarretaram, em muitas localidades, a paralisação e/ou suspensão dos fatores de produção. II. Caso fortuito e força maior em tempos de pandemia É notório que o coronavírus impactou diretamente as relações contatuais, notadamente aquelas celebradas antes da pandemia. Nesse cenário, passou-se a discutir os efeitos jurídicos da Covid-19 nos contratos, invocando-se, com uma frequência jamais vista, os institutos do CFFM. Dessa forma, antes que passemos à análise da possibilidade da extensão do prazo de tolerância em tempos pandêmicos, é necessário analisar brevemente o artigo 393 do Código Civil. Enquanto o caput do artigo 393 do Código Civil delimita os efeitos do CFFM - isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos dele resultantes (quebra do nexo de causalidade) - seu parágrafo único caracteriza sua ocorrência, afirmando que "o caso fortuito e de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". Denota-se que o CFFM configura-se por um evento inevitável (necessário), cujus efeitos são irresistíveis ao devedor quando da sua ocorrência (não era possível evitar ou impedir). Ademais, o devedor que invoca a ocorrência de CFFM só se exime de responsabilidade caso não tenha contribuído para o resultado danoso. Ou seja, o fortuito insere-se no âmbito dos eventos que exorbitam os deveres gerais de diligência que o devedor está adstrito. A aplicação do instituto começa, portanto, onde a diligência se torna inútil para evitar o resultado. Nesse contexto a pergunta que se faz é: os efeitos trazidos pela Covid-19 configuram hipótese de excludente de responsabilidade do devedor em razão do caso fortuito ou força maior? A resposta, como quase tudo que circunda o mundo do direito, é "depende". Conforme antes exposto, CFFM restam configurados6 quando a obrigação for impactada por um evento imprevisível que torne impossível seu cumprimento pelo devedor. Contudo, não se pode ceder à tentação simplista e descolada da boa técnica jurídica de afirmar que o coronavírus repercutiu de maneira idêntica em todos os contratos. Nem acontecimentos gravíssimos, como uma pandemia, causam impactos idênticos a todos os contratos, dependendo a sua caracterização7 da análise de causa e efeito da pandemia no negócio jurídico objeto de análise, bem como da impossibilidade do devedor de evitar tais consequências. Assim, compete à parte prejudicada a demonstração de que a obrigação tornou-se, efetivamente, impossível devido à pandemia. Em suma, para que o incorporador tenha êxito ao invocar a excludente resultante da configuração de CFFM, deverá demonstrar, com base em fatos concretos, que os efeitos da pandemia geraram consequências que o impediram de realizar a prestação em conformidade com aquilo que foi estabelecido. Como antes mencionado, a prestação devidamente cumprida pelo incorporador reveste-se na conclusão do empreendimento dentro do prazo de tolerância estipulado pelas partes. Assim, percebe-se a importância da mensuração do elemento culpa do incorporador8 no sucesso ou insucesso na sua eventual pretensão de invocar a excludente em razão de CFFM. III. Interpretação do prazo de tolerância à luz do Código Civil - o necessário diálogo entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil Assentadas as bases que tocam ao presente estudo, quais sejam, o prazo de tolerância previsto na Lei 4.591/1964 e o CFFM, disciplinados pelo Código Civil, passamos ao questionamento que nos guiou até aqui: pode o prazo de 180 dias previsto no artigo 43-A da Lei 4.591/1964 ser estendido em razão de consequências oriundas da pandemia? Ao nosso sentir, o prazo de tolerância considera uma "imprevisibilidade genérica". Não estão abarcados pela referida disposição, portanto, todos os eventos que possam atrasar o cronograma de obra, incluindo-se as hipóteses que podem ser trazidas em razão da configuração do CFFM. Com isso em mente, temos que não há qualquer conflito entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil. Isso é, o prazo de tolerância e a excludente de responsabilidade trazida pelas hipóteses de CFFM coexistem em perfeita harmonia, sendo ambos institutos aplicáveis em diferentes contextos. Por essa razão, não podemos excluir a possibilidade de o incorporador que, comprovadamente, tiver o seu cronograma impactado pelos efeitos da pandemia buscar a exclusão da sua responsabilidade ancorado no fortuito que impediu a entrega das unidades aos adquirentes no prazo pactuado, por não incorrer o incorporador em mora9. Inclusive, essa é a dicção do artigo 396 do Código Civil, dispondo este que "[n]ão havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." Ressalta-se que a eventual postergação na entrega da obra, invariavelmente, tem o condão de prejudicar de forma igual, ou mesmo maior, o incorporador, que se vê cerceado de receber grande parte da parcela do preço, que costuma ocorrer após a expedição do habite-se, por meio de financiamento imobiliário aos adquirentes. Pode-se arguir que, em determinados estados da federação, obras de construção civil foram paralisadas apenas por um certo período, eis que logo em seguida à paralisação generalizada das atividades a construção civil foi incluída em muitos locais no rol das chamadas atividades "essenciais". Contudo, para a incidência dos institutos do CFFM, o prazo de paralização é apenas mais um elemento a se verificar. Isso porque o atraso na obra pode ser ocasionado por diversas razões além da expressa determinação de paralização das obras pelo Poder Público, como a falta de mão de obra ou de escassez de materiais de construção no mercado. De outro lado, a arguição genérica de CFFM não exime a responsabilidade daquele incorporador inadimplente em razão de atrasos a ele imputáveis. Assim, passa-se à análise da conduta exigida do incorporador para a caracterização da excludente de responsabilidade ora analisada. IV. Incorporação imobiliária e caso fortuito e força maior - conduta exigida do incorporador É importante reconhecer que a possibilidade de o incorporador invocar a hipótese de CFFM não significa acobertar a sua inércia. Mesmo diante de um fato dito irresistível, exige-se uma conduta ativa do agente, decorrente dos deveres anexos à boa-fé objetiva, consagrada no artigo 422 do Código Civil. O fato de o cronograma de obra ter sido prejudicado em razão dos efeitos de uma pandemia não afasta o legítimo interesse do adquirente de ser informado do status da obra. Dessa forma, resta claro que o incorporador tem o dever de manter os adquirentes atualizados sobre o estado do empreendimento e de possíveis atrasos com a maior antecedência possível. Frisa-se que a configuração de CFFM é, realmente, exceção à regra. Ademais, o Poder Judiciário poderá aplicar a exceção de forma modulada, trazendo uma solução que não onere em demasiado uma parte, ainda que tal excludente seja o instituto cabível para se buscar o equilíbrio contratual por si só10. Como exemplo, pode-se ventilar o pagamento de um aluguel mensal pelo incorporador ao adquirente, em caso de superação do prazo de tolerância, em valor entre 0,5% a 0,35% ao mês, em vez do percentual de 1% ao mês, previsto pelo artigo 43-A, § 1º da Lei 4.591/1964. A análise do elemento culpa do incorporador será crucial para essa quantificação. Tendo em vista que a prova quanto à ocorrência de CFFM dependerá do incorporador em eventual judicialização posterior, é aconselhável que todos os eventos que atrasem o cronograma de entrega sejam devidamente documentados. Apenas para citar alguns exemplos, o incorporador deverá: (i) registrar no relatório diário de obra, os atrasos, faltas e número de empregados disponíveis no canteiro de obra; (ii) reunir todos os decretos e outras regulações que impeçam ou suspendam atividades no canteiro de obras ou que impactem no fornecimento de matéria-prima; (iii) reunir e-mails e outras comunicações aos adquirentes em relação a anormalidades e eventuais atrasos como resultado direto do efeitos da pandemia; (iv) fazer prova das paralisações dos órgãos públicos em relação à emissão da carta de habite-se como resultado direito da pandemia; e (v) fazer prova da conduta proativa para dirimir os efeitos do retardamento da obra, na medida do possível e da razoabilidade, entre várias outras comprovações. Ditas precauções serão o passaporte não apenas para eventualmente isentar a responsabilidade do incorporador efetivamente impactado pela pandemia, mas para afastar a conduta oportunista daqueles que tentam se esquivar dos efeitos da mora ou mesmo do seu inadimplemento sem um respaldo jurídico. V. Conclusão A seguir, indicamos aquelas conclusões que, ao nosso entender, melhor refletem as corretas soluções ao tema ora tratado: (i) Os reflexos da pandemia, como regra geral, não isentam a responsabilidade do incorporador pela postergação da obra após o prazo de tolerância pactuado; (ii) É recomendável que incorporador, para que possa comprovar a configuração da excludente de CFFM, disponha de farto conteúdo probatório acerca da ocorrência de eventos que tenham causado interferência na execução e bom termo da obra. Ademais, o incorporador deverá manter os adquirentes informados, minimizando as consequências para eles, bem como deverá atuar com condutas positivas para dirimir interferências no curso da obra e evitar o atraso11; e (iii) O incorporador, dependendo das circunstâncias, poderá isentar-se dos efeitos da mora e/ou do inadimplemento na entrega da obra, mesmo após transcorrido o prazo de tolerância previsto no artigo 43-A, caput da Lei 4.591/1964. ___________ *Fabio Machado Baldissera é advogado e sócio do escritório Souto Correa Advogados. Doutor em Direito pela Universidad de Burgos (Espanha) e especialista em Direito Imobiliário pela FADISP. Diretor Estadual do Ibradim-RS, membro do Conselho Consultivo da Associação Gaúcha do Advogados do Direito Empresarial (AGADIE). **Bernardo Borchardt é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. ___________ 1- Esse artigo constitui-se numa adaptação mais reduzida de um artigo que está em processo de publicação pelo IBRADIM. 2- Esse foi o caso da cidade de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul, cujo Decreto Municipal 6.300/2020 foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Vide: Disponível aqui. Acesso em 17 de set. de 2020. 3- Sobre os limites do distratos, vide: BALDISSERA. Fábio Machado; BORCHARDT. Bernardo. Incorporação imobiliária: alcance do Distrato nos termos do § 13º do artigo 67-A da Lei 4.591/1964. In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Coletânea IBRADIM, Coord. Olivar Vilate, (São Paulo: Quartier Latam, p. 143 - 150. 4- Nesse sentido: TJSP, Apelação 0275522-40.2009.8.26.00, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 07/10/2014; TJSP, Apelação 0159707-78.2012.8.26.0100, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des José Carlos Ferreira Alves, j. 16/09/2014; TJSP, Apelação 1054148-81.2013.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Mauro Conti Machado, j. 14/04/2015. 5-STJ, REsp 1.582.318/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 12/09/2017, DJe 21/09/2017. 6- Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva: "Com alguma frequência, constata-se na prática uma certa confusão entre CF/FM e 'fato necessário', como se qualquer fato necessário, alheio à vontade das partes e, sobretudo, do devedor, gerasse a liberação deste. Essa confusão é identificada em questões postas tais como: seria a pandemia de Covid-19 'um evento' de CF/FM? A resposta inafastável só pode ser uma: depende. De um lado, depende da análise dos efeitos do fato, como se verá a seguir. De outro, depende da causação do evento. Neste âmbito, há conexão com a culpa". FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui.Acesso em 15 ago. 2020. 7- SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos: Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 09 mai. 2020. 8- Vide: FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui. Acesso em 15 ago. 2020. 9- Em sentido análogo: "(...) suponhamos que um incorporador, em um específico empreendimento, tenha comprovado que a Covid-19 impactou aquela obra por 90 dias, e por conta disso, o imóvel somente ficou disponível para entrega 40 dias depois de vencido o prazo de tolerância. Leia-se: o termo pactuado se venceu, e não há mora do incorporador." ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 17 de setembro de 2020. 10- Nesse sentido: "Ordem é o começo de tudo. Saber que o sistema jurídico não elegeu o caso fortuito como gatilho para o reequilíbrio de um contrato é o primeiro passo para estudar e discutir questões mais profundas." ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 16 ago. 2020. 11- Nesse mesmo sentido: "Em qualquer circunstância, as medidas adotadas pelo devedor serão relevantíssimas para a aplicação da excludente. É o caso concreto que definirá tanto essa aplicação quanto os seus efeitos." FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Ocorrência de caso fortuito e força maior como hipótese de isenção, mitigação e da execução de certos deveres.Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Acesso em 16 ago. 2020.
Diversas matérias, ao noticiarem o desfecho do Resp 1.778.522-SP (2018/0294465-9)1, de 04/06/2020, apontaram que o STJ teria decidido 'ser legal a cobrança de despesas condominiais mais elevadas para apartamentos maiores'2. No entanto, não nos parece ter sido essa a ratio decidendi3 do julgado, a despeito de esta correlação entre tamanho e valor da quota condominial ter sido feita no acórdão. No caso concreto, os proprietários da unidade de cobertura pleitearam, sem sucesso4 - em todas as instâncias -, a declaração de nulidade da cláusula de convenção condominial ou de decisão de assembleia de condomínio que prevê o pagamento em dobro ou a maior da cota condominial da unidade de cobertura, haja vista que a respectiva convenção estabelece como critério de rateio das despesas ordinárias a fração ideal e que, à unidade da cobertura, é atribuída 20% (vinte por cento) da fração ideal do terreno, correspondente ao dobro das demais (fração ideal de dez por cento do terreno, para cada uma das demais). A parte autora da referida ação pretendia, portanto, afastar a aplicação da cláusula condominial com base em suposta violação do princípio da isonomia, bem como porque tal situação geraria enriquecimento sem causa, haja vista que o rateio de despesas seria desproporcional. Nessa linha, entre outros argumentos, os autores alegam que a cobertura não gera - exceto pelo valor da água da piscina - gasto adicional ao condomínio e que a taxa condominial se refere a custos de manutenção, melhorias, obras e contraprestação de serviços a que todos os moradores têm direito. Em apertada síntese, o fundamento das decisões foi que a forma de cálculo de divisão das despesas condominiais é realizada, nos termos da convenção de condomínio5, na proporção da fração ideal e que tal forma de rateio é legal, nos termos dos artigos 12 da lei 4.591/646 e 1.336 do Código Civil7. Não temos dúvidas de que a disputa foi decidida no sentido correto. Ocorre que, diferentemente do que as matérias mencionadas no início deste artigo anunciaram, o STJ, assim como as instâncias inferiores, não decidiu que a cobrança de despesas condominiais tem ou deve ter correlação com o tamanho da unidade autônoma, mas sim que a cobrança pode ser feita com base na fração ideal do terreno, independentemente, portanto, do tamanho da unidade autônoma. A diferença pode ser muito sutil e muitos leitores poderão não notar qualquer distinção, mas entendemos ser pertinente destacar que o Resp 1.778.522-SP e julgados anteriores não estabeleceram uma correlação necessária entre tamanho da unidade e valor da quota condominial e, por sua vez, que seria devida a cobrança a maior de unidades de cobertura. Ao menos, não nos parece ser essa a interpretação correta da lei e da jurisprudência. Vejamos a conclusão da decisão de 1ª instância, sendo esta, no nosso entender, a ratio decidendi deste caso: Em suma, não se vislumbra qualquer ilegalidade na cláusula da convenção de condomínio que prevê o rateio das despesas na proporção da fração ideal, de cada condômino, apurada a partir da metragem de cada unidade autônoma, tão pouco na Assembleia Geral Ordinária que decidiu por manter o critério adotado pela convenção8. Da mesma forma, o colegiado da 2ª instância decidiu que: Nesta senda, não há que se falar em invalidade do critério de cobrança da taxa condominial da cobertura, eis que com respaldo na convenção do condomínio e na legislação de regência9. Por fim, a 3ª Turma do STJ seguiu linha similar: Nesse cenário, se a convenção de condomínio estipula o rateio das despesas com base na fração ideal do imóvel - caso dos autos -, inexiste violação de dispositivo de lei federal. De fato, unidades com frações maiores, de acordo com a previsão do citado art. 1.336, I, do CC/2002, pagarão taxa com valor superior às demais unidades com frações menores. A despeito dos fundamentos acima expostos estarem corretos - pagamento conforme a fração ideal é legal e quanto maior for a fração, maior será a cobrança de despesa condominial -, há um equívoco dos tribunais ao considerarem, conforme constou no referido acórdão de 2ª instância, que "a fração ideal é a proporção que cada apartamento tem no empreendimento, ou seja, tudo o que for construído e estiver dentro do terreno, assim, quanto maior for a unidade, maior será a fração ideal" (grifo nosso). Ora, o artigo 1.336 do Código Civil10 apenas menciona que a cobrança será feita conforme a fração ideal do terreno ou outra forma prevista em convenção, a ser livremente estipulada pelos condôminos (o que costuma ser feito pela incorporadora e mantido pelos adquirentes). Entendemos - sem pretender adentrar esse assunto, que demandaria estudo específico, para além, portanto, do escopo deste artigo - que essa forma deve ser equânime, proporcional, razoável e não abusiva, entre outros requisitos. Pode-se citar como tais critérios válidos de rateio aqueles listados por Pedro Avvad em sua obra Condomínio Edilício e transcritos no próprio Resp 1.778.522, a saber: "a) proporcional à fração ideal do terreno, o mais usual porque a lei recomenda na ausência de qualquer definição na convenção; b) pelo número de unidades, o mais simples de todos, mas cabível, apenas, quando todas as unidades forem iguais e com a mesma destinação; c) proporcional à área do imóvel, podendo adotar-se, como indicador, a área útil ou a área construída, critério esse recomendável, a nosso juízo, se houver, no condomínio, as unidades com diferentes áreas, mas se tiverem todas a mesma destinação; d) pelo critério de utilização que divide as despesas proporcionalmente à capacidade ou possibilidade de utilização dos serviços por cada unidade, segundo o qual paga mais quem usa, ou pode usar mais (...); e) proporcional ao valor de cada unidade em relação ao valor total da edificação; e f) critério misto, utilizando-se dois ou mais critérios, aproveitando-se, em geral, o da proporcionalidade às áreas". Percebe-se, assim, que existe um entendimento equivocado pelos tribunais brasileiros acerca do significado11 e, especialmente, de como é calculada a fração ideal, pois nos mencionados julgados considerou-se que a fração ideal seria obtida com base no tamanho do imóvel, pressupondo que unidades maiores possuiriam fração ideal maior, o que não é verdade. Como muito bem sinalizou André Abelha, em artigo denominado "O Invencível mito da fração ideal na incorporação imobiliária", de março de 2018, "ao contrário do que muitos supõem, a fração ideal não tem, juridicamente, relação com o tamanho da unidade imobiliária"12. O referido autor explica que, a despeito de, na prática, as incorporadoras utilizarem o conceito de "coeficiente de proporcionalidade"13 para cálculo das frações ideais das unidades autônomas, não existe qualquer obrigação legal neste sentido. Esse mito foi mais uma vez repetido e fortalecido no Resp 1.778.522-SP! Desta feita, a ratio decidendi dos julgados referidos acima deve ser que a cobrança com base na fração ideal é legal, o que apenas ratifica o já disposto de forma expressa no art. 1.336, I do Código Civil. No caso concreto, isso significa que a unidade da cobertura pagará contribuição duas vezes maior que as demais unidades, já que esta possui o dobro da fração ideal das demais unidades, mas não porque possui o dobro da metragem (ainda que seja este o caso). Em outras palavras, mesmo que a unidade de cobertura tivesse metragem quadrada igual às demais unidades, a fração ideal poderia ser maior por diversos critérios, conforme acima exposto, fazendo com que a cobrança de despesa condominial fosse superior, ainda que isso possa parecer "injusto" sob a perspectiva de que a utilização e desgaste do condomínio atrelado a uma unidade de metragem maior - seja de cobertura ou não - é idêntica às demais unidades, senão menor, haja vista que a cobertura muitas vezes dispõe de área de lazer privativa que as outras unidades não possuem. A nosso ver, a cobrança deveria, em regra, ser igual para todas as unidades, salvo se algo justificar que a utilização do condomínio, por motivos objetivos, vinculados à natureza e função de uma unidade autônoma - e não subjetivos, isto é, não atrelados ao perfil e preferências pessoais dos ocupantes de determinada unidade -, tal como, por exemplo, loja comercial em edifício de uso misto que não irá fazer uso, por exemplo, de porteiro, elevador e áreas de lazer do condomínio, tenha utilização reduzida do condomínio e, por isto, faça jus a ter despesa condominial inferior às demais unidades. Destaca-se que apenas "entendemos" que "deveria" ser feita desta forma, porque não há qualquer exigência legal neste sentido. Ademais, cabe notar que nada impede que a cobrança esteja, simplesmente, atrelada à fração ideal e esta, por sua vez, não tenha qualquer relação perceptível com o tamanho, custo de construção ou valor de determinada unidade autônoma ou a sua utilização do condomínio, haja vista que a fração ideal não possui forma de cálculo prevista em lei, ainda que exista uma praxe, do mercado, de calculá-la tomando por base o coeficiente de proporcionalidade. Se eventual cálculo de fração ideal veio a ser realizado sem qualquer fundamento lógico - como tamanho, custo de construção, valor ou utilização do condomínio, antes referidos - e, por isto, pode ser questionado judicialmente, é outra discussão, para além deste curto artigo, mas certo é que o litígio judicial objeto do Recurso Especial ora sob análise não tratou disto, pois no caso concreto a fração ideal atribuída à cobertura era o dobro das demais, provavelmente porque o cálculo da fração ideal foi realizado tendo por base o tamanho e/ou custo-valor da referida unidade autônoma e, portanto, tinha fundamento lógico. Nesse ponto, repisa-se: discordemos ou não da cobrança de despesa condominial com base na fração ideal e não com base na utilização que seus proprietários fazem do condomínio - que na maior parte dos casos é idêntica às demais unidades, sejam maiores ou menores -, a lei previu essa forma de cálculo, que prevalecerá sempre que não for determinada forma diversa. Portanto, salvo se esta forma de rateio for tida como ilícita e o artigo considerado inconstitucional, a cobrança com base em fração ideal é válida. Nessa linha, vale notar que jurisprudência tem afastado qualquer alegação de ilicitude da cobrança de despesas condominiais com base na fração ideal, conforme precedentes citados no próprio julgado de primeira instância antes referido14. Ademais, o Resp 541.317-RS15, citado no próprio Resp 1.778.522, dispôs que é lícito a convenção prever critério igualitário de despesas condominiais, afirmando que "os custos, em sua maior parte, não são proporcionais aos tamanhos das unidades, mas das áreas comuns, cujos responsabilidade e aproveitamento são de todos os condôminos indistintamente". (sic) Conforme já exposto, nos alinhamos com a ratio decidendi do julgado referido no parágrafo acima, discordando, portanto, da doutrina e jurisprudência que dispõe que um apartamento com o dobro de área pagará o dobro no rateio de despesas. Isso é autorizado pelo ordenamento, desde que esse critério de cálculo esteja expressamente previsto na convenção, - o que nunca ocorre, na prática - ou na premissa de que a fração ideal do terreno reflete a área ou valor do imóvel e não, portanto, como mera premissa de que apartamento maior deverá pagar despesa condominial maior. As duas situações mais comuns, na prática, de cálculo da despesa condominial são as seguintes: (i) a previsão na forma da lei, baseada na fração ideal; e (ii) a previsão baseada na igualdade de cobrança entre as unidades, valendo cada unidade como representativa de uma quota, independentemente do seu tamanho ou valor. Por esta razão merece crítica a afirmação - ainda que não seja ratio decidenti do julgado (e sim um obiter dictum16) - de que unidades de cobertura devem pagar quota condominial maior porque no local da cobertura poderiam ter sido construídas mais unidades, no caso, duas ao invés de uma17. No caso concreto, objeto do Recurso Especial sob análise, pelo que se depreende dos julgados publicados, havia apenas "unidades tipo" (de igual metragem) e a cobertura, mas se fosse o caso de um empreendimento com unidades de tamanhos diversos, não faria sentido prever o pagamento de quota condominial superior apenas para a cobertura, pois toda unidade de metragem superior a outras unidades menores deveria ter, proporcionalmente, maior fração de rateio que aquela atribuída às unidades menores. Estar-se-ia, neste caso, criando uma regra de cobrança de despesa condominial tendo por base o tamanho da unidade, no pressuposto de que no lugar de toda unidade maior poderia ser construído uma ou mais unidades menores, não se limitando tal regra, portanto, à cobertura. Esse não deve ser, contudo, o racional para definir se uma unidade deve ou não pagar maior quota condominial. Primeiramente, deve ser analisado o critério previsto em convenção. Segundo, deve ser analisado se esse critério seria, sob a perspectiva constitucional, tutelável, de forma a afastar, excepcionalmente, a sua aplicação em caso de não ter merecedor de tutela. Sobre este segundo ponto acima colocado, no nosso sentir, bem como nos termos da jurisprudência analisada, não merece prosperar o argumento de que haveria enriquecimento sem causa por força de divisão diferenciada no pagamento de despesas condominiais, seja com base na fração ideal de cada unidade ou de outro critério previsto em convenção, pois, ainda que se discorde do critério adotado por não considerá-lo equânime, conforme já abordado, a divisão decorre de previsão contratual, expressamente prevista em lei, o que afasta, portanto, a suposta ausência de causa. Em conclusão: não se pode afirmar que o STJ validou tese no sentido de ser a cobrança de despesa condominial superior para unidades de metragem superior, mas sim que, tão somente, validou a cobrança baseada na fração ideal, e que, no caso concreto, por disposição da própria convenção, tinha fração ideal superior às demais e, portanto, cobrança em valor superior (o dobro das demais), possivelmente por se tratar de unidade de cobertura com área e valor superiores, ainda que a fração ideal não tenha que ter qualquer correlação com o tamanho ou valor da unidade autônoma. Esse artigo pretendeu, portanto, oferecer visão crítica18 sobre determinadas ponderações da Terceira Turma STJ no Resp 1.778.522-SP e das respectivas instâncias inferiores, notadamente sobre o conceito equivocado de fração ideal, buscando alertar para o risco de a doutrina e outros tribunais depreenderem dos referidos julgados que: (i) a fração ideal estaria ligada à área ou valor do imóvel, o que não procede, ainda que, na prática, isso seja extremamente comum por uma prática do mercado; e (ii) apartamentos maiores devem ter contribuição condominial maior por força do seu tamanho, o que também não procede, pois isto dependerá, necessariamente, de previsão expressa, neste sentido, na convenção de condomínio ou de a fração ideal ter sido calculada com base no tamanho e/ou valor do imóvel, o que não é mandatório. *Cristiano O. S. B. Schiller é mestre em Construction Law & Dispute Resolution pela King's College London. Especializado em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Advogado. __________ 1 Resp 1.778.522-SP (2018/0294465-9). Relator. Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. Julgado: 2/6/2020. DJe: 4/6/2020.  2 Vide os seguintes títulos de matérias: "É legal a cobrança de taxa de condomínio mais alta para apartamento maior"; "É legal cobrança maior de condomínio para cobertura com dobro de tamanho dos outros imóveis"; "Não há ilegalidade na taxa de condomínio mais alta para apartamento com fração ideal maior", todas acessadas em 6/9/2020.  3 Expressão em latim que significa a "razão de decidir", correspondente aos fundamentos e à tese jurídica formulados na decisão: "Ora chamado de fundamentos determinantes, ora de entendimento firmado, mas que por comodidade, reunimos sob a expressão ratio decidendi, vem a ser os argumentos principais sem os quais a decisão não teria o mesmo resultado, ou seja, os argumentos que podem ser considerados imprescindíveis". (José Miguel Garcia Medina In Moreira de Paula, Jônatas Luiz; Ribas Maristela Silva Fagundes. Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 19, n. 1, p. 75-85, jan./jun. 2016. Disponível aqui).  4 Os autores perderam em 1ª instância (Foro de Guarujá, 2ª Vara Cível) e, em 2ª instância, por unanimidade de votos, tanto perante a 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (relatoria de Dimas Rubens Fonseca) como perante a Terceira Turma do STJ.  5 Nos termos da decisão de 1ª instância: "pretendem os autores realizar pagamentos similares aos valores pagos pelos demais condôminos, sob o fundamento de que suas despesas são equivalentes. Contudo, razão não lhes assiste. Isto pois, o artigo 3° da convenção condominial preconiza que o rateio das despesas condominiais será realizado 'proporcionalmente à fração ideal de cada unidade autônoma (fl. 41), nesse sentido: "Artigo 3°. A cada apartamento corresponde uma fração ideal do terreno e das partes e coisas comuns, que será observada para a fixação de quota com que cada condômino deverá contribuir para as despesas de condomínio"."  6 "Art. 12. Cada condômino concorrerá nas despesas do condomínio, recolhendo, nos prazos previstos na convenção, a quota-parte que lhe couber em rateio. § 1º Salvo disposição em contrário na Convenção, a fixação da quota no rateio corresponderá à fração ideal do terreno de cada unidade".  7 "Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção".  8 TJSP. Processo nº. 1006823-27.2016.8.26.0223. 2ª Vara Cível de Guarujá. Juiz Auxiliar Leonardo de Mello Gonçalves. Data do Julgamento: 8/8/2017.  9 TJSP. Apelação nº. 1006823-27.2016.8.26.0223. Relator: Dimas Rubens Fonseca. 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Data do Julgamento: 28/3/2018.  10 Vide inteiro teor do artigo na nota 8, acima.  11 Podemos defini-la como sendo a participação ou titularidade do proprietário/condômino na totalidade do terreno sobre o qual aderiram as benfeitorias que compõe as áreas comuns e privativas do empreendimento imobiliário.  12 Disponível aqui. Último acesso em 06/09/2020.  13 Nos termos do item 3.14 da NBR 12.721, o coeficiente de proporcionalidade "é a proporção entre a área equivalente em área de custo padrão total da unidade autônoma e a área equivalente em área de custo padrão global da edificação". Em complemento, "o coeficiente de proporcionalidade é um dado virtual, não métrico, mas atrelado ao valor de custo da unidade. Ele é obtido pela divisão da área de custo equivalente da unidade com o custo total do empreendimento". Último acesso em 6/9/2020).  14 Vide alguns dos procedentes: "AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ARTIGO 544DO CPC/1973) - AÇÃO DE COBRANÇA DE TAXA CONDOMINIAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DOS RÉUS. (...). 2. A ausência de enfrentamento das teses relacionadas aos princípios da isonomia e boa-fé, não obstante a oposição de embargos de declaração, impede o acesso à instância especial, porquanto não preenchido o requisito do prequestionamento, nos termos da súmula 211 do STJ. 3. Nos termos do art. 1.336, inciso I, do Código Civil, é dever do condômino "contribuir para as despesas do condomínio, na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário da convenção". 4. Consoante a jurisprudência desta Corte, é obrigatória a observância do critério de rateio das despesas condominiais expressamente previsto na respectiva convenção do condomínio, especialmente quando o critério eleito é justamente aquele previsto como regra geral para as hipóteses em que ausente tal estipulação. Precedentes. 5. Estando o acórdão recorrido em harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, incide a Súmula nº 83 desta Corte, aplicável por ambas as alíneas autorizadoras.6. Agravo interno desprovido." (AgInt no AREsp 816.278/MG, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/11/2016. DJe 18/11/2016).   "RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE ASSEMBLEIA. ALTERAÇÃO DA CONVENÇÃO CONDOMINIAL. RESPEITO AO QUORUM LEGAL. RATEIO POR FRAÇÃO IDEAL. 1. É legítima a escolha por 2/3 dos condôminos reunidos em assembleia da forma de rateio de despesas condominiais na proporção da fração ideal, conforme assegurado pelo art. 1.336, I, do Código Civil. 2. Tendo em vista a natureza estatutária da convenção de condomínio, não há falar em violação do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito (REsp n. 1.447.223/RS)."3. Recurso especial conhecido em parte e desprovido." (REsp 1458404/RS, Rel. Ministro João Otávio de Noronha. Terceira Turma. Julgado em 07/06/2016. DJe 13/09/2016).   APELAÇÃO CÍVEL DESPESAS CONDOMINIAIS RATEIO MENSAL. Legítimo o pagamento de valor superior pelos condôminos do apartamento 'cobertura'. Proporção da área útil. Divisão feita com base nas frações ideais. Ausência de violação aos princípios da isonomia e proporcionalidade. Previsão expressa na Convenção do Condomínio e respectivas Atas das Assembleias. Precedentes. Sentença mantida RECURSO DESPROVIDO. " (TJSP. Apelação 1003795-57.2015.8.26.0006; Relator(a): Ana Catarina Strauch; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VI - Penha de França - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/06/2016; Data de Registro: 17/06/2016)." (Grifos nossos)  15 Resp 541.317-RS (2003/0064425-4). Relator. Cesar Asfor Rocha. Quarta Turma. Julgado: 09/09/2003. DJe: 28/10/2003.  16 Expressão que corresponde à parte da decisão que é incidental e dispensável, não criando um precedente.  17 Assim constou do julgado: "Também não se pode perder de vista que um apartamento maior pode ocupar o espaço correspondente a uma ou mais unidades imobiliárias no mesmo condomínio. Diante disso, se a construtora/incorporadora, em vez de edificar apartamentos maiores, como ocorre normalmente com as coberturas, usasse essa mesma área para duas ou mais unidades, cada uma delas pagaria individualmente a cota condominial". 18 Cabe à doutrina fazer uma crítica vigorosa da jurisprudência, não se limitando a apenas reportá-la, visando assim corrigir rumos e aperfeiçoar a prática jurídica. Neste sentido, vide opinião de Jan Peter Schmidt, nas palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior: "Em suas conclusões, Jan Peter Schmidt repassou seus principais argumentos e fez uma conclamação a que a doutrina assumisse um papel mais vigoroso e efetivo na crítica jurisprudencial, ao invés de se limitar a narrações descritivas sobre o resultado de julgados. Segundo ele, muito se fala sobre problemas de fundamentação dos julgados, mas pouco se escreve, o que deixa sem repercussão esse tipo de expediente". (Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Boa-fé não pode ser uma varinha de condão nas lições de Jan Peter Schmidt. Conjur. 10/12/2014. Disponível aqui).
1. Introdução A expectativa de vida do brasileiro vem aumentando muito nas últimas décadas. De acordo com dados colhidos em 2018 pelo IBGE, alcançará 76,3 anos de idade, sendo que em algumas regiões como o Estado de Santa Catariana alcança a provecta idade de 79,7 anos como média1. Essa constatação estatística é animadora, mas deve vir acompanhada de medidas que criem condições para que o idoso, além de quantidade maior de vida, tenha também qualidade melhor de vida. Esse texto não se propõe a apontar a realidade da nossa desigualdade social e econômica e a diminuta renda per capita, em regra, do povo brasileiro, seja em decorrência da remuneração que se paga como salário-mínimo, assim como o desdobramento dos rendimentos quando se passa para a aposentadoria para a grande maioria dos brasileiros. Aqui, apenas de modo muito tímido com vistas a incitar uma possível reflexão, gostaríamos de convidar o leitor à reflexão sobre a possibilidade de que com o aprimoramento do Projeto de Lei do Senado 52/2018 que dispõe sobre a "hipoteca reversa", de autoria do ilustre Senador Paulo Bauer (PSDB-SC), pode se tornar possível melhorar a situação financeira do idoso maior de 60 anos que tenha conseguido adquirir um imóvel durante a sua vida, possibilitando que extraia frutos do seu patrimônio a partir da alienação fiduciária do bem a determinada instituição financeira que, nos termos do contrato celebrado, ficaria como devedora fiduciante reversa de determinada importância pactuada a ser percebida mensalmente pelo credor fiduciário reverso, titularizando a posse indireta e a propriedade resolúvel do bem, permanecendo o idoso na posse direta do imóvel em caráter vitalício. Pretendemos, dessarte, defender que a adoção da garantia real prevista na citada lei projetada, com os devidos ajustes, pode contribuir para uma qualidade de vida com maior plenitude em favor do idoso que logrou adquirir um bem imóvel em sua vida, possibilitando uma autonomia financeira condizente com as suas necessidades e expectativas legítimas no inverno da sua existência. 2. A concepção da hipoteca reversa A hipoteca reversa é uma modalidade de direito real de garantia pelo qual uma pessoa, em regra, idosa, grava o seu imóvel em favor do credor com o escopo de receber determinada importância em dinheiro, entregues pelo mutuante de uma só vez ou em parcelas periódicas, valor que somente deverá ser quitado após o falecimento ou alienação do imóvel por parte do mutuário. Essa espécie de hipoteca é utilizada em outros países como, por exemplo, nos Estados Unidos, recebendo a denominação de reverse mortgage e funciona como um produto econômico oferecido pelas instituições financeiras que tem como destinatário a pessoa idosa a fim de que esta, com o notório aumento da expectativa de vida, reúna condições de extrair do patrimônio imobiliário eventualmente granjeado uma liquidez monetária apta a atribuir melhor qualidade de vida sem que com isso a pessoa tenha que se desfazer do patrimônio em vida. Serve como complemento da aposentadoria para o devedor e para o credor há a vantagem de considerável segurança jurídica com relação à satisfação da recuperação do ativo emprestado por dois motivos: 1) a morte é evento futuro e certo e com relação aos idosos, estatisticamente, é mais próxima; 2) os bens imóveis são dotados de perenidade se comparados com os móveis. Aplicam-se, no caso, todas as características da hipoteca com a peculiaridade de que a satisfação do crédito dar-se-á após o momento da morte do devedor ou mesmo da alienação, voluntária ou forçada, do bem onerado. Com o evento morte faz-se um acerto de contas em relação à importância que o credor emprestou e o valor do imóvel afetado ao cumprimento da obrigação. Enquanto a hipoteca clássica, muitas vezes, é feita para facilitar a aquisição de um imóvel para fins de moradia e, conforme vai sendo pago o financiamento, o bem, em proporção ao adimplemento, se incorpora no patrimônio livre do adquirente, nessa modalidade, ainda atípica no Brasil, os recursos entregues ao devedor, se não forem pagos, levarão a perda futura do imóvel que não atingirá a esfera jurídica do devedor, mas dos seus pretensos herdeiros que como sabido possuem sobre a herança apenas expectativa de direito. Sendo o ato de constrição oneroso, sequer há que se falar em preservação da legítima dos herdeiros necessários. Sem lei federal regulamentando, não vemos como ser possível a efetivação dessa modalidade de hipoteca em razão da insegurança jurídica que desmotiva o empreendimento, a especialização é diferente do modelo estabelecido no Código Civil, além das dificuldades de ordem registral para a eficácia da garantia, pois como cediço a tipicidade norteia tal ramo do direito. Em se tratando de constrição imobiliária, se a pessoa for casada, indispensável será a outorga uxória, salvo se o regime for o da separação absoluta de bens (art. 1647, I, CC). Importa ainda esclarecer, nesse passo, a dificuldade que a hipoteca reversa terá para subsistir frente ao direito real de habitação que compete ao cônjuge ou companheiro sobrevivente que somente pode ser renunciado após a sua efetivação com a morte, conforme prevê o enunciado 271 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal/STJ: "Art. 1.831: O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança.". De efeito, tal proteção que encontra fundamento na proteção da entidade familiar e no direito à moradia é dotada de interesse público, sendo irrenunciável antes de sua efetivação. 3. O projeto de lei do Senado 52/2018 Tramita no Congresso Nacional o PLS 52/2018 que acrescenta o Capítulo II-B, à lei 9.514/97, para dispor sobre a hipoteca reversa de coisa imóvel, de autoria do Senador Paulo Bauer e que, na realidade, cuida de uma nova modalidade de um conhecido instituto que poderia ser chamado de alienação fiduciária em garantia reversa ou simplesmente a compreensão da utilização da propriedade fiduciária sendo utilizada como garantia de uma interessante operação de crédito. O referido projeto de lei visa alterar a lei 9514/97 que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário e institui a alienação fiduciária de coisa imóvel no direito brasileiro. Nessa toada, o artigo 33-G da lei projetada prescreve que "a hipoteca reversa regulada por esta lei é o negócio jurídico pelo qual o credor hipotecário reverso, com o escopo de garantia contrata a transferência ao devedor hipotecário reverso da propriedade resolúvel de coisa imóvel". Na realidade, utiliza-se a expressão que se tornou clássica no direito estrangeiro - hipoteca reversa - para definir o acerto jurídico da alienação fiduciária em garantia, o que não é conveniente. Não se justifica esse proceder equivocado do legislador em desrespeito a categorias jurídicas com estruturas e funções que não se confundem. O tramitar do projeto deverá corrigir essa dubiedade que macula os bons propósitos da presente iniciativa legislativa. A palavra "reversa" significa que algo se encontra em posição diversa daquela tida como normal. Há uma circunstância que leva o intérprete a crer na existência de um caráter diverso, contrário, àquilo que se espera. Na questão aqui analisada não é diferente, pois pelo projeto de lei a instituição financeira é que será devedora do valor acordado para ser utilizado pela pessoa idosa que em contrapartida, com escopo de garantir o cumprimento da obrigação contraída, transferirá a propriedade em caráter resolúvel (art. 1359, CC). Fundamental é que fique claro que o acerto negocial se verifica com a circunstância de a instituição financeira se tornar devedora, possuidora indireta e proprietária resolúvel do imóvel e o tomador do empréstimo permanece como possuidor direto da coisa até o seu passamento, ou seja, exercerá o idoso todos os poderes de uso e fruição do imóvel até a sua morte, assegurando-se a ele o piso vital mínimo da moradia se for o caso. O objeto do instituto é o bem imóvel e exige-se que o tomador do empréstimo seja proprietário, ainda que em decorrência de enfiteuse ou direito real de superfície, podendo ainda ser usuário, por concessão especial para fins de moradia ou a outro título, desde que o direito alienável e, se for temporário, a concessão do empréstimo e a consequente garantia deverá respeitar o período de vigência do direito real. O artigo 33-H prescreve que a propriedade fiduciária reversa se constitui com o registro do título constitutivo no cartório do registro de imóveis competente como sói acontecer com os direitos reais imobiliários, pecando o parágrafo segundo do dispositivo por estabelecer a indisponibilidade do bem por parte do tomador do empréstimo, salvo consentimento da instituição financeira que figura como proprietário resolúvel do bem gravado. Ora, pela publicidade do registro imobiliário e a característica decorrente da aderência e correspondente sequela dos direitos reais de garantia, eventual adquirente receberá o bem com o gravame que garante a dívida perante a instituição financeira credora. A alienação sem o consentimento do credor pode extinguir o empréstimo a partir da notificação ao credor acerca da realização do negócio jurídico, mas não se justifica a dependência desse assentimento para o exercício do poder de disposição do bem pelo credor, pois como sabido, a alienação à instituição financeira é apenas fiduciária com o objetivo de servir como garantia real da dívida. Pelo artigo 33-I, o contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: "I - o credor hipotecário reverso; II - o devedor hipotecário reverso; III - o valor do imóvel dado em garantia para a hipoteca reversa; IV - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa; V - o valor do pagamento mensal em benefício do credor hipotecário reverso, a taxa de juros e demais encargos incidentes; VI - a cláusula de constituição da propriedade hipotecária reversa, com a descrição do imóvel objeto da hipoteca reversa e a indicação do título e modo de aquisição; VII - a cláusula assegurando ao credor hipotecário reverso a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da hipoteca reversa; VIII - a cláusula de carência da hipoteca reversa assegurando aos herdeiros do imóvel hipotecado em reverso o direito de adquirir o imóvel por herança em caso de falecimento do credor hipotecário nos termos do § 4o deste artigo; IX - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; X - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 33-L". A cláusulas acima citadas são obrigatórias, sob pena de nulidade do negócio jurídico e têm a potencialidade de conferir ao instituto maior segurança jurídica em razão da transparência e da natureza de essencialidade de que se revestem tais disposições, cumprindo o comando normativo e principiológico do Código de Defesa do Consumidor com relação ao dever de informar (art. 6º, III, da lei 8.078/90). Por se tratar de uma espécie de fornecimento de oferta de crédito no mercado de consumo, amolda-se ao disposto no artigo 52 do estatuto consumerista, tão importante quanto por vezes esquecido, verbis: "No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:  I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;  II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; III - acréscimos legalmente previstos; IV - número e periodicidade das prestações; V - soma total a pagar, com e sem financiamento.  § 1° As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. § 2º É assegurado ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos". O conceito de idoso para fins de aplicação dessa lei é a pessoa com mais de 60 (sessenta) anos de idade. Nos termos do artigo 33-I, § 1º, "para a constituição da hipoteca reversa, o credor hipotecário reverso deve ser pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos". A norma projetada apresenta indisfarçável aspecto cogente com relação à idade mínima. Mantendo a concepção jus-filosófica dessa figura jurídica acima referida, o parágrafo segundo do artigo 33-I, § 3º, dispõe que o falecimento do devedor, comprovado por atestado de óbito configura o termo final para a reposição do empréstimo ou do crédito da hipoteca reversa. Se o credor falecer até cinco anos da celebração do contrato (art. 33-I, §4º), o imóvel será entregue aos herdeiros que herdarão também a dívida contraída pelo autor da herança, respondendo, por óbvio, nos limites desta (art. 1792, CC). Com a morte do credor fiduciário reverso (idoso) após o citado prazo legal, a propriedade se consolida nas mãos do devedor fiduciante reverso (instituição financeira) que, a partir desse momento deverá adotar algumas providências (art. 33-J, caput), sobre as quais se falará a seguir. A primeira é a de, no prazo de trinta dias a contar da data do falecimento do credor fiduciário reverso (melhor seria a partir do conhecimento), fornecer ao inventariante ou aos herdeiros em caso de não abertura do inventário, o termo de resolução do contrato, sob pena de multa em favor do espório, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, calculado sobre o valor principal da dívida. Submetido ao oficial do registro de imóveis o termo de resolução do contrato, este providenciará o registro do imóvel em nome da instituição financeira que figura como devedora fiduciante reversa. Por sua vez, o inventariante ou os seus herdeiros, contarão após a notificação do termo de resolução do contrato, com o prazo de trinta dias para retirar os bens que guarnecem o imóvel e levantar eventuais benfeitorias voluptuárias. O projeto de lei chama esse fato jurídico apriorístico decorrente da imediata incidência da condição resolutiva de "consolidação do domínio útil", talvez querendo indicar, o que é verdade, que os herdeiros ainda terão a oportunidade de trazer o imóvel dado em garantia para o espólio do falecido e isto se dará com o adimplemento da obrigação pecuniária deixada pelo falecido frente à instituição financeira. De acordo com os termos contratuais, se a dívida perante o banco vencer e não for paga pelos interessados, a propriedade se consolida definitivamente nas mãos do credor da obrigação pecuniária. O projetado artigo 33-K traz uma série de providências para que seja efetiva a notificação da dívida ao inventariante ou aos seus herdeiros a fim de que estes tenham a oportunidade de purgar a mora no Cartório do Registro de Imóveis, levando ao convalescimento do contrato de alienação fiduciária reversa que terá por efeito a possibilidade de recolhimento do bem alienado para o acervo hereditário deixado pelo falecido devedor. Outras regras podem ser anotadas como a que trata da proibição de o credor fiduciário reverso alugar o imóvel, o que não se justifica (art. 33-L), pois a fruição econômica do bem é dele que, a propósito, está obrigado a arcar com todas as obrigações que incidem sobre o imóvel, tais como impostos, taxas e despesas condominiais até a eventual imissão da posse em mãos do devedor fiduciante reverso (art. 33-M). Assim também, a norma que possibilita a cessão do crédito, objeto da propriedade fiduciária reversa, a terceiros e a do o credor (art. 33-N). 4. Ausência de determinação de venda do imóvel após a consolidação da propriedade fiduciária: grave omissão Peca o projeto de lei por não trazer, à moda da alienação fiduciária em garantia de imóvel clássica, determinação para a venda do imóvel de modo público de modo que os herdeiros possam fiscalizar a estrita satisfação do crédito com a devolução do que sobejar a fim de não se permitir a configuração de enriquecimento sem causa em desfavor do espólio do falecido devedor. Essa omissão pode conduzir ao entendimento de que na alienação fiduciária reversa que, se aprovada, contará com lei especial, é admitido o pacto comissório tido, corretamente, como nulo de pleno direito no artigo 1428 do Código Civil para todos os outros direitos reais de garantia, verbis: "é nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento". Pacto comissório no regime de garantias reais é a cláusula que autoriza o credor com garantia real a ficar imediatamente com a coisa se a dívida não for paga no vencimento2. A par de referendar a odiosa prática do enriquecimento sem causa, como adverte Pontes de Miranda, a permissão dessa prática coloca "o devedor à mercê de explorações usurárias"3 em detrimento dos legítimos interesses do devedor e da própria sociedade, uma vez que é totalmente possível que o bem dado em garantia supere o montante da dívida. Clóvis Beviláqua4 fundamenta a proibição na moral quando assevera que "a proteção do fraco em face da exploração gananciosa do argentário, que usa desse meio para extorquir do devedor por preço irrisório, o bem que este lhe dá em garantia do pagamento". Outra razão justificadora da proibição pode ser encontrada no princípio constitucional processual do devido processo legal, de vez que o artigo 5o, LIV, da CF veda a perda forçada de bens sem o devido processo legal. Concluindo, temos que para que o credor tenha a sua pretensão satisfeita, terá que executar a dívida e, após a observância dos requisitos legais presentes no processo de execução, receber apenas o seu crédito. O que sobejar deverá ser entregue ao devedor. Não se reveste de abusividade eventual norma especial que à semelhança do pa parágrafo único do artigo 1.428 do Código Civil possibilite que, após o vencimento da obrigação, o credor da prestação pecuniária aceite receber o bem objeto da garantia em pagamento. A hipótese seria de uma dação em pagamento, cuja natureza é a de ato negocial que enseja a extinção do pagamento mediante a entrega de objeto diverso do que era devido (arts. 356 a 359, CC). A despeito de não ser tecnicamente correto falar em vedação ao pacto comissório na alienação fiduciária em garantia tradicional, pois o bem é alienado, com escopo de garantia, exatamente para o credor5, não tendo sentido proibir que alguém fique com aquilo que já lhe pertence. No caso da propriedade fiduciária reversa, com a consolidação da propriedade após a morte do tomador de empréstimo da instituição financeira e o não pagamento da dívida pelos seus herdeiros, o bem passa a pertencer ao credor, a ensejar que na teoria perderia o sentido em se falar na vedação ao pacto comissório. Entretanto, pelos mesmos fins que animam a proibição no penhor, hipoteca e anticrese, na alienação fiduciária, o consolidar o domínio diante do inadimplemento, o credor é obrigado a alienar o bem a terceiro, amortizando a dívida com o produto da venda e devolvendo eventual saldo ao devedor. Não por outro motivo, o artigo 1365 do Código Civil6, ao tratar da propriedade fiduciária genérica estabelece que "é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta". Figurando como credor uma instituição financeira, o contrato se submeterá à incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e essa consolidação da propriedade sem prestação de contas, ofende a não mais poder princípios e regras desse ramo do direito, sendo digno de destaque que a pessoa idosa pode ser considerada hipervulnerável (art. 39, IV, lei 8.078/90). Registre-se que o artigo 53 da lei consumerista7 fulmina com a pena de nulidade absoluta a chamada cláusula de decaimento que de modo oblíquo e, portanto, em fraude à lei, pode acabar por se concretizar, na medida em que os herdeiros do idoso falecido poderão perder o imóvel gravado pelo autor da herança em razão da dívida deste. Evidente que aqui não se trata da vedação de perda de todas as prestações pagas em razão das que se deixou de pagar, mas pode ocorrer um prejuízo patrimonial significativo para o consumidor se a dívida não for quitada pelos herdeiros. Se o imóvel tiver um valor de um milhão de reais e a dívida for de cem mil reais? A consolidação da propriedade em mãos do credor ensejará enriquecimento sem causa e perda da propriedade sem o devido processo legal, pois como dito acima, a alienação se dá apenas com o escopo de garantia, tratando-se como se trata de negócio fiduciário8. É possível até que seja positivado, por opção legislativa, o denominado pacto marciano, no qual como salienta Moreira Alves9, "se o débito não for pago, a coisa oderá passar à propriedade plena do credor pelo seu justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiro". Ainda que não concordemos com tal pactuação em contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor10, somos obrigados a aceitar que em tese a questão merece discussão mais aprofundada, pois é da essência de tal pacto que não ocorra o enriquecimento sem causa a partir da busca do justo valor para o bem alienado fiduciariamente e o posterior acerto de contas justo e transparente entre credor e devedor. Não é possível juridicamente que a propriedade plena passe para as mãos da instituição financeira sem o exato equilíbrio no momento do pagamento forçado, evitando-se o possível enriquecimento sem causa. Permanecendo tal equívoco na aprovação da lei, ainda que o idoso já esteja falecido por ocasião da perda peremptória do imóvel, é importante lembrar que o momento jurídico a ser considerado para a análise da validade do negócio é o da contratação. Falta de boa fé objetiva, transparência, locupletamento, desequilíbrio contratual em desfavor do vulnerável são alguns pontos que devem ser discutidos perante o Poder Judiciário.  5. Notas conclusivas  Deve ser resolvido o equívoco da nomenclatura do projeto que denomina de hipoteca reversa aquilo que define como alienação fiduciária em garantia reversa!!! Imperioso, igualmente, que se dê tratamento jurídico adequado à sensível questão do justo acerto de contas entre o valor da dívida deixada pelo falecido e a do imóvel gravado a fim de se evitar possível enriquecimento sem causa e apropriação do bem alheio sem o devido processo legal. Esta falha nos parece tão grave que ousamos afirmar que o esforço e os bons propósitos do projeto se perdem completamente, devendo ser recomendado realmente a sua não aprovação como indica pesquisa na página do Senado Federal do dia 22/08/2020. Sanadas as irregularidades acima e com as melhorias redacionais e de mérito que decorrem naturalmente do procedimento legislativo, temos que o instituto pode ser de grande valia para atribuir ao idoso maior autonomia e independência financeira e, por conseguinte, uma vida com mais qualidade e dignidade em cumprimento ao comando constitucional (art. 230) e do artigo 2º do Estatuto do Idoso, o qual preconiza que além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, ao idoso deve ser garantidas "todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.". Queremos encerrar esse estudo com uma passagem que colhemos de um estudo feito pela Federação Espírita do Paraná denominado "As Quatro Estações da Vida"11: "Enfim, um dia chega o inverno. A mais inquietante das estações. Muitos temem o inverno, como temem a velhice. É que esquecem a beleza misteriosa das paisagens cobertas de neve. Época de recolhimento? Em parte. O inverno é também a época do compartilhamento de experiências. Quem disse que a velhice é triste? Ela pode ser calorosa e feliz, como uma noite de inverno diante da lareira, na companhia dos seres amados. Velhice também pode ser chocolate quente, sorrisos gentis, leitura sossegada, generosidade com filhos e netos. Basta que não se deixe que o frio enregele a alma. Felizes seremos nós se aproveitarmos a beleza de cada estação. Da primavera levarmos pela vida inteira a espontaneidade e a alegria. Do verão, a leveza e a força de vontade. Do outono, a reflexão. Do inverno, a experiência que se compartilha com os seres amados". Oxalá que o aprimoramento do projeto alcance o seu nobre objetivo de colaborar para a efetividade da dignidade da pessoa idosa sem que se perca nos terrenos sombrios do abuso do direito e da usura. 6. Referências bibliográficas  1. ALVES, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973. 2. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. 3. CHALHUB, Melhim Namem.  Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 4. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055. 5. MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019. 6. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. 6. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; Simão, José Fernando; DELGADO, Mário; MELO, Marco Aurélio Bezerra. Código Civil Comentado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020. 8. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015. *Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor Titular de Direito Civil do IBMEC. Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). __________ 1 Disponível aqui. 2 Sobre o tema: MELO, Marco Aurélio Bezerra. Direito Civil. Coisas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2019, p. 429. 3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado, vol. 20. 5 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 30. 4 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Vol. 2. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 36. 5 CHALHUB, Melhim Namem.  Direitos Reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 373/375. 6 Ver nossos comentários ao dispositivo in Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência / Anderson Schreiber ... (et al.). 2. ed. - Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2020, p. 1043/1044. 7 Sobre o tema: TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 4ª ed. São Paulo: Método, 2015, p. 325-338; MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6ª ed. São Paulo; RT, 2011, p. 1040-1055. 8 Sobre a natureza de Negócio Fiduciário da transferência da propriedade na alienação fiduciária em garantia: SAAD, Renan Miguel. A Alienação Fiduciária Sobre Bens Imóveis. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 73-82. GOMES, Orlando.  Alienação Fiduciária em Garantia. 2ª ed. São Paulo: RT, 1971, p. 31-32. 9 Alves, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 127. 10 Enunciado 626, da VIII Jornada de Direito Civil do CJF/STJ: "Art. 1.428: Não afronta o art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede o da dívida)". 11 Disponível aqui. Acesso em: 22/8/2020.
1. A natureza jurídica do contrato built to suit O contrato built to suit é modelo de negócio jurídico em que o empreendedor imobiliário reforma ou edifica determinado imóvel sob medida ao ocupante e, finalizada a obra, cede o uso da edificação por período determinado1. Como se nota, algumas prestações obrigacionais estão presentes nessa modalidade contratual. Podemos dizer que o contrato built to suit sempre possuirá a prestação da locação, uma vez que haverá a cessão da fruição e uso da coisa (obrigação de dar), mediante remuneração. Da mesma forma, sempre haverá a prestação da empreitada (obrigação de fazer), porque o built to suit requer a realização de construção ou substancial reforma do imóvel que será cedido ao ocupante. Também poderá haver a prestação da compra e venda quando, por exemplo, o empreendedor adquire o imóvel onde será realizada a construção. Nesses termos, é possível imaginarmos: a) Empreitada + Locação = Built to Suit b) Compra e Venda + Empreitada + Locação = Built to suit No contrato built to suit, a prestação da locação não é referencial. As prestações da empreitada e, eventualmente, da compra e venda, também possuem extrema relevância. É justamente a somatória das prestações que faz surgir o built to suit. O contrato built to suit não é, portanto, contrato típico, porque a prestação de fazer decorrente da empreitada desnatura a tipicidade da locação. A prestação da locação não é tipo dominante, a nosso ver. Não é, portanto, mais locação e menos empreitada, mas, sim, locação e empreitada, o que justifica a atipicidade. Embora atípico, o contrato built to suit possui previsão na Lei do Inquilinato que, por sua vez, expressamente determina que "prevalecerão as condições livrememente pactuadas no contrato respectivo" (art. 54-A). Assim, nesse modelo de contrato, onde os contratantes normalmente são empresas, a alocação de riscos estabelecida no contrato deve ser respeitada pelo intérprete. O respeito às cláusulas do contrato built to suit é imprescindível para o negócio em si, considerando, por exemplo, os elevados riscos envolvidos ao empreendedor, que se obriga a construir imóveis imponentes, dada a promessa de remuneração ao longo dos próximos anos. Ademais, o respeito à alocação dos riscos envolvidos no contrato built to suit não decorre apenas da natureza jurídica desse contrato, mas, também, nos termos da Lei de Liberdade Econômica que, recentemente, alterou o Código Civil para determinar que, nos contratos civis e empresariais, deve o intérprete observar e respeitar a alocação de riscos definida pelas partes (art. 421-A, inciso II). 2. Built to suit e a revisão contratual. Em tempos pandêmicos, questão controversa é saber se os efeitos do coronavírus podem permitir ao ocupante de um imóvel em contrato built to suit a redução das parcelas mensais, ou seja, a revisão do contrato. Antes de avançarmos nesse tema, relevante relembrar que o empreendedor imobiliário, ao celebrar um contrato built to suit, está sujeito a maiores riscos do que o futuro ocupante. O empreendedor, responsável pela construção (ou substancial reforma), despenderá elevados recursos financeiros para desenvolver e entregar o imóvel. Recebido o imóvel, o ocupante também pagará uma elevada soma em dinheiro, mas de forma diluída ao longo dos próximos anos. O ocupante não remunera apenas a cessão do uso (obrigação de dar), mas, também, a construção do imóvel (obrigação de fazer). Em razão dos substanciais valores a que o empreendedor está sujeito para a construção do imóvel é que normalmente os contratos built to suit possuem elevada cláusula penal para o caso de denúncia antecipada do vínculo. Além disso, o artigo 54-A, § 1º, permite que os contratantes renunciem ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação. O objetivo é que o empreendedor, sujeito aos maiores riscos do contrato, tenha maior previsibilidade e segurança de que o valor prometido pelo ocupante pela remuneração do contrato, será pago ao longo dos próximos anos. Até porque, reitere-se, os riscos do ocupante (que não realiza investimentos para construir o imóvel) são substancialmente inferiores aos riscos do empreendedor. A ação revisional de aluguéis tem por fundamento ajustar a remuneração ao preço de mercado. Assim, a considerar a permissão à renúncia da ação revisional, ainda que a avaliação imobiliária determine que a remuneração mensal é elevada, o pacto dos contratantes é que se impõe, razão pela qual o valor não poderá ser alterado. Ainda que a disposição da lei permita às partes afastarem a ação revisional, resta saber se, em razão da pandemia, o ocupante do imóvel pode pleitear a redução da remuneração mensal (ainda que por curto período) não em decorrência de queda do valor de mercado locativo, mas das dificuldades impostas no cumprimento do contrato em decorrência dos efeitos da pandemia. Em artigo escrito em coautoria com José Fernando Simão2, tratando a respeito dos efeitos da pandemia do covid-19 nos contratos, destacamos que [..] fosse acolhida a ideia de que a dificuldade financeira superveniente autorizaria a revisão contratual, a segurança das relações jurídicas estaria ameaçada sobremaneira, e aniquilado estaria o princípio do pacta sunt servanda. Não há dúvidas de que o argumento da dificuldade econômica seria tese sedutora ao devedor que pretendesse inadimplir ou mesmo obter melhores condições da sua contraprestação obrigacional. A alegação de dificuldade financeira para o cumprimento da obrigação pecuniária, em nossa opinião, não pode ser o fundamento para a revisão do contrato. Contudo, reconhecemos a possibilidade de revisão do aluguel, em contratos de locação, quando o fundamento é a drástica alteração da base objetiva do negócio jurídico decorrente da pandemia com efeitos não previsíveis3. Assim, o fechamento do comércio, por exemplo, que impede o locatário utilizar a coisa, pode ser fundamento para a revisão. Mas é necessário atentar que, na locação, o aluguel remunera apenas a prestação referente à cessão do uso do imóvel. Já no contrato built to suit, o valor pago mensalmente tem por escopo remunerar não apenas a prestação da cessão do uso, mas, também, a construção do imóvel, prestação muitas vezes superior à primeira. Assim, a revisão da remuneração da prestação que é paga pelo ocupante requer maior atenção e cautela, pelo magistrado. Em nossa opinião, somente será possível a revisão do preço no contrato built to suit quando restar provado que o ocupante ficou impedido de utilizar o imóvel. Trata-se de situação excepcional, considerando que os imóveis construídos nesse tipo de operação, em sua maioria, são utilizados para farmácias, supermercados, centros de logísticas e assim por diante. Contudo, se o imóvel é uma academia, um prédio comercial, a alteração da base objetiva do negócio jurídico pode, excepcionalmente, ensejar a revisão do preço. Nessa hipótese, a revisão deve atentar que, no built to suit, a remuneração mensal tem por objetivo remunerar não apenas a cessão do uso, mas, sobretudo, a construção do imóvel. É por isso que, em nossa opinião, no contrato built to suit, a excepcional revisão deve buscar, primordialmente, o diferimento do pagamento ao longo do tempo e não a redução do valor da prestação. Imaginar que as premissas para a revisão do contrato built to suit são as mesmas para a revisão do contrato típico de locação é um enorme equívoco. Daí a necessidade de reafirmarmos que o contrato built to suit, por suas particularidades, riscos envolvidos e demais características, não se amolda ao contrato típico de locação. A atipicidade, como se vê, não é meramente uma discussão acadêmica. _________ 1 Segundo Rodrigo Leonardo Xavier, o o built to suit é um contrato em que um empreendedor se obriga a construir ou reformar um imóvel para adaptá-lo às necessidades específicas de um usuário que, por sua vez, receberá o direito ao uso e/ou fruição desse bem por determinado prazo, mediante o pagamento de uma contraprestação que engloba a remuneração pelo uso e, também, a restituição e retribuição do investimento realizado. (LEONARDO, Rodrigo Xavier. O contrato built to suit. In: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. t. IV. São Paulo: Revista dos Tribunais - Thomson Reuters, 2016, p. 421). 2 GOMIDE, Alexandre Junqueira; SIMÃO, José Fernando. Incorporação imobiliária: resolução/revisão dos contratos de promessa de compra e venda em tempos de pandemia. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 30 jul. 2020. 3 Nesse sentido, vide SIMÃO, José Fernando. Pandemia e locação - algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 29 jul. 2020. _________
Texto de autoria de Cesar Calo Peghini e Flávia Lara Vogel Domiciano Introdução O presente trabalho analisará a Lei n° 13.777 de 20 de dezembro de 2018, objetivando demonstrar as principais características da multipropriedade imobiliária e as controvérsias mais relevantes das disposições específicas relativas às unidades autônomas de condomínios edilícios. Embora mais conhecida no ramo hoteleiro, a propriedade fracionada pelo tempo tem alcançado cada vez mais diferentes setores, como comércios, bens móveis, unidades residenciais e os condomínios edilícios, os quais daremos ênfase, seguindo a dinâmica de uma economia compartilhada. Assim, como questionamentos, teremos: Quando a norma estipula deliberação por maioria absoluta de condôminos, se trataria de metade dos votos mais um ou seria correspondente a dois terços dos votos? O titular poderá contratar uma empresa de intercâmbio para sua unidade de tempo num condomínio edilício, mesmo se a convenção não mencionar a permissão? As sanções serão aplicadas imediatamente do conhecimento da infração pelo titular do bem, seja ele periódico ou não? A obrigatoriedade de um administrador profissional para condomínios edilícios com sistema multiproprietário fere os princípios gerais da atividade econômica? Quem poderá fazer parte do quórum da deliberação de adjudicação e alienação da fração de tempo atingida pela inadimplência? Seriam constitucionais as restrições para possibilidade da renúncia dos direitos de multipropriedade? Qual o motivo de não poder renunciar em face de outro condômino? Para o desenvolvimento desta obra, utilizamos de referências bibliográficas e dos métodos dedutivo e indutivo, por meio de leis, julgados e doutrinas, visando soluções mais precisas das problemáticas apresentadas. Surgimento do Instituto de Multipropriedade (Time Sharing) O surgimento do Instituto de Multipropriedade, comumente conhecido como Timeshare ou Time Sharing ("compartilhamento de tempo", em tradução livre) , se deu no final da década de sessenta na França , ganhando espaço na Europa como um todo e também nos Estados Unidos na tentativa, pelos empreendedores, de proporcionar uma oportunidade facilitada de aquisição de imóveis destinados principalmente ao período de férias, permitindo que diferentes pessoas (multiproprietários) desfrutem de um mesmo bem, separada cada utilização por períodos de tempo previamente estabelecidos durante todo o ano. Sequencialmente, o modelo de multipropriedade também se baseou na tendência mundial do sharing economy ("economia compartilhada", em tradução livre), impulsionada nos anos noventa, pelo qual, tem como uma das características, converter bens de acesso restrito a pessoas com maior capital econômico, como por exemplo, carros de luxo ou uma segunda residência de férias, "em bens abundantes (servindo a múltiplos usuários ou mesmo múltiplos donos) e, portanto, de mais amplo acesso" (SECOVI-SP, 2019, p. 32). Embora o multiproprietário não possa usar irrestritamente a coisa a qualquer tempo, estando sujeito às regras temporais e acordos preestabelecidos, com o compartilhamento terá acesso a determinado bem com menor investimento de seu capital. Genericamente, Gustavo Tepedino (1993, p.1) definiu a multipropriedade como "relação jurídica de aproveitamento econômico de bem móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam cada qual, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua". Deste modo, por avaliarem o maior aproveitamento da coisa, suas consequências empreendedoras, econômicas e sociais, o estudo da possibilidade de se adquirir a fração de tempo de um determinado bem passou a ser considerada cada vez mais relevante por doutrinadores e legisladores, de modo que foram desenvolvidas diferentes modalidades de multipropriedade. Clique aqui para conferir o artigo na íntegra. ____________ *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela PUC/SP (2017). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito FADISP (2009). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Européia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, Toledo/ES (2018). Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino ITE (2010). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito - EPD (2008). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2005). Professor da Rede de Ensino Luis Flávio Gomes - LFG; Professor visitante em cursos de pós-graduação lato sensu. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Experiencia na área de Direito, com ênfase em Direito Privado, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito da Infância e Juventude e Processo Civil. **Flávia Lara Vogel Domiciano é advogada, graduada em Direito pela PUC-Campinas (2016); Extensão Universitária em Contratos e Comércio Internacional pela PUC-Campinas (2017) e pós-graduanda em Direito Imobiliário Aplicado pela Escola Paulista de Direito (2020).
Texto de autoria de André Abelha Houston, we have a problem. Preocupação no mercado imobiliário1. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu as centrais eletrônicas de registro de imóveis ("Centrais") de cobrar quaisquer valores dos usuários finais das suas plataformas. O que está em jogo? Para entendermos, precisamos voltar brevemente no tempo2. Parece uma eternidade, mas o público em geral só começou a ter acesso à internet em 1996. Ainda estávamos em 1998, e os paulistas já saíam na frente na prestação de serviços registrais eletrônicos, quando a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (ARISP) disponibilizou um serviço integrado para pedidos de certidões na Capital. Era o pontapé inicial. Mais de uma década se passou sem grandes novidades, até que em 2009, a Lei nº 11.977 trouxe a previsão oficial para a implementação, no Brasil, do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, para interconectar os cartórios e viabilizar serviços registrais em elevado padrão técnico. A Lei, no art. 38, p. único, previu que os cartórios deveriam disponibilizar "serviços de recepção de títulos e de fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico". Seis anos depois, o CNJ editou o Provimento 47/2015, cujo artigo 3º estabelece que o intercâmbio de documentos eletrônicos e informações ficaria a cargo das Centrais a serem criadas nas 27 Unidades Federativas, uma única em cada local. O mesmo Provimento determinou: (i) que as Centrais seriam criadas pelos próprios registradores, e reguladas por ato da Corregedoria local; (ii) onde não fosse possível ou conveniente a criação da Central local, poderia ser utilizada a Central de outro Estado ou do DF; e (iii) que as Centrais deveriam se coordenar para universalizar o acesso ao tráfego eletrônico em todo o País. Como o marco normativo da universalização do acesso ao registro eletrônico estava finalmente posto, as principais entidades registrais3 comprometeram-se, em 2016, a criar a Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis4. Esse esforço resultou na criação do portal (Portal E-Registradores)5, que disponibiliza diversos serviços virtuais: Resumidamente, as Centrais fornecem os seguintes serviços eletrônicos:  Serviços enquadrados na Lei 11.977/2009: (i) E-protocolo, para a recepção de títulos; (ii) Certidões digitais, para o fornecimento de matrículas; e (iii) Pesquisa de bens, para a busca de bens imóveis em nome da pessoa física ou jurídica pesquisada;  Serviços corporativos: (i) Intimações e consolidação da propriedade fiduciária, centralizando e padronizando o envio de documentos pelas instituições financeiras; (ii) Pesquisa prévia, que fornece relatório das matrículas associadas a uma pessoa; (iii) Matrícula on-line, que permite a consulta instantânea dos dados de uma matrícula; (iv) Monitor registral, que monitora as ocorrências de uma matrícula em determinado período, avisando o usuário; (v) Repositório confiável de documento eletrônico, que permite o armazenamento de documentos para atos registrais, tais como contratos sociais, certidões, procurações e outros, evitando nova apresentação a cada pedido de registro ou averbação; e  Serviços gratuitos: (i) Central Nacional de Indisponibilidade, que distribui uma ordem de indisponibilidade para os cartórios ligados à plataforma; (ii) Penhora on-line, que permite ao Judiciário e entidades beneficiadas pela gratuidade o protocolo de ordens de penhora, arresto e sequestro, e ainda pesquisa de bens e obtenção de matrículas; e (iii) Ofício eletrônico, utilizado por órgãos federais, autarquias e entes públicos, evitando a necessidade de uso de papel, impressão e postagem. Atualmente já estão integradas ao Portal as Centrais do Distrito Federal (DF) e dos Estados indicados em verde: Hoje o sistema já contabiliza mais de um bilhão de atos. Enquanto escrevo, a soma é de 1.006.297.4166 de atos, e ao ser lido por você esse número já cresceu bastante. Recapitulando: 2009, a previsão do SREI e dos serviços eletrônicos; 2015, o Provimento CNJ 47 prevendo as Centrais; 2016, criou-se a Coordenação Nacional das Centrais e implementou-se o portal e-Registradores. Chega o ano de 2017, e com ele a Lei nº 13.465, uma norma multitemática que tratou de regularização fundiária e muito mais, e ali no meio estabeleceu que o SREI seria implementado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), este regulado pelo CNJ. O parágrafo 6º do art. 76 previu que os serviços eletrônicos seriam disponibilizados sem ônus "ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo federal, ao Ministério Público, aos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e aos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos". O Provimento CNJ nº 89, de 18 de dezembro de 2019, também tratou do SREI e do ONR, na linha da Lei nº 13.465/17. E, no espírito da Lei 11.977/09 e do Provimento CNJ 47/2015, reforçou o papel das Centrais. Entre as novidades, vieram o Código Nacional de Matrícula (CNM) e o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC), o qual, nos termos do art. 16, p. único, é "uma plataforma eletrônica centralizada que recepciona as solicitações de serviços apresentadas pelos usuários remotos e as distribui às serventias competentes". Já em 2020, o CNJ, em decisão plenária do dia 23 de junho7, ratificou a liminar concedida pela Corregedoria Nacional de Justiça, que proibira a cobrança de taxas e contribuições por serviços prestados pelas Centrais, sob o fundamento de que "não cabe a nenhuma central cartorária do País efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal", e que "a atividade extrajudicial é um serviço público, exercido em caráter privado, cujos valores dos emolumentos e das taxas cartorárias pressupõem a prévia existência de lei estadual ou distrital". Essa decisão motivou, no dia seguinte, a edição do Provimento CNJ nº 107, de 24 de junho de 2020, o qual, proibiu "a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços prestados pelas centrais registrais e notariais, de todo o território nacional, ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal". De acordo com o Provimento: (i) os custos de manutenção, gestão e aprimoramento dos serviços prestados pelas centrais devem ser ressarcidos pelos delegatários, interinos e interventores vinculados as entidades associativas coordenadoras; (ii) as entidades associativas podem custear tais despesas, em nome de seus associados; e (iii) as Corregedorias locais devem inserir as Centrais em seu calendário de correições e inspeções, com a finalidade de verificar a observância das normas vigentes que lhe são afetas. A própria Corregedoria Nacional de Justiça, ao tomar conhecimento, pela imprensa8, de notícias sobre a inclusão de custos cartorários nos financiamentos imobiliários da Caixa Econômica Federal, proferiu decisão no dia 3 de julho, já com base no Provimento CNJ 107/2020, suspendendo a contratação, pelas Centrais, de qualquer contrato ou convênio com a Caixa para a inclusão de custos operacionais. As Centrais alegam que o recente posicionamento do CNJ contraria o entendimento pacificado do próprio órgão, que por várias vezes teria reconhecido expressamente a legalidade de tal cobrança, para reembolso dos custos. Ainda segundo as Centrais, se mantida a proibição, é preciso criar uma alternativa para o custeio dos serviços, pois: (i) os registradores somente estão obrigados a implementar plataformas individuais em suas próprias serventias para se integrarem ao sistema, não tendo que custear os serviços interoperacionais das Centrais; (ii) associações privadas não podem ratear o custeio entre os registradores não-associados, nem podem impedir que os registradores associados deixem de sê-lo; e (iii) ainda que prevaleça o Provimento CNJ 107/2020, sua interpretação e aplicação não pode abarcar os Serviços Corporativos, que são facultativos, e ofertados como forma de tornar o acesso à informação ainda mais eficiente. Este é o cenário, caro leitor. Urge que se encontre uma solução que mantenha ativos os serviços que, em seu conjunto, representaram verdadeiro avanço para a celeridade e segurança dos negócios imobiliários. _____________ 1 Confira matéria veiculada no Valor Econômica, com o título "Fim de plataforma eletrônica preocupa incorporadoras". Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.2 Este não é um artigo opinativo, e visa apenas a ordenar os fatos para sua melhor compreensão.3 O compromisso foi firmado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB), com a participação da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) e de associações do DF e de 10 Estados: DF, SP, TO, AM, SE, MS, MG, PA, GO, RS e PA.4 O Comitê Gestor da Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis é formado por membros do IRIB, da ANOREG/BR e das entidades locais que já possuam Central em funcionamento.5 Com a denominação de Portal de Integração dos Registradores de Imóveis do Brasil.6 Informação disponível em clique aqui. Acesso em 19.ago.2020.7 Nos autos do Pedido de Providência nº. 0003703-65.2020.2.00.0000, em que foi requerido o Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. Íntegra disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.8 A decisão citou a notícia veiculada pelo UOL, com a manchete "Caixa vai incluir imposto e custo cartorário em financiamento de imóvel". Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.
Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima Durante a pandemia do COVID-19, o mercado imobiliário foi gravemente impactado. Estudos do SECOVI/SP, apresentados em webinário realizado pela Comissão Especial de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da OAB/RJ1 demonstraram, por exemplo, quedas significativas no valor de compra de imóveis e no valor de alugueis. Em outra ocasião, em seminário da ABRAINC em que se debatia o futuro do mercado imobiliário após a pandemia, a consultoria BRAIN concluiu pelo aumento da desistência da intenção de aquisição de imóveis, em especial pela incerteza da duração da pandemia2. Igualmente, no cenário das locações estratégicas, setor especialmente relevante para securitização de créditos oriundos de operações imobiliárias, o grande volume de demandas revisionais (neste momento referidas sem maior apego técnico) colocou em risco a credibilidade desse tipo de operação. Exemplo disso foi a comunicação de fato relevante por parte da administradora do Fundo de Investimento Imobiliário Rio Bravo Renda Varejo - FII, comunicando aos cotistas a existência de ações judiciais buscando a revisão dos contratos de locação não-residencial firmados3. Nessa conturbada e fluida conjuntura, a operação dos Fundos de Investimento Imobiliário ("FIIs"), objeto da presente reflexão, é afetada com consequências para sua performance e conduzindo muitas vezes à insatisfação dos seus cotistas. Para entender um pouco melhor a posição e temor dos cotistas de FII, é preciso lembrar que por se tratarem de condomínios fechados (o que será esclarecido adiante), não há por parte deles direito a resgatar os aportes realizados. Assim, nos termos do art. 2º da Lei nº 8.668/93, passam a depender da liquidez das cotas para recuperar os valores investidos em caso de pretensão de saída4. Os FIIs são entes despersonalizados representativos da comunhão de recursos, sob regime condominial , destinados à aplicação em operações imobiliárias, cujas cotas são captadas por meio de sistema de distribuição fiscalizado pela Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"). E, assim, o acervo de operações imobiliárias (CRIs, CCIs, imóveis para locação, imóveis para venda e etc), que será objeto das operações do FII nos termos de seu regulamento e das decisões da Assembleia Geral, é adquirido pela instituição administradora sob o regime fiduciário6, o que, inclusive, torna altamente controversa a aplicabilidade da Lei nº 8.078/90 ("CDC"), nas suas relações e conflitos recíprocos. Nessa linha, os FIIs são obrigatoriamente geridos por entidades administradoras autorizadas pela CVM e com estrutura e lastro econômico condizente (art. 5º da Lei nº 8.668/93), a fim de dar a máxima garantia de eficiência e segurança aos investidores. Como dito anteriormente, a queda de performance dos FIIs tem se tornado, com cada vez mais frequência, alvo de questionamentos de cotistas, que, no início do primeiro semestre de 2020, aguardavam um novo "boom" do mercado imobiliário em decorrência da baixa dos juros7, o que não ocorreu. A tônica destes questionamentos, que vão desde solicitações nas ouvidorias dos FIIs até consultas a advogados, diz respeito à responsabilização civil dos administradores pela baixa performance e por eventuais perdas financeiras experimentadas pelos cotistas. Como é de notório conhecimento, para restar caracterizado o dever de indenizar é preciso a demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil, a priori, por parte do lesado, o que, nos casos dos FIIs, se apresenta como um desafio à parte. A primeira indagação que pode vir à mente é acerca da incidência do CDC. Inicialmente, a incidência parece ser afastável. Isto porque a administradora dos FIIs, fiduciária de seu acervo, cumpre papel definido no art. 8º da Lei nº 8.668/93, respondendo somente nos casos de má-gestão, gestão temerária, conflito de interesse ou violação do regulamento ou das decisões da Assembleia Geral, sem prejuízo da demonstração dos demais elementos da responsabilidade civil. Neste diapasão, o legislador, na norma especial, fez clara opção de eleger a culpa como nexo de imputação da responsabilidade civil da administradora, característica da responsabilidade subjetiva, sendo este entendimento ratificado pela CVM8. Obviamente, esta culpa não se investigaria na psiquê humana para dali vislumbrar uma agenda nociva, omissão orquestrada ou despreparo técnico consciente, mas sim a chamada culpa normativa, originada do descumprimento de um standard de diligência razoável9, pautada na observação do mercado e de suas práticas. Esta leitura se adequa com as recentes alterações introduzidas na Lei nº 10.406/2002 ("CC") pela Lei nº 13.874/2019, conhecida "Lei de Liberdade Econômica", trazendo como elemento interpretativo do negócio jurídico, e dos atos lícitos em geral, os "usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio", nos termos do art. 113, §1º, II. Assim, a regulação da CVM atua como verdadeiro repositório do acervo técnico e deontológico da atuação das administradoras dos FIIs10, sem prejuízo das conclusões decorrentes do caso concreto que se possam verificar, nos termos do art. 375 da Lei nº 13.105/2015. Sendo certo que a gestão dos FIIs é feita por meio de escolhas estratégicas do administrador, é sobre esta tomada de decisão que se debruça o debate da responsabilidade. Feitas estas considerações, ter-se-ia afastado o CDC diante da especialidade da legislação sobre FIIs e sua temporalidade (mais recente que o diploma consumerista). Some-se a isso o fato de que, naqueles FIIs de distribuição de esforço restrito11, a qualificação dos cotistas afastaria ainda mais a incidência do diploma protetivo12, entendimento esse também já capitaneado pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ")13. Ocorre que, em geral, o STJ entende pela incidência do CDC nos casos que envolvam investidores de varejo. Analisando diversos julgados, percebe-se a formação de entendimento acerca da caraterização de relação de consumo entre os cotistas não-profissionais (imensa maioria) e as administradoras de Fundos de Investimento em geral14, aí incluídos os FIIs. Todavia, a aplicabilidade do CDC não importa em cheque em branco para a responsabilização. Antes de aprofundar esta temática, é preciso destacar que o STJ, ao passo que aplica do CDC, entende a obrigação das administradoras dos Fundos de Investimento como de meio15, aqui entendida como o dever de "empregar todas as técnicas, recursos e esforços ao alcance do contratado, ainda que esse não seja alcançado"16. Neste ponto, necessário tecer alguns comentários. A ideia de obrigação de meio, via de regra, diz respeito à responsabilidade civil do profissional liberal, sendo termo recorrente em julgados e textos doutrinários sobre a responsabilidade médica, por exemplo. Contudo, a dicotomia meio/resultado vem observando seu entardecer na boa doutrina, que a vê como incompleta e insuficiente17. Na hipótese dos FIIs isto é ainda mais contraditório, uma vez que, como dito, a função de administração deve ser exercida por "banco múltiplo com carteira de investimento ou com carteira de crédito imobiliário, banco de investimento, sociedade de crédito imobiliário, sociedade corretora ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários, ou outras entidades legalmente equiparadas", o que atrairia ainda mais a responsabilidade objetiva, esculpida no art. 14 do CDC. Contudo, nestes casos concretos, o que ocorre é uma investigação subjetiva, a fim de verificar uma falta do standard comportamental e de conformidade daquele tipo de atuação da administradora, justificado, talvez, na aplicação dialogada do art. 8º da Lei nº 8.668/93. Nesse controvertido cenário, constroem-se os julgados no sentido de que cabe à administradora tão somente agir com diligência e não necessariamente alcançar resultados/rentabilidade, afastando assim sua responsabilidade. A afirmativa é verdadeira, porém é preciso esclarecer melhor da estruturação a hipótese de não-responsabilização. Não se pode negar que o objetivo comum entre cotistas e administradoras é a rentabilidade ou o resultado positivo dos investimentos realizados, não sendo razoável presumir que alguém, por motivos lícitos, pretenda um negócio desvantajoso ou economicamente inviável. Todavia, este objetivo comum não se traduz integralmente como a obrigação avençada pelas partes. O dever de gestão dos FIIs se traduz, na verdade, na tomada de decisões estratégicas, de acordo com o perfil do fundo, seu regulamento, deliberações da Assembleia Geral e as boas práticas do mercado. Neste atuar, percebe-se que o risco dessas escolhas é parte integrante do negócio; é o que possibilita a escalada de rentabilidade; é da natureza e essência dos FIIs. Partindo da premissa da aplicabilidade do CDC, esposada pelo STJ, o que se teria, em verdade, é, para determinar a responsabilidade civil das administradoras por danos sofridos por investidores em vista da tomada de decisão, a verificação da abrangência do risco do serviço prestado pela administradora aos cotistas do fundo e correlação causal entre a escolha estratégica e o resultado danoso aos cotistas, em outras palavras, o nexo de imputação e o nexo causalidade. Apenas para fins de adequação teórica, inseridos na lógica responsabilidade objetiva trazida pelo CDC, diferencia-se o nexo de imputação do nexo de causalidade, na medida em que o primeiro importará na avaliação, qualificação e individualização do risco produzido pela atividade para fins de responsabilização, ao passo que o segundo importa na averiguação de uma causa etiológica entre fato e dano18, levando igualmente à responsabilidade. Sobre o nexo de imputação, é preciso lembrar que, por sua natureza, os FIIs são operações de risco e, portanto, é natural e aceitável não alcançar os resultados almejados sempre. Ademais, existe certa transitoriedade nos resultados danosos da tomada de decisão. Assim, a decisão estratégica que pode produzir prejuízo hoje, pode ser altamente lucrativa amanhã. Essa essência que conta com determinada álea mais agressiva, somada a própria incerteza no resultado da tomada de decisão, produz para os FIIs um interessante conceito: a insegurança ou risco tolerável. E aqui não se está a vislumbrar uma assunção declarada de risco por parte do consumidor investidor, o que poderia caracterizar uma abusiva cláusula de não-indenizar. O que se tem é a constatação da natureza do negócio em si, sendo o risco integrante de sua lógica econômica. A afirmação acima está completamente em sintonia com as disposições do art. 14 do CDC, que em seu §1º, II, afirma que não se caracteriza o defeito do serviço o que levaria à responsabilidade do fornecedor, se os riscos são esperados, integrando a experiência do consumidor e, portanto, não integrantes o nexo de imputação da responsabilidade civil. Neste diapasão, é preciso diferenciar, nos FIIs, a relação da administradora com os cotistas dos serviços em geral. O risco do insucesso da decisão é exatamente o que possibilita sua alta chance de êxito. Nesse sentido, o dano oriundo do risco tolerável não importa na responsabilização objetiva da administradora, desafiando investigação acerca da sua culpa, sob um espectro técnico/objetivo, deslocando a responsabilidade civil em direção ao art. 8º da 8.668/93. Em outras palavras, dentro do universo risco tolerável, para fins de responsabilidade, investigar-se-ia a adoção, por parte da administradora, das boas práticas do mercado e da diligência exigível para o tipo de operação, lembrando do fundamental papel do administrador dos Fundos de Investimento em geral de buscar investimentos melhores e mais seguros19. Feitas as ponderações acima, sem prejuízo da posição a ser adotada acerca da aplicação ou não do CDC, a aquisição de cotas de FII posiciona o cotista no locus de assunção e tolerância de certos riscos, incluídos a impossibilidade de alcançar a rentabilidade pretendida, especialmente em tempos de pandemia. Noutro giro, sobre o nexo de causalidade, necessário pontuar que, para que ocorra a responsabilização, mesmo diante de sua modalidade objetiva, é imprescindível a demonstração da correlação causal entre o fato provocado pelo agente e o dano sofrido. Nesta reflexão, o nexo causal será analisado a partir do art. 403 do CC, que, na realidade, expressa a noção de grau de relevância do fato em relação ao dano, devendo-se buscar sempre uma causa de interrupção do nexo anterior, tornando o fato avaliado o protagonista do dano investigado. O que se tem é uma apuração probabilística, em que se terá somente causa adequada aquele que comumente ou tipicamente produz determinado resultado. Caso contrário, não se caracteriza o nexo causal e, por consequência, a responsabilidade20. Não sem querer, esta teoria passou a ser conhecida como teoria da causalidade adequada, utilizada com entusiasmo pelo STJ21. Inclusive, é preciso lembrar que, de acordo com o grau de relevância da causa para o evento danoso, é possível a redução do quantum indenizatório, nos termos do art. 944 do CC. Isto se faz imprescindível, pois em tempos de pandemia, a tomada de decisão das administradoras, via de regra, visa mitigar prejuízos já amargados, oriundos de causas alienígenas, que protagonizam exclusivamente a probabilidade do acontecimento danoso, qual seja a baixa rentabilidade ou a baixa liquidez das cotas. Nessa toada, pode-se vislumbrar também que a decisão possa de fato influenciar em eventuais prejuízos, mas, por sua pequena relevância para o acontecimento, permitir-se-ia vislumbrar a redução de eventual quantum indenizatório. A pandemia criou cenários nos quais nem mesmo as mais conservadoras estratégias são capazes de frear perdas financeiras, quedas de performance e retrações de mercado, não podendo ser simplesmente imputadas à administradora. Em verdade, se apresentam verdadeiros casos fortuitos ou eventos de força maior que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC, excluem a responsabilidade civil ante o rompimento do nexo causal. Em linha de conclusão, as distorções mercadológicas introduzidas pela pandemia do COVID-19 não parecem, a priori, passíveis de induzir a responsabilização das administradoras dos FIIs. A fim de se manter a higidez desse relevante modelo de negócio, não se pode permitir que demandas indenizatórias em face das administradoras FIIs passem a servir como mecanismos travestidos de resgate de cotas ou manobras de grupos minoritários de cotistas, alvoroçados pelas sequelas da pandemia em curso. Conforme exposto, para eventual responsabilização é preciso promover verificação pormenorizada das condutas e decisões estratégicas da administradora, constando-se sua conformidade, ou não, ao regulamento, às decisões da Assembleia de Cotistas, às práticas de mercado e às diretrizes da CVM. Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Sócio do Bragança & Feijó - Sociedade de Advogados. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário do IAB. Vice-presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ. Membro da IBRADIM. Professor (convidado) da UERJ e da UCAM. ____________ 1 Disponível em: clique aqui.2 Disponível em: clique aqui.3 Disponível em: clique aqui.4 Vale lembrar que diversos FIIs optam pela contratação de formadores de mercado para viabilizar a liquidez das cotas, conforme pelo art. 31-A da Instrução CVM nº 472. 5 Esta posição vem sendo bastante criticada na doutrina especializada, que entende os FIIs como tipos societários. Conferir: FREITAS, Ricardo de Santos. Natureza jurídica dos Fundos de Investimento. São Paulo: Quartier Latim, 2005.6 Sobre este ponto, vale transcrever o art. 1.368-A da Lei nº 10.406/2002: "Art. 1.368-B. A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor".7 Disponível em: clique aqui.8 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador RJ nº 22/2005, Dir. Relator. Marcos Barbosa Pinto, julgado em 26 de agosto de 2008. Disponível em:. Acesso em:26/07/2020.9 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais, vol. 854, dez./2006. Pág. 9110 O art. 30 da Instrução CVM nº 472 esclarece diversos deveres do administrador do FII, o que pode auxiliar na concepção do standard comportamental para a verificação da culpa normativa. Disponível em: clique aqui.11 As ofertas públicas distribuídas com esforços restritos deverão ser destinadas exclusivamente a investidores profissionais, conforme definido em regulamentação específica, e intermediadas por integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, nos termos da Instrução CVM nº 476.12 EIZIRIK, Nelson. Temas de Direito Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 54713 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.187.365/RO. Relator: Luis Felipe Salomão. Julgado em 22 de maio de 2014. Disponível em:. Acesso em: 26/07/2020.14 Idem.15 (STJ - REsp: 799241 RJ 2005/0119523-6, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 14/08/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/02/2013 RSTJ vol. 229 p. 450)16 LEOCÁDIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BARBOSA BRANCO, Luizella Giardino. Responsabilidade Civil na questão da qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005.17 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade Civil. 4ª ed. Rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 81918 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Ed. RT, 2007. Pág. 20219 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das obrigações 2ª parte. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.pág. 6720 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002. Pág. 240.21 STJ - REsp: 1808079 PR 2019/0098045-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 06/08/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/08/2019; STJ - REsp: 1637611 RJ 2016/0261016-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 22/08/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/08/2017; STJ - REsp: 1535888 MG 2015/0130964-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 16/05/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/05/2017