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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na ADPF 828-DF analisou o quarto pedido de extensão da suspensão (que terminaria no dia 31/12/2021, segundo a Lei 14.126/2.021) das reintegrações de posse. Esta quarta decisão judicial não adiou mais uma vez (como se fizera anteriormente) o termo final fixado pelo Legislativo e promulgado pelo Executivo, mas estabeleceu um regime para a sua efetivação, o que por si só já motiva sérios debates doutrinários. A par desses debates, que os doutos solverão, a decisão do Eminente Ministro Barroso procurou cuidadosamente atentar à Resolução 90/2.021 do CNJ, que recomendou "aos órgãos do Poder Judiciário, a adoção de cautelas na solução dos conflitos sobre desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)".  A decisão, ainda, buscou base legal no artigo 565, do CPC que determina que antes de ser analisado o requerimento de liminar de desocupação, seja designada uma audiência de mediação nos litígios coletivos por posse de imóvel ocorridos há mais de ano e dia. Ou seja, a decisão se mostrou bastante precavida no que tange aos ocupantes das terras.  No mais, a decisão impôs aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais a imediata instalação de comissões focadas nos conflitos fundiários que possam subsidiar os juízes, incumbindo-as: (1) da elaboração da estratégia para a retomada das decisões de reintegração de posse que estão suspensas; (2) de realizarem inspeções judiciais e audiências de mediação antes de qualquer decisão para desocupação, mesmo nos casos em que já tenham sido expedidos os mandados de reintegração. Como se vê, expressou-se o intento de que tudo se realize com muita cautela, muita atenção às situações em foco. Ninguém dirá, creio, que esse intento não seja louvável. Mas, creio que seja válido pontuar alguns aspectos: (1) O silêncio acerca dos direitos dos proprietários cujas terras foram invadidas, sequer se falando de seus prejuízos e de suas situações fáticas, bastante sensíveis;  (2) Os seus direitos são claros, previstos na Constituição Federal (art.5º - XXII) e no Código Civil (art. 1228) e haveriam de ser concretizados segundo a legislação processual;  (3) Essa desatenção perdura nesta quarta oportunidade e, até aqui, esses proprietários estão sem as suas propriedades e sem  indenizações, malgrado não se tenha, em alguns casos, sequer analisado a invasão e fixado as suas características e consequências, o que já deveria ter sido efetivado a teor da lei e, em outros casos, já esteja superada a fase legalmente prevista e já exista ordem de reintegração expedida (isto é, questão já analisada será revista); (4) Mediações (muito conveniente e validamente previstas na lei - e isso é indubitável) se fazem por certo período e em certas condições e, essas circunstâncias já se esvaíram: fosse possível algum acordo, já teria ocorrido nesse ano que correu. Isso é relevante: a mediação é feita, mas não é lógico ou obrigatório nem esperar resultado indefinidamente, nem que chegue a alguma solução: não chegar também é um fim! E aí, cabe ao Judiciário julgar; (5) Em todo o Brasil há carência de estrutura para a realização de mediações e conciliações, o dizem milhares de decisões judiciais desde 2016, o que enevoa o futuro das providências previstas nesta decisão, não obstante a determinação enfática de criação de Comissões de Conflitos Fundiários nos tribunais: conseguirão nossos Tribunais, já às voltas com tanta demandas e necessidades, investir e operar esses novos trabalhos?; (6) Pelo objetivo declarado (mediar, passado tanto tempo) e pela necessidade estrutural (instalação e operação das comissões), nada acena em prol da solução almejada;  (7) A perdurar a invasão remanesce, por igual, a violação ao nosso arcabouço constitucional e legal, o que jamais é admissível até porque o Legislativo, ao qual cabe eventual alteração da norma, não sinalizou qualquer mudança, mesmo instado com veemência na decisão liminar proferida aos 31/12/2021. Vai daí, a louvável cautela judiciária, ao se alongar quase indefinidamente no tempo, poderá se transmudar em injustiça e ilegalidade, penso. Por fim, merece realce nesta importante decisão, notar que voltou a viger o regime legal para os despejos, isto é, voltamos ao império da Lei das Locações naquelas situações em que fora afastada (estava suspensa a aplicação da Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX). E essa volta merece aplauso: afinal, exatamente a vigência dessa trintenária lei é que pacificou - como nunca se vira no país - as locações urbanas, a indicar, qual uma bússola, qual é o bom Norte: a vigência de leis justas, bem elaboradas na forma, na origem e no fundo, traz a efetiva paz social.   _____________ Jaques Bushatsky é advogado, foi Procurador do Estado de São Paulo e Juiz do TIT/SP por dois mandatos e chefiou a Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Presidente da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, fundador e diretor da MDDI - Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Autor da obra "Aspectos Principais do Aluguel Comercial" e coautor da obra "Locação Ponto a Ponto" publicada pelo IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
A intitulada Norma de Desempenho (NBR 15.575) trouxe imensurável avanço para o estabelecimento de prazos de garantia na construção civil e um norte para a responsabilidade civil na construção civil. Mas nem todos ainda estão cientes de que o Anexo D (Informativo), da Parte 1, da Norma de Desempenho, será integralmente substituído pelo "Projeto ABNT NBR 17.710 - Edificações - Garantias - Prazos recomendados e diretrizes", que se encontra em consulta nacional até o próximo dia 9/11/22. Os prazos mínimos de garantia para os elementos, componentes e sistemas do edifício habitacional estão em debate pela comunidade técnica, que apresentará novas diretrizes para o estabelecimento de condições e prazos de garantia. A NBR 17.710 ampliará as recomendações e descreverá uma gama maior de elementos e prazos. Em suma, é possível verificar a preocupação da comunidade técnica em tratar de forma mais exaustiva o tema dos prazos de garantia, com vistas a suprir as lacunas que surgiram a partir da abordagem do assunto pela NBR 15.575. De maneira mais didática, o texto em projeto dividiu os prazos de garantia em três tabelas. Na Tabela 1, foram tratados os prazos de garantia elencados pela legislação como obrigatórios. Tratam, basicamente, de falhas de solidez e segurança relacionadas às contenções, fundações, estruturas (sustentação) e estruturas de pisos e sistemas de cobertura. Em princípio, a Tabela 1 adota como legal o prazo de cinco anos, repetindo o prazo previsto no art. 618, do Código Civil, como atualmente vigente. Por sua vez, a Tabela 2 estabelece os prazos de garantia tecnicamente recomendados para os sistemas, componentes e equipamentos abrangidos pelas garantias oferecidas pelo incorporador, construtor ou prestador de serviço de construção. Nela foram tratadas, de maneira bem detalhada, os prazos recomendados para os diversos sistemas de piso, de vedações, de revestimentos, de esquadrias, muros, telhamento, hidráulicos, elétricos, dentre outros. A NBR 17.710 traz ainda uma terceira Tabela, que lista exemplificativamente as falhas aparentes, que devem ser identificadas já no ato da entrega da edificação. Tratando-se de falhas que podem ser facilmente confundidas com situações causadas pelo próprio usuário, a Tabela 3 enumera situações mais corriqueiras, com a preocupação de estabelecer critérios mais objetivos para a aferição da responsabilidade do construtor. Embora deixe claro tratar-se de rol meramente exemplificativo, percebe-se uma preocupação maior com falhas de acabamento que, de fato, podem facilmente ter origem no uso normal do imóvel, como lascamentos e manchas em pinturas e revestimentos, e que podem estar presentes em diversos sistemas da edificação, como em pisos, vedações, forros, sistemas hidráulicos, etc. Os interessados em contribuir devem participar da consulta pública e enviar sugestões ou críticas ao texto até o dia 9/11/22, diretamente pelo site da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT. O texto da NBR 17.710 também pode ser obtido no site do SindusconPR.
Por que devemos respeitar as regras? A questão é examinada na obra clássica do Professor Frederick Schauer, em sua obra "Playing By the Rules".  Segundo o Autor, "as regras definem o que está' aberto para a consideração daqueles que decidem, afastando do horizonte destes os fatores que foram suprimidos. Assim, as regras retiram parte do poder daqueles que decidem, vez que os fatores relevantes para a tomada de decisão já foram escolhidos"1. Em matéria tributária, o país concebeu um sistema tributário com regras de competência fixadas na Constituição e regras que estabelecem as hipóteses de incidência na legislação infraconstitucional, tudo para assegurar que a tributação não se desviaria da vontade popular expressada pelo parlamento. O Professor utiliza, em sua obra, um exemplo didático. Por que a legislação de trânsito utiliza regras como o "limite de velocidade é 80km/h" e não prescrição normativa como "não é seguro dirigir acima de 80km/h"? A primeira prescrição não deixa margem para o intérprete, enquanto a segunda contempla variados níveis de compreensão2. Em sede de Direito Tributário, as prescrições normativas são concebidas para eliminar ao máximo a intervenção do intérprete, justamente porque a margem de deliberação lida com valores constitucionais extremamente caros como liberdade e propriedade. É comum identificarmos casos em que as interpretações são feitas de forma além do que está dito na lei. Quando isso acontece, diversos efeitos perversos são identificados, como a ausência de segurança jurídica e os incentivos (ou desincentivos) a determinados comportamentos pelas partes envolvidas. No caso em questão, o debate versará sobre o entendimento de alguns Municípios sobre a possibilidade de cobrar o imposto ITBI quando determinado bem imóvel é integralizado em capital social de pessoa jurídica que permanece, por determinado período, sem receita operacional. Em decorrência desse posicionamento, alguns Tribunais já se manifestaram sobre a temática, conforme será a seguir abordado. Vejamos o que prevê a Constituição sobre a temática. O art. 156, § 2º, inciso I, da CF dispõe sobre a imunidade do ITBI em incorporação de bens ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital social. O texto constitucional adota um estilo detalhista e minudente justamente para excluir qualquer margem de apreciação por parte do intérprete. No entanto, já se pode observar divergência doutrinária. Por exemplo, há quem sustente, como o Professor Kiyoshi Harada, que "a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do §2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I"3. Dito de outra forma, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte do inciso. Dessa forma, reitera-se: a imunidade prevista na primeira parte do dispositivo é incondicional, desde que referente a bens para integralização de capital social4. Esta posição não deve ser desprezada, haja vista que no julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal, o Relator, Min. Alexandre de Moraes, adotou o mesmo argumento. Disse o Ministro: "É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I"5. Porém, o objeto da presente reflexão reside em saber se uma empresa sem atividade está amparada pela imunidade. Na hipótese de não se admitir que a ausência de atividade autorize a fruição da imunidade, dever-se-ia passar ao questionamento seguinte: na ausência de norma expressa sobre a inatividade, estaria o intérprete autorizado a tributar de forma analógica ou se valendo de presunção? A resposta é evidentemente negativa, pois como já se disse, o exercício da tributação pressupõe a outorga de poder pelo parlamento. Onde não há concessão de competência, não há falar em tributação. Além disso, o Código Tributário Nacional é expresso ao vedar a tributação pelo uso da analogia (art. 108, § 1°). De qualquer modo, admitindo que se pudesse superar todos estes obstáculos, o passo seguinte do intérprete seria criar uma regra não escrita na Constituição, nem prescrita pelo Código Tributário Nacional. Neste momento, ao "criar a norma", o intérprete poderia escolher dois sentidos: (1) a ausência de atividade pressupõe o gozo da imunidade e (2) a ausência de atividade pressupõe o exercício de atividade imobiliária preponderante. Diante dos dois sentidos possíveis, qual seria o mais correto dentro das normas que orientam o sistema constitucional tributário? O art. 37 do CTN, por sua vez, explica a exceção prevista no dispositivo Constitucional acima mencionado. Quando a empresa for pré-existente à integralização do imóvel, aplica-se ao caso o prazo do §1º do art. 37. Quando iniciar suas atividades após a integralização (ou menos de dois anos antes dela), aplica-se ao caso o prazo do §2° do art. 37. Como estamos investigando a hipótese de uma sociedade sem atividade no período, aplica-se, justamente, no art. 37, §2º, do CTN. Vejamos um caso concreto. Determinado cidadão possui um terreno de sua propriedade, registrado em seu nome. Ou seja, quando da sua aquisição, recolheu normalmente o imposto ITBI. Com o intuito de, em momento oportuno, participar de permuta financeira com o referido terreno, o cidadão constitui uma SPE (Sociedade de Propósito Específico). Consequentemente, o imóvel é integralizado no contrato social. Como o cidadão ainda não possui previsão de participar na possível permuta financeira, a pessoa jurídica permanece sem receita operacional. Escoado o prazo previsto em lei, não se verificando qualquer receita na pessoa jurídica, é possível a cobrança de ITBI por parte do fisco? Essa é a pergunta a ser respondida. Conforme pode-se verificar nos referidos dispositivos, inexiste previsão ou mesmo menção à efetiva tributação do ITBI nos casos em que a pessoa jurídica tenha permanecido sem atividade operacional (inativa). Dessa forma, estamos diante do que, há muito, já é debatido perla hermenêutica jurídica: a imposição da "vontade do intérprete". Neste caso, está-se colocando em segundo plano os limites semânticos do texto, até mesmo da Constituição6. Dito de outro modo, o fisco opta por fazer uma "interpretação extensiva" do dispositivo legal, limitando a imunidade constitucional onde não há regra expressa. Em outras palavras, o fisco municipal tributa sem previsão legal. O resultado disso: (um)a subjetividade "criadora" de sentidos. Com isso, havendo adesão por essa interpretação que extrapola os limites semânticos da lei, corre-se o risco de criar uma jurisprudência possivelmente arbitrária, que impõe ao cidadão tributação sem autorização legislativa, o que contraria a legalidade tributária (art. 150, I, da Constituição). A jurisprudência dos Tribunais já vem se posicionando quanto à temática, ainda sem uniformidade. É o caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: a 16ª Câmara Cível do TJ/RJ possui posicionamento favorável à imunidade7, enquanto a 6ª Câmara Cível se manifesta em sentido oposto8. A 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, possui entendimento que mantém a sua imunidade9. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no mesmo sentido, em decisão recente sobre o tema, posicionou-se favorável à imunidade10. O que nos chama a atenção no caso julgado pela Corte gaúcha foi a aplicação do art. 932 do CPC ao caso: Em Apelação interposta pela empresa contra sentença de improcedência em Ação Anulatória proposta. Em um primeiro momento, o TJ/RS proveu o recurso interposto pela empresa por maioria (2x1), declarando a nulidade do Auto de Lançamento. Como a apreciação jurisdicional não foi unânime, aplicou-se ao caso o art. 942 do CPC. Em decorrência disso, mais dois desembargadores participaram do julgamento. A conclusão dos julgadores foi, por maioria dos votos, dar provimento ao Recurso de Apelação e manter o entendimento de imunidade de ITBI (3x2). Diante dessas circunstâncias, pode-se verificar que essa interpretação extensiva praticada por alguns Municípios vem criando jurisprudência sem trazer segurança jurídica ao tema. Essas situações, por certo, geram externalidades, especialmente negativas. Com a adesão dessa temática por parte de alguns julgadores, o fisco acaba sentindo-se incentivado a insistir com tal interpretação legislativa, mesmo não sendo recepcionada pela maioria dos Tribunais e, muito menos, pela legislação vigente. Assim, "se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo - tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la"11. Além do aspecto jurídico, os incentivos atingem a tomada de decisão por parte dos agentes, especialmente do fisco. Esse, visualizando a insegurança jurídica criada pelos Tribunais, poderá pautar seu comportamento de forma a continuar insistindo nessa interpretação equivocada da lei12, notadamente porque não há custo para o tomador de decisão. Enquanto o contribuinte corre o risco de sucumbir e arcar com o ônus processual, o(a) secretário(a) da fazenda que orientar sua secretaria a insistir no erro não terá nenhuma repercussão se criar um passivo para o respectivo município. Esse exemplo explica muito a presença do Estado em mais da metade dos litígios que tramitam no país, segundo dados do CNJ. Portanto, seja por razões de eficiência econômica, seja por estrito cumprimento da Constituição, não há como defender uma posição que não encontra amparo legal e ainda por cima estimula a litigiosidade que no Brasil alcance níveis sem comparação no mundo13. ---------- 1 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules - A Philosophical Examination of Rule Based Decision- Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 2002. p. 159. 2 Em seu texto, o professor utiliza o limite de velocidade norte americano de 50 milhas por hora. Adaptamos para o nosso limite de 80km/h para tornar mais clara a compreensão. SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules - A Philosophical Examination of Rule Based Decision- Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 2002. p. 4 3 HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 143. 4 HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 145. 5 STF, RE 796376, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-210 DIVULG 24/8/20 PUBLIC 25/8/20 6 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a "letra da lei" é uma atitude positivista? Revista NEJ - Eletrônica. Vol. 15, n. 1, p. 158-173. Jan-abr 2010. 7 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. ITBI. INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL COM TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE IMÓVEL. TRANSFERÊNCIA QUE NÃO SE CONCRETIZOU.  INCIDÊNCIA DO ARTIGO 156, §2º, I, DA CRFB/1988. NÃO SE PODE PRESUMIR QUE A INATIVIDADE DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA AUTORA CONFIGURA ILICITUDE.  RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE DO ITBI QUE SE IMPÕE. EXTENSÃO DA IMUNIDADE AO OUTRO IMÓVEL. DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA NOTA DE LANÇAMENTO 981/12. RECURSO DOS AUTORES PROVIDO. RECURSO DO MUNICÍPIO PREJUDICADO. O fato gerador do ITBI só ocorre no momento da transferência efetiva da propriedade do bem imóvel, com o respectivo registro no cartório imobiliário, o que não ocorreu na espécie. Entendimento do STF no sentido de que "ainda que hipoteticamente confirmada a ausência de atividade econômica, tal circunstância poderia em tese ser atribuída a uma série de eventos, sem que se possa concluir que em todo e qualquer caso possível haveria propósito de desvio ilícito da proteção constitucional". De fato, não restou comprovada nos autos nenhuma ilicitude perpetrada pela sociedade empresária. Recurso da 1ª apelante provido para declarar a nulidade do débito tributário indicado também na Nota de Lançamento nº 981/2012, referente ao ITBI do imóvel situado na Rua Gilberto Amado, 970, apto 102, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Prejudicado o recurso do município. (0013926-55.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). LINDOLPHO MORAIS MARINHO - Julgamento: 21/5/19 - DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL) 8 Direito Tributário. Execução fiscal. ITBI. R$ 26.849,54. Fato gerador. Lançamento do tributo. Execução fiscal. Embargos à execução. Pedido de anulação.  Rejeição. Recurso. Desacolhimento. Alegação de imunidade tributária não verificada. Transferência de bens para integralização de capital social. Incidência do art. 156, §2º, I, da CRFB/1988. Concessão de imunidade sob condição resolutiva de verificação da atividade preponderante. Porém, no período de verificação da atividade a empresa manteve-se inativa. Trecho da sentença: "A regra constitucional visa a facilitar a formação, extinção e incorporação de empresas, protegendo a livre iniciativa e não a mera transferência de titularidade de propriedade imobiliária, ou seja, a finalidade da norma constitucional é fomentar a atividade empresarial, constituindo incentivo ao desenvolvimento econômico nacional". Precedente: (...). A empresa se manteve inativa durante três anos a partir da aquisição do imóvel. Hipótese que não se coaduna com o objetivo almejado pelo constituinte, que foi o de estimular o desenvolvimento de atividades econômicas e sociais para o progresso do país. A imunidade tributária não pode ser um incentivo à ociosidade. (...) 0044213-64.2015.8.19.0001 Apelação Des. Ricardo Rodrigues Cardozo Julgamento:11/04/2017. Desprovimento do recurso. Aplicação do previsto no § 11 do art. 85 do CPC 2015, sendo o valor da condenação a título de honorários advocatícios majorado para mais 5% (cinco por cento) sobre o valor da condenação. (0335640-95.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). NAGIB SLAIBI FILHO - Julgamento: 15/5/19 - SEXTA CÂMARA CÍVEL). 9 APELAÇÃO - AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - ITBI - Pretensão à concessão de imunidade de ITBI diante da transmissão de bem imóvel para a integralização de capital social - Sentença de procedência - Pleito de reforma da sentença - Não cabimento - Imóvel transferido para a composição de capital social de empresa recém criada - Imunidade que é concedida à empresa que não tem como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição - Verificação da atividade preponderante da apelada que deve considerar os 03 (três) anos seguintes à aquisição dos bens - Empresa que permaneceu inativa desde a sua constituição - Fato que não induz à atividade preponderante que autorizaria a cobrança do tributo - Sentença mantida - APELAÇÃO e REEXAME NECESSÁRIO não providos. (TJ/SP; Apelação/Remessa Necessária 1022171-53.2018.8.26.0114; relator (a): Kleber Leyser de Aquino; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas - 2ª Vara da Fazenda Pública; data do julgamento: 23/7/20; data de registro: 23/7/20) 10 APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITBI. INCORPORAÇÃO DE BENS IMÓVEIS AO PATRIMÔNIO DE PESSOA JURÍDICA. AUSÊNCIA DE RECEITA OPERACIONAL. IMUNIDADE. POSSIBILIDADE. A imunidade tributária constante no art. 156, § 2º, inciso II, da CF, é condicional, sujeita à verificação da atividade preponderante da empresa pelo Fisco. Nesse caso, sendo verificado exercício de atividade preponderante de compra e venda de bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, deve ser indeferida a imunidade relativa ao ITBI. Hipótese dos autos em que a empresa, porém, não exerceu atividade econômica no período de aferição, não existindo atividade operacional, o que não inviabiliza a concessão da imunidade, visto que não ocorreu a condição resolutiva prevista na legislação federal e estadual. APELAÇÃO PROVIDA. VOTO VENCIDO.(Apelação Cível, Nº 70084853431, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Luís Medeiros Fabrício, Julgado em: 9/4/21) 11 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 12 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 13 Diagnóstico da litigiosidade tributária elaborado pelo CNJ, disponível aqui.
O art. 32, § 2º da lei 4.591/64 já passou por diversas transformações legislativas. Quando editada a Lei de Incorporação Imobiliária, o dispositivo aduzia que os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas "serão também averbáveis à margem do registro de que trata este artigo"1. Em 2001, com a edição da MP 2.221/01, o dispositivo foi alterado para determinar a irretratabilidade dos referidos instrumentos, bem como para conferir direito real oponível a terceiros e direito à adjudicação compulsória2. Ao ser convertida na lei 10.931/04, a redação foi brevemente alterada, sem grandes modificações3. O dispositivo cumpria bem o seu papel, sobretudo ressaltando (ainda que desnecessariamente em razão da obviedade) a irretratabilidade do contrato. Por isso causou alguma surpresa quando a MP 1.085/22, determinou a revogação do dispositivo. Alguns colegas, de maneira informal, afirmaram que talvez a ideia do legislador tenha sido adequar o art. 32 § 2º à lei 13.786/18. Isso porque a referida Lei (intitulada como 'Lei dos Distratos'), dentre as suas diversas inclusões, permitiu o exercício do retrato do contrato, com a possibilidade do exercício do direito de arrependimento pelo adquirente (art. 67-A, § 10º) e, portanto, o contrato não seria mais absolutamente irretratável, o que justificaria a revogação. Contudo, em nosso entendimento, não havia qualquer contrariedade entre os dispositivos porque, o art. 67-A, § 12º elucidava a questão declarando que "transcorrido o prazo de sete dias a que se refere o § 10º deste artigo sem que tenha sido exercido o direito de arrependimento, será observada a irretratabilidade do contrato de incorporação imobiliária, conforme o disposto no § 2º do art. 32". O sistema, em nossa opinião, era coeso. O fato é que após a edição da MP 1.085 e a revogação do art. 32 § 2º, parte respeitada da doutrina, a exemplo do Prof. Carlos E. Elias de Oliveira, passou a defender que os contratos referidos no dispositivo não seriam mais irretratáveis, mesmo após o transcurso do prazo do direito de arrependimento. Segundo o autor, teria sido decretado o "fim da irretratabilidade compulsória dos contratos de alienação das unidades autônomas" o que permitiria ao adquirente ficar "livre para resilir o contrato por motivos pessoais (como eventual emergência financeira), sem necessidade de justificativas"4. Respeitosamente, discordamos do posicionamento do colega Carlos Elias de Oliveira. Até porque, embora momentaneamente o art. 32 § 2º tenha sido revogado, nunca houve a revogação do art. 67-A, § 12º, que ainda determina que uma vez transcorrido o prazo conferido para o exercício do direito de arrependimento, o contrato é irretratável. Ademais, a irretratabilidade é de suma importância no âmbito da incorporação imobiliária e foi justamente o principal fundamento para a edição da intitulada Lei do Distrato. Retomemos e relembremos essa questão. É verdade que no âmbito da incorporação imobiliária, embora as partes, regra geral, estabeleçam a irretratabilidade da avença, com o passar dos anos, a jurisprudência passou a permitir a iniciativa unilateral de alguns adquirentes que, embora não apontassem culpa atribuível ao vendedor, buscavam a extinção do contrato de promessa de compra e venda. Na maioria dos casos, eram adquirentes que manifestavam à incorporadora o desejo de extinguir a avença em razão de dificuldades financeiras. A respeito do tema, José Osório de Azevedo Junior5 foi um dos primeiros a tratar da "questão particularmente difícil" para saber "se o próprio compromissário comprador que deixou de pagar o preço pode tomar a iniciativa de dar o contrato por resolvido e pedir a devolução das prestações pagas". A questão, de fato, não era simples de resolver. Se, por um lado, a promessa de venda e compra, assim como os demais contratos em geral é instrumento irretratável, não permitindo a mera desistência, o que fazer nas situações em que o adquirente não possui mais condições de prosseguir adimplindo as prestações? Nesse sentido, nos anos 1990, surgiram os primeiros acórdãos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que passaram a admitir que mesmo sendo o inadimplemento fato imputável ao devedor, a ação poderia ser de sua iniciativa, porque a imputação seria de culpa e não dolo. Em voto de relatoria do próprio Des. José Osório de Azevedo Junior6, entendeu-se pela possibilidade de "vencimento antecipado do contrato" quando houvesse "motivo eticamente justificável" para a extinção contratual. No mesmo sentido, julgados do Superior Tribunal de Justiça também permitiam a iniciativa do adquirente para extinguir unilateralmente o contrato, com destaques para acórdãos de relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior7 que, em sua obra8 também manifestou a possibilidade de o devedor propor ação para resolver o contrato quando fundamentasse o seu pedido na "[...] superveniente modificação das circunstâncias, com alteração da base objetiva do negócio. É o que tem sido feito com muita intensidade relativamente a contratos de longa duração para aquisição de unidades habitacionais, em que os compradores alegam insuportabilidade das prestações". Contudo, referidos julgados eram, nos anos 1990, quase inexpressivos e aplicados, na maioria das vezes, quando havia comprovada impossibilidade de cumprimento das obrigações financeiras dos adquirentes9. Com o passar dos anos, todavia, em algum desvio jurisprudencial, tornaram-se mais comuns as decisões judiciais que permitiam a extinção do vínculo contratual em razão de pleito unilateral formulado pelo adquirente não apenas quando este discordava dos valores envolvidos para retenção, mas, também, em situações em que o comprador se mostrava meramente insatisfeito com a aquisição. Em alguns casos, embora as provas indicassem que o comprador tinha recursos para prosseguir com a contratação, mesmo não havendo inadimplemento do incorporador, a ação era julgada procedente para extinguir o contrato, tal como se fosse uma faculdade dos contratantes seguirem vinculados ao contrato. Nesses termos, fácil identificar julgados que, a exemplo disso, permitiam, a 'resilição unilateral' do compromisso de compra e venda por 'conveniência do comprador'10. Assim, a jurisprudência, sobretudo a partir de 2009, passou a acolher o pedido do adquirente para a extinção do vínculo contratual, sem a necessidade de serem comprovados maiores fundamentos. Em determinada decisão judicial, chegou-se a dizer que "quanto ao desejo de rescindir o contrato, temos que este é garantido a qualquer parte integrante de um acordo, já que ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa11". A respeito do tema e em razão dos casos que se avolumavam, algumas súmulas foram editadas. Nesse sentido, cite-se a Súmula 1 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo12, publicada em 2010 e a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça13, publicada no ano de 2015. Tal como bem pontuado por Francisco Loureiro14, referidas súmulas não deveriam ser interpretadas como permissão para a extinção unilateral do vínculo contratual, como se todo contrato contivesse um direito potestativo de arrependimento sem prazo. Mas enquanto o mercado imobiliário atravessava o 'boom imobiliário' (2008 a 2013, principalmente), os julgados que determinavam a extinção do vínculo contratual sem fundamento não incomodavam sobremaneira os incorporadores: uma vez determinada a cessação contratual, havia enorme mercado de novos adquirentes buscando recomprar a coisa. Assim, além de reter parte do pagamento realizado pelo adquirente, revendiam o bem em bases superiores ao primeiro contrato. Contudo, a partir de 2014/2015, com o agravamento da crise no setor15, os pedidos de extinção contratual dispararam, sem que os incorporadores encontrassem novos interessados em readquirir o bem. A jurisprudência permissiva para a extinção do vínculo contratual passou a trazer maiores prejuízos financeiros às incorporadoras e comprometer o fluxo de caixa dos empreendimentos16. Como se pode imaginar, a possibilidade de o adquirente, após alguns meses da aquisição, simplesmente desistir (havendo ou não justificável motivação) do contrato enquanto a obra encontra-se em andamento, eleva sobremaneira o risco contratual do incorporador17. Na alocação de riscos desse contrato, o incorporador parte do pressuposto que o contrato é irretratável, cabendo apenas a resolução por inadimplemento das partes, com o consequente pagamento dos encargos e multas decorrentes do descumprimento. É a partir da irretratabilidade contratual que o incorporador se obriga perante toda uma coletividade para a construção de empreendimento e entrega de futuras unidades, porque pressupõe que receberá os valores definidos no contrato ao longo do curso da obra. Naturalmente, se a força obrigatória do pacto sofre mitigação, o risco contratual do incorporador é majorado demasiadamente. Se ao longo da construção, por exemplo, um terço ou a metade dos adquirentes resolve, pura e simplesmente, comunicar ao incorporador a desistência do vínculo, requerendo a devolução de parte dos valores pagos, além de o incorporador deixar de receber os valores prometidos pelos adquirentes e que seriam utilizados na execução da obra, ainda ficaria desprovido de recursos caso obrigado à devolução imediata de valores. Evidentemente que a mitigação da irretratabilidade do pacto desnatura a álea normal dos riscos a que o incorporador se sujeitou. Até porque a facilidade de rompimento do contrato permitiu que uma classe de adquirentes passasse a especular a aquisição imobiliária. Assim, quando deflagrada a crise do mercado imobiliário a partir de 2014, diversos compradores pleitearam o desfazimento do vínculo, não em razão de impossibilidade de adimplir o preço, mas por não julgar mais o contrato conveniente. Segundo Francisco Loureiro18, "[...] a jurisprudência se tornou cada vez mais permissiva, admitindo que promissários compradores pedissem a extinção do contrato não por impossibilidade superveniente, mas por mero desinteresse, convertendo hipótese inicial de resolução em resilição". Prevalecendo o entendimento que o referido contrato admite a resilição unilateral, a irretratabilidade do instrumento fica ameaçada e, consequentemente, a sustentação financeira da incorporação imobiliária. Como bem referido por Roberta Maia19, "a irretratabilidade é relevante aos pactos imobiliários justamente para impedir que o adquirente, após fazer contas, concluir que sairia mais barato inadimplir do que cumprir"20. Foi nesse sentido que a lei 13.786/18 foi editada, ou seja, com o objetivo de limitar os inúmeros pedidos de extinção dos contratos ausentes de fundamento, bem como reforçar a irretratabilidade do contrato, nos termos do já mencionado art. 67-A, § 12º da lei 4.591/64. Mas o agravamento da situação financeira dos adquirentes, sobretudo em tempos de pandemia, reascendeu a discussão. Embora exista forte corrente jurisprudencial que defende que as questões pessoais do devedor, seu empobrecimento, sua doença, sua perda de capacidade física ou psíquica, não são admitidas como fundamento para fins de exoneração obrigacional ou mesmo revisão da avença21, por outro lado, no âmbito da incorporação imobiliária, há diversos julgados que autorizam a extinção do contrato, quando o adquirente manifesta impossibilidade de cumprir a avença22. Para nós, o inadimplemento contratual das obrigações dos contratantes no contrato de promessa de compra e venda na incorporação imobiliária é bem definido, ou seja, descumprimento do pagamento do preço (obrigação de dar) e descumprimento relacionado à entrega e construção do empreendimento (obrigação de fazer). Em princípio, a eventual dificuldade do incorporador em seguir com a obra não lhe autoriza pedir a extinção do vínculo. Ultrapassado o prazo de carência e tendo se comprometido a executar a obra, compete ao incorporador entregar as unidades, ainda que tenha que obter crédito extraordinário perante instituições financeiras ou adotar outras medidas (que não comprometam, claro o patrimônio de afetação). Se a mão de obra encareceu, se os insumos para a construção tiveram preços majorados ou se a incorporadora passa por dificuldades financeiras, nada disso, regra geral23, pode alterar a obrigação de entrega da coisa. Para nós, a perda ou diminuição da capacidade financeira empresarial ou o aumento da taxa de esforço no cumprimento obrigacional não podem ser considerados fundamentos para a resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva24. Da mesma forma, a alegação de dificuldade financeira do adquirente, também em princípio, não lhe permite ter a iniciativa de pleitear a extinção do vínculo. Descumprido o contrato e estando em mora o adquirente, a pretensão para a extinção da promessa será do incorporador, credor da obrigação. Isso porque, ainda que o adquirente esteja em mora, o credor pode manifestar o interesse em manter o vínculo, inclusive entregando a unidade ao adquirente, mas cobrando a dívida via ação judicial correspondente. O fato é que mesmo antes da edição da MP 1.085, sempre houve corrente doutrinária que entendia que em caso de dificuldade para o prosseguimento do pagamento das parcelas do preço, estando ou não em mora, o adquirente poderá ter a iniciativa de propor ação de resolução contratual, desde que comprove que não tem mais condições financeiras de adimplir sua obrigação. O fundamento para tal resolução seria o vencimento antecipado do contrato (anticipatory breach)25 que também evitaria o agravamento do prejuízo do adquirente com a demora no pleito resolutório, além de ser medida que prestigiaria a boa-fé26. Nos contratos em geral, o direito brasileiro vem admitindo o incumprimento antecipado do contrato tal como nos revelam os estudos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior27 e Judith Martins-Costa28. O instituto, especificamente na perspectiva do compromisso de compra e venda de imóveis, é analisado por Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso. Para o autor, em razão da função social do contrato, o adquirente que se encontra em "impossibilidade relativa" para prosseguir com o pagamento, poderia propor a ação de resolução, estando ou não inadimplente29. Em síntese: o contrato perdeu sua função social ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que se visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de situação de provável ausência de pagamento do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência da remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera. Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso30 ainda ressalva que "se é o próprio devedor que o alega, sua declaração de inadimplir deve vir acompanhada de alguma impossibilidade de prestar. Se não, sua conduta configura mero arrependimento, violação direta do pacta sunt servanda". Francisco Eduardo Loureiro31 também registra que o fundamento para permitir a resolução do contrato por iniciativa do devedor não é a inconveniência do promitente comprador com o contrato firmado, mas, sim, a comprovada impossibilidade de cumprir a obrigação. Ademais, nesse sentido, o magistrado sugere nova forma de interpretação para a Súmula 543, do STJ32. Muito recentemente, o Superior Tribunal de Justiça permitiu que adquirente de imóvel, que embora adimplente, mas tendo comprovado sua incapacidade para prosseguir no cumprimento da obrigação, tomasse a iniciativa para resolver o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária por quebra antecipada do contrato, mas sujeitando-se às consequências da lei 9.514/97 pela sua conduta culposa33. Não é objetivo deste artigo tratar da controversa questão envolvendo a possibilidade (ou não) de extinção de contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária. Contudo, verifica-se que o STJ admitiu a possibilidade de o devedor ter a iniciativa para pleitear a extinção do contrato com fundamento na alegação que não teria condições em prosseguir no pagamento, desde que respeitado o rito da lei 9.514/97. Em Portugal, o Supremo Tribunal de Justiça também confere a possibilidade de o contrato ser resolvido antes do prazo quando o promitente comprador apresenta "recusa inequívoca e categórica em cumprir", hipótese em que "a mora converte-se em incumprimento definitivo" e "assiste então, ao promitente comprador o direito de resolver o contrato-promessa [...]"34. Em outro julgado mais recente, o mesmo tribunal confirmou que "a recusa (ou declaração) séria, certa, segura e antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir ou da impossibilidade ante do tempo de cumprir) equivale ao incumprimento (antes do termo), dispensando a interpelação admonitória"35. Naturalmente que o inadimplemento antecipado do contrato na hipótese de empobrecimento implica em atribuição de culpa para o adquirente. Assim, ainda que não esteja em mora, ou seja, mesmo não tendo havido o descumprimento contratual, o instituto do vencimento antecipado pode dar legitimidade para que o adquirente obtenha a resolução do contrato. Contudo, a perda da sua capacidade financeira e consequente impossibilidade de cumprir sua obrigação, tal como já verificado anteriormente, é questão subjetiva do próprio adquirente. Não caberá, portanto, exoneração do vínculo sem culpa, mas, sim, resolução culposa. Assim, nessa hipótese, o adquirente está sujeito às consequências da lei 4.591/64, no que diz respeito ao descumprimento contratual do promitente comprador e aos percentuais legais da cláusula penal (art. 67-A). Para nós, reiteramos que as questões subjetivas do adquirente, a princípio, não importam em redução da cláusula penal, devendo ser aplicadas as consequências referidas. Aliás, justamente em razão de a lei 13.786/18 ter regulado as consequências para a resolução de contrato de promessa compra e venda na incorporação imobiliária, é que se defende a superação da Súmula 543, do Superior Tribunal de Justiça36. Em resumo: na incorporação imobiliária, a manutenção do vínculo é muito relevante para o desenvolvimento da obra, a considerar que os valores pagos pela coletividade são utilizados justamente na construção da edificação. O arrependimento posterior ao prazo legal não confere ao adquirente a possibilidade resilir unilateralmente o contrato. A dificuldade financeira do adquirente pode levá-lo ao inadimplemento absoluto e, nessa hipótese, a resolução culposa do contrato seguirá às consequências da lei 13.786/18. Justamente nesse sentido, parece-nos mais do que acertada a decisão legislativa final que, no apagar das luzes, em razão de emenda apresentada no Senado, resolveu por manter o art. 32, § 2º, da lei 4.591/64, o que, num silêncio eloquente, significa a manifestação cabal da irretratabilidade do referido instrumento e sua importância para a incorporação imobiliária. ---------- 1 O texto original do art. 32, § 2º determinava: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas, serão também averbáveis à margem do registro de que trata êste artigo". 2 O texto do art. 32, § 2º, quando da edição da MP 2.221/2001 dispunha: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra". 3 Na edição da Lei 10.931/2004, a redação ficou assim ajustada: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra". 4 Segundo o autor: "[...] Revoga-se dispositivo que previa a irretratabilidade dos contratos de alienação de unidades autônomas, norma que se endereçava tanto ao adquirente quanto ao incorporador. Com essa revogação, fica aberto o debate para a retratação do contrato, seja por parte do adquirente, seja por parte do incorporador. Tal nos parece salutar, pois as condições negociais para a retratação serão ajustadas pelas partes, com estipulação de multas. Além disso, o Poder Judiciário tenderá a coibir resilições unilaterais meramente oportunistas das incorporadoras (como as destinadas a revender o imóvel por um preço maior), pois o abuso de direito é um obstáculo à resilição unilateral (artigos 187 e 473 do Código Civil). De mais a mais, com a revogação em pauta, o adquirente fica livre para resilir o contrato por motivos pessoais (como eventual emergência financeira), sem necessidade de justificativas. Antes da revogação, o cabimento da resilição unilateral era objeto de controvérsia". OLIVEIRA, Carlos E. Elias. Análise detalhada da Medida Provisória 1.085/2021 e sugestões de ajustes. Disponível aqui. Acesso em 14.06.2022. 5 AZEVEDO JÚNIOR, José Osório. Compromisso de compra e venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 205. 6 Nos termos do julgado: "[...] no caso dos autos, contudo, é certo que o autor não comprovou a impossibilidade da prestação, em termos técnico-jurídicos. Caso contrário, seria viável, em tese, o afastamento de sua responsabilidade, nos termos do artigo 865, 1ª parte, do CC. Assim, fica-se com a afirmação inicial de que o inadimplemento ocorreu por fato imputável ao devedor. Mas a imputação é de mera culpa ao contratar. Não há qualquer sinal de dolo por parte dos autores. Resulta claro dos autos que a negativa de pagamento se deu em razão de empecilhos econômicos e não com finalidades escusas de causar dano ao vendedor, ou por mera malícia de não pagar porque não quer, mesmo tendo meios para tanto, sem risco de ruína. De qualquer forma, a culpa é suficiente para deixar o devedor em situação de responsabilidade. Mas responsabilidade atenuada, sempre que possível, pois resulta claro de todo o sistema do Código de Defesa do Consumidor - e particularmente de seu artigo 53 - que um de seus objetivos é evitar que uma aquisição pouco amadurecida possa levar o adquirente ao desastre econômico". (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n. 38.024.4/7, j. 18/06/1998, Boletim AASP 2.079). 7 Vide, por exemplo: "[...] a nulidade de pleno direito da cláusula de decaimento, que prevê a perda da totalidade das prestações pagas pelo promissário comprador em caso de inadimplemento, também se reconhece quando a ação é de iniciativa do comprador" (Superior Tribunal de Justiça, REsp 109.331, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, j. 24/02/1997). No mesmo sentido: "O compromissário comprador que deixa de cumprir o contrato em face da insuportabilidade da obrigação assumida tem o direito de promover ação a fim de receber a restituição das importâncias pagas. Embargos de divergência conhecidos e recebidos, em parte". (EREsp 59.870/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/04/2002, DJ 09/12/2002, p. 281). 8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004. p. 165. 9 Nesses termos, vide "O compromissário comprador que deixa de cumprir o contrato em face da insuportabilidade da obrigação assumida tem o direito de promover ação a fim de receber a restituição das importâncias pagas. Embargos de divergência conhecidos e recebidos, em parte". (EREsp 59.870/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/04/2002, DJ 09/12/2002, p. 281). 10 "[...] a lei consumerista autoriza a resilição do compromisso de compra e venda por conveniência do comprador (artigos 6º, V, 51, II, 53 e 54). No mesmo sentido vem a Súmula 1 desta corte" (TJSP; Apelação 1037516-86.2014.8.26.0506; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto - 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 14/12/2018). 11 TJSP. Processo n. 1075104-84.2014.8.26.0100. 23ª Vara Cível do Foro Central. Analisei a referida decisão em GOMIDE, Alexandre Junqueira. Tempos de incertezas. Fim da vinculação das partes aos contratos? Migalhas. Publicado em 10/12/2015. Disponível aqui. Acesso em: 11 jul. 2021). 12 Súmula 1. "O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem". 13 Súmula 543: "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". 14 Segundo o autor: "Com respaldo em entendimento pretoriano consolidado em duas súmulas de jurisprudência (543 do STJ e 1 do TJSP), passou a se entender, de modo equivocado, que o promitente comprador, ao seu único e exclusivo critério, tem a opção entre executar ou denunciar (desistir) do contrato [...]" (LOUREIRO, Francisco. Alguns aspectos dos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras e o Código de Defesa do Consumidor. In: AMORIM, José Roberto Neves; ELIAS FILHO, Rubens Carmo. O direito e a incorporação imobiliária. São Paulo: [s.n.], 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 set. 2021. p. 15). Em outro artigo, o mesmo autor destacou "[...] não se tolera, por exemplo, que determinado promitente comprador, solvente e que reúna recursos para honrar com o pagamento do saldo devedor, simplesmente desista da execução do contrato e peça a sua resolução, porque o negócio deixou de ser economicamente atraente, em virtude da depreciação do preço de mercado atual do imóvel, em confronto com o preço convencionado no momento da celebração, devidamente atualizado". (LOUREIRO, Francisco. Compromisso de compra e venda de unidades autônomas: distinção entre impossibilidade de cumprimento e desistência do adquirente, à luz das Súmulas 543 do STJ e 1 do TJSP. Opinião jurídica 4: direito imobiliário. São Paulo: Secovi-SP, 2016. p. 39). Ainda o mesmo autor, em outra oportunidade, afirmou que "[...] os verbetes da Súmula 1 do TJSP e da Súmula 543 do STJ podem criar a falsa impressão de que o promitente comprador tem o direito potestativo e imotivado de simplesmente denunciar de modo unilateral o contrato de promessa de venda e compra, se este não for mais de seu interesse". (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 716). 15 No ano de 2015, o volume de empréstimos para aquisição e construção de imóveis caiu 33%, em comparação a 2014, e teve queda de 36% nas unidades contratadas. Ver mais em: CRÉDITO para casa própria tem queda de 33% em 2015, mostra Abecip. ABECIP na mídia. Publicado em 26/01/2016. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2019. 16 André Abelha e Olivar Vitale advertem que em 2015 o índice de pedidos para extinção do contrato (amigável ou judicial) superava 40%, ou seja, de cada cem contratos firmados, quarenta eram extintos por iniciativa dos adquirentes. (ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 453 do STJ: por que revisá-la? Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 5. dezembro de 2020. p. 29). 17 Como bem referido por Roberta Mauro Medina Maia, "[...] uma vez resolvido o contrato -, estando em ascensão o valor do metro quadrado no contexto anterior à crise iniciada em 2014, o incorporador depositava em juízo o valor das parcelas pagas pelo adquirente, se necessário fosse, após delas deduzir o montante a ser retido em virtude da cláusula penal, e na sequência, alienava a unidade a terceiros. No entanto, a partir de 2014, com o início da crise econômica no país, de modo generalizado, o mercado imobiliário desaqueceu, e o valor do metro quadrado desvalorizou-se. Com isso, diversos adquirentes de unidades autônomas, mesmo adimplentes, optaram por desistir do negócio, por não mais considerá-lo economicamente vantajoso, impondo aos incorporadores que com eles celebrassem o distrato de tais unidades, ou seja, novo pacto, destinado ao desfazimento do anterior". (MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 557). 18 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Incorporação imobiliária e contrato de compromisso de compra e venda em tempos de pandemia da COVID-19. In: MALFATTI, Alexandre David; GARCIA, Paulo Henrique Ribeiro; SHIMURA, Sérgio Seiji (coord.). Direito do Consumidor: reflexões quanto aos impactos da pandemia de Covid-19. Edição especial de 30 anos de vigência do CDC. vol. 2. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2020. p. 530. 19 MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 554. 20 Ainda segundo a autora: "[...] reduzida a expectativa de auferir lucro com o negócio, era mais conveniente distratá-lo, perdendo até 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas em benefício da incorporadora (promitente vendedora), do que ultimar a aquisição do imóvel, suportando a depreciação do metro quadrado e assumindo o custo do condomínio e IPTU de unidade que provavelmente ficaria desocupada: em razão da crise, o estoque de imóveis vagos subiu consideravelmente, fato que contribuiu também para a redução do valor dos aluguéis". (MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 560). 21 Há corrente jurisprudencial firme cujo entendimento é no sentido de que situações tais como crise financeira, doença ou desemprego não são consideradas fatos que permitem a revisão. A esse exemplo, já se decidiu que "O contrato de financiamento imobiliário se enquadra como tipicamente oneroso e comutativo, sabendo perfeitamente as partes, e de antemão, as obrigações pelas quais se responsabilizam. Logo, sujeitá-lo à aplicação incondicional de correspondência aos recursos do devedor implicaria transformá-lo num contrato aleatório. O agente financeiro passaria a ser uma espécie de securitizador das contingências pessoais a que está sujeito o contratante, o que evidentemente levaria ao desequilíbrio da relação negocial". (TJSP, Apelação Cível 1033949-54.2017.8.26.0114; Relator (a): Gilberto dos Santos; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/07/2018; Data de Registro: 20/07/2018). No mesmo sentido: (TJSP, Apelação Cível 1000921-25.2019.8.26.0438; Relator (a): Maria de Lourdes Lopez Gil; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Penápolis - 3ª Vara; Data do Julgamento: 26/11/2019; Data de Registro: 26/11/2019); (TJSP; Apelação Cível 1001548-62.2017.8.26.0191; Relator (a): Miguel Brandi; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ferraz de Vasconcelos - 2ª Vara; Data do Julgamento: 13/11/2019; Data de Registro: 18/11/2019). 22 "[...] Constitui entendimento sedimentado neste Tribunal o direito do promitente comprador rescindir o contrato em decorrência de falta superveniente de condições financeiras, assegurado, neste caso, o retorno ao status quo ante e a retenção de percentual à promitente vendedora de forma a fazer frente aos prejuízos sofridos com gastos de administração, publicidade e pelo tempo de ocupação do bem [...]" (TJSP; Apelação Cível 1013435-98.2018.8.26.0032; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araçatuba - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020). No mesmo sentido: COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Resolução contratual - Desistência do adquirente por dificuldades financeiras - Possibilidade - Inteligência da Súmula 01 deste E. Tribunal de Justiça - Sentença que reconhece o direito dele de reaver o preço, com retenção, pela alienante, de 20% do que foi pago - Recurso dos autores pretendendo a redução para 10% - Descabimento - Valor fixado na sentença que se afigura razoável para ressarcir os prejuízos da ré - Redução que não se justifica - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1001417-54.2018.8.26.0320; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Limeira - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/05/2020; Data de Registro: 13/05/2020) 23 Dizemos regra geral porque, a depender da extraordinariedade do evento, também o incorporador poderia pleitear a revisão do contrato, com fundamento no art. 317, do Código Civil. 24 Havendo patrimônio de afetação e ocorrendo a decretação de falência ou insolvência civil do incorporador, a comissão de representantes também poderá optar em alienar as acessões construídas ou destituir o incorporador (art. 31-F, da Lei 4.591/1964). 25 Como bem apontado por Joana Farrajota, o vencimento é tradicionalmente apontado como "[..] verdadeiro ponto de viragem na vida do crédito, na medida em que corresponde ao momento em que este se torna exigível e, portanto, em que a obrigação deva ser cumprida [...] A doutrina da anticipatory breach vem desafiar essa concepção, afirmando que pode haver incumprimento tanto antes como depois do vencimento da obrigação". Ao tratar da referida teoria no direito inglês, aponta o paradigmático caso Hochster v. de la Tour responsável por influenciar a ordem jurídica inglesa e permitir que a doutrina majoritária entenda que haverá "rejeição clara e definitiva do contrato, realizada seja através de uma recusa de cumprimento seja através da adopção de um comportamento que torne o cumprimento muito difícil ou impossível, antes do vencimento da obrigação, configura uma situação de incumprimento antecipado, conferindo à contraparte o direito de exercer as faculdades que a lei reserva para o incumprimento". (FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento. Coimbra: Almedina, 2015. p. 68 e seguintes). A respeito do tema na doutrina brasileira, cite-se, ainda, SCHREIBER, Anderson. Revisitando a tríplice transformação do adimplemento. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das Obrigações. Pressupostos, evolução e remédios. vol. II. Rio de Janeiro: Processo, 2021. p. 1-40. 26 Mais do que uma medida de boa-fé, João Calvão da Silva afirma que o devedor teria a obrigação de tornar evidente por fatos a intenção e a possibilidade de cumprir pontualmente, sob pena de violar a legítima expectativa ou confiança do credor no adimplemento da prestação. Assim, não apenas o devedor poderia pedir o vencimento antecipado, comprovando que não irá adimplir, como também o credor poderia fazê-lo: "não há razão para manter o credor vinculado, até o vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor". (SILVA, João Calvão da. Sinal e contrato-promessa. 14. ed. Coimbra: Almedina, 2018. p. 128). 27 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004. p. 123 e seguintes. 28 Segundo Judith Martins-Costa "O chamamento da figura do inadimplemento antecipado, em caráter excepcional (porque excepciona o princípio da pontualidade), exige a presença de três requisitos, todos eles cumulativos e de obrigatória presença, a saber: (a) tratar-se de uma violação grave do contrato, caracterizadora de uma 'justa causa' à resolução; (b) haver plena certeza de que o cumprimento não se dará até o vencimento; (c) agir culposamente o devedor, ao declarar que não vai cumprir, ou ao se omitir quanto à execução do contrato, permanecendo inerte de modo que nada, em seu comportamento, revele a disposição para a prática dos atos de execução". (MARTINS-COSTA, Judith. A recepção do incumprimento antecipado no direito brasileiro: configuração e limites. Revista dos Tribunais. vol. 885. julho de 2009. p. 34). 29 "[...] Em síntese: o contrato perdeu sua função social ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que se visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de situação de provável ausência de pagamento do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência da remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera". CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 175. 30 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 42. 31 "A realidade é que o entendimento dos Tribunais, consolidado em centenas ou milhares de Acórdãos e súmulas de jurisprudência, ao afirmarem o cabimento da resolução do contrato de compromisso de compra e venda por iniciativa do promitente comprador inadimplente, partem da premissa da impossibilidade de cumprimento pelo adquirente, e não de sua mera inconveniência. [...] Disso decorre que não se tolera, por exemplo, que determinado promitente comprador, solvente e que reúna recursos para honrar com o pagamento do saldo devedor, simplesmente desista da execução do contrato e peça a sua resolução, porque o negócio deixou de ser economicamente atraente, em virtude da depreciação do preço de mercado atual do imóvel, em confronto com o preço convencionado no momento da celebração, devidamente atualizado". (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 718). 32 A sugestão de interpretação da Súmula 543, do STJ, por Francisco Loureiro é a seguinte: "O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, invocando e demonstrando impossibilidade superveniente do pagamento do preço, que não se confunde com arrependimento ou desinteresse, pode pedir a resolução do contrato e reaver as quantias pagas, admitidas a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem". (sublinhado no original). (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 722). 33 Nesse sentido, RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO COM PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL (LOTE) GARANTIDA MEDIANTE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. AUSÊNCIA DE CULPA DO VENDEDOR. DESINTERESSE DO ADQUIRENTE. 1. Controvérsia acerca do direito do comprador de imóvel (lote), adquirido mediante compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, pedir a resolução do contrato com devolução dos valores pagos, não por fato imputável à vendedora, mas, em face da insuportabilidade das prestações a que se obrigou. 2. A efetividade da alienação fiduciária de bens imóveis decorre da contundência dimanada da propriedade resolúvel em benefício do credor com a possibilidade de realização extrajudicial do seu crédito. 3. O inadimplemento, referido pelas disposições dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97, não pode ser interpretado restritivamente à mera não realização do pagamento no tempo, modo e lugar convencionados (mora), devendo ser entendido, também, como o comportamento contrário à manutenção do contrato ou ao direito do credor fiduciário. 4. O pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da Lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (REsp 1867209/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 30/09/2020). 34 Supremo Tribunal de Justiça, Recurso de Revista n. 08264, Data do acórdão: 07/01/1993. Rel. Sampaio da Silva. 35 Supremo Tribunal de Justiça, Recurso de Revista n. 4913/05, Data do acórdão: 02/04/2010. Rel. Oliveira Rocha. Ainda no âmbito do direito português, Joana Farrajota manifesta que "[...] a maioria da doutrina e jurisprudência nacionais, reconhecendo que a recusa antecipada de cumprimento afecta o regular funcionamento do contrato, é sensível à necessidade de facultar ao credor instrumentos para reagir a esta perturbação antes mesmo do vencimento da obrigação em causa, permitindo-lhe reajustar os planos inicialmente concebidos". (FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento. Coimbra: Almedina, 2015. p. 68 e seguintes). 36 Nesse sentido, vide CHALHUB, Melhim Namem; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Resolução de promessas de venda no contexto da incorporação imobiliária. Evolução legislativa e precedentes. Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. Ano 3. Dezembro 2020. n. 5. p. 174-190 e ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 453 do STJ: por que revisá-la? Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 5. Dezembro de 2020. p. 27-48.
Recentemente, escrevemos sobre a incorporação de casas isoladas ou geminadas à luz da nova redação do art. 68 da Lei de Incorporação Imobiliária dada pela lei 14.382/20221. Na ocasião, tratou-se dos aspectos gerais desta nova forma de incorporação imobiliária que tem como objetivo o desenvolvimento de bairros planejados sem que seja constituído o condomínio edilício. Passadas algumas semanas, tem-se a notícia do Primeiro Registro de Incorporação Imobiliária de Casas Isoladas do Brasil2! Esse é um marco relevantíssimo para um novo capítulo no direito imobiliário brasileiro. A um só tempo, o art. 68, reformulado pela lei14.382/2022, ganha vida e traz segurança jurídica aos incorporadores, adquirentes e registradores. O R.4 da Matrícula 107.550 do Registro de Imóveis da Comarca de Tatuí de São Paulo dá conta da incorporação de 450 unidades isoladas com destinação residencial. O projeto imobiliário Nova Tatuí Mais é fruto da nova redação do art. 68 da lei 4.591/64.   O empreendimento imobiliário é da Pacaembu Construtora S.A, que celebrou seus 30 anos de história dedicados a projetos imobiliários de interesse social no Estado de São Paulo e que com este projeto dá o primeiro passo para incorporação de casas isoladas. Já no objeto da incorporação fica evidenciado que não haverá condomínio edilício. Afinal, a regra legal tratada pelo art. 68 dispõe justamente sobre o desenvolvimento imobiliário de unidades isoladas ou geminadas, sem a relação condominial. Em atenção ao §1º do art. 68, o conjunto imobiliário não tem área comum, sendo que todas as áreas de lazer e vias públicas estão conectadas com a cidade, permanecendo sob os cuidados da administração pública municipal. O empreendimento Nova Tatuí Mais está enquadrado como programa de interesse social, no âmbito do Programa do Governo Federal Casa Verde e Amarela, atual programa habitacional sucessor do Programa Minha Casa Minha Vida. Essa incorporação foi originária de um loteamento recentemente registrado, denominado Tatuí Caguassú. O registro do loteamento consta do R.3 da matrícula n. 107.550. Portanto, a realização desta incorporação apenas foi possível como decorrência da edição da Lei n. 14.382/2022, o que revela a importância desta modificação legislativa para o planejamento empresarial e desenvolvimento imobiliário nacional. O Oficial de Registro de Imóveis procedeu com a análise cuidadosa dos requisitos estabelecidos pelo legislador no âmbito do art. 68, a fim de que todas as informações e documentos exigidos constassem no Memorial de Incorporação, com a clareza e objetividade necessárias ao registro e bom desenvolvimento do empreendimento. A esse respeito, veja-se a descrição da metragem de cada lote e a área de construção da casa, bem como as informações relacionadas ao Quadro NBR 12.271. É relevante destacar que a incorporadora, embora dispensada da apresentação da declaração que fixa o prazo de carência ou denúncia (art. 32, alínea "n"), apresentou voluntariamente a referida declaração quando do registro do Memorial de Incorporação. Esta conduta revela a prudência da incorporadora, sendo certo que a possibilidade de ser apresentada a declaração de carência também foi reconhecida como legítima pela 1ª Jornada de Direito Notarial e Registral3. Em linha com o parágrafo 3º do art. 68, a incorporadora sujeitou a incorporação ao patrimônio de afetação, conforme Av. n. 5 da matrícula n. 107.550. A averbação do patrimônio de afetação traz segurança aos adquirentes e ao incorporador, além de permitir a utilização do Regime Especial de Tributação - RET pela incorporadora. Com isso, o incorporador ganha eficiência tributária, na medida em que a totalidade de suas receitas estarão sujeitas à uma alíquota unificada de 4%, compreendendo os impostos e contribuições federais IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. A notícia do primeiro registro de incorporação imobiliária de casas isoladas é muito significativa para o setor da construção civil. Eis que agora a lei toma o seu espaço na vida prática de inúmeros incorporadores Brasil afora. Esses empreendedores poderão planejar suas atividades com mais um novo modelo de negócio imobiliário. Essa mudança propiciada pelo art. 68 traz versatilidade, segurança e clareza quanto às regras legais da incorporação de casas. A prateleira de opções dos desenvolvedores imobiliários ganha mais uma ferramenta. Ao lado da incorporação imobiliária tradicional, que originará o condomínio edilício, loteamento urbano, desmembramento, condomínio de lotes etc. tem-se, agora, a figura da incorporação de casas. Assim, entendemos que o desenvolvimento imobiliário de bairros planejados viverá um novo capítulo na história do direito imobiliário brasileiro. Esse é apenas o primeiro de inúmeros empreendimentos que serão objeto de registro. __________ 1 Link para acesso ao texto: A nova incorporação de casas isoladas ou geminadas. 2 Essa é a primeira incorporação que se teve notícia nas pesquisas realizadas com outros registradores de imóveis e com a colaboração de associações do setor. 3 Enunciado da 1ª Jornada de Direito Notarial e Registral. n. 6007: "Na incorporação imobiliária prevista no art. 68 da lei 4.591/64, a dispensa do prazo de carência é faculdade do incorporador, que poderá fixá-lo a fim de exercer eventual direito de denúncia".
A despeito das controvérsias que cercam o tema em referência, gostaríamos de compartilhar informações e reflexões sobre situações cotidianas de grande interesse para a indústria da construção civil, sobretudo para aqueles que se dedicam à atividade de incorporação imobiliária. No que importa para o tema que pretendemos enfrentar, é importante relembrar que a obrigação de pagar as despesas de condomínio era regulamentada pelos arts. 4º, 9º e 12 da lei 4.591/64, e passou a ser disciplinada, após 10 de janeiro de 2003, pelos arts. 1.333; 1.334, I e § 2º, 1.336, I e 1.345, do novo Código Civil (lei 10.406/02). Emerge dos mencionados dispositivos que pode ser considerado condômino não só o proprietário do imóvel (inclusive o promitente vendedor) indicado na matrícula correspondente, mas também, a ele equiparados, o promitente comprador e o cessionário de direito à aquisição, inexistindo na lei, que é a fonte primária do direito, distinção clara quanto à responsabilidade de cada um deles pelo pagamento das despesas condominiais. Diante da lacuna legislativa existente, cabe à jurisprudência estabelecer os parâmetros aplicáveis em cada situação, levando em conta as particularidades do caso concreto, motivo pelo qual ainda persistem muitas dúvidas sobre a questão. E nesse contexto em que prevalecem dúvidas e diferentes interpretações, impõe-se a atuação do Superior Tribunal de Justiça para tentar minimizar a insegurança jurídica que ainda ronda a questão da responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais, na medida em que uma das principais funções da Corte Superior é, justamente, buscar a uniformização da jurisprudência aplicável a determinados assuntos. Por ocasião do julgamento do recurso especial representativo de controvérsia 1.345.331/RS, realizado em 8/4/15 e relatado pelo Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, a segunda seção do Superior Tribunal de Justiça, levando em conta as peculiaridades do caso concreto1, consolidou o entendimento (Tema Repetitivo 886) de que a imissão na posse é essencial para que o promitente comprador seja responsabilizado pelo pagamento das despesas condominiais, conforme retratado na ementa do acórdão abaixo reproduzida, para a situação discutida naquela demanda: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CONDOMÍNIO. DESPESAS COMUNS. AÇÃO DE COBRANÇA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO LEVADO A REGISTRO. LEGITIMIDADE PASSIVA. PROMITENTE VENDEDOR OU PROMISSÁRIO COMPRADOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. IMISSÃO NA POSSE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, firmam-se as seguintes teses: a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador. 2. No caso concreto, recurso especial não provido. (REsp 1.345.331/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe 20/4/15) Mesmo se tratando de recurso especial representativo de controvérsia, é relevante ressaltar que tanto na alínea "b" do item 1 da ementa, quanto no item 2, a própria segunda seção teve o cuidado de registrar a importância de se avaliar as especificidades de cada caso concreto para se aferir se a transferência da posse, gozo ou disponibilidade do bem ao terceiro adquirente, com base nos fatos e provas de cada demanda, é questão fundamental para o julgamento que estiver sendo realizado. A ressalva feita, para além de demonstrar zelo, confirma que temperamentos existem às teses firmadas, inclusive no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, diante de circunstâncias especiais que enquadrem outros casos concretos como exceções às referidas teses, em decorrência de suas particularidades fáticas. Por caracterizar exemplo recente de interpretação e relativização das teses firmadas no REsp 1.345.331/RS, merece destaque o acórdão proferido no julgamento do recurso especial 1.847.734/SP, realizado em 29/3/22 e relatado pelo Eminente Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, pelo qual a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça definiu que o promitente comprador deve pagar as taxas condominiais a partir do momento no qual as chaves estavam à sua disposição, quando houver recusa ilegítima em recebê-las. A ementa estabelece: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INEXIBILIDADE DE DÉBITO. DESPESAS CONDOMINIAIS. ENTREGA DAS CHAVES. RECUSA. MORA. RESPONSABILIDADE. ADQUIRENTE DO IMÓVEL. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir a parte responsável pelo pagamento das despesas condominiais quando há recusa do adquirente do imóvel em receber das chaves. 3. O promitente comprador passa a ser responsável pelo pagamento das despesas condominiais a partir da entrega das chaves, tendo em vista ser o momento em que tem a posse do imóvel. Precedentes. 4. A recusa em receber as chaves constitui, em regra, comportamento contrário aos princípios contratuais, principalmente à boa-fé objetiva, desde que não esteja respaldado em fundamento legítimo. 5. O adquirente deve pagar as taxas condominiais desde o recebimento das chaves ou, em caso de recusa ilegítima, a partir do momento no qual as chaves estavam à sua disposição. 6. Recurso especial não provido." Demonstrando sensibilidade às particularidades do caso concreto, o Eminente Ministro Relator, no voto condutor, ponderou que "a resistência em imitir na posse (e de receber as chaves) configura mora da parte adquirente, pois deixou de receber a prestação devida pelo alienante (no caso, a construtora). Nessa circunstância, o art. 394 do CC/2002 deixa claro que se considera em mora o credor que não quiser receber o pagamento e/ou a prestação no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer." O recente precedente mencionado reforça a plausibilidade da tese de que a disponibilidade da posse já é suficiente para que o adquirente passe a pagar as despesas condominiais, nos casos em que a ausência de entrega das chaves da unidade decorrer de falta de quitação integral do preço convencionado. Com efeito, é comum, em promessas de compra e venda de unidades incorporadas, a inserção de cláusulas contratuais dispondo: (i) que o termo inicial da responsabilidade do adquirente pelo pagamento de contribuições condominiais coincide com a data da assembleia geral de instalação do condomínio; (ii) que a obra será considerada concluída pela concessão do respectivo "habite-se"; e (iii) que a incorporadora exercerá regularmente o direito de retenção das chaves previsto no art. 52 da lei 4.591/64 até o recebimento integral do preço ou assinatura de contrato de financiamento. Daí decorre que o fato posse, conforme convenção contratual, nem sempre coincide com o termo inicial de o comprador suportar as despesas de condomínio, pois o recebimento das chaves da unidade, já pronta, disponível e reservada, pode ocorrer bem depois da conclusão da obra, da expedição do "habite-se" e da instalação do condomínio, por fato decorrente de culpa exclusiva do comprador. Isso porque muitas vezes, finalizada a obra, expedido o "habite-se" e instalado formalmente o condomínio, o adquirente incorre em mora ou inadimplemento total relativo ao pagamento da parcela final do preço, não sendo imitido na posse da unidade. Para estes casos concretos específicos, em que o incorporador comprova a ocorrência cumulativa dessas três relevantes particularidades destacadas no parágrafo anterior, parece-nos inteiramente defensável, lícita e razoável, em termos de direito obrigacional, a disposição contratual pela qual o comprador se obriga a satisfazer o pagamento das contribuições condominiais a partir da instalação formal do condomínio, ato subsequente ao "habite-se", pois desde aquela data há plenas condições para o exercício da posse2. Se a entrega das chaves da unidade não ocorre naquele momento, isso se deve à vontade do adquirente ou à existência de parcelas do preço pendentes de pagamento, o que permite o exercício regular do direito de retenção das chaves pelo incorporador que está assegurado no art. 52 da lei 4.591/64. É importante ter em mente que não se pode mesmo confundir a conclusão do empreendimento com a entrega das chaves das unidades a cada um dos adquirentes, na medida em que apenas a primeira depende de esforços exclusivos da construtora para sua caracterização, enquanto a segunda está condicionada ao efetivo cumprimento, pelo adquirente, das obrigações contratuais que assumiu como condição para aquisição do imóvel. A confiança na tese ora defendida, que já vem sendo reconhecida em vários juízos e tribunais do país quando confirmada a ocorrência cumulativa das particularidades que a distinguem, reside, principalmente, nos argumentos de: (i) possibilidade de exercício da posse pelo adquirente adimplente desde a data de instalação do condomínio, sempre que ciente o condomínio da existência do contrato; (ii) necessidade de prevalência da vontade das partes, diante de uma disposição contratual válida e eficaz; (iii) impossibilidade de beneficiar o contratante inadimplente em detrimento daquele que está em dia com suas obrigações contratuais - a mora do adquirente caracteriza a retenção das chaves prevista no art. 52 da lei 4.591/64 como exercício regular de um direito previsto em lei - sob pena de subversão da lógica que rege o princípio da causalidade e de estímulo ao comportamento contraditório; e (iv) coerência da disposição contratual com o estabelecido no art. 395 do Código Civil, segundo o qual "Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado." Nesse contexto, e por força do princípio da causalidade, entendemos que o adquirente de unidade, mesmo quando não imitido efetivamente na posse por não ter pago a integralidade do preço ajustado (ou seja, por culpa exclusiva sua), deve também responder pela obrigação de pagamento das despesas condominiais desde a data que lhe era possível receber as chaves do imóvel, pelos memos motivos jurídicos invocados pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial 1.847.734/SP, em que houve recusa injustificada do adquirente ao recebimento das unidades. Assim como ocorreu no acórdão acima mencionado, existem outros litígios em que a data da disponibilidade da posse deve se sobrepor à data de efetiva imissão para que sejam corretamente solucionados, em razão de suas especificidades fáticas comprovadas. O entendimento em referência guarda plena coerência com o recente acréscimo do art. 67-A na Lei de Incorporações (lei 4.591/64), por meio da "Lei dos Distratos" (lei 13.786/18), tendo recebido o aludido dispositivo a seguinte redação: "Art. 67-A . Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pagado diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I - a integralidade da comissão de corretagem; II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. § 1º Para exigir a pena convencional, não é necessário que o incorporador alegue prejuízo. § 2º Em função do período em que teve disponibilizada a unidade imobiliária, responde ainda o adquirente, em caso de resolução ou de distrato, sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, pelos seguintes valores: I - quantias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel; II - cotas de condomínio e contribuições devidas a associações de moradores; (...)" E como vários juízos e tribunais já vêm, com sensibilidade, reconhecendo essas distinções na análise de casos concretos, parece-nos válido o esforço coletivo para que o Superior Tribunal de Justiça afete oportunamente algum recurso especial versando sobre o tema para que seja julgado como representativo de controvérsia, objetivando que seja fixada a tese de validade da disposição contratual que atribui ao adquirente da unidade a obrigação de pagamento das despesas condominiais desde a data em que disponibilizada a posse, nos casos em que a efetiva imissão não ocorra ou seja retardada por ato exclusivo do comprador.
Introdução  A lei 14.382/2022 deu nova redação ao art. 68 da Lei de Incorporação Imobiliária, conferindo tratamento legal adequado à incorporação de casas isoladas ou geminadas. Embora já existisse a previsão legal em seu texto original, havia uma lacuna legislativa que gerava insegurança à sua aplicação prática. Essa falta de clareza foi corrigida pela nova redação. Trata-se, efetivamente, de uma nova forma de incorporação imobiliária, que tem como característica central o desenvolvimento de bairros planejados sem que seja constituído o condomínio edilício. Neste breve texto, trataremos apenas dos pontos centrais do novo art. 68 da lei 4.591/64. A incorporação imobiliária de casas isoladas ou geminadas em lotes de terreno: O desenvolvimento de conjuntos imobiliários O traço característico deste negócio imobiliário tratado pela nova redação do art. 68 é justamente a alienação de lotes urbanos com o acréscimo da construção das unidades habitacionais sem a formação de um condomínio. A concepção do projeto imobiliário diz respeito, essencialmente, a criação de bairros planejados, em que é incompatível a instituição do condomínio edilício, porque não se conseguiria administrar a convivência desta coletividade sob o regime condominial e, ao mesmo tempo, integrá-lo a cidade de maneira estruturada e orgânica. A novidade do art. 68 autoriza que uma das pessoas indicadas no art. 31 art. da lei 4.591/64 ou 2º-A da lei 6.766/79 promova a incorporação imobiliária, sem que dela resulte a formação de um condomínio edilício. As áreas e vias públicas por ele abrangidas se manterão como integrantes do domínio público e não estarão submetidas a um regime condominial. Como se percebe, a atividade do incorporador estará conectada com o próprio planejamento urbanístico das cidades, de maneira que não se trata apenas de uma mera incorporação imobiliária com a criação de uma célula condominial que será acoplada na cidade. Mas existirá uma interface com toda a comunidade adjacente que é integrada a esse novo bairro planejado que se desenvolve, agora, sob o manto da incorporação imobiliária. Esse modelo de negócio empresarial é comum no ambiente dos Programas Habitacionais do Governo Federal, em especial, no âmbito do Programa Casa Verde e Amarela, atual programa habitacional sucessor do Programa Minha Casa Minha Vida. Nesses programas habitacionais onde o empreendimento é implantado em grandes glebas, o empreendedor usualmente desenvolve a concepção do projeto imobiliário sob a roupagem de Loteamento Urbano, porém, agrega a comercialização da unidade residencial como elemento indissociável, uma vez que não seria possível acessar a linha de crédito habitacional, Sistema Financeiro de Habitação ("SFH"), pelo mutuário se não houvesse a comercialização da habitação ao consumidor final. Vale destacar que a incorporação de casas não se destinará apenas aos programas habitacionais, mas poderá ser utilizada em qualquer contexto de desenvolvimento imobiliário, desde que atendidas as regras constantes do art. 68 e, ainda, não necessariamente precisa ser de destinado à habitação, podendo ser aplicável seu regramento também aos estabelecimentos não residenciais, como àqueles de uso misto. A incorporação de casas manterá a integração das áreas públicas junto à municipalidade. As áreas e vias públicas como bens públicos autênticos se juntarão funcionalmente à cidade1. O resultado dessa operação urbanística consiste na geração de áreas que são privativas dos adquirentes e no provimento de áreas públicas, tais como as vias de circulação, logradouros públicos e equipamentos urbanos. Esses bens, efetivamente, passam ao domínio do Município, nos termos do art. 22 da lei 6.766/79 e integram o conjunto de bens da coletividade. O desenvolvimento desta incorporação não pressupõe a prévia promoção do parcelamento do solo pelo empreendedor, de modo que pode promovê-la em loteamento ou desmembramento já previamente implantado. Além disso, é possível a promoção dessa nova modalidade de negócio imobiliário como uma decorrência natural do planejamento empresarial do incorporador, quando da concepção e estruturação deste conjunto imobiliário. Os espaços que integram as áreas institucionais, vias públicas, áreas de lazer, permanecerão sob os cuidados da Administração Pública, não cabendo às unidades originadas da incorporação instituída pelo art. 68 o rateio de despesas pela conservação de tais áreas, ressalvados casos específicos em que sejam desenvolvidos loteamentos de acesso controlado com a criação de associações2. Portanto, a nova redação do art. 68 dada pela lei 14.382/2022 tem clara inclinação para o desenvolvimento de conjuntos imobiliários planejados, deixando evidente a sua correlação com o direito urbanístico das cidades, já que as vias e áreas públicas, aliada aos próprios equipamentos urbanos, ficarão sob o domínio público. Memorial de Incorporação É o registro do memorial de incorporação que confere a habilitação para o incorporador levar a cabo sua atividade empresarial consubstanciada na alienação de lotes vinculados à construção das unidades durante o desenvolvimento do empreendimento. Os documentos que deverão ser apresentados no âmbito do memorial de incorporação desta modalidade de negócio imobiliário são aqueles constantes do art. 32 da lei 4.591/64 e não tem relação com os documentos tratados pelo art. 18 da lei 6.766/79, que dizem respeito ao registro do parcelamento do solo. Dada a particularidade de não serem formadas propriedades comuns, já que as áreas verdes, vias e equipamentos públicos já foram transferidos ao domínio público no registro do parcelamento de solo, o legislador excepcionou os documentos do art. 32 da lei 4.591/64 que não precisam ser apresentados. No ato de registro do memorial, o incorporador deverá indicar a metragem de cada lote, assim como a área de construção de cada casa. Porém, está dispensado da apresentação dos documentos constantes das alíneas e, i, j, l e n, nos termos do parágrafo 2º do art. 68. Aqui vale destacar que algumas alíneas, embora tenham sido dispensadas pelo legislador, poderão ser úteis ao incorporador e aos adquirentes. Assim, é possível que se apresente, por exemplo, a declaração de que trata a aliena "n" do art. 32, que fixa prazo de carência para confirmação ou denúncia da incorporação. Aliás, a sua apresentação revela uma conduta prudente do incorporador. O legislador foi cuidadoso para que o memorial de incorporação seja tão completo quanto necessário à consecução deste negócio imobiliário, dispensados os documentos que não serão apresentados, porque incompatíveis com as características desta incorporação. O Oficial de Registro de Imóveis deve exercer o controle destes de documentos para permitir a regularidade da incorporação de casas, mas é preciso reconhecer que, neste primeiro momento, será importante a atuação conjunta e cooperativa do Oficial de Registro de Imóveis junto aos incorporadores, a fim de que não seja obstado o próprio desenvolvimento imobiliário que foi prestigiado pelo novo art. 68. Registro da Incorporação, patrimônio de Afetação e o RET O parágrafo 3º do art. 68 trata sobre o registro do memorial de incorporação na matrícula de origem em que tiver sido assentado o registro do parcelamento do solo, vinculando determinados lotes ou a sua totalidade à construção das casas. O legislador deixou expresso que esta incorporação também poderá ser submetida ao patrimônio de afetação, estabelecido pelo art. 31-A e art. 2º da lei n. 10.931/2004, trazendo segurança aos adquirentes e ao próprio incorporador. A sujeição desta incorporação ao regime do patrimônio de afetação se dá pelo fato de ter sido caracterizada a atividade como incorporação imobiliária. Logo, fica evidente o tratamento legal, nos termos do art. 2º, II e art. 31-A da Lei n. 10.931/2004, com as mudanças promovidas na lei 4.591/643. O patrimônio de afetação tem como objetivo central segregar os riscos diretamente atrelados ao empreendimento4. Os ativos segregados ficam afetados à finalidade do desenvolvimento do empreendimento e, para tanto, são afastados dos riscos e obrigações relativos às demais atividades que não digam respeito ao objeto de afetação5. A técnica da afetação visa permitir o atingimento das finalidades da incorporação, evitando que os bens sejam desvirtuados ou alcançados por execuções de credores não vinculados ao patrimônio afetado6-7. Ao mesmo tempo, resguarda os interesses de toda a rede de contratos em torno da operação imobiliária, contribuindo para o fomento da atividade da construção civil ao tempo em que se protegem os adquirentes e demais credores. Uma vez permitida a afetação da incorporação imobiliária de casas, é natural que se reconheça a possibilidade de utilização do Regime Especial de Tributação - RET, desde que tenha sido averbado o patrimônio de afetação na matrícula da incorporação, nos termos do §3º do art. 68 da lei 4.591/64. O RET não é um tributo propriamente, mas uma forma de recolhimento aglutinado de tributos federais pelo pagamento de uma alíquota predefinida pela legislação quanto à receita mensal recebida. Essa sistemática de tributação é exclusiva àquelas incorporações imobiliárias que tenham sido submetidas ao patrimônio de afetação. Com a adoção do RET, o incorporador usufruirá de uma alíquota unificada para pagamento da totalidade de suas receitas mensais, no montante de 4% e que envolve os impostos e contribuições federais IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, enquanto no Lucro Presumido esta alíquota é de 6,73%, de maneira que existe uma maior eficiência tributária com a adoção do RET. O RET possui semelhanças como lucro presumido e não admite a utilização de prejuízos fiscais, tampouco compensações ou deduções. O RET da incorporação vigerá até o recebimento integral do valor das vendas das unidades que compõe o memorial de incorporação, independentemente da data em que ocorra a sua comercialização8. Emolumentos: registros, averbações e o art. 237-A da lei 6.015/73 O legislador também foi atento quanto aos emolumentos. Assim, cuidou de submeter a incorporação de casas ao regramento previsto no art. 237-A da lei 6.015/73, que tem como objetivo a redução de custos atrelados ao desenvolvimento imobiliário, sem descuidar do respeito a formalidade dos atos registrais, bem como sem onerar demasiadamente o empreendedor e o adquirente e, ainda, sem atentar contra a qualidade e a justa remuneração dos serviços dos registradores. Desta maneira, considerando o contexto do registro do parcelamento do solo e mesmo desta incorporação do conjunto imobiliário, o legislador estabeleceu que a cobrança será feita como ato único, e não como múltiplos atos, com fundamento no art. 237-A da Lei de Registros Públicos, garantindo-se o desenvolvimento imobiliário economicamente sustentável, já que a cobrança como múltiplos atos inviabilizaria financeiramente a incorporação de casas. Conclusão  Esse artigo teve como objetivo analisar brevemente a incorporação de conjuntos imobiliários à luz da nova redação do art. 68 da lei 4.591/64, dada pela lei 14.382/2022, com destaque para os principais aspectos legais desta nova modalidade de incorporação, bem como tratou da sua interface com a Lei do Parcelamento do Solo e Lei de Registros Públicos. Bibliografia ABELHA, André. Direito imobiliário: reflexões atuais. Porto Alegre: Paixão, 2021. CHALHUB, Melhim Namem. Da Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. MIRANDA, Victor Vasconcelos. TAKEISHI, Sandra Caparelli. Incorporação Imobiliária: O Planejamento Contratual, as suas Garantias e os Riscos da Recuperação Judicial do Incorporador. 4ª ed. Junho/2020. São Paulo: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário, 2020. p. 249-273. NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do Solo Urbano in: Curso de Direito Imobiliário. Coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Os Direitos do Compromissário Comprador diante da Falência ou Recuperação Judicial do Incorporador de Imóveis. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 76/2017 | p. 173 - 193 | abr. - jun. / 2017 | DTR\2017\1648. __________ 1 NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do Solo Urbano in: Curso de Direito Imobiliário. Coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021 p. 305. 2 A possibilidade de estabelecimento de loteamentos de acesso controlado veio à tona com a modificação implementada pela Lei n. 13.465/2017, que alterou a redação do art. 2º, inserindo o §8º, na Lei n. 6.766/79. No entanto, para sua correta utilização faz-se necessária autorização municipal. Confira-se: art.2º, §8º: "Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1o deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". 3 Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Art. 31-A A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. 4 CHALHUB, Melhim Namem. Da Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.85. 5 ABELHA, André. Direito imobiliário: reflexões atuais. Porto Alegre: Paixão, 2021. Passim. 6 Em idêntico sentido Cf.: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Os Direitos do Compromissário Comprador diante da Falência ou Recuperação Judicial do Incorporador de Imóveis. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 76/2017 | p. 173 - 193 | abr. - jun. / 2017 | DTR\2017\1648. 7 Cf.: MIRANDA, Victor Vasconcelos. TAKEISHI, Sandra Caparelli. Incorporação Imobiliária: O Planejamento Contratual, as suas Garantias e os Riscos da Recuperação Judicial do Incorporador. 4ª ed. Junho/2020. São Paulo: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário, 2020. p.249-273. Passim. 8 Havia grande discussão fiscal acerca do momento em que se encerrava o RET. Para encerrar a controvérsia, o legislador inseriu pela lei n. 13.970/2019 o Art. 11-A, que dispõe: "O regime especial de tributação previsto nesta Lei será aplicado até o recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação registrado no cartório de imóveis competente, independentemente da data de sua comercialização, e, no caso de contratos de construção, até o recebimento integral do valor do respectivo contrato".
quinta-feira, 28 de julho de 2022

O que muda no recurso especial?

1. Introdução No dia 15/7/22, foi publicada a EC 125/22, fruto da aprovação da proposta de EC 39/21, pela Câmara Federal, após prévia aprovação no Senado. Tal emenda modificou o art. 105, da CF/88, acrescentando novas regras ao juízo de admissibilidade do recurso especial. Trata-se de medida que contou com forte apelo de membros do Poder Judiciário, especialmente do próprio STJ, pois confiam que as novas regras auxiliarão a Colenda Corte a gerir melhor o problema relacionado ao grande volume de recursos que todo ano ascende ao Tribunal Superior. O objetivo do presente artigo é analisar, em termos gerais, as motivações que levaram a promulgação da EC 125/22, as novidades efetivamente implementadas ao juízo de admissibilidade do recurso especial e, a partir disso, refletir sobre os possíveis impactos que as novas regras trarão na condução dos processos judiciais doravante. 2. A motivação da proposta de EC 39/21, que originou a EC 125/22 A proposta de EC 39/21 teve como objetivo primordial reduzir o número de recursos especiais que chegam ao STJ e contou com amplo apoio dos ministros integrantes da Corte. O ministro Humberto Martins, atual presidente do STJ, em entrevista recente, assentou que "a aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para o melhor funcionamento de todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para pacificar o entendimento quanto às leis federais".1 Vale registrar que, dada a função constitucional do STJ - de processar e julgar em última instância os recursos especiais2 voltados contra acórdãos dos Tribunais de Justiça, proferidos em violação a expressa disposição de lei Federal, ou que conduzam a interpretação da lei de modo diverso da conferida por outro tribunal -3, a implementação de um requisito de admissibilidade mais rigoroso ao recurso especial, que, na prática, restringe (talvez até drasticamente) esse exercício constitucional da Corte Superior, somente poderia ser implementada mediante proposta de EC. Lição, aliás, que o legislador trabalhista, ao introduzir o inconstitucional art. 896-A, §1º na CLT, não se atentou4. A proposta de EC 39/21 foi aprovada pelos deputados federais no último dia 13/7, e, no último dia 15/7, foi publicada a EC 125/22, da qual se originou, tornando vigente as adequações que vamos abordar no presente artigo. 3. Da série de medidas anteriores que também visaram combater a 'crise' dos recursos nos Tribunais Superiores Não é a primeira vez que o legislador constituinte estabeleceu regras com vistas a reduzir o trabalho dos Tribunais Superiores. Aliás, podemos com tranquilidade dizer que a própria criação do STJ, por força da CF/88, a rigor, foi uma medida com esse viés, uma vez que  pensada para reduzir o volume de recursos que à época tramitavam exclusivamente perante o STF, o qual, desde a reforma constitucional de 1926, reunia a competência para processar e julgar recursos interpostos, tanto contra acórdãos que perpetrassem violações a norma constitucional quanto infraconstitucional5. Até poderíamos retroceder mais e registrar que, na famigerada Carta Constitucional Militar de 1969, por meio da EC 7/77, já existia o requisito da "arguição de relevância"6, também filtro de admissibilidade subjetivo para o então recurso extraordinário e que, ironicamente, por não ter sido considerado compatível com os ideais democráticos da CF/88, acabou sendo revogado na ocasião de sua promulgação, como bem ressalta Bruno Dantas: "A arguição de relevância veio a ser totalmente eliminada do sistema com a promulgação da Constituição de 1988. Diante da pecha de antidemocrático, o instituto sucumbiu à sede de mudança que guiava o constituinte de 1988. A ideia de que o produto dos vinte e um anos de ditadura militar deveria ser, tanto quanto possível, banido do cenário nacional foi determinante para o ocaso da arguição de relevância"7 Mas, olhando novamente para o cenário normativo pós CF/88, não há como deixar de citar a grande inspiração da EC em estudo, o requisito da "repercussão geral" aos recursos extraordinários, introduzido no ordenamento jurídico por meio da EC 45/04. A partir de sua vigência, os recursos extraordinários, para serem admitidos perante o STF, passaram a ter de demonstrar em seu bojo que conduziam à apreciação da Corte Suprema temas com "repercussão geral"8, compreendidos como aqueles que demandassem interesses além das partes litigantes, com ampla repercussão social, jurídica, política ou econômica. O legislador infraconstitucional, ao longo das últimas décadas, também municiou o Poder Judiciário com instrumentos processuais que objetivassem reduzir o volume de recursos distribuídos nos Tribunais Superiores. Nesse contexto, merece destaque a lei 11.418/06, responsável por introduzir os artigos 543-A, B e C, ao CPC/73, os quais, por sua vez conferiram maiores contornos ao requisito de admissibilidade da "repercussão geral" e ainda introduziram no ordenamento jurídico, perante o STJ, a figura dos julgamentos de recursos especiais repetitivos. Por meio dessa sistemática de julgamento, o STJ passou a poder selecionar recursos que veiculassem temas bastante debatidos no judiciário e com pretérita construção jurisprudencial da Corte (daí o termo 'repetitivos', e não 'ineditivos', como em obra específica já tivemos a oportunidade de ressaltar9) e, por meio de um único julgamento de mérito, firmar orientação jurisdicional que deveria doravante ser seguida pelos magistrados de todo o país ao julgarem processos semelhantes. Ainda dentro do contexto normativo infraconstitucional, muito importante citar também o CPC de 2015 (lei 13105/15), que, em uma benfazeja evolução do sistema processual anterior, refinou o modelo de julgamentos repetitivos, estabelecendo efeito vinculante para suas decisões10 e até mesmo implementou um verdadeiro 'sistema de precedentes', na medida em que introduziu no ordenamento jurídico as figuras do incidente de assunção de competência11 e, no âmbito regional, do incidente de resolução de demandas repetitivas12. Há quem entenda - este autor inclusive - que, a rigor, a demanda por melhor controle do fluxo de recursos direcionados ao STJ, a qual motivou a edição da EC ora em estudo, já estaria bem equacionada com essas reformas introduzidas pelo CPC de 2015. Sem contar as mais recentes medidas regimentais adotadas pela Corte Superior, tais como a análise mais criteriosa dos requisitos 'clássicos' de admissibilidade13, pelo órgão veiculado a presidência, no momento de autuação do recurso especial, ou mesmo a implementação do "plenário virtual"14 órgão por meio do qual, desde 201615, a Corte Superior passou a concentrar o julgamento de agravos internos e embargos de declaração. A aparente equalização da crise dos recursos especiais pôde ser constatada inclusive pelos dados mais recentes do próprio STJ, divulgados no último 01 de julho16, ocasião na qual noticiava-se que a Corte conseguira, no primeiro semestre de 2022, julgar uma quantidade maior de recursos do que o número de novas distribuições. Segundo a matéria, teriam sido registrados 296.224 processos julgados, contra 208.118, de processos distribuídos. Uma taxa de 142% de cumprimento da meta do CNJ! Um feito e tanto, e que, a rigor, parecia transmitir a ideia de que, enfim, o problema estaria solucionado ou ao menos bem encaminhado. Ainda assim, entretanto, prosseguiu-se a tramitação da proposta de EC 39/21, culminando com sua aprovação e publicação da consequente EC 125/22. De modo que, concordemos ou não, é fato que agora as novas regras de admissibilidade para o recurso especial "estão entre nós" e todos os operadores do Direito, em especial os que militam perante o STJ, terão de se adaptar ao novo paradigma. Confira a íntegra do artigo.  _____ 1 _________, Notícias STJ - "Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância", publicado em 14/7/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx - acesso realizado em 16/07/22. 2 Art. 105, III, da CF. 3 E, claro, ainda que em menor frequência, contra acórdãos que julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, nos termos do art. 105, III, "b", da CF/88. 4 Trata-se de dispositivo cujo caput foi inserido na Consolidação das Leis do Trabalho em 2001, por meio da Medida Provisória 2.226/01 e que depois ganhou maiores contornos em 2017, por meio da edição da lei 13.467/17. Referidas normas estabeleciam, sem amparo na Constituição Federal, que o Tribunal Superior do Trabalho somente poderia conhecer e julgar 'Recursos de Revista' que discutissem teses que oferecessem 'transcendência', sendo tal conceito compreendido pela própria lei como aquele que gerasse reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Para maiores detalhes sobre esse polêmico requisito de admissibilidade dos 'Recursos de Revista', recomendamos a leitura do artigo jurídico de Ricardo Calcini e Murilo Soares, junto ao repositório Consultor Jurídico. 5 José Afonso da Silva sustentava que a chave para a crise do recurso extraordinário passava "por uma reforma constitucional, no capítulo do Poder Judiciário Federal, com o fim de redistribuir competências e atribuições dos órgãos judiciários da União" SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 454. 6 art. 119, §1º, da CF/69 dispunha: "§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal". 7 DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 8 Art. 102, §3º, da CF. 9 GONZALEZ, Anselmo Moreira, "Repetitivos ou 'Ineditivos'? Sistematização dos Recursos Especiais Repetitivos", Ed. JusPodivm - 2020 - São Paulo. 10 Art. 927 e incisos, do CPC/15. 11 Art. 947, do CPC/15. 12 Artigo 976, do CPC/15. 13 Ex: tempestividade, poderes de representação, preparo, prequestionamento, óbices a súmula 7 e 83, STJ. 14 vide. art. 184-A, do RISTJ. 15 Data na qual entrou em vigor a Emenda Regimental nº 27/16, que introduziu o art. 184-A, parágrafo único e incisos, ao RISTJ. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura do artigo jurídico disponibilizado no repositório jurídico Migalhas, acessível aqui. 16 Cide Notícia STJ - "STJ Encerra primeiro semestre de 2022 julgando quase 90 mil processos a mais do que os distribuídos" - acessível aqui, matéria do próprio STJ de 2022.
Os operadores do Direito (ao menos, em grande parte) buscam, a todo o momento, uma maior segurança jurídica das decisões judiciais proferidas, especialmente no que diz respeito aos Tribunais Superiores. Por exemplo, quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídica proporcionada pelo sistema, mais azeitado o fluxo de relações econômicas. A relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema é razão determinante para a tomada de decisão entre os players do mercado1. No mercado imobiliário, essa premissa não é diferente. Nessa busca constante por uma maior segurança jurídica, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, no REsp n. 1.958.062/RJ, que a sociedade de propósito específico (SPE) com patrimônio de afetação, próprio para um determinado empreendimento imobiliário, não se sujeita aos efeitos da ação de recuperação judicial. Tal decisão é fundamental para trazer maior segurança ao mercado imobiliário e beneficia, diretamente, o consumidor final (adquirente da unidade imobiliária, por exemplo) que terá a garantia e a segurança de que o empreendimento fruto daquela SPE não sofrerá os efeitos da recuperação judicial. Para melhor entendermos a decisão proferida, dois pontos devem ser elucidados ao leitor, como o conceito de SPE e sua finalidade; e o conceito de patrimônio de afetação e suas consequências jurídicas. A prática imobiliária já nos mostra no cotidiano que cada negócio imobiliário usualmente é representado por uma empresa individualizada, de forma a destacar e separar os seus resultados, em consonância às suas características e particularidades, sendo recomendada a estruturação por meio das popularmente chamadas SPEs (Sociedades de Propósito Específico), uma para cada empreendimento2. Essa modalidade permite que pessoas e/ou empresas que não possuem, habitualmente, relação societária, possam criar uma empresa para cumprir determinada atividade específica. Sua grande vantagem (além dos benefícios tributários) é a possibilidade de individualizar a receita, as despesas e as responsabilidades inerentes à atividade a ser executada. Como bem dissertam Alexandre Tadeu Navarro Pereira Gonçalves e Rodrigo Antonio Dias, a SPE é empresa "destinada para uma obra ou uma operação específica, que já nasce com objeto e prazo de duração pré-determinados, visando exclusivamente o cumprimento daquele objeto, inclusive com a eventual participação de outros investidores ou parceiros"3. Dessa forma, os riscos da operação ficam segregados das obrigações próprias das demais empresas e negócios, dos sócios pessoas físicas (ou jurídicas) e das demais SPEs. E é essa segregação que, reduzindo os riscos da operação, permite uma maior facilidade na obtenção de recursos junto às instituições financeiras, maior flexibilidade junto aos fornecedores e prestadores de serviços de cada empresa. Essa concepção trazida das SPEs possui relação direta com a ideia de afetação, trazida pelos artigos 31-A a 31-F da lei 4.591/64. Melhim Namem Chalhub dispõe que o conjunto de direitos e obrigações de um empreendimento imobiliário fique segregado, tendo a exclusiva finalidade de conclusão da obra e entrega das unidades aos futuros adquirentes4. A partir dessa mesma ideia de segregação (também existente no conceito de SPE já trabalhado no presente artigo), vem o conceito de "patrimônio de afetação", que visa proteger a incorporação afetada contra os riscos patrimoniais de outros negócios da empresa incorporadora, para que seus eventuais insucessos em outros negócios não interfiram na estabilidade econômico-financeira da incorporação afetada5. Essa é a ideia trazida no art. 31-A da lei 4.591/64. No que diz respeito à temática específica do presente artigo, qual seja, a incidência (ou não) dos efeitos da recuperação judicial da incorporadora em face da SPE constituída que está executando empreendimento sob o regime de afetação, passemos agora às devidas considerações. O regime de afetação foi inserido na Lei da Incorporação (Lei n. 4.591/64) em 2004, pela lei 10.934. Por isso, não existe menção expressa sobre o procedimento da recuperação judicial, que foi instituído em nosso ordenamento jurídico no ano seguinte, pela lei 11.101/2005. A Lei da Incorporação, no entanto, faz menção expressa ao processo falimentar no art. 31-F: "Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação". Para Melhim Namem Chalhub, a inexistência de expressa menção ao processo de recuperação judicial na legislação específica (Lei n. 4.591/64) não compromete a subsistência das incorporações imobiliárias afetadas, que poderão prosseguir sua atividade com autonomia protegidas pelo regime da incomunicabilidade, que vincula suas receitas à execução da obra e liquidação do passivo do empreendimento imobiliário e veda seu direcionamento para fins diversos dessa destinação6. Essa concepção está muito bem descrita no voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, nos autos do REsp n. 1.958.062/RJ: "No referido julgado, ainda que não se tenha proclamado a absoluta impossibilidade de submissão das SPEs com patrimônio de afetação ao regime de recuperação judicial, ficou assentado que o patrimônio afetado não pode ser contaminado pelas outras relações jurídicas estabelecidas pelas sociedades do grupo (...)". No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, em 2018, a Quinta Câmara Cível analisou caso semelhante, em que também foi reconhecida a impossibilidade de comunicação do patrimônio envolvido no processo de recuperação judicial e os empreendimentos submetidos à afetação7. Pode-se concluir, por conseguinte, que as sociedades de propósito específico que não administram patrimônio de afetação podem utilizar o instrumento da recuperação judicial. Nestes casos, conforme elucidou o Superior Tribunal de Justiça, impossibilita-se a utilização da consolidação substancial (art. 69-J da lei 11.101/2005), tendo em vista que a sociedade de propósito específico "tem sua razão de ser na execução de um objeto social único, evitando a confusão entre o seu caixa e as obrigações dos diversos empreendimentos criados pela controladora", não se mostrando possível a reunião de ativos e passivos com os das outras sociedades do grupo. A dúvida paira, entretanto, sob as sociedades de propósito específico que administram patrimônio de afetação, mas que possuem outros bens existentes em seu patrimônio total. Embora esta hipótese não seja recorrente na prática, há a possibilidade de que o patrimônio de afetação seja apenas parte do patrimônio total de uma SPE. Neste caso, respeitada a segregação patrimonial do patrimônio de afetação, torna-se possível o acesso de sociedade de propósito específico à recuperação judicial. Isso porque o art. 50 da lei 11.101/05 cita diversos meios de recuperação judicial, que, em negociação coletiva entre devedor e credores, poderão ser utilizados para reestruturação da atividade empresária. A análise deverá ser feita, portanto, casuisticamente; rememorando-se, todavia, que o patrimônio de afetação, em qualquer destas hipóteses, deverá ser segregado e não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial. __________ 1 FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. 2 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283. 3 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283. 4 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95. 5 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95. 6 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 144. 7 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITOS ORIUNDOS DE CONTRATOS EM QUE FOI CONSTITUÍDO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. AUSÊNCIA DE SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. No presente caso, recai a controvérsia sobre a sujeição (ou não) de créditos oriundos de contratos em que se constituiu patrimônio de afetação sobre empreendimentos de empresa em recuperação judicial. 2. Nesse contexto, ao que se extrai da análise da legislação aplicável e das alegações vertidas pela parte recorrente, impõe-se a manutenção do entendimento do Juízo de Origem de que, em observância aos princípios norteadores tanto da Lei nº 4.591/1964 quanto da Lei nº 11.101/2005, os créditos objetos dos autos não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, mesmo perante a inexistência de Sociedade de Propósito Específico e que não se tenha previsão específica para os casos de recuperação judicial na Lei nº 11.101/2005. 3. Cumpre salientar que, por força do art. 43, VII, da Lei nº 4.591/1964, pela vulnerabilidade dos adquirentes, do interesse social envolto e do grande risco para a economia popular, são os adquirentes das unidades autônomas que têm o poder de deliberar acerca do patrimônio de afetação, através de assembléia geral de adquirentes, aplicando-se, analogicamente ao caso concreto, o artigo 119, IX, da Lei n° 11.101/2005. 4. Outrossim, em respeito ao instituto do patrimônio de afetação e a toda conotação social e econômica que o envolve, deve ser conferido às recuperandas a utilização dos recursos do patrimônio geral da empresa para a conclusão das obras. 5. Nesse contexto, conclui-se que, ao não serem incluídos os bens afetados aos efeitos da recuperação judicial, preza-se pela observância e busca dos objetivos da Lei nº 11.101/2005, em especial o princípio da relevância do interesse dos credores. 6. Assim, deve ser mantida em sua integralidade a decisão recorrida, no sentido da não sujeição dos créditos decorrentes de contratos com patrimônio de afetação aos efeitos do instituto da Recuperação Judicial. - AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento, Nº 70078064995, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Julgado em: 18-12-2018).
No dia 25 de maio, a Câmara de Vereadores aprovou projeto de lei que simplifica a venda de imóveis pertencentes à Prefeitura do Rio. O projeto vai para sanção ou veto do Prefeito Eduardo Paes nos próximos dias. De acordo com os levantamentos realizados, há um acervo de mais de oito mil imóveis da Prefeitura do Rio subutilizados ou sem qualquer uso para a administração pública. Desse número total, mil imóveis estão nos cadastros imobiliários sob titularidade do Estado da Guanabara mesmo passados quase cinquenta anos da sua extinção pela fusão com o Estado do Rio de Janeiro. Outra grande parte possui cadastro impreciso, com endereços inexistentes, o que dificulta a identificação ou a própria localização do imóvel.  O acúmulo desse patrimônio imobiliário decorre de diversos artifícios legais: extinção de órgãos públicos, cobranças de dívidas fiscais, herança jacente, áreas desapropriadas ou remanescentes de desapropriação, renúncia à propriedade por particulares, dentre outros. Com essa quantidade exorbitante de imóveis e a perspectiva de fluxo frequente de recebimento de novos ativos na sua carteira, a Prefeitura do Rio pode ser considerada um player relevante no mercado imobiliário carioca, com foco patrimonialista ou rentista, mas que não recolhe impostos como os cidadãos comuns, concorrendo, assim, de forma desigual com a iniciativa privada. A bem da verdade, esse quadro não é um caso específico da Prefeitura Carioca e são inúmeros os exemplos Brasil afora de milhares de imóveis públicos abandonados ou subutilizados. Na grande maioria das vezes, esses ativos são alvo de invasão, depredação ou estão em processo de deterioração, criando vazios urbanos que geram perda de valor para todo o seu entorno. É o reflexo do próprio Estado como violador do princípio da função social da propriedade. A União Federal, detentora de mais de seiscentos mil imóveis, no início de 2019 deu início a um trabalho de diagnóstico e avaliação preliminar dos ativos imobiliários subutilizados sob sua gestão. O objetivo era identificar ativos com potencial econômico que, sem qualquer uso para administração pública, fossem capazes de monetização e, uma vez transferidos à iniciativa privada, vetores de transferência de riquezas. O resultado foi a edição da Medida Provisória nº 915, convertida na lei federal 14.011/20, a qual trouxe importantes inovações quanto a racionalização da gestão e desburocratização na venda do patrimônio imobiliário da União. O Projeto de lei complementar 42/21 da Câmara Municipal guarda semelhanças com a legislação federal acima citada, ao transpor para o bojo dos procedimentos da alienação de ativos imobiliários municipais, o mecanismo da Proposta de Aquisição de Imóveis - PAI. Por meio da PAI municipal, qualquer particular poderá apresentar à Prefeitura Carioca uma proposta de aquisição de um ativo imobiliário de sua titularidade. O simples ato de transferir, por venda, um imóvel municipal ao particular, gera relevantes e imediatos resultados positivos econômicos e sociais. Representa corte de despesas e geração de receitas diretas para o Município, dentre elas, aumento da arrecadação municipal com a incidência do ITBI sobre as vendas, do IPTU sobre o imóvel transferido ao particular e do ISS sobre o empreendimento imobiliário a ser desenvolvido, seja sobre as obras de construção ou mesmo a atividade comercial desenvolvida no local. O impacto no dia a dia dos cariocas será inegável com geração de empregos e renda através da contratação de inúmeros profissionais envolvidos direta e indiretamente na indústria da construção civil, além da possibilidade de revitalização de áreas degradadas ou em processo de desvalorização, como acontece, por exemplo, na região do Centro do Rio. A desburocratização na venda desses ativos e redução do tamanho do estado gerará desenvolvimento urbano, econômico e social para toda a região onde o imóvel alienado está inserido. Importante registrar, contudo, que o projeto de lei proposto não altera o procedimento de venda de um ativo imobiliário municipal, cujos trâmites procedimentais devem ser fielmente observados até que um imóvel municipal seja ofertado em certame público. Além disso, a apresentação da PAI no formato do projeto de lei não gera qualquer obrigação de venda ao ente público, cuja análise de conveniência e oportunidade quanto à venda é inarredável. Portanto, são inúmeros os benefícios do projeto de lei complementar 42/21 para a Cidade Maravilhosa. Estamos na torcida para que sua sanção pelo Prefeito Eduardo Paes seja em breve!
O presente autor, em outros textos publicados nesta coluna, já trouxe aos leitores alguns conceitos da teoria chamada de Análise Econômica do Direito. No presente texto, é possível dizer que a decisão mais adiante indicada poderá, em maior ou menor grau, gerar incentivos. Por mais que o modelo teórico de compreensão da escolha humana adotado pela AED ainda seja o tradicional, ou seja, o da escolha mais racional, segundo o qual as pessoas são agentes racionais que buscam a maximização de sua utilidade (bem-estar ou riqueza), na prática, pode-se aplicar o modelo da racionalidade limitada1. Dessa forma, a partir da capacidade humana de obter e processar informações, será possível tomar decisões efetivamente maximizadoras da sua utilidade. A partir dessa premissa, entende-se que, com o recente julgamento da Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (que será mais adiante indicado), a forma de atuação por parte dos Municípios poderá ser alterada, especialmente no que se refere às cobranças de IPTU. Dessa forma, é suma importância tratar de temática muito relevante para a prática do Direito Imobiliário, qual seja, da Ação de Adjudicação Compulsória Inversa. É inegável que adquirir e vender um imóvel é um processo complexo e repleto de obrigações atribuídas a ambas as partes (compradora e vendedora). A mais importante delas, certamente, é a de pagamento do peço estipulado (respeitando as condições estipuladas) por parte do comprador. O vendedor, por sua vez, também possui obrigação fundamental: a de entregar o bem imóvel ao respectivo adquirente após a quitação do valor pactuado entre as partes. Em outras palavras, uma vez adimplido integralmente o valor do imóvel pactuado, surge a obrigação do vendedor de outorgar a escritura definitiva de compra e venda, instrumento hábil para ser levado ao registro para fins de efetivar a transferência do domínio do imóvel ao comprador, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Havendo recusa do vendedor em realizar a outorga da escritura, o comprador poderá requerer, em juízo, que seja suprida a manifestação de vontade por meio da ação de adjudicação compulsória, conforme previsto no art. 1.418 do Código Civil. A sentença da ação de adjudicação compulsória, ao transitar em julgado, valerá como título aquisitivo para fins de registro e transferência da propriedade. Porém, em algumas situações, o comprador (através do instrumento de promessa de compra e venda, por exemplo) se abstém ou cria obstáculos para a transmissão do bem para o seu nome. Os motivos para esse comportamento são os mais variados. No entanto, pode-se dizer que os principais seriam, justamente, o não pagamento dos impostos diretamente relacionados à aquisição do imóvel, como o ITBI (a ser pago no momento da transmissão), e o IPTU. Os autores Eduardo R. Vasconcelos de Moraes e Fernando Flamini Cordeiro já trataram desse assunto no dia 12/12/20192. O referido texto serviu como inspiração para que, neste, fosse possível dar um passo adiante. No último dia 24/03/2022, a Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, julgou recurso de apelação interposto pelo Município de Porto Alegre em desfavor de sentença proferida nos autos de ação de adjudicação compulsória inversa que visava o seguinte: i) a procedência da ação com a expedição de mandado judicial ao Cartório de Registro de Imóveis competente para transferência da propriedade do bem objeto da referida ação; e ii) que fosse aplicado o efeito ex tunc aos efeitos da transferência de propriedade. Ou seja, que retroagissem à data da venda do imóvel realizada em 2008 e que fossem declarados inexistentes os débitos de IPTU junto ao Município de Porto Alegre desde o referido ano de 2008. Consequentemente, tais débitos de IPTU seriam redirecionados única e exclusivamente aos réus/promitentes compradores: APELAÇÃO CÍVEL. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA INVERSA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO DE IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO EM NOME DA PARTE PROMITENTE VENDEDORA. PEDIDO ACOLHIDO. CADASTRO JUNTO À SECRETARIA MUNICIPAL DA FAZENDA, COM A INDICAÇÃO DO POSSUIDOR E PROMITENTE COMPRADOR COMO CONTRIBUINTE PRIMÁRIO EM RELAÇÃO AO IPTU. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA HIERARQUIA DOS CONTRIBUINTES. SENTENÇA CONFIRMADA. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº 50001524520208216001, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em: 24-03-2022) Ao analisar o recurso, a Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul identificou que o que estava sendo discutido na referida ação judicial, não se tratava de transferir ao Município a responsabilidade contratual existente entre terceiros do pagamento do IPTU (assumida em relações privadas das quais não fez parte) mas, sim, de reconhecer o equívoco do Município no direcionamento da cobrança de IPTU à parte autora/promitente vendedora. Isso porque, como bem esclarecido no acórdão, dispunha, o Município, nos cadastros da Secretaria da Fazenda Municipal, a indicação do contribuinte primário em relação ao IPTU do imóvel objeto da lide. Dito de outro modo, os nomes dos réus/promitentes compradores já constavam nos cadastros da Secretaria da Fazenda Municipal. Dessa forma, foram julgados procedentes os pedidos da parte autora, no que diz respeito à expedição de mandado judicial ao Cartório de Registro de Imóveis competente para transferência da propriedade do bem objeto da referida ação e no que se refere à aplicação de efeito ex tunc aos efeitos da transferência de propriedade, especialmente no que se refere à isenção da cobrança do IPTU por parte da parte demandante/promitente vendedora. Portanto, o que se pretende no presente artigo é trazer ao leitor um passo adiante do que foi trazido pelos autores Eduardo R. Vasconcelos de Moraes e Fernando Flamini Cordeiro, em 2019. Através de tal posicionamento jurisprudencial trazido e debatido no presente artigo, pode-se vislumbrar uma possível mudança de comportamento por parte dos Municípios. Ou seja, a expectativa é de que, agora, mantenham sempre atualizados seus cadastros de contribuintes, afim de ser necessário e devido o redirecionamento das cobranças aos promitentes compradores e não, simplesmente, ao proprietário, nos termos do art. 34 do CTN. _____________ 1 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 134.   2 Disponível aqui.
quinta-feira, 5 de maio de 2022

Marco legal das garantias

Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional a MP 1.085/21, que dispõe sobre a modernização do sistema de registros públicos, mediante criação do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), e altera a lei das incorporações imobiliárias, e o PL 4.188/21, que propõe aperfeiçoamentos no regime jurídico dos direitos reais de garantia, entre outras normas destinadas à melhoria do ambiente de negócios. Trata-se de ampla e profunda reformulação legislativa, no contexto da qual destacam-se, por sua especial relevância, normas de proteção dos adquirentes de imóveis pelo regime da incorporação imobiliária e de ampliação do campo de aplicação da alienação fiduciária de bens imóveis em garantia. No primeiro caso, a MP 1.085/21 introduz alterações na lei 4.591/64, deixando claro que o registro do Memorial de Incorporação opera a constituição de tantos direitos de propriedade quantas sejam as frações ideais do terreno onde será construído o conjunto imobiliário. É como ensina Caio Mário da Silva Pereira, ao salientar que a grande conquista da lei 4.591 "foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação" (destaques do autor)1. Essa é a razão pela qual o art. 32, suas alíneas e parágrafos, da Lei 4.591/1964, alinhados aos fundamentos do sistema registral (lei 6.015/1973, art. 225), preveem a qualificação  das frações ideais como objeto de propriedade da espécie condomínio especial (que o Código Civil denomina condomínio edilício), que, por serem dotadas de individualidade autônoma,2 são passíveis de alienação independente de anuência dos demais condôminos-adquirentes, em oposição à espécie condomínio geral, pro indiviso, no qual as frações ideais conferem ao condômino direito difuso em proporção a certa fração sobre o totalidade do bem, vedada sua alienação sem anuência dos demais condôminos (CC, arts. 504, 1.314 e ss).3 Embora se saiba, por elementar, que só é legalmente possível alienar direitos reais imobiliários que estejam qualificados no Registro de Imóveis como direito de propriedade, desenvolveu-se em um ou outro estado da federação a prática de só se considerar constituída essa espécie de propriedade após o término da construção, mediante "averbação" do "habite-se", e não mediante registro da divisão do terreno em frações, por efeito do Memorial de Incorporação. É como se só viessem a existir direitos de propriedade autônomos sobre as frações e acessões depois do "habite-se", pois antes os direitos dos adquirentes seriam diluídos sobre o todo, na proporção adquirida, sob regime do condomínio geral, pro indiviso. Esse estado de vulnerabilidade jurídica a que essa interpretação lança os adquirentes justificou as alterações promovidas pela MP 1.085/21 como forma de pôr fim aos riscos a que estes ficavam expostos, preservando seus direitos reais individuais desde a aquisição das frações ideais e assegurando o exercício das suas prerrogativas. Nesse sentido, a MP 1.085 dá nova redação aos arts. 32 e 43, suas alíneas e parágrafos da lei 4.591/64, que (i) reafirmam a função do registro da Incorporação como modo de constituição da propriedade autônoma sobre as frações ideais de terreno; (ii) dispõem sobre sua blindagem contra penhora por dívidas estranhas ao empreendimento; (iii) vinculam as frações do terreno e acessões do incorporador ao pagamento de suas dívidas relativas ao empreendimento; e (iv) disciplinam o procedimento de substituição do incorporador pela comissão de representantes dos adquirentes, nas situações de crise previstas na lei, e dispõem sobre a averbação da ata de destituição no Registro de Imóveis, a inscrição do condomínio no CNPJ; entre outras alterações da lei 4.591/64 relativas aos efeitos da constituição desses direitos reais de propriedade pelo Registro da Incorporação. De outra parte, o PL 4.188/21 contempla ampla e profunda proposta de modernização do regime dos direitos reais de garantia. No contexto dessa proposição, avulta a regulamentação do registro do contrato de alienação fiduciária da propriedade superveniente de bens imóveis, como forma de aproveitamento do grande potencial econômico do mercado imobiliário residencial urbano para garantia de múltiplas operações de crédito. A proposição é justificada pela necessidade de definir tratamento legal peculiar para essa garantia, e é motivada pela sua efetividade, demonstrada na prática pela sua efetividade como elemento catalisador do crescimento do mercado de crédito imobiliário, que quintuplicou a participação desse setor no Produto Interno Bruto nos últimos vinte anos4. Compreende-se melhor a necessidade de regulamentação da matéria à vista de cotejo entre os regimes jurídicos próprios da alienação fiduciária e da hipoteca. Com efeito, pela hipoteca o devedor dá o imóvel em garantia, mas conserva consigo a propriedade, podendo, portanto, constituir novas hipotecas, em graus sucessivos (CC, art. 1.476),5 mas, diferentemente, pela alienação fiduciária, o devedor fiduciante se demite da propriedade, transmite-a ao credor fiduciário em caráter resolúvel e se torna titular de direito de reaquisição (CC, arts. 1.361 e ss, e lei 9.514/1997, art. 22). Dada essa peculiar configuração, o poder jurídico do devedor fiduciante em relação ao imóvel alienado fiduciariamente se limita a, alternativamente, (i) alienar fiduciariamente a propriedade superveniente, que vier a adquirir quando implementada a condição mediante cumprimento da obrigação garantida (CC, art. 1.361, § 3º)6, ou (ii) caucionar (empenhar) seu direito aquisitivo7. A matéria está regulada no Código Civil, e já estava prevista anteriormente no Código de 1916, mas sua relativa complexidade justifica intervenção legislativa para disciplinar seus efeitos. É que o contrato de alienação fiduciária da propriedade superveniente, embora válido entre as partes, só terá eficácia depois de implementada a condição a que se subordina e a prioridade erga omnes do direito do credor fiduciário é determinada pela data do seu registro no Registro de Imóveis. Assim, o credor garantido por propriedade fiduciária sobre futura propriedade (propriedade superveniente) só estará protegido contra risco de preterição por outros gravames, eventualmente constituídos enquanto pendia a condição, se registrar seu contrato logo após sua celebração.[8] Esse registro é um dos atos destinados à conservação do direito eventual desse credor fiduciário, permitidos pelo art. 130 do Código Civil, e constitui "medida ajustada ao sistema registral imobiliário e direcionada à promoção de segurança jurídica, pois os efeitos de sua pactuação atingirão terceiros que eventualmente contratarem com o titular do direito real de aquisição [devedor fiduciante]," como observa Jéverson Luís Bottega.9 E, além da proteção do direito eventual previsto na norma codificada, o art. 167, I, 29, da lei de Registros Públicos prevê o registro da "venda condicional", da qual a alienação fiduciária em garantia é espécie.10 Não obstante, não raras vezes a efetivação desse registro é obstaculizada com fundamento em que não existe para ele referência específica no rol do art. 167 da LRP,11 e para pôr fim a essa objeção o art. 13 do PL 4.188/21 preconiza a inclusão dos §§ 3º e 4º no art. 22 da lei 9.514/97, deixando claro que esse contrato é passível de registro desde a data de sua celebração. Essa proposição visa, assim, conferir efetividade à regra do art. 1.361, § 3º, do Código Civil, mas em vez de identificar o contrato tal como nela qualificado, isto é, alienação fiduciária da propriedade superveniente, o identifica como alienação fiduciária do imóvel já alienado fiduciariamente,12 contrariando os arts. 1.228, 1.240 e 1.361, § 3º, do Código Civil, que restringem o poder jurídico do fiduciante, ao impedir a alienação ou oneração por quem não seja proprietário,13 não se justificando tal inovação incompatível com o sistema, sobretudo por já existir solução para a situação, como demonstra a emenda nº 21 ao Projeto de Lei 4.188/2021 ao propor adequação da redação do § 3º do art. 22 da lei 9.514/97 ao conceito estabelecido pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil.14 Merece atenção também a proposta de inclusão dos §§ 5º ao 10 no mesmo art. 22 da mesma Lei 9.514/1997, que visam disciplinar a coexistência dos direitos do credor garantido por propriedade fiduciária atual e do credor garantido por propriedade fiduciária superveniente, em relação aos efeitos da sub-rogação do credor fiduciário que pagar a dívida do devedor fiduciante comum. A hipótese é de sub-rogação legal regulada pelo art. 346, I, do Código Civil,15 mas o Projeto remete equivocadamente ao art. 31 da Lei 9.514/1997,16 que trata de sub-rogação do fiador ou do terceiro interessado, tornando-se necessária sua adequação mediante remissão ao art. 346, I, do Código Civil, o que comporta supressão de excessos, simplificação e condensação do texto em dois parágrafos.17 A inobservância da correspondência entre essas proposições do PL 4.188/21 e os diversos institutos jurídicos do Direito Privado a que se vinculam se repete em outras partes do projeto, e traz à baila a exigência de rigor conceitual e terminológico na formulação de texto legal, recomendando revisitação dos requisitos de uniformidade e coerência estabelecidos pela Lei Complementar 95/1998, especialmente pelo seu art. 11, incisos e parágrafos.18 A atenção a esses requisitos é especialmente relevante diante da amplitude e diversidade da reformulação normativa proposta, envolvendo a constituição, execução e extinção de direitos reais, notadamente de garantias, entre as quais se encontram (i) a possibilidade de recarregamento da hipoteca ou da garantia fiduciária, pelo qual essa garantia acolha novas operações de crédito; (ii) o tratamento legal especial para financiamento de moradia, notadamente o que exonera o devedor inadimplente da responsabilidade de pagamento do saldo devedor remanescente, se o produto do leilão não for suficiente para satisfação integral do crédito; (iii) a execução hipotecária extrajudicial no âmbito do Registro de Imóveis; (iv) a tipificação do contrato de administração fiduciária de garantias, mediante inclusão do art. 853-A entre as várias espécies de contrato do reguladas pelo Código Civil, entre outras proposições. Esses são apenas alguns dos temas que integram a ampla reformulação legislativa proposta pela Medida Provisória 1.085/2021 e pelo Projeto de Lei 4.188/2021. Seu alcance social e econômico é evidente e justifica sem dúvida alguma a alteração do panorama normativo vigente, com a necessária adequação do conteúdo normativo das propostas aos requisitos de coerência e unidade do sistema de que trata a lei complementar 95/98, de forma a conferir efetiva melhoria do ambiente de negócios, a partir da atualização do direito civil patrimonial, da modernização dos sistemas de registros públicos, e da proteção do consumidor nas incorporações imobiliárias. ______________ 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 14. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 284/285.   2 Segundo Afrânio de Carvalho, a existência legal dos imóveis é determinada pela identificação no Registro de Imóveis com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro". CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247. 3 Discorremos sobre as funções do Memorial de Incorporação em nossa obra Incorporação Imobiliária (GenForense, 6. ed., item 2.1.1). 4 Dados do Banco Central do Brasil e da ABECIP - Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança indicam que a participação do crédito imobiliário no Produto Interno Bruno nacional quintuplicou nos últimos vinte anos, tendo saltado de 1,9% em 2001 para 9,8% em 2021. 5 Código Civil: "Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor." 6 Código Civil: "Art. 1.361. (...). § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária." "Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca. § 1º A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono." 7 A constituição de garantias reais sobre a propriedade superveniente era prevista no art. 756 do Código Civil de 1916, como leciona Pontes de Miranda: "durante o tempo em que a condição suspensiva pende, o direito ao direito futuro - o direito expectativo - é transferível, empenhável (caucionável), arrestável, penhorável e herdável (salvo condição de vida); bem como suscetível de ser garantido por fiança, hipoteca e penhor." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 12. ed., 2012, § 545, nºs 6 e 9, e § 2.420. No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 20. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. I, p. 566. Tratamos da matéria em nosso Alienação Fiduciária-Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro: GenForense, 7. ed., 2021, pp. 162 e ss. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, revista e atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes.  Rio de Janeiro: Editora Forense, 20. ed., 2004, v. I, p. 566. 9 BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021, p. 140. 10 Lei 6.015/73: "Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I - o registro: .... 29) da compra e venda pura e da condicional." 11 Nesse sentido: "Suscitação de dúvida registral. Registro de instrumento particular de confissão de dívida e constituição de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia. Propriedade superveniente. Invalidade. O oficial do registro imobiliário tem sua atuação delimitada pelo princípio da tipicidade, de modo que são registráveis os títulos e atos previstos em lei. A alienação fiduciária de bem imóvel em garantia é passível de registro, diferentemente da alienação fiduciária sobre a denominada 'propriedade superveniente', nos termos do art. 167, inc. I, 35, da lei de registros públicos. Circunstância dos autos em que inviável o registro por se tratar de propriedade superveniente". (TJ-RS, 18ª Câmara Cível, Apelação 70069852457, rel. Des. João Moreno Pomar, j. 25.8.2016). 12 Projeto de lei 4.188/2021 (art. 13, que propõe a inclusão dos §§ 3º e 4º no art. 22 da Lei 9.514/1997: "Art. 22. (...). § 3º A alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente, quando realizada pelo mesmo fiduciante do primeiro negócio jurídico, é admitida a registro imobiliário desde a data de sua celebração e a sua eficácia fica condicionada à aquisição do imóvel pelo fiduciante na forma prevista no adquirida pelo fiduciante em decorrência da resolução da propriedade fiduciária nos termos do disposto no art. 25, torna eficaz a transferência da propriedade fiduciária ao credor desde o seu registro." 13 Em relação ao bem móvel infungível, § 2º do art. 2º da Lei 4.728/1965, com a redação dada pela Lei 10.931/2004, tipifica esse contrato como ilícito penal, ao sujeitar "o devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2º, I, do Código Penal." 14 Emenda 21 ao Projeto de Lei nº 4.188/2021: Art. 22. (...). § 3º A alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no Registro de Imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída." 15 Código Civil: "Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum." 16 Lei 9.514/1997: "Art. 31. O fiador ou terceiro interessado que pagar a dívida ficará sub-rogado, de pleno direito, no crédito e na propriedade fiduciária. Parágrafo único.  Nos casos de transferência de financiamento para outra instituição financeira, o pagamento da dívida à instituição credora original poderá ser feito, a favor do mutuário, pela nova instituição credora." 17 "§ 4º Caso deixe de exercer a faculdade de pagar a dívida comum e sub-rogar-se no crédito e na propriedade fiduciária em curso, assegurada pelo art. 346, I, do Código Civil, o credor garantido pela propriedade superveniente se sub-roga de pleno direito, desde a data do registro de que trata o § 3º, no crédito do fiduciante correspondente à importância que restar do produto de eventual venda do imóvel na forma prevista no art. 26-A, art. 27 ou art. 27-A, observado o disposto no art. 33-H." "§ 5º O inadimplemento de qualquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária faculta ao credor declarar vencidas as demais, inclusive aquelas compreendidas na sub-rogação de que trata o parágrafo anterior, devendo cientificar o devedor fiduciante desse vencimento na intimação de que trata o § 1º do art. 26." 18 Mesmo que pareça prosaico ou ingênuo o interesse pelo rigor terminológico na formulação do texto legal, mas tendo presente que a redação de algumas leis sinaliza certo desprezo pela necessidade de adequação das palavras ao conteúdo normativo, convém revisitar os requisitos da Lei Complementar 95/1998: "Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: I - para a obtenção de clareza: a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando. (.). II - para a obtenção de precisão: (.): b) expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico; c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto. (.): g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões 'anterior', 'seguinte' ou equivalentes."
Aquisições de ativos imobiliários suscitam uma série de questões jurídicas particulares. Além de aspectos comerciais e transacionais, que envolvem desde a realização de auditoria técnica e jurídica até a negociação de cláusulas e condicionantes cada vez mais sofisticadas, a depender do caso, partes e advogados devem estar atentos se determinada aquisição de ativos imobiliários é sujeita ou não à notificação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). A essa complexidade acresce o fato de que o gênero "ativo imobiliário" tem inúmeras espécies, que podem se aproximar ou se afastar, a depender de suas características, do que podemos considerar uma empresa ou partes dela. Shopping centers, galpões logísticos, lajes comerciais e fazendas já em operação, para dar alguns exemplos, são ativos bem diferentes de um terreno vazio e sem construção ou benfeitoria, onde se pretende um dia construir algo. Como o impacto concorrencial de cada tipo de aquisição é diferente, faz sentido tratá-las como se fossem a mesma coisa para fins concorrenciais? A Lei de Defesa da Concorrência (lei 12.529/11) prevê que aquisições de ativos com efeitos no Brasil devem ser notificadas ao CADE caso sejam caracterizadas como atos de concentração, desde que os participantes da transação, incluindo nesse conceito os grupos econômicos, atinjam os critérios de faturamento mínimos de R$ 75.000.000,00 e R$ 750.000.000,00 no ano anterior ao ato de concentração. Os requisitos que caracterizam determinada aquisição imobiliária como um ato de concentração de notificação obrigatória não estão detalhados em leis, nem estão previstos nas resoluções do CADE, o que coloca as empresas do mercado imobiliário sob uma exposição indesejável desde o ponto de vista jurídico e econômico, sendo mais um vetor de "risco Brasil", o que ao nosso sentir deveria ser evitado. O remédio é não é de difícil solução: regras claras e que não exponham a necessidade de notificações irrazoáveis que envolvam todo o tipo negócio jurídico imobiliário, sob pena de onerar o mercado e o próprio órgão regulador desnecessariamente. Na prática, o assunto é tratado à luz das particularidades de cada aquisição específica, razão pela qual a jurisprudência atualizada do CADE é de suma importância. As decisões mais recentes do CADE sobre o tema indicam que aquisições imobiliárias devem ser notificadas, se os players atingirem o critério mínimo de faturamento, quando o imóvel: (i) puder ser considerado como um ativo produtivo para o adquirente (e não necessariamente produtivo por si só); e/ou (ii) minimamente guarde relação com a atividade econômica a ser nele desenvolvida. A caracterização de um imóvel como um ativo produtivo, conforme decisões recentes, leva em consideração alterações e/ou incrementos da oferta de bens ou serviços ao mercado pelo adquirente do imóvel. Contudo, é importante ressalvar que, segundo precedente recente, o fato de haver inoperabilidade imediata do imóvel ou necessidade de investimentos significativos para torná-lo produtivo não afastaria a necessidade de notificação à autoridade antitruste. Cabe aqui o questionamento, com um exemplo extremo: por que a compra de um imóvel onde será erguido um prédio é mais relevante do ponto de vista concorrencial do que a compra de todos os materiais e serviços para sua construção e operação, já que todos a rigor são necessários para o resultado almejado? Pontos que mereceriam maior especificação estão relacionados à conceituação da relação que o imóvel deve guardar com a atividade a ser nele desenvolvida pelo adquirente. Os casos a seguir ilustram o argumento: Adentrando ainda mais na seara imobiliária, não apenas aquisições de imóveis, segundo a interpretação do CADE, podem suscitar a necessidade de notificação. Por exemplo, em 2016, o CADE aplicou multa de aproximadamente R$ 400.000,00 (quatrocentos mil) por consumação de operação imobiliária sem notificação ao CADE (gun jumping), em caso envolvendo contrato de locação de frigorífico pelo prazo de 5 (cinco) anos1. Nesse caso, o CADE entendeu que a locação geraria o aumento da capacidade produtiva da locadora ainda que o imóvel permanecesse de propriedade de terceiro. Diante das potenciais consequências, que podem incluir multas de até R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões) e a nulidade da operação, parece natural que o risco envolvido tenda a levar ainda a mais submissões de atos de concentração ao CADE, consolidando a orientação e reproduzindo a lógica de julgados anteriores. Entretanto, algumas reflexões são necessárias para melhor otimização de recursos e tempos do CADE e do setor privado. Andaria bem o CADE com uma orientação criteriosa e formal a respeito do tema, estabelecendo uma regra precisa e objetiva, sem a necessidade de as empresas realizarem elocubrações acerca de questões específicas dos casos concretos, como ocorre em atos de concentração, na medida isso serviria apenas como balizador, já que cada caso guarda as suas particularidades. A nosso ver, para uma análise concorrencial adequada, a regra deveria considerar não apenas "o que se pretende fazer" com o imóvel, mas a sua real condição. Ainda que se possam comparar determinados imóveis a empresas para fins concorrenciais, essa premissa não é verdadeira para toda e qualquer aquisição imobiliária. Tal qual indicado acima, o terreno é apenas uma parte integrante do conjunto de ativos necessários para um projeto imobiliário, seja ele de natureza comercial ou residencial. Apesar de o setor imobiliário ter se tornando um dos que mais notificam operações ao CADE, usualmente não são identificadas complexibilidades ou sensibilidades do ponto de vista estritamente concorrencial nessas operações. Por isso, pode ser salutar considerar a concessão de alguns waivers como ocorre nos Estados Unidos2. A depender do caso, em especial quando não há aquisição de elementos de empresa ou negócios produtivos (por exemplo, um terreno não-operacional), nem uma vocação predestinada do imóvel, poderia o CADE dispensar as partes de notificar determinados negócios imobiliários. A despeito do volume de transações imobiliárias notificadas ao CADE, que tende a crescer em face dos recentes precedentes trazidos anteriormente, no melhor conhecimento dos autores, até o momento não houve imposição de remédios em operações estritamente imobiliárias porque, via de regra, trata-se de um mercado que possui competitividade nata e com vários players em atuação, sobretudo, em função das regulações municipais e estaduais que fazem do mercado imobiliário um mercado com espaço para uma grande diversidade empresarial. Portanto, ao evitar uma enxurrada nociva de casos a serem notificados que possuem pouco ou nenhum impacto concorrencial, o CADE poderá focar em casos importantes que poderiam até mesmo não ser notificadas em razão dos critérios previstos na legislação brasileira que, ilustrativamente, desconsideram o valor da operação. Outra alternativa seria a definição via resolução, desde que autorizada por lei, de parâmetros escalonados que simplificasse a vida das partes e do CADE, identificando critérios objetivos de concentração de acordo com definições de mercado relevantes disponibilizadas pelo CADE e respectivos dados para cálculo da participação (e.g.: área bruta locável, quantidade de checkouts, número de unidades e metros quadrados de área construída), considerando de forma fundamental o espaço geográfico de influência aplicável, pois nada mais lógica, a utilização desse critério num país com dimensões continentais e dinâmicas competitivas locais bastante distintas. Na mesma linha, uma aquisição de terra nua e imóveis sem construção, a nosso ver, não deveria ter sequer a obrigação de ser notificada. De acordo com uma série de pareceres recentes e similares do CADE que aprovaram sem ressalva aquisições imobiliárias (com, na maioria das vezes, concentrações de mercado inferiores a 10%), algumas sugestões de alteração de política antitruste poderiam ser consideradas pelo CADE, eventualmente após a realização de consulta pública3. Por exemplo: a)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado inferior a 5% em todos os mercados relevantes analisados fossem dispensadas de notificação; b)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado entre 5-10% em pelo menos um dos mercados relevantes analisados fossem simplesmente comunicadas ao CADE para que este, em entendendo cabível, exercesse a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 88, parágrafo 7º da lei 12.529/11; e c)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado superior a 10% em qualquer dos mercados relevantes analisados seguissem o regime normal atual de notificação prévia, segundo os ritos sumário ou ordinário à luz do caso concreto. Neste modelo proposto, caso as partes deixassem de notificar ou comunicar suas aquisições imobiliárias, o CADE levaria em consideração tal aspecto na dosimetria das multas por gun jumping em razão de abuso de exercício de direito pelas partes. Assim, combinam-se incentivos de maior eficiência de mercado e correção das premissas econômicas de cada operação imobiliária. O tema proposto merece atenção e ao nosso sentir deve ser objeto de uma regulação que traga regras claras e coerentes ao mercado imobiliário. Procuramos trazer reflexões na busca de soluções que - aplicadas particularmente a aquisições imobiliárias - gerariam economias para os setores afetados e permitiriam que o CADE pudesse concentrar seus servidores na análise de casos realmente relevantes do ponto de vista concorrencial. _______________ 1 Procedimento Administrativo de Apuração de Ato de Concentração nº 08700.007160/2013-27. Representadas: JBS S.A., Tinto Holding Ltda., Unilav Industrial Ltda., Flora Produtos de Higiene e Limpeza Ltda. e Tramonto Alimentos S.A. Voto do Conselheiro Relator Márcio de Oliveira Júnior assinado em: 22/08/2016. 2 Federal Trade Commission, Subchapter H, Rules under the HSR Act of 1976, 16 CFR § 802.2 - Exemption Rules, certain acquisitions of real property assets. Disponível aqui. Acesso: 7 de abril de 2022. 3 São exemplos de atos de concentração recentes aprovados em rito sumário por gerar concentração de mercado inferior a 10%: (i) Ato de Concentração nº 08700.002640/2021-10 (CSHG Renda Urbana FII e Makro Atacadista S.A.); (ii) Ato de Concentração nº 08700.006043/2020-75 (Gafisa S.A. e Taperebá Empreendimentos Imobiliários Ltda.); (iii) Ato de Concentração nº 08700.004322/2020-02 (Gafisa S.A. e Apogee Empreendimento Imobiliário S.A); e (iv) Ato de Concentração nº 08700.004430/2021-58 (Best Center Empreendimentos e Participações S.A. e Altsa Property - Gestão De Ativos S.A.).
A lei existe para gerar paz e estabilidade social. Quando ela não produz tais efeitos precisa ser adequada. Nesta perspectiva é que foi publicado o art. 54 da lei 13.097/15, preenchendo uma lacuna que afligia a toda sociedade brasileira. Antes de existir tal dispositivo, a lógica estabelecida para as contratações imobiliárias era irracional. Exigia-se de quem pretendia adquirir um imóvel a obrigação de realizar uma via crucis infindável, consideradas as diversas competências jurisdicionais, no intuito de tentar desvendar a existência de alguma ação judicial contra o vendedor tendente a gerar efeitos perante o negócio jurídico que se pretendia realizar, sem que fosse possível alcançar a segurança esperada, pois a apresentação de certidões dos distribuidores forenses não assegurava, na plenitude, a inexistência de processo ou de citação regular. De um lado tínhamos o vendedor tentando alienar seu imóvel, mas sem informar eventual demanda pela qual respondia (desatendida aí, por si só, a boa fé), e, do outro, o comprador tentando, apoiado nos mecanismos que até então lhe eram oferecidos, desvendar um mistério. Tal busca, além de retardar a realização do negócio, era muito onerosa. O custo do Direito, consequentemente, era demasiadamente acentuado para o objeto investigado (alcance de informações fidedignas). Qual foi, então, a evolução implementada neste processo de busca de informações visando a uma contratação imobiliária segura? Aplicar a lógica que proclama Dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre aos que dormem). Ao invés de repassar à sociedade o custo da investigação, passou-se a exigir uma proatividade de quem deseja alcançar a oponibilidade do seu interesse, publicizando-o na matrícula do imóvel. Se alguém tem alguma pretensão envolvendo um imóvel deve lhe conferir publicidade para que esteja protegido. Não o fazendo, terá para si o ônus de provar que um adquirente de imóvel não estava de boa-fé. Toda ação tem uma reação: averbando seu interesse terá a presunção de fraude para alegar, cancelando um registro de transmissão se não houver patrimônio para resguardar a ação; não averbando, terá de provar a fraude na negociação. Assim, foi necessário estabelecer a ideia de concentrar em um único órgão a informação necessária para uma contratação imobiliária segura, reduzindo a assimetria da informação e tornando o custo do Direito menor, gerando uma maior eficiência econômica. Nesta nova lógica todos ganham. O mecanismo hoje requerido é que se averbe um interesse na matrícula do imóvel e, para isso, a Lei ocupou-se até mesmo de prever uma despesa básica correspondente (ver art. 56, §1º da lei 13.097/15, ou art. 98, §1º, IX do Código de Processo Civil). Quem optar por não publicizar seu interesse na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que houve fraude na alienação do mesmo. É evidente a transformação e a evolução. Fraude poderá ser caracterizada quando ocorrer uma alienação de imóvel contra interesse previamente publicizado na matrícula, e não quando não houver a demonstração deste interesse. Possível correlacionar a matéria com os princípios da rogação ou instância, do protocolo e da inércia.   Com efeito, restou estabelecido, hoje, o ônus legal do interessado em publicizar seu interesse, e não mais um ônus para a sociedade de ter que realizar amplas investigações e buscas de diversas certidões, em inúmeros órgãos e jurisdições, até porque estas buscas não garantiam absolutamente o negócio. Ressalta-se, o propósito da Lei é o de permitir a ordem e a estabilidade social, o que vem sendo alcançado pela inovação para o Direito e para a Economia, decorrente do art. 54 da lei 13.097/15. Na prática, já se percebe como o Poder Judiciário, em especial a Justiça Laboral, vem acertadamente enfrentando a questão. Relevante destacar recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho (TST - ROT: 16793420185090000, Relator: Alexandre De Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 18/05/2021, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 21/05/2021), através do qual, em apertada síntese, o Tribunal manteve decisão que julgou procedente a ação rescisória em homenagem à segurança jurídica, respeitando quem, desvestido de má-fé, ainda buscou informação no ambiente próprio, no caso, o Registro de Imóveis, e não encontrou publicizado interesse jurídico contraditório algum sobre o imóvel, apresentado por quem demandava contra o seu proprietário. Segundo consta do decisum, reportando-se ao art. 54, parágrafo único da legislação em evidência, "5. Com o aludido dispositivo da Lei 13.097/2015 consagrou-se o princípio da concentração dos atos registrais, com vistas a conferir maior segurança jurídica àquele que adquire um imóvel de boa-fé, uma vez que exige que todas as informações sobre o bem constem na sua matrícula, inviabilizando qualquer pretensão futura de decretação de ineficácia do negócio calcada em elemento estranho ao registro.". Pondera-se que o princípio da concentração - salvo nas exceções previstas no §1º do art. 54 da lei 13.097/15 (arts. 129 e 130 da lei 11.101/05 e nas hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independa de registro imobiliário) e quando da incidência do art. 185 do Código Tributário Nacional (norma com status de lei complementar) -, servirá para afastar os efeitos deletérios de situações ocultas ou clandestinas, não protegidas porque não publicizadas pelo modo como a Lei hoje considera essencial para a proteção da sociedade. Vale lembrar que o Código de Processo Civil, em 2006, quando do advento da lei 11.382, fomentou a aplicação do Princípio da Concentração, através do art. 615-A. A partir deste momento o credor passou a ter a faculdade de averbar a distribuição da execução de modo a prevenir a fraude à execução. Com a criação da certidão premonitória - e aqui, pedimos vênia para utilizarmos a feliz nomenclatura atribuída a este ato pelo insigne Registrador Sérgio Jacomino - o quadro mudou, antecipando os efeitos dessa presunção antes mesmo da citação do devedor/executado. Logo, o exequente não precisa aguardar o aperfeiçoamento da penhora, podendo, desde a instrução da ação de execução, antes mesmo da citação, assegurar a publicidade do seu interesse. Até mesmo quando da distribuição de ação de conhecimento é possível noticiar um interesse na matrícula, exigindo manifestação judicial específica (art. 54, IV da lei 13.097/15). Posteriormente, em 2010, com a edição da súmula 375 do STJ, solidificou-se em plenitude o Princípio da Concentração que, em conjunto com a referida súmula, tem permeado os decisórios da Corte superior, sendo a orientação jurisprudencial consolidada, como se percebe da leitura da ementa a seguir reproduzida: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE AGRAVADA. 1. Segundo a orientação jurisprudencial consolidada nesta Corte, o reconhecimento da fraude à execução exige a anterior averbação da penhora no registro do imóvel ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, consoante se depreende da redação da Súmula n. 375/STJ e da tese firmada no REsp repetitivo de n. 956.943/PR 1.1 Hipótese dos autos em que o Tribunal de origem, ante a inexistência de prévia penhora ou anotação de execução na matrícula do imóvel, reconheceu a ocorrência de fraude à execução, a partir de presunção de má-fé do terceiro adquirente. 2. Agravo interno desprovido. - (AgInt no AREsp 1016096/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/08/2021, DJe 02/09/2021). Finalmente, com a chegada do novo Código de Processo Civil ampliaram-se as possibilidades de publicização de interesses jurídicos na matrícula de um imóvel, cabendo ao exequente optar por dois tipos distintos de averbação: a da distribuição da execução, a partir da obtenção da certidão do ajuizamento do feito, nos termos do inciso XI do artigo 799 do CPC; ou, ainda, a da admissão da execução, nos termos do artigo 828. A lógica que hoje está estabelecida é mais simples, gera maior eficiência (jurídica e econômica) e segurança: um interesse jurídico sobre um imóvel precisa estar publicizado no ambiente próprio (Registro de Imóveis) para alcançar oponibilidade perante terceiros. Simples assim. O registro é antitético da clandestinidade. Quem não deu a conhecer seu interesse averbando a existência de uma ação na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que o adquirente da propriedade não estava de boa-fé. Terá que realizar prova suficiente em juízo visando à desconstituição dos efeitos de um registro de transmissão. Desse modo, ao contrário do que sustentava o vetusto entendimento (revogado), o art. 54 da Lei nº 13.097/15 não fragiliza o instituto da fraude à execução, mas, pelo contrário, colabora com ele quando elucida, com precisão, que não se deve transferir à sociedade o custo e o ônus de realizar a busca de certidões outras que não apenas a da matrícula do imóvel, o que vai ao encontro da tão esperada desburocratização. Neste sentido, a Medida Provisória nº 1.085/2021 também tratou de otimizar as formas de expedição de certidões, visando ofertar maior eficiência e celeridade aos contratos em questão. Importante ressaltar, para concluir, sobre a vedação ao retrocesso. Neste sentido, deve ser enaltecida a decisão ora apresentada pela compreensão de que o melhor para o Brasil é conferir o máximo de efetividade ao dispositivo em evidência. Os interesses em jogo não são corporativos, mas da sociedade brasileira, a qual esperava o aperfeiçoamento da legislação agora experimentado
A relevância do corretor de imóveis ao mercado imobiliário é inquestionável. Na incorporação imobiliária, quando pensamos a respeito do corretor, somos remetidos imediatamente ao profissional que trabalha no estande de vendas para a intermediação das unidades do empreendimento. Mas antes dessa atuação, o corretor de imóvel possivelmente também intermediou a comercialização do terreno que foi destinado à incorporação imobiliária. Há corretores de imóveis especializados justamente em buscar terrenos para que os incorporadores desenvolvam empreendimentos imobiliários. Esses corretores não oferecem apenas terrenos que já estão aptos para o desenvolvimento de um empreendimento, mas também têm a capacidade de agrupar terrenos (de proprietários diferentes) que possam ser destinados à incorporação imobiliária. O que se objetiva no presente e breve estudo é saber quando será efetivamente devida a comissão de corretagem pelo negócio entabulado entre o incorporador e o proprietário do terreno. A questão torna-se interessante porque mesmo que o incorporador se interesse pelo imóvel apresentado, diversos fatores alheios à vontade das partes concorrem para a consecução do empreendimento. Embora a localização e outras características do imóvel sejam excelentes, inúmeras outras questões influem para o sucesso da incorporação imobiliária. É relevante, assim, ao incorporador, estudar as restrições para construção na legislação urbanística local, avaliar as eventuais contrapartidas que poderão ser determinadas pelos órgãos públicos, investigar a respeito de questões ambientais do terreno, verificar os custos para o desenvolvimento do projeto, obter aprovação do projeto, dentre outras questões. Todavia, as avaliações acima referidas e a obtenção de aprovação do projeto perante o órgão municipal possuem custo elevado, de modo que é muito comum, no âmbito da incorporação imobiliária, que as partes, antes de incorrer em tais gastos, resolvam firmar instrumento particular de promessa de venda e compra, contrato preliminar em que prometem seguir com o negócio definitivo, a depender dos resultados positivos dos referidos estudos e caso o incorporador obtenha a permissão para construir. Assim, considerando que o incorporador quer ter segurança jurídica para poder iniciar as investigações de viabilidade do empreendimento, imprescindível que as partes firmem contrato, ainda que preliminar e declaradamente em caráter de promessa, para constituir algum vínculo jurídico. Como bem referido por Gustavo Tepedino e Carlos Nelson Konder1: [...] reputa-se legítima a prática de as partes celebrarem contrato preliminar com elementos indefinidos, que serão especificados pelas negociações futuras ou, na falta de acordo superveniente, pelos critérios jurídicos de integração contratual, sem prejuízo à sua execução específica. Compreende-se, assim, a necessidade de contratos preliminares em negócios de elevada complexidade, afigurando-se, por vezes, como mecanismo estratégico em contratações nas quais boa parte do conteúdo contratual é deliberadamente postergada para negociações e ajustes futuros [...] Justifica-se, nesse cenário, a estipulação do preliminar, com a presença de todos os elementos essenciais de validade, enquanto parte de seu conteúdo é deixada para futura gestão, em boa-fé, pelos contratantes. Contudo, diante de uma série de incertezas a respeito da viabilidade do contrato, é natural que o contrato preliminar possua cláusula que permita ao incorporador não seguir com o contrato, dentre elas a inviabilidade técnica ou financeira do empreendimento ou o apontamento de riscos jurídicos nos documentos apresentados pelos vendedores, após a intitulada due diligence. Nesse sentido, é corriqueiro o emprego de cláusula contratual em que as partes determinam que a exclusivo critério do incorporador, o contrato poderá ser resolvido de pleno direito (em prazo determinado ou não) quando, exemplificadamente, (i) o projeto pretendido não seja aprovado pela municipalidade ou quando a sua aprovação requer onerosas contrapartidas; (ii) restar comprovado que o terreno possui limitações urbanísticas ou ambientais; (iii) o custo para a implantação do empreendimento superar o valor previsto pelo incorporador ou (iv) qualquer outra situação que possa impossibilitar a viabilidade técnica ou financeira para a execução da obra pretendida. As situações acima descritas são normalmente qualificadas pelas partes nos contratos de promessa de compra e venda como condições resolutivas embora, tecnicamente, por permitirem ao incorporador não seguir com o negócio, correto seria intitulá-las cláusulas resolutivas expressas2. Além de a cláusula resolutiva expressa permitir aos contratantes não seguir com o contrato em definitivo, também confere a facilidade de admitir a resolução do contrato de pleno direito (art. 474, do Código Civil), ou seja, sem a necessidade de confirmação de pronunciamento pelo Poder Judiciário, embora essa questão ainda seja controversa na jurisprudência3. Segundo Aline Valverde Terra4, a cláusula resolutiva expressa é, em definitivo, manifestação evidente da autonomia privada, atribuindo às partes a liberdade de, ao criar o vínculo jurídico, estabelecer em que situações ele poderá ser desfeito, desde que conduzam à incapacidade de a relação obrigacional promover o resultado útil programado. Assim, ao contratar, as partes podem antever os principais riscos envolvidos no contrato, declarando que, na sua ocorrência, o contrato, mediante manifestação do credor, resolve-se sem a necessidade da propositura de uma ação judicial. Embora a cláusula resolutiva expressa seja muito frequentemente utilizada para extinguir o contrato em razão do inadimplemento absoluto, sua função extrapola tal situação. Nesses termos, as partes podem redistribuir os riscos para situações em que sequer exista culpa atribuível à contraparte. Esse relevante instrumento de gestão do risco contratual confere ampla liberdade às partes, nas relações civis, para extinguir o contrato em razão não apenas do descumprimento da contraparte, mas, também, em razão da verificação de fatos e eventos que os contratantes reputem suficientes para a resolução contratual. Nesse sentido, resta a pergunta. Ainda que o corretor tenha sido diligente na sua função, conseguindo aproximar as partes, e que dessa atuação tenha resultado a assinatura de um contrato preliminar, a formalização desse negócio jurídico necessariamente impõe o pagamento da corretagem? Ora. Se, após a investigação técnica e auditoria jurídica, o incorporador verificar que não há impedimentos para seguir com a obra, tendo, por exemplo, obtido a aprovação do projeto pretendido pela prefeitura sem impedimentos ou contrapartidas onerosas, tendo formalizado o contrato definitivo com o proprietário do imóvel (escritura de compra ou permuta), o resultado útil do corretor foi alcançado e a comissão de corretagem é devida, nos termos do art. 725, do Código Civil. A questão é mais controversa quando, mesmo após formalizado o instrumento particular de promessa de compra e venda, o incorporador resolve fazer uso da cláusula resolutiva expressa para extinguir o vínculo contratual, porque o resultado das investigações técnicas e da auditoria jurídica revelaram questões que oneram excessivamente ou impossibilitam a consecução da obra, na forma pretendida. Na lição do Des. Antônio Carlos Mathias Coltro5, [...] é aleatório o contrato (de corretagem) porque o corretor depende da sorte de seu trabalho para ter direito ao recebimento da corretagem, aí estando o risco da atividade em virtude do qual a remuneração do corretor depende da ocorrência de uma condição suspensiva, que consiste na realização do negócio6. Como bem referido por Gustavo Tepedino7, [...] o objeto do contrato de corretagem não é o serviço do corretor em si mesmo considerado, mas o resultado desse serviço, que, por sua vez, não se reduz à conclusão do negócio pretendido, melhor se identificando como a eliminação, por parte do corretor, de qualquer obstáculo à sua celebração. Nesse sentido, ainda que o corretor tenha realizado a aproximação das partes, participado ativamente das tratativas, tendo obtido diversos documentos às partes e atuado diligentemente para a formalização do instrumento particular de promessa de compra e venda, a comissão de corretagem pode não ser devida, caso o resultado útil não seja obtido pelas partes. É necessário, como bem referido por Gustavo Tepedino8, que seja identificada a causa do contrato de corretagem, seja no que tange à exigibilidade da remuneração devida, seja no que concerne à aplicação da disciplina compatível com o contrato. E a causa da corretagem, no âmbito da incorporação imobiliária, é justamente que incorporador e dono do terreno firmem não apenas um contrato preliminar, mas que obtenham o resultado útil com o contrato definitivo. A causa do contrato de corretagem de um contrato de compra e venda de uma casa já construída difere completamente da aquisição de um terreno pretendido para o desenvolvimento de um empreendimento imobiliário, que requer uma série de investigações para confirmar a viabilidade construtiva. Justamente por isso que antes de formalizar o vínculo contratual com o corretor, o responsável pelo pagamento da comissão (normalmente o proprietário do terreno) estipula que a comissão de corretagem somente será devida caso o negócio jurídico pretendido não seja desfeito pelo incorporador, reputando o resultado útil da corretagem como a formalização definitiva do contrato. As demandas judiciais que envolvem a pretensão do corretor de obter a comissão de corretagem mesmo após a extinção do vínculo contratual do incorporador e dono no terreno têm sido frequentes nos tribunais. Em tais situações, caso a dilação probatória demonstre que a incorporadora resolveu extinguir o vínculo jurídico de forma motivada, ou seja, porque questões técnicas e jurídicas comprovaram a inviabilidade do empreendimento, o que autoriza o uso da cláusula resolutiva expressa, a comissão de corretagem não é devida, porque não obtido o resultado útil. Na jurisprudência, podemos destacar julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo9 em que se determinou que a comissão de corretagem somente seria devida caso houvesse aprovação do projeto pretendido pela incorporadora e a efetiva concretização do negócio jurídico definitivo. No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça10, também há diversos julgados que determinam que a comissão de corretagem somente é devida se houver a conclusão efetiva do negócio. Naturalmente há maior segurança jurídica quando as partes estão diante de um contrato com pouca incompletude e cláusulas adequadas e claras a respeito dos principais riscos envolvendo o negócio jurídico. Se a promessa de venda e compra permite expressamente a resolução do vínculo contratual em razão da cláusula resolutiva expressa, retirando-se a eficácia do contrato por questões delimitadas no contrato, a ocorrência de tais fatos permite a extinção do vínculo e, naturalmente, o resultado útil da corretagem não é alcançado. Bem definida essa questão, o contrato de corretagem também pode estabelecer expressamente que o corretor apenas receberá se tal resultado útil for obtido, o que facilita a resolução do conflito, pelo julgador. Por outro lado, nem sempre os contratos de compra e venda são elaborados com o uso da cláusula resolutiva expressa ou estabelecem claramente a possibilidade de o incorporador (ou o vendedor) não seguir com o contrato. Também é corriqueiro que o vínculo jurídico com o corretor não seja formalizado por escrito, o que traz dificuldades ao julgador para saber qual a comissão devida e quem efetivamente foi o contratante. Diante da ausência de contrato de corretagem ou da insuficiência de informações no texto contratual, temos, para nós, que o recebimento da comissão, no negócio jurídico firmado entre incorporador e dono do terreno, fica condicionado à formalização do negócio jurídico definitivo (e não preliminar). Da mesma forma, no silêncio do contrato, alcançado o resultado útil, regra geral, o pagamento da comissão competirá a quem propõe ao corretor intervir na negociação, tal como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça11. Assim, na incorporação imobiliária e no âmbito do contrato firmado entre incorporador e dono do terreno, a melhor interpretação à obtenção do resultado útil é a efetiva formalização do negócio jurídico e, caso o incorporador exerça licitamente o direito conferido na cláusula resolutiva expressa, a extinção do contrato não gera ao corretor a comissão de corretagem. __________ 1 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Qualificação e disciplina do contrato preliminar no Código Civil Brasileiro. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Fereira da (coord.). A evolução do Direito Empresarial e Obrigacional. v. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 37-38. 2 A respeito das distinções entre a cláusula resolutiva expressa e a condição resolutiva, bem como seu correto emprego nos contratos de compra e venda, vide: TERRA, Aline Miranda Valverde. Condição resolutiva, condição suspensiva ou cláusula resolutiva expressa, eis a questão. Migalhas. Publicado em 07/10/2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2021. 3 De fato, a dispensa do proununciamento judicial para a resolução do contrato é questão ainda controversa na jurisprudência. Contudo, em 2021, o Superior Tribunal de Justiça, revendo seu posicionamento mais recente, entendeu pela possibilidade de resolução do contrato de maneira extrajudicial. (REsp 1789863/MS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/2021, DJe 04/10/2021). 4 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 35. Ainda segundo a autora "[...] entende-se legítima a pactuação pelos contratantes, com base na autonomia privada, de cláusulas resolutivas por meio das quais se estabeleça a resolução da relação obrigacional diante da verificação ou constatação de qualquer outro evento, além desses que interferem diretamente no programa econômico do contrato e que conformam, portanto, a cláusula resolutiva expressa, desde que não se trate de eventos qualificados como condição". (Idem, p. 69, nota de rodapé n. 174). 5 COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Contrato de corretagem imobiliária. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 32. 6 No mesmo sentido, como bem referido por Maria Helena Diniz: "[...] na mediação o serviço é prometido como meio para a consecução de certa utilidade; o proprietário do bem a ser vendido, ao contratar o corretor, não objetiva o serviço por ele prestado, mas o resultado útil, que é a obtenção da vontade do contratante para a conclusão do negócio. Logo, apenas quando se verifica tal utilidade é que o corretor terá direito à remuneração. O serviço do mediador somente traduzirá valor econômico quando resultar no acordo para a efetivação do contrato, que constitui a finalidade de seu trabalho. [...]". (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. v. III. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 394). 7 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 144. 8 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 144. 9 "Apelação Cível. Comissão de corretagem. Embargos à execução. Execução de título extrajudicial fundada em contrato denominado 'Instrumento Particular de Opção de venda e Compra com permuta e outras avenças', mediante o qual a compradora, após aprovação do projeto pela Prefeitura, poderá optar pela compra dos imóveis ofertados pelos vendedores. Sentença de improcedência dos embargos. A controvérsia dos autos cinge-se em saber se a comissão de corretagem é devida, considerando que o contrato previa, expressamente, que a comissão só seria devida após o comprador optar pela compra, que, por sua vez, só ocorreria se aprovado o projeto pela Municipalidade. Cláusula 'sucess fee'. Projeto que ainda não foi aprovado pela Prefeitura. Comissão de corretagem que ainda não é devida. Para a execução iniciada pelo exequente, o título deveria ser certo, líquido e exigível. No caso, o valor ainda não é exigível, pois a condição para o recebimento da comissão ainda não ocorreu. Observo que, caso o projeto não seja aprovado, de forma definitiva, ou a compradora não se manifeste, por este ou outro motivo, na compra dos imóveis em questão, a comissão não será devida, pois, nessa hipótese, haverá desistência, e, não, arrependimento. Recurso provido para acolher os embargos à execução e extinguir a execução". (TJSP; Apelação Cível 1017350-54.2018.8.26.0001; Relator (a): Morais Pucci; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/01/2022; Data de Registro: 24/01/2022). 10 Nesse sentido: "CIVIL. CORRETAGEM. COMISSÃO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. NEGÓCIO NÃO CONCLUÍDO. RESULTADO ÚTIL. INEXISTÊNCIA. DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. COMISSÃO INDEVIDA. HIPÓTESE DIVERSA DO ARREPENDIMENTO. 1. No regime anterior ao do CC/02, a jurisprudência do STJ se consolidou em reputar de resultado a obrigação assumida pelos corretores, de modo que a não concretização do negócio jurídico iniciado com sua participação não lhe dá direito a remuneração. 2. Após o CC/02, a disposição contida em seu art. 725, segunda parte, dá novos contornos à discussão, visto que, nas hipóteses de arrependimento das partes, a comissão por corretagem permanece devida. Há, inclusive, precedente do STJ determinando o pagamento de comissão em hipótese de arrependimento. 3. Pelo novo regime, deve-se refletir sobre o que pode ser considerado resultado útil, a partir do trabalho de mediação do corretor. A mera aproximação das partes, para que se inicie o processo de negociação no sentido da compra de determinado bem, não justifica o pagamento de comissão. A desistência, portanto, antes de concretizado o negócio, permanece possível. 4. Num contrato de compra e venda de imóveis é natural que, após o pagamento de pequeno sinal, as partes requisitem certidões umas das outras a fim de verificar a conveniência de efetivamente levarem a efeito o negócio jurídico, tendo em vista os riscos de inadimplemento, de inadequação do imóvel ou mesmo de evicção. Essas providências se encontram no campo das tratativas, e a não realização do negócio por força do conteúdo de uma dessas certidões implica mera desistência, não arrependimento, sendo, assim, inexigível a comissão por corretagem. 5. Recurso especial não provido. (REsp 1183324/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2011, DJe 10/11/2011)". No mesmo sentido, vide REsp 753.566/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 05/03/2007, p. 280) (AgInt no REsp 1484193/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/05/2020, DJe 12/05/2020) (AgInt no AREsp 1719187/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/02/2021, DJe 23/02/2021). 11 DIREITO CIVIL. OBRIGAÇÃO PELO PAGAMENTO DE COMISSÃO DE CORRETAGEM. Inexistindo pactuação dispondo em sentido contrário, a obrigação de pagar a comissão de corretagem é daquele que efetivamente contrata o corretor. [...] Observe-se que, no mercado, há hipóteses em que é o proprietário (vendedor) do imóvel que busca alguém para comprá-lo. Em outras, o contrário ocorre, ou seja, é o comprador que busca a aquisição de imóvel. Em qualquer dos casos, a partir do momento em que o corretor é chamado para ingressar na relação entre comprador e devedor, passa a ser devida a sua comissão. O encargo, pois, do pagamento da remuneração desse trabalho depende, em muito, da situação fática contratual objeto da negociação, devendo ser considerado quem propõe ao corretor nela intervir. Independentemente dessas situações, existindo efetiva intermediação pelo corretor, as partes podem, livremente, pactuar como se dará o pagamento da comissão de corretagem. Há, porém, casos em que tanto o comprador quanto o vendedor se acham desobrigados desse encargo, pois entendem que ao outro compete fazê-lo. Há casos ainda em que essa pactuação nem sequer existe, porquanto nada acordam as partes a respeito, daí surgindo a interpretação que se ampara no art. 724 do CC. Em face dessas dúvidas ou omissões e em virtude da proposta dirigida inicialmente ao corretor, conforme acima exposto, é justo que a obrigação de pagar a comissão de corretagem seja de quem efetivamente contrata o corretor, isto é, do comitente, que busca o auxílio daquele, visando à aproximação com outrem cuja pretensão, naquele momento, está em conformidade com seus interesses, seja como comprador ou como vendedor. Ressalte-se ainda que, quando o comprador vai ao mercado, pode ocorrer que seu interesse se dê por bem que está sendo vendido já com a intervenção de corretor. Aí, inexistindo convenção das partes, não lhe compete nenhuma obrigação quanto à comissão de corretagem, pois o corretor já foi anteriormente contratado pelo vendedor. Diferente é a hipótese em que o comprador, visando à aquisição de bem, contrate o corretor para que, com base em seu conhecimento de mercado, busque bem que lhe interesse. Nessa situação, a tratativa inicial com o corretor foi do próprio comprador. (REsp 1.288.450-AM, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 24/02/2015, DJe 27/02/2015).
O futuro chegou... mas será que é virtual? Foi publicada no dia 09/03/2022, a lei 14.309/22 que "Altera a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a lei 13.019, de 31 de julho de 2014, para permitir a realização de reuniões e deliberações virtuais pelas organizações da sociedade civil, assim como pelos condomínios edilícios, e para possibilitar a sessão permanente das assembleias condominiais". Apenas para fins de contextualização, a explosão do debate acerca possibilidade de realização das reuniões virtuais da Assembleia Geral do Condomínio Edilício teve seu ápice durante a pandemia da COVID-19, especialmente diante da entrada em vigor do RJET (lei 14.010/20) que previa a possibilidade de reuniões a "ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial" (art. 12). Ocorre que o próprio texto legal (parágrafo único do art. 12), trazia a mera possibilidade da realização, prevendo solução para hipótese de impossibilidade de fazê-lo, sem introduzir de forma perene a figura a reunião virtual. Após outubro de 2020, o mercado literalmente se dividiu em três: (i) aqueles que defendiam cegamente a realização das reuniões virtuais; (ii) aqueles totalmente avessos à possibilidade de, fora do RJET, se pensar no modelo; (iii) aqueles que viam a inovação como algo interessante, mas que dependi a de um afinamento técnico, pois não haveria na legislação vedação ao meio virtual. É preciso esclarecer que na seara societária, por exemplo, o DREI editou a IN DREI 79/20, que regulamentou "a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas", tentando apaziguar os temores do mercado, sendo sido adotada a modalidade virtual como praxe de diversas sociedades. Porém, por não depender das formalidades empresariais para sua gestão, os Condomínios Edilícios não contavam com um órgão regulatório que pudesse trazer segurança às reuniões virtuais, que começaram a se proliferar das mais diversas formas e modelos, albergadas pelo argumento da forma livre. Mas qual seria o problema da realização de uma reunião virtual? Para entender o desafio, é preciso compreender primeiro como se constrói a liturgia da reunião presencial. Buscando, inicialmente, a lei, a reunião da assembleia condominial não encontra normativa ritualística, tendo o legislador infraconstitucional eleito questões mais amplas como objeto de sua preocupação: a) a necessária convocação de todos os condôminos (art. 1.354 do Código Civil); b) os quóruns de instalação e deliberação (art. 1.352 e 1.353 do Código Civil); c) a regularidade de convocação (art. 1.350 e 1.355 do Código Civil); d) o direito de voto, voz e participação na reunião (art. 1.335, III do Código Civil e art. 24, §4º da lei 4.591/64); (e) dentre outros. Mas então de onde emana a estrutura do ritual assemblear? A reposta mais intuitiva seria a Convenção, pois, segundo o art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, "h" da lei 4.591/64, dela deverá constar forma e modo da reunião da Assembleia Geral. Contudo, no dia-a-dia da prática jurídica, se constata grande pobreza das Convenções ao regulamentar a procedimento da reunião, limitando-se muitas vezes à definição das funções do presidente de mesa, limites de representação e intervalo entre primeira e segunda convocação. Para solucionar o problema, poder-se-ia pensar na analogia plena com as normas societárias, recurso hermenêutico previsto no art. 4º da LINDB, mas o risco de sua aplicação encontra substrato na natureza sui generis do Condomínio Edilício, ente despersonalizado, mas dotado, inclusive em visão pragmática, de diversos atributos que compõem a personalidade jurídica autônoma. Todavia, é preciso registrar que, quase de forma inconsciente, acaba-se por absorver a ritualística empresarial para as reuniões condominiais, a exemplo do art. 126 da Lei das SA, em que se deve exigir a comprovação da legitimidade do acionista, com a apresentação de documento hábil, ou do art. 128 do mesmo diploma, no modelo composição de Mesa para condução dos trabalhos assembleares. O que se constata é que a reunião presencial da assembleia condominial tem a segurança de sua liturgia na consolidação de costumes e usos sociais, que por anos e anos foram testados no mercado e no judiciário, e formam hoje uma espécie de procedimento padrão, tendo sua legalidade embasada pelo art. 4º da LINDB e no arts. 113 c/c 185 do Código Civil. A questão é que a reunião virtual não possui esse histórico para lhe dar segurança, estando aí colocado um paradoxo: ora, se a reunião presencial, na sua fonte normativa, não dependeu de um ritual positivado para a sua validade, porque isto seria exigível de uma reunião virtual? A reposta está no fato de que foi preciso grande esforço para se demonstrar que presencial ou virtual são espécies de um mesmo gênero, qual seja a reunião da Assembleia Geral do Condomínio Edilício e, dessa forma, desde que atendam a essência do gênero, podem existir cada qual com sua peculiaridade. Os plurais modelos de reunião virtual, com seus modos de ser e muitas vezes supressões dessa essência do gênero, causou estranhamento na comunidade jurídica e no mercado, que enxergou na falta de regulamentação ritualística um risco à segurança da validade dos atos deliberados. Verdade seja dita, as reuniões virtuais ganharam terreno em um tempo de aclamação e apoio às abordagens disruptivas dos meios tradicionais e se afiguram (positivamente) como um caminho sem volta. Para contornar os problemas da falta de costumes e usos, com intuito de dar maior segurança e consolidar o uso das reuniões virtuais, foi votada e sancionada a lei 14.309/22. Assim, o art. 1.354-A do Código Civil, introduzido pelo novel diploma, autoriza a realização da reunião virtual, tendo apenas dois requisitos gerais: (i) ausência de vedação convencional (inciso I) e (ii) preservação do direito de voz, de debate e de voto (inciso II). O dispositivo é cirurgicamente alinhado com o contexto jurídico atual: o inciso I se alinha com a previsão do art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, "h" da lei 4.591/64 e o inciso II, com os direitos elencados no art. 1.335, IV do Código Civil. Neste ponto, merece destaque a garantia de preservação dos direitos condôminos, pois é entendimento jurisprudencial remansoso que "a assembleia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos" (REsp 1120140, STJ) e "não  obstante  ao  formato  da  assembleia,  se  virtual, presencial ou híbrida, o que deve ser resguardado é a  participação  efetiva  de  todos  os  condôminos  e  a lisura do procedimento" (AI 026307-54.2021.8.19.0000, TJRJ). A reunião da Assembleia Geral é campo necessariamente democrático1, o que exige o somatório da participação2, da igualdade de voz para todos e da clareza das informações e temas deliberados. Pinçando-se um ponto, para viabilizar a plena participação e transparência, o §1º do art. 1.354-A, exige que fique evidenciado o meio de realização (seja virtual puro ou híbrido), instruções de acesso, a manifestação e a coleta dos votos, com a descrição pormenorizada de tudo no edital de convocação (§4º do art. 1.354-A) e com a disponibilização de documentos da forma mais adequada ao acesso qualitativo dos participantes (§6º do art. 1.354-A). Tal medida prestigia ainda a necessária garantia de que o exercício de todos os direitos e interesses em tela, sejam de acordo com a boa-fé e com a adequação à finalidade do ato, evitando-se a caracterização de qualquer tipo de abuso, nos termos do art. 187 do Código Civil. No atual cenário, a opção legislativa é pela regulamentação mais ampla, deixando a forma e desenho das reuniões livres para se adequar às idiossincrasias de cada entidade condominial. De uma forma geral, se está diante de um convite a criar modelos, que devem respeitar as diretrizes traçadas; a espécie deve respeitar a essência do gênero, sem maiores preocupações operacionais. Os demais aspectos como a necessária convocação de todos os condôminos, os quóruns de instalação e deliberação e a forma de convocação continuam submetidos ao mesmo rigor e modos descritos na legislação e na Convenção, sem que seja permitida sua supressão3. Por outro lado, não foram esquecidas ou ignoradas questões procedimentais relevantes, definidas para dar maior segurança aos resultados alcançados. Assim, poder-se destacar o exemplo do §3º do art. 1.354-A, que exige que a ata eletrônica seja lavrada ainda no curso da reunião, depois de computados e divulgados os resultados das deliberações, podendo tal normativa ser complementada por normas previstas em Regimento Interno ou aprovadas por maioria simples em reuniões convocadas para essa finalidade (§5º do art. 1.354). E sobre essas normas complementares, vale lembrar que serão essenciais, notadamente para estruturar as reuniões híbridas, a acessibilidade aos meios de participação, a guarda dos documentos gerados "na e para" a reunião, a comprovação de legitimidade do condômino, etc. Pois bem: o futuro das assembleias condominiais é virtual? Não necessariamente. A reunião virtual não é um fim em si mesmo, mas o caminho para a melhoria e a eficiência das relações humanas. Se para alguns casos essa melhora se consubstanciar no virtual, abracemos com total intensidade. Caso contrário, mantem-se o modelo mais tradicional. Em todo caso, criou-se mais um caminho eficiente para a condução e a gestão dos complexos Condomínios Edilícios. _____________ 1 MELLO, Marco Aurélio Bezerra. Direito civil: coisas. 2ª ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pág. 275 2 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5ª ed. ver., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. Pág. 122 3 MELLO, Marco Aurélio Bezerra. Direito civil: coisas. 2ª ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pág. 273  
Décadas de difusão do pensamento de Dworkin, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Warat et al na classe jurídica nacional teria que, evidentemente, produzir frutos. As críticas, construções e modelos produzidos por autores com a visão de mundo dos ora citados, geraram enormes tensões no meio jurídico e teriam que chegar, de modo inexorável, ainda que com atraso, ao Registro de Imóveis. O positivismo, com todas as suas variações, legalista e cruento, frente às realidades interpessoais, sempre incapaz de ver além de uma linguagem retrógada, se mostrou o arruinador de si mesmo, e finalmente foi reconhecido como aquilo sempre fora: uma limitada (por auto-definição) fórmula de resolver questões ou conflitos humanos; estes, sempre mais pronunciados e complexos, necessitam de instrumentos apropriados, não sendo mais cabível que a sutileza de marreta e bigorna conduza às soluções almejadas pela sociedade aberta. Não, o positivismo não tem a resposta para os dramas jurídicos numa sociedade aberta; sim, há que encontrar outros fundamentos para o agir registral. Já o jusnaturalismo, coitado, feneceu antes mesmo de se propor como alternativa viável no contexto legalista de nossas escolas, de nossas cartas magnas, leis, portarias, resoluções, provimentos e outras espécimes normativas, tanto menos cotadas, quanto mais exigentes. Para cada José Pedro Galvão de Souza surgiam dez Warat e os seus alternativos. Diante dessa dualidade, sendo por certo o mundo mais rico e variegado, exigindo mais esforços do intérprete, o jusnaturalismo em terra brasilis ao menos produziu singular obra: a teoria do saber prudencial, tendo por mentor o magistrado paulista Ricardo H. M. Dip. O Des. Dip pontifica que os registros são instituições da comunidade, dotadas de autonomia diante do Estado; os registradores seriam como que juízes do certo, devendo deslindar todos os casos que lhes são apresentados com um saber prudencial. Esse saber prudencial próprio dos registradores, guarda certa analogia com o saber jurisdicional, onde labutam os juízes do justo. Nesse contexto, os registradores são independentes, não temem melindrar o Estado, tampouco se olvidam de interpretar a norma, quando o caso assim estiver a exigir. Estão aí os valiosos princípios registrais, que se contam em dezenas, aptos a formar na cabeça do registrador um norte preciso; tudo isso é amalgamado pelo juízo de prudência, virtude criada e desenvolvida quando se contempla a grandeza do mister qualificador. Tais princípios são evidentes para aqueles que reconhecem a natureza das coisas; basta, portanto, aplicá-los. E assim ficaríamos na faina diária, equilibrando os conceitos vetustos do legalismo com a obra da prudência. Eis que surge a lume a obra Qualificação Registral Imobiliária à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito, do registrador e professor gaúcho Jéverson Luis Bottega, mestre por Coimbra e pela UNISINOS, a nos mostrar que sim, o fenômeno registral também carece de navegação por águas mais profundas. O autor pretende demonstrar que a verdadeira face da qualificação registral deve residir, num Estado Democrático de Direito, na aplicação dos preceitos hermenêuticos críticos, sendo sem dúvida o registrador antes um agente público, secundado não por normativas estanques ou por uma subjetiva e indefinida sabedoria prudencial (indefinível hoje, diga-se, quando tudo e todos são questionados, num tempo em que as verdades auto-demonstráveis foram como que abandonadas). O objetivo da obra de dissertação é ousado (porém factível, já que tal desiderato também está presente naquelas duas vertentes antes mencionadas e que granjearam amplo sucesso até o presente): "criar um ferramental necessário para blindar o [desamparado] registrador contra discricionariedades interpretativas". Utilizando sofisticados conceitos filosóficos, uma profunda pesquisa no que há de mais atual, e tendo como premissa, escopo e amparo uma "Crítica Hermenêutica do Direito", cerebrina construção do jurista Lenio Streck, o autor retrata o Registro de Imóveis como sendo o fundamento imprescindível para a livre circulação dos bens numa sociedade justa. Diante dessa realidade fundante do registro e sua cada vez mais renovada vocação, há que se reconhecer o caráter de atividade estatal dos registros, cuja realização é entregue a profissionais do direito mediante um certame, na genial construção da delegação de serviço púbico (dizemos genial, pois ao mesmo tempo em que há inquestionável ganho em eficiência, de outro lado, o Estado desincumbe-se de despesas de sustento de mais uma imprescindível máquina pública). Sendo atividade estatal, o que incrivelmente ainda não é consenso, mediante o regime próprio da delegação constitucional (que não desnatura, ao contrário, reafirma esta característica), é inexorável que se chegue a outra conclusão: a qualificação registral é um ato administrativo. Ora, se estamos diante de um ato administrativo, impende que desde já afastemos a discricionariedade e o subjetivismo. Atos administrativos não se coadunam com a falta de fundamentação motivada, nem aceitam decisões conflitantes proferidas pelo mesmo órgão (um "cartório" pode decidir de modo oposto a outro vizinho, deixando o usuário perplexo e desamparado; talvez isso seja explicado pelo fato de serem os registros públicos como que entidades solitárias, como que átomos a procura de uma molécula ... talvez daí o grande apreço por normas de serviços e consolidações normativas). Para Jéverson L. Bottega é preciso perceber o registro de imóveis frente às características do serviço por ele desenvolvido, afastando os pré-juízos (e pré-conceitos, diga-se) do senso comum. Ao distribuir segurança jurídica, única forma de garantir o preceito constitucional da inviolabilidade do direito à propriedade, resta evidente a preponderância do interesse público; se assim ocorre, não é possível descaracterizar o registrador como agente público. Mas se é agente público, o registrador não se limita a simples executividade, atuando apenas na técnica administrativa. É um jurista, na concepção de que faz o que é correto diante de um arcabouço normativo. Como artífice de um ato administrativo, não pode atuar de modo discricionário, ausentes quaisquer margens de conveniência e oportunidade. Ao contrário, é sempre vinculado ao Direito. A Crítica Hermenêutica do Direito é a base teórica que conduz o registrador para além dos atuais modelos de qualificação. Por isso, o autor não transige com raciocínios registrais ad hoc num campo em que se deve buscar a coerência e a previsibilidade. O objetivo da qualificação é a resposta correta. Resposta correta somente se tem quando não se é influenciado por elementos não-jurídicos, como a moral, a política, a economia. Afastar a discricionariedade conduz à correção do agir. Segundo o autor, as teorias do saber prudencial e da legalidade não consideram a "virada ontológica-linguística que ocorreu na filosofia". A filosofia hermenêutica superará a visão que atribui essência natural às coisas, deixando de lado de uma vez tanto o "livre convencimento", quanto o "prudente critério". Rejeita-se de pronto a construção legalista literal bem como aquela que conduz à criação do sentido discricionário de um texto legal. Ao defender a qualificação registral em diversas etapas, após e caso superadas as antecedentes, o autor pretende, em suma, municiar o registrador de uma teoria hermenêutica que o capacite na tarefa de evitar discricionariedades. Jéverson L. Bottega maneja filosofia pesada para negar a existência de essência nas coisas, seja na lei, seja na natureza; seu domínio teórico é abundante; sua contribuição à ciência registral é por demais evidente. Resta agora que os outros grandes da ciência façam o devido contraponto, se houver.
Com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil em 2016, as discussões a respeito do "livre convencimento motivado" deveriam ter ficado no passado. Isso porque, após longo trabalho desenvolvido por parte da doutrina1 para demonstrar a inadequação de teses que admitem a livre formação do convencimento por titulares de decisões jurídicas com os paradigmas que sustentam o Estado Democrático de Direito, a palavra "livre", sustentáculo normativo das referidas teses, foi retirada do artigo 371 do projeto de Código de Processo Civil. Para afastar quaisquer dúvidas a respeito da superação da tese do livre convencimento pelo CPC de 2015, ou seja, de que não é possível extrair do artigo 3712 autorização para que decisões jurídicas sejam construídas no subjetivismo de quem decide, basta olhar a justificativa da emenda que deu origem ao citado dispositivo. Embora se reconheça que as justificativas de propostas legislativas, em regra, muito pouco contribuem para a interpretação de dispositivos legais e que a tarefa do hermeneuta é interpretar o que o legislador disse e não o que ele quis dizer, no caso do artigo 371 é possível extrair da justificativa os paradigmas, filosófico e jurídico, que sustentam a supressão do livre convencimento motivado da lei processual civil, daí a importância de consultá-la, como se passa a fazer: Embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos, enfim, a interpretação e aplicação do direito, em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância. Eis o casamento perfeito chamado "coparticipação", com pitadas fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do 'livre convencimento'. O livre convencimento se justificava em face da necessidade da superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por parte dos juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da decisão. Diante disso, ao atribuir sentido ao artigo 371, o intérprete não pode desconsiderar o fato de que o poder de livre convencimento, que, conforme destaca Streck3, está ligado ao que se pode chamar de privilégio cognitivo atrelado ao sujeito da modernidade e ao seu autoritarismo, foi expungido do projeto de Código de Processo Civil de 2015 como resultado do processo democrático de produção do Direito. Entretanto, a despeito da clareza da justificativa e da precisão redacional do referido artigo 371, parte da doutrina e alguns setores da justiça seguem incluindo a palavra "livre" na leitura do dispositivo, desconsiderando que o abandono da tese do "livre convencimento motivado" não se deu por acidente, mas, isto sim, tratou-se de um verdadeiro giro na forma de pensar a decisão jurídica, que não pode ser desconsiderado pelos juristas. A inadequação de tal postura no âmbito do Poder Judiciário vem sendo amplamente denunciada por parte da doutrina, motivo pelo qual o foco de ataque ao problema neste artigo se dará em outro campo. Na senda dos que lutam pelo respeito à produção democrática do Direito, este texto busca chamar a atenção da comunidade jurídica para a "repristinação" da tese do "livre convencimento motivado" pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Em 15 de dezembro de 2017, mais de um ano após a entrada em vigor do novo CPC, o CNJ editou o Provimento nº 65, a fim de estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial, que passou a existir no Direito brasileiro justamente com o CPC de 2015 (art. 1.071). O artigo 13, §4º, do referido provimento, ao tratar da análise que o registrador de imóveis deve fazer dos documentos que instruem o requerimento de usucapião extrajudicial, resgata a tese do "livre convencimento motivado", institucionalizando a discricionariedade no serviço público de registro de imóveis, nos seguintes termos: A análise dos documentos citados neste artigo e em seus parágrafos será realizada pelo oficial de registro de imóveis, que proferirá nota fundamentada, conforme seu livre convencimento, acerca da veracidade e idoneidade do conteúdo e da inexistência de lide relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião. (grifo nosso). Antes de adentrar no problema central do presente texto, cabe fazer um rápido nivelamento compreensivo acerca da atribuição decisória dos delegatários dos registros de imóveis, especialmente para os que estão chegando agora nas discussões que envolvem tais serviços públicos4. Nesse sentido, é importante ter presente que a razão de ser dos cartórios de imóveis é extraída do texto Constitucional. Conforme estabelece o caput do artigo 5º, a garantia da inviolabilidade do direito de propriedade é dever do Estado, que, para bem desempenhar a sua função, inseriu/manteve no Brasil, no que toca à propriedade imobiliária, um sistema de registro de direitos. O sistema de registro de direitos sobre imóveis - consagrado em diversos dispositivos legais que compõem o ordenamento jurídico pátrio (e.g.: arts. 167, 169, 172 e 198, todos da lei 6.015/73; arts. 1.227 e 1.245, ambos do Código Civil) - atende a diretiva constitucional prevista no citado artigo 5º. Isso porque, ao mesmo tempo em que exige que os atos jurídicos envolvendo bens imóveis sejam registrados para gerar os efeitos que deles se esperam, impõe que o registro só seja lavrado após a realização da denominada qualificação registral5 pelo delegatário do serviço, profissional do Direito que age em nome do Estado. É em decorrência da atuação desse agente público que o Estado garante que os titulares de direitos sobre a propriedade imobiliária só os perderão ou poderão deles dispor se os instrumentos de formalização dos atos jurídicos estiverem de acordo com o Direito, seja para a proteção dos proprietários, seja para a proteção das demais pessoas envolvidas na relação jurídica em causa ou, ainda, de terceiros que devam respeitá-la. Dito de outra forma, para bem desempenhar as suas atribuições, é dever do delegatário do serviço público de registro de imóveis, antes de lavrar o ato que lhe foi demandado, analisar se o título de formalização de direitos (escrituras públicas, instrumentos particulares, atos judiciais e atos administrativos) está de acordo com o ordenamento jurídico para, a partir dessa análise, proferir decisão fundamentada acerca da sua registrabilidade. A formatação do sistema registral imobiliário nos termos referidos coloca em destaque a importância da qualificação registral para que a razão de ser dos ofícios de imóveis seja alcançada, bem como evidencia aquela que é considerada pela doutrina6 a principal característica da atividade: outorgar segurança jurídica às relações sociais envolvendo direitos sobre bens imóveis. Compreendido o alcance da decisão jurídica proferida pelos oficiais de registro de imóveis, ou seja, que das decisões oriundas da qualificação registral direitos poderão ser reconhecidos, fica fácil constatar que toda a discussão a respeito da inadequação da tese do livre convencimento motivado também se estende a tais serviços. E, analisando a tese do livre convencimento sobre a perspectiva da decisão jurídica do registrador, colocada em evidência pelo CNJ ao editar o Provimento nº 65, deve-se ter presente que a importância da discussão vai muito além do problema da apreciação das provas que instruem os pedidos de usucapião extrajudicial. Seguindo a senda de Streck7, pode-se dizer que, no âmbito das práticas jurídicas, essa discussão implica também a relação pretensamente livre que se estabelece entre o julgador e a interpretação do Direito, bem como a concepção equivocada acerca da independência do detentor da decisão jurídica. Defender o equívoco em permitir que o registrador possa decidir conforme o seu livre convencimento não significa, de forma alguma, tolher a sua independência jurídica e tampouco qualquer proibição interpretativa que o transforme em um exegeta do século XIX. A autonomia de atuação do registrador imobiliário, no que se refere à qualificação registral, está garantida nos artigos 198 da lei 6.015/73 e 28 da lei 8.935/94. Contudo, como profissional do direito que exerce atividade jurídica em nome Estado, pode-se dizer que o oficial não possui carta branca para interpretar/decidir de forma livre, fazendo valer os seus pré-conceitos sobre o mundo, pois toda a sua atividade interpretativa/decisória será voltada, e, também, limitada pelo Direito (aqui entendido como conceito interpretativo construído intersubjetivamente, e não pela vontade individual do aplicador). Afastar o livre convencimento da atividade jurídico-decisória não significa, portanto, restrição à autonomia dos titulares da decisão jurídica no exercício das suas competências/atribuições. Tal afastamento visa, isto sim, expurgar das práticas jurídicas tanto a ideia de que o livre convencimento motivado é da natureza da decisão (uma espécie de discricionariedade racionalizada) quanto o paradigma filosófico instituidor da modernidade: o sujeito solipsista, que, ao se libertar do "mito do dado", seguiu rumo ao voluntarismo (a vontade de poder)8. Assim, no que se refere aos documentos que instruem o requerimento de usucapião extrajudicial, o registrador deverá apreciá-los a partir de uma reconstrução baseada no sentido intersubjetivo que exsurge da linguagem pública, e não na sua convicção pessoal. E isso quer dizer que a atuação do registrador deve ser pautada pelo interesse público, que, no âmbito do sistema jurídico, compreende justamente o respeito à legalidade democraticamente construída e sua interpretação a partir de critérios públicos. Do exposto, é possível extrair duas conclusões: a) a tese do livre convencimento motivado, seja do juiz ou do registrador, é completamente incompatível com os paradigmas que sustentam o Estado Democrático de Direito; e b) o Provimento nº 65 do CNJ comprova que, mesmo nesta quadra da história, a doutrina ainda não conseguiu blindar o Direito contra teses que remetem à aceitação de discricionariedades interpretativas/decisórias. Veja-se que, mesmo após ter sido superada pelo processo intersubjetivo/democrático de criação do Direito, a tese do livre convencimento motivado, como uma espécie de Hidra de Lerna9 do Direito, insiste em renascer. Sendo essa a triste forma como o Direito e a sua autonomia vêm sendo tratados no Brasil, a doutrina daqueles que, ao levar os direitos a sério, consegue alcançar tais problemas tem se mostrado cada vez mais importante. Assim como Hércules, que, a fim de cumprir o segundo trabalho que lhe foi dado por Eristeu, jamais desistiu de matar a Hidra de Lerna - mesmo quando, ao cortar uma das nove cabeças do mostro, nasciam-lhe duas no lugar - a doutrina deve seguir denunciando propostas que, ao resgatar teses como a do livre convencimento, afastam-se da produção democrática do Direito. A tarefa é árdua. Contudo, se seguir apostando em travar o debate no plano hermenêutico, que permite ao jurista se dar conta de que os elementos interpretativos que fundamentam as decisões devem partir de critérios públicos estabelecidos com respeito à legalidade, não tardará para que, a exemplo do que fez Hércules com a Hidra de Lerna, se consiga decepar os argumentos que servem de sustentáculo para tais teses e chutá-los para dentro de um buraco profundo de onde jamais sairão. ______________ 1 Contra a tese do "livre convencimento", ver os verbetes 26 e 27 de: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos). 2 Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. 3 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 213. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos). 4 Para aprofundar a temática, ver: BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento editora, 2021. 5 A nomenclatura é extraída da doutrina. Por todos, cita-se Silva, que analisou a origem e o sentido da expressão nos seguintes termos: "este exame prévio e profundo dos documentos que são apresentados constitui o que se chama de 'qualificação', palavra oriunda dos vocábulos latinos "qualis" e "facere", que significa dar qualidade, dar aptidão aos documentos para serem admitidos nos lançamentos registrais". SILVA FILHO, Elvino. A competência do oficial do registro de imóveis no exame dos títulos judiciais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 8, p. 52, jul./dez. 1981. 6 Ao analisar a finalidade dos sistemas registrais, Jardim identifica um traço comum em todos eles. Segundo a autora, "o registo não é uma instituição natural, mas sim uma instituição artificial: uma pura criação para atingir determinados fins do tráfico jurídico. O objetivo de todos os sistemas registrais é o mesmo - garantir a segurança jurídica dos direitos e a proteção do tráfico imobiliário". JARDIM, Mónica. Efeitos substantivos do registo predial: terceiros para efeitos de registo. Coimbra: Almedina, 2015. p. 20. 7 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 212. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos). 8 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. p. 212-214. (Coleção Lenio Streck de dicionários jurídicos). 9 GRENIER, Christian. Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 87-101.
Os programas de requalificação urbana são um poderoso instrumento de revitalização de certas regiões de uma cidade, especialmente quando se encontram em processo de degeneração. A pandemia de covid-19 estimulou o lançamento, quase simultâneo, de dois importantes programas: (i) no Rio de Janeiro, o Programa Reviver Centro, com o objetivo macro de atrair novos moradores e promover a recuperação urbanística, social e econômica do bairro; e (ii) em São Paulo, o Programa Requalifica Centro, que igualmente traz incentivos a fim de atrair investimentos para essa importante região da capital paulista. Um dos estímulos que tais programas costumam prever é a conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou misto. Mas, como se sabe, a maioria dos edifícios possui muitos proprietários, e os arts. 1.343 e 1.351 do Código Civil, exigem a anuência da unanimidade dos condôminos para a aprovação da construção e da conversão de uso. Um quórum virtualmente impossível em muitos casos. Em artigo anterior, demonstramos que: (i) nos casos em que o retrofit da edificação não implicar modificação do número de unidades autônomas, nem alteração de destinação de uso, a aprovação da intervenção estará aprovada com o quórum qualificado que represente, simultaneamente, 2/3 das unidades e 80% das frações ideais, por força da caracterização "urbanística" definida pelo art. 17 da lei 4.591/64; e (ii) nas demais hipóteses, a unanimidade é a regra, mas estando a edificação nos limites da área abrangida por plano público de requalificação urbana, cabe ao condômino ou minoria dissidente demonstrar, no caso concreto, a inexistência de motivo urbanístico, sob pena de o poder de veto caracterizar abuso do direito, em desconformidade com a função social da propriedade, podendo a transformação ser promovida desde que seja observado o mesmo quórum do referido artigo 17.1 Agora, mais um passo foi dado. O Senado Federal aprovou o projeto de lei 4000/2021, que altera a redação do art. 1.351 do Código Civil, afastando a exigência de unanimidade para deliberar sobre alteração da destinação de condomínio edilício e definindo para esse fim o quórum de 2/3 dos condôminos. Ao flexibilizar a exigência de unanimidade nessa hipótese, a alteração legislativa contribui para a implementação de políticas públicas de revitalização de determinadas regiões urbanas, mediante readequação urbanística de edificações com investimentos privados. A par desse interesse específico e imediato, a medida atende à necessidade de intervenção construtiva mediante retrofit para requalificar edificações desgastadas pela ação do tempo ou pela obsolescência de sua concepção original, de modo a dotá-las de funcionalidade compatível com os usos, costumes e demandas da sociedade contemporânea.2 Além dessas situações específicas, novas demandas de retrofit surgiram a partir do início dos anos 2020, por força da alteração da dinâmica do trabalho provocada pela covid-19 e da consequente desativação parcial de atividades profissionais em prédios comerciais, que veio a justificar a adequação de áreas em apartamentos para exercício de atividades profissionais. 3 Essas e outras demandas da mesma natureza são atendidas em parte pelo Projeto 4.000/21, que, contudo, carece de ajustes para excepcionar também a regra do art. 1.343 do Código Civil, que exige unanimidade para criação e/ou extinção de áreas comuns e privativas, pois, em regra, o retrofit comporta reformulação das plantas das partes comuns e das áreas internas das unidades, inclusive por efeito de intervenção estrutural, emprego de novos mecanismos tecnológicos na substituição dos sistemas de instalações etc. Frise-se, ainda, ser conveniente dar solução aos interesses dos condôminos dissidentes mediante procedimento extrajudicial. É importante relembrar que o problema já existia no passado recente em nosso país, para o qual a lei 4.591/64 definiu solução nos seus arts. 14, 15 e 17, mediante definição de quórum majoritário para reconstrução do edifício, seja por motivos urbanísticos ou por destruição ou ameaça de ruína decorrente de sinistro, bem como instituiu disciplina própria para os efeitos da deliberação em relação aos condôminos dissidentes. Sobrevindo o Código Civil de 2002, seu art. 1.357 assimilou a regra do art. 14 da lei 4.591/64 para a reconstrução em caso de sinistro,4 mas silenciou sobre a reconstrução por motivos urbanísticos ou arquitetônicos prevista no art. 17 dessa lei especial, que fixa para esse fim o quórum de 2/3 das unidades, correspondentes a 80% do terreno5, e sobre o procedimento de adjudicação decorrente dessa deliberação, instituído pelo seu art. 15.6 Essas disposições especiais não foram derrogadas pelo Código Civil e a matéria nelas tratada não foi regulada por lei posterior, daí porque permanecem em vigor "diante da lacuna do atual Código Civil"7 e coexistem no sistema com as normas gerais do Código Civil, solucionando-se os casos de incompatibilidade pelo critério da especialidade,8 pelo qual prevalecem as regras especiais sobre quórum majoritário estabelecido pela Lei 4.591/1964 para deliberação sobre reconstrução quando justificada por motivos urbanísticos, bem como sobre o procedimento de adjudicação das frações ideais dos dissidentes à maioria por valor avaliado judicialmente (Lei 4.591/1964, arts. 15 e 17). Ademais, tratando-se de reconstrução objeto de legislação municipal destinadas a atender às "exigências fundamentais de ordenação da cidade"9 e aos propósitos de realização das funções da cidade10, as normas especiais da Lei 4.591/1964 devem ser interpretadas em conexão com as normas constitucionais do direito urbanístico (CF, art. 24, I) e da propriedade urbanística (CF, art. 30, I, II e VIII, e art. 182, § 2º).11 Todavia, o procedimento judicial previsto nessas normas pode inviabilizar sua efetividade, sobretudo em relação à urgente necessidade de tornar habitáveis edificações localizadas em regiões urbanas degradadas. Assim, a alteração legislativa proposta pelo PL 4.000/21 é oportuna e conveniente para afastar questionamentos capazes de retardar ou comprometer a implementação das políticas públicas destinadas ao adequado aproveitamento da propriedade urbanística de acordo com as normas de ordenação da cidade. Contudo, para que cumpra efetivamente seu propósito, a alteração legislativa deve ser complementada para fixar quórum majoritário para execução de retrofit de que resulte não apenas mudança de destinação do edifício, de que trata o art. 1.351 do Código Civil, mas, também, a reconstrução que contemple alterações de áreas comuns ou privativas, de que trata seu art. 1.343. Para evitar abusos, o ideal é que a redução de quórum seja específica para tais situações, mantendo-se a exigência de unanimidade para os demais casos. Nesse sentido, parece conveniente que a regra do art. 1.351 seja excepcionada especificamente para o efeito de demolição, reconstrução ou alienação justificadas por motivos urbanísticos, arquitetônicos ou por determinação do poder público em caso de insegurança ou insalubridade, mediante inclusão de um art. 1.351-A no Código Civil que defina para esse fim quórum de 2/3 das frações ideais.   Além disso, a existência de procedimento judicial de adjudicação no art. 15 da lei 4.591/64 pode induzir a questionamentos que frustrem o efeito da proposição legislativa aqui considerada, sendo indispensável sua substituição por mecanismos que tornem efetivas em prazo razoável as deliberações da maioria. Assim, propõe-se o ajuste do projeto de lei no sentido de que, além das regras gerais dos arts. 1.343 e 1.351, seja incluído no Código Civil o art. 1.351-A, pelo qual fique definido, em caráter excepcional, o quórum correspondente a 2/3 das frações ideais para deliberações sobre demolição ou alienação do edifício, bem como para sua reconstrução que envolva conversão de uso, aumento ou redução de áreas comuns ou privativas, desde que justificadas por razões urbanísticas ou arquitetônicos e, ainda, por determinação do poder público em caso de insegurança ou insalubridade, e a ele sejam acrescentados parágrafos que definam procedimento especial de solução de controvérsias compatível com a prevalência do interesse da coletividade condominial e com a atual política legislativa de desjudicialização, visando conferir a necessária celeridade à requalificação urbanística essencial à realização das funções da cidade. _____________ 1 CHALHUB, Melhim Namen; ABELHA, André. Projetos de retrofit e conversão de uso em condomínios pulverizados: como superar o desafio da unanimidade? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/349230/projetos-de-retrofit-e-conversao-de-uso-em-condominios-pulverizados. Acesso em 15.02.2022. 2 Segundo a Norma de Desempenho NBR 15575-1, a reconstrução mediante retrofit caracteriza-se como "remodelação ou atualização do edifício ou de sistemas, através da incorporação de novas tecnologias e conceitos, normalmente visando à valorização do imóvel, mudança de uso, aumento da vida útil e eficiência operacional e energética." (ABNT 2013, parte 1). 3 O tema é tratado mais detidamente na 6ª edição da obra Incorporação Imobiliária, GenForense, 2022, pp. 61 e ss. 4 Código Civil: "Seção III - Da extinção do condomínio - Art. 1.357. Se a edificação for total ou consideravelmente destruída, ou ameace ruína, os condôminos deliberarão em assembleia sobre a reconstrução, ou venda, por votos que representem metade mais uma das frações ideais." 5 Lei 4.591/1964: "Art. 17. Os condôminos que representem, pelo menos 2/3 (dois terços) do total de unidades isoladas e frações ideais correspondentes a 80% (oitenta por cento) do terreno e coisas comuns poderão decidir sobre a demolição e reconstrução do prédio, ou sua alienação, por motivos urbanísticos ou arquitetônicos, ou, ainda, no caso de condenação do edifício pela autoridade pública, em razão de sua insegurança ou insalubridade. § 1º A minoria não fica obrigada a contribuir para as obras, mas assegura-se à maioria o direito de adquirir as partes dos dissidentes, mediante avaliação judicial, aplicando-se o processo previsto no art. 15." 6 Lei 4.591/1964: "Art. 15. Na hipótese de que trata o § 3º do artigo antecedente, à maioria poderão ser adjudicadas, por sentença, as frações ideais da minoria. § 1º Como condição para o exercício da ação prevista neste artigo, com a inicial, a maioria oferecerá e depositará, à disposição do Juízo, as importâncias arbitradas na vistoria para avaliação, prevalecendo as de eventual desempatador. § 2º Feito o depósito de que trata o parágrafo anterior, o Juiz, liminarmente, poderá autorizar a adjudicação à maioria, e a minoria poderá levantar as importâncias depositadas; o Oficial de Registro de Imóveis, nestes casos, fará constar do registro que a adjudicação foi resultante de medida liminar. § 3º Feito o depósito, será expedido o mandado de citação, com o prazo de dez dias para a contestação. § 4º Se não contestado, o Juiz, imediatamente, julgará o pedido. § 5º Se contestado o pedido, seguirá o processo o rito ordinário. § 6º Se a sentença fixar valor superior ao da avaliação feita na vistoria, o condomínio em execução restituirá à minoria a respectiva diferença, acrescida de juros de mora à prazo de 1% ao mês, desde a data da concessão de eventual liminar, ou pagará o total devido, com os juros da mora a conter da citação. § 7º Transitada em julgado a sentença, servirá ela de título definitivo para a maioria, que deverá registrá-la no Registro de Imóveis. § 8º A maioria poderá pagar e cobrar da minoria, em execução de sentença, encargos fiscais necessários à adjudicação definitiva a cujo pagamento se recusar a minoria." 7 FACHIN, Edson Luiz, Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. XIV, p. 15. LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado, coord. Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 12. ed., 2018, p. 1.337. 8 MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 9. ed., 1979, nº 141. 9 Constituição Federal: "Art. 182. (...). § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor." 10 Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade): "Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei". 11 Tratamos da matéria em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 6ª edição, 2022, itens 1.1.3 e 1.4.8.
Introdução Quem trabalha no mercado imobiliário sabe o quanto o tema fraude de execução é tormentoso, especialmente nas fases que antecedem as aquisições dos imóveis. Os advogados prendem-se em uma teia de documentos e de informações com o objetivo de tentar dar segurança para os compradores de imóveis, em uma etapa que o mercado denomina due diligence (diligência ou auditoria). São inúmeros os documentos obtidos nessa fase, e é neste momento que são apresentadas, dentre outras tantas, a certidão da matrícula do imóvel e as certidões dos distribuidores judiciais, para avaliar se há contra o vendedor alguma demanda judicial que possa comprometer negativamente o pretendido negócio imobiliário de aquisição. Tais certidões dos distribuidores judiciais são, via de regra, expedidas no domicílio do vendedor e no local do imóvel, quando diversos. A due diligence tem se mostrado uma fase extremamente burocrática e custosa para as operações de aquisição de imóveis. Não são incomuns aquelas que se arrastam por meses até que o vendedor consiga dar conta de listas imensas de documentos solicitados pelo comprador. Todo esse trabalho de auditoria, além de pretender identificar problemas específicos com os imóveis1, busca evitar que se caracterize o que o nosso CPC chama, no art. 792, de "fraude à execução". Neste artigo pretendemos abordar a fraude de execução no ambiente dos negócios jurídicos de alienação de imóveis, mais especificamente da compra e venda, espécie de transferência onerosa, feita pelo preço justo de mercado, à luz de tendência presente no art. 54 da lei Federal 13.097/15, no sentido de concentrar na matrícula do imóvel os elementos necessários para a caracterização da fraude. Íntegra do texto aqui. _____ 1 Como restrições urbanísticas e administrativas, tombamento, desapropriação, dentre outros.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Notas devolutivas e suscitação de dúvida

Função social As instituições Notarial e Registral representam uma organização social pré-jurídica, atendendo as necessidades da sociedade em sua estruturação social, patrimonial e econômica. Essas instituições independem das vontades individuais, pois tornaram-se um fenômeno social permanente, ou seja, não vivemos sem elas. Segurança jurídica do sistema O Sistema Registral Brasileiro admitiu a presunção relativa (juris tantum) de verdade ao ato registral, o qual, até prova em contrário, atribui eficácia jurídica e validade perante terceiros (art. 252, da lei 6.015/73 e art. 1.245 e seguintes, do CC/02). A instituição notarial e registral foi criada para estabilizar as relações sociais, gerando Segurança Jurídica. Consoante o art. 1º da lei 6.015/73 e da lei 8.935/94, os "Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos". Atividade Notarial A ação notarial é eminentemente de profissional público do Direito, não a serviço de uma das partes, mas, sim, do negócio. Age o notário equidistante das partes, cuidando de negócio de direito material, sem qualquer conotação de ato administrativo. Atividade Registral Na atividade registral, a autonomia existe no chamado princípio da qualificação, que é privativo do registrador. Em sendo, a qualificação, pessoal, obrigatória, indelegável e responsável, não pode ela ser substituída por ato de outrem. Sobretudo quanto ao Judiciário, compete-lhe somente a função de fiscalização. Não é concorrente. Qualificação e os Princípios Registrais Princípio da legalidade: É o exame prévio da legalidade, validez e eficácia dos títulos, evitando que títulos que não preencham tais requisitos ingressem no fólio real. Visa ainda, à concordância do mundo real com o mundo registral, de modo a tornar confiável o registro. Princípio da continuidade: Visa a impedir o lançamento de qualquer ato registral sem o registro anterior e a obrigar as referências originárias, derivadas e sucessivas (arts. 195, 222 e 237 da LRP). Princípio da especialidade: É a exigência da perfeita identificação do imóvel e das pessoas nos documentos (art. 176, § 1º, II, item 3 e 225 da LRP). Ressalta-se que, tendo em vista a MP 1.085/21, houve flexibilização do princípio da especialidade objetiva e subjetiva no âmbito do SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, conforme se verifica no §2º do art. 6º da MPV 1.085/21, que prevê a dispensa da atualização prévia da matrícula com relação aos dados objetivos e subjetivos, desde que haja correspondência de elementos entre o título e a matrícula. Da mesma forma, a MPV 1.085/21 alterou o art. 176 da Lei 6.015/73, com a inclusão de parágrafos (15º e 16º) que indicam que eventuais insuficiências de elementos de especialidade objetiva e subjetiva não impedem a abertura da matrícula, se o oficial tiver segurança quanto à localização e à identificação do imóvel: "§ 15. Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, a critério do oficial, e que constem os dados do registro anterior, a matrícula poderá ser aberta nos termos do disposto no § 14." "§ 16.  Não sendo suficientes os elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, será exigida a retificação, no caso de requerimento do interessado na forma prevista no § 14, perante a circunscrição de situação do imóvel." Além disso, a MPV 1.085/21 incluiu o parágrafo 17º no art. 176 da lei 6.015/73, admitindo a apresentação de documentos complementares ou declarações dos proprietários/interessados, desde que não alterem elementos do ato ou do negócio praticado, tudo com o objetivo de conferir agilidade e simplificar a qualificação dos títulos: "§ 17.  Os elementos de especialidade objetiva ou subjetiva que não alterarem elementos essenciais do ato ou negócio jurídico praticado, quando não constantes do título ou do acervo registral, poderão ser complementados por outros documentos ou, quando se tratar de manifestação de vontade, por declarações dos proprietários ou dos interessados, sob sua responsabilidade." Princípio da disponibilidade: É a possibilidade de se transferir apenas os direitos que detêm, ou seja, ninguém pode transferir mais direitos do que os constituídos pelo RI, a compreender a disponibilidade física (área disponível do imóvel) e a jurídica (a vincular o ato de disposição à situação jurídica do imóvel e da pessoa, art. 176, § 1º, III da LRP); Dos títulos (art. 221, da lei 6.015/73) Todos os títulos, independentemente de sua natureza, devem respeitar os princípios registrais e estão sujeitos à qualificação do Registrador (arts. 3º, 21 e 28, da lei 8.935/94; e art. 14, da lei 6.015/73). Espécies de título:  I - escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros; II - escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas, dispensado o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação; III - atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, legalizados e traduzidos na forma da lei, e registrados no cartório do Registro de Títulos e Documentos, assim como sentenças proferidas por tribunais estrangeiros após homologação pelo Supremo Tribunal Federal; IV - cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo. V - contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social, dispensado o reconhecimento de firma.             Qualificação registral É sabido que o Direito Notarial e Registral no Brasil deixou de ser somente meio de prova ou apêndice do CC/02 para constituir ramo autônomo do Direito, com várias facetas e com objetivo certo e determinado: instrumento de segurança jurídica, voltada para a paz social. Quanto ao princípio da qualificação, muito invocado pelos juristas espanhóis, explicita-se que consiste no direito-dever que o Registrador tem de analisar o ato, aderindo ao mesmo, inclusive para efeitos de responsabilidade. Destoa da função arquivadora que existe nos Estados Unidos, onde não há tal análise. O adquirente corre os riscos, normalmente repassando às seguradoras, após exame de seus advogados. Tal princípio coroa a função registral e importa em dar uma solenidade toda especial, dando tranquilidade às partes, pois, como se sabe, o Brasil adota o Sistema Registral de Direito, e não de Título, com Presunção Relativa da Verdade. Na qualificação o Registrador verifica se o título apresenta todos os requisitos - extrínsecos e intrínsecos - necessários para a prática do ato registral, analisando também a legalidade e os elementos de validade e existência do negócio jurídico (art. 104, CC/02). A qualificação tem por objeto buscar possíveis causas de invalidade do negócio e assim evitar que títulos não conformes tenham acesso ao registro, prevenindo anulações e invalidades dos atos praticados. Prazos para qualificação Até o advento da MP 1.085/21 não havia na lei 6.015/73 previsão expressa de prazo para a qualificação dos títulos, tendo somente indicação do prazo de 30 dias de validade do protocolo. Porém, a prática adotada por registradores de imóveis sempre foi a de proceder ao exame e qualificação do título no prazo máximo de 15 dias, utilizando os 15 dias restantes para a prática do ato de registro, quando deferido o título. Atualmente, de acordo com a MPV 1.085/21, em regra, o prazo para o registro do título ou da emissão da nota devolutiva é de dez dias úteis (alteração do art. 9º da lei 6.015/73), contados do protocolo: "Art. 188, LRP (redação anterior):  protocolizado o título, proceder-se-á ao registro, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes." "Art. 188, LRP (redação atual): protocolizado o título, se procederá ao registro ou à emissão de nota devolutiva, no prazo de dez dias, contado da data do protocolo, salvo nos casos previstos no § 1º e nos art. 189 a art. 192." Ainda, de acordo com o parágrafo 1º do art. 188 da LRP, incluído pela MPV 1.085/2021, excepcionalmente o prazo para registro será de apenas cinco dias (desde que não haja exigências nem falta de pagamento de emolumentos) para as escrituras de compra e venda sem cláusulas especiais, os requerimentos de averbação de construção e de cancelamento de garantias e os documentos eletrônicos apresentados por meio do SERP. Também terá prazo de cinco dias para registro os títulos que reingressarem na vigência da prenotação com todas as exigências cumpridas (inciso III do parágrafo 1º do artigo 188 da LRP). Além disso, excetuam-se os prazos previstos em leis especiais, bem como os contados em meses e anos, os quais não foram alterados pela MPV 1.085/21 (redação do art. 9º, parágrafo 1º da LRP). Prazos estes confirmados pela CGJ-RS. Nova devolutiva de exigências Infere-se que o Registrador Imobiliário é independente para realizar a qualificação dos documentos a ele apresentados, a fim de verificar a sua legalidade para o lançamento do título no Fólio Real. Não estando apto para a realização do ato registral, o Ofício Imobiliário deverá fundamentar por escrito o motivo da devolução, a qual poderá ser submetida ao Processo de Dúvida quando a parte interessada não se conformar com as exigências. Anteriormente à MP 1.085/21 as exigências feitas pelo Registrador para possibilitar a prática do ato eram realizadas por meio de uma "Nota de Exigências". Agora, conforme se verifica pela nova redação do art. 188 da LRP, alterado pela MPV 1.085/21, quando indeferido o título, o registrador deve emitir uma "Nota Devolutiva". Ao fazer a qualificação do título, caso o registrador verifique que o mesmo não atende a algum dos requisitos necessários para o registro, deverá emitir uma Nota Devolutiva contendo as exigências, a qual deverá ser elaborada por escrito, de forma clara e suscinta, de uma só vez, de acordo com o caput do artigo 198 da Lei nº 6.015/73, alterado MPV 1.085/2021: "Art. 198. Havendo exigência a ser satisfeita, ela será indicada pelo oficial por escrito, dentro do prazo previsto no art. 188 e de uma só vez, articuladamente, de forma clara e objetiva, com data, identificação e assinatura do oficial ou preposto responsável..." Considera-se protelatória a prática de exigências de forma sucessiva, quando os motivos para o indeferimento já constavam do título/documentação desde o primeiro ingresso no Registro de Imóveis. Ou seja, o Registrador deve examinar todo o título antes da emissão da Nota Devolutiva. Todavia, é claro que existem casos em que os documentos faltantes solicitados na primeira análise, ao serem apresentados e verificados pelo Registrador, tenham alguma divergência que impeça o registro, ocasionando uma segunda nota devolutiva. No caso em questão, não haverá descumprimento do previsto no art. 198 da LRP, vez que o Registrador não poderia prever quais requisitos dos títulos ainda não apresentados não estariam de acordo para registro. Para dirimir eventuais problemas que possam ocorrer, é recomendado que conste na Nota Devolutiva, quando da solicitação de mais documentos, a seguinte observação: "Cumpre informar que poderão haver outras exigências após a análise dos documentos ora solicitados." Se o apresentante não se conformar com as exigências formuladas pelo Registrador ou sendo impossível cumpri-las, poderá requerer ao Oficial reconsideração, mediante apresentação de justificativa plausível, devidamente fundamentada, inclusive com a apresentação de outras provas. Caso não seja reconsiderado, o título e a declaração de dúvida serão remetidos ao juízo competente para dirimi-la. Assim, para evitar dissabores e desgastes em virtude da Nota Devolutiva, sugerimos que todos os Operadores/Envolvidos nos Negócios Imobiliários se atentem aos requisitos estabelecidos pela legislação para a elaboração dos títulos, verificando se faltam documentos ou detalhes nos mesmos, inclusive consultando o Notário e o Registrador antes da elaboração do título. Essas ações diminuiriam em muito os atrasos nos procedimentos, bem como a frustração e a insatisfação dos usuários do sistema registral. Procedimento de dúvida O Procedimento da Dúvida foi previsto para o Direito Registral Imobiliário (art. 198 e seguintes da lei 6.015/73). Pelos artigos 46 e 296 da lei 6.015/73, aplica-se, também, aos demais Serviços de Registros. Art. 30, inciso XIII da lei 8.935/94: são deveres dos notários e dos oficiais de registro encaminhar ao juízo competente as dúvidas levantadas pelos interessados, obedecida a sistemática processual fixada pela legislação respectiva. O Procedimento de Dúvida é o mecanismo que serve para verificar a correção ou não das exigências formuladas pelo Registrador, ou para que o mesmo seja autorizado a proceder a um ato registral quando a parte não apresente condição de atendê-las. MP 1.085/21 A MPV 1.085/21 alterou a redação do art. 198 da lei 6.015/73, bem como inseriu os parágrafos 1º e 2º e incisos no referido artigo. Assim sendo, buscou-se aprimorar o procedimento de dúvida registral, prevendo a virtualização do procedimento, conforme se verifica no parágrafo 1º, inciso IV do art. 198, o que já está sendo feito aqui na Vara dos Registros Públicos em Porto Alegre. Pelo que se verifica pela MPV 1.085/21, se manteve o prazo de 15 dias para a impugnação da dúvida pelo apresentante, entretanto, o prazo deve ser contado em dias úteis, conforme previsão do parágrafo 1º do art. 9º da Lei 6.015/73. Da mesma forma, a MPV 1.085/21 dispõe que a inobservância ao disposto no artigo 198 ensejará a aplicação das penas previstas no art. 32 da Lei 8.935/94, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ. Prazo para suscitar a Dúvida Como se vê, não se conformando ou não sendo possível cumprir a exigência, a parte interessada requererá a suscitação da dúvida, e agora o Registrador tem o prazo de 10 dias úteis para preparar e notificar o apresentante para que tome ciência das razões da dúvida. Somente após a declaração de ciência do apresentante o Oficial poderá encaminhar o pedido ao juízo competente. De qualquer maneira, tendo em vista a busca pela desjudicialização e desburocratização, os Registradores não devem medir esforços para evitar o Procedimento de Suscitação de Dúvida. Do procedimento nas áreas registral e notorial Tabelionato de Protesto de Títulos: art. 18 da lei 9.492/97. Registro Civil de Pessoas Jurídicas e de Títulos e Documentos: art. 156 da lei 6.015/73. Se trata de uma forma de instauração do procedimento de dúvida de ofício. Registro Civil de Pessoas Naturais: §4º do art. 46 da LRP. Outra forma de instauração do procedimento de dúvida de ofício. Não há previsão legal para o Tabelião de Notas suscitar Dúvidas. O tabelião de notas não pode suscitar dúvida, pois compete-lhe interpretar a vontade das partes e formalizá-la através do instrumento mais adequado (art. 7º da lei 8.935/94). Caso fosse possível suscitar dúvida, estaria delegando a sua competência ao magistrado. Instauração Regra-Geral: mediante provocação da parte interessada através de requerimento, de acordo com o art. 198 da lei 6.015/73. Exceções: ex officio pelo Registrador, nos termos do art. 156 e parágrafo único da lei 6.015/73. Cabimento e natureza Cabimento:Inconformidade com as exigências do Serviço de Registro ou quando não houver condição de atendê-las. Não cabimento:Ato ou negócio nulo ou anulável - é um ato do Registrador. Natureza jurídica:Tem natureza administrativa, não judicial.Ato vinculado (obrigação de o Registrador atender à solicitação de suscitar a Dúvida). Jurisdição Contenciosa? Não, pois o registrador não possui interesse jurídico no juízo negativo do registro do título; é mero controlador da legalidade. Voluntária? Alguns doutrinadores afirmam que a ausência de interesse do registrador desconfiguraria esse tipo de procedimento. Ademais, o procedimento engloba impugnação e decisão esclarecendo qual o direito aplicável, não mera homologação do magistrado. Produção de provas Não admite dilação probatória. O registrador poderá ser intimado para prestar alguma informação. Competência Depende da organização judiciária de cada Estado. O juiz que expediu o título? Preservação do juízo natural. Aqui no Rio Grande do Sul, o art. 445 da CNNR/RS estabelece que a competência é do juiz diretor do foro (no interior) ou da vara dos registros públicos (na capital). Partes Suscitante: o registrador ou quem estiver respondendo pela Serventia. Interessado e Apresentante. Participação do MP Apresentada ou não a contestação, o magistrado irá encaminhar a dúvida ao MP, que terá dez dias para se manifestar (art. 200 da LRP). Aqui, cabe informar que há entendimento no sentido de que, conferindo interpretação literal ao art. 200 da lei 6.015/73, a presença do MP ocorreria somente quando houvesse impugnação à dúvida suscitada pelo registrador. Salvo melhor juízo, entende-se que sua participação será sempre obrigatória, pois:Não se deve fazer distinção entre os direitos representados pelos títulos submetidos a registro.Essa tese vai ao encontro do estatuído nos arts. 127, caput e 129, IX, da Constituição; nos arts. 82 e 1.105 do CPC e nas Leis Orgânicas Federal e Estaduais do MP, as quais estabelecem que os Promotores de Justiça, no exercício de suas atribuições, devem zelar pela regularidade dos registros públicos, como fiscais da lei, inclusive tendo legitimidade ativa para impetrar Apelação. Da mesma forma, se verifica que a MP 1.085, de 27/12/21, não alterou o artigo 200 da lei 6.015/73, pelo que se depreende que a oitiva do Ministério Público ainda é necessária: "Art. 200 - Impugnada a dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério Público, no prazo de dez dias." Participação do tabelião de notas na condição de assistente simples. Ainda que haja resistência doutrinária à possibilidade de intervenção de terceiros nos procedimentos de jurisdição voluntária, entendemos que essa seja a condição processual mais adequada ao Notário na suscitação de dúvida decorrente de qualificação negativa oposta pelo registrador a uma escritura pública. A inserção pelas Corregedorias das Federações da possibilidade de participação do Notário em defesa de seu ato notarial é um grande avanço no reconhecimento da autonomia e independência dos profissionais do direito da área notarial, trazendo um grande debate para a segurança jurídica. Art. 445 da CNNR/RS "Art. 445. O Juiz Diretor do Foro ou da Vara dos Registros Públicos, nos procedimentos de suscitação de dúvida, antes da prolação da sentença, poderá admitir a intervenção espontânea do Tabelião de notas que lavrou o ato notarial objeto da qualificação registral, solicitando, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento do interessado, a manifestação do Notário, no prazo de 15 (quinze) dias. Parágrafo único. A intervenção do Tabelião tratada no caput independerá de representação do Tabelião de notas por advogado, assim como do oferecimento de impugnação, e não autoriza a interposição de recurso." Dúvida inversa Anomalia no sistema (irregularidade, anormalidade, ou não?). A atual lei 6.015/73 não prevê a chamada dúvida Inversa de iniciativa do interessado. Porém, a mesma existe por criação pretoriana, que se configura pela apresentação diretamente em juízo das razões de inconformidade da parte interessada no registro. Chama-se dúvida Inversa porque não é o Registrador que a suscita a requerimento da parte. Como se vê, a proposição da Dúvida pela parte interessada é procedida diretamente em juízo. Não é vedada, mas gera insegurança por causa da não realização do protocolo. Sobre a Dúvida Inversa segue parte do voto do desembargador Ricardo Dip na apelação 0013913-10.2013.8.26.0482. "VOTO DE VENCIDO (Voto n. 39.793) ... 3.Ad primum, já é tempo de deixar de admitir o que se convencionou chamar dúvida "inversa", ou seja, aquela levantada pelo próprio interessado, diretamente ao juízo corregedor. A prática, com efeito, não está prevista nem autorizada em lei, o que já é razão bastante para repeli-la, por ofensa à cláusula do devido processo (inc. LIV do art. 5o da Constituição), com a qual não pode coadunar-se permissão ou tolerância (jurisprudencial, nota) para que os interessados disponham sobre a forma e o rito de processo administrativo, dispensando aquele previsto no estatuto de regência (Lei n. 6.015, de 31-12-1973, arts. 198 et seqq.)." Recorribilidade Apelação: É o recurso previsto na lei registrária para submeter a decisão ao duplo grau de jurisdição. Embargos de declaração: É possível quando preencher os requisitos (contrariedade ou obscuridade). Agravo de instrumento: Cabe contra decisão que não recebe o recurso de apelação. Recursos especial e extraordinária: Como regra, não são admitidos no procedimento de dúvida, salvo quando ficar estabelecido o contraditório, assim entendido no aspecto jurisdicional. Quando se deixa de discutir teses sobre a registrabilidade de um título e se passa a discutir direitos, daí nasce a oportunidade do Resp. Mandado de segurança: outro instrumento, no âmbito dos chamados remédios constitucionais, para atacar decisões do corregedor ou do conselho. No caso dos registradores e tabeliães, quando da qualificação negativa sobre um título não enseja, em princípio, mandado de segurança, pois o próprio sistema disponibiliza outro remédio jurídico específico para contestar o entendimento do registrador: processo de dúvida. Agora, diante da negativa da suscitação de dúvida ou sendo o oficial arrogante, prepotente, etc. entendo cabível o mandado de segurança. Efeitos da sentença Julgamento de procedência: "Art. 203 - ... I -se for julgada procedente, os documentos serão restituídos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao oficial, para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação;" Julgamento de improcedência: II -se for julgada improcedente, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo. Julgamento como prejudicado:Perda do objeto: o título impugnado foi refeito.Exemplo: O registrador impugnou por falta de pagamento de imposto e, após a instauração da dúvida, a parte realizou o pagamento. Desistência da parte: Formulado o pedido de desistência pelo apresentante, o registrador deve anuir ao pedido, como ocorre no processo civil? Não, pois ele não é parte interessada. Coisa julgada A decisão proferida no procedimento de dúvida não faz coisa julgada. Cabe lembrar que a decisão proferida é de natureza administrativa. Sugestões* para aprimoramento do procedimento de dúvida Eliminação da intervenção do MP. A ausência de interesse público é patente e sua atuação traz mais problemas que benefícios; Explicitação do início do prazo de resposta do interessado. Com a atual indefinição da regra, hoje há casos de preclusão, pois o interessado fica aguardando sua intimação para responder, mas certos juízes entendem que o prazo corre da distribuição judicial da dúvida, tendo em vista que o interessado já tinha sido cientificado pelo oficial registrador da sua petição de suscitação da dúvida; Julgamento por um órgão especializado do Tribunal de Justiça de cada Estado e DF, de competência originária, sem tramitação em primeira instância, e com grau único de jurisdição; Tramitação sumária do feito, com prazo para a prolação da decisão. *Sugestões extraídas do artigo: Dúvida registral - é preciso, com urgência, solucionar o gargalo - por André Abelha e Eduardo Moreira Reis. Conclusão Conforme art. 198 da lei 6.015/73, a nota devolutiva deve conter as exigências a serem satisfeitas, indicadas pelo oficial por escrito e com fundamento legal, dentro do prazo previsto no art. 188 e de uma só vez, articuladamente, de forma clara e objetiva, com data, identificação e assinatura do oficial ou preposto responsável, para que o usuário possa cumpri-la ou suscite dúvida, se for de seu interesse. O procedimento de dúvida no Registro de Imóveis serve para resolver as dissidências entre o suscitante - que é sempre o Registrador (podendo ser o substituto nas suas ausências e impedimentos) - e o apresentante de um título que pretende acessar o álbum imobiliário. Esse procedimento pode ser suscitado por outros serviços registrais e notariais, mas não pelo tabelião de notas, que poderá vir a integrar o procedimento da dúvida, somente como assistente simples, defendendo o ato por ele lavrado, tendo em vista que apresenta conhecimentos jurídicos suficientes para tanto, bem como pode vir a ser responsabilizado no caso de o título não atender aos princípios registrais, até para justificar o trabalho elaborado com a sua convicção. Espera-se que o artigo tenha contribuído para o esclarecimento do assunto, sendo importante o estudo para bem poder informar aos usuários e operadores do Direito que têm de se socorrer do Poder Judiciário para a resolução de conflitos de ideias originárias da qualificação documental feita pelo registrador, não acatadas pela parte interessada no ato registral - inclusive o tabelião de notas - e, por isso, submetidas ao Poder Judiciário.
Acredito, de verdade, que um dos (se não for o maior) maiores objetivos do Direito na modernidade seja a busca por uma maior segurança jurídica (e por quê não falarmos de mais previsibilidade?) no que diz respeito ao poder decisório do Juiz. O autor argentino Ricardo Luis Lorenzetti, por sua vez, ao tratar da decisão judicial, propõe, justamente, a busca por certa estabilidade nas decisões que façam o sistema previsível1. Daniel Kahneman, Oliver Sibony e Cass Sunstein, em sua obra chamada de Ruído (ou, para aqueles que prefiram, Noise), já denunciam o mesmo problema da disparidade de julgamentos em casos semelhantes. Em determinado momento, afirmam o seguinte: "A resposta não deveria depender do juiz específico a quem o caso foi designado, do clima no dia do julgamento ou da vitória de um time de futebol no dia anterior"2. Ou seja, esse é um problema que extrapola o campo do Direito, chegando a prejudicar a economia, saúde e as relações pessoais. Para fins de situar o leitor, no presente artigo, o enfoque será nas relações civis, deixando um pouco de lado as execuções fiscais e trabalhistas. O CPC/2015, em diversos momentos, tentou salientar essa preocupação, como na elaboração dos artigos 489, §1º e 926. No primeiro, o legislador buscou trazer à baila o mínimo necessário para que qualquer decisão judicial seja considerada fundamentada, enquanto no segundo tratou de criar uma obrigação aos Tribunais de uniformizarem a sua jurisprudência, afim de evitar que sejam proferidas decisões divergentes sobre a mesma situação fática. Um dos atributos do direito de propriedade é o poder de disposição assegurado ao titular do domínio. Mas o patrimônio do devedor é a garantia geral dos seus credores; e, por isso, a disponibilidade só pode ser exercida até onde não lese a segurança dos credores. A fraude, por sua vez, frustra a atuação da justiça e, por isso, é repelida imediatamente. Não há necessidade de nenhuma ação para anular ou desconstituir o ato de disposição fraudulenta. A lei o considera simplesmente ineficaz perante o exequente, e o juiz reconhece de plano a inoponibilidade do negócio, nos próprios autos3. Por isso, o negócio jurídico, que frauda à execução, diversamente do que ocorre na fraude a credores, gera pleno efeito entre alienante e adquirente. Apenas não pode ser oposto ao exequente. Nesse sentido, o art. 792, §1º, do CPC é expresso em asseverar que "a alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente". A recente MP 1.085/21 veio, em diversos pontos, tentar solucionar (ou, no mínimo, melhorar) alguns pontos ainda nebulosos para aqueles que atuem diretamente no Direito Imobiliário. Porém, um dos temais que mais chama atenção aos olhos do leitor é o da fraude à execução. O art. 792 do CPC, por sua vez, já tentou trazer maior segurança jurídica. Explica-se: o referido dispositivo legal faz a diferenciação entre bens passíveis de registro (incisos I, II e III) e de bens não sujeitos à registro (§2º). Quando estamos diante de bens passíveis de registro, parece que o legislador foi claro ao tratar da necessidade da averbação na matrícula, em casos de imóveis. Quando não for passível de registro, caberá ao terceiro adquirente fazer a prova de que adotou as cautelas necessárias (a famosa due dilligence), como certidões pertinentes obtidas no domicílio do vendedor e no local onde encontra-se o bem. Dito de outro modo, parece que o legislador, inclusive, estabeleceu os locais em que deve o adquirente terceiro fazer a sua due dilligence. Mas será que estamos perto do fim das auditorias imobiliárias? Oliver Vitale e Daniele Gazel já se posicionaram sobre essa temática, no sentido de que ainda são importantes e válidas, especialmente pela falta de segurança jurídica que, ainda, prospera4. A Medida Provisória, por sua vez, modificou o art. 54 da Lei n. 13.097/15, da seguinte forma: i) o inciso II, que prevê averbação, na matrícula do imóvel, da constrição judicial de que a execução foi admitida pelo Juízo (e não apenas ajuizada); ii) o inciso IV fez menção ao art. 792, inciso IV do CPC; iii) §2º, em que ficou delimitada a documentação a ser exigida dos adquirentes de imóveis, quais sejam a comprovação do pagamento do ITBI (quando for o caso), as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais. Fica dispensada a necessidade de apresentação de certidões forenses. A pergunta que fica: será que tais requisitos serão suficientes para os casos que virão? O questionamento parece válido, se levarmos em consideração a Súmula 375 do STJ e julgamentos recentes, como o REsp 1863952/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi5. A impressão que fica é que os casos envolvendo a temática da fraude à execução ainda sofrerão com um alto grau de discricionariedade, pois, a MP parece ter perdido a oportunidade de reforçar, ainda mais, os critérios trazidos pelo art. 792 do CPC que, ao que parece, apresenta os critérios mais definidos e claros. ______________ 1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 157. 2 KAHNEMAN, Daniel. Ruído: Uma falha no julgamento humano. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021, p. 19. 3 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - vol. III. 50 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 322. 4 VITALE, Olivar; GAZEL, Daniele. Auditorias imobiliárias estão perto do fim? 5 REsp 1863952/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 29/11/2021
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Breves observações sobre o IVAR/FGV IBRE

Desde meados de 2021 o IGPM/FGV passou a sofrer críticas por alguns agentes do segmento locatício, ante o seu descolamento dos demais indexadores medidos pela própria Fundação ou pelo IBGE. As opiniões contrárias à manutenção do tradicional indexador do mercado desde 1989, não consignaram a mesma irresignação quanto a anos anteriores do IGPM. Em diversos momentos o Índice Geral de Preços de Mercado registrou taxas negativas (deflação) naturalmente por motivos opostos aos que se traduziram na sua elevação durante alguns meses de 2021. Neste cenário algumas iniciativas na esfera parlamentar tentaram conduzir o segmento à adoção do IPCA como índice ideal à correção dos locativos. Contudo, o mercado amadurecido encontrou nas negociações um solo fecundo para que as partes conseguissem ultrapassar os desafios comuns. Aliás, exemplo que se notabilizou deste o advento pandêmico que assola o Brasil e o mundo há dois anos, onde o diálogo e a parceria foram sublimes em adotar o equilíbrio econômico da relação locatícia como norte a ser perseguido. Basta observarmos o substancial decréscimo no volume de ações de despejo no Brasil no ano passado, se comparados aos números dos anos pré-pandemia. Boa constatação é que os nobres congressistas não se deixaram seduzir pelo discurso fácil ou de curto alcance. Passados poucos meses do ápice da suposta distorção, já se percebe um enorme arrefecimento do IGPM e alguns economistas já apontam que ele ficará abaixo do IPCA em poucas semanas. Correta então a medida que preservou a autonomia das partes na escolha do indexador que melhor lhes aprouver. De outro norte surge a inciativa da competente FGV - Fundação Getúlio Vargas de criar um novo índice à luz de tantos outros de seu controle, destinando-se a medir a evolução do mercado de locação residencial. Trata-se de um novo projeto, elaborado a partir da análise evolutiva de contratos de locação firmados em 4 capitais do Brasil, a saber São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Segundo a FGV IBRE o índice está sendo tratado com uma base de 10 mil contratos de locação em curso no Brasil e a julgar pelo agradecimento expresso na nota metodológica da Fundação, grande parte deste conteúdo advém da empresa 5º. Andar. Aliás, a conclusão é razoavelmente lógica vez que a referida administradora atua com afinco nestas regiões. Mas, independentemente da fonte ou das fontes, resta evidente que o índice apresentado não pode ser útil, ao menos no momento, diante de um país com dimensões continentais. Os mercados, embora do mesmo segmento, são muito amplos e a simples pesquisa em apenas 4 capitais no Brasil, são incapazes de bem representar a evolução ou involução dos valores locatícios ao ponto de credenciá-los a sua utilização em massa. É um enorme risco e temeridade aos atores deste segmento uma imediata alteração do indexador que parametriza o mercado há mais de 30 anos, por uma métrica que representa uma amostra muito insipiente e localizada em poucas cidades no Brasil. Embora sejam capitais de alta densidade locatícia, a sua amostragem concentrada em uma única empresa ou poucas, pode representar nefastas distorções a médio e longo prazo. Variáveis como qualidade construtiva, localização, tempo, conservação e idade do imóvel estão sendo consideradas? As questões métricas, ou seja, o tamanho e tipologia das unidades estão sendo depuradas diante da demanda por imóveis de menor porte, por exemplo? As variáveis de demanda e oferta estão na balança da medição? Porto Alegre e São Paulo, por exemplo, não sofreram uma queda significativa na oferta de imóveis destinados a locação. O mesmo não se verifica na maioria das capitais do Brasil onde o parque de imóveis residenciais destinados à locação encolheu cerca de 20% em 2021. Aliás, quem é do segmento imobiliário percebe que o maior desafio das administradoras é conseguir angariar mais imóveis para as suas carteiras. A demanda de 2021 foi extremamente forte e o crescimento das taxas de juros irá impulsionar ainda mais os negócios locatícios em 2022, desde que não faltem imóveis no mercado. Daí que em diversos Estados da federação a evolução dos aluguéis residenciais difere em muito do número postado pela FGV IBRE que apregoou uma variação negativa de 0,61% ao longo dos últimos 12 meses. A pesquisa FipeZap recentemente publicada aponta uma evolução no valor dos aluguéis residenciais na ordem de 3,87% no aspecto nacional1. Contudo, entre as Capitais, destacou os avanços observados em Curitiba (14,17%), Florianópolis (11,59%), Recife (11,19%), Fortaleza (9,55%) e Belo Horizonte (7,17%). Dados preliminares da RAL - Rede Avançada de Locação, entidade que congrega as principais administradoras de imóveis no Brasil, apresentaram uma evolução no DF (5,11% ), Curitiba (7,5%), Florianópolis (14%), Goiânia (14,69%) e Fortaleza (17%). Nos próximos dias, a RAL apresentará o cenário em outras capitais do país. A considerar a favorável evolução do mercado imobiliário em 2021, não restam dúvidas que eles irão igualmente apresentar números muito distintos dos divulgados pela FGV IBRE, nas regiões em que a pesquisa foi desenvolvida. Nossas observações não se prestam a ofuscar o brilhante trabalho da FGV IBRE e principalmente a sua iniciativa. Somos claros em admitirmos a nossa total incapacidade de sugerir a mínima censura aos Institutos em apreço que gozam de enormes e relevantes serviços prestados à nação brasileira, sempre com muita probidade e indiscutível qualidade. Inobstante, como operadores do mercado locatício em região não pesquisada, crucial provocarmos uma breve discussão quanto as conveniências de uma migração dos novos contratos ao recente indexador criado, diante de tantas distinções mercadológicas no Brasil. Ao menos até que tenhamos medições regionais o melhor negócio ainda é confiarmos nos demais indexadores e no velho e conhecido: diálogo negocial! _____ 1 Disponível aqui. 
A Medida Provisória 1.085/2021 institui o sistema eletrônico de registros públicos - SERP e altera a Lei de Registros Públicos com o propósito de viabilizar o fluxo de informações, documentos e dados entre os serviços de registros públicos, além de adequar outras normas visando reforçar a segurança jurídica dos atos vinculados ao sistema registral, simplificar procedimentos e reduzir custos. Nesse contexto, a MP introduz alterações na lei 4.591/1964, pelas quais dispõe sobre os documentos que instruem o Memorial de Incorporação e a função do seu registro; explicita que a afetação da incorporação é cancelada por efeito do registro de cada compra e venda ou promessa de venda, à vista da comprovação do "habite-se" e da quitação do financiamento da construção da unidade correspondente; disciplina procedimento especial de destituição do incorporador, nas hipóteses em que a lei a admite, além de instituir outras normas relativas a essa atividade. Em relação à função do registro do Memorial de Incorporação, as alterações introduzidas no art. 32, suas alíneas, bem como a inclusão do § 1º-A, são justificadas pela necessidade de superar dificuldades decorrentes da divergências normativas de natureza administrativa e elucidar dúvidas interpretativas, que obstaculizam a atribuição de direitos reais aquisitivos aos adquirentes, dificultam o exercício de suas prerrogativas e os expõe a risco, sobretudo em situações de crise da empresa incorporadora.1 Sabendo-se que a incorporação imobiliária é caracterizada pela alienação de frações ideais de terreno e construção de conjunto imobiliário, resulta claro que o exercício dessa atividade tem como óbvio pré-requisito a divisão do terreno e a qualificação das frações ideais daí resultantes como objeto de direito de propriedade, mediante registro do Memorial de Incorporação no Registro de Imóveis competente (lei 4.591/1964, art. 32). Esse requisito atende ao princípio da especialidade do sistema registral e visa assegurar a atribuição de direito real aquisitivo a cada um dos adquirentes, pois os contratos de alienação imobiliária só são passíveis de registro, que confere direito real, se neles constar a identificação do imóvel tal como qualificado no Registro de Imóveis, sob pena de serem considerados "irregulares" e, portanto, insuscetíveis de registro que confira direito real (lei 6.015/1973, art. 225).2 A constituição desse regime especial é o principal efeito do registro do Memorial de Incorporação, como salienta Caio Mário da Silva Pereira: "a grande inovação instituída pela lei 4.591/1964 foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação (destaques do autor).3 Refere-se Caio Mário ao regime condominial especial,4 caracterizado pela individualidade e autonomia de cada uma das frações em que o terreno é dividido,5 em oposição ao condomínio geral, pro indiviso (CC, arts. 504, 1.314 e ss), sendo irrelevante que o condomínio tenha por objeto a copropriedade de edificação com "habite-se" ou de "terreno onde não houver edificação" como previsto no art. 8º da lei 4.591/19646, ou, ainda, de lotes de terreno sem construção, como prevê o art. 1.358-A do Código Civil, pois, como bem ilustra André Abelha, "o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário."7 Essas disposições legais deixam absolutamente claro que pouco importa a composição física do imóvel, daí porque "a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção está ainda por fazer-se",8 não havendo qualquer objeção a que o objeto do direito de propriedade seja terra nua ou terreno com edificação averbada, pois, em qualquer desses casos, a propriedade do imóvel pode ser atribuída sob regime de condomínio geral, pro indiviso, ou de condomínio especial, por frações autônomas.9 No curso da construção em terreno sob regime condominial por frações autônomas, as acessões aderem ao solo e, quando concluída a obra, formarão unidades imobiliárias submetidas ao regime condominial já constituído pelo registro do Memorial de Incorporação, por efeito natural da averbação do "habite-se". Afinal, as acessões incorporam o regime jurídico do solo a que aderiram, isto significando que, se duas pessoas forem proprietárias de um terreno sob regime condominial geral (CC, art. 1.314) e nele construírem, ambas continuarão proprietárias da edificação pelo mesmo regime condominial a que estava sujeito o terreno. E se essas mesmas pessoas resolverem dividir o terreno em frações autônomas sob regime condominial especial, com via comum de acesso à rua, e nele construírem, a edificação será averbada em nome de ambos sob o mesmo regime de condomínio especial.    A par da interpretação da mais abalizada doutrina sobre o sentido e alcance do art. 32 da lei 4.591/1964, outras disposições dessa mesma lei confirmam as frações autônomas identificadas em forma decimal ou ordinária na matrícula do terreno, por efeito do registro do Memorial, são qualificadas como direito real condominial, que confere efetividade à norma do art. 35, § 4º,10 da lei 4.591/1964, segundo o qual a averbação (rectius, registro) da promessa de venda, ou mesmo das "cartas propostas" ou dos "instrumentos de ajuste preliminar" em nome dos adquirentes "conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente." É ainda com fundamento nessa qualificação que o art. 1.488 do Código Civil11 excepciona a regra da indivisibilidade da hipoteca constituída sobre o terreno e acessões, nas hipóteses em que o incorporador tiver tomado financiamento para construção do empreendimento. Nesse caso, o art. 1.488 do Código Civil (i) permite que a dívida global contraída pelo incorporador para esse fim seja desdobrada na proporção das frações ideais do terreno e (ii) limita a responsabilidade de cada adquirente à parcela da dívida vinculada à fração ideal adquirida.12 Esses são apenas alguns dos efeitos da constituição do condomínio especial mediante registro do Memorial de Incorporação, que repercutem amplamente na dinâmica da incorporação imobiliária, seja em relação aos interesses particulares dos adquirentes ou aos da coletividade dos contratantes. Vejam-se as situações de crise da empresa incorporadora, entre elas paralisação ou atraso da obra e falência, em que os adquirentes substituem o incorporador na gestão da incorporação. Nesses casos, a comissão de representantes dos adquirentes assume a gestão do empreendimento com o encargo e as prerrogativas previstas no § 1º do art. 31-F e nos incisos VI e VII do art. 43 da lei 4.591/1964, mas essas medidas só terão efetividade se os adquirentes tiverem sido investidos nos respectivos direitos reais, pois é essa qualificação que os habilita a deliberar sobre as matérias de interesse do condomínio (que o art. 31-F chama de "condomínio da construção") e a praticar os atos necessários à preservação do respectivo patrimônio, inclusive o leilão de unidades de estoque do incorporador ou de adquirentes inadimplentes, cujos efeitos reais (transmissão ao arrematante) dependem, obviamente, da existência de qualificação das frações autônomas como objeto de direito de propriedade. Mas, a despeito da expressa previsão legal de criação desses direitos reais por efeito do registro do Memorial de Incorporação, fundada nos princípios do sistema registral relacionados à transmissibilidade de direitos reais aos adquirentes, há normas estaduais segundo as quais esse regime especial só poderia ser constituído após o "habite-se". Parte-se da equivocada premissa de que só existiria condomínio se houvessem unidades dotadas de habitabilidade e não frações ideais autônomas, como se o objeto do condomínio fossem coisas materialmente consideradas, e não o direito de propriedade sobre coisas.   Essas e outras normas que negam a existência de condomínio especial antes do "habite-se" dão origem a inúmeras situações que agravam o estado de vulnerabilidade da posição contratual e patrimonial dos adquirentes, privando-os do exercício das suas prerrogativas, como são, por exemplo, os obstáculos para obtenção de CNPJ em nome do condomínio durante a construção, necessário para prosseguimento da obra ou liquidação da incorporação em caso de destituição do incorporador, inclusive no curso de recuperação judicial da empresa incorporadora, ou em caso de falência (lei 4.591/1964, arts. 31-A, § 1º, e 43, VI e VII). Para afastar esses e outros obstáculos, instituir procedimentos uniformes para todo o país, desburocratizar e reduzir custos, as alterações introduzidas pela MP 1.085/2021 priorizam a constituição do condomínio por simples efeito do registro do Memorial de Incorporação, como requisito essencial da segurança jurídica dos adquirentes na comercialização de imóveis a construir. Nesse aspecto, a MP reforça o conteúdo normativo da lei 4.591/1964, que já contemplava a caracterização dessa propriedade condominial e já assegurava a atribuição de direitos reais aquisitivos sobre as frações, com a autonomia própria desse regime especial. Entre os dispositivos alterados, destaca-se o caput do art. 32,13 que identifica como objeto da alienação na atividade da incorporação imobiliária as frações ideais do terreno e acessões, ao substituir a locução "negociar sobre unidades" por "alienar ou onerar as frações ideais de terreno e acessões". Alinhada à qualificação do objeto de alienação, assim definida, a alínea "i" do art. 32 explicita que as frações resultantes da divisão do terreno são dotadas de autonomia, ao dispor que o Memorial será integrado por "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas." E, mais, o § 1º-A, incluído no art. 32 pela MP 1.085/2021, qualifica o registro do Memorial de Incorporação como modo de constituição do condomínio especial, ao dispor que "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e respectivas acessões a regime condominial especial", pois esse ato reúne e identifica com precisão e completude todos os elementos de caracterização do condomínio edilício definidos pelo art. 1.332 do Código Civil. De outra parte, o § 15, também incluído no art. 32 pela MP 1.085/2021, dispõe que o registro do memorial e do condomínio sobre as frações "constitui ato registral único", indicando que se trata de mera explicitação do efeito único e natural produzido pelo registro do Memorial definido no § 1º-A. Embora exprima essa obviedade, há quem entenda que o § 15 estaria se referindo a dois atos de registro, mas trata-se de falsa impressão, pois esse parágrafo dispõe "o registro do memorial (...) e da instituição (...) constitui", referindo-se a um só ato, pois, se quisesse referir-se a dois atos, diria "o registro do memorial (...) e o da instituição (...) constituem...". Mas, além disso, se, em afronta ao que dispõe o § 1º-A do art. 32, se considerasse que se trataria de cobrança de emolumentos, o § 15 estaria desafiando o velho adágio segundo o qual a lei não contém palavras desnecessárias, pois a cobrança de ato de registro único nas incorporações imobiliárias já está regulamentada pelo art. 237-A da lei 6.015/1973, segundo o qual as averbações ou registros posteriores ao registro da incorporação e até o "habite-se" "serão considerados como ato de registro único, não importando a quantidade de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes."14  A par desse aspecto, importa ter presente que, a despeito de a MP explicitar com clareza o modo de constituição dos direitos reais a serem ofertados à venda sob regime condominial, a diversidade terminológica empregada para esse fim poderia suscitar controvérsias e comprometer a aplicação prática da lei, daí porque talvez seja conveniente afastar esse risco pela uniformização, mediante adoção da expressão "condomínio edilício", consagrada no Código Civil, em lugar de "regime condominial especial" (art. 32, § 1º-A) e "condomínio por frações autônomas" (lei 6.015/1973, art. 213, § 10, II) empregadas pela MP. Como se vê, as alterações introduzidas pela MP 1.085/2021 na Lei 4.591/1964 conferem efetividade às normas sobre outorga de direitos reais aos adquirentes, viabilizando, assim, o exercício de suas prerrogativas, sobretudo em situações de crise da empresa incorporadora. Nesse sentido, ao explicitar que o registro do Memorial de Incorporação importa, por si só, na instituição do condomínio especial por unidades autônomas, a MP preserva o conteúdo normativo da lei 4.591/1964 e o reforça, corrige distorções interpretativas, simplifica procedimentos e reduz custos da incorporação imobiliária, incorporando ao ordenamento novos e decisivos mecanismos de segurança jurídica capazes de assegurar a realização do programa contratual, no interesse da coletividade  dos contratantes. Justifica-se, portanto, a legítima expectativa de que, com ajustes de forma que eventualmente venham a se mostrar necessários no curso dos debates no Congresso Nacional, as disposições da Medida Provisória 1.085/2021 aqui consideradas sejam convertidas em lei. __________ 1 Os mecanismos de controle e segurança jurídica da incorporação imobiliária são apreciados em trabalho publicado aqui. 2 Segundo Afrânio de Carvalho, a existência legal dos imóveis, que os torna passíveis de disposição, é determinada pela identificação no Registro de Imóveis com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro" (CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247). 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Condomínio e incorporações. 14. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 284/285. 4 "Havendo incorporação, será necessário realizar também a instituição de condomínio? Isso seria absurdo, pois a incorporação contém todos os elementos exigidos pela instituição de condomínio (cfr. art. 7º e art. 32/al. 'i') e implica necessariamente a declaração de vontade de instituir a propriedade horizontal. A solução só pode ser esta: a incorporação engloba uma instituição de condomínio, mas é mais do que uma instituição" (ASCENSÃO, Maria Teresa Pereira de Castro; ASCENSÃO, José de Oliveira. Instituição, incorporação e convenção de condomínio. Revista de Direito Civil (RT), v. 10, out.-dez. 1979, p. 143 e seguintes). 5 Diz-se condomínio especial para designar aquele integrado por unidades autônomas, caracterizado pela conjunção da propriedade individual e da copropriedade, em oposição ao condomínio geral. Há algumas espécies de condomínio especial, mas o Código Civil o regulamenta em capítulo intitulado "do condomínio edilício" e seu art. 1.331 se refere ao condomínio "em edificações". Há que se ter presente, contudo, que o objeto do condomínio é o direito de propriedade sobre o bem, e não o bem fisicamente considerado, de modo que o condomínio diz respeito à propriedade sobre conjuntos de casas, apartamentos etc, lotes de terreno urbano ou até mesmo poder jurídico sobre frações de tempo relativas a imóveis (multipropriedade). Em qualquer dessas hipóteses o condômino é titular de frações autônomas. 6 Lei 4.591/1964: "Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte". 7 Disponível aqui. 8 "Pensa-se por vezes que a incorporação se faz quando o edifício não está ainda construído, e a instituição de condomínio após a construção. Mas esse critério de distinção não pode ser verdadeiro, porque logo o art. 8º da Lei 4.591 prevê a instituição de condomínio em terreno onde não houver construção e se pretender erigir mais de uma. Logo, a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção está ainda por fazer-se" (ASCENSÃO, Maria Teresa Pereira de Castro; ASCENSÃO, José de Oliveira. Instituição, incorporação..., cit.). 9 Tratamos do tema em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 6ª edição, 2022, no prelo, itens 1.4.3 e 2.1.1. 10 Lei 4.591/1964: "Art. 35. O incorporador terá o prazo máximo de 45 dias (...), para promover a celebração do competente contrato relativo à fração ideal de terreno ... (...). § 4º Descumprida pelo incorporador e pelo mandante de que trata o § 1º do art. 31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no caput deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta-proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente." 11 Código Civil: "Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito." 12 Código Civil: "Art. 1.421. O pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa em exoneração correspondente da garantia, ainda que esta compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação." 13 Lei 4.591/1964, com a redação dada pela MP 1.085/2021: "Art 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terreno e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (...). i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão. (...). § 1º-A O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e respectivas acessões a regime condominial especial investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independente de anuência dos demais condôminos. (...). § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações autônomas constitui ato registral único."   14 Lei 6.015/1973: "Art. 237-A. (...). § 1o  Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput serão considerados como ato de registro único, não importando a quantidade de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes."
Humanidade1, O gene egoísta2, Chasing the scream3 e O andar do bêbado4 são livros maravilhosos que mergulham em assuntos completamente distintos, mas que possuem uma curiosa interseção: todos eles, recheados de exemplos históricos, de passagens cotidianas e de experimentos famosos desconstruídos, revelam, com socos acachapantes, como somos presas fáceis do nosso senso comum, que nos faz errar - e muito - na avaliação de fatos e fenômenos naturais, humanos e jurídicos. Não é mera coincidência que uma incansável e inconformada coluna assinada por Lenio Luiz Streck se chame Senso Incomum.  Ao longo das últimas décadas sedimentou-se como concreto armado o entendimento, aparentemente lógico, de que o condomínio edilício, em termos jurídicos, somente surge após a conclusão da edificação ou do conjunto de edificações da incorporação imobiliária.  De acordo com as Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, a instituição de condomínio será registrada mediante "a apresentação do respectivo instrumento ... acompanhado... do projeto aprovado e do "habite-se", ou do termo de verificação de obras em condomínio de lotes" (item 219). Na mesma toada de São Paulo, a Consolidação Normativa Notarial e Registral da CGJ/RS, que no art. 780 proíbe "abrir matrículas enquanto não averbada a edificação e registrada a instituição de condomínio". Os parágrafos 1º e 2º do referido artigo contradizem o caput, e permitem a abertura de matrícula, com "a ressalva de que se trata de obra projetada e pendente de regularização registral quanto à sua conclusão".  As normas das corregedorias estaduais em matéria extrajudicial são fruto do entendimento de magistrados atuantes na seara notarial e registral, e por serem emanadas do mesmo órgão que fiscaliza e pune, elas exercem um comando poderoso sobre os cartórios, a ponto de informalmente se dizer que na área prevalece a pirâmide de Kelsen, só que invertida, com as normas no topo.  Se, então, o condomínio edilício, segundo tal compreensão, somente nasce após o habite-se, as unidades imobiliárias negociadas pelos incorporadores no estande de vendas seriam, consequentemente, bens imóveis futuros. Pois sem condomínio edilício instituído não pode haver unidades imobiliárias juridicamente existentes, nem suas respectivas matrículas. O art. 483 do Código Civil seria o seu fundamento legal, ao permitir que a compra e venda tenha por objeto "coisa atual ou futura".  Mas espere um momento! Como se sabe, em matéria registral imobiliária, nenhum oficial pode registrar a venda de um terreno ainda não desmembrado, nem a venda de um lote em loteamento a registrar, nem a alienação de uma unidade autônoma de condomínio edilício ainda não instituído. Pois nesses três casos, a propriedade ainda não foi fracionada, e o bem resultante dessa divisão (área desmembrada, lote, unidade autônoma) não existe. Em outras palavras, o art. 483 se aplica aos bens imóveis, só que estritamente na seara obrigacional, sem efeitos reais. A transmissão de um imóvel futuro não é registrável.  Para escapar desse beco, fez-se um puxadinho hermenêutico5, a fim de viabilizar a anotação da venda no registro imobiliário: "Recomenda-se a elaboração de uma ficha auxiliar de controle de disponibilidade, na qual constarão, em ordem numérica e verticalmente, as unidades autônomas" (Normas Extrajudiciais da CGJ/SP, item 220). O resultado prático pode ser exemplificado na matrícula abaixo, em que se vê a sequência incorporação (R.03), ficha (Av.40), construção (Av.43) e instituição (R-45):    É irresistível reparar, no ato Av.43, que o condomínio foi instituído por instrumento particular. Ora, em que lugar do texto o art. 1.332 do Código Civil excepciona o art. 108 da mesma Lei, que exige escritura pública para atos que visem a criar direito real sobre imóvel de valor superior a 30 salários mínimos?  Eis que a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (RFB) nº 1.863/2018, que regula a obrigatoriedade de inscrição no Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas (CNPJ), surge como um oásis no meio do deserto. No Anexo VIII, ao cuidar do condomínio edilício, a norma permite que o CNPJ seja aberto mediante apresentação da convenção de condomínio registrada "ou certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio". Essa mesma possibilidade consta das instruções normativas que a antecederam (IN RFB nº 1.634/16 e anteriores).  Contudo, jogou-se areia na fonte d'água milagrosa. Em vez de se admitir o condomínio edilício pré-habite-se, defende-se a ideia do curioso "condomínio da construção", cuja expressão consta do art. 31-F, §1º, inserido na Lei nº 4.591/64 em 2004, pela Lei nº 10.931/046. Note-se, porém, que essa é uma previsão específica para a hipótese de insolvência do incorporador, a fim de viabilizar o prosseguimento da obra paralisada, não sendo capaz de criar um tipo condominial além daqueles já previstos no Código Civil: condomínios necessário, voluntário, edilício e em multipropriedade.  E nem se diga que a RFB teria reconhecido a figura do "condomínio da construção" na IN nº 2021/2021, pois o art. 7º, XI, ao conceituar a "construção de edificação em condomínio", a define como "a construção em imóvel objeto de incorporação imobiliária de que trata a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, sob responsabilidade dos adquirentes das unidades" tão somente para atribuir ao "condômino da construção em condomínio" a responsabilidade pela regularização da obra (art. 8º, IV).  Apesar disso, a moda emplacou a ponto de alguns empreendimentos utilizarem essa expressão na própria denominação do condomínio. Perceba, contudo, caro leitor, que no campo respectivo do cartão CNPJ a Receita Federal do Brasil, corretamente, classifica tal figura jurídica como condomínio edilício:    Nesse contexto em que durante a incorporação não existiria condomínio edilício, quando muito, um "condomínio da construção", até mesmo a definição dos objetos dos contratos de alienação de unidades na planta passou a ser um problema. Há quem diga alienar fração ideal "e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas", e há quem venda a unidade imobiliária "a ser construída", ou "em construção", e sua respectiva fração ideal.  É como se assistíssemos a um concerto de instrumentos improvisados tocando notas desarranjadas. Não se trata de mera discussão acadêmica. Este tema, tal como hoje majoritariamente concebido, gera consequências sérias, distorcendo o sistema e dificultando o registro de empreendimentos imobiliários que pretendam adotar certas estruturas que dependam do reconhecimento do condomínio na fase anterior ao habite-se. Todos perdem.  Como nadar contra essa violenta corrente da intuição? Seria muita presunção esperar que este artigo seja capaz de convencer alguém a mudar uma visão tão arraigada, quase pacífica e sedimentada em normas extrajudiciais país afora. Há, ainda assim, luz no fim do túnel.  A Consolidação Normativa da CGJ/RJ prevê, de modo alvissareiro, que "a matrícula de unidade autônoma condominial em construção ou a construir, decorrente de incorporação imobiliária, será aberta quando do primeiro registro a ela referente". Em Minas Gerais, o art. 1.038 do Código de Normas da CGJ/MG estabelece que a "instituição do condomínio prescinde da averbação da construção". Na Bahia, o art. 1.398 das Normas Gerais da CGJ/BA, que antes exigia o habite-se, foi alterado para retirar esse requisito7.  Isto é, ao menos em três Estados é possível criar matrícula de unidade autônoma durante a fase de construção, sem pendência de regularização (a exemplo do Estado do RS), como demonstra o exemplo a seguir:   Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia não estão sozinhos. O Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro da CGJ/PA, prevê com todas as letras que "a instituição do condomínio prescinde da averbação da construção e deverá ser registrada até a data da consolidação da incorporação imobiliária, que se dará em caso de venda ou promessa de venda de ao menos uma das unidades autônomas, contratação da construção ou decorrência de prazo no registro do empreendimento sem que a incorporação tenha sido denunciada pelo incorporador" (art. 1.072).  Aliás, isso faz - ou melhor, deveria fazer - todo o sentido, porque a regra, disposta em lei federal - hierarquicamente superior a uma norma administrativa, segundo a clássica lição de Kelsen -, não exige a prévia conclusão da obra para a instituição do condomínio edilício. Assim era com o art. 7º da Lei nº 4.591/64, e assim permanece com seu sucessor, o art. 1.332 do Código Civil, que elenca três requisitos para o ato de instituição, nenhum deles referentes à construção.  O art. 44 da Lei nº 4.591/64, ao contrário do que uma interpretação literal poderia levar equivocadamente a crer, não trata da instituição do condomínio. O que se extrai desse artigo, em uma interpretação coerente com o sistema jurídico, é que a averbação do habite-se encerra a incorporação imobiliária e altera a qualificação registral das unidades autônomas. Apenas isso. O bem imóvel existente, presente e "a ser construído", transforma-se em bem imóvel existente, presente e construído. Da mesma forma que a pessoa jurídica não precisa de corpo físico, e sua "existência legal" começa "com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro" (CC, art. 45), o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário (CC, art. 1.332).  Durante muitos anos a possibilidade de uma incorporação imobiliária de condomínio de lotes foi controversa. O principal ingrediente nessa discussão era justamente o fato de as casas não estarem ainda construídas sobre os terrenos. Havia Estados como São Paulo que o proibiam, enquanto em outros lugares sua adoção era plenamente admitida. A insegurança jurídica imperava, e foi necessário o advento do art. 1.358-A do Código Civil, trazido pela Lei nº 13.465/17, para o reconhecimento nacional desse filho bastardo8.  Sim, podemos avançar para admitir de uma vez por todas a instituição do condomínio edilício pelo incorporador na fase anterior à construção. Sem inventar a roda. Na doutrina, encontramos ninguém menos que Melhim Chalhub, ombreado com José de Oliveira Ascensão, admitindo esse caminho, ao escrever que o condomínio "pode incidir sobre o terreno sem construção, como expressamente prevê o art. 8º, ao referir-se ao condomínio sobre 'terreno onde não houver edificação', deixando claro que a instituição do condomínio é compatível com os casos em que a construção ainda está por fazer-se"9.  Insisto neste ponto: é um fato incontroverso que as acessões a serem executadas no empreendimento são inequivocamente futuras. Porém, enquanto não realizadas pelo incorporador, estas não integram o bem principal, que é a unidade autônoma e sua respectiva fração ideal. No fundo, a discussão sobre o objeto da alienação (fração ideal e acessões que corresponderão às futuras unidades versus unidade a construir e sua respectiva fração ideal) é essencialmente semântica. Entretanto, tal semântica reforça precisamente o senso comum combatido neste artigo, e por isso, se ela pode ser evitada, é melhor que o seja.  Até mesmo o embate sobre o condomínio unipessoal já parece ter ficado para trás: na propriedade horizontal o que se exige é a pluralidade de unidades autônomas, e não de proprietários. O Enunciado 504 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na 5ª Jornada de Direito Civil, dispõe que "a escritura declaratória de instituição e convenção firmada pelo titular único de edificação composta por unidades autônomas é título hábil para registro da propriedade horizontal no competente registro de imóveis, nos termos dos arts. 1.332 a 1.334 do Código Civil"10.  Isto significa que, se superarmos o atual senso comum, incorporadores em todo o país poderão lançar os empreendimentos com os condomínios edilícios já instituídos, e poderão aprovar e registrar as convenções antes ou durante a obra. Isso dispensaria as fichas, permitiria a abertura de matrículas, tornaria inócua a discussão sobre a existência do "condomínio da construção", facilitaria a inscrição no CNPJ, simplificaria a abertura de contas bancárias e tornaria o sistema muito mais coerente, simples e eficiente, com benefícios para todos os interessados.  Se a incorporação não chegar ao fim, o que fazer com as matrículas de unidades a construir já abertas? Bem, nesse caso será preciso, após solução para os direitos já registrados, promover o cancelamento de tais matrículas, retornando-se ao status quo ante. Frise-se: não é preciso olhar para o futuro, já temos laboratórios a céu aberto funcionando há décadas, pois como já referido e exibido por imagem, em alguns Estados permitem-se as matrículas antes do habite-se, e o mecanismo nunca travou por conta disso.  No Pará aguarda-se o prazo da denúncia da incorporação para somente então autorizar o registro da instituição do condomínio. O espírito da regra, entretanto, é a eficiência administrativa, evitando-se a abertura de matrículas cujo cancelamento pode ocorrer com maior probabilidade, o que chega a ser louvável.  Enfim, por qualquer ângulo que se analise a questão, não consigo chegar a outra conclusão senão a de que a proibição administrativa, via norma extrajudicial, de registro da instituição do condomínio edilício antes da construção do empreendimento, é medida que precisa ser revista o quanto antes.  O que se, propõe, portanto, é que as normas extrajudiciais estaduais sejam adequadas para: (i) autorizar o registro da instituição do condomínio edilício na sequência do registro da incorporação imobiliária, tão logo encerrado o prazo de carência previsto no art. 34 da Lei 4.591/64, independentemente de habite-se; e (ii) determinar, em decorrência do art. 108 do Código Civil, que o ato de instituição seja celebrado por escritura pública. Se não podemos mudar a direção do vento, que façamos um pequeno ajuste de velas para navegarmos na direção correta.  Reparem que tal adequação pode ser promovida independentemente do entendimento sobre a natureza da unidade autônoma durante a fase de construção (se é bem presente ou futuro), pois de uma forma ou de outra o sistema pode funcionar bem. O essencial é o reconhecimento em todo o território nacional da possibilidade de instituição, na origem, do condomínio edilício.    E o melhor de tudo: como a solução já decorre do próprio ordenamento, nem sequer necessitamos de lei nova. O Conselho Nacional de Justiça, que hoje tem a competência para tanto11, pode editar um ato que permita a cada Estado ajustar sua própria norma, homogeneizando e simplificando procedimentos em todo o Brasil, e com isso promovendo o aumento da segurança jurídica e a melhora do ambiente de negócios, abrindo as portas para novas estruturas jurídicas nas incorporações imobiliárias. Ganharão o mercado e o Direito Imobiliário. Quem sabe um dia.    ______________ 1 BREGMAN, Rutger. Humanidade: uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021. 2 DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 3 HARI, Johann. Chasing the Scream: the first and last days of the war on drugs. Londres: Bloomsbury Publishing PLC, 2019. 4 MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009 5 A expressão é de Anderson Schreiber, em seu livro Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: SaraivaJur, 2018, p. 247-248. 6 Art. 31-F (...) §1º. Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembleia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. (g.n.) 7 Sublinhe-se que agora, mesmo quando a instituição do condomínio ocorre sem incorporação imobiliária, o habite-se deixou de ser exigido, bastando a apresentação (i) do memorial descritivo com as especificações da obra e individualização das unidade autônomas, (ii) do projeto arquitetônico aprovado pelo Município, (iii) do quadro de custos das unidades autônomas e a planilha de áreas e frações ideais, subscrita pelo engenheiro responsável pelo cálculo, elaborada de acordo com a norma técnica vigente, e (iv) da ART ou RRT relativa à execução da obra. 8 ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): o condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Disponível aqui. Acesso em 13.12.2021. 9 CHALHUB, Melhim Namen. Incorporação imobiliária. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 63. O trecho de Ascensão mencionado pelo autor é o seguinte: "Pensa-se por vezes que a incorporação se faz quando o edifício não está ainda construído, e a instituição do condomínio após a construção. Mas esse critério de distinção não pode ser verdadeiro, porque logo o art. 8º da Lei 4.591 prevê a instituição de condomínio em terreno onde não houver construção e se pretende erigir mais de uma. Logo, a instituição de condomínio é compatível com os casos em que a construção ainda está por fazer-se" (Ob. cit., p. 38-39, nota de rodapé nº 8). 10 Pontes de Miranda há muito já defendia essa possibilidade: "A declaração de vontade para dividir em apartamentos o edifício pode ser unilateral, e não importa se o declarante é uma só pessoa, ou duas, ou mais" (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Civil. São Paulo: RT, 2012, t. XII, 1.335, 8). No mesmo sentido, Melhim Chalhub, logo antes de citar o mesmo Pontes de Miranda: "Nada obsta a que o proprietário único da totalidade de um edifício composto de várias unidades o divida em frações autônomas com suas correspondentes unidades imobiliárias e firme o respectivo instrumento de constituição" (Ob. cit., p. 38).   11 EC 45/2004, art. 5º, §2º c/c art. 8º, X, da Resolução CNJ nº 67/2009.
A regulação das águas públicas (mar, rios e lagos) enfrenta dificuldades conceituais e está imbricada com o polêmico tema dos terrenos de marinha e terrenos marginais, incertezas de limites entre o direito público e o privado e, ainda, conflitos de normas sobre a matéria. O uso do chamado espelho d'água é inerente a uma gama de atividades, exercidas notadamente nos portos, estaleiros, terminais pesqueiros, plataformas, marinas e clubes náuticos dotados de decks, atracadouros, píeres, fingers, dolphins, além de pontes e outras estruturas. O mar, lagos e rios são bens de uso comum do povo, conforme art. 99, I do CC e não dominicais (art. 99, III, do CC). O mar é de titularidade da União, assim como os rios e lagos federais, conforme artigo 20, incisos III e VI da CF/88.1 Pelo uso privativo dos espaços sobre águas públicas (ou apenas espelho d'água), a União cobra uma contraprestação dos particulares, além de multas para as obras e atividades consideradas irregulares, sem prejuízo das exigências para autorização dessas estruturas sobre as águas. A Instrução Normativa 87/20/SPU traz a regulamentação para as estruturas náuticas, enquanto a portaria 7.145/18/SPU regula os procedimentos específicos de intervenção sobre águas nos portos e suas instalações. Contudo, há falhas conceituais na regulamentação da União no que concerne aos critérios de cobranças, multas e exigências, bem como em relação aos atos normativos adotados, pois não é tema a ser tratado por simples instruções normativas e portarias. Sem embargo, no nosso entender há incompetência da SPU para regulação da matéria, por haver normas especiais que regem o tema, além da natureza jurídica do mar não condizer com as exigências impostas pela administração. De início, a União demonstra que não calibrou corretamente a regulamentação, pois as mesmas exigências para um empreendimento de grande porte são direcionadas a pescadores, marinas particulares e estruturas náuticas de menor vulto. Ademais, há graves impropriedades nas normativas editadas pela União, cuja análise aprofundada não é nossa pretensão nestas breves linhas.  Leis especiais e competência Especificamente na atividade portuária exercida nos portos organizados, a autoridade portuária é quem reserva, destina ou declara a disponibilidade do espelho d'água, conforme art. 7° da portaria SPU 7.145/2018. Nos chamados terminais de uso privativo, que são aqueles localizados fora da poligonal do porto organizado, a cessão é efetuada de forma individualizada. No que tange ao uso das áreas públicas e privadas ou alodiais, a competência para as aprovações e licenças no setor portuário é da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários e Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme leis 11.518/07 e 12.815/13. Em relação às áreas em terra, é a SPU que possui competência em se tratando de terrenos de marinha e seus acrescidos, além dos terrenos marginais e outros imóveis de domínio da União, nos termos do decreto-lei 9.760/46. Antes mesmo da celebração do respectivo contrato com o poder concedente, a ANTAQ exige certidão de disponibilidade do espelho d'água, mediante apresentação de plantas e memoriais das poligonais, identificação das áreas secas e demais requisitos da portaria, a fim de mitigar discussões com titulares de áreas lindeiras e disputas pelo uso das áreas molhadas. Por seu turno, a instrução normativa SPU 87/20 (mais genérica que a portaria 7.145/18) não esclarece o que seriam estruturas náuticas propriamente ditas e o que seriam estruturas de apoio à navegação. Também não se sabe ao certo se o uso de águas públicas integraria ou não as áreas de fundeio, muitas vezes utilizadas para uma única operação pontual. Enquanto não há regulação clara, empreendedores não sabem sequer quais operações ou empreendimentos estão sujeitos à análise da SPU, o que gera o risco de multas, embargos e cobranças a título de contraprestação pelo uso de espaço sobre as águas através de procedimentos administrativos, inscrição em dívida ativa e contratos de cessão - na maioria das vezes onerosa - para as estruturas que a União entende regulares. Outra impropriedade reside no fato de haver lei Federal específica e ampla regulamentação das estruturas náuticas, como marinas, clubes, condomínios e hotéis, e que estão reguladas imprópria e genericamente pela IN referida. Assim, em se tratando de estruturas sobre as águas alheias à atividade portuária, a lei 9.537/97 é a norma de regência, com atribuições e competência da Marinha do Brasil fixadas em seu art. 4°2, além de meticulosa regulamentação pela NORMAM 03-DPC, dentre outras normas regulamentadoras. Nesse contexto, o art. 2°, §20 da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que, a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, e na hipótese analisada não há sequer lei, mas simples portaria e instrução normativa. E o inciso X do art. 22 da CF/88 reza que compete privativamente à União legislar sobre regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial; e em decorrência dessa competência legislativa privativa é que foi editada a lei 9.537/97, atribuindo à Marinha do Brasil, e não à SPU a elaboração de normas sobre navegação, atracação e fundeio3, ex vi do seu art. 4°, inciso I e criteriosa regulamentação pelas NORMAM's, que incluem as estruturas construídas sobre o espelho d'água. Da natureza jurídica dos mares, rios e lagos A conduta da União fere a própria natureza jurídica das águas federais, pois trata tais bens como se dominicais fossem. O art. 2° do Código de Águas define o mar territorial como bem de uso comum do povo, assim como o art. 99, I do CC e artigo 20, incisos III e VI da CF/88. Já o art. 40 do Código de Águas reza que em lei ou leis especiais (e não em meras portarias e instruções normativas), serão reguladas a navegação ou flutuação dos mares territoriais das correntes, canais e lagos do domínio da União. E o acesso às águas, que pressupõe as rampas, atracadouros e demais estruturas é bem defendido por Afranio de Carvalho: "As águas públicas são de uso comum, pelo que seu acesso é livre a todos, desde que não alterem a sua quantidade e sua qualidade. A navegação, principal uso das águas, não altera nem uma nem outra."4 Não se discute a propriedade das águas públicas, cuja afetação ao domínio público independe de um ato da administração, bastando a verificação de sua natureza. Nesta quadra o entendimento de Garrido Falla: "No obstante, há de tenerse em cuenta que, em relación com los bienes de la primera de las citadas categorías (los destinados al uso público), puede hablarse en ciertos casos de uma afectacíon por razón de la naturaleza del bien. En estos casos basta con que la Ley declare el carácter de bienes de dominio público de los de una naturaleza determinada (zona marítimo-terrestre, ríos, minas...) para que todos los que participan de ella vengan a integrarse em el dominio. Para saber se uma corriente de agua es de dominio público nos es necesario indagar la existencia de un acto administrativo de afectación formal al uso público, sino que basta con que natulamente sea um río."5 Nessa esteira, conclui-se que a União somente possui o domínio político sobre os mares, rios e lagos. Não possui domínio patrimonial propriamente dito, pois o mar não é bem dominical, passível de cobranças como foros e taxas de ocupação. Aliás, não há correspondência da lei 9.636/98 com as águas públicas e seu domínio. Tudo isso é importante para entendermos que a retribuição pretendida pela União somente seria devida para atender despesas de conservação do bem, como no caso de uso de bens de uso comum do povo, como museus e parques, mas cujos valores podem ser destinados apenas à sua conservação, conforme art. 103 do CC. Quanto às águas públicas, será necessária uma construção firme da União para evitar mais insegurança jurídica, não sendo factível, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto pelo ponto de vista ético, tratar o bem de uso comum do povo como se um bem dominical fosse. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, bem define os bens dominicais, que são aqueles que possuem função financeira: "1 - comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; 2 - submetem-se a regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado."6 Acresce que tanto o STJ quanto os TRFs consideram válidas as cobranças de taxas patrimoniais (foro, taxa de ocupação e laudêmio) pelo fato de haver retribuição pelo uso do bem público dominical, nunca sobre bem de uso comum do povo. E para apurar o valor da retribuição pelo uso do espelho d'água, a SPU utiliza como critério a avaliação da área em terra do ocupante ou foreiro. Esse dito preço público - expressão contida nos próprios contratos de cessão - seria obrigatório aos olhos da União, vulnerando a jurisprudência do STF, firme quanto ao fato da cobrança ser facultativa nesses casos.7 Limites normativos de portarias e instruções normativas A cobrança criada por atos infralegais não pode recair sobre qualquer empreendimento, ainda mais sobre aqueles cujas atividades são inerentes ao uso dos espaços físicos em águas contíguas às áreas secas de titularidade de particulares, ainda que a título precário, ante os princípios da segurança jurídica e da intangibilidade do ato jurídico perfeito. Simples portarias e instruções não podem sobrepor-se a leis Federais, por serem normas internas e que não devem atingir particulares. Portaria não pode criar novos direitos ou obrigações não estabelecidos no texto legal. Sobre as portarias, Hely Lopes asseverou: "As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração pública".8 Assim, devem ser levados em conta os estritos limites das normas infralegais e o estrago regulatório que a União criou com a edição desses simples atos administrativos, que criaram exação e maior insegurança jurídica a importantes setores de desenvolvimento. Conclusão A matéria é vasta e nosso objetivo não é esgotar o tema nestas breves linhas. Tanto os novos projetos quanto empreendimentos consolidados são alvo de ingerências da Secretaria do Patrimônio da União, que atrasa o desenvolvimento imobiliário e aumenta o risco e custo Brasil para setores estratégicos da economia, enquanto não editadas normas claras sobre o uso dos espaços em águas públicas, em consonância com a natureza jurídica do mar, rios e lagos federais, e respeito ao indissociável uso desses espaços em relação às respectivas áreas em terra. ______ 1 "Artigo 20: São Bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. VI - o mar territorial;" 2 "Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas; (...) i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores; VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio;" 3 'Área de fundeio, também conhecida como atracadouro ou fundeadouro, pode ser definida como local pré-estabelecido e regulamentado pela autoridade marítima onde uma embarcação pode lançar âncoras.' - Fonte: disponível aqui.  4 Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8 5Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470 6 Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492 7 RE 916809 AgR, Relator: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016 8 Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192 9 Portaria 7.145 de 13 de julho de 2018. Disponível aqui.  10 Portaria 87 de 1 de setembro de 2020. Disponível aqui.  11 Portaria 404 de 28 de dezembro de 2012. Disponível aqui.  12 Lei 9.636 de 15 de maio de 1998. Disponível em aqui. 13 Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui.  14 Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível aqui.  15 Lei 11.518 de 05 de setembro de 2007. Disponível aqui.  16 Decreto-Lei 2.398/87. Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Lei 12.815 de 05 de junho de 2013. Disponível aqui.  19 STF - Pleno, RE 556.854, Min. Cármen Lúcia, DJ. 11.10.11 Disponível aqui. 20 RE 916809 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016. Disponível aqui.  21 CARVALHO, Afranio de - Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8. 22 DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla - Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492. 23 FALLA, Fernando Garrido - Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470. 24 MEIRELLES, Hely Lopes - Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192.
Recente artigo publicado pelos professores Fernando Rodrigues Martins, Guilherme Magalhães Martins e Claudia Lima Marques1 nos dá conta de que tramitam no Poder Executivo Federal duas propostas de medidas provisórias, concebidas e gestadas no Ministério da Economia, que colocam em xeque o sistema registral imobiliário nacional, alteram a disciplina das garantias reais e vão de encontro à louvável e também recente iniciativa legislativa de combate ao superendividamento (lei 14.181/20212), abrindo caminho para uma "bolha imobiliária à brasileira", à semelhança da que se verificou nos Estados Unidos em 20073. Em busca de maiores detalhes sobre tais propostas, tivemos acesso às respectivas minutas e analisamos detidamente todos os dispositivos das pretensas medidas provisórias. A partir desse estudo, pudemos concluir, dentre outras coisas, que, além dos problemas apontados pelos referidos articulistas, há outros de ordem bastante prática e não menos importantes, a exemplo da dificuldade que a aprovação das duas medidas traria para a cobrança dos débitos relativos às contribuições condominiais, algo muito frequente nos médios e grandes centros urbanos. Antes de adentrarmos no problema envolvendo os condomínios edilícios, parece-nos importante registrar que, a despeito do que sugerem os mencionados professores que publicaram o artigo que despertou nosso interesse, os novos institutos jurídicos idealizados pelas duas propostas de medidas provisórias, a nosso ver, não introduziriam em nosso sistema o denominado home equity. No artigo em comento, seus autores afirmam que "há a expectativa do mercado de que o home equity (...) aumentará a segurança jurídica das instituições financeiras para o fornecimento de créditos aos consumidores, o que possibilitará, via de consequência, a sempre sonhada redução de juros no setor financeiro e imobiliário". Todavia, esse é um discurso que é reproduzido no Brasil há anos e que foi muito entoado - com poucos resultados práticos - especialmente na segunda metade da década de 90, com o advento da denominada Lei da Alienação Fiduciária - lei 9.514/19974. Ousamos afirmar que os novos institutos gestados pelas duas propostas de medidas provisórias não instituiriam no Brasil o denominado home equity porque, conforme afirmam os próprios articulistas, tal instituto seria um "empréstimo de pessoa natural garantido pelo imóvel residencial, mesmo que bem de família". Traduzindo para os institutos jurídicos brasileiros, podemos afirmar que, guardadas as particularidades dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, notadamente o norte-americano, home equity não é uma novidade para nós, sendo uma modalidade de empréstimo há décadas utilizada em nosso país, antes por meio da hipoteca, e mais recentemente por meio da alienação fiduciária em garantia. Há sutis diferenças, é claro, até porque os Estados Unidos é um país de tradição jurídica alicerçada na common law, enquanto o ordenamento jurídico brasileiro é tradicionalmente calcado na civil law. Conforme as lições de Melhim Challub5, home equitiy, no jargão do mercado, são os empréstimos sem destinação específica, justamente dentro desse contexto em que o imóvel residencial do mutuário é dado como garantia do negócio. Fica claro, portanto, que se trata de um instituto desde há muito presente na realidade brasileira. Mas, afinal, do que tratam essas duas propostas de medidas provisórias que tanto desconforto têm provocado na comunidade jurídica, conforme facilmente pudemos constatar em conversas com colegas acadêmicos? A primeira das propostas procura criar o denominado serviço de gestão especializada de garantias, que viabilizaria a criação das chamadas IGG (Instituições Gestoras de Garantias), em síntese, instituições financeiras que, também no exercício de tal mister, ficariam subordinadas e seriam fiscalizadas pelo BC (Banco Central) e pelo CMN (Conselho Monetário Nacional). A segunda proposta busca criar um novo título de crédito, o chamado TPI (Título de Propriedade Imobiliária). Curiosamente, essa segunda proposta, em seu artigo 12, pretende alterar a redação do inciso I do artigo 2º da primeira proposta, a fim de que conste, em tal dispositivo, não apenas "gestão administrativa das garantias", mas "gestão administrativa das garantias constituídas diretamente sobre bens imóveis ou móveis, ou sobre títulos representativos de cotas de propriedade de bens móveis ou imóveis" como uma das atividades a cargo das IGG. De fato, é no mínimo curioso que, em se tratando de ainda propostas de medidas provisórias que se interrelacionam e se complementam, uma tenha que alterar a redação da outra. Ora, se são apenas propostas sendo gestadas e se estão intimamente ligadas uma à outra, em perfeita harmonia, por que já não dar a redação pretendida diretamente na respectiva proposta? Trata-se, a nosso ver, de mais uma das tantas mazelas do complexo e imperfeito processo legislativo brasileiro. Outro exemplo dessas mazelas é que os temas tratados nas duas propostas flagrantemente não preenchem os requisitos de relevância e urgência exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal de 19886, dispositivo esse que vem há décadas sendo violado impunemente pelo Poder Executivo Federal. Seja como for, o fato é que as duas propostas procuram criar um novo título de crédito, o TPI, que seria de fácil circulação no mercado de capitais, mediante a gestão especializada das IGG, subordinadas e fiscalizadas pelo BC e pelo CMN. Esse sistema desburocratizaria e tornaria mais dinâmica a circulação econômica do sistema de garantias creditícias, facilitando e dando mais segurança ao processo de concessão de financiamentos, o que, em última análise, reduziria - ao menos em tese - as taxas de juros, gerando mais negócios e aquecendo a economia. O que se tem alardeado na comunidade jurídica é que tais medidas praticamente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, exercido pelos Cartórios de Registros de Imóveis sob rigorosas normas e fiscalização do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça, transferindo-o para agentes do mercado financeiro, que estariam sob uma fiscalização muito mais flexível e juridicamente frágil, exercida pelo BC e pelo CMN. Com todo o respeito a quem pensa de modo diverso, não é bem disso que se trata, pois o artigo 6º da segunda proposta de medida provisória assim preceitua: Art. 6º A emissão do TPI deverá ser averbada no registro de imóvel competente que fará constar da matrícula do imóvel a sua emissão, a instituição do regime de depósito centralizado do TPI, bem como a transferência da titularidade do TPI para o depositário central. Como se vê, a emissão do pretenso novo título de crédito necessariamente teria de ser averbada no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar de tal averbação informações acerca de qual seria a IGG responsável pelo depósito e gestão do TPI. Não queremos com isso dizer que as propostas são boas e harmônicas com o nosso atual ordenamento jurídico, muito pelo contrário, mas nos parece excessivo dizer que os projetos em gestação simplesmente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, transferindo-o para agentes financeiros. De fato, as propostas nos parecem perigosas, pois flexibilizam o princípio da concentração dos atos registrais na matrícula do imóvel - consagrado pelos artigos 54 a 58 da lei 13.097/20157 -, assegurando que haja publicidade adequada apenas acerca da emissão de TPI onerando o imóvel registrado, mas retirando da matrícula do imóvel relevantíssimas informações, especialmente acerca da atual titularidade do título cambial em questão, já que a gestão e a escrituração da respectiva circulação estará a cargo do mercado financeiro, especificamente de uma IGG. Tais propostas certamente provocam insegurança jurídica e burocratizam a obtenção de informações essenciais sobre os imóveis, já que os interessados teriam de buscar tais dados não apenas no Cartório de Registro de Imóveis, mas também na IGG responsável pelo depósito e pela gestão do TPI emitido. Mas, em se tratando de processo legislativo brasileiro, nada é tão ruim que não possa piorar. O artigo seguinte da mesma minuta, ou seja, o artigo 7º da segunda proposta de medida provisória, assim preceitua: Art. 7º A partir da emissão da TPI todas as operações de crédito relacionadas ao imóvel associado ao TPI deverão ser registradas no sistema de depósito autorizado em que o título estiver escriturado e depositado, ficando vedada a negociação ou qualquer tipo de oneração do imóvel enquanto da existência do TPI e operações relacionadas, cabendo a realização de ônus e gravames sobre o imóvel, inclusive bloqueios administrativos ou judiciais ou quaisquer constrições decorrentes de quaisquer dívidas ou obrigações do proprietário do imóvel, exclusivamente com base nas TPIs, por meio do sistema de depósito (grifos nossos). Trata-se, a nosso ver, de uma verdadeira aberração jurídica, caracterizando inclusive uma flagrante ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, pois, dentre outras atrocidades, o dispositivo em questão sugere que uma penhora, por exemplo, não poderia ser averbada na matrícula do imóvel, devendo ser levada a efeito exclusivamente com base nos TPI, por meio do sistema de depósito, gerido pelas IGG. O que se percebe, portanto, é que as duas propostas de medidas provisórias sob análise efetivamente são perigosíssimas e estão em dissonância com o nosso ordenamento jurídico, mas não exatamente pelos motivos propagados até aqui, mas por outras e talvez até mais graves razões. Como um dos inúmeros exemplos dos impactos negativos que adviriam da aprovação dessas propostas, poderíamos citar os desafios que os condomínios edilícios passariam a enfrentar para promover a cobrança de débitos de contribuições condominiais, que, como sabemos, têm natureza propter rem. Com efeito, Flávio Tartuce8 leciona que "nunca se pode esquecer que as despesas condominiais constituem obrigações propter rem ou próprias da coisa, denominadas obrigações ambulatórias, pois seguem a coisa onde quer que ela se encontre". Além de ter de buscar informações sobre a titularidade dos direitos sobre o imóvel nos Cartórios de Registro de Imóveis, os condomínios edilícios teriam também de buscar informações junto às IGG, quando houver algum TPI emitido com lastro no imóvel em relação ao qual existiriam os débitos. Como se não bastasse, os condomínios edilícios ainda enfrentariam sérios entraves por ocasião da execução de seus créditos, tradicionalmente satisfeitos por meio da penhora e alienação em hasta pública do próprio imóvel que gerou os débitos. A partir da exegese do já referido e malfadado artigo 7º, tal satisfação teria que se dar por meio do sistema cambial de TPI, gerido por uma IGG. Em outras palavras, a garantia da satisfação dos débitos condominiais, antes consubstanciada no próprio imóvel, passaria a ser representada por um papel, por um título de crédito. Trata-se, a nosso ver, de um grande retrocesso, pois reinseriria no contexto da cobrança condominial a insegurança jurídica que já pairou, por exemplo, acerca de quem seria o responsável pelo débito condominial, se o titular do domínio no registro de imóveis ou o compromissário comprador, assim qualificado por um instrumento particular não levado a registro. Depois de muitas idas e vindas, o tema se pacificou em 2015, quando o STJ9 firmou a tese de que "havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto". Dúvidas e insegurança jurídica também já houve acerca de despesas condominiais envolvendo imóvel gravado por alienação fiduciária em garantia. A responsabilidade pelo pagamento seria do credor fiduciário ou do devedor fiduciante? A solução acabou sendo dada pelo § 8º do artigo 27 da já referida Lei da Alienação Fiduciária, parágrafo esse incluído pela lei 10.931/200410, que estabeleceu que o devedor fiduciante é o responsável, dentre outras, por tais despesas, até a data em que o credor fiduciário vier eventualmente a ser imitido na posse do imóvel. Todavia, para o nosso espanto ainda maior, o § 2º do artigo 10 da segunda proposta de medida provisória, que pretende criar o TPI, assim preceitua: "Não serão aplicáveis no processo de execução relacionados ao TPI os artigos 26, 26-A, 27 e 30 da lei 9.514, de 1997". Ou seja, acaso aprovadas as infelizes propostas de medidas provisórias sob análise, não mais se aplicaria, pelo menos não na execução de débitos condominiais envolvendo imóvel gravado por TPI, a solução quanto à responsabilidade do devedor fiduciante até a imissão do credor fiduciário na posse do imóvel, haja vista que tal solução está inserida justamente num parágrafo, o 8º, do artigo 27 da lei 9.514/1997. Em síntese, a eventual aprovação dessas duas propostas de medidas provisórias que estão em gestação no âmbito do Poder Executivo Federal, precisamente no Ministério da Economia, instaurarão não apenas o serviço de gestão especializada de garantias e o título de propriedade imobiliária, mas também um verdadeiro caos no que se refere à cobrança de despesas condominiais. Por essas e por outras, recomenda-se que a sociedade civil, especialmente a comunidade jurídica, esteja atenta e unida contra a aprovação desse verdadeiro "lobo sob a veste de cordeiro" - ou "retrocesso sob a aparência de modernidade" - representado por esses viciados institutos jurídicos que se pretende inserir no Direito Imobiliário e Condominial brasileiro. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispões sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. _______. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. _______. Lei 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. _______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.345.331/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.04.2015, DJe 20.04.2015. CHALLUB, Melhim. Desafios atuais da alienação fiduciária. Coluna Migalhas Edilícias. Portal Migalhas, 08 ago 2019. Disponível aqui. Acesso em: 23 out 2021. MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; MARQUES, Claudia Lima. O home equity e a bolha imobiliária à brasileira. Revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), 13 out 2021. Acesso em: 20 out 2021. NEGRÃO, Angela. A bolha imobiliária americana: um estudo de caso. Canal Brain, 20 jan 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - vol. 4 - 13 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. *Cesar Calo Peghini é pós-doutorando em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Professor titular permanente do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado) da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor convidado no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro fundador e diretor de eventos do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Associado e diretor de eventos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM/SP). Associado ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo/SP. **Renato Mello Leal é mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor em cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD). Autor de livros e artigos jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo/SP.  __________ 1 MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; MARQUES, Claudia Lima. O home equity e a bolha imobiliária à brasileira. Revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), 13 out 2021. Acesso em: 20 out 2021. 2 BRASIL. Lei 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. 3 NEGRÃO, Angela. A bolha imobiliária americana: um estudo de caso. Canal Brain, 20 jan 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 4 BRASIL. Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispões sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 20 out 2021. 5 CHALLUB, Melhim. Desafios atuais da alienação fiduciária. Coluna Migalhas Edilícias. Portal Migalhas, 08 ago 2019. Disponível aqui. Acesso em: 23 out 2021. 6 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 7 BRASIL. Lei 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021. 8 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas - vol. 4 - 13 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 442. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.345.331/RS, 2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.04.2015, DJe 20.04.2015.   10 BRASIL. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Disponível aqui. Acesso em: 20 out 2021.
Introdução  Analisando o imposto municipal sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU, surgiu a reflexão sobre a presença da proteção ambiental ao mesmo tempo em que há a incidência da norma tributária, reflexão esta, sobre a perspectiva da base de cálculo do imposto, com o objetivo de fomentar o debate sobre a justa tributação, frisando, desde logo, a importância e indispensabilidade da proteção ao meio ambiente para as presentes e futuras gerações conforme preconizado no art. 225 da Constituição Federal de 1988. O estudo proposto está longe de esgotar o assunto que constantemente é presente nos Tribunais do país e na Administração Pública, visando apenas trazer um ponto de vista pouco abordado quando se debate no âmbito administrativo ou judicial a tributação sobre a propriedade urbana atingida por restrições ambientais ainda que parcialmente. Frequentemente, a discussão gira em torno da existência ou não, de no mínimo dois melhoramentos públicos nos termos do § 1º, art. 32 do Código Tributário Nacional, ou, na perda da propriedade, inexistência de relação jurídica tributária e na aplicação de alíquota prevista na legislação local do ente tributante, sendo que por vezes, o contribuinte de mãos atadas, busca soluções prejudicais a si mesmo e ao direito de propriedade, como a doação do imóvel, dação em pagamento em favor da Fazenda Pública, ou simplesmente o não pagamento do tributo para ver a propriedade expropriada. Contudo, o enfretamento do tema sob a ótica da base de cálculo é pouco explorado, ensejando, assim, mais enfrentamento para que se possa evoluir na concretização de uma melhor política fiscal aliada com a igualmente relevante política ambiental. Nesse sentido, é importante a matéria para ambos, ou seja, tanto para o contribuinte, como também, para a Administração Pública Municipal, que não raramente tributa sem levar em considerações a existência ou não de restrições ambientais (total ou parcialmente) na propriedade urbana localizada em seu território e seus reflexos, principalmente, na base de cálculo. Assim, o estudo está dividido em três tópicos, o primeiro sobre as normais gerais que tratam do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, o segundo abordando a proteção ambiental e a base de cálculo do IPTU, e por último, o fechamento com as considerações finais.                                Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU  Partindo da norma suprema do ordenamento jurídico, ou seja, a Constituição Federal, temos a outorga da competência tributária1 aos municípios para instituírem o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana nos termos do art. 156, inciso I, corroborando, assim, a salutar autonomia financeira do ente federado, como bem frisado por Giovani da Silva Corralo: À luz da autonomia municipal, nas dimensões administrativa, política, financeira, legislativa e auto-organizatória, ressalva-se a importância capital da autonomia financeira, sem a qual as demais autonomias se encobrem nas trevas da dependência e da subserviência política.2 E nos limites dessa autonomia, o Município deve seguir a lei, sempre com observância aos preceitos constitucionais, sendo relevante destacar o disposto nos incisos I e II do § 1º do mesmo art. 156, pois fixam que o imposto poderá: "I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel".  Descendo ao plano infraconstitucional, pertinente mencionar a redação do art. 16 do Código Tributário Nacional, lei 5.172/66: "Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte". Nesse sentido, é importante lembrarmos que a espécie tributária imposto possui como fato gerador uma situação que não está ligada ou relacionada com qualquer atividade do Estado (lato sensu); como a própria redação do dispositivo legal define, seu fato gerador é independente. Abrindo um parêntese, a expressão "fato gerador" será adotada no presente estudo seguindo a menção feita na legislação, sem deixar de reconhecer que existe entendimento diverso sobre a melhor terminologia, conforme lecionado pelo jurista Geraldo Ataliba na obra singular Hipótese de Incidência Tributária: [...] denominando "hipótese de incidência" ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e "fato imponível" ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência.3                Adentrando ao tema, especificamente no Capítulo III, Seção II do Código Tributário Nacional (CTN), a norma tributária infraconstitucional trata do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana disciplinando no art. 32 e parágrafos que: Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. § 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior. Disciplina legal esta, base para a discussão jurídica que se propõe, pois especifica o fato gerador do tributo em análise, isto é, os fatos que se realizados tornam a pessoa contribuinte do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, qual seja, ter "a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física". Além disso, estabelece critérios para a definição do que seria área urbana no Município, devendo haver a definição por lei municipal, e a presença de no mínimo dois dos melhoramentos indicados nos incisos I ao V, § 1º, do art. 32. Como também, de grande importância é o disposto no § 2º, pois estabelece que poderá "a lei municipal considerar urbanas as áreas urbanizáveis ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior", ou seja, havendo tal definição legal e em razão dessas circunstâncias de fatos inerentes à localidade, mesmo não havendo o mínimo de dois melhoramentos dentre os elencados no § 1º, haverá a ocorrência do fato gerador e a tributação pelo fisco municipal no que tange ao IPTU, sendo inclusive matéria já sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça nos seguintes termos: Súmula 626 - A incidência do IPTU sobre imóvel situado em área considerada pela lei local como urbanizável ou de expansão urbana não está condicionada à existência dos melhoramentos elencados no art. 32, § 1º, do CTN. (SÚMULA 626, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018).4 E no tocante à base de cálculo do imposto em comento, o art. 33 do CTN é preciso ao estabelecer que a "base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel" (sem grifo no original), explicitando o art. 34 da mesma lei que o "contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título". Hugo de Brito Machado, na obra doutrinária Curso de Direito Tributário, pontifica: A base do cálculo do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana é o valor venal do imóvel (CTN, art. 33). Valor venal é aquele que o bem alcançaria se fosse posto à venda, em condições normais. O preço, neste caso, deve ser o correspondente a uma venda à vista, vale dizer, sem incluir qualquer encargo relativo a financiamento. À repartição competente cabe apurar o valor venal dos imóveis, para o fim de calcular o imposto, assegurado, entretanto, ao contribuinte o direito à avaliação contraditória, nos termos do art. 148 do CTN.5 Assim, ainda que brevemente, levando-se em consideração as normas gerais postas na Constituição Federal de 1988 e no Código Tributário Nacional, destacamos os pontos principais para o estudo que se apresenta referente ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana de competência dos municípios. É claro que cada Município possui seu Código Tributário Municipal, norma que em alguns pontos possui repetição em relação ao Código Tributário Nacional, contudo, possui as especificidades de cada localidade, principalmente no tocante às alíquotas. Como seria extremamente difícil abordar as normas locais, haja vista contarmos com 5.570 municípios na Federação Brasileira6, limitamo-nos aos aspectos gerais, que poderão servir de norte para reflexão no âmbito das Administrações Públicas e contribuintes interessados.                A proteção ambiental e a base de cálculo do IPTU                Desde logo, é importante deixar em evidência que o objetivo não está em questionar a proteção ambiental, pelo contrário, o que se traz para debate é a necessidade de interação do Direito Tributário com o tema, objetivando, assim, a convivência harmônica dentro do ordenamento jurídico para o melhor resultado em prol da coletividade. E o Superior Tribunal de Justiça já vem sinalizando nesse sentido, conforme depreende-se do julgamento proferido no AgInt no AREsp 1723597/SP, de Relatoria do Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ:                               TRIBUTÁRIO, AMBIENTAL E URBANÍSTICO. IPTU. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. ART. 32 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. LIMITAÇÃO AMBIENTAL AO DIREITO DE PROPRIEDADE. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA DE USO DA TOTALIDADE DO BEM PELO PROPRIETÁRIO. IMPACTOS TRIBUTÁRIOS DA NATUREZA NON AEDIFICANDI DE IMÓVEL URBANO. DIREITO TRIBUTÁRIO NO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL. PRINCÍPIO POLUIDOR-PAGADOR. EXTERNALIDADES AMBIENTAIS NEGATIVAS. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. [...] 6. Sobre a relação entre IPTU e Área de Preservação Permanente, o STJ já se pronunciou em outras oportunidades: "A restrição à utilização da propriedade referente a Área de Preservação Permanente em parte de imóvel urbano (loteamento) não afasta a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano, uma vez que o fato gerador da exação permanece íntegro, qual seja, a propriedade localizada na zona urbana do município. Cuida-se de um ônus a ser suportado, o que não gera o cerceamento total da disposição, utilização ou alienação da propriedade, como ocorre, por exemplo, nas desapropriações. Aliás, no caso dos autos, a limitação não tem caráter absoluto, pois poderá haver exploração da área mediante prévia autorização da Secretaria do Meio Ambiente do município" (REsp 1.128.981/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 25/3/2010, grifo acrescentado). Em sentido assemelhado: "não se pode confundir propriedade com restrição administrativa, pois esta não afasta o fato gerador do imposto e a titularidade para efeitos de tributação" (REsp 1.801.830/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 21/05/2019). Comparando a situação do ITR e do IPTU, confira-se: "o não pagamento da exação deve ser debatida à luz da isenção e da base de cálculo, a exemplo do que se tem feito no tema envolvendo o ITR sobre áreas de preservação permanente, pois, para esta situação, há lei federal regulando a questão. (artigo 10, § 1º, II, 'a' e 'b', da Lei 9.393/96)." (AgRg no REsp 1.469.057/AC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 20/10/2014). A jurisprudência do STJ, todavia, não há de ser lida como recusa de ponderar, na análise do fato gerador do IPTU e de outros tributos, eventual constrição absoluta de cunho ambiental, urbanístico, sanitário ou de segurança sobreposta sobre 100% do bem. Cobrança de tributo sobre imóvel intocável ope legis e, por isso, economicamente inaproveitável, flerta com confisco dissimulado. 7. O Direito Tributário deve ser amigo, e não adversário, da proteção do meio ambiente. A "justiça tributária" necessariamente abarca preocupações de sustentabilidade ecológica, abrigando tratamento diferenciado na exação de tributos, de modo a dissuadir ou premiar comportamento dos contribuintes que, adversa ou positivamente, impactem o uso sustentável dos bens ambientais tangíveis e intangíveis. 8. No Estado de Direito Ambiental, sob o pálio sobretudo, mas não exclusivamente, do princípio poluidor-pagador, tributos despontam, ao lado de outros instrumentos econômicos, como um dos expedientes mais poderosos, eficazes e eficientes para enfrentar a grave crise de gestão dos recursos naturais que nos atormenta. Sob tal perspectiva, cabe ao Direito Tributário - cujo campo de atuação vai, modernamente, muito além da simples arrecadação de recursos financeiros estáveis e previsíveis para o Estado - identificar e enfrentar velhas ou recentes práticas nocivas às bases da comunidade da vida planetária. A partir daí, dele se espera, quer autopurificação de medidas de incentivo a atividades antiecológicas e de perpetuação de externalidades ambientais negativas, quer desenho de mecanismos tributários inéditos, sensíveis a inquietações e demandas de sustentabilidade, capazes de estimular inovação na produção, circulação e consumo da nossa riqueza natural, assim como prevenir e reparar danos a biomas e ecossistemas. Um esforço concertado, portanto, que envolve, pelos juízes, revisitação e releitura de institutos tradicionais da disciplina e, simultaneamente, pelo legislador, alteração da legislação tributária vigente. 9. Agravo Interno não provido. (AgInt no AREsp 1723597/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 29/03/2021, DJe 06/04/2021).7 (grifamos). Destarte, a pretensão está em trazer a reflexão de que o Direito Tributário deve dialogar mais como o Direito Ambiental, visando à justa tributação com respeito à preservação e proteção do meio ambiente, pois "a sadia qualidade de vida só pode ser conseguida e mantida se o meio ambiente estiver ecologicamente equilibrado. Ter uma sadia qualidade de vida é ter um meio ambiente não poluído."8 Exemplificando a incidência do Direito Ambiental na propriedade, podemos citar o disposto na lei Federal 9.985/2000, que: "Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências". No art. 14, a citada lei apresenta rol das categorias de unidade de conservação: Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação: I - Área de Proteção Ambiental; II - Área de Relevante Interesse Ecológico; III - Floresta Nacional; IV - Reserva Extrativista; V - Reserva de Fauna; VI - Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e VII - Reserva Particular do Patrimônio Natural.9 Cada categoria desta, implica em uma maior ou menor restrição à utilização plena da propriedade, afetando o valor do imóvel, e consequentemente, a base de cálculo do tributo municipal IPTU. Evitando a citação demasiada de artigos da mesma lei referente à definição legal de cada unidade de conservação, apresentamos como exemplo apenas a definição legal da Área de Relevante Interesse Ecológico prevista no art. 16: Art. 16. A Área de Relevante Interesse Ecológico é uma área em geral de pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional, e tem como objetivo manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da natureza. § 1o A Área de Relevante Interesse Ecológico é constituída por terras públicas ou privadas. § 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Relevante Interesse Ecológico.10 (grifamos) Acontece que, dependendo das condições geográficas do município e da sua organização territorial, tal categoria de unidade de conservação pode atingir imóveis/terras particulares localizadas na zona urbana, implicando em restrição total ou parcial ao seu uso, porém, tributada pelo Fisco Municipal, que deixa de levar em consideração a repercussão dessa circunstância na atividade administrativa de lançamento do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, tanto que, na Região do Vale do Ribeira, litoral sul do Estado de São Paulo, região riquíssima em biodiversidade e que merece a devida proteção e valorização, temos, por meio do decreto estadual 30.817/89 que "Regulamenta a Área de Proteção Ambiental da Ilha Comprida, criada pelo decreto 26.881, de 11/03/1987 declara a mesma APA como de Interesse Especial e cria, em seu território, Reservas Ecológicas e Área de Relevante Interesse Ecológico", a previsão no seguinte sentido: Artigo 11 - Fica declarada Área de Relevante Interesse Ecológico, nos termos do disposto no Decreto Federal n. 89.336, de 31 de Janeiro de 1984, a Zona de Vida Silvestre da APA da Ilha Comprida, delimitada no inciso V do artigo 2.º deste decreto. Artigo 12 - Na Área de Relevante Interesse Ecológico não será permitida qualquer atividade degradadora ou potencialmente causadora de degradação ambiental. § 1.º - Na Área de Relevante Interesse Ecológico é proibido o porte de armas de fogo e de artefatos ou de instrumentos de destruição da natureza. § 2.º - Na Área de Relevante Interesse Ecológico somente será permitida a construção de edificações destinadas à realização de pesquisas e ao controle ambiental, desde que aprovadas pelos Municípios.11 (grifamos) Ora, resta claro que as áreas privadas que se encontrarem nessa circunscrição da Área de Relevante Interesse Ecológico, não podem ser utilizadas para qualquer outro fim diverso do especificamente previsto na norma, ou seja, é permitida apenas a "construção de edificações destinadas à realização de pesquisas e ao controle ambiental, desde que aprovadas pelos Municípios". Isso, certamente, causa um impacto na avaliação imobiliária, isto é, sobre o valor do imóvel inserido nessas condições, que sequer possui valor comercial, e é isso que deve ser observado pela Fazenda Pública Municipal na definição do valor venal e posterior apuração da exação tributária. Nesse sentido, digamos, de afetação ambiental da propriedade privada urbana, ainda podemos mencionar as disposições da lei Federal 12.651/2012 (Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa), destacando-se:                Art. 2º As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem. § 1º Na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da propriedade, aplicando-se o procedimento sumário previsto no inciso II do art. 275 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos do § 1º do art. 14 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e das sanções administrativas, civis e penais. § 2º As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: [...] II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: [...] Art. 6º Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades: [...] Art. 7º A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. Art. 8º A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei. Art. 9º É permitido o acesso de pessoas e animais às Áreas de Preservação Permanente para obtenção de água e para realização de atividades de baixo impacto ambiental.12 (grifamos) Assim, imóvel nessas condições, possivelmente terá seu valor reduzido, ou ficará sem valor comercial algum, ante a impossibilidade de utilização pelo proprietário de forma plena. Contudo, o ente público federado Município vem tributando sem atentar para esse fato, tributando propriedade que sequer possui valor comercial, ou seja, com base de cálculo zero, atuando contrariamente à própria natureza da espécie tributária que incide sobre o conteúdo econômico auferível, conforme frisado por Roque Antonio Carrazza: Portanto, os impostos caracterizam-se não só pela fonte de legitimação - a posição de supremacia da pessoa política em relação ao contribuinte -, como, também, por encontrarem limites no princípio da capacidade contributiva, que exige venham levados em conta índices diretos e indiretos de riqueza, economicamente apreciáveis.13 Em pesquisa jurisprudencial, encontramos julgados recentes cujos fundamentos justamente abordam essa linha de raciocínio, isto é, tratam da necessidade de apreciação da matéria partindo da aferição da existência ou não de conteúdo econômico da propriedade afetada por restrições de ordem ambiental: APELAÇÃO - Ação declaratória com pedido de repetição de indébito e indenização por danos materiais e morais - IPTU - Imóvel localizado em Área de Relevante Interesse Ecológico/Zona de Vida Silvestre (ARIE/ZVS) - Restrição administrativa com perda do conteúdo econômico e dos direitos inerentes à propriedade - Artigos 5º, 11 e 12, do Decreto Estadual n. 30.817/89 - Repetição que deve ser liquidada conforme Súmulas 162 e 188 do STJ - Dívida de natureza tributária - Juros moratórios e correção monetária devidos nos moldes estabelecidos pelo STF, no RE 870.947/SE - Tema 810 e pelo STJ Tema 905 - Verba honorária majorada para 15% sobre o valor do proveito econômico obtido pela autora (CPC, art. 85, §11) - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1000402-55.2016.8.26.0244; Relator (a): Octavio Machado de Barros; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Iguape - 2ª Vara; Data do Julgamento: 24/09/2021; Data de Registro: 24/09/2021) TRIBUTÁRIO - APELAÇÃO - AÇÃO ORDINÁRIA - IPTU - MUNICÍPIO DE SÃO SEBASTIÃO. Sentença que julgou improcedente a ação. Recurso do autor. SUSPENSÃO DO FEITO - DESNECESSIDADE - Existência de ação civil pública em curso na qual foi requerido o cancelamento do loteamento onde está localizado o imóvel - No presente caso, discutem-se débitos de IPTU, de modo que os supostos fatos geradores já teriam ocorrido, independentemente de eventual cancelamento do registro do loteamento - Inexistência de impedimento à análise das alegações de inocorrência do fato gerador e de incorreção do valor venal atribuído ao imóvel. IPTU - As restrições ao exercício de propriedade, como no caso em que o imóvel está inserido em Área de Preservação Permanente, não retiram do contribuinte a condição de proprietário, mas apenas podem implicar a redução do valor venal do imóvel - No caso dos autos, foi concedida liminar em ação civil pública para impedir a construção e a alienação dos lotes, dentre outras restrições - A d. Turma Julgadora determinou a conversão do julgamento em diligência para a produção de prova pericial, ante a necessidade de se aferir precisamente os reflexos dessas restrições no valor venal do imóvel - Autor que deixou recolher os honorários periciais no prazo legal - Preclusão da prova pericial que foi declarada pelo d. Juízo a quo - Ausência de comprovação da inadequação do valor venal e da alíquota utilizada como parâmetro para o cálculo do IPTU - Sentença mantida. [...]. Sentença mantida - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1000383-53.2017.8.26.0587; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de São Sebastião - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2021; Data de Registro: 14/09/2021).14 AGRAVO DE INSTRUMENTO - TRIBUTÁRIO - IPTU - INDEFERIMENTO DA SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO - IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - PREDICADOS DA PROPRIEDADE NÃO ALTERADOS COM A PROTEÇÃO AMBIENTAL IMPOSTA - RECURSO DESPROVIDO. "A restrição à utilização da propriedade referente a área de preservação permanente em parte de imóvel urbano (loteamento) não afasta a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano, uma vez que o fato gerador da exação permanece íntegro, qual seja, a propriedade localizada na zona urbana do município. Cuida-se de um ônus a ser suportado, o que não gera o cerceamento total da disposição, utilização ou alienação da propriedade, como ocorre, por exemplo, nas desapropriações". "Na verdade, a limitação de fração da propriedade urbana por força do reconhecimento de área de preservação permanente, por si só, não conduz à violação do artigo 32 do CTN, que trata do fato gerador do tributo. O não pagamento da exação sobre certa fração da propriedade urbana é questão a ser dirimida também à luz da isenção e da base de cálculo do tributo, a exemplo do que se tem feito no tema envolvendo o ITR sobre áreas de preservação permanente, pois, para esta situação, por exemplo, há lei federal permitindo a exclusão de áreas da sua base de cálculo (artigo 10, § 1º, II, 'a' e 'b', da Lei 9.393/96)" (STJ, REsp n. 1128981/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 18.3.10). (TJSC, Agravo de Instrumento n. 0009698-31.2016.8.24.0000, de Porto Belo, rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmara de Direito Público, j. 13-06-2017). (TJSC, Agravo de Instrumento n. 4005974-14.2017.8.24.0000, de Jaguaruna, rel. Cid Goulart, Segunda Câmara de Direito Público, j. 22-05-2018).15 (grifamos) É claro que, esta análise sob a ótica da base de cálculo, não depende exclusivamente do magistrado(a) ou do Colegiado de Tribunal, cabendo também, ao(a) advogado(a) suscitar essa tese jurídica quando do ingresso da respectiva demanda judicial, como também, averiguar na legislação local hipótese de isenção referente a imóvel inserido em área de proteção ambiental (sentido amplo) com restrições à utilização da propriedade de forma parcial ou total, constatação que deverá ser colhida perante os órgãos ambientais competentes para subsidiar o pedido, ainda que na esfera administrativa. Por essa razão destacamos a importância do tema para os contribuintes, municípios e para o meio ambiente, haja vista que se não houver o tratamento devido pela legislação tributária municipal, o contribuinte poderá buscar a prestação da tutela jurisdicional no sentido de ver reconhecida a ausência de valor venal, ou a sua diminuição em razão das restrições de natureza ambiental incidentes sobre o imóvel, consequentemente, importando em não tributação ou redução significativa da cobrança, providência que, inclusive, poderia ser verificada de ofício pela autoridade fazendária ante as hipóteses de revisão do lançamento nos termos do art. 149 do CTN.                                Considerações finais                O exercício da capacidade tributária ativa16 deve respeitar a lei (art. 150, I, da CF/88), o Código Tributário Nacional estabelece no art. 33 que a "base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel", ato administrativo de competência da autoridade municipal que realizará o lançamento. Assim, na apuração do valor relativo ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), há que ser analisada a hipótese de estarem presentes restrições ambientais de ordem parcial ou total que impliquem em alteração desse valor venal, inclusive com a possibilidade de não ter valor algum. Interessante seria a inclusão de norma no Código Tributário Nacional semelhante ao previsto na Lei Federal n. 9.393/1996 que dispõe sobre o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), precisamente o art. 10, § 1º, inciso II, e alíneas17, adequando-se, é claro, às especificidades do imposto municipal, impulsionando, assim, os municípios que ainda não possuem essa abordagem, que por meio da competência legislativa local incluam dispositivo semelhante nos respectivos Códigos Tributários Municipais, medida que dará segurança aos gestores e certamente ajudará e muito na tributação mais justa com harmonia à proteção ambiental que certamente não merece reparo, mas sim, todo o reforço e atenção possível, inclusive mediante a interlocução com os demais ramos do direito, no caso, o Direito Tributário. Não há como não levar em consideração a repercussão que o Direito Ambiental provoca na atividade estatal de tributar, como citado no julgamento proferido no AgInt no AREsp 1723597/SP, de Relatoria do Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma do STJ: "O Direito Tributário deve ser amigo, e não adversário, da proteção do meio ambiente". Do contrário, beira-se o confisco, evidentemente não admitido no Estado Democrático de Direito (art, 150, IV, da CF/88). Permanecendo como está, o cidadão proprietário de imóvel afetado por restrições ambientais continuará com a falsa impressão de que o injusto pagamento de IPTU é culpa da proteção ambiental, quando na verdade é da não observância dos preceitos de Direito Ambiental e seus reflexos na tributação sobre a propriedade imobiliária urbana. E isso contribui para o não pagamento do tributo municipal, aumentando o montante de inscrições em dívida ativa e no ajuizamento de execuções fiscais que já abarrotam o Poder Judiciário e acabam prescrevendo, ou sequer contendo localização do devedor, ocasionando apenas dispêndio de força de trabalho e recursos públicos, desde a interposição até o arquivamento. Além disso, o Município que não tributar corretamente a propriedade urbana localizada em área de proteção ambiental, sempre estará sujeito a ser demandado e a restituir os valores recebidos nos último cinco anos (art. 168 do CTN). Dessa feita, claro que é muito melhor tributar corretamente mediante a definição da base de cálculo real do imóvel, evitando um ciclo vicioso de prejuízos ao cidadão, Poder Público e à proteção ao meio ambiente, até porque, a definição da base de cálculo é ato administrativo, estando sujeito a apreciação pelo Poder Judiciário quando acionado, segundo já afirmado de forma sublime por Hely Lopes Meirelles:                Certo é que o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência, é função específica da Justiça Comum, e por isso mesmo poderá ser exercida em relação a qualquer ato do Poder Público, ainda que praticado no uso da faculdade discricionária, ou com fundamento político, ou mesmo no recesso das câmaras legislativas como seus interna corporis. Quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito a apreciação judicial, exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade.18 O ato administrativo de definição da base de cálculo do IPTU deve ter consonância com a realidade econômica imobiliária, havendo descompasso ou total desconexão, merecerá correção pelas vias legais e institucionais à disposição do contribuinte (art. 5º, XXXV, da CF/88). *Rodrigo Henriques de Araújo é advogado, pós-graduado em Direito Tributário e Direito Público.  Referências bibliográficas ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2021. BRASIL. Lei 9.393 de 19 de dezembro de 1996. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Lei 9.985 de 18 de julho de 2000. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2021. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19 ed. 3a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 19 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007. CORRALO, Giovani da Silva. Município: autonomia na Federação Brasileira. 1 ed. 2a reimpr. Curitiba: Juruá, 2009.  MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2004. SÃO PAULO (Estado). Decreto 30.817 de 30/11/1989. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta Processual. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. Florianópolis: Momento atual, 2003. __________ 1 "A competência tributária encontra direta ressonância com a atividade legiferante. Via de regra é conceituada como a aptidão para editar leis que, abstratamente, instituam tributos. É por intermédio do exercício da competência tributária que as Pessoas Políticas dão azo ao nascimento dos tributos originalmente previstos na Constituição, a qual não cria, antes, cinge-se a estabelecer o campo de competência de cada um. O exercício da competência tributária encerra-se juntamente com a edição da lei, isto é, após regularmente editada, a competência tributária cede lugar à denominada capacidade tributária ativa, que diz de perto com a arrecadação e fiscalização do tributo originariamente instituído. Já a titularidade do exercício da competência tributária, no Brasil, é reservada privativamente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e ao Municípios. Por quê? Porque somente as Pessoas Políticas é que possuem legislativo com representação própria". (TAVARES, Alexandre Macedo. Fundamentos de direito tributário. Florianópolis: Momento atual, 2003. p. 39). 2 CORRALO, Giovani da Silva. Município: autonomia na Federação Brasileira. 1 ed. 2a reimpr. Curitiba: Juruá, 2009. p. 179. 3 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 54. 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2021. 5 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27 ed. 2a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 402. 6 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Disponível aqui. Acesso em 01 out. 2021. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 8 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 153. 9 BRASIL. Lei 9.985 de 18 de julho de 2000. Disponível aqui.htm Acesso em: 30 set. 2021. 10 Idem. 11 SÃO PAULO (Estado). Decreto 30.817 de 30/11/1989. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. 12 BRASIL. Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 13 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 19 ed. 3a tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 467. 14 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta Processual. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021. 15 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Consulta de Processos. Disponível aqui. Acesso em 30 set. 2021. 16 "O estudo da competência tributária é um momento anterior à existência mesma do tributo, situando-se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado no ensejo do desempenho das competências, quando legislador elege as pessoas competentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece, no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa". (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 19 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 237). 17 Art. 10. A apuração e o pagamento do ITR serão efetuados pelo contribuinte, independentemente de prévio procedimento da administração tributária, nos prazos e condições estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, sujeitando-se a homologação posterior. § 1º Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á: [...] II - área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas: a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; b) de interesse ecológico para a proteção dos ecossistemas, assim declaradas mediante ato do órgão competente, federal ou estadual, e que ampliem as restrições de uso previstas na alínea anterior; c) comprovadamente imprestáveis para qualquer exploração agrícola, pecuária, granjeira, aqüícola ou florestal, declaradas de interesse ecológico mediante ato do órgão competente, federal ou estadual; d) sob regime de servidão ambiental e) cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração; f) alagadas para fins de constituição de reservatório de usinas hidrelétricas autorizada pelo poder público". (BRASIL. Lei 9.393 de 19 de dezembro de 1996. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2021). 18 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29 ed atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 205.
Figuram constantemente nos contratos imobiliários as chamadas cláusulas com condições resolutivas, nas quais se inserem eventos os mais diversos cuja ocorrência ensejaria a resolução da relação obrigacional. No entanto, há de se investigar se referidas cláusulas se qualificam, efetivamente, como condições resolutivas, ou se encerram, na verdade, condições suspensivas ou mesmo cláusulas resolutivas expressas. A análise não é meramente acadêmica ou desprovida de qualquer relevância prática. Ao contrário. A correta qualificação das cláusulas se afigura fundamental para que se identifiquem precisamente os efeitos jurídicos que delas defluem.   Sob o aspecto estrutural, a condição resolutiva e a condição suspensiva constituem elementos acidentais do negócio jurídico, uma vez que não integram o tipo abstrato do negócio, mas são apostas no concreto regulamento de interesse pela vontade das partes. A acidentalidade decorre, como aponta Cariota Ferrara, justamente, do "poder ser ou não ser":1 não é a lei, mas as partes, no exercício da autonomia privada, que as fazem constar do contrato. E, uma vez incluídas no ajuste, cessa a acidentalidade e transmuda-se a condição em elemento essencial do negócio celebrado. Significa, em verdade, que os elementos objetivamente acidentais são subjetivamente essenciais. Daí o porquê de a inserção de condição resolutiva ou suspensiva ilícita ou de fazer coisa ilícita conduzir à invalidade de todo o negócio (art. 123, II, CC), e não apenas da condição em si. A condição não é, pois, disposição acessória do negócio principal, mas parte incindível de um único negócio jurídico. Por outro lado, a cláusula resolutiva expressa, esta sim, encerra disposição acessória do contrato: é inserida pela autonomia privada e conserva, durante todo o desenrolar da relação jurídica, a característica da acessoriedade; é disposição que opera no plano da eficácia e segue o princípio da gravitação jurídica, pelo que eventual vício da cláusula não afeta a existência ou validade do contrato. No que tange ao suporte fático objetivo, a condição, seja resolutiva ou suspensiva, requer que o evento seja futuro e incerto. No direito brasileiro, a futuridade é requisito indispensável à condição. No entanto, é possível que certos aspectos do evento sejam passados ou presentes, mas que a sua completa conformação dependa de alguma confirmação futura, hipótese em que esse fato futuro (fato da confirmação) pode ser qualificado como condição. Nesses casos, portanto, a condição-fato não corresponde ao fato passado ou presente, mas sim, ao fato da confirmação do evento passado ou presente. Note-se que não se trata de incerteza relativa, isto é, de desconhecimento apenas pelas partes quanto à ocorrência, ou não, do evento passado ou presente, o que afastaria sua qualificação como condição; cuida-se de incerteza absoluta acerca da efetiva conformação do evento, cuja confirmação se requer. Pense-se em contrato de promessa de compra e venda de terreno por incorporadora que deseja ali desenvolver projeto imobiliário. No entanto, a incorporadora ainda não conhece plenamente os custos do empreendimento, de modo que não está segura quanto à sua viabilidade econômica neste momento. A fim de não perder o negócio, a incorporadora celebra o contrato com a proprietária do imóvel e apõe cláusula pela qual se ficar constatado, após levantamento junto ao mercado, que o custo da obra será superior a certo valor, o contrato será automaticamente resolvido. Neste caso, o negócio produz desde já todos os seus efeitos, que são resolvidos uma vez verificada a condição. Podem as partes, de outro lado, considerar o evento condição suspensiva, hipótese em que o negócio só produziria efeitos após o implemento da condição, ou seja, após constatar-se a viabilidade econômica do empreendimento; até este momento, as partes teriam apenas expectativa de direito. Seja a condição resolutiva ou suspensiva, o que importa sublinhar é que o evento encerra verdadeira condição, já que os custos da obra são presentes, mas dependem de verificação, de confirmação, havendo incerteza quanto ao seu efetivo valor. Para tratar-se de condição, deve, ainda, o evento ser externo ao negócio, e por isso não pode corresponder nem a elemento essencial do contrato, nem a momento típico do desenvolvimento do vínculo obrigacional. O evento há de constituir fato estruturalmente autônomo, a operar externamente ao negócio, não se relacionando diretamente à realização do programa contratual. E é por essa razão que o inadimplemento absoluto não constitui evento idôneo a figurar no contrato como condição resolutiva.2 A cláusula resolutiva expressa prevista no art. 474, ao contrário, contempla, de regra, eventos já alocados entre as partes. Referidos eventos podem ser inerentes ao contrato - inexecuções de obrigações que conduzem ao inadimplemento absoluto e vícios redibitórios que retirem a utilidade da coisa para o adquirente, por exemplo - ou podem ser a ele internalizados pela autonomia privada dos contratantes. Nesse último caso, mostra-se indispensável que o específico risco tenha sido expressamente assumido por um dos contratantes e que a sua superveniência conduza à impossibilidade ou inutilidade da prestação, consoante o concreto regulamento de interesses, a conduzir ao inadimplemento absoluto. Pense-se em contrato de permuta do qual conste cláusula em que se designa como condição resolutiva a não aquisição de terrenos contíguos ao do permutante pelo incorporador, até certa data. Nesse caso, a não aquisição dos imóveis resolverá automaticamente o contrato celebrado com o permutante. No entanto, se o incorporador houver assumido expressamente a obrigação de adquiri-los, a não aquisição poderá configurar inadimplemento absoluto, o que desqualifica referido evento como condição resolutiva e pode ensejar a qualificação da cláusula, a depender de sua redação, como cláusula resolutiva expressa, autorizando o permutante a resolver a relação obrigacional. Constatada a ocorrência do suporte fático da cláusula resolutiva expressa ou implementada a condição resolutiva, resolve-se a relação jurídica, conduzindo-se à ineficácia do negócio. No primeiro caso, faz-se necessária a declaração do credor dirigida à resolução.3 Na segunda situação, prevalece no direito brasileiro o entendimento segundo o qual a resolução é sempre automática, independente da vontade ou mesmo do conhecimento das partes.4 Ao propósito, impõe-se analisar com atenção certas cláusulas em contratos celebrados com permutantes de terreno que qualificam como condição resolutiva, por exemplo, a não obtenção do financiamento para a construção do empreendimento ou a não aprovação do projeto pelos órgãos responsáveis e, ao mesmo tempo, determinam que referidos entraves deverão ser superados em certo prazo, após o qual qualquer das partes poderá dar por "rescindido" o contrato mediante notificação à contraparte. Bem analisadas as referidas disposições, nota-se que não se trata, tecnicamente, de condição resolutiva, já que, pela redação empregada, o contrato não é resolvido automaticamente diante da não concessão do financiamento ou da não aprovação do projeto. Em verdade, a verificação de referidos eventos, se não superados, faz nascer para as partes o direito potestativo de extinguir o contrato. Nesse cenário, talvez se possa cogitar de condição suspensiva, cuja pendência suspenderia não a eficácia do contrato propriamente dito, mas do direito potestativo de extinguir o negócio. Por conseguinte, o contrato produziria regularmente todos os seus efeitos desde a sua celebração, afigurando-se irretratável e irrevogável. Contudo, uma vez implementada qualquer das mencionadas condições, as partes adquiririam o direito potestativo de extinguir unilateralmente o ajuste mediante simples notificação à contraparte.   Seja como for, importa sublinhar que a qualificação de certa cláusula como cláusula resolutiva expressa, condição resolutiva ou condição suspensiva há de ser realizada a partir da interpretação sistemática do específico contrato. Para tanto, o intérprete deve analisar, sobretudo, a natureza do evento que serve de suporte fático à cláusula (se se trata, por exemplo, da inexecução de obrigação assumida por uma das partes ou da ocorrência de evento externo ao negócio), os efeitos dele decorrentes (resolutivos ou suspensivos) bem como a forma pela qual tais efeitos se operam (automaticamente ou mediante interpelação da contraparte). De todo modo, o nomen iuris atribuído pelas partes à cláusula é, em definitivo, o aspecto de menor relevância para a sua qualificação. *Aline de Miranda Valverde Terra é professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica. __________ 1 Luigi Cariota Ferrara. Il negozio giuridico nel Diritto privato italiano. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2011. p. 116, tradução livre. 2 Conforme afirma Francesco Santoro-Passarelli, "o inadimplemento não pode ser deduzido nem mesmo em condição resolutiva expressa, ou verdadeira, exatamente porque diz respeito ao funcionamento do negócio" (Dottrine generali del diritto civile. 9. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 2012. p. 199, tradução livre). 3 Sobre a possível automaticidade da resolução, confira-se Aline de Miranda Valverde Terra. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 141 et. seq. 4 João Manoel de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado. 10. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1963. v. 8. p. 397.
Introdução  O presente artigo se destina a registrar o estudo que realizamos, para investigar se o proprietário do terreno, cedido para a incorporação imobiliária, pode vir a ser responsabilizado, solidariamente com o incorporador, perante os consumidores adquirentes prejudicados, pelas perdas e danos por estes sofridos, em decorrência de eventual insucesso do empreendimento. Nos detivemos a analisar as hipóteses, em que o proprietário firma, com o incorporador, um contrato de promessa de compra e venda ou de cessão de direitos sobre o terreno, para pagamento em prestações, ou um contrato de permuta, por meio do qual promete vender o seu imóvel para o incorporador, aceitando, como pagamento, total ou parcial, unidades autônomas do futuro empreendimento, a lhe serem oportunamente conferidas (artigos 32, "a" e 39 da lei 4.591/64, e 167, I, alíneas 9 e 30, da lei 6.015/73). Após estudo da legislação, doutrina e jurisprudência, chegamos à conclusão que o proprietário do terreno poderá, ou não, vir a ser responsabilizado, perante os consumidores prejudicados, solidariamente com o incorporador, e demais partícipes da incorporação imobiliária, pelo insucesso do empreendimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Responsabilidade do proprietário  A responsabilidade do proprietário surgirá se, além do contrato de promessa ou de permuta de seu terreno, firmado com o incorporador, vier a participar, de alguma forma, da incorporação, ou praticar atos próprios incorporativos.  Se o proprietário, no entanto, se restringir a firmar o contrato de alienação de seu imóvel com o incorporador, acreditamos não possa vir a sofrer tal responsabilização. Primeiro, porque o art.31, caput, da lei 4.591/64, é expresso em atribuir, ao incorporador, e não ao proprietário, a responsabilidade pelas incorporações imobiliárias. Em segundo lugar, porque o art.40, parágrafo 2º, do mesmo diploma legal, estabelece que em vindo a ocorrer a rescisão do contrato de alienação do imóvel, firmado entre o proprietário e o incorporador, a responsabilidade do primeiro, relativamente aos consumidores das unidades autônomas, deverá corresponder à devolução, aos mesmos, da parcela da construção acrescida à sua propriedade. Em vindo a malograr o empreendimento da incorporação imobiliária, e isto ocasionando a rescisão do contrato de alienação, firmado entre o proprietário e o incorporador, por falta de pagamento do preço ajustado do terreno, em favor do primeiro, sejam prestações e/ou  unidades autônomas, consolida-se, em favor do proprietário alienante, o direito sobre a construção porventura realizada em seu terreno, em decorrência do início das obras do empreendimento (art.40, § 1º, da lei 4.591/73). Como esta construção não existia, antes do contrato de alienação, e passou a existir, com o emprego das parcelas pagas pelos consumidores contratantes das unidades autônomas, é justo que estes recebam, de volta, o valor apurado da construção, evitando-se, assim, o enriquecimento sem causa do proprietário. Mas apurar, dividir e devolver o valor da construção, aos consumidores finais prejudicados, é uma obrigação limitada, não se confundindo com a reparação de todos os danos materiais e morais, que venham a sofrer, pelo insucesso da incorporação. Até porque esta construção pode nem sequer ter chegado a existir, hipótese em que nenhuma responsabilidade recairá sobre o proprietário, que agiu apenas como tal. Isto significa que, agindo como mero proprietário, o fundamento da responsabilidade deste último, perante os consumidores das unidades autônomas prejudicados, não é a relação contratual estabelecida entre estes e o incorporador, mas sim evitar o seu enriquecimento sem causa. Também o art.30 da Lei nº 4.591/64, ao elencar uma das hipóteses em que o proprietário deve ser equiparado ao incorporador, está a evidenciar que, para que tal equiparação ocorra, o proprietário precisa praticar atos que vão além do exercício dos poderes inerentes à propriedade, tal como construir edificações em sua propriedade, em regime condominial, iniciando suas vendas, antes de estarem prontas, atividade esta que, como se exporá mais abaixo, é típica da incorporação imobiliária. São nesse sentido os julgados que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da responsabilidade do proprietário, que apenas cede o seu terreno para a incorporação.1 No mesmo sentido, vem se posicionando o Tribunal de Justiça de São Paulo.2 Prosseguindo na análise da situação do proprietário, que se limita a ceder o seu terreno, para o incorporador, sem praticar atos de incorporação imobiliária, mas agora à luz do Código de Defesa do Consumidor - CDC (lei 8.078/90), é de se observar que, realmente, não chega a integrar a cadeia da relação de consumo, que culmina com a celebração dos contratos de promessa de compra e venda das unidade autônomas com os consumidores finais. Conforme ensina Cláudia Lima Marques3, fazem parte da cadeia da relação de consumo, todos os atores que unem esforços para uma "finalidade comum". A finalidade comum, no negócio da incorporação imobiliária, é a obtenção de lucro com o empreendimento, por meio da venda de frações ideais do terreno vinculadas a futuras unidades autônomas. O proprietário, que apenas cede o seu terreno para o incorporador, não adere a tal finalidade, sendo sua pretensão, única e exclusivamente, vender o seu imóvel e receber, por ele, o devido pagamento. Ou seja, não se torna o proprietário "fornecedor" no mercado de consumo, nos termos do art.3º do Código de Defesa do Consumidor - CDC, que considera como tal, apenas, aqueles que "desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". Nesse sentido, o posicionamento que encontramos, do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na ementa do Resp. 686.198/RJ4 e na ementa a seguir: PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. INEXECUÇÃO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO DO TERRENO. INAPLICABILIDADE DO DIREITO DO CONSUMIDOR. (...) 2. A Lei de Incorporações (Lei n. 4.591/1964) equipara o proprietário do terreno ao incorporador, desde que aquele pratique alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, atribuindo-lhe, nessa hipótese, responsabilidade solidária pelo empreendimento imobiliário. 3. No caso concreto, a caracterização dos promitentes vendedores como incorporadores adveio principalmente da imputação que lhes foi feita, pelo Tribunal a quo, dos deveres ínsitos à figura do incorporador (art. 32 da Lei n. 4.591/1964), denotando que, em momento algum, sua convicção teve como fundamento a legislação regente da matéria, que exige, como causa da equiparação, a prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, ou seja, da promoção da construção da edificação condominial (art. 29 e 30 da Lei 4.591/1964). 4. A impossibilidade de equiparação dos recorrentes, promitentes vendedores, à figura do incorporador demonstra a inexistência de relação jurídica consumerista entre esses e os compradores das unidades do empreendimento malogrado. 5. Recurso especial provido. (REsp 1065132/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 01/07/2013). Realmente, responsabilizar o proprietário, pelo insucesso do empreendimento, quando tenha apenas cedido o seu terreno para o incorporador, seria o mesmo que responsabilizar o proprietário de um imóvel, que o aluga para um restaurante, pelos danos causados por este, a um consumidor final, por ter-lhe fornecido comida estragada. Não teria nenhum cabimento. Isto, evidentemente, pressupondo-se que o proprietário tenha tomado as cautelas devidas e de praxe, para evitar alugar ou vender o seu imóvel, para pessoas ou empresas inescrupulosas ou evidentemente incapacitadas. Situação diferente se verifica, no entanto, se o proprietário, além de ceder o seu terreno para o incorporador, vem a participar, de alguma forma, do próprio empreendimento, praticando algum ato típico de incorporação imobiliária. Importante aqui definirmos o que caracteriza uma atividade como sendo de incorporação imobiliária. Segundo Castro Filho5, o que caracterizaria tal atividade, seria a venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em condomínio edilício, em construção ou objeto de projeto de construção.               Castro Filho narra que Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto, que deu origem à lei 4.591/64, teria preferido conferir destaque à promoção da construção, ao invés da venda, para caracterizar a atividade de incorporação imobiliária, mas sua pretensão não fora acolhida, tendo sido aprovada a atual redação do art.29, caput,  da referida lei, segundo a qual: Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a têrmo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.  Assim, segundo Castro Filho, e outros doutrinadores por ele citados, a lei 4.591/64 teria optado por conferir, à venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, o traço mais característico e identificador da atividade de incorporação imobiliária. No nosso entendimento, para se compreender, corretamente, a  atividade de incorporação imobiliária, deve-se conjugar o supra transcrito art.29, caput, que dá destaque à venda, com o parágrafo único do art.28, ambos da lei 4.591/64, referindo-se este último à incorporação imobiliária, como a atividade desenvolvida com o intuito de promover e realizar a construção de edificações, para a alienação de unidades autônomas. A incorporação se caracteriza, fundamentalmente, como uma atividade de comercialização de unidades autônomas, que estão sendo ou serão construídas, em edifícios, ou conjunto de casas, para funcionarem em regime condominial. Se verifica quando o consumidor é chamado, ou se propõe a comprar um imóvel na planta, que ainda não existe, pois se a venda das unidades ocorrer somente após a conclusão das obras, e expedição do habite-se, não mais se estará diante de uma atividade de incorporação imobiliária. Como ressalta Castro Filho6, é uma aquisição de risco para o consumidor, baseada na confiança, pois se compromete a comprar, e começa a pagar, por algo que ainda não existe. Tratar-se-ia, na verdade, segundo o autor, de captação antecipada de poupança popular, sem a existência de órgão específico para capacitar e fiscalizar o incorporador. Assim, e com razão, Castro Filho alerta para a necessidade do consumidor pesquisar muito bem a idoneidade do incorporador, a quantidade e a qualidade das obras por ele já entregues, antes de assinar o contrato. Mas, muito embora a incorporação imobiliária se caracterize, fundamentalmente, pela venda ou promessa de venda de frações ideais de um terreno, vinculadas a unidades autônomas, em construção ou a serem construídas, em regime condominial, trata-se de um negócio bem mais complexo, por envolver todas as atividades necessárias para a implementação do empreendimento, e para possibilitar a entrega das unidades autônomas, afinal, aos consumidores, na forma e no prazo prometidos nos contratos, na publicidade e nas ofertas realizadas. Assim, se inclui na atividade de incorporação imobiliária, a procura de um terreno apropriado para o desenvolvimento do projeto; a sua compra ou promessa de compra, junto ao proprietário, quando o incorporador não for o dono do terreno; a reunião da documentação necessária e a tomada de providências para obtenção do registro da incorporação, perante o Cartório de Registro de Imóveis competente (art.32 da lei 4.591/64); a divulgação do empreendimento; a construção da obra ou a sua contratação; a confecção e a assinatura dos contratos com os consumidores, e assim por diante. Ou seja, tudo que diga respeito ao empreendimento, e seja necessário para a sua concretização e comercialização, é atividade de incorporação imobiliária, ainda que haja delegação de sua execução para terceiros. Desta forma, se o proprietário do terreno vier a praticar atos típicos de incorporação imobiliária, não se restringindo a uma mera posição de vendedor do imóvel, responderá como se incorporador fosse, de forma solidária e objetiva, juntamente com todos os demais atores promoventes do empreendimento, pelos danos patrimoniais e morais sofridos pelos consumidores, pelo insucesso do negócio (artigos 7º, § único, 12º e 18º do CDC). Por exemplo, se o proprietário vier a providenciar o registro da incorporação imobiliária; a contratar a construção da obra ou a construí-la; a auxiliar na comercialização das unidades autônomas; a receber parte das parcelas pagas pelos consumidores; a divulgar o empreendimento e/ou a captar consumidores, etc. Em todas estas hipóteses, o proprietário passará a integrar a cadeia da relação de consumo, pois terá contribuído, com sua conduta, para o empreendimento, tornando-se "fornecedor" no mercado de consumo, com todas as responsabilidades e riscos advindos desta posição, nos termos dos artigos 3º, 7º, § único, 12º e 18º do CDC. Neste sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, inclusive nos lembrando da importância da teoria da aparência, como um dos fundamentos para a responsabilização do proprietário que se apresenta como incorporador, perante o consumidor.7 O Tribunal de Justiça de São Paulo vem, da mesma forma, exigindo a prova da participação do proprietário do terreno, na incorporação imobiliária, para reconhecer sua responsabilidade, na reparação dos danos sofridos pelos consumidores das unidades autônomas.8 Conclusão Concluindo, para se poder aferir a existência de responsabilidade do proprietário, pelo insucesso do empreendimento, frente aos consumidores finais das unidades autônomas prejudicados, há que se analisar, caso a caso, se o mesmo participou, contribuiu ou praticou atos próprios de incorporação imobiliária, ou se se limitou a ceder o seu terreno para o incorporador. Na primeira hipótese, sua responsabilidade será solidária com o incorporador, e poderá ser cobrada em juízo, o mesmo não ocorrendo na segunda, quando sua responsabilidade se limitará a devolver, aos consumidores, o valor apurado de eventual construção realizada em seu terreno e incorporada à sua propriedade.  *Dora Bussab é graduada em Direito pela USP. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo - MPSP. Procuradora de Justiça aposentada da Procuradoria de Difusos e Coletivos do MPSP. Coordenou o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Consumidor, assessorou a Procuradoria Geral de Justiça, integrou o Conselho Superior e o Órgão Especial do MPSP. Advogada. Consultora jurídica.  Referências bibliográficas CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. BRASIL. Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Disponível aqui. Acesso em abr. 2021. BRASIL Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em abr. 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em abr.2021. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em junho de 2021. FGV. Curso de Direito Imobiliário. Módulos I e II. Posse e Propriedade. Condomínio e Incorporações Imobiliárias. Abr.2021. __________ 1 REsp. 1537012/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 20/06/2017, DJe 26/06/2017; REsp. 656.457/DF, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07/10/2010, DJe 14/10/2010; REsp. 686.198/RJ, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/10/2007, DJ 01/02/2008, p. 1. 2 Apelação Cível 1003945-60.2015.8.26.0322, Relator Rodolfo Pellizari,  6ª Câmara de Direito Privado, Foro de Lins - 2ª Vara Cível, julgada em 23/09/2020, data do registro 23/09/2020; Apelação Cível 1015069-80.2016.8.26.0071, Relator Salles Rossi, 8ª Câmara de Direito Privado, Foro de Bauru - 7ª Vara Cível, julgada em 10/06/2020, data do registro 10/06/2020; Agravo de Instrumento 2191854-59.2017.8.26.0000, Relatora Christine Santini, 1ª Câmara de Direito Privado, Foro de Santos - 9ª Vara Cível, julgado em  03/04/2018, data de registro 04/04/2018.   3 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. Pag.402. 4 Vide nota de roda pé número 1. 5 CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. 6 CASTRO FILHO, H. P. Breve estudo sobre a atividade de incorporação imobiliária. Jus Navegandi, 2011. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2021. 7 REsp. 1360269/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 08/03/2019; Resp. 1536354/DF, Rel. Ricardo Vilas Boas Cueva, julgado em 07.06.2016, DJe 10/06/2016; REsp. 830.572/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/05/2011, DJe 26/05/2011. 8 Apelação Cível 0025027-92.2012.8.26.0477, Relatora Angela Lopes, 9ª Câmara de Direito Privado, Foro de Praia Grande - 2ª Vara Cível, julgada em 28/07/2020, data do registro 28/07/2020.