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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Recente julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.059.278/SC. Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Ac. Min. Raul Araújo, sessão de 26/05/2023, acórdão pendente de publicação), acrescentou um novo capítulo à discussão acerca de suposta antinomia quanto aos interesses da massa condominial versus o credor fiduciário, caso inadimplente o devedor fiduciante quanto ao pagamento dos débitos condominiais do imóvel em garantia. Entre os aspectos recorrentes no debate quanto à solução das dívidas condominiais em imóveis alienados em garantia, a controvérsia perfaz usualmente as seguintes questões: (i) eventual responsabilidade pessoal do credor fiduciário; (ii) possibilidade de penhora do imóvel, e; (iii) prioridade de obrigações propter rem (condomínio e IPTU/ITR) frente ao direito de garantia do credor fiduciário. De modo geral, duas são as correntes atualmente adotadas. A primeira, predominantemente na 3ª Turma do STJ, estabelece que, não sendo o credor fiduciário responsável pela obrigação (art. 27, §8º da lei 9.514/97), estaria afastada a possibilidade de penhora do imóvel, já que a propriedade resolúvel integra o patrimônio do credor fiduciário e a penhora não poderia avançar sobre patrimônio de terceiro. Assim, restaria ao condomínio tão somente a penhora e excussão dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante sobre o imóvel. A segunda corrente, presente em julgados de cortes estaduais1 e recentemente abraçada pela 4ª Turma do STJ (acórdão pendente de publicação), entende que, sendo a obrigação condominial de natureza propter rem, o imóvel responde pela dívida e deve ser alienado para pagamento da massa condominial, cujos interesses prevaleceriam sobre os interesses do credor fiduciário. Importante ressaltar que a propriedade fiduciária de bens imóveis foi introduzida em nosso ordenamento jurídico pela lei 9.514/97. Conforme lição no mestre Melhim Challub2, na formalização do negócio fiduciário em garantia, opera-se a transmissão da propriedade de um bem ou direito do devedor fiduciante para o credor fiduciário, vinculada ao cumprimento de uma obrigação. Em consequência dessa vinculação, o bem é excluído do patrimônio do devedor fiduciante, sem, contudo, integrar plenamente o patrimônio do credor fiduciário, passando a constituir o que se denomina "patrimônio em afetação". Constituído o patrimônio em afetação, tanto a propriedade resolúvel do credor fiduciário quanto os direitos reais aquisitivos do devedor fiduciante estão ligados indissociavelmente ao bem e este, por sua vez, ao cumprimento da obrigação garantida. Com o desdobramento da titularidade do bem e sua afetação, a posse direta do imóvel permanece com o devedor fiduciante, enquanto este se mantiver adimplente em suas obrigações. Entre as obrigações a cargo do devedor fiduciante incluem-se não só o pagamento da obrigação garantida, mas também, o pagamento de "todos os impostos, taxas e contribuições que incidem sobre o imóvel, notadamente o imposto predial e as contribuições condominiais, e é civilmente responsável pela correta utilização do imóvel perante terceiros e poderes públicos, devendo indenizar qualquer prejuízo ou dano, material ou pessoal, a que der causa, além de estar obrigado a conservar e manter o imóvel (art. 24, IV)."3 O dever do devedor fiduciante quanto ao pagamento das despesas condominiais decorre não só do uso e gozo exclusivo do bem, mas também, da responsabilidade quanto à guarda e conservação do imóvel em garantia. Assim prevê expressamente a lei 9.514/97 em seu art. 27, § 8º, reforçado pelo recentíssimo § 2º do art. 23, introduzido pela lei 14.620/2023. Pretender atribuir ao credor fiduciário a responsabilidade pessoal pelo pagamento das despesas condominiais, vai de encontro à natureza jurídica da propriedade resolúvel e à letra expressa da lei. A divergência explicitada pelo julgamento da 4ª Turma do STJ, corretamente, não lança nenhuma dúvida quanto ao óbice de responsabilizar o credor fiduciário pelos débitos condominiais. E sendo o devedor fiduciante responsável pelo pagamento das despesas condominiais, a elas responde com todo o seu patrimônio particular (art. 789 do CPC), o que inclui, por óbvio, os direitos reais de aquisição sobre o imóvel que poderão ser penhorados na falta de outros bens preferenciais à satisfação da execução. A penhora é ato de constrição judicial sobre o patrimônio do executado para garantia do pagamento da dívida e tem por finalidade tornar tal patrimônio indisponível ao executado.4 Por tal razão, não há como contestar o sem número de julgados que afastam a tentativa de penhora do imóvel alienado fiduciariamente, pois implicaria em avançar sobre patrimônio de terceiro (devedor fiduciante).5 Ocorre que, se por um lado, na alienação fiduciária em garantia, o bem não está vinculado à pessoa do credor, mas sim ao cumprimento da obrigação garantida, não menos verdade é que o bem está igualmente vinculado ao cumprimento de outras obrigações a ele indissociáveis, como os débitos condominiais, por sua natureza propter rem. As obrigações de natureza propter rem acompanham o imóvel, independentemente de sua titularidade ou das relações sobre ele estabelecidas, uma vez que tais obrigações possuem os atributos da acessoriedade especial e da ambulatoriedade. Assim, ainda que se busque atribuir à lei 9.514/97 uma suposta suspensão transitória da natureza propter rem dos débitos condominiais ao imóvel alienado fiduciariamente, o que absolutamente não parece ter sido a intenção do legislador, o fato é que, mais cedo ou mais tarde, estes débitos recairão sobre o imóvel e impactarão a garantia constituída. Os que defendem a suspensão transitória do caráter propter rem das obrigações condominiais na alienação fiduciária, entendem que tal expediente visa preservar os interesses do credor fiduciário, garantindo que o imóvel permaneça integro para responder por eventual inadimplência do fiduciante. No entanto, tal assertiva parece desconsiderar que as obrigações propter rem não deixam de acompanhar o imóvel e deverão ser quitadas no futuro, seja pelo credor fiduciário, em caso de consolidação da propriedade, seja por eventual arrematante do bem em leilão extrajudicial, o que certamente afetará negativamente o valor patrimonial do bem e a sua atratividade, em caso de excussão da garantia. Os credores fiduciários que se sentem blindados com a impossibilidade da excussão do imóvel por dívidas condominiais, estão, na verdade, sendo indiretamente atingidos pela depreciação da garantia ocasionada pelos efeitos da mora de tais despesas, sem que, na maioria das vezes, tenham sequer conhecimento dessa situação. Note-se que essa é justamente a situação tratada no REsp 2.059.278/SC, onde a obrigação garantida está sendo quitada regularmente pelo devedor fiduciante, apesar do inadimplemento condominial. Muito se alega sobre a impossibilidade prática de os credores fiduciários, especialmente as instituições financeiras, controlarem o pagamento das obrigações propter rem. Se por um lado, a gestão da garantia é de interesse do credor fiduciário a fim de assegurar a preservação física e econômica da coisa, eventual dificuldade de seu exercício em nada freia a deterioração da garantia em caso de inadimplemento fiscal ou condominial, havendo somente uma falsa sensação de proteção que irá ruir no momento em que o devedor fiduciante ficar inadimplente e o credor fiduciário der início à execução da garantia. Diante de tal situação, qual seria então a melhor maneira de satisfazer o crédito da massa condominial, recaindo o ônus dessa inadimplência sobre quem de direito - o devedor fiduciante - e, ao mesmo tempo, preservar o direito de garantia do credor fiduciário? Tal impasse não é novo e decorre da coexistência de direitos patrimoniais sobre um mesmo bem indivisível, conforme já enfrentado tanto pelo CPC de 1973, em seu art. 655-B, quanto pelo CPC de 2015, em seu art. 843 e teve início com a oposição de cônjuges meeiros à execução de bens comuns ao casal para saldar dívidas contraídas exclusivamente por um dos cônjuges. Por outro lado, a impossibilidade de alienação do imóvel comum, como forma de preservar os direitos do cônjuge inocente, implicava, na prática, em tornar a execução ineficaz pela pouca atratividade na alienação de fração ideal e estabelecimento de condomínio com o futuro adquirente. Conforme lição de Humberto Theodoro Junior6, "é evidente o quase nenhum interesse despertado entre os possíveis licitantes numa hasta pública em tais condições; e quando algum raro interessado aparece só o faz para oferecer preço muito inferior àquele que se apuraria na alienação total do bem." Foi assim que o legislador buscou adotar solução intermediária, aceitando a alienação do imóvel, o que atenderia aos interesses do exequente, sem descuidar, todavia, de garantir ao cônjuge inocente o recebimento integral da sua quota parte, como condição para a excussão do bem (art. 655-B do CPC/73 introduzido pela Lei nº 11.382/2006). Com o advento do CPC de 2015, o legislador reforçou a sua escolha ao ampliar as hipóteses de alienação do imóvel, ainda que o executado detenha somente parte dos direitos sobre tal bem, sempre que seu fracionamento alterar a sua substância, diminuir considerável seu valor, ou prejudicar o uso a que se destina (art. 87 do Código Civil). A possibilidade de excussão do imóvel por dívida pessoal de um de seus cotitulares decorre, portanto, de um esforço legislativo de tornar efetiva a satisfação da execução, com a remoção de óbices formais e a ampliação das medidas executivas em favor do credor7, assegurando, no entanto, a preservação do patrimônio dos demais titulares, ainda que monetizado. Ao se garantir a efetividade da execução ao mesmo tempo em que se preserva o patrimônio daquele que dela não participa, a lei processual busca garantir isonomia a todos os envolvidos. No caso da alienação fiduciária, os direitos reais do credor fiduciário e do devedor fiduciante sobre o bem estão indissociavelmente ligados, razão pela qual não é possível seu fracionamento sem diminuir consideravelmente seu valor e sua atratividade.  Não por outra razão, o art. 799 do CPC estabelece a obrigação do exequente em intimar os credores fiduciários da execução sobre o bem, sendo reputada ineficaz a alienação de imóvel quando não houver tal intimação (art. 804, 3º do CPC)8.  Importante ressaltar que a solução adotada pelo legislador pondera que mesmo para aqueles titulares de vínculo pessoal sobre o imóvel, não haveria óbice à sua monetização. No caso do credor fiduciário, cuja vinculação com o bem se dá exclusivamente por sua capacidade financeira de fazer frente ao pagamento de uma dívida em dinheiro, a monetização de seus interesses já está dada pela essência da relação com o bem. Dessa forma, com execução judicial dos débitos condominiais, o credor fiduciário deverá ser intimado para conhecimento da existência da dívida (art. 889, V do CPC), abrindo-se a ele as seguintes opções, a seu exclusivo critério: (i) pagamento do debito condominial com a consequente sub-rogação do crédito, dando início à execução extrajudicial da garantia, nos termos da Lei nº 9.514/97; (ii) exercício do direito de preferência na arrematação do bem (art. 843, §1º do CPC), ou ainda; (iii) aguardar o leilão judicial para  o recebimento de seus direitos fiduciários no equivalente em dinheiro, sendo vedada a arrematação por terceiros, caso o valor ofertado não seja suficiente para garantir o recebimento integral de sua quota-parte de acordo com o valor de avaliação do imóvel (art. 843, §2º do CPC)9. Finalmente, importante ressaltar que não há qualquer entrave jurídico de a penhora recair unicamente sobre os direitos aquisitivos do devedor fiduciante e o imóvel ser alienado como um todo para satisfação da execução condominial. Isso porque, a venda do imóvel ocorre como um instrumento de liquidação dos direitos penhorados e é, por esta razão, que o interesse patrimonial do terceiro não devedor é preservado (art. 843, §2º do CPC). Essa é a opinião de Humberto Theodoro Junior: "A penhora, na verdade, não vai além da quota ideal do executado. O imóvel é alienado judicialmente por inteiro, como meio de liquidar a quota penhorada. Mas essa venda, de maneira alguma, poderá afetar a quota do condômino não devedor. Por isso, o § 2º do art. 843 defende o direito real deste, não permitindo que a expropriação por preço menor que o da avaliação prejudique o valor de sua quota ideal. Não se deferirá, portanto, a arrematação por preço que não assegure ao coproprietário "o correspondente à sua quota parte calculado sobre o valor da avaliação".10 Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi "daí porque, mesmo em se tratando de bem indivisível, a penhora deve cingir-se à quota-parte pertencente ao devedor, pois somente esta está afetada à execução e, uma vez liquidada, é que se destinará ao pagamento do credor."11 Por tudo o que foi dito acima, a ponderação feita neste artigo quanto a inexistência de conflito entre a satisfação da massa condominial e a preservação dos direitos do credor fiduciário parte das seguintes premissas: (i) o credor fiduciário não é devedor das despesas condominiais, enquanto o fiduciante estiver na posse do imóvel em garantia; (ii) não sendo devedor, a penhora deverá recair exclusivamente sobre patrimônio do devedor fiduciante (direitos reais aquisitivos sobre o imóvel); (iii) não obstante a penhora recair sobre os direitos reais aquisitivos do fiduciante, o imóvel pode ser levado à leilão por inteiro para satisfação da execução, uma vez que o fracionamento seria um obstáculo à satisfação da dívida; (iii) por ser o débito condominial uma obrigação de natureza propter rem, aceitar a suspensão de sua acessoriedade ao imóvel enquanto não executada a garantia fiduciária, seria impor um duplo ônus a terceiros não devedores: a massa condominial por suportar o custo da inadimplência e ao credor fiduciário por suportar a depreciação da garantia, muitas vezes, ignorando tal situação; (iv) a satisfação da execução da massa condominial, todavia, somente poderá ocorrer, caso assegurado ao credor fiduciário o recebimento de seu direito patrimonial no equivalente ao valor de avaliação do imóvel. Com a divergência aberta pela 4ª Turma do STJ, abre-se a oportunidade para a consolidação de um entendimento a respeito da matéria que garanta a segurança jurídica necessária a todos os envolvidos. __________ 1 "Agravo de Instrumento. Execução de título extrajudicial. Despesas condominiais. Deferimento da penhora sobre os direitos que o executado possui sobre o imóvel, impedindo, contudo, que o bem seja levado à hasta pública. Decisão que deve ser reformada na medida em que o fato de o imóvel ser objeto de alienação fiduciária não afasta a natureza propter rem da obrigação condominial que, por essa razão, adere a coisa. Situação em que deve prevalecer o interesse da coletividade condominial ao da instituição financeira. Possibilidade de penhora sobre o bem, com observância das regras contidas nos artigos 799, I e 889, V, do CPC, a fim de que se dê cientificação e oportunização ao credor fiduciário de se posicionar frente à demanda. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO, com observação." TJ/SP - Agravo de Instrumento nº 2103758-63.2020.8.26.0000. Juiz prolator da decisão: Dr. Alexandre Bucci. 2 Chalhub, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. - 7. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. (p. 458-459).  3 Chalhub, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. - 7. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. (p. 490). 4 Disponível aqui. 5 Recurso Especial nº 2.036.289 - RS (2022/0344164-7) de Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 6 Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. III. 56ª Edição. Forense. (p. 469) 7 Vide voto da Ministra Nancy Andrigui no Resp n º 1.818.926 - DF (2019/0154861-7). 8 "O exequente deve providenciar a intimação do coproprietário no caso da penhora de bem indivisível ou de direito real sobre bem indivisível" (Enunciado nº 154/CEJ/CJF). 9 "essa nova disposição legal (...) amplia a proteção de coproprietários inalcançáveis pelo procedimento executivo, assegurando-lhes a manutenção integral de seu patrimônio, ainda que monetizado" (REsp 1.728.086/MS, 3ª Turma, DJe 03/09/2019, grifou-se) 10 Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. III. 56ª Edição. Forense. (p. 469) 11 Recurso Especial nº 1.818.926 - DF (2019/0154861-7). Julgamento em 13.04.2021.
O setor imobiliário, conhecido por seu caráter eminentemente conservador, está se reinventado: na era da transformação digital, o segmento tem buscado acompanhar o progresso tecnológico, abraçando tecnologias disruptivas e iniciativas de cunho inovador. Nessa esteira, uma das principais tendências que tem impulsionado essa transformação é o uso da tecnologia blockchain e dos tokens imobiliários. Neste artigo, sem pretensão de exaurir o tema, exploraremos cinco tipos distintos de tokens imobiliários que estão revolucionando a forma como compramos, vendemos, financiamos e rastreamos projetos imobiliários. Essas soluções inovadoras têm o potencial de democratizar o acesso ao mercado imobiliário, aumentar a transparência e simplificar processos, abrindo novas perspectivas para investidores, proprietários e demais agentes do setor. 1. Financiamento Imobiliário Baseado em NFTs O financiamento imobiliário utilizando tokens não-fungíveis (NFTs) está ganhando destaque no mercado. Empresas como a Netspace tem liderado essa iniciativa, viabilizando a utilização dos NFTs dos imóveis como garantia para concessão de empréstimos a partir da digitalização de propriedades. No modelo idealizado pela Netspace, é criado um "vínculo bidirecional entre o token e o imóvel", pelo qual o token traz informações sobre a matrícula do imóvel em Registro Geral de Imóveis (RGI) e a matrícula contém a descrição dos dados do token. Na prática, o arranjo jurídico consiste na lavratura de uma escritura pública de contrato de permuta entre Netspace e a pessoa que solicitou a digitalização da propriedade, sendo tal escritura posteriormente registrada no RGI; a propriedade digital do imóvel é então registrada por uma transação em blockchain pela Netspace, tornando o permutante no proprietário digital em sua plataforma. Como consequência desse modelo de negócio, por meio do provimento 38/2021, a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul regulamentou a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos, e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do estado. Ao utilizar NFTs de imóveis como garantia, o processo de aprovação de crédito se torna mais rápido e eficiente, com taxas e custos de transação reduzidos, tornando-o mais acessível para pessoas que, de outra forma, teriam dificuldade em obter crédito, especialmente trabalhadores autônomos. 2. Rastreabilidade de Construções por meio da Tecnologia Blockchain A startup Prodomos apresentou uma solução inovadora de rastreabilidade para o setor imobiliário, baseada na tecnologia blockchain: a empresa lançou sua primeira coleção de NFTs possibilitando o acompanhamento minucioso de todas as etapas de desenvolvimento de empreendimentos imobiliários. Essa abordagem traz transparência e imutabilidade aos processos de construção, permitindo que os agentes tenham controle detalhado sobre custos, serviços e indivíduos envolvidos em cada obra. Ao utilizar a imutabilidade e a transparência da blockchain para registrar informações relevantes em cada etapa de construção, os compradores de imóveis têm acesso a dados confiáveis sobre a qualidade da construção e a utilização adequada dos recursos, o que pode aumentar a confiança dos investidores e a valorização dos empreendimentos. Do ponto de vista legal, é importante destacar que o uso dessa ferramenta permite (i) maior conformidade regulatória, garantindo a observância de leis e regulamentos, (ii) viabiliza uma auditoria mais precisa e eficiente, que se mostra essencial nos longos e detalhados processos de incorporação imobiliária, incluindo aqui as obrigações relacionadas ao patrimônio de afetação, e, por fim, (iii) tais registros também servem à apuração de fatos e circunstâncias, e consequente responsabilização das partes envolvidas por eventuais falhas e/ou omissões. 3. Cashback Tokens para Benefícios em Imóveis A inovação também chegou ao mercado imobiliário por intermédio do desenvolvimento de "cashback tokens" por empresas como Vitacon, Housi e Insignia. Esses tokens são classificados como criptoativos do tipo utility token e proporcionam benefícios aos proprietários de imóveis. Os detentores desses tokens recebem uma carteira digital na plataforma da Insignia, por exemplo, onde mensalmente é depositado um valor referente a um percentual das vendas do minimercado (varejo) localizado no empreendimento. Esse cashback pode ser utilizado para abater parcial ou integralmente as despesas condominiais, tornando a vida dos proprietários mais conveniente e econômica. Essa abordagem inovadora cria um sistema de incentivo para os proprietários, fomentando a permanência e a satisfação dos moradores em um empreendimento. Além disso, atrai novos compradores interessados em receber esses benefícios exclusivos, o que pode impulsionar as vendas e o valor dos imóveis. 4. Permuta com Fornecedores e Captação de Recursos Outra aplicação dos tokens lastreados em ativos imobiliários é facilitar a permuta com fornecedores e otimizar a captação de recursos pelas incorporadoras. Esse modelo visa desburocratizar o acesso ao crédito, ao mesmo tempo em que torna a negociação com fornecedores mais eficiente e atraente. Com a utilização de tokens imobiliários como forma de pagamento pelos serviços ou insumos da obra, as incorporadoras podem contratar com fornecedores sem a necessidade de captação de recursos, de forma mais ágil e diversificada, reduzindo a dependência de empréstimos tradicionais. 5. Token para o Mercado Imobiliário como Acesso ao Ecossistema O token RIB, idealizado pela plataforma Ribus, oferece uma forma inovadora de acesso ao ecossistema da cadeia imobiliária. Similar ao conceito de Ether (ETH) no Ethereum. Trata-se de um coin token, em que a moeda presente tão somente no mercado imobiliário é utilizada como pagamento na contratação de serviços e insumos. O token RIB, por exemplo, é utilizado por prestadores de serviços como construtores, arquitetos, engenheiros e corretores, que o recebem como remuneração pelo trabalho prestado. Esses profissionais, detentores dos coin tokens imobiliários recebidos, utilizam-no para adquirir produtos e serviços dentro da plataforma, mantendo o ambiente do setor, podendo ainda convertê-lo em outras moedas digitais ou moeda corrente. Conclusão Os tokens imobiliários já são o presente, não mais um futuro distante, e estão redefinindo a indústria imobiliária, introduzindo soluções inovadoras que abrangem desde o financiamento até a rastreabilidade de construções. Através do uso da tecnologia blockchain, essas soluções proporcionam maior transparência, agilidade e acessibilidade ao mercado imobiliário, abrindo novas possibilidades para investidores, incorporadoras, fornecedores e adquirentes. O futuro do setor imobiliário será marcado pela adoção crescente dessas tecnologias, que têm o potencial de otimizar processos, aumentar a confiança e democratizar o acesso ao mercado imobiliário. Resta agora, e isso é fundamental para a propagação desse novo caminho, a regulação dos tokens imobiliários pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a fim de garantir a necessário segurança jurídica para seu pleno desenvolvimento.
Quase dois anos após a promulgação da lei 14.181/2021 ("Lei do superendividamento") a inadimplência cresce em ritmo acelerado. Em abril de 2023, 71 milhões de consumidores encontravam-se em situação de endividamento1. De acordo com pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), 40% dos brasileiros estavam com o nome "negativado"2. O número de dívidas em atraso aumentou 18% em relação ao mesmo mês de 20223, concentrando-se a maior parte em dívidas com bancos (64%) e sendo a faixa etária de 30 a 39 anos com a participação mais expressiva dentre os inadimplentes. A mesma pesquisa indica que 25% dos entrevistados afirmaram ter realizado alguma compra sabendo que não conseguiria adimplir, no trimestre anterior à pesquisa, e que 53% dos inadimplentes tem gastos superiores ao que o orçamento permite. O tema é sensível, de extrema relevância, e deve ser tratado à luz da legislação, visando à prevenção e tratamento do superendividamento. Fato é que com certa frequência o Judiciário tem sido instado a solucionar conflitos relacionados à situação de superendividamento. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou em 2022 cartilha de orientação para autuação do Judiciário no tratamento do superendividamento do consumidor, em consonância com a norma legal, que tem por finalidade estabelecer diretrizes mínimas e procedimentos uniformes para enfrentamento do tema4. O superendividamento é definido pelo parágrafo 1º, do art.54-A, da lei 8.078/90 ("Código de Defesa do Consumidor") como a "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação". O decreto 11.150/22 regulamentou a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial, para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento, estabelecendo como mínimo existencial o percentual de 25% (vinte e cinco por cento) do salário-mínimo vigente para o ano de 2022, como quantia necessária para o pagamento de despesas básicas. Ato contínuo, o decreto 11.150/22 foi alterado pelo decreto 11.567/23 para atualizar o valor correspondente ao mínimo existencial para R$ 600,00 (seiscentos reais). O ponto central da lei é a preservação do mínimo existencial do consumidor, conforme regulamentação, a fim de se evitar que as dívidas de consumo ultrapassem a sua renda mensal. Nesse sentido, a lei acrescentou procedimento específico, nos artigos 104-A e 104-B, para repactuação das dívidas do consumidor superendividado com a instalação de audiência de conciliação com apresentação de plano de pagamento, e se frustrada, a instauração de processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Estão excluídas do procedimento de repactuação de dívidas aquelas oriundas de contratos de financiamento imobiliário ou de crédito com garantia real. Não obstante haver previsão em lei para exclusão de dívidas decorrentes de financiamento imobiliário e de créditos com garantia real do processo de repactuação de dívidas, o fornecedor de crédito de natureza imobiliária, incluindo incorporadores e loteadores, deve observar o dever de avaliar previamente à contratação de venda, e de forma responsável, as condições de crédito do adquirente de unidade imobiliária e/ou lote. A Lei do Superendividamento incluiu no art.54-D, II, obrigação ao fornecedor do crédito de avaliação prévia e de forma responsável das condições de crédito do consumidor, por meio de informações disponíveis do consumidor em bancos de dados de proteção ao crédito, sob pena de acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal, bem como dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais ao consumidor, nos termos do parágrafo único do art. 54-D. Trata-se de um importante ponto de cautela ao empreendedor. Como se verifica, a lei não traz métricas para aplicação da sanção, apesar da regulamentação que diz respeito ao não comprometimento do mínimo existencial pelo decreto  11.567/23. Se eventualmente aplicada a sanção referida no parágrafo único do art. 54-D, pelo Poder Judiciário, isto é, por um terceiro que não faz parte da relação jurídica, impactos relevantes podem ser causados ao incorporador, ao loteador, e ao mercado imobiliário como um todo. Por essa razão a importância do fornecimento de crédito responsável, após análise prévia das condições do adquirente de imóvel, é essencial para preservação da segurança jurídica do mercado imobiliário. Quanto mais cautelosa for a análise pelo empreendedor sobre a situação de consumo do adquirente, menor será o percentual de desfazimento de contratos imobiliários e de risco de aplicação de sanções. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
Na data do dia 08 de agosto ocorreu, pelo COLENDO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, o julgamento do procedimento de controle administrativo nº Nº 0000145-56.2018.2.00.0000.  A contrário senso do que a legislação de Alienação Fiduciária estabelece, tanto o Ministro Relator como os Conselheiros do CNJ entenderam por bem julgar IMPROCEDENTE o PEDIDO DE PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO contra Provimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. De acordo com o julgamento, foram consideradas legais as exigências contidas nos Provimentos das Corregedorias dos Estados de Minas Gerais, Paraíba, Pará e Bahia que vedam a celebração de Instrumento Particular de Venda e Compra com Alienação Fiduciária por empresas particulares (Loteadoras/Incorporadoras) e particulares em geral como documento hábil para ser levado a registro na matrícula do imóvel. Por citadas Normas da Corregedoria de indigitados Estados, somente entes que operam no SFI (Sistema Financeiro Imobiliário) ou Cooperativas de Crédito podem utilizar do instrumento particular para operacionalizar a alienação fiduciária de imóveis, restando aos Loteadores, Incorporadores e pessoas físicas no geral, tão somente a celebração de Escritura Pública de Venda e Compra com Alienação Fiduciária. - SFI podem firmar por Instrumento Particular. Infelizmente, por citado julgamento, deixou o CNJ de se ater ao princípio da especialidade e o da legalidade, uma vez que os Provimentos das citadas Corregedorias - atos infralegais-   ferem frontalmente  os  arts. 38, art. 22, §1º e 5º, §2º, todos da lei 9.514 que não traz qualquer restrição para que os instrumentos particulares com força de escritura sejam celebrados por quem não opera no SFI ou SFH. Se o legislador quisesse assim fazê-lo, teria incluído no final do texto do artigo 38 da lei 9.514/97, a expressão "quando for o caso", ou outra similar, para diferenciar as hipóteses que deveriam ser utilizadas pelo SFI ou SFH, o que não o fez. "Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública" Ainda, o art. 5º, parágrafo 2º, da mesma lei determina que: "§ 2o As operações de comercialização de imóveis, com pagamento parcelado, de arrendamento mercantil de imóveis e de financiamento imobiliário em geral poderão ser pactuadas nas mesmas condições permitidas para as entidades autorizadas a operar no SFI." g.n Como se pode verificar, a lei assegura EXPRESSAMENTE a celebração de instrumento particular tanto pelo agente financeiro, como pelas pessoas jurídicas de direito privado e/ ou físicas, não impondo que para as pessoas jurídicas deva ser celebrado instrumento público. O CNJ julgou de forma contrária aos julgamentos já proferidos pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça - STJ. O STJ já reconheceu que é legítima a formalização da alienação fiduciária como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. (Recurso especial provido. REsp 1542275/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, DJe 02/12/2015). Senão vejamos: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA  SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL.OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA."(Grifos nossos) Da mesma forma, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, em recurso administrativo contra decisão em que autorizou a medida, decidiu ser possível registrar contrato de alienação fiduciária de bem imóvel firmado por instrumento particular com pessoa jurídica que não integra o Sistema Financeiro Imobiliário (CCG/SP 11/07/2016). Veja-se, a propósito, ementa a seguir transcrita: "ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL - Possibilidade de o contrato ser firmado por pessoa jurídica que não integre o SFI - Contrato que pode validamente revestir formas pública ou particular Arts. 22 e 38 da Lei 9.514/97, e item 230, Capítulo XX, das NSCGJ -  Precedente -  Recurso Desprovido (CGC/SP 11.07.2016)." Extrai-se dos julgados colacionados a certeza de que é defeso aos órgãos do Poder Judiciário restringir a utilização do instrumento particular na celebração dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos às entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) ou às Cooperativas de Crédito. Reitera-se: a lei que regulamenta a alienação fiduciária é a Lei 9.514/97. Pelo art. 22, §1º permite-se que a modalidade de garantia possa ser contratada não somente pelas entidades financeiras, como por pessoas físicas e ou jurídicas, conforme segue: "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1o  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: (Grifos nossos) Outro ponto a ser ponderado é que não pode norma estadual e ou qualquer ato infralegal,  como fez o Provimento Estadual de Minas Gerais, estabelecer diversamente do que for assegurado por lei federal, em especial quando a União é o ente competente para legislar exclusivamente sobre o assunto. No caso em tela, por força da Constituição Federal, é a União quem deve legislar sobre registros públicos. Tomamos emprestado abaixo julgamento de um caso análogo em que houve negativa dos cartórios em proceder registros com base em legislações ou atos infralegais contrários à norma federal: "Apelação Cível. Pedido de Providências. Não alteração do Registro Civil. Competência Privativa da União para legislar sobre Registros Públicos. Art. 22, XXV. Código das Normas da Corregedoria Geral da Justiça. Art. 384. Apelo improvido. (TJ/MA, acórdão publicado no Diário da Justiça do Maranhão em 11.01.2012, p. 24)  Ademais, sobre a possibilidade de ser celebrada a alienação fiduciária, tomamos emprestadas as lições de Melhim Namem Chalhub: "Os atos e contratos referidos na Lei n° 9.514/97, bem como aqueles resultantes da sua aplicação, poderão ser formalizados por instrumento particular. A lei não faz restrição alguma quanto às modalidades de contrato passíveis de ser formalizados mediante instrumento particular em relação à Lei nº 9.514/97; ao contrário, estende a possibilidade de formalizar por instrumento particular a todos os atos e contratos referidos nesta lei ou resultantes de sua aplicação.' Assim, quando resultantes da referida lei, podem ser celebrados por instrumento particular a compra e venda, a promessa de venda, a hipoteca, a caução de direitos aquisitivos, a cessão fiduciária, a alienação fiduciária, enfim, os atos e contratos relacionados à comercialização de imóveis e à constituição de garantias imobiliárias previstas na Lei nº 9.514/97 ou resultantes dela.(CHALHUB, Melhim Namem. "Negócio Fiduciário", Ed. Renovar, Rio de Janeiro - São Paulo - Recife, 2009, p. 234-235).(Grifos nossos)  Não obstante todos os pontos acima abordados, NÃO FOI ASSIM QUE JULGOU O CNJ. Entendeu a Colenda Corte pela aplicabilidade do art. 108 do Código Civil em detrimento de uma norma especial, Lei de Alienação Fiduciária, que não traz qualquer restrição a utilização da forma particular para aqueles que não operam no SFI.   De acordo com o voto proferido pelo Relator, todos os contratos de venda e compra com Alienação Fiduciária devem observar a forma da escritura pública, mesmo se a Legislação Especial, que é a de Alienação Fiduciária, excepcione e estenda a celebração de instrumentos particulares com força de escritura aos particulares não vinculados ao Sistema do SFI, SFH e ou Cooperativas de Crédito.  Citado julgado, além de importar em um retrocesso na legislação, importará em aumento expressivo do custo do financiamento a ser repassado ao comprador final. Somente os tabelionatos de notas é quem passarão a ter competência para lavrar escrituras de venda e compra com alienação fiduciária. Haverá substancial aumento operação ao consumidor, porque serão cobrados todos os custos e emolumentos inerentes da escritura pública. Dependendo do tipo de empreendimento e o público para o qual está voltado o empreendimento, essa majoração de custo poderá inviabilizar a operação imobiliária. Esta decisão é grave, pois contraria Lei Federal, - específica sobre a matéria de alienação fiduciária,- e terá consequências nefastas. Lembrando, ainda, inexiste crédito para loteadores no Brasil, o que os obriga a executarem as obras de infraestrutura com recursos próprios. Esta decisão dificultará ainda mais o acesso ao crédito que antes era feito com operações de securitização das carteiras dos recebíveis imobiliários, celebrados com garantia real da alienação fiduciária através de instrumento particular. Se definitiva, tal decisão encarecerá o processo, como poderá inviabilizar o acesso de recursos para este mercado tão importante para o país. Todas as alterações realizadas com a edição da Lei do Bem, editada e promulgada para desenvolver o setor imobiliário, foram sepultadas com o julgamento do CNJ.
Em 7.5.2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)1, por meio da Segunda Seção, julgou o Recurso Especial (REsp) 1.348.640/RS, definindo a seguinte tese (sob o tema de n. 677): "Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada.". No entanto, foi suscitada e acolhida questão de ordem no bojo do REsp 1.820.963/SP, ocasião em que a Corte Especial revisitou a matéria, alterando seu entendimento2 para fixar a nova tese, em 19.10.2022: "Na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial.". Cumpre-se indicar, brevemente, os principais fundamentos para essa virada jurisprudencial. De início, a relatora destaca a natureza jurídica diversa que o STJ conferiu às categorias do "pagamento" e "garantia do juízo"3. Sustentou que a Terceira Turma já havia relativizado a tese do tema 6774, onde o Min. Relator, à época, argumentou que, pelo Código Civil (CC/02), depósito em garantia do juízo não equivale a pagamento, inexistindo, portanto, o efeito liberatório. Nessa toada, afirmou: "Assim, melhor refletindo a respeito da matéria, não vejo como se possa liberar o devedor dos consectários da mora quando efetua o depósito judicial da dívida para fins de garantia do juízo, uma vez que seu propósito ao fazê-lo é justamente impugnar a obrigação que lhe é atribuída, atitude que se mostra incompatível com seu cumprimento.". Concordando com essa orientação, a Min. Nancy cita os arts. 394, 395 e 401, I, do CC/02, assinalando que a purga da mora ocorre com a efetiva entrega da soma ao credor e não com a simples perda da posse do valor pelo devedor. Nessa seara, asseverou que tal lacuna do CC/02 é preenchida pelo Código de Processo Civil (CPC), ao deixar claro que a satisfação do crédito se dá pela entrega do dinheiro ao credor, nos termos do art. 904, I5. Conclui, ao fim, que somente o depósito judicial voluntário pelo devedor, com vistas à satisfação do credor, sem qualquer sujeição do levantamento à discussão do débito, cessa a mora do devedor e extingue a obrigação. Por conseguinte, no entendimento da Min., o depósito a título de garantia do juízo não cessa a mora por não ocorrer a imediata entrega do dinheiro ao credor, o que ensejaria a quitação do débito. O fundamento principal da Min. é a finalidade do depósito: se com objetivo de pronto pagamento, enseja a liberação dos efeitos da mora; se com a finalidade de garantia, não exime, continuando a incidir os juros moratórios e a correção monetária. Essa reviravolta no tema 677 suscita uma ampla gama de problemas e discussões que superam os limites da presente coluna. Mesmo assim, pretende-se apontar alguns argumentos e propor, ao fim, caminhos considerando a tese fixada. Segundo Agostinho Alvim: "Retardamento é o atraso no efetuar a prestação, materialmente considerado. Mora é o retardamento culposo"6. Essa lição permanece atual, considerando a igualdade de redações do art. 963 do Código Civil de 19167 (CC/16) e do Art. 396 do CC/028. No mesmo sentido, a definição de Menezes Cordeiro, segundo quem há o cumprimento retardado quando, no momento da prestação, esta não seja efetuada. Por outro lado, "sendo o atraso imputável ao devedor, este entra em mora"9. O problema da orientação é que os artigos aludem à imputabilidade, e imputar: "é atribuir responsabilidade a alguém. O nexo de atribuição de responsabilidade - que se chama imputação - pode ser informado pelos princípios da culpa, do risco, da segurança 'haja o que houver', ou da garantia (fatores de imputação)"10. Desta forma, a mora do devedor exige: (i) o descumprimento no tempo, lugar e forma11 (elemento objetivo); e (ii) a imputabilidade (elemento subjetivo). Consequência dessas premissas que os efeitos da mora apenas se aplicam quando há fato ou omissão imputável ao devedor12 juntamente do descumprimento da obrigação. Esse raciocínio guarda profunda relevância com o tema 677. Isso porque, quando o devedor deposita em juízo os valores a título de garantia para afastar os efeitos da mora e continua discutindo a matéria em sede recursal, de impugnação ao cumprimento de sentença ou embargos à execução, não há fato imputável ao devedor na demora da resolução que permita sua responsabilidade pelos consectários legais da correção monetária e dos juros de mora. Muito pelo contrário: afastando-se da inércia, age para garantir o direito creditório, sendo duvidosa a relevância jurídica da finalidade do depósito, mormente a considerar que o devedor perde a disponibilidade do valor, ficando na dependência de decisão judicial para sua liberação. Não tendo êxito em sua defesa, o valor será liberado ao credor13. O que se está a fazer, a partir da revisão do tema, é penalizar o devedor diligente que, depositando o valor em juízo - montante este que já não estará sob sua esfera de disponibilidade -, deduz judicialmente um válido questionamento acerca do valor efetivamente devido. É dizer: o revisitado tema 677 fixou uma tese contraditória com a sistemática do ordenamento jurídico, pois permite que o devedor se defenda com os meios processualmente existentes contra a pretensão do credor e, ao mesmo tempo, imputa-lhe o retardamento no cumprimento da prestação quando já garantiu ao credor a satisfação do seu direito de crédito. A inobservância do requisito da imputabilidade do devedor levará a consequências um tanto questionáveis14, notadamente a eternização15 de execuções quando o processo obrigacional é polarizado ao adimplemento da obrigação com a satisfação dos interesses do credor16 e o sancionamento de devedores que se valem do devido processo legal garantido constitucionalmente17. Ainda, o argumento de possível delonga de ações executivas para alterar o tema 677 é questionável, considerando que o executado pretende com o depósito a título de garantia é a concessão de efeito suspensivo ao seu mecanismo defensivo. Para a atribuição desse efeito à impugnação ao cumprimento de sentença, cumpre-se, para além da garantia do juízo, que os fundamentos sejam relevantes (art. 525, § 6º, CPC). Igualmente, o efeito suspensivo será atribuído aos embargos à execução desde que "verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória" (art. 919, § 1º, CPC); a probabilidade do direito e o risco na demora processual. Ou seja, a nova tese penaliza o devedor que, valendo-se do regular exercício de suas garantias processuais, suscita relevantes fundamentos. Por isso, não se trata de beneficiar um devedor que pretende estender indefinidamente uma discussão com o objetivo de se furtar do cumprimento da obrigação, mas de possibilitar que um devedor com fortes argumentos possa manejar seus meios de defesa sem ser sancionado por isso. Não se pode desconsiderar, nesse âmbito, o atual e sobejamente conhecido cenário de duração irrazoável do processo nos tribunais pátrios, até em virtude do assoberbamento do Judiciário nacional18. Tem-se, portanto, um estado de coisas em que, para além do descumprimento do princípio constitucional (art. 5º, LXXVIII), resta afastado por completo o preceito geral de menor onerosidade da execução19. Extrai-se, no mesmo sentido, incongruência da interpretação sistêmica e finalística dos arts.  525, § 8º, e 919, § 3º, do CPC, ao estabelecerem que o efeito suspensivo pode ser atribuído apenas a parte do objeto da execução, prosseguindo esta quanto à parte restante. A rigor, sob a nova tese, o juízo nunca estará integralmente garantido: se os juros não param de fluir com o depósito, a garantia sempre será insuficiente. Em paralelo, nota-se contradição com a orientação do tema 1.002 do STJ, segundo a qual nos compromissos de venda e compra anteriores à lei 13.786/18, em hipóteses de pleito de resolução contratual por iniciativa do promitente comprador de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros de mora incidirão a partir do trânsito em julgado da decisão, em relação à nova tese fixada através do tema 677. Pois à hipótese de cumprimento provisório da sentença resolutória, seguindo o tema 1.002, não incide juros moratórios, já pelo entendimento fixado no tema 677, eventual depósito realizado a título de garantia no cumprimento provisório não faria cessar a incidência de juros. Desse modo, há desconformidade entre os temas e seus fundamentos, o que a Corte deverá enfrentar para garantir segurança jurídica. Na seara imobiliária, o tema igualmente tem relevo. A título exemplificativo, cogite-se de execuções extrajudiciais sobre quotas condominiais, débitos de adquirentes inadimplentes, ou cumprimentos de sentença de ações condenatórias em obrigação de pagar em geral. Sob o novo entendimento, mesmo que a parte executada deposite o valor nos autos, os juros e correção monetária continuarão correndo, o que tornará a estratégia pouco eficiente e desvantajosa economicamente. Os litigantes deverão observar, a partir de agora, as chances de êxito na discussão contrapondo com o valor que será acrescido pela demora no julgamento de suas defesas ou recursos, pois ocorrerão situações em que, mesmo que o valor declarado devido seja inferior, com os juros moratórios e correção monetária que incidirão, os montantes se "compensarão". Logo, considerando que o depósito não afasta os consectários da mora, torna-se mais vantajoso o oferecimento de garantias judiciais não-financeiras, como a fiança bancária e o seguro garantia judicial, que se equiparam a dinheiro, com o devido acréscimo de trinta por cento, ex vi art. 835, § 2º do CPC. Assim, o executado não se descapitalizará, mantendo-se os valores para sua operação econômica. De todo modo, afora os problemas suscitados, com soluções à vista, propõem-se que os advogados, ao depositarem os valores, em juízo façam a devida distinção do valor incontroverso e o valor controvertido. Isso é necessário para que o valor incontroverso contenha a finalidade de imediato pagamento, não sofrendo juros moratórios, e sejam liberados ao credor, mantida a discussão apenas pelo valor controvertido, que não tem finalidade de imediato pagamento, mas de garantia. Os advogados deverão requerer, em sede de tutela provisória, que o juízo suspenda o cumprimento de sentença ou a execução pelos poderes advindos do art. 525, § 6º20, e 919, § 1º21, do CPC, atribuindo efeito suspensivo à impugnação ao cumprimento de sentença ou aos embargos à execução, esclarecendo que o efeito suspensivo abarcará, também, os juros moratórios. Dessa forma, os litigantes deverão observar os requisitos da tutela provisória para que os juros de mora não fluam. Considerando que o magistrado possui o poder geral de cautela e pode, cessando as circunstâncias que motivaram a suspensão, modificar ou revogar a decisão suspensiva (§ 2º do art. 919 do CPC22), a solução estará sempre sob o pálio judicial e, verificando no caso concreto o abuso do direito de recurso ou o propósito protelatório, o magistrado, seja na instância de primeiro ou segundo grau, poderá revogar a decisão, retornando a fluição dos juros moratórios e os atos expropriatórios. Por derradeiro, percebe-se que o tema gerará novos debates pela doutrina e jurisprudência, principalmente pela sua relevância prática, especialmente nos litígios imobiliários que ocasionem execuções de títulos extrajudiciais ou cumprimentos de sentença, no que as presentes linhas propõem contribuir com a discussão.   __________ 1 Agradece-se às contribuições do Presidente do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário), André Abelha, ao presente texto. 2 A Ministra (Min.) Nancy Andrighi, relatora, votou para prover o Recurso Especial fixando a tese acima, acompanhada pelos Min. Laurita Vaz, João Otávio de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Og Fernandes e Benedito Gonçalves, vencidos os Min. Jorge Mussi, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e Francisco Falcão. O apertado placar de 7 a 6 demonstra a profunda controvérsia da matéria. 3 Aliás, questiona-se essa distinção atualmente, considerando que o depósito judicial garantidor não é mais pressuposto para apresentação dos embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, como sustentado na vigência do CPC/1975 pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito (Ag n.715.490/SP, DJ de 31/8/2006). Além disso, parece que a distinção colocou a garantia em local de desprestígio, situando-a, indevidamente, inferiormente ao pagamento. Ignora-se que a garantia possui função satisfativa do credor, proporcionando ao credor um poder de excussão do patrimônio garantidor (o próprio depósito nos autos, à hipótese tratada) sem necessidade de execução forçada em busca do próprio patrimônio do devedor (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Garantia e responsabilidade patrimonial: novos meios executivos e a execução forçada como reforço da obrigação. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 25, p. 59-89, out-dez. 2020). A segurança jurídica provida pelo depósito garantia não pode, também, ser apequenada ou desprezada. 4 REsp 1.475.859/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, DJe de 25.8.2016. 5 "Art. 904. A satisfação do crédito exequendo far-se-á: I - pela entrega do dinheiro;" 6 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 23. 7 "Art. 963. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." 8 "Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." 9 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil: direito das obrigações, cumprimento e não-cumprimento, transmissão, modificação e extinção. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2017, v. IX, p. 234. Nessa linha, cf. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 12. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p. 1.048 e ss. 10 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II, p. 373. Igualmente, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. XXIII, p. 211 e ss. Catarina Monteiro Pires indica que imputação em Direito é funcional, criando nexo de atribuição de certas normas jurídicas, e normativa, pois parte de critério fixado por meio de uma regra jurídica, fundamentando-se em considerações axiológicas ou valorativas (PIRES, Catarina Monteiro. O que é imputar? AGIRE | Direito Privado em Ação. Disponível aqui. Acesso em 24 jul. 2023). 11 "Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer." 12 "Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. [...] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado." 13 A rigor, conforme dicção do § 6º do art. 525 do CPC, ainda que o juízo seja garantido, se os fundamentos da impugnação não forem relevantes, a garantia poderá ser levantada pelo credor, com evidente efeito liberatório. 14 O voto divergente do Min. Sanseverino (in memoriam), percucientemente, indica três consequências práticas da revisão do tema: (i) desestimular o devedor em efetuar o depósito em dinheiro na fase de execução, em desprestígio à efetividade da execução; (ii) incentivar o devedor a pleitear a substituição de eventual penhora de dinheiro por fiança bancária; e (iii) uma possível "eternização" da execução, pois, mesmo após o recebimento da dívida principal, restaria um saldo de juros a executar. 15 Esse argumento também fora levantado pelo voto-vista divergente do Min. Raul Araújo. 16 COUTO E SILVA, Clovis v. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2006, p. 17. 17 Ademais, recorda-se que o credor, com o depósito judicial, não será prejudicado, haja vista que os valores sofrerão incidência de correção monetária. Destarte, a alteração de entendimento, parece, ter o condão apenas de onerar o devedor diligente.   18 O relatório "Justiça em Números", em sua edição de 2022, produzido pelo CNJ, dá conta da existência de cerca de 62 milhões de ações judiciais em andamento. 19 Cândido Rangel Dinamarco diz que essa disposição: "representa o núcleo de um verdadeiro sistema de proteção ao devedor contra excessos executivos, inspirado nos princípios da justiça e da equidade, sabendo-se que essa proteção constitui uma das linhas fundamentais da história da execução civil em sua generosa tendência à humanização" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, v. IV, p. 49-50). 20 "Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação. [...] § 6º A apresentação de impugnação não impede a prática dos atos executivos, inclusive os de expropriação, podendo o juiz, a requerimento do executado e desde que garantido o juízo com penhora, caução ou depósito suficientes, atribuir-lhe efeito suspensivo, se seus fundamentos forem relevantes e se o prosseguimento da execução for manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação." 21 "Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo. § 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes." 22 "§ 2º Cessando as circunstâncias que a motivaram, a decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada."
I Construção para aluguel de moradias Nos anos 1.940 a "Mineração Geral do Brasil", construiu 500 casas em Mogi das Cruzes, para os seus empregados; naquela década e nas seguintes foram construídos vilas e prédios em todo o país, voltados à moradia dos empregados desta ou daquela indústria. Igualmente, foram construídos vilas e prédios residenciais com unidades destinadas unicamente à locação; muitas dessas vilas se transformaram em locais disputadíssimos, seja para residência, seja para instalação de lojas e escritórios sofisticados. A destinação à moradia de empregados sofreu diante da evolução das leis laborais; o tratamento fiscal desfavoreceu esses empreendimentos; a evolução dos costumes e das relações de trabalho findou deixando no passado aqueles conjuntos residenciais; assistiremos muita mudança, ainda, conforme oscilem as vontades e as necessidades sociais. Já a construção para a locação residencial teve também os seus percalços seríssimos, ora consequentes da legislação extremamente protetiva (exageradamente, a ponto de prejudicar os pretendidos destinatários das benesses, em clara sequência semelhante à dos vasos comunicantes: enchendo demasiadamente um, a pressão acabará em outro...), ora da movimentação da economia; até mesmo questões relevantíssimas, de saúde pública, influenciaram a construção dos prédios e vilas residenciais1. Em 1.9422 a Lei do Inquilinato de Getúlio Vargas congelou os aluguéis, obviamente levando à destruição os empreendimentos voltados à locação. Opções legislativas semelhantes3 pontuaram a história brasileira, aliás, sempre findando no desmantelamento dos investimentos e da oferta de residências (afinal, frase atribuída a Albert Einstein por perfeitamente coerente com a sua filosofia, ?insanidade é repetir os mesmos erros e esperar resultados diferentes). Seja como for, os congelamentos e as restrições remanesceram por longos períodos, exigindo muito, muito tempo para que as pessoas acreditassem terem sido afastadas na lei de 1.991. E aí reside a razão (com base inteligente e histórica, a quiçá mudar no futuro) de não se cobrarem os encargos embutidos no aluguel: os aluguéis volta e meia foram congelados no passado; os encargos somente o seriam se num passe de mágica não se alterassem salários (dos que trabalham nos prédios e também os indiretos), energia, água, produtos de limpeza usados nos edifícios e assim por diante. Logo, embutir encargos no aluguel significaria que o locador assumiria o risco inflacionário, insuportável, o que geraria litígios infindáveis. Daí a distinção na cobrança, entre alugueis, encargos (e impostos). Dentre surtos inflacionários, ganhos pontuais e espetaculares em investimentos mobiliários, recessões, quebras de bancos e de empresas e fases de euforia econômica, chegamos aos tempos atuais, em que pessoas precisam morar, mas não podem ou não querem comprar imóveis para isso. De outro lado, dispensando o Estado dessa obrigação (até por absoluta inaptidão e falta de dinheiro para essa destinação), investidores têm eleito o setor imobiliário como opção segura e de longo prazo para suas inversões; a legislação locatícia já é antiga, conhecida e respeitada; os contratos têm oferecido4 boa garantia e não têm, de modo geral, sofrido com a insegurança jurídica que estapeia outros setores. Dessa conjunção, têm crescentemente surgido prédios de dono único, destinados à locação residencial: várias unidades, não constituídas sob a forma do condomínio edilício, pertencentes todas a apenas um proprietário. II O rateio das despesas entre unidades autônomas de um proprietário Pois bem. Nada impede a locação dessas várias unidades a vários locatários, ajustando-se vários contratos; essas locações são regidas pela Lei n. 8.245, de 1.991, a "Lei das Locações". Mas, tem surgido recentemente, com a vinda de novos empreendimentos, forte questionamento sobre o rateio das despesas de conservação e de manutenção do prédio: podem ser cobradas dos locatários, desde que tão somente assim esteja previsto no contrato? Sim, podem, isso está previsto no parágrafo terceiro, do artigo 23 da Lei das Locações: "§ 3º No edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade da mesma pessoa, os locatários ficam obrigados ao pagamento das despesas referidas no § 1º deste artigo, desde que comprovadas". Porém, não é suficiente que tão somente esteja contratado o rateio, como se verá. III Condições do rateio entre as unidades e distinção do rateio em condomínio edilício Realmente esse rateio merece algumas observações e a primeira é que as despesas a ratear devem ser comprovadas. Essa previsão difere do que ocorre com os condomínios edilícios, nos quais o condômino deverá paga-las (art. 1.336 - I, do Código Civil); as despesas deverão ser orçadas pelo síndico (art. 1.348 - VI, do Código Civil), prevendo a Convenção qual "a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições" (art. 1.334 - I, do Código Civil), cabendo ao síndico cobrar os condôminos e prestar contas da movimentação financeira (art. 1.348 - VII, VIII do Código Civil). Interessa notar que mesmo que o condomínio funcione mal, o síndico seja desatento quanto aos seus deveres, mesmo assim os condôminos deverão pagar as contribuições, afinal a simples existência da propriedade já gera despesas que hão de ser suportadas pontualmente pelos interessados, os proprietários. A esse respeito, a jurisprudência5 é tradicional e pacífica. Mas, nas locações das unidades que não integram um condomínio edilício, o pagamento somente poderá ser exigido se provadas as despesas, o diz a lei. IV Quais e como as despesas que podem ser rateadas Que despesas podem ser consideradas como sendo de manutenção dessas unidades e, portanto, poderão ser cobradas? Novamente, a resposta está na própria lei das locações, que as equipara às despesas ordinárias do condomínio edilício (art. 23, inciso XII)6. Estas, lembremos, podem7 sempre ser atribuídas ao locatário8 da unidade condominial, desde que prevista esta obrigação no contrato9. Logo, havendo previsão contratual, as despesas de manutenção e conservação serão atribuídas ao locatário; na situação dos edifícios não constituídos como condomínios edilícios, mas constituídos por unidades autônomas de propriedade de uma pessoa, essa atribuição também será possível, mas a comprovação das despesas será condição incontornável da cobrança. V O aspecto tributário Entretanto, essa cobrança pelo Locador impõe breve estudo de um outro aspecto, o tributário. E nesse tópico, a diferença entre consistir ou não um "condomínio edilício" será importante. Em se tratando de condomínio edilício, os valores que o Condômino Locador receber do Locatário não sofrerão incidência do imposto de renda. Como em matéria tributária a literalidade é crucial, convém mencionar que a exclusão desses valores do cômputo da base de cálculo do tributo está expressa no artigo 42 - IV10 e no artigo 689 - IV11 do Regulamento do Imposto de Renda. Essa certeza de exclusão das despesas de condomínio, constante em Instrução Normativa12, foi sedimentada quando consultada formalmente a Receita Federal13. Num primeiro vislumbre poderia parecer também não haver tributação no recebimento das despesas de conservação e manutenção cobradas em edifícios constituídos por unidades autônomas de um só proprietário, sabendo-se que a discriminação14 dessas despesas é mais que baseada, copiada da relação de despesas ordinárias condominiais. Mas, não é bem assim. A legislação tributária há de ser interpretada literalmente (art. 111, do Código Tributário Nacional), vai daí a analogia (entre despesas de condomínio atribuídas a unidades condominiais e despesas de manutenção de unidades não condominiais) ou a equidade (malgrado palpável a sua Justiça) não é de ser admitida, numa aplicação rigorosa da lei. Sobre a aplicação da analogia, ou da equidade agora com esteio no art. 108, do CTN15, a par da notória dificuldade de convencimento da Receita Federal, existe um certo consenso de que "A analogia, quando empregada ao caso concreto, beneficia mais ao Fisco do que ao contribuinte."16 . Exatamente nessa toada já decidiu a Receita Federal, quando analisou o tratamento fiscal dado à taxa de manutenção de associação de proprietários e fincou que "o condomínio difere da associação", concluindo que a "taxa de manutenção da Associação de Proprietários" não é dedutível da base de cálculo do imposto sobre a renda17. Por certo será arriscado supor que as despesas no prédio com várias unidades organizado como condomínio edilício não diferem das despesas no prédio com várias unidades de um dono somente e arriscar operação com essa base. Espere-se a evolução da interpretação fiscal, será mais recomendável. Enfim: (i) é verdade que os gastos, as destinações de dinheiro são os mesmos; (ii) é verdade que as despesas de condomínio e as despesas de manutenção de unidades não condominiais, ambas podem ser cobradas do Locatário, desde que assim o diga o contrato celebrado; (iii) a legislação tributária exclui as despesas de condomínio da base de cálculo do imposto sobre a renda que o Locador deve pagar; (iv) a legislação tributária não exclui expressamente tais despesas na situação do prédio de um dono somente; (v) a legislação tributária deve ser interpretada literalmente e, portanto, será arriscado tentar essa exclusão. Essa tributação (como, por igual, a das despesas de manutenção das associações de moradores) deixa parcela dos locadores em situação desbalanceada, injusta: hão de pagar, nesse pensar, tributo sobre valores que percebem a título de reembolso de despesas, que não são renda de aluguel propriamente dita! VI Arriscando sugestões Sob o prisma da tributação, esse obstáculo interpretativo, essa dificuldade de mostrar que as despesas, ocorram no condomínio edilício ou ocorram no prédio de um proprietário, são as mesmas (o diz a lei, além da evidência), pois decorrem do prédio e não (jamais) da formatação jurídica de seu domínio, precisa ser superado. O caminho mais rápido consistiria na evolução interpretativa pelo Fisco; um segundo caminho, que ofereceria solução definitiva e consistiria na inserção de referência expressa a esse rateio na legislação tributária (bastaria, aos incisos IV dos artigos 42 e 689 do Regulamento do Imposto de Renda e do art. 31 do Decreto n. 9.580, de 22/11/2.018, acrescentar "IV - as despesas de condomínio ou as despesas de previstas no § 3º da Lei n. 8.245 de 1991"18. A singela incrustação dessas verbas no valor do aluguel, no atual estágio de interpretação e aplicação da legislação tributária é inviabilizador do negócio, devido à tributação19. Outra solução, sob o olhar tributário, seria a constituição de Sociedade, que arrecadasse os rateios e pagasse os dispêndios, operação com saldo zerado, que não seria onerado pelo imposto, mas que implicaria em custos administrativos. Entretanto, a par desse custo operacional, se essa verba não for classificada como "encargo locatício", o seu inadimplemento não permitirá a promoção de ação de despejo por falta de pagamento, dirigida somente aos casos de "falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação".20 Como se vê, a interpretação fiscal, se não inviabiliza esse negócio, o onera. Sob o aspecto cível: o contrato de locação deverá ser transparente (conduta a seguir em qualquer contrato, diga-se), mantendo claro que ocorrerá o rateio dos custos, informando quais serão eles. Deverá ser comunicado, ainda, onde e quando estarão, à disposição do locatário, as prestações de contas e os comprovantes de despesas. Quanto a isso, tem se difundido a comunicação eletrônica, exatamente como fazem os condôminos (mais uma vez, a semelhança é absoluta), perfeitamente suficiente para a prova exigida na lei. VII Concluindo  É, portanto, perfeitamente possível cobrar as despesas de manutenção, desde que satisfeito o requisito da comprovação da despesa (que deverão  ser aquelas legalmente admitidas). O contrato deverá prever a responsabilidade por tais pagamentos e como se fará a prova da realização das despesas, certo que a transparência evitará dúvidas e litígios, trará segurança jurídica. Diante dos caminhos operacionais, deverá ser lembrado que se as despesas forem consideradas como encargos da locação, elas poderão motivar despejo por falta de pagamento, mas serão consideradas aluguel, não sendo, a rigor, dedutível seu valor para fins de imposto sobre a renda do Locador, pois a Receita Federal não as reputa iguais às despesas de condomínio (dedutíveis do tributo). Se não forem consideradas encargos da locação, mas consistirem em reembolso sem relação direta como aluguel, o inadimplemento não poderá motivar despejo por falta de pagamento, mas não sofreriam a tributação como aluguel. Os crescentes investimentos em prédios residenciais de um proprietário (não instituídos condomínios edilícios) aumentarão a disponibilização de moradias (que todos desejam) e exigirão, certamente, diante do claro interesse social, a reavaliação do entendimento fiscal. __________ 1 Uma boa leitura a respeito: Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo, da professora e ex senadora Eva Blay. S. Paulo. Ed. Nobel. 1.985. 2 O Decreto Lei n 4.598, de 20/08/1.942, que instituiu: "Art. 1º Durante o período de dois anos, a contar da vigência desta lei, não poderá vigorar em todo o território Nacional, aluguel de residência, de qualquer natureza, superior ao cobrado a 31 de dezembro de 1941, sejam os mesmos ou outros o locador ou sublocador e o locatário ou sublocatário, seja verbal ou escrito o contrato de locação ou sublocação". 3 Quando não congelaram, tabelaram os alugueis, como ocorreu sob a presidência de João Goulart (Decreto n. 53.702 de 14/03/1.964). 4 Inclusive através dessa separação - a lei retratou a prática - entre aluguel e encargos. 5 "DESPESAS DE CONDOMÍNIO - COBRANÇA - PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE - INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL NÃO RECONHECIDA - multa, correção monetária e os juros de mora que derivam do atraso no pagamento - INTELIGÊNCIA, ADEMAIS, DO art. 1.336, § 1º, do Código Civil - VÍCIO DE JULGAMENTO EXTRA PETITA NÃO CONFIGURADO - PEDIDO DE GRATUIDADE DA REQUERIDA INDEFERIDO - AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE EVIDENCIEM A SITUAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA - RECURSO DO CONDOMÍNIO-AUTOR PROVIDO, DESACOLHIDO O APELO DA RÉ. Há presunção de legitimidade das despesas condominiais reclamadas de cada condômino. Essa presunção juris tantum dispensa a exibição de boleto, ata de assembleia ou balancetes, sob pena de se instituir o primado do rigorismo excessivo, incumbindo ao condômino infirmá-la" (T-SP. AC: 10043561720208260100 SP 1004356-17.2020.8.26.0100, Relator: Renato Sartorelli, Data de Julgamento: 06/10/2021, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/10/2021).    "CONDOMÍNIO. Alegação de nulidade da representação processual do condomínio por ausência de ata de assembleia em que ocorreu a eleição do síndico. Não ocorrência. Ata juntada aos autos e devidamente registrada. Preliminar rejeitada. CONDOMÍNIO. Cobrança de Despesas Condominiais - Ausência de documentos indispensáveis - Inocorrência. Na demanda ajuizada para cobrar despesas condominiais dispensa-se a apresentação de documentos que tenham o condão de demonstrar a formação do crédito e o respectivo inadimplemento - Não são necessários balancetes, prestação de contas e atas de assembleias, especialmente porque a higidez dos valores cobrados é presumida considerando que a simples existência da propriedade condominial gera despesas que devem ser suportadas pelos condôminos. Recurso não provido." (TJSP; Apelação Cível 0015533-26.2011.8.26.0127; Relator (a): Gilson Delgado Miranda; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de Carapicuíba - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/12/2012; Data de Registro: 12/12/2012). "Há a presunção de que o imóvel gera despesas, e há a certeza de que a ré não pagou qualquer quantia referente ao período invocado pelo autor; em dívida de condomínio, a regra é dies interpellat pro homine, não necessitando qualquer procedimento judicial ou extrajudicial para a constituição da devedora em mora" (TJSP, Apelação nº 681.663, 2º TAC, Rel. Henrique Nelson Calandra, j. em 29.07.2003). 6 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 O locatário é obrigado a: [...] XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio. § 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração respectiva, especialmente: a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos empregados do condomínio; b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum; c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum; d) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos, mecânicos e de segurança, de uso     comum; e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum destinados à prática de esportes e lazer; f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas; g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum; h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da locação; i) reposição do fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou complementação das despesas referidas nas alíneas anteriores, salvo se referentes a período anterior ao início da locação. 7 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 [...] I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato; 8 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 [...] § 2º O locatário fica obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo anterior, desde que comprovadas a previsão orçamentária e o rateio mensal, podendo exigir a qualquer tempo a comprovação das mesmas. 9 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 25. Atribuída ao locatário a responsabilidade pelo pagamento dos tributos, encargos e despesas ordinárias de condomínio, o locador poderá cobrar tais verbas juntamente com o aluguel do mês a que se refiram." 10 BRASIL. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018. Regulamenta a tributação, a fiscalização, a arrecadação e a administração do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza. Art. 42. Não serão computados no rendimento bruto, na hipótese de aluguéis de imóveis: I - o valor dos impostos, das taxas e dos emolumentos incidentes sobre o bem que produzir o rendimento; II - o aluguel pago pela locação de imóvel sublocado; III - as despesas pagas para cobrança ou recebimento do rendimento; e IV - as despesas de condomínio. 11 BRASIL. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018. Regulamenta a tributação, a fiscalização, a arrecadação e a administração do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza. Art. 689. Não integrarão a base de cálculo para incidência do imposto sobre a renda, na hipótese de aluguéis de imóveis: I - o valor dos impostos, das taxas e dos emolumentos incidentes sobre o bem que produzir o rendimento; II - o aluguel pago pela locação do imóvel sublocado; III - as despesas para cobrança ou recebimento do rendimento; e IV - as despesas de condomínio 12 Instrução Normativa RFB n. 1.500, de 16/09/2.013, cujo artigo 31 - IV prevê que as despesas de condomínio não integrarão a base de cálculo para efeito de incidência do imposto sobre a renda do locador. 13 Conforme "Solução de Consulta DISIT/SRRF 10 n. 10004, de 22/02/2.023": "IMÓVEIS. ALUGUÉIS. DEDUÇÕES. DESPESAS DE CONDOMÍNIO. FUNDO DE RESERVA. BENFEITORIAS. As despesas de condomínio, ordinárias e extraordinárias, incluída a despesa para constituição de fundo de reserva, constante da alínea "g" do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 8.245, de 1991, constituem dedução dos aluguéis recebidos, desde que o ônus tenha sido do locador, por força do disposto no art. 31, inciso IV e § 1º, da Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 2014, e nos arts. 42, inciso IV, e 689, inciso IV, do Regulamento do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, aprovado pelo Decreto nº 9.580, de 2018 (RIR/2018).  Solução de Consulta vinculada à Solução de Consulta COSIT nº 167, de 27 de setembro de 2021. Dispositivos Legais: Regulamento do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (RIR/2018) aprovado pelo Decreto nº 9.580, de 2018, arts. 42 e 689; Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 2014, arts. 30 a 35." 14 Lembremos que no art. 23, o parágrafo terceiro ora tratado faz expressa referência às despesas listadas no parágrafo primeiro (que alude às despesas de condomínio). 15  BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido 16 Segundo a Procuradora Federal Maira Cauhi Wanderley, em A interpretação da norma tributária segundo o Código Tributário Nacional - "Conteúdo Jurídico", 23/12/2014), que completa: "É aplicada somente quando a lei conter lacunas que não expresse a sua vontade para determinado caso, sendo também necessário que haja semelhança visível entre o caso concreto e o escolhido para comparação." 17 "Assinale-se que condomínio difere a associação. Num condomínio (artigos 1314 a 1346 do Código Civil) o bem pertence a mais de uma pessoa, há copropriedade, estando o condômino obrigado, na proporção de sua fração ideal, a contribuir para as despesas de condomínio. Já uma associação, segundo o disposto no art. 53 da mesma Lei, é formada pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos, na qual não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos. Assim, conclui-se que a "taxa de manutenção da Associação de Proprietários" não e dedutível da base de cálculo do imposto sobre a renda de apuração mensal (carne leão)." (Solução de Consulta n. 116, de 26/03/2.019). 18 Ou tal se poderia fazer através de redação provavelmente melhor... 19 Situação diferente e dependente da contabilidade e opção fiscal, existiria no lançamento como dessas operações. 20 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 62.
É crescente o número de decisões judiciais decretando rescisão de contratos de venda e compra de lotes com pacto adjeto de alienação fiduciária, prevista na lei 9.514/97, sob argumento de que não pode existir confusão entre loteador e credor fiduciário, atividade esta "exclusiva das instituições financeiras". Sim, isso mesmo, muito embora entendemos não ser possível a rescisão da Alienação Fiduciária, conforme inúmeros precedentes, isso está se consolidando em algumas recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo. COMPRA E VENDA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EMPREENDEDORA E CREDORA FIDUCIÁRIA QUE SE CONFUNDEM  RESCISÃO  POSSIBILIDADE - A alienação fiduciária de imóvel objeto de compromisso de compra e venda não obsta o pedido de rescisão por parte do promitente comprador, especialmente na hipótese em que a empreendedor se confunde com o credor fiduciário. (TJSP; Apelação Cível 1002294-69.2019.8.26.0704; Relator (a): Ronnie Herbert Barros Soares; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV - Butantã - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/05/2020; Data de Registro: 26/05/2020, grifo nosso). g.n EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. RESCISÃO CONTRATUAL. TUTELA URGÊNCIA. No caso em questão a vendedora se confunde com a credora fiduciária, na tentativa de burlar o sistema de defesa do consumidor, o que não se admite e assim, presentes elementos que evidenciam a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo fica demonstrada a possibilidade da concessão da tutela de urgência. Inteligência do art. 300 do CPC. Decisão mantida. Recurso desprovido.(TJ/SP, AI nº 2086602-91.2022.8.26.0000, 26ª Câmara Direito Privado, Des. Rel. Felipe Ferreira, v.u., j. 28/07/2022, grifos nossos) O instituto da alienação fiduciária nasceu direcionado somente para as instituições financeiras e/ou empresas ligadas ao sistema de financiamento habitacional. Justamente para incrementar a atividade do setor imobiliário, precisamente pela Medida Provisória 2223/2021, posteriormente convertida pela Lei 10.931/2004 (Lei do Bem),  foi estendida a possibilidade de serem celebrados contratos de venda e compra de imóvel com alienação fiduciária entre pessoa física e jurídica, como se depreende da leitura da redação do art. 22 da Lei 9.514, abaixo transcrito: "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1º  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena (....)          Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título." A respeito deste tema, o STJ - Superior Tribunal de Justiça, também reconheceu que é legítima a formalização da alienação fiduciária como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. (Recurso especial provido. Resp 1542275/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, Dje 02/12/2015), veja-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA  SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA."(g.n) Corroborando com tal entendimento, o item 224 do Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, dispõe que: "224. A alienação fiduciária, regulada pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, e suas alterações, é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência da propriedade resolúvel de coisa imóvel ao credor, ou fiduciário, que pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, e não é privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI)."( g.n.) Como se pode verificar, a alienação fiduciária não é privativa das entidades que operam no SFI. Sendo assim, por qual razão estaria o loteador impossibilitado de vender o lote e ao mesmo tempo parcelar o valor para o comprador, com garantia de alienação fiduciária, já que qualquer cidadão pode usar este instrumento para a venda de um imóvel? Como bem lembrado pela Registradora Imobiliária de Assis/SP, Dra. Maria do Carmo R. C. Couto: "É direito das partes escolherem o tipo de contrato de transmissão ou oneração da propriedade que melhor lhes convêm, sendo possível, portanto, a utilização do instituto da propriedade resolúvel mediante alienação fiduciária, prevista no artigo 22 e seguintes da Lei Federal nº 9.514/97." (COUTO, Maria do Carmo R. C. O contrato-padrão de loteamento, as restrições convencionais e a utilização do instituto da alienação fiduciária pelo loteador. Em: http://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=454).g.n Sabemos da grande dificuldade em se conseguir crédito imobiliário para desenvolver loteamentos no país. Os bancos e gestoras da "Faria Lima (SP)" se interessam em financiar projetos de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e não loteamentos (lei 6.766/79). Dentre as inúmeras razões para esse desinteresse, que seriam por si só o tema para mais um artigo, está a falta de conhecimento (e vontade) de sujar o pé de barro para entender a fundo um setor pulverizado nos mais de 5500 municípios brasileiros. De fato, o crédito se restringe a alguns poucos incumbentes que representam uma pequena parcela do mercado.  Já os menores, quando eventualmente acessam algum produto de crédito , é apenas na etapa em que quase todo risco foi mitigado. Mesmo depois de pronto, argumentos comuns como o fato de o lote não resolver diretamente o problema da moradia, que dependerá da construção, para seu uso e gozo, e que, portanto, não é uma "boa garantia", pode ser facilmente refutado.  Lotes bem localizados e bem avaliados podem ser uma excelente garantia.  Seu valor mais acessível, na maioria dos casos mais barato que um carro médio, faz com que um bom lote seja um ativo muito mais líquido, e ademais, não foi fisicamente ocupado. Lembrando, o ciclo do loteamento tem diversas etapas, dentre elas uma das mais arriscadas e tortuosas é o processo de aprovação, e que em alguns Estados como São Paulo, dura cerca de 3 anos, podendo aumentar a depender do tamanho da área. Loteamentos bem estruturados e com estudos de viabilidade adequados, podem representar uma excelente garantia e com um risco menor, já que as margens do setor são consideravelmente maiores em um produto com um ciclo bem mais longo. O loteador, não apenas faz o papel do empreendedor de risco, urbanizando regiões muitas vezes remotas, como também é o agente financiador, por absoluta falta de opção, sendo obrigado a financiar ao comprador final. O problema de moradia no Brasil é iminente. Limitar o direito a garantia para um setor já limitado pelo crédito é um desfavor para a sociedade, ou seja, mais um obstáculo a uma das principais categorias de empreendedores responsáveis pelo crescimento do Brasil. Então por qual razão o loteador não pode figurar como credor fiduciário? Apesar de a lei 6.766 ser excelente para o setor, ela é antiga - data  de 1.979,- muito antes da edição da Lei 9.514/97, que regra a alienação fiduciária de bens imóveis, que inclusive, deveria ter um acréscimo em sua redação para prever que lotes de até R$200.000 (duzentos mil reais) fossem isentos dos custos e dos tributos necessários para o registro  da alienação - moradia de interesse social, o que ajudaria resolver o déficit habitacional no país. Qualquer decisão que venha a determinar a rescisão de um contrato com alienação fiduciária sob argumento de que loteador não pode ser credor fiduciário, além de violar os preceitos do §2º, do art. 5º, da Lei 9.514, afronta os art. 22 retro transcrito, como também os art. 18  da lei 9.514/97. _____________ *Kelly Durazzo é advogada, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados e Presidente da Coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB/SP e Ibradim/SP. *Renata Mathias de Castro Neves, advogada, especialista em Direito Imobiliário Secovi e Direito Tributário - CÉU, membro do Conselho Jurídico AELO, Membro Comissão Loteamento OAB/SP.    *Cleo Groeninga de Almeida é empreendedor, loteador e investidor.  Sócio da CGA Investimentos e Participações e sócio e CRO da Hent Crédito para Loteadores.   
O presente artigo tem como objetivo principal discorrer sobre a aplicação do art. 413 do CC à Lei dos Distratos (lei 13.786/2018), em situações em que o comprador busca reduzir o valor estipulado contratualmente à título de cláusula penal. Dispõe o art. 67-A, §5º, introduzido na Lei n. 4.591/64 que, quando a incorporação estiver submetida ao patrimônio de afetação, a penalidade referida no inciso II do caput poderá ser estabelecida em até 50% da quantia já paga, desde que o distrato ou resolução por inadimplemento absoluto da obrigação tenha como origem o adquirente. Referido dispositivo foi criado justamente pela grande crise pela qual passou o setor imobiliário a partir dos anos de 2013 e 2014 (quando os lançamentos de imóveis novos chegaram a diminuir 56%1), provocada por razões macroeconômicas e também por uma enxurrada de extinções de promessas de compra e venda promovidas pelos adquirentes. Ora, quanto à constitucionalidade da legislação e/ou da validade do próprio dispositivo legal (art. 67-A, §5º), entendemos ser debate plenamente superado, conforme o próprio STJ, já se manifestou sobre o tema, como no REsp 2.023.713/SP, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro2, bem como no caso do AgInt no Resp n. 2.055.691/SP, de relatoria do Ministro Raul Araújo. Sob o tema em análise, no plano dogmático, André Abelha, em seu artigo intitulado "lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal?", chegou à seguinte conclusão: que o art. 413 do CC aplica-se normalmente ao referido art. 67-A, porém, com uma redução da multa para 50%, se comparado com o teto previsto no art. 412 do CC, de 100%3. Dito de forma diversa, para André Abelha, não poderia ser afastada a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/20184. Porém, o mesmo autor ressalta que tal medida é excepcional e que apenas poderá ocorrer quando houver "excesso manifesto"5. Obviamente, fica implícito que o ônus da prova seria do adquirente do imóvel, dado que a lei presumiu a legalidade da multa de 50% da quantia paga, presumindo sua razoabilidade e legalidade e também presumindo o prejuízo experimentado pelo vendedor. Parece-nos claro que a grande problemática existente no presente debate seja a dificuldade de conceituar ou, ao menos, elucidar critérios para uma conceituação de "penalidade manifestamente excessiva"6, indicada no art. 413 do CC. Dito de outra forma, a utilização de conceitos com definições vagas ou subjetivas cria problemas práticos significativos, tanto na seara do direito material quanto processual. É possível identificar que boa parte da jurisprudência sobre esse tema aplica o art. 413 do CC sem a indicação prática dos reais motivos pelos quais a multa seria "manifestamente excessiva". Em outras palavras, o Juízo acaba por não fundamentar a sua decisão, nos termos exigidos pelo art. 489, §1º, do CPC e, também, acaba por não indicar as partes o que seria, efetivamente, um típico caso de cláusula penal "manifestamente excessiva". Dito de outra forma, parece-nos que a fundamentação utilizada em determinado caso poderia ser utilizada em outro, tamanha a ausência de indicadores concretos sobre o que seria uma multa "manifestamente excessiva". Isso tudo provoca um alto grau de insegurança jurídica e subjetividade, com alta probabilidade de que o caso jurídico, na prática, mesmo sem a prova de que a cláusula penal seja "manifestamente excessiva" pelo adquirente, seja revisado, com a redução do seu percentual previsto em contrato. Dito de forma diversa, aquele contrato firmado, de boa-fé, com a plena ciência e concordância das partes com os seus termos e condições, se judicializado, pode ser modificado, sem efetivos e concretos parâmetros para tanto. Essa afirmação pode ser exemplificada em caso paradigmático, julgado pela 28ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP. Trata-se de análise sobre compromisso de compra e venda de imóvel firmado em 2019, portanto, submetido à Lei n. 13.786/2018. No caso, a resolução contratual partiu do adquirente, pelo seu inadimplemento. No mérito, foi debatida a excessividade (ou não) da cláusula penal de 50% sobre o valor já pago, nos termos do art. 67-A, §5º, da Lei n. 4.591/64. Em seu voto, o Desembargador Relator dispôs o seguinte: "Isto não significa, entretanto, que essa cláusula penal não possa, como qualquer outra, à luz da função social do ajuste e sem prova concreta de prejuízo capaz de autorizar retenção dessa envergadura, ser reduzida a patamares não abusivos, sobretudo a partir do caráter principiológico da Lei nº 8.078/90 e do seu status constitucional, como abordei em obra doutrinária"7. Em momento seguinte, o Relator prossegue: "A multa/retenção de 50% sempre foi e continuará sendo abusiva, como inúmeras vezes reconhecido pelo Excelso Superior Tribunal de Justiça, que permitia a flutuação desse componente entre 10% a 25%, como já elucidado". Identifica-se, de pronto, no referido caso, que para o referido magistrado, a prova cabal do prejuízo por parte da incorporadora seria fundamental, ignorando completamente o previsto no art. 416 do CC. Como já mencionado, atribuiu-se o ônus da prova ao vendedor do imóvel, que é o credor da cláusula penal tratada especificamente pela lei. No segundo trecho supracitado, é possível identificar que, o resultado do recurso seria o mesmo, independentemente das provas que fossem acostadas. Quando é mencionado o seguinte trecho: "A multa/retenção de 50% sempre foi e continuará sendo abusiva (...)", fica claro o posicionamento pessoal do magistrado, independentemente do caso apresentado. Esse é o ponto crucial. Casos julgados dessa forma - para além de sua ilegalidade e irrazoabilidade - transmitem à sociedade incentivos econômicos perversos, que podem induzir aos players do mercado a conotação de que a determinação existente no art. 67-A, §5º da Lei n. 4.591/64 não será acolhido pela jurisprudência. E tudo isso feito sem que magistrados atentem, na prática, para as consequências econômicas e sociais de suas decisões recheadas de boas intenções e impregnadas de "justiça social", que seria obrigação legal na forma do art. 20 da LINDB, que se aplica, por analogia, ao direito civil. Nessa esteira, a apreciação jurisdicional do art. 67-A, §5º da Lei n. 4.591/64, em conjunto com o art. 413 do CC, tem carecido de maiores explicações sobre suas consequências práticas! No momento em que se torna impossível atribuir ao caso concreto o mínimo de previsibilidade, aumentamos a judicialização e, consequentemente, os custos de transação às partes contratantes. Essa consequência causada pelo Poder Judiciário é prejudicial à sociedade como um todo, prejudicando a tomada de decisão e diminuindo o investimento privado no ramo da construção civil, que está entre as cinco atividades econômicas que mais empregam no país8. Portanto, os incentivos emanados pelo Poder Judiciário importam e, consequentemente, são balizadores para as tomadas de decisão pelos agentes. Sendo assim, a revisão de cláusulas penais sem qualquer justificativa e apontamento concreto do motivo, parece-nos prejudicial a todo o mercado imobiliário, fazendo com que os preços aumentem de forma desfavorável aos adquirentes. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 20 de junho de 2023. 2 AgInt no REsp n. 2.023.713/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 30/11/2022. 3 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 49. 4 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 47. 5 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 48. 6 Ao comentarem o art. 413 do CC, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery advertem: "Para que se possa chegar à determinação do que seja manifestamente excessiva não se pode, pois, levar em consideração apenas o valor da cláusula penal em confronto com o efetivo prejuízo, já que é da essência da pena o seu valor pode ser, mesmo, maior que o do efetivo prejuízo. Além da análise da proporcionalidade entre o valor da pena e o prejuízo causado, devem ser buscados outros critérios para a aferição da necessidade da redução equitativa da pena pelo juiz, como, por exemplo, o grau da culpa, a função social do contrato e a base econômica em que foi celebrado" (in Código Civil Comentado. São Paulo. RT. 2011, 8ª Ed., p. 529). 7 COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL. Rescisão contratual requerida pelos autores. Possibilidade. Art. 53 do CDC e Súm. 543 do STJ. Ajuste posterior à Lei nº 13.786/18. Retenção reduzida para 25% dos valores pagos. Razoabilidade. Hipótese em que é possível a adoção de critério simétrico àquele usado pelo STJ para vínculos antigos no intuito de reduzir a cláusula penal, como qualquer outra, a patamares não abusivos. Incidência do art. 413 do CC. É impossível admitir um direito adquirido ao abuso.  A multa/retenção de 50% para empreendimentos com regime de afetação de patrimônio sempre foi, e continuará sendo, abusiva. Precedentes específicos da Corte e desta Câmara. Recurso provido em parte.   (TJSP;  Apelação Cível 1018599-32.2021.8.26.0002; Relator (a): Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2022; Data de Registro: 31/08/2022). 8 Disponível aqui. Acessado em 20 de junho de 2023.
quinta-feira, 15 de junho de 2023

Aquisição de imóveis rurais por estrangeiros

Um novo desdobramento no julgamento de duas ações relevantes sobre aquisição de imóveis rurais por estrangeiros gerou grande repercussão: a votação para decidir o ingresso da OAB, por meio de seu Conselho Federal (CFOAB), na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 342 (ADPF 342) e na Ação Civil Originária 2.463 (ACO 2.463). Os casos referem-se ao mesmo tema: a validade e constitucionalidade do parágrafo 1º do art. 1º da lei 5.709/71 (norma que trata da aquisição e arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros). Esse dispositivo determina que, para fins de aquisição de terras por estrangeiros, a empresa brasileira considerada "controlada" por estrangeiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas, estará sujeita às mesmas regras que uma pessoa jurídica estrangeira". A Sociedade Rural Brasileira (SRB) propôs a ADPF 342, sustentando que a publicação da Constituição Federal (CF) de 1988 revogou o art. 1º, § 1º, da lei 5.709/71 e, portanto, a interpretação da Advocacia Geral da União (AGU) expressa no Parecer LA/01 - atualmente em vigor - é equivocada e descumpre preceito fundamental. De acordo com o Parecer LA/01, ao revogar o art. 171 da CF, a Emenda Constitucional 6 de 1995 extinguiu a inconstitucionalidade da lei 5.709/71. Com isso, a equiparação de empresas brasileiras a estrangeiras pode ser considerada constitucional, como determina essa lei (já o artigo 171 da CF considerava como "empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país"). Esse posicionamento, defendido pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), é ainda objeto da ACO 2.463. A ação foi proposta por essas mesmas autoridades contra a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que adotou em suas normas reguladoras da atuação de tabeliães e oficiais de registro o entendimento de que a Lei 5.709/71 está revogada - não haveria, portanto, impedimento para empresas brasileiras controladas por estrangeiros adquirirem ou arrendarem imóveis rurais. Por causa da semelhança nas controvérsias, essas duas ações estão sendo julgadas em conjunto pelo STF. Nesse contexto, em 29 de março deste ano, o CFOAB peticionou nos autos da ADPF 342 e da ACO 2.463 para requerer seu ingresso na condição de amicus curiae. Alegou-se que a matéria é fundamental para defesa da soberania nacional e da ordem constitucional e, portanto, a manifestação do conselho seria relevante. Além disso, por tratar-se de um tema sensível com implicações complexas, o CFOAB requereu, ainda, em caráter liminar, a suspensão: - de todos os processos judiciais que tiverem controvérsia sobre o mesmo tema que a ACO 2.463 e a ADPF 342; e - dos negócios jurídicos que apliquem, sob qualquer forma, o parágrafo 1º do art. 1º da lei 5.709/1971. O ministro André Mendonça, em decisão monocrática publicada no dia 26 de abril deste ano, havia deferido parcialmente o pedido liminar formulado pelo CFOAB. O ministro determinou que, até o julgamento final desses processos pelo STF, ficassem suspensas todas as ações que envolvessem a equiparação a estrangeiro de empresas brasileiras controladas por estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas, para fins de aquisição de imóveis rurais. Além disso, deferiu o pedido do CFOAB para integrar a lide na condição de amicus curiae. Já o requerimento de suspensão dos negócios jurídicos foi considerado desnecessário e, portanto, indeferido, nos termos da decisão do ministro André Mendonça, que acolheu parcialmente os pedidos do CFOAB. Essa decisão, porém, não foi referendada pelo plenário do STF. Em votação que terminou com empate de 5 a 5, o plenário, desfalcado do ministro Ricardo Lewandowski, em razão de sua aposentadoria, optou por não endossar a decisão do ministro André Mendonça. A confirmação da decisão do ministro dependia da aprovação da maioria absoluta do plenário, o que não ocorreu. Diante do empate, nos termos do regimento interno, o STF poderia: - suspender o julgamento até a chegada de novo ministro para desempatar; - ter a votação desempatada pelo voto de qualidade do presidente do STF; ou - aplicar o art. 146 do regimento interno e decidir que, em caso de empate, será negado o pedido pretendido. A Corte, seguindo a tendência dos julgamentos mais recentes, optou pela terceira alternativa. Por conta disso, os pedidos do CFOAB foram negados. Embora o desfecho tenha sido esse, os pedidos da CFOAB não tratavam do mérito das ações e, com isso, a ACO 2.463 e a ADPF 342 seguem em pauta para julgamento definitivo. O acompanhamento do julgamento dessas duas ações é fundamental para entender os rumos dos investimentos estrangeiros em imóveis rurais brasileiros. Caso uma decisão derrube a equiparação das empresas brasileiras a estrangeiras, o processo de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros no Brasil poderá ser simplificado.
A penhora de imóveis objetos de alienação fiduciária para a satisfação de débitos condominiais tem sido alvo de decisões divergentes nos Tribunais de Justiça brasileiros ("TJs"), divergência essa que tem alcançado o Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), como demonstram recentes julgados da Terceira e Quarta Turmas. Em sua origem, a alienação fiduciária de bens imóveis, disciplinada pela lei 9.514/1997, teve o objetivo de reduzir os riscos implícitos na concessão de créditos imobiliários existentes na época1. Nas palavras de Melhim Chalhub2: [...] a Lei 9.514/1997 tem em vista criar as condições necessárias para revitalização e expansão do crédito imobiliário e, partindo do pressuposto de que o bom funcionamento do mercado, com permanente oferta de crédito, depende de mecanismos capazes de imprimir eficácia e rapidez nos processos de recomposição das situações de mora. Nesse cenário, o legislador moldou a sistemática da alienação fiduciária de bem imóvel a partir do instituto do patrimônio de afetação3, blindando o alcance do imóvel para a satisfação de outros créditos, e de mecanismos de execução extrajudicial já existentes. Como resultado, a constituição da nova garantia assentou-se na alienação da propriedade do devedor ao credor em caráter resolúvel, vinculada à condição de pagamento da dívida. Verificada a mora, a excussão é realizada perante o Cartório de Registro de Imóveis, com a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, de modo ágil e simplificado. A divergência dos Tribunais sobre a possibilidade de afetação do imóvel ao pagamento da dívida condominial surge devido ao desdobramento da posse entre credor e devedor e propriedade resolúvel em favor do credor fiduciário, e ao modo como foi disciplinada a responsabilização pelas obrigações de natureza propter rem nesse cenário. Existem três lados a serem observados. No primeiro está o devedor fiduciante, investido em um direito real de aquisição - a propriedade em caráter suspensivo - e da posse direta do imóvel. No segundo, o credor fiduciário, proprietário resolúvel, com poderes restritos e afetados à satisfação de seu crédito, e possuidor indireto do bem. E no terceiro, a coletividade condominial, que precisa arcar financeiramente com a desídia do condômino inadimplente. Os posicionamentos adotados pelos Tribunais se separam em dois principais grupos. O primeiro sustenta a impenhorabilidade do imóvel alienado fiduciariamente para o pagamento de qualquer dívida do devedor fiduciante, inclusive aquelas de natureza propter rem, sob os fundamentos de que (1) o imóvel não compõe a esfera patrimonial do executado e (2) a responsabilidade prevista no art. 1.345 do Código Civil (CC), no caso do credor fiduciário, está limitada pelo artigo 27, §8º, da lei 9.514/19974 e pelo artigo 1.368-B, parágrafo único, do CC5. Alexandre Junqueira Gomide6 acompanha esse primeiro entendimento, destacando a inexistência de solidariedade entre credor fiduciante e devedor fiduciário nas obrigações condominiais, tendo em vista que: (...) na alienação fiduciária, há constituição de direito real de garantia e, assim, a propriedade fiduciária submete-se ao regime jurídico próprio dessa categoria de direito, ou seja, aos artigos 1.419 e seguintes do Código Civil. Nesses termos, segundo o art. 1.419, "o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação". O bem dado em garantia, portanto, tem por objetivo garantir o pagamento da dívida contraída com o credor fiduciário e não com terceiros. Nesse cenário, o condomínio exequente, não localizando outros bens do devedor fiduciante, tem como única opção requerer a penhora do direito real de aquisição do condômino inadimplente (art. 1.368-B do CC), como autoriza o artigo 835, XII, do Código de Processo Civil (CPC)7, que muitas vezes resta infrutífera. Representativo dessa primeira corrente, no REsp nº. 1.731.735/SP, a Ministra Relatora Nancy Andrighi da Terceira Turma do STJ defendeu a penhorabilidade desse direito real de aquisição, afastando a penhora do imóvel, como uma forma de equilibrar os interesses em "jogo", diante da legislação que atualmente se apresenta, afastando, em tese, a proteção indiscriminada do credor fiduciário: "(...)Aparentemente, com a interpretação literal dos mencionados dispositivos legais, chega-se à conclusão de que o legislador procurou mesmo proteger os interesses do credor fiduciário, que tem a propriedade resolúvel como mero direito real de garantia voltado à satisfação de um crédito. Ocorre que a proteção indefinida do credor fiduciário contrasta-se com outro interesse digno de tutela: o interesse dos titulares de créditos gerados pelo próprio bem dado em garantia (a exemplo do IPTU, das despesas condominiais, etc.) que, se não puderem satisfazê-lo mediante a penhora ou excussão da coisa, ficarão desprotegidos. (...) A fim de estancar eventuais choques de interesses porventura existentes, uma solução que se admite é a de que o devedor fiduciante, titular de direito real de aquisição - e que possui valor econômico -, tenha tal direito penhorado pelos demais credores em geral, em especial pelos credores de despesas geradas pelo próprio bem - a exemplo do condomínio quando da cobrança de despesas condominiais". O valor econômico desse direito real é representado pelo valor do financiamento já quitado pelo devedor fiduciante até o momento da penhora, afastando a hipótese de avaliação do imóvel. Neste caso, eventual arrematante se sub-roga na posição contratual do devedor fiduciante, assumindo o pagamento do valor em aberto do financiamento e mantendo intacta a garantia fiduciária, desde que isso constasse de forma expressa no edital de leilão. É o entendimento que encontramos na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Processual. Execução de título extrajudicial. Decisão que reputou imprescindível a avaliação de imóvel. Pretensão à reforma. Na esteira de julgado desta C. Câmara, viável o praceamento dos direitos dos executados sobre o imóvel alienado fiduciariamente, não é necessária a avaliação do bem imóvel na hipótese de penhora dos direitos do executado sobre imóvel alienado fiduciariamente, pois seu valor deve corresponder ao montante que já foi quitado pelo devedor fiduciante. RECURSO PROVIDO.8 O valor recebido pela alienação judicial do direito real, então, é liberado em favor do condomínio exequente e eventual saldo devedor continuará a ser executado em face do antigo condômino, haja vista a sub-rogação dos débitos de natureza propter rem no preço da arrematação (artigo 908, §1º, do CPC9). De acordo com esta primeira corrente, portanto, o imóvel só poderá ser penhorado para pagamento dos débitos condominiais a partir da consolidação da propriedade pelo credor fiduciário, quando este será imitido na posse direta do bem e assumirá responsabilidade solidária pela dívida10. A segunda corrente, por sua vez, sobrepondo os interesses dos condomínios aos dos credores fiduciários, entende que é possível a penhora do imóvel alienado fiduciariamente para o pagamento dos débitos condominiais, tendo em vista a natureza propter rem desses encargos11. Nessa espécie de obrigação, o sujeito passivo não é determinado, mas determinável em razão do vínculo real entre o indivíduo e o bem. Desse modo, segundo Antônio Junqueira de Azevedo, "mudando a coisa de dono, muda a obrigação de devedor. Por isso, também se chamam obrigações ambulatórias"12. Assim, vislumbrando que a razão da lei13 é inserir o imóvel em uma posição de garantia a esses encargos, já que ele sempre estará na esfera patrimonial do sujeito passivo, esta corrente atribui também ao proprietário resolúvel do imóvel a responsabilidade pelo pagamento dos débitos condominiais, restringindo a aplicação das normas do artigo 27, §8º, da lei 9.514/1997 e artigo 1.368-B, parágrafo único, do CC, exclusivamente à relação entre credor fiduciante e devedor fiduciário na determinação do direito de regresso. Outro argumento de alta relevância para essa vertente é a onerosidade que se deposita sobre os demais condôminos que sustentam a inadimplência do devedor fiduciante, através do rateio, de encargos que foram gerados para a manutenção e até mesmo valorização do próprio imóvel. A impossibilidade de penhorar o imóvel e a baixa liquidez dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante tornam a situação do condomínio ainda mais sensível, pois isso faz a situação de inadimplência se arrastar no tempo. Em muitos dos casos analisados, os magistrados e desembargadores destacam exatamente a ineficácia da solução apontada pela Terceira Turma do STJ ao afirmarem o desinteresse dos potenciais arrematantes na aquisição apenas dos direitos aquisitivos, devido a assunção do pagamento do financiamento, que possui um valor, na maioria dos casos, superior ao próprio valor de mercado do bem. Convém consignar que, numa tentativa de promover essa liquidez, é comum,  na prática, o equívoco de penhora dos direitos, com avaliação errônea pelo valor de mercado do imóvel. Isso gera apenas a ilusão de respeito ao posicionamento da primeira corrente e confunde possíveis arrematantes que, diante de editais mal formulados, acreditam estarem comprando a propriedade e não somente os direitos reais do devedor fiduciante. Nessa linha de raciocínio, a Quarta Turma do STJ decidiu favoravelmente ao condomínio Residencial Australis Easy Club, no REsp nº. 2.059.278/SC, permitindo a penhora do imóvel (não somente dos direitos aquisitivos), pois, segundo os Ministros, não seria possível admitir a suspensão do caráter propter rem da obrigação durante a vigência do contrato de alienação fiduciária em detrimento da coletividade condominial. Além disso, eles afirmaram que essa situação deixaria o devedor e o credor fiduciário em uma posição muito confortável, especialmente no caso de adimplência do financiamento, uma vez que a satisfação dos débitos condominiais precisaria aguardar a consolidação da propriedade em favor de um deles.      A sugestão do Ministro Raul Araújo, durante o julgamento retrocitado, foi determinar a citação do credor fiduciário no processo a fim de lhe oportunizar quitar a dívida, resguardando o direito de regresso contra o devedor fiduciante, ou deixar que ocorra a alienação judicial, exigindo o recebimento do seu crédito após o condomínio. É com essa base argumentativa e com o fim de satisfazer a execução e não prolongar o desequilíbrio econômico dos condomínios que os TJs já vinham admitindo a penhora do imóvel e a alienação judicial da propriedade plena pelo seu valor de mercado, se afastando do que é previsto na legislação civil. Penhorado, avaliado e alienado o imóvel, tem-se uma posição unânime pelo pagamento preferencial das dívidas condominiais e, posteriormente, dos credores fiduciários, como apontado na referida decisão da Quarta Turma do STJ. Nos Tribunais, o principal fundamento, neste ponto, encontra-se na aplicação por analogia da Súmula 478 do STJ. E daí surge o problema quanto aos efeitos da decisão do REsp nº. 2.059.278/SC. O que acontecerá se o imóvel penhorado for insuficiente para pagar a dívida do condomínio e o saldo de financiamento do credor fiduciário? Imagine pagar o valor da avaliação do imóvel em primeira praça e ainda ter que arcar com o restante do financiamento do credor fiduciário? O valor ultrapassaria o valor do próprio bem. Por se tratar a arrematação forma originária de aquisição de propriedade, o juiz deverá ordenar a baixa do gravame de Alienação Fiduciária, perdendo o credor fiduciário sua garantia real. Este precisará, assim, buscar a satisfação de seu crédito em desfavor do executado por outros meios. Vide o Julgado da Comarca de Jacareí - SP, processo nº. 0008609-47.2015.8.26.0292, onde ocorreu o quanto citado. Como solução imediata para este debate que pode assombrar a Alienação Fiduciária - a forma mais utilizada de garantia para financiamento imobiliário no país, - lembramos que a atual legislação já prevê que a garantia não se afeta apenas ao financiamento, mas também àquelas obrigações inerentes à operação,  conforme artigo 26, §1º, da Lei nº.  9.514/1997, que inclui no cálculo do valor da dívida o valor das contribuições condominiais.  Detectado o inadimplemento das cotas condominiais, ainda que pagas as parcelas do financiamento, o banco deve excutir a garantia, consolidando a propriedade em seu nome e levando o imóvel à leilão para satisfazer a dívida. Noutro ponto, é também necessário chamar os condomínios à responsabilidade já que, em um país com dimensões continentais, marcado pela disparidade social, cultural e econômica não parece razoável considerar que todos os condomínios possuam uma administração organizada, e imaginar que os processos de cobrança são conduzidos de maneira célere viabilizando a mitigação, no que for possível, das perdas. Neste cenário, seria possível que o entendimento da quarta turma do STJ acabe por premiar a conduta de um condomínio que, por exemplo, venha a executar o débito condominial após cinco anos da constituição da mora, sendo o credor fiduciário obrigatoriamente notificado somente no momento da execução, quando o débito condominial possa comprometer, em caso de penhora, percentual considerável do valor do imóvel, colocando em risco não somente a margem de lucro do credor fiduciário, mas até mesmo o valor principal o crédito emprestado. Desta maneira, atrelar somente ao credor fiduciário o ônus da fiscalização da adimplência das taxas condominiais trará um ônus excessivamente alto para este segmento que impactará diretamente na análise de risco que esses credores farão para os créditos futuros. É importante ressaltar que o crédito imobiliário é uma ferramenta que materializa, em muitos casos, o direito fundamental à moradia constitucionalmente prevista e a decisão jurisprudencial acerca do tema poderá trazer consequências negativas para todo o mercado creditício, que certamente repassará à sociedade os custos do risco de um negócio que possui garantia frágil. Caso o cenário supramencionado venha a ocorrer, as alienações fiduciárias se tornarão mais caras, com incidência maior de juros, ou ainda o setor de crédito imobiliário buscará maneiras mais criativas à persecução do crédito, fazendo com que essa modalidade contratual seja fadada ao desuso como o que ocorreu por muito tempo com as hipotecas. O que se pretende com essa reflexão não é de modo algum uma tentativa de subverter uma obrigação que é propter rem, mas parece razoável e até mesmo benéfico que, para que fique caracterizado a preferência dos créditos condominiais em detrimento dos créditos fiduciários, os condomínios devam notificar o credor fiduciário administrativamente já ao tempo da própria constituição da mora, oportunizando outras maneiras menos onerosas de quitar os débitos condominiais que não a penhora do bem, não somente em sede de execução, quando o risco da penhora já se faz evidente. Seja qual for o entendimento do judiciário sobre o tema, é importante citar que para garantir a segurança jurídica e a eficiência na solução desses casos que tem sido uma crescente, é fundamental que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) assuma o papel de julgar esses litígios em sede de demandas repetitivas. O entendimento dos tribunais deve ser pacificado quanto ao modo que se deve julgar a preferência do crédito fiduciário versus débito condominial e todos os impactos que essa decisão recairá sobre do arrematante, não podendo a distribuição processual ser palco de um verdadeiro "jogo de azar" para os litigantes que poderão ter sucesso ou insucessos em suas demandas a depender do julgador sorteado. A análise em sede de demandas repetitivas permite uma discussão mais aprofundada sobre a questão de direito em si, contribuindo com decisão mais fundamentada e consistente, que servirá de referência em casos semelhantes futuros. Ao estabelecer precedentes e fornecer uma resposta definitiva para questões de direito repetitivas, o tribunal desempenha um papel fundamental na consolidação do sistema jurídico e na promoção da justiça para todos os cidadãos. Por fim, não se pode olvidar que a segurança jurídica é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito e contribui para a estabilidade das relações sociais e econômicas, e é por isso que se faz premente a uniformização jurisprudencial no caso em tela, para que todos os players  tenham previsibilidade e confiança no sistema de Justiça. __________ 1 Disponível aqui. 2 Chalhub, Melhim N. Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário. Disponível em: Minha Biblioteca, (7th edição). Grupo GEN, 2021, p. 305. 3 Art. 1º da lei 10.931/04: Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação 4 Art. 27. da Lei 9.514/97 (...) § 8º Responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) 5 Art. 1.368-B do Código Civil. A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor. Parágrafo único. O credor fiduciário que se tornar proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade, adjudicação, dação ou outra forma pela qual lhe tenha sido transmitida a propriedade plena, passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem. (Incluído pela lei 13.043, de 2014) 6 Disponível aqui. . 7 Art. 835 do Código de Processo Civil. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (...) XII - direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia; 8 TJSP; Agravo de Instrumento 2275311-13.2022.8.26.0000; Relator (a): Mourão Neto; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba - 7ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 30/11/2022; Data de Registro: 30/11/2022 9 Art. 908 do Código de Processo Civil. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências. §1º No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência. 10 No mesmo sentido, temos: REsp 1.731.735 - SP, REsp nº. 2.036.289 - RS, Agravo de Instrumento nº. 2052612-75.2023.8.26.0000 - TJSP, Agravo de Instrumento nº. 2251768-78.2022.8.26.0000 - TJSP, Apelação Cível nº. 1054111-78.2018.8.26.0100 - TJSP. 11 Agravos de Instrumentos nº. 2083690-87.2023.8.26.0000, 2260506-55.2022.8.26.0000, 2010727-86.2020.8.26.000 - TJSP. 12 Restrições Convencionais de Loteamento - Obrigações propter rem e suas Condições de Persistência. Revista dos Tribunais, nº 741, p. 116. 13 Art. 1.345 do Código Civil. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multa e juros moratórios.
quinta-feira, 1 de junho de 2023

O IGPM, a deflação e a locação

O IGP-M, Índice Geral de Preços - Mercado é divulgado mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas.  O indexador é composto de uma cesta básica de três outros índices e com fatores diferentes de peso em sua projeção. O IPA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) que carrega 60%, o IPC (Índice de Preço ao Consumidor), com 30% de participação e finalmente o INCC (Índice Nacional de Custo da Construção), que contribui com 10% na formação do IGP-M.  A explicação acima é apenas pedagógica para demonstrar a sua origem e fatores de pesquisa. O fato é que o IGP-M foi adotado nacionalmente pelo mercado de locação de imóveis há mais de um quarto de século.  Foi no final dos anos 90, que o segmento passou a inserir em seus contratos que a correção dos aluguéis dar-se-ia pela variação acumulada do IGP-M. É provável que a escolha tenha sido pensada, com base no seu desempenho e na melhor forma de proteção do valor nominal diante da corrosão inflacionária. O mesmo IGP-M, que meses atrás, deslocou-se agudamente da inflação medida por outros indexadores, agoniza agora com sucessivos meses de deflação. Com efeito apresenta uma variação negativa de 2,17% no período compreendido entre maio/22 e abril/23.  E a pergunta do momento é: "tendo o indexador variado negativamente nos últimos 12 meses, o preço do aluguel deverá ser deflacionado?"  Em nossa opinião, a resposta é pela impossibilidade da deflação. E o fundamento não deriva da existência de cláusula contratual onde se aplica apenas a variação positiva do IGP-M, como sói acontecer na maioria dos contratos de locação no país.  Também, não pelo princípio da reciprocidade, onde meses atrás o locador aceitou reajustar o aluguel aquém da integralidade do IGP-M, menos ainda em observância as condições de mercado, extremamente aquecido na área residencial.  Estes aspectos contratuais, da relação entre as partes e do mercado, são muito importantes, mas, a resposta pela inaplicabilidade da deflação diagnosticada pelo IGP-M, brota de inúmeros julgados da maior Corte Infraconstitucional no Brasil, ou seja, do STJ (Superior Tribunal de Justiça).  A Corte Especial tratou de equacionar o tema ao admitir que as variações negativas do IGP-M ou de qualquer outro indexador, havidas no intervalo projetado para a correção da obrigação, devem ser computadas, contudo, não ao ponto de engendrarem uma redução no valor nominal da obrigação.  Neste passo, quando os cálculos impuserem um valor negativo, devemos manter o valor nominal do contrato, ou seja, do valor até então dispendido pelo locatário. Confira-se: PROCESSUAL CIVIL E ECONÔMICO. EXECUÇÃO DE SENTENÇA QUE DETERMINOU CORREÇÃO MONETÁRIA PELO IGP-M. ÍNDICES DE DEFLAÇÃO. APLICABILIDADE, PRESERVANDO-SE O VALOR NOMINAL DA OBRIGAÇÃO.1. A correção monetária nada mais é do que um mecanismo de manutenção do poder aquisitivo da moeda, não devendo representar, consequentemente, por si só, nem um plus nem um minus em sua substância. Corrigir o valor nominal da obrigação representa, portanto, manter, no tempo, o seu poder de compra original, alterado pelas oscilações inflacionárias positivas e negativas ocorridas no período. Atualizar a obrigação levando em conta apenas oscilações positivas importaria distorcer a realidade econômica produzindo um resultado que não representa a simples manutenção do primitivo poder aquisitivo, mas um indevido acréscimo no valor real. Nessa linha, estabelece o Manual de Orientação de Procedimento de Cálculos aprovado pelo Conselho da Justiça Federal que, não havendo decisão judicial em contrário, 'os índices negativos de correção monetária (deflação) serão considerados no cálculo de atualização", com a ressalva de que, se, no cálculo final, 'a atualização implicar redução do principal, deve prevalecer o valor nominal'. 2.Recurso especial provido. (REsp 1265580/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/03/2012, DJe 18/04/2012)(grifo no original) A decisão em destaque, da Corte Especial, projetou sob a batuta do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, a tese do Tema Repetitivo 678 do STJ que se assentou, sob a seguinte ementa, publicada em 27/06/2014:  Aplicam-se os índices de deflação na correção monetária de crédito oriundo de título executivo judicial, preservado o seu valor nominal.  Na mesma linha, extraímos do ARESP 942397 sob a relatoria do Ministro Humberto Martins, publicado em 16/08/2016 o seguinte ensinamento:  Ocorre que, de acordo com o entendimento já consolidado pelo e. Superior Tribunal de Justiça, os índices negativos de correção monetária (deflação) apurados no curso do período a ser corrigido devem ser considerados no cálculo de atualização do montante da execução; todavia, no caso de o cálculo final implicar na redução do principal, mediante a aplicação dos índices negativos, deve prevalecer o valor nominal, em respeito ao principio da irredutibilidade de vencimentos. De maneira mais específica a versar claramente sobre aluguel/IGP-M e deflação contundente, trazemos  a irresignação e o posicionamento adotado no EDCL na DESIS no RESP 1608991, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 08/11/2018, nos seguintes termos:  Questionamento:  i)art. 125, I, do CPC/73, pois o valor do aluguel deveria ter sido ajustado para baixo, eis que apontada deflação de (-)0,3915% pelo IGP-M, devendo o aluguel ter sido corrigido de R$634,30 para R$63,82 por mês, sendo devida a restituição ao locatário dos valores pagos a mais  Posicionamento do STJ:  10) No que pertine à minoração do valor do aluguel em face da deflação constatada pelo IGP-M de 0,3915% - art. 125, I, do CPC/73 (item i do relatório), o entendimento pacífico do STJ, firmado perante a Corte Especial, é no sentido os índices negativos de inflação, conhecidos como deflação, devem ser considerados no cálculo relativo ao reajuste do aluguel (assim como outras hipóteses), sendo que, em havendo redução no cálculo final, será mantido o valor nominal do contrato.  A matéria está pacificada e outros julgados mais recentes demonstram inequivocamente a remansosa orientação jurisprudencial: RESP 1901149 Rel. Ministro Og Fernandes, 17/11/2020; RESP 1935768, Rel. Ministro Raul Araújo, 02/06/2021; ARESP 1878.331 Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 18/04/2022. Assim, diante de exaustivos julgados do Superior Tribunal de Justiça e da existência de Tema Repetitivo 678 STJ, ousamos apregoar que os aluguéis, bem como outras obrigações que tenham como indexador o IGP-M, permaneçam com os seus valores íntegros, sem a necessidade de serem deflacionados. Por certo que a opinião nasce do mundo jurídico, mas, nada excludente e sempre recomendável que o valor da locação brote dos parâmetros de mercado. Neste viés, oportuno asseverar que as partes exercitem a negociação com base no bom senso e no diálogo, com o foco na preservação de uma relação equilibrada, harmoniosa, duradoura e mercadológica.
A maior controvérsia sobre o Regime Especial de Tributação (RET) e o Patrimônio de Afetação era (e esperamos que não seja mais) sobre a possibilidade de aproveitamento do RET após a extinção de Patrimônio de Afetação. Isso porque, o RET está vinculado à tributação da receita de venda das unidades decorrentes da incorporação imobiliária, o que pode ocorrer durante a vigência da obra, ou após o seu encerramento, momento no qual haverá a extinção do Patrimônio de Afetação. A questão controvertida, portanto, trata da possibilidade de tributação da receita de venda das unidades pelo RET, mesmo após a conclusão das obras, com a consequente extinção do Patrimônio de Afetação. Este artigo abordará as recentes alterações trazidas pela lei Federal 14.382/2022 que, com o objetivo de sanar as discussões sobre o tema, incluiu os parágrafos 1º e 3º ao art. 31-E da lei Federal 4.591/64 (Lei de Incorporações Imobiliárias) - que tratam sobre o Patrimônio de Afetação e sobre o RET.  Patrimônio de Afetação x Regime Especial de Tributação Nos termos do art. 31-A da Lei de Incorporações Imobiliárias, o Patrimônio de Afetação é baseado na segregação do patrimônio da incorporação (entendido como o terreno e as acessões objeto da incorporação, bem como os bens e direitos a ele vinculados), do patrimônio do incorporador. Por meio da afetação, os bens e direitos da incorporação deixam de se comunicar com bens, direitos e demais obrigações do patrimônio geral do incorporador, de modo que dívidas e obrigações não vinculadas à incorporação não podem alcançar a solvência do empreendimento imobiliário. O objetivo principal da criação do Patrimônio de Afetação é proteger a incorporação contra os riscos patrimoniais de outros negócios da incorporadora1, de modo a garantir que todas as receitas da incorporação sejam direcionadas ao empreendimento, assegurando, assim, a sua conclusão. Trata-se, portanto, de medida que traz maior segurança aos adquirentes e investidores. Com o objetivo de incentivar as incorporadas a afetarem o patrimônio, a legislação tributária instituiu o RET, regulamentado pela lei Federal 10.931/04. Conforme art. 2º, II, desta lei, a afetação do patrimônio é requisito essencial para adesão ao RET. Por meio do RET, a receita de venda de unidades imobiliárias fica sujeita à tributação de 4%. A alíquota de 4% corresponde ao pagamento (i) do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas - IRPJ, (ii) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL, (iii) Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP e (iv) Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS. Esse regime tributário (RET) é aplicável às incorporadoras em caráter opcional e irretratável, enquanto perdurarem os direitos de crédito ou obrigações do incorporador perante os adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Ou seja, mesmo após o término da obra e obtenção do habite-se, a receita decorrente da venda das unidades imobiliárias permanece sujeita ao RET. Em comparação ao Lucro Presumido, o RET é vantajoso, na maioria dos casos, não apenas pela simplificação do recolhimento (alíquota única e conjunta), mas também pela carga tributária total. No Lucro Presumido, a receita de venda de unidades imobiliárias poderá ser tributada por até 6,73% (alíquota efetiva de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS). Além disso, as receitas financeiras e variações monetárias são tributadas diretamente pelo IRPJ e pela CSLL, com alíquota efetiva que pode chegar a 34%. Assim, por mais que o Lucro Presumido seja uma (boa) opção para as incorporadoras, nota-se que a adesão ao RET tende a ser a alternativa mais vantajosa sob o ponto de vista tributário, permitindo uma redução atrativa da carga tributária. Extinção do Patrimônio de Afetação - Desnecessidade de averbação de ato específico Até a entrada em vigor da lei Federal 14.382/22, o texto do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias se limitava a prever quais as hipóteses de extinção do Patrimônio de Afetação. Contudo, a lei não deixava claro se, nas hipóteses previstas no inciso I do mencionado artigo2, ocorreria a extinção automática do Patrimônio de Afetação ou se seria necessário providenciar averbação específica na matrícula imobiliária. Tal omissão abria espaço para interpretação por parte dos oficiais de registro de imóveis, que, por muitas vezes, com fundamento no art. 252 da lei Federal 6.015/733, exigiam que os adquirentes das unidades imobiliárias ou a própria incorporadora promovessem averbação específica na matrícula-mãe ou nas certidões de matrícula autônomas, consolidando a extinção do Patrimônio de Afetação para que, então, somente após esse ato registral, fosse possível realizar novos atos de alienação do imóvel. Isso gerava um ônus para o incorporador e o adquirente, que precisavam arcar com o pagamento de emolumentos. Com a inclusão do parágrafo 1º ao art. 31-E, pela lei Federal 14.382/2022, fica consolidado que não há necessidade de averbação específica de extinção do Patrimônio de Afetação para os casos previstos no inciso I do artigo, bastando, portanto, que seja providenciada a "averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento". Fato é que, na prática, já existiam oficiais do registro de imóveis que entendiam pela desnecessidade da averbação específica da extinção do Patrimônio de Afetação. Contudo, ainda existiam aqueles que mantinham a exigência de averbação específica, o que gerava insegurança para o mercado. Assim, seguindo os objetivos da lei Federal 14.382/22, a entrada em vigor do parágrafo 1º do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias encerra qualquer discussão quanto à necessidade de averbação específica na matrícula do imóvel da extinção do Patrimônio de Afetação, de modo a trazer maior segurança aos adquirentes de unidades autônomas e às incorporadoras, além de evitar procedimentos burocráticos desnecessários, permitindo o encerramento da incorporação imobiliária de forma mais célere. Debate envolvendo o RET e a extinção do Patrimônio de Afetação. Benefícios das alterações trazidas pela lei Federal 14.382/22 Quanto ao RET, apesar de a existência do Patrimônio de Afetação ser condição para adesão a esse regime de tributação, a antiga redação do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias não deixava claro se, com a extinção do Patrimônio de Afetação, ocorreria também a extinção do RET. Esse cenário de ausência de previsão legislativa expressa gerou discussões junto à Receita Federal e, consequentemente, insegurança às incorporadoras quanto à opção e à forma de tributação pelo regime especial.  Na Solução de Consulta Cosit nº 244/14, por exemplo, a Receita Federal proferiu entendimento no sentido de que a extinção do Patrimônio de Afetação impediria a manutenção da incorporadora no RET, como uma aplicação da lógica dos requisitos para adesão ao RET. Ou seja, se o Patrimônio de Afetação é um requisito inafastável para adesão ao RET, não seria possível se manter no RET após a extinção do Patrimônio de Afetação. Nesse sentido, as unidades comercializadas até a extinção do Patrimônio de Afetação (mesmo que os valores financiados fossem recebidos posteriormente) estariam sujeitas ao RET, enquanto aquelas unidades vendidas após a extinção do Patrimônio de Afetação não seriam tributadas pelo regime especial. Fato é que essa discussão deveria ter se encerrado com a inclusão do art. 11-A da lei Federal 10.931/044 por meio da lei Federal 13.970/19, que vincula a vigência do RET até o "recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades". Ou seja, com a inclusão do artigo, estaria claro que, mesmo após a extinção do Patrimônio de Afetação, a receita advinda da venda de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação, independentemente da data de recebimento da integralidade do pagamento, seriam tributadas pelo RET. Porém, como a alteração legislativa só aconteceu em 2019, a Receita Federal adotou o posicionamento de que essa alteração só estaria vigente para "receitas das unidades que compõem o memorial de incorporação e quando auferidas após 27 de dezembro de 2019" (Solução de Consulta Cosit nº 28 de 2022). De acordo com o posicionamento da Receita Federal, o marco temporal da alteração legislativa deveria acontecer, uma vez que a norma não tem natureza interpretativa, sendo impossível sua retroação. Isso porque (de acordo com a Receita Federal) até a edição da lei Federal 13.970/2019 "não se sujeitavam ao RET-Incorporação as receitas decorrentes das vendas de unidades imobiliárias realizadas após a conclusão da respectiva edificação". Assim, a inclusão do §3º ao art. 31-E pela lei Federal 14.382/2022 serviu para esclarecer que a extinção do Patrimônio de Afetação não implica extinção do RET. Ou seja, para fins tributários, a incorporadora não está sujeita às limitações temporais do Patrimônio de Afetação. Essa é uma questão bastante relevante e que impactará os negócios das incorporadoras, na medida em que traz maior clareza e segurança quanto à aplicabilidade do RET. Contudo, e considerando todo o histórico de Soluções de Consulta detalhado acima, apesar de recebido com conforto pelos contribuintes, a alteração do §3º do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias poderá não ser tão bem recebida pela Receita Federal, uma vez que o mesmo posicionamento adotado quando da alteração ocorrida em 2019 pode vir a ser aplicado novamente. Assim, é possível (mas não se pode prever) que a Receita Federal apresente entendimento de que apenas as receitas de venda decorrentes de operações feitas após a publicação da lei Federal 14.382/22 - que tenham ocorrido após a extinção do Patrimônio de Afetação - poderão ser tributadas pelo RET.  A nosso ver, ao contrário do posicionamento da Receita Federal, a inclusão do art. 11-A à lei Federal 10.931/044 por meio da lei Federal 13.970/19, bem como a alteração da Lei de Incorporações, no que diz respeito ao RET, pela lei Federal  14.382/2022, têm sim natureza interpretativa. Isso porque, tais inclusões não criaram regras para aplicação do RET, tão somente esclareceram a adequada interpretação da abrangência de sua aplicação, ou seja: que o RET se aplica em relação a todas as unidades de uma incorporação, independentemente de essas unidades serem vendidas antes ou depois da extinção do Patrimônio de Afetação, ficando toda a receita decorrente da venda das unidades imobiliárias sujeita à tributação pelo regime especial. Apesar dessas considerações, será necessário aguardar o posicionamento da Receita Federal quanto ao tema para se ter maior segurança quanto à tributação, pelo RET, da receita de venda das unidades imobiliárias após a extinção do Patrimônio de Afetação para incorporações que já tenham desafetado o patrimônio antes da vigência da lei Federal 14.382/22. Impactos no setor das incorporações Não há dúvidas de que o objetivo da lei Federal 14.382/2022 foi de desburocratizar procedimentos, reduzir prazos e custos, bem como gerar maior segurança aos adquirentes de imóveis, de modo a estimular o desenvolvimento do mercado imobiliário. Certo é que muitas alterações trazidas pela lei Federal 14.382/2022 visam esclarecer e consolidar, por meio da inclusão de dispositivos nas legislações correlatas, procedimentos que já vinham sendo utilizados no mercado. Nesse sentido, acredita-se que a entrada em vigor desses dispositivos pode gerar um aquecimento do mercado, uma vez que a segurança quanto aos procedimentos ali tratados pode estimular tanto novos investimentos no mercado que gerarão novos empreendimentos, quanto a aquisição de unidades. No mesmo sentido, a garantia de que a extinção do Patrimônio de Afetação não resulta na exclusão do RET permite que os incorporadores tenham maior segurança de utilizar o regime especial na tributação das receitas decorrentes da incorporação imobiliária. Contudo, é importante monitorar se a Receita Federal irá adotar posicionamento restritivo, aplicando a alteração do §3º do art. 31-E apenas para receitas de vendas a partir de 2023. __________ 1 CHALHUB, Melhim Namem - Da incorporação imobiliária - 3ª Ed. revista e atualizada - Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p.66 2 Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela: I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento; [...] 3 Art. 252 - O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.
Não. A resposta é simples e direta. E sequer deveria causar tanta repercussão e desdobramentos. "O direito ambiental é apaixonante, mas ainda é direito". Essa afirmação, que parece óbvia, é o começo do artigo "O Direito Ambiental como Matéria de Paixões: A suspensão da Resolução CONAMA 500 pelo STF e o princípio da legalidade",  na obra intitulada "Princípio da Legalidade no Direito Ambiental"1. Algo absurdo, mesmo sendo absurdo, deve ser esclarecido, sob pena de as pessoas começarem a acreditar que aquilo é correto. No direito Ambiental brasileiro há muita criatividade na criação e/ou interpretação de princípios ou pseudo princípios. E o "princípio"(!) da prevalência da norma ambiental mais restritiva  é um claro exemplo disso. Assim como em qualquer outro ramo do direito regulado pela regra de competência legislativa trazida no art. 24, da Constituição Federal, não é a norma "mais restritiva" que vale. O que vale é a norma geral editada pela União. Se houver alguma lacuna, a norma que a suplementou. Inclusive, na maioria dos casos, se houver uma norma mais restritiva que a outra, essa será inconstitucional. Vejamos. O art. 24 da Constituição Federal é claríssimo ao dizer que compete à União editar normas gerais sobre inúmeros assuntos, e para o que nos interessa, sobre "florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção ao meio ambiente e controle da poluição"2. O mesmo artigo ainda explica que os Estados podem suplementar a legislação federal. E se formos ao art. 30 da nossa Carta Magna, veremos que aos municípios compete legislar sobre assuntos de interesse local, sem jamais contrariar os comandos federais e estaduais. E que bom que isso é assim. Que bom que "a regra é clara". Imaginemos o caos que seria se cada município pudesse, por exemplo, legislar sobre a conservação, proteção, regeneração e utilização do Bioma Mata Atlântica ou mesmo dos outros biomas? Lembremos que esses biomas, segundo a própria Constituição, são patrimônio nacional e não de um ou outro município ou mesmo Estado da Federação. Daí a importância de serem regulamentados por uma norma geral, como é a Lei 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica) ou, na falta desta, por uma norma estadual (competência supletiva), como é o caso da Lei do Cerrado (lei Estadual 13.550/09) no Estado de São Paulo. Se algum município tiver disposições que contrariem essas normas, sendo mais ou menos restritivas, padecerão do vício de ilegalidade e inconstitucionalidade e poderão gerar prejuízos à sociedade. Por isso que a regra constitucional de competência está correta e deve ser respeitada. Cabe à União editar lei geral e não cabe a nenhum outro ente criar normas que contrariem essa regra geral. Sejam essas normas mais ou menos restritivas, em todos os casos serão inconstitucionais. Não desconhecemos correntes doutrinárias e até mesmo decisões judiciais que no pretenso afã de fazer a defesa(!) do meio ambiente, apressam-se em afirmar que uma norma mais restritiva deve sempre prevalecer. Isso é desrespeitar a Constituição Federal. Simples assim. Não se desconhece também, que muitos autores alegam que se existirem duas normas tratando do mesmo assunto (defesa do meio ambiente), a prevalência da mais restritiva se daria em função e em respeito ao disposto no art. 225 da nossa Carta Magna (capítulo do Meio Ambiente). Nada mais equivocado. Se as normas estão válidas, significa que respeitam o dispositivo constitucional que trata do Meio Ambiente. Até porque se fosse uma norma que ferisse os preceitos ambientais e fosse contrária ao disposto no art. 225, seria declarada inconstitucional. Assim, é correto afirmar que a partir do momento que essa norma respeita o "direito material ambiental", a regra de competência trazida pelo art. 24 deverá sempre ser respeitada. Quem interpreta a Constituição Federal de forma não sistêmica, parece esquecer, propositalmente, que preservação e uso sustentável ocorrem quando há segurança jurídica e não desrespeito à Carta Magna do país. Lembremos que ao poder Judiciário é devido verificar a correta aplicação das normas. Qualquer coisa diferente disso é ativismo judicial que não constrói um país justo ou um desenvolvimento sustentável. Assim, ainda que tratando de direito do consumidor, merece aplausos a recentíssima decisão do Órgão especial do TJSP, em que, com brilhantismo, colocou uma pá de cal na pretensa discussão sobre a prevalência de normas mais restritivas: "Não é o fato de a lei municipal ser pior ou melhor, mais ou menos restritiva do que as normas federais ou estaduais vigentes que torna o Município competente para legislar sobre o tema. A competência legislativa exige uma análise prévia à do teor das disposições impugnada, porque, afinal, a entidade política incompetente não pode editar leis válidas, por mais que sejam bem-intencionadas, quaisquer que seja o seu teor"3. Dessa forma, fica claro que o que torna uma lei válida e constitucional, não é ser mais ou menos restritiva, ser pior ou melhor que outra norma, mas sim o respeito à regra constitucional de competência legislativa. Doutrina ou decisões demagógicas ou apaixonadas não trarão proteção ambiental ou desenvolvimento sustentável. Trarão, por outro lado, cenários de ilegalidade e insegurança jurídica. Assim, ainda que o direito ambiental (assim como todas as questões que envolvem meio ambiente) seja apaixonante, é necessário que seja tratado como um ramo do direito e que tanto a atividade legislativa, quanto as decisões judiciais e os doutrinadores, devem respeito, acima de tudo, às normas  constitucionais. Transformar as questões ambientais em um terreno pantanoso e incerto é ruim para todo o sistema. Outros ramos do direito como o imobiliário, urbanístico, infraestrutura e o desenvolvimento sustentável como um todo precisam entender e compreender as questões ambientais. Que as normas que tratam o assunto sejam rígidas, exigentes, mas que sua interpretação seja clara e de acordo com a Constituição. Assim, podemos concluir que nas questões ambientais não é a lei mais ou menos restritiva que vale, mas sim aquela feita com respeito à Constituição Federal. __________ 1 SAES, Marcos André Bruxel e COSTA, Mateus Stallivieri. Obra coletiva, organizada por Vanusa Murta Agrelli e Bruno Campos Silva, Editora Paixão. 2 Art. 225, inciso VI. 3 ADI 2188592-33.2019.8.26.0000, Rel. Des. Damião Cogan.
Introdução A propriedade fiduciária imobiliária foi introduzida em nosso sistema pela lei Federal 9.514/1997 ("Lei do SFI") e estabeleceu naturezas distintas para os direitos do fiduciário e do fiduciante, bem como regramento especial e específico no que se refere ao modo de execução dessa modalidade de direito real de garantia imobiliária, em caso de inadimplemento do fiduciante. Este estudo pretende analisar se o Código de Defesa do Consumidor ("CDC") deve ou não ser aplicado às relações fiduciárias imobiliárias, bem como avaliar a fixação do Tema 1095 pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ") e, especialmente a partir dele, em quais circustâncias deve ou não ocorrer a aplicação do diploma consumerista. O tema relativo à aplicação do CDC aos negócios jurídicos em que é contratada a propriedade fiduciária como garantia real imobiliária não é novo. É preciso fazer a conjugação de determinados elementos para uma melhor interpretação e conclusão sobre ser ou não possível aplicar as regras consumeristas à referida espécie de garantia real fiduciária. Alguns autores afirmam que se deve aplicar o CDC às relações jurídicas decorrentes da alienação fiduciária de coisa imóvel, em razão da expressa previsão contida no art. 53 da lei Federal 8.078/19901. A leitura do dispositivo legal referido indica expressamente a aplicação do CDC às garantias fiduciárias e declara nulas as cláusulas que estabeleçam, nas situações de resolução contratual por inadimplemento do devedor consumidor, a perda total das parcelas pagas ao credor. Há, no aludido texto normativo, referência direta à alienação fiduciária em garantia, geralmente instituída nos contratos de compra e venda definitiva de imóveis apoiados em um segundo negócio jurídico de financiamento concedido pelo vendedor ou por um terceiro (instituição financeira, por exemplo) a ser pago pelo comprador em prestações sucessivas. Eduardo Arruda Alvim2 destaca que o quanto estipulado pelo caput do art. 53 já seria inegavelmente nulo de pleno direito pela regra geral contida no inciso IV do art. 51 do próprio CDC, mas o legislador, na opinião do autor, ao especificar a regra da proibição das perdas de todas as prestações ou do decaimento, pretendeu evitar controvérsias nas interpretações de tais situações, provavelmente pela recorrência do tema no cotidiano das relações de consumo. José de Mello Junqueira3 afirma que inexiste qualquer antinomia entre o art. 53 do CDC e as disposições da Lei do SFI, especialmente em relação ao § 2º do art. 27. Já para Cláudia Lima Marques4, os contratos decorrentes da Lei do SFI estão incluídos no campo de aplicação do CDC. Registra expressamente a autora: Para o consumidor, parece-me, salvo melhor juízo, altamente prejudicial a criação desta nova base de direito real (propriedade fiduciária de imóvel), pois a possibilidade de alienação fiduciária da 'sonhada casa própria' beneficia desnecessariamente o fornecedor-credor, ao evitar o atual trâmite judicial exigido para as hipotecas5.  A autora deixa evidente sua preocupação com a celeridade do procedimento extrajudicial. Chega a afirmar que o credor tem um benefício desnecessário ao não utilizar o trâmite judicial regido pelo Código de Processo Civil nas execuções hipotecárias. Não entendemos que o procedimento judicial da execução hipotecária represente maior segurança jurídica ao devedor. Este, na execução da propriedade fiduciária, possui ferramentas jurídicas suficientes para garantir sua defesa, pois poderá desde purgar a mora perante o registrador imobiliário, usar seu direito de preferência até o segundo leilão ou se valer do acesso ao Poder Judiciário em qualquer etapa da execução da garantia fiduciária, se for o caso, conforme garantia constitucional de acesso à justiça. Vale consignar que, mesmo no âmbito da execução judicial, o devedor não tem asseguradas garantias semelhantes, a não ser pela via dos embargos. No processo de execução o devedor é chamado para pagar a dívida e não para contestar o direito expresso no título executivo. O argumento de que o trâmite judicial exigido para a execução das hipotecas é garantia de segurança ao devedor parece não ser suficiente ao mercado atual, pois pensar que o fator lentidão representaria segurança pode, em contrapartida, acarretar injustiças ao credor na recuperação do seu crédito. Ademais, como dito, não sobra ao devedor, para exercer o seu direito de defesa na execução forçada, outras alternativas além do recurso de embargos, o qual dependerá, para ter efeito suspensivo, de prova de que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes (CPC, art. 919, § 1º). É preciso lembrar que a própria execução hipotecária foi alterada para imprimir maior celeridade na recuperação do crédito. A lei Federal 5.741/1971, entre outras alterações, permite a suspensão da execução somente mediante prova de pagamento da dívida feita em sede de embargos. Mesmo na execução judicial da garantia real hipotecária, pretendeu-se diminuir o tempo para satisfação do crédito. Nesse contexto, importante analisar se as disposições do CDC devem ou não ser aplicadas às relações fiduciárias imobiliárias. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Esse dispositivo legal estabelece que nos: [...] "contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado". 2 ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel de; ALVIM, Thereza; ALVIM, Eduardo Arruda Alvim; MARINS, James. Código do Consumidor comentado. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 1995. p. 261. 3 JUNQUEIRA, José de Mello. Alienação fiduciária de coisa imóvel. São Paulo: ARISP, 1998. p. 51. 4 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. São Paulo: RT, 2019. p. 493. 5 Importa destacar, também, a posição adotada por Oliveira Yoshikawa, da qual discordamos, no sentido de que a consolidação da propriedade no fiduciário, em caso de inadimplemento do fiduciante, por se desenvolver em mecanismo extrajudicial, tem natureza de autotulela, pois não apresenta o efetivo controle de um terceiro com imparcialidade que, no caso, seria o registrador imobiliário. Não concordamos com essa posição, pois, além de o fiduciante ter acesso ao Poder Judiciário a qualquer momento, o procedimento de alienação extrajudicial está exaustivamente previsto na Lei do SFI, do qual o fiduciário não poderá se desviar se quiser garantir uma perfeita e tranquila execução da garantia que contratou. Ademais, no Código de Processo Civil, em especial pela redação dada aos arts. 825, II e 879, I, é possível notar que o legislador pretendeu possibilitar ao credor, antes da venda em hasta pública (venda forçada), a alienação por iniciativa particular, o que demonstra conformidade de entendimentos do legislador entre os textos legais, pois a alienação extrajudicial que é feita nos termos da Lei do SFI é considerada uma alienação privada. OLIVEIRA YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de. Execução extrajudicial e devido processo legal. São Paulo: Atlas, 2010. p. 40.
No dia 28 de junho de 2022, entrou em vigor a lei 14.382, que consolidou e detalhou o Sistema Eletrônico de Registros Públicos ("Lei do SERP"), declaradamente voltada aos objetivos de modernizar e simplificar os procedimentos registrais relativos aos atos e negócios jurídicos previstos na lei 6.015/73, bem como as incorporações imobiliárias disciplinadas na lei 4.591/64. Em meio a várias novidades e alterações produzidas nas duas normas citadas, dedica-se o presente artigo a tratar sobre o controverso regime condominial especial fundado na alínea "i" e nos §§1°-A e 15 do art. 32 da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias1. Todavia, antes de penetrar na matéria proposta, cumpre trazer a lume um famoso enigma de lógica, de autoria desconhecida (ou, ao menos, de muito difícil identificação), que servirá de fio condutor ao raciocínio a ser desenvolvido neste trabalho. Pois bem. Se 6 homens levam 6 dias para cavar 6 buracos, quanto tempo apenas 1 deles precisará para fazer meio buraco? As pessoas surpreendidas pela questão, em geral, recorrem, instintivamente, a dois expedientes para tentar chegar à resposta correta: alguns imaginam que possa existir algo de errado na construção linguística da pergunta, enquanto outros se apegam a cálculos aritméticos pelo sistema de regra de três. Entretanto, a resposta é muito mais simples, direta, prescinde de qualquer conta matemática e está bem à frente dos olhos: o homem executaria a tarefa em poucos segundos, uma vez que não existe "meio buraco". Qualquer cavidade realizada, mediante um sutil toque da pá contra a superfície de um solo, já constitui um buraco. Embora aspectos como profundidade, largura e formato possam variar, em toda fissura traçada sobre o chão está presente uma unidade completa de buraco. Com o advento da Lei do SERP, os §§1°-A e 15 do art. 32 da lei 4.591/64 passaram a dispor que o registro do memorial de incorporação sujeita as frações de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, mediante ato registral único. À vista desse incremento legislativo, dois tipos de reações eclodiram no ordenamento brasileiro. De um lado, sustenta-se que o legislador criou nova modalidade condominial, de duração transitória, cujo registro não afasta a necessidade de se efetuar uma segunda inscrição, para definitiva constituição do condomínio edilício após o término da construção e expedição do habite-se pelo Município. Essa posição conservadora encontra arrimo no Tomo II das Normas de Serviço de Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (antes de sua alteração pelo Provimento CGJ nº 07/2023)2, com fundamentos na impossibilidade de se atribuir matrículas autônomas a unidades sem existência física consumada e no receio de impactos negativos nos casos em que não aconteça a conclusão integral das obras. Filiam-se à corrente Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro3, além de Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce (que, para reforçar a diferença frente ao direito real sobre prédios de unidades prontas e acabadas, batizaram a figura com o nome de condomínio protoedilício)4. Na via oposta, Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa afirmam que "a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da lei 4.591/1964"5. Esclarecem ainda que a bipartição entre um condomínio temporário e outro definitivo vai de encontro às finalidades de simplificação e redução de custos invocadas no art. 1° da Lei do SERP6. Como base normativa a esse segundo entendimento, citam-se dispositivos da Parte Extrajudicial do Código da Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, que, mesmo antes da Lei do SERP, autorizam os registradores a abrirem, de ofício, matrículas individualizadas para unidades ainda não construídas desde o registro do memorial de incorporação do empreendimento em curso, aproveitando as mesmas inscrições, a posteriori, quando da averbação de habite-se e da certidão de conclusão das obras7. Com as mais devidas e respeitosas vênias aos adeptos da primeira compreensão, as formulações para se desdobrar o fenômeno condominial em duas estruturas jurídicas e ainda lhe atribuir nome específico para fins de demarcação conceitual remetem aos esforços daqueles que tentam decifrar o desafio do "meio buraco" mediante sistemas matemáticos, regras de três ou subterfúgios linguísticos. Também aqui, verifica-se certa inclinação, por instinto, a se buscar soluções complicadas para uma questão cuja resposta se revela elementar. Ora, tal como não existe metade de um buraco, a Lei do SERP não instituiu dois tipos de condomínios nas incorporações imobiliárias, de modo que o regime condominial especial a que alude o §1º-A do art. 32 da lei 4.591/64 representa a constituição antecipada do mesmo condomínio edilício, que se deflagra sob a forma de frações ideais de terreno e, mediante incidência natural do princípio da acessão, assume o aspecto permanente de prédio com unidades fisicamente construídas. Em interessante artigo publicado nesta sede, Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce indicam pontos que consideram divergentes entre o por eles denominado condomínio protoedilício e a figura condominial edilícia clássica, quais sejam, respectivamente: (i) a dispensa e a exigência de edificação física; (ii) representações por comissão de representantes e por síndico; (iii) criação mediante registro da incorporação e de ato institutivo específico no Cartório de Registro de Imóveis; (iv) objetivos de proteger titulares de futuras unidades contra intercorrências no andamento das obras e de regulamentar a interação entre condôminos no contexto de um prédio já em atividades cotidianas; (v) extinções por desistência do incorporador e somente na hipótese de ruína sem reconstrução8. Obedecida a ordem de apresentação dos argumentos, procede-se à sua desconstrução, a começar pelo pressuposto da existência física da edificação pronta e acabada. Primeiramente, urge sinalizar que o caput do art. 8º da Lei nº 4.591/64 reconhece, desde a sua redação original, condomínio edilício "em terreno onde não houver edificação". Nada obstante, com a edição da Lei nº 13.465/2017, ao Código Civil fora acrescido o art. 1.358-A, que chancela legislativamente o condomínio de lotes, aplicando-se-lhe, no que couber, as disposições de condomínio edilício dos arts. 1.331 a 1.358 do diploma cível. De acordo com conceito extraído dos §§ 2º e 4º do art. 2º da Lei nº 6.766/79 (parcelamento do solo urbano), lotes são "espaços destinados a edificação", i.e., áreas que não contêm nenhuma construção ou, quando muito, apenas infraestrutura básica e obras inacabadas. Tal definição igualmente ilustra o vazio total ou parcial presente nas frações ideais e acessões sobre as quais recai o regime condominial especial do art. 32, §1º-A, da Lei nº 4.591/64. Isto posto, se o legislador inequivocamente dotou o condomínio de lotes de natureza edilícia (art. 1.358-A, §2º, I, do CC), a manifesta similitude impõe que se atribua o mesmo perfil jurídico ao instituto decorrente da Lei do SERP. Afinal, conforme ensina André Abelha: "a única diferença em relação a um prédio de apartamentos é que todas as unidades imobiliárias são lotes. Como poderiam ser apartamentos, ou lojas, ou casas, ou misto, e nada disso alteraria a natureza jurídica desse direito real"9. Logo, se o agrupamento de lotes tem caráter edilício, o mesmo se aplica às frações ideais de terreno e acessões enunciadas no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64. Por sua vez, os contrastes exibidos nos itens (ii), (iii) e (iv) acima ilustram meras filigranas formalistas e não têm o condão de determinar que um dos condomínios tenha caráter edilício e o outro não. Basta observar que, com diferenças de estrutura jurídica flagrantemente mais acentuadas, a multipropriedade10 e o condomínio urbano simples11 não deixaram de ser classificados como espécies do gênero edilício. Já a separação dos momentos de instituição depõe contra os propósitos da Lei do SERP - pois aumenta a burocracia registral, ao invés de diminuí-la - e, ao fim e ao cabo, desemboca em registros realizados no mesmo fólio, qual seja o Cartório de Registro de Imóveis competente. No que tange aos objetivos citados por Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce, embora desiguais, eles não se mostram mutuamente excludentes, pois o mesmo instituto jurídico, considerado de modo unitário, pode, em uma primeira fase, salvaguardar direitos de promitentes adquirentes e, no estágio da conclusão das obras em diante, permanentemente disciplinar os interesses coletivos e individuais dos condôminos. São situações que se somam, e não se repelem. Com relação às hipóteses do item (v), não é propriamente a desistência do incorporador, tampouco a ruína da edificação, que causam, de per si, a extinção dos condomínios em estudo. O direito real finda quando, em adição a esses fatos: (a) o conjunto de promitentes adquirentes, mediante deliberação em assembleia, resolve não dar continuidade à construção interrompida e liquidar eventual patrimônio de afetação instituído para garantir o empreendimento; ou (b) os condôminos decidem, também por votação assemblear, não reconstruir o prédio e promover alienação do terreno, distribuindo os recursos financeiros auferidos de acordo com a divisão do solo em frações ideais. Nota-se, portanto, que o término efetivo de ambas as figuras condominiais repousa na decisão da comunidade de titulares pela sua liquidação, tendo-se assim mais um componente a evidenciar que o art. 32, §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 retrata, na verdade, uma situação unitariamente integrada ao condomínio edilício consagrado nos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil. Refutadas as premissas suscitadas para balizar a tese de que a Lei do SERP teria criado um condomínio preliminar de natureza e existência distintas às do empreendimento plenamente edificado, cumpre demonstrar que, no momento do registro do ato de incorporação, o acervo de frações ideais e acessões contemplado no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 já dispõe de todos os elementos essenciais necessários à caracterização do condomínio edilício que virá a se materializar quando da integral conclusão das obras em curso na incorporação imobiliária12. É o que se passa a fazer, ponto a ponto, considerando o total de oito elementos fundamentais à constituição dos condomínios edilícios, que se subdividem em três categorias (estruturais, formais e distintivos13). A) Elementos Estruturais A.1) Conjugação de partes de domínio exclusivo com áreas de propriedade comum No §1º do art. 1.331 do CC, o legislador lança mão da expressão "partes suscetíveis de utilização independente", citando apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas. Em seguida, no §2º, faz referências ao solo, estrutura predial, telhado, rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, bem como às demais partes de utilização comum no edifício. Trata-se de dois elencos exemplificativos (numerus apertus14) e, portanto, abertos para admitir livremente quaisquer outros componentes, inclusive frações ideais e acessões destinadas ao futuro uso privativo de seus titulares e em comunhão destes com os demais promitentes adquirentes da edificação em obras15. Afinal, inexiste determinação, no texto legal, de que as partes da edificação devam corresponder a construções prontas, acabadas e com habite-se expedido. A.2) Existência de frações ideais sobre o solo e as áreas comuns O próprio objeto material contido no condomínio do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, considerado de per si, já atende a este pressuposto, pois se trata de direito real que recai sobre frações ideais do terreno e respectivas acessões. No tocante à sua ligação com os módulos individuais de cada titular, dispõe o art. 29, caput, da Lei nº 4.591/64 que a incorporação envolve "frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial". A norma, sem modificação textual pela Lei do SERP, sempre deixou clara a existência do condomínio edilício mesmo quando não concretizadas as obras, mas já iniciada a incorporação mediante registro do memorial. A.3) Rateio de despesas ordinárias e extraordinárias relativas às áreas comuns É equivocada a visão de que o dever de pagar contribuições relativas ao condomínio edilício só existe quando se tem uma edificação fisicamente pronta e acabada16. Ora, contribuir, no contexto predial, significa arcar, na proporção das frações ideais titularizadas, com despesas de todas as ordens relativas às partes de uso comum do conjunto imobiliário em regime condominial. É claro que, na realidade de um terreno vazio, não se haverá de cogitar, por exemplo, a partilha de custos com funcionários para trabalharem em uma portaria que sequer existe. Contudo, aquisições de materiais e de mão de obra necessários à construção do prédio, a despeito de gerenciadas pela incorporadora, formam um custo total de obras que é distribuído para pagamento por cada promitente comprador das futuras unidades (atuais titulares de frações ideais) dentro das cláusulas de contratos de promessa de compra/venda na planta. Novamente, ainda que por um modus operandi peculiar, verifica-se, já no condomínio formado com o registro do memorial de incorporação, um rateio de despesas comuns do empreendimento entre os coproprietários, à razão das frações ideais sob propriedade de cada um deles. Assim como no prédio finalizado com emissão do habite-se, aplica-se, desde as origens de sua construção, a obrigação insculpida no art. 1.334, I, do CC, justamente para evitar que, já no momento do parto, o condomínio edilício recém-criado encampe enriquecimento sem causa, em afronta ao art. 884 do CC17. B) Elementos Formais B.1) Ato Constitutivo De acordo com o art. 1.332 do CC, o condomínio edilício é instituído por ato entre vivos ou testamento, de que devem constar: (i) discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas umas das outras e das partes comuns; (ii) determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, com relação ao terreno e às partes comuns; e (iii) o fim a que as unidades se destinam. Nesta senda, urge anotar que a Lei do SERP adicionou uma nova alínea "i" ao caput do art. 32 da Lei nº 4.591/64, introduzindo o seguinte requisito à estrutura documental do memorial de incorporação: "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão". Com esse incremento, o memorial passou a comportar exatamente o mesmo conteúdo mínimo exigido do legislador à validade do ato constitutivo do condomínio edilício totalmente erigido. Desta feita, em prestígio à praticidade almejada pelo SERP, conclui-se que o ato da incorporação já carrega, dentro de si, aptidão para constituir o condomínio edilício, mediante registro único, consoante preconiza o novel §15 do art. 32 da Lei nº 4.591/6418. B.2) Registro no Cartório de Registro de Imóveis Trata-se da solenidade por excelência exigida à instituição de direitos reais sobre bens imóveis no ordenamento jurídico brasileiro (art. 1.227 do CC). Consoante o art. 1.332, caput, do CC, o nascimento do condomínio edilício depende do registro de seu ato constitutivo no Cartório de Registro de Imóveis, condição esta que também é imposta, pelo art. 32, caput e §1º-A, da Lei nº 4.591/64, para criação do regime condominial especial enunciado a partir da Lei do SERP. A igualdade é absoluta, reforçando, mais uma vez, que os dispositivos se referem a um mesmo e unitário condomínio edilício. B.3) Convenção Condominial No tocante a esse instrumento obrigatório para todos os condomínios do tipo edilício19, o art. 9º da Lei nº 4.591/64 o descreve como ato normativo que deve ser elaborado, indistintamente, pelos integrantes de unidades autônomas em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas. Além de reconhecer a qualificação das frações ideais e acessões como unidades independentes, o dispositivo esclarece que, mesmo ausentes módulos prontos e acabados, a obrigação de produzir uma convenção já se faz exigível, demonstrando que o condomínio edilício, a se perpetuar com o fim das obras, existe sobre a terra nua ou parcialmente edificada. C) Elementos Distintivos C.1) Caráter permanente do estado de indivisão da coisa Para análise correta deste requisito, é necessário esclarecer a delimitação de seu objeto. A permanência a que se alude aqui não diz respeito à indissolubilidade da estrutura física do prédio, mas sim ao estado de indivisão jurídica do imóvel20. É inegável que a situação condominial sobre frações ideais e acessões possui um perfil transitório, chegando a termo em algum momento, quer por finalização da construção integral do prédio, quer porque os promitentes adquirentes, em condomínio, destituíram o incorporador e optaram por liquidar o empreendimento ao invés de substituir o destituído ou assumir, diretamente, os custos e a gestão necessários à continuidade das obras. Mas, durante todo o período em que a figura insculpida no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 subsistir, o estado de indivisão sobre as frações ideais conjugadas de áreas privativas e de uso comum será indissolúvel. Nenhum promitente comprador poderá demandar, em juízo, a cisão de sua quota parte em relação às dos demais adquirentes de quinhões do terreno a ser edificado. Na verdade, a transitoriedade se deve ao fato de o regime condominial especial consagrado pela Lei do SERP consistir em um estágio interno à estrutura jurídica do condomínio edilício, e não a instituto independente e dissociado do prédio pronto e acabado. C.2) Inaplicabilidade de direito de preferência Determina o §1º do art. 1.331 do CC que as partes de utilização independente do condomínio edilício poderão ser alienadas e gravadas livremente pelos seus proprietários. Como o §3º da mesma norma define que as frações ideais sobre o solo e as áreas comuns da edificação são inseparáveis de tais unidades privativas, a liberdade alcança, na totalidade, a estrutura dos condomínios edificados. No mesmo diapasão, o §1º-A do art. 32 da Lei nº 4.591/64 investe o incorporador e os futuros adquirentes da faculdade de dispor ou onerar as suas frações ideais, a despeito de prévia anuência dos demais condôminos. A se interpretar as permissões incondicionadas como dispensas à obrigação de conceder prelação aos demais consortes antes de alienar a unidade a terceiro, constata-se outra igualdade, já que, em ambos os cenários, não há direito de preferência assegurado na relação condominial, característica marcante da modalidade edilícia. Entretanto, questiona-se o acerto técnico dessa leitura. Mais correta parece a visão segundo a qual a ausência da prerrogativa decorre de um silêncio eloquente do legislador brasileiro, pois sempre que considerou a preempção cabível ele o declarou expressamente21.  Isto posto, tanto os arts. 1.331 a 1.358 do CC, quanto a Lei nº 4.591/64 (com as modificações inseridas pela Lei do SERP), foram omissos em relação a um eventual dever de conferir prioridade a outros condôminos no ato de disposição da unidade construída ou da fração ideal de terreno ainda não edificada. À guisa desse comparativo pormenorizado, salta aos olhos que todos os elementos essenciais de um condomínio edilício se aplicam, embora com algumas particularidades, mas sem exceção, ao regime condominial especial anunciado pelo art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64. Evidencia-se, assim, que as normas introduzidas pela Lei do SERP não criaram uma nova espécie jurídica, porém marcam a antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício que adquirirá sua forma física definitiva quando concluídas as obras contratadas em sede de incorporação22. Ademais, a interpretação sistemática de dois dispositivos da Lei nº 4.591/64, com as alterações que lhes foram implementadas pela Lei do SERP, fortifica a tese de que a ratio do legislador foi mesmo a de adiantar a constituição do condomínio edilício ao registro do instrumento de incorporação no fólio real. Ao mesmo tempo em que a Lei do SERP suprimiu do texto do art. 44 o trecho "para efeito de individualização e discriminação das unidades", passou a prever, na alínea "i" do caput do art. 32, que o discrímen e a caracterização dos módulos imobiliários deverão ocorrer em documento integrante do memorial da incorporação. Deslocada a definição física das áreas privativas e comuns conjugadas - ainda que representada na forma de projeções aritméticas sobre a terra nua - para o ato incorporador, modificou-se a natureza jurídica do habite-se, cuja averbação passa a gozar de caráter complementar e confirmatório de um direito real de copropriedade previamente existente e instituído. É essa a posição amparada, dentre outros23-24, por Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa, in verbis: [...], pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação25. Por derradeiro, repita-se que a deflagração do condomínio edilício desde o registro do ato incorporador contendo a especificação das frações ideais é consequência inerente da aplicação da regra geral das acessões em relação às propriedades imobiliárias26, fundada no preceito romano superficies solo cedit. Desta feita, os titulares das partes correspondentes a um terreno vazio, além de atuais donos do solo, tornar-se-ão, por automático efeito da lei (arts. 1.253 e 1.255, caput, do CC), proprietários de todas as construções que forem concretizadas nas referidas áreas desocupadas. Ante todo o exposto, pela dicção do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, em interpretação sistemática com os demais dispositivos do mesmo diploma e dos arts. 1.331 a 1.358 do CC, insta concluir que: (i) o registro do memorial de incorporação no Cartório de Registro de Imóveis representa uma antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício; e (ii) tal constituição do direito real será ratificada e complementada pela averbação do habite-se, expedido após a finalização das obras de construção, cuja função será somente a de atestar a transformação física de propriedades preexistentes (frações ideais de terreno vazio convertidas em unidades autônomas prontas e acabadas). Sublinhe-se que as constatações acima recaem apenas sobre os condomínios edilícios instituídos por meio do negócio jurídico de incorporação imobiliária, conforme Título II da Lei nº 4.591/64 (arts. 28 a 68). Malgrado sejam raridade no mercado atual, os arranjos condominiais edilícios estabelecidos de outras formas (e.g., partilha de imóvel em unidades autônomas por disposição testamentária ou acordo entre herdeiros em sede de inventário, construção financiada diretamente pelos proprietários de um terreno sem contratação de incorporador), dada a ausência de memorial de incorporação, continuam a depender da elaboração do ato institutivo específico do art. 1.332 do CC e seu registro no fólio real. A Lei do SERP, portanto, não revogou, nem inutilizou o referido dispositivo da lei geral civil. Sem embargos, cumpre advertir que a antecipação do momento de constituição do condomínio edilício sob regime de incorporação imobiliária, promovido pela Lei do SERP, não precisa gozar de eficácia plena e absoluta, podendo o legislador ressalvar a produção de alguns efeitos para empreendimentos na fase final, quando consumada a plena construção e expedido o habite-se. De um lado, defende-se que, desde o registro do memorial, seja reconhecida a existência de um condomínio edilício para mitigar a responsabilidade econômica dos promitentes adquirentes no contexto de uma hipoteca instituída pelo incorporador como garantia à obtenção de financiamento para viabilizar a construção do próprio prédio em comento, acionando a proteção assegurada pelo art. 1.488 do CC27. Na outra ponta, caso venha a ser promulgado o PL nº 3.461/2019 e reconhecida a atribuição de personalidade jurídica à comunidade de titulares de unidades nos condomínios edilícios, haja vista que a perenidade é conditio sine qua non à configuração de uma pessoa jurídica de direito privado no ordenamento brasileiro, tal efeito só deve ocorrer depois de pronto e acabado o edifício, haja vista a inconteste transitoriedade que caracteriza o regime condominial instituído na forma do art. 32, "i", §§1º-A a 15, da Lei nº 4.591/6428. O regime condominial especial suscitado pela Lei do SERP, portanto, não representa uma figura inédita e autônoma criada pelo legislador brasileiro, em duplicidade ao condomínio que se forma quando da conclusão das obras. O arranjo condominial é uno e indiviso, desde quando composto tão somente por frações ideais vazias de construções, pelo que a nova norma apenas antecipa a constituição do direito real para o momento inicial do negócio de incorporação imobiliária. Dito isto, observa-se que o registro do memorial incorporador no Cartório de Registro de Imóveis produz resultado igual ao do primeiro toque da pá sobre a superfície do solo. Afinal de contas, embora ainda se tenha acabamento a realizar, tanto o buraco, quanto o condomínio edilício já existem. Inteiros, e não pela metade. __________ 1 Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos:  i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão; § 1º-A. O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos. § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.  2 221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas. 3 "Este regime condominial especial, congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro" (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da lei 14.382/22. Atualizado em 18.08.2022. Disponível aqui). 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Publicado em 23.01.2023. Disponível aqui. 5 CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella. A instituição do condomínio edilício pelo registro da incorporação. Publicado em 27.01.2023. Disponível aqui. 6 Ibidem. 7 Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas. § 1º. Com o registro da incorporação imobiliária, a qualquer tempo é facultado ao incorporador requerer a abertura de tantas matrículas quantas sejam as unidades decorrentes do registro da incorporação realizada, entendida aí a descrição da futura unidade autônoma. 8 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit. 9 ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): o condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Publicado em 09 ago. 2017. Disponível aqui. 10 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p.109-110. 11 ALLEVATO, Guilherme Cinti. "Novos condomínios" e a multipropriedade imobiliária: da comunhão do solo à partilha da unidade no tempo. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. 20 anos do Código Civil: relações privadas no início do século XXI. Indaiatuba, SP: Ed. Foco, 2022, p.402. 12 Nesse mister, lecionam Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa: "Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, "i", §1º-A, da Lei 4.591/1964 e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade". (CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit.). 13 Os elementos estruturais dizem respeito aos componentes que permitem identificar a situação jurídica de direito real qualificada como condomínio edilício. Os elementos formais congregam o conjunto de documentos e de procedimentos necessários à efetivação do arquétipo jurídico apurado na categoria estrutural. Por fim, os elementos distintivos consistem nos fatores que diferenciam a modalidade edilícia do condomínio do tipo geral ou voluntário (arts. 1.314 a 1.330 do CC). 14 Ao comentar sobre os §§1º e 2º do art. 1.331 do CC, Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Renteria esclarecem que os dois parágrafos exemplificam, respectivamente, as unidades autônomas e as partes comuns da edificação (TEPEDINO, Gustavo et al. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.398-399. 15 Essa constatação encontra apoio na lição de Caio Mário da Silva Pereira, in verbis: "A cada condômino é assegurada uma fração ideal da coisa, e não uma parcela material desta. Cada cota ou fração não significa que a cada um dos comproprietários se reconhece a plenitude dominial sobre um fragmento físico do bem, mas que todos os comunheiros têm direitos qualitativamente iguais sobre a totalidade dele, limitados contudo na proporção quantitativa em que concorre com os outros comproprietários na titularidade sobre o conjunto" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 27ª ed. rev., atual. e ampl. por C.E. do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.190-191). 16 Opinião esta manifestada em OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit. 17 Expondo o alto grau de repúdio aos atrasos ou falta de contribuição financeira de alguns integrantes do condomínio edilício, Caio Mário da Silva Pereira advertia que a mora do condômino traz grande sacrifício para os demais, que tinham que cobrir o déficit orçamentário por ele provocado. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.56). 18 A mesma conclusão é encontrada em CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit. 19 GOMES, Orlando. Direitos reais. 21ª ed. rev. e atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.247. 20 Em contraste ao condomínio geral/voluntário, cuja divisão pode ser requerida por qualquer consorte, a todo tempo, salvo se pactuado entre os condôminos, um prazo de incindibilidade de até cinco anos, embora permitidas prorrogações - art. 1.320 do CC. 21 Exemplos para endossar essa constatação não faltam: arts. 504 e 1.322 do CC (condomínio geral ou voluntário), arts. 27 a 33 da Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações Urbanas), art. 92, §3º, da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), arts. 25 a 27 da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), art. 1.081, §1º, do CC (aumento de capital social nas sociedades limitadas). 22 Anote-se que, para Frederico Henrique Viegas de Lima, presentes somente os elementos estruturais da conjugação de partes exclusivas com áreas comuns (A.1) e as frações ideais sobre o solo e espaços comunheiros (A.2), já se tem um condomínio edilício na sua completa acepção (LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Condomínio em edificações. São Paulo: Saraiva, 2010, p.119). 23 "[...] a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício". (BORGES, Marcus Vinicius Motter. Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p.481). 24 "Concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído". (LOUREIRO, Francisco Eduardo et al. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 17ª ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2023). 25 CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit. 26 "Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária, daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil". (Ibidem). 27 Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito. 28 A filiação à tese da possibilidade de se admitir, de lege ferenda, a instituição de uma pessoa jurídica de direito privado para desempenhar atividades de administração dos interesses coletivos da comunidade de titulares de unidades autônomas não significa dizer que se deva implementar dito projeto de personalização a todas as espécies de condomínios edilícios, indistintamente. O condomínio urbano simples (arts. 61 a 63 da Lei nº 13.465/2017) é incompatível com a concepção de pessoa jurídica, em vista da sua singeleza organizacional e procedimental. Igual desencontro se verifica no condomínio da construção (art. 31-F, §1º, da Lei nº 4.591/64), porém em virtude da sua duração temporária, mesmo motivo que afasta o regime condominial especial do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 da adoção de um modelo personalizado. Nada obstante, isso não retira de nenhum dos três arquétipos citados a qualidade de condomínios edilícios.
A alienação fiduciária, principal garantia à obtenção do financiamento imobiliário, é tema extremamente sensível ao mercado da construção civil. Em razão disso, tornou-se muito relevante o julgamento do Tema Repetitivo 1095 do Superior Tribunal de Justiça, cuja questão submetida era a "definição da tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia". Considerando a redação do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor, duas correntes jurisprudenciais se formaram nos tribunais estaduais e federais. A primeira entendia pela possibilidade de aplicação do artigo 53, do Código de Defesa do Consumidor, para permitir "o direito potestativo do consumidor de promover ação para o fim de rescindir o contrato"1, mesmo nos casos envolvendo a alienação fiduciária. Por outro lado, outra corrente2 defendia que em contratos firmados com pacto adjeto de alienação fiduciária devidamente registrada na matrícula do imóvel, não haveria aplicação do art. 53, do CDC e a extinção contratual deveria seguir o procedimento especial da lei 9.514/1997, assim como já observado em alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça3. Dada a controvérsia jurisprudencial e a expressiva quantidade de casos análogos, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça deliberou por submeter o REsp 1.891.498/SP ao rito dos recursos especiais repetitivos. O julgamento ocorreu em outubro de 2022 e o acórdão foi publicado em dezembro do mesmo ano. O acórdão proferido pelo relator Min. Marco Aurélio Buzzi reconhece a relevância da alienação fiduciária ao mercado imobiliário brasileiro4 e assevera inexistir divergência entre o art. 53 do CDC e os ditames da lei 9.514/1997: Esse procedimento especial não colide com os princípios trazidos no art. 53 do CDC, porquanto, além de se tratar de Lei posterior e específica na regulamentação da matéria, o § 4º, do art. 27, da lei 9.514/97, expressamente prevê, repita-se, a transferência ao devedor dos valores que, advindos do leilão do bem imóvel, vierem a exceder (sobejar) o montante da dívida, não havendo se falar, portanto, em perda de todas as prestações adimplidas em favor do credor fiduciário. Nesse sentido, a tese firmada assentou: Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. A princípio, o empresariado da construção civil e as instituições de concessão de crédito imobiliário podem ter comemorado a tese firmada, porque reforça o entendimento de que, mesmo havendo relação de consumo, a hipótese de inadimplemento contratual não impede que o credor fiduciário possa excutir a garantia mediante o procedimento estabelecido nos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. A respeito desse ponto, a decisão é acertada. Contudo, a leitura do acórdão de relatoria do Min. Buzzi e a tese firmada fazem-nos refletir. Em primeiro lugar, entendemos que a tese poderia ter melhor redação. O acórdão aduz que nos contratos de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, "a resolução do pacto" deve observar as disposições da lei 9.514/1997. Tal assertiva merece algumas críticas. É preciso destacar, em primeiro lugar, que na hipótese de compra e venda imobiliária com alienação fiduciária, inexiste contrato bilateral a ser resolvido pelas partes. Nesse tipo de operação, o alienante confere quitação do pagamento do preço de aquisição do imóvel. Contudo, imediatamente após o adimplemento da compra e venda, com a entrega da posse ao devedor fiduciante, o credor fiduciário passa a cobrar as parcelas do contrato unilateral de mútuo, que é garantido pela alienação fiduciária5. Assim, seria mais adequado que a tese firmada apontasse que no contrato de compra e venda de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária, a execução da garantia deve observar a forma prevista na lei 9.514/1997 e que o fato de eventualmente do resultado dos leilões não sobejar crédito a ser restituído ao devedor fiduciante (art. 27, § 5º da lei 9.514/1997) não implica qualquer ofensa ao Código de Defesa do Consumidor, sobretudo em razão da especialidade da lei 9.514/1997 e das características da alienação fiduciária. Mas a questão da possível melhor redação da tese firmada não é o motivo de nossa maior preocupação. Outras questões trazem maior aflição. O acórdão estabeleceu que o Tema 1095 não deve ser aplicado quando: a) inexistir registro do contrato ou; b) inexistir inadimplemento do devedor fiduciante ou; c) o devedor fiduciante não tiver sido constituído em mora, nos termos do art. 26, § 1º da lei 9.514/1997. Assim, segundo o julgado, inexistindo registro do contrato, inadimplemento do devedor e adequada constituição em mora "a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da lei 9.514/1997, podendo se dar pelo ditame da legislação civilista (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (artigo 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação". Com relação à ausência de registro do contrato, o acórdão simplesmente segue o artigo 23 da lei 9.514/1997, que determina que a propriedade fiduciária se constitui mediante registro. O texto legal é impositivo e claro. Além disso, a jurisprudência do STJ também adota tal entendimento6. São as outras situações referidas no julgado que causam inquietação. Segundo o julgado, para aplicação da lei 9.514/1997, há necessidade de o devedor fiduciante estar inadimplente. Tal assertiva pode levar à incorreta interpretação de que o adquirente adimplente que pretende a extinção do vínculo contratual da compra e venda com alienação fiduciária pode simplesmente propor ação de resolução do contrato para devolver a coisa e obter o reembolso (ainda que parcial) do preço pago. É preciso reiterar que a prestação da compra e venda, em razão do pagamento integral do preço, está exaurida no negócio jurídico garantido pelo pacto da alienação fiduciária7. Além disso, não há que se falar em resolução da compra e venda quando ausente culpa atribuível à vendedora, sobretudo em razão da irretratabilidade contratual nesse tipo de operação. Se há descumprimento no pagamento das prestações, a excussão da garantia da alienação fiduciária pode ser iniciada e, consequentemente, os procedimentos dos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. Todavia, na hipótese de o devedor fiduciante não ter mais condições financeiras para adimplir o contrato de mútuo (pagamento das prestações a vencer), ou seja, caso comprove impossibilidade no cumprimento da obrigação, com espírito colaborativo e boa-fé, pode comunicar ao credor-fiduciário que, embora esteja adimplente, tornar-se-á inadimplente nos próximos dias ou semanas. Nessa hipótese, pode-se considerar o inadimplemento antecipado da obrigação, dado o reconhecimento do próprio devedor que irá inadimplir8. Nesse diapasão, está configurado o inadimplemento absoluto do devedor fiduciante, sendo, inclusive, em nossa opinião, dispensável a notificação para purgação da mora. Ato contínuo, considerando a impossibilidade no cumprimento da obrigação de pagar no contrato de mútuo e o inadimplemento absoluto do devedor fiduciante, a execução da garantia pode ser iniciada e ter seguimento com a realização dos leilões determinados na lei 9.514/1997. Essa questão, inclusive, já havia sido tratada no leading case do REsp 1.867.209/SP9, de relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no qual determinou-se que O pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente. É preocupante verificar que o acórdão de relatoria do Min. Buzzi (que fixou a tese do tema 1095) reconhece e menciona o julgado acima explicitado, assim como a solução adotada. Contudo, ao invés de reforçar que a forma de extinção do contrato de compra e venda de bem imóvel com alienação fiduciária segue os ditames da Lei 9.514/1997 (independentemente da hipótese de adimplência ou inadimplência do contrato de mútuo) apontou que inexistindo inadimplência do devedor fiduciante, não há como prevalecer a lei especial. Justificou-se que essa questão "não se encontra suficientemente madura no que tange à discussão pelas Turmas, inexistindo, até o momento, debate qualificado no colegiado da Quarta Turma, tampouco quantidade significativa de julgados no âmbito da Terceira Turma". Contudo, o próprio voto-vogal da Min. Nancy Andrighi (no mesmo julgamento) parece reconhecer a possibilidade do inadimplemento antecipado e a prevalência da lei 9.514/199710. Como se nota, o julgado, embora tenha firmado tese, deixou em aberto o regime jurídico a ser aplicado na hipótese de extinção contratual para a hipótese do adquirente adimplente. Essa porta aberta, em nossa opinião, é um tanto quanto perigosa. Uma vez registrado o contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária, o regime jurídico para a execução da garantia deve seguir a lei 9.541/1997. O fato de o devedor fiduciante estar adimplente no pagamento das parcelas do contrato de mútuo simplesmente não afasta a aplicação da lei especial. A considerar que a prestação da compra e venda já foi exaurida e que o devedor fiduciante é o proprietário resolúvel, não havendo mais interesse no imóvel adquirido, pode, por exemplo, firmar a cessão dos direitos aquisitivos do imóvel com terceiros (instrumento que deverá ter a anuência expressa do credor fiduciário). Por outro lado, não havendo terceiros interessados e insistindo o devedor fiduciante na impossibilidade do cumprimento da obrigação de pagar, estará configurado o vencimento antecipado da obrigação, cabendo a aplicação dos já referidos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. Assim, o acórdão que resultou na tese firmada pode permitir a incorreta interpretação de que o adquirente adimplente em contrato com alienação fiduciária tem a possibilidade de propor ação de resolução do contrato de compra e venda, de modo a afastar a incidência da Lei especial. Anote-se, nesse sentido, julgado recentemente proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo11. Na origem, trata-se de ação intentada pelo devedor fiduciante adimplente nas prestações do contrato de mútuo. A demanda tinha por objetivo a resolução do contrato de compra e venda e a devolução parcial dos valores pagos pelo adquirente. A sentença declarou a resolução do contrato e obrigou a incorporadora a restituir 75% (setenta e cinco) por cento dos valores pagos pelo autor. No recurso de apelação, após sustentar que a alienação fiduciária impossibilitava a resolução do contrato de compra e venda, muito menos restituição de partes dos valores pagos, entendeu-se por afastar a lei 9.514/1997 porque, no caso em análise, o adquirente estaria adimplente e, após citar o Tema nº 1095, determinou-se a resolução do contrato de compra e venda, confirmando a condenação para devolução de parte dos valores pagos. Como se nota, se de fato entender-se que ao devedor fiduciante adimplente não se aplica a lei 9.514/1997, diversos adquirentes poderão propor ação de resolução contratual, o que é absolutamente contrário ao sistema da alienação fiduciária. Além disso, outra questão preocupante diz respeito ao entendimento da aplicação da lei 9.514/1997 somente para os casos em que o devedor fiduciante já tenha sido constituído em mora. Em pesquisa jurisprudencial, localizamos julgados que, em razão da ausência de constituição em mora do devedor fiduciante, admitiram a resolução contratual, afastando-se a aplicação da lei 9.514/1997. A exemplo disso, recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo12 afastou o Tema 1095 porque "[...] inobstante a compradora esteja inadimplente desde setembro de 2021 (extratos de fls. 154/157), afirmação não negada pela autora, não houve constituição em mora até a propositura da ação [...]". Caso se entenda que a ausência de constituição em mora do devedor afasta a aplicação da lei 9.514/1997, diversos devedores fiduciantes inadimplentes preferirão manter-se longe de seus endereços para não serem intimados e, enquanto isso, supostamente poderiam propor ação de resolução do contrato para obter liminar para a suspensão das cobranças e, ao final, serem ressarcidos de parte do valor pago. Nessa situação, quem age contrariamente à boa-fé obtém melhor vantagem? O Direito Civil não pode premiar a má-fé. Mas há esperanças. Em outra demanda de resolução contratual proposta por adquirente, foi aduzido que embora estivesse inadimplente, não houve regular constituição em mora e, portanto, deveria ser afastado o Tema 1095. Ao apreciar o agravo de instrumento que indeferiu a concessão de tutela de urgência, o Des. Francisco Loureiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ressaltou a necessidade de aplicação do Tema 1095, ainda que o devedor fiduciante não tenha sido constituído em mora13. O julgado ressalta que muito embora o devedor fiduciante tenha aduzido ausência de constituição em mora, no caso do pagamento de parcelas em contrato de mútuo, a mora tem natureza ex re, consoante o art. 397, do Código Civil. Sendo a prestação líquida e certa, o não pagamento da obrigação no prazo configura a mora automática14, embora o devedor não tenha sido intimado para purgá-la. Assim, como bem apontado no acórdão "[...] a configuração da mora não exige a consolidação da propriedade, como sugere a devedora fiduciante, que reconhece o próprio inadimplemento (e consequentemente a mora)". Essa solução também possui o arrimo de Demétrio Giannakos15. Conclusão  A definição do Tema nº 1095 era muito aguardada, não apenas em razão da importância da alienação fiduciária, mas sobretudo em relação aos impactos da tese que seria firmada. De maneira adequada, o STJ determinou a prevalência da lei 9.514/1997 perante o CDC e reconheceu a licitude da execução da garantia, mesmo em relações de consumo. Contudo, o afastamento da lei para as situações de ausência de inadimplência e mora constituída do devedor fiduciante voltam a tornar o céu cinzento. A imprevisibilidade e a ausência de segurança jurídica impactam o desenvolvimento do mercado imobiliário. As incertezas envolvendo a principal garantia para concessão do crédito imobiliário podem abalar, negativamente, não apenas as empresas que desenvolvem os empreendimentos, mas, sobretudo, aqueles que precisam de financiamento para aquisição da casa própria. Como procuramos demonstrar, o Tema 1095, ao mesmo tempo em que representou relevante avanço, ainda deixa espaço para incertezas. É hora de o Superior Tribunal de Justiça conferir a necessária segurança jurídica, prestigiando a principal propulsora do mercado imobiliário e da concessão dos financiamentos habitacionais. Ao final, dedico este artigo ao Min. Paulo de Tarso Sanseverino, falecido recentemente. Tive o privilégio de dividir a sala de aula com esse brilhante jurista em algumas oportunidades, além de privar de sua companhia em outras ocasiões. Pude aprender muito com seus escritos e acórdãos, além de ter conhecido uma pessoa simples, humilde e extremamente dedicada à família e ao trabalho. __________ 1 TJSP; Apelação Cível 1031264-75.2019.8.26.0576; Relator: Hugo Crepaldi; 25ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 31/08/2021; data de registro: 31/08/2021. 2 Nesse sentido, vide: TJSP; Apelação Cível 1017078-41.2020.8.26.0405; Relator: Paulo Alcides; 6ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 01/06/2021; data de registro: 01/06/2021. 3 "[...] O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que, diante da incidência do art. 27, § 4º, da lei 9.514/1997, que disciplina de forma específica a aquisição de imóvel mediante garantia de alienação fiduciária, não se cogita da aplicação do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, em caso de rescisão do contrato por iniciativa do comprador, ainda que ausente o inadimplemento. (AgInt no AREsp 1.689.082/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 16/11/2020, DJe de 20/11/2020.) 4 Destaco, ainda, trecho do voto vogal da Min. Nancy Andrighi, que asseverou que "[...] o regime específico da alienação fiduciária de bens imóveis permite a recomposição do capital investido de forma célere e eficaz, atribuindo maior segurança ao crédito concedido e minimizando o problema da habitação no país". 5 A esse respeito, ensinam Melhim Namem Chalhub e Umberto Bara Bresolin: "De maneira bastante diversa, nos contratos de venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, no momento em que o devedor fiduciante (que tomou crédito para pagar o preço de aquisição) manifesta interesse no rompimento do negócio, a venda e compra já se exauriu, o preço do bem já foi quitado com os recursos antecipados pelo credor, a propriedade já foi adquirida pelo comprador e ato contínuo transmitida a propriedade fiduciária ao credor em garantia de pagamento do financiamento. Ao credor fiduciário cabe apenas receber e ao devedor fiduciante cabe apenas pagar o valor antecipado acrescido dos juros pactuados. Efetivado o pagamento, a garantia se extingue, a propriedade fiduciária se resolve e a propriedade plena reverte ao patrimônio do (então) fiduciante. Inadimplida a obrigação de pagar, a propriedade fiduciária é incorporada ao patrimônio do (então) fiduciário, mediante consolidação, devendo ele ofertar o imóvel em público leilão para obter a satisfação do crédito em dinheiro, com o produto do leilão". (CHALHUB, Melhim Namem; BRESOLIN, Umberto Bara. A resolução por inadimplemento antecipado do preço e o contrato de venda e compra de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia. Migalhas. Publicado em 24/02/2021, coluna Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 04 abr. 2023). 6 Pela necessidade do registro do contrato para a constituição da alienação fiduciária, vide REsp 1.987.389/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 30/08/2022, DJe de 01/09/2022. 7 Nas palavras de Melhim Namem Chalhub "Já em relação aos contratos de financiamento, ou qualquer outra forma de contrato de concessão de crédito (contrato principal), com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia (contrato acessório), o inadimplemento da obrigação do devedor fiduciante importa em extinção do contrato (principal) de crédito mediante execução (e não resolução), da qual resulta a extinção do contrato acessório de alienação fiduciária [...]". (CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 517). 8 A respeito do inadimplemento antecipado da obrigação, vide TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009 e, mais recentemente, TERRA, Aline de Miranda Valverde. Quando há o inadimplemento antecipado da obrigação? AGIRE nº 59. Disponível aqui. Acesso em 04 abr. 2023. 9 REsp 1.867.209/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 08/09/2020, DJe de 30/09/2020. 10 Nos termos do voto-vogal "[...] se somente o não pagamento, pelo adquirente, dos valores contratados é capaz de justificar a aplicação do referido procedimento ou se ele também deve ser observado na situação em que o adquirente postula a revisão do contrato por impossibilidade superveniente, por configurar quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach") [...] 39. Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. 40. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/1997 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados". 11 TJSP; Apelação Cível 1000446-79.2022.8.26.0142, Relator: José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, data de julgamento: 09/03/2023. 12 Ação de rescisão contratual cc. devolução de valores. (Compromisso) contrato de compra e venda de bem imóvel. Escritura de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária registrada no CRI. Tutela de urgência deferida parcialmente para suspender as cobranças das prestações vincendas e para que a ré se abstenha de incluir o nome da autora nos órgãos de proteção ao crédito. Presença dos requisitos legais. Não aplicação do tema do recurso repetitivo representativo da controvérsia n. 1095 do E. STJ. Ausência de constituição em mora. Recurso desprovido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2115008-25.2022.8.26.0000; Relator: Cauduro Padin; 13ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 17/03/2023; data de registro: 17/03/2023). 13 TJSP; Agravo de Instrumento 2036410-23.2023.8.26.0000, Relator: Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, julgamento em 21/03/2023. Mais recentemente e no mesmo sentido, vide TJSP, Apelação Cível 1000418-80.2021.8.26.0099, Relator: Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, julgamento em 08/03/2023. 14 Nesse sentido, vide NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Comentários ao Código Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 520. 15 GIANNAKOS, Demétrio. O tema 1095 do STJ e o debate sobre a "constituição em mora". Migalhas. Publicado em 06/04/2023, coluna Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 16 maio 2023.
O mercado imobiliário é um dos propulsores da nossa economia. Em 2022, o PIB da construção civil fechou com crescimento de 9,7%, a maior alta nos últimos 11 anos1. Para trazer maior segurança jurídica aos negócios imobiliários, diversas formas de garantias são utilizadas. Uma das mais comuns, é a alienação fiduciária. Para Alexandre Laizo Clápis, "o negócio fiduciário é aquele em que uma pessoa transmite para a outra a propriedade de uma coisa ou de um direito com finalidade de garantia, para um fim específico estabelecido pelas partes, pelo qual a segunda se obriga a restituir quando cumprida determinada obrigação ou implementada a condição resolutiva inerente ao negócio jurídico"2. Na compra e venda de imóveis, por anos, existiu uma dúvida que atormentava os operados do direito: no caso de resolução do contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, por culpa do adquirente, seria aplicável o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei da Alienação Fiduciária? Já adiantando ao leitor: dependerá do cumprimento de alguns requisitos. Vejamos. Recentemente, o STJ, ao julgar o REsp n. 1891498 / SP, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, em caráter de recurso repetitivo, firmou a seguinte tese: "Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor". A partir da tese fixada, grande parte da comunidade jurídica voltada à temática enalteceu a decisão proferida, sob o argumento de a aplicação ou não do CDC, finalmente, seria pacificada nos Tribunais. Todavia, recentemente, verificou-se a existência de dúvidas na sua aplicação a alguns casos julgados no que tange à constituição em mora do devedor. Seria ela a do caput do art. 26 da lei 9.514/97 ou do parágrafo primeiro do mesmo diploma? O intuito do presente ensaio é, portanto, responder essa pergunta. Em seu voto, o Ministro Marco Buzzi, elenca três requisitos fundamentais para que a tese seja aplicável: i) o registro do contrato (no registro de imóveis) com cláusula de alienação fiduciária; ii) o inadimplemento por parte do devedor fiduciário; e iii) a adequada constituição em mora. Dito de forma diversa, caso um dos três requisitos não esteja presente, a solução do contrato não seguirá os ditames da lei 9.514/97, mas sim pelos ditames do Código Civil (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (art. 53). O presente ensaio debruçará suas atenções, mais precisamente, sobre o terceiro requisito, qual seja, a constituição em mora e a forma como ocorrerá. Para isso, importante trazer ao leitor uma clara distinção: para a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, é devida a intimação para que o devedor fiduciante possa purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, sob pena de barrar o caminho para o leilão extrajudicial do imóvel. Eduardo Chulam assim disserta: "O fiduciante é assim intimado para pagamento tanto das prestações vencidas com vincendas até o pagamento, no prazo de quinze dias (além da carência contratual), podendo, caso queira, purgar a mora diretamente perante o Oficial de Registro de Imóveis". "A consequência do pagamento será o convalescimento da alienação fiduciária"3. Por outro lado, a constituição da mora em si, parece ter natureza diversa, qual seja, ex re, conforme será demonstrado no presente ensaio. Ou seja, os casos são distintos e, portanto, não se confundem. Em recente caso julgado pela 1ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo, o Desembargador Relator Francisco Loureiro dispões o seguinte: "Sucede que não houve intimação para o devedor fiduciante purgar a mora, nos moldes do art. 26 da lei 9.514/97. Logo, não há consolidação da propriedade nas mãos do credor fiduciário, o que abriria caminho para o leilão extrajudicial do imóvel"4. No caso julgado pela Corte paulistana, ficou claro o requisito necessário para a consolidação da propriedade, porém, não foi tratada pelos magistrados de que forma a constituição da mora em si teria ocorrido. Porém, em outro caso também analisado pelo TJ/SP, agora pela 13ª Câmara de Direito Privado, a conclusão final dos magistrados foi diversa, no sentido de que haveria a necessidade a constituição em mora do devedor fiduciário: "Contudo, em que pese o atraso do pagamento de parcelas pelos autores seja incontroverso, não houve constituição em mora, o que, de acordo com o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, enseja a resolução do contrato de acordo com o disposto no Código de Defesa do Consumidor"5. É preciso distinguir situações diversas. Parece claro que, para que a propriedade do imóvel seja consolidada ao credor fiduciário, é requisito formal a intimação do devedor para purgar a mora, nos termos do art. 26, §1º e §7º da lei 9.514/97. Todavia, para que o devedor fiduciante seja constituído em mora, bastaria o inadimplemento, conforme previsto no caput do mesmo diploma legal. Em outras palavras, nos contratos garantidos por alienação fiduciária, a mora se configura automaticamente quando vencido o prazo para pagamento. Ou seja, seria um típico caso de mora ex re. Esse é o ponto fulcral do presente ensaio e que parece estar causando divergência jurisprudencial. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a mora ex re diz respeito ao não cumprimento das obrigações com termo de vencimento certo (dia 23 de junho, por exemplo) e definido. Nesses casos, o devedor é constituído de pleno direito em mora6, sem a necessidade de prévia notificação. Esse debate, inclusive, já foi travado no próprio STJ anos atrás. Em 1993, o STJ, em REsp n. 37.535/RS, já definia reconhecia a natureza da mora nos casos de alienação fiduciária como ex re7. Recentemente, o TJ/RS, em decisão proferida Décima Segunda Câmara Cível, confirmou a dispensa da notificação para a simples constituição em mora8, com aplicação do art. 397 do CC. Parece claro que, a partir do presente ensaio, existem distinções entre a constituição em mora prevista no caput do art. 26 da referida lei e a necessidade de intimação do devedor fiduciário prevista no parágrafo primeiro do mesmo diploma. No caso do caput, haveria aplicação do art. 397 do CC, conforme disposto pelo TJ/RS, enquanto o caso previsto no parágrafo primeiro teria como objetivo a possibilidade de quitação do débito por parte do devedor ou a consolidação da propriedade em nome do credor. O tema é instigante e, certamente, ensejará defensores de posicionamentos diversos. Sendo assim, caberá à doutrina fazer a sua parte e, consequentemente, caberá ao STJ, muito provavelmente, manifestar-se sobre o tema em momento oportuno, com a finalidade da trazer maior segurança jurídica. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 27/03/2023. 2 CLÁPIS, Alexandre Laizo. Reflexões sobre a natureza jurídica da propriedade fiduciária imobiliária. In: Revista Ibradim de Direito Imobiliário, v. 1 (nov. 2018). São Paulo: Ibradim, 2018, p. 27-28. 3 CHULAM, Eduardo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Almedina, 2019, p. 118. 4 RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM PACTO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. Tema 1095 do STJ. Ação ajuizada pelo comprador, alegando impossibilidade superveniente de pagamento do preço. Garantia real da propriedade fiduciária devidamente constituída pelo registro imobiliário. Inexistência, porém, de notificação para conversão da mora em inadimplemento absoluto e consolidação da propriedade resolúvel nas mãos da credora fiduciária, na forma do art. 26 da L. 9514/98. Impossibilidade de resolução do contrato, que perdeu a sua natureza bilateral. Comprador se tornou devedor fiduciante do saldo parcelado do preço. Garantia real deve ser executada na forma prevista na L. 9514/97, com leilão extrajudicial do imóvel. Impossibilidade de aproveitamento da presente ação de resolução para excussão da garantia, uma vez que não houve até o momento consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária. Inteligência da aplicação do Tema 1095 do STJ somente aos casos em que a mora já foi convertida em inadimplemento absoluto e a propriedade se encontra consolidada nas mãos do credor fiduciário, podendo ser levado a leilão extrajudicial. Ação de resolução improcedente. Recurso provido.   (TJSP;  Apelação Cível 1000418-80.2021.8.26.0099; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bragança Paulista - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023) 5 APELAÇÃO - RESCISÃO CONTRATUAL - COMPRA E VENDA - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - TEMA 1.095 DO STJ - NÃO INCIDÊNCIA -DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. - Instrumento particular de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia - Desistência do adquirente - Pretensão das vendedoras de que a resolução do contrato se dê por execução extrajudicial, nos termos da Lei nº 9.514/97 - Impossibilidade - Tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.095 no sentido de que a Lei nº 9.514/97 somente afasta a aplicação do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de contrato registrado em cartório e adquirente inadimplente, devidamente constituído em mora - No caso dos autos os compradores não foram constituídos em mora - Determinação de devolução de 90% sobre os valores pagos, autorizado o desconto de eventuais débitos de consumo, IPTU e taxas condominiais em consonância com os precedentes do STJ: - Não se tratando de hipótese que impõe a execução extrajudicial do contrato e a aplicação da Lei nº 9.514/97, conforme decidido pelo STJ no julgamento do Tema nº 1.095, a resolução da avença com a retenção de 10% dos valores pagos pelo comprador mostra-se suficiente para a compensação do vendedor - Precedentes do STJ - Incabível a cobrança de taxa de ocupação, uma vez que não houve consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO E ANÁLISE DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PREJUDICADA.  (TJSP;  Embargos de Declaração Cível 1015084-98.2019.8.26.0344; Relator (a): Nelson Jorge Júnior; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/03/2023; Data de Registro: 03/03/2023). 6 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 275. 7 ALIENAÇÃO FIDUCIARIA. BUSCA E APREENSÃO. CONSTITUIÇÃO EM MORA. NAS DIVIDAS GARANTIDAS POR ALIENAÇÃO FIDUCIARIA, A MORA CONSTITUI-SE 'EX RE', SEGUNDO O DISPOSTO NO PAR. 2. DO ART. 2. DO DECRETO-LEI N. 911/69, COM A NOTIFICAÇÃO SERVINDO APENAS A SUA COMPROVAÇÃO, NÃO SENDO DE EXIGIR-SE, PARA ESSE EFEITO, MAIS DO QUE A REFERENCIA AO CONTRATO INADIMPLIDO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (REsp n. 37.535/RS, relator Ministro Paulo Costa Leite, Terceira Turma, julgado em 30/9/1993, DJ de 25/10/1993, p. 22492.) 8 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM ALIENAÇÃO DE IMÓVEL EM GARANTIA. AJUIZAMENTO DA DEMANDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. INOCORRÊNCIA. O credor fiduciário poderá buscar a concretização do seu crédito por meio da via judicial ou extrajudicial, cabendo a ele a opção neste sentido, não restando configurada qualquer nulidade da demanda executiva. Inteligência do art. 19, da lei 9.514/17. Igualmente, nenhuma nulidade há na penhora do imóvel oferecido em garantia fiduciária, o que inclusive é assegurado pelo disposto no art. 835, XII, do CPC, nem tampouco pela expropriação deste por meio de leilões judiciais ao invés de extrajudicial, à medida que optou o credor pela via judicial. Não há falar em descaracterização da mora em razão de não terem sido intimados para purgar a mora, nos termos da Lei 9.514/97, uma vez que esta se prestaria tão somente para evitar a consolidação da propriedade dada em garantia fiduciária em nome do credor. No caso, o credor optou por ingressar em juízo, com demanda executiva, para exercer o direito ao seu crédito. Em se tratando de cédula de crédito bancário (título extrajudicial nos termos do art. 784, III, do CPC), obrigação de pagamento de quantia liquida, com termo certo e determinado, com vencimento previamente definido, opera-se a mora ex re, nos termos do art. 397, do CCB, o que dispensa qualquer notificação do devedor. Inocorrente a descaracterização da mora e nulidade dos atos executivos. Impenhorabilidade do imóvel que não se verifica, uma vez que não caracterizado como pequena propriedade rural, o que afasta a proteção disposta no art. 833, VIII, do CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. UNANIME.(Agravo de Instrumento, Nº 70085598381, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 30-09-2022).
Foi publicado neste informativo, no dia 24/3/2023, o artigo intitulado "Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário", de autoria do Prof. Ricardo Campos. O articulista é um dos juristas apontados em portaria do Corregedor Nacional de Justiça, o Ministro Luis Felipe Salomão, para compor comissão cujo objetivo é auxiliar a Corregedoria a regulamentar a lei 14.382/2022, que introduziu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP, e as alterações por ela feitas na Lei de Registros Públicos, a lei 6.015/1973. Como um dos autores do texto original da Medida Provisória 1.085/2021, que originou a lei 14.382/2022, tenho procurado contribuir com o debate público que permeia sua implantação. Ademais, alertar a comunidade jurídica sempre que me deparo com visões especialmente divergentes ou deturpadoras dos embasamentos dogmático e funcional que motivaram a introdução do SERP. Essas deturpações são, cada vez mais, minoritárias; quando (res)surgem, normalmente evidenciam interesses puramente financeiros ou corporativos, que não merecem acolhida. Ao digitalizarmos, padronizarmos e centralizarmos o acesso aos Registros Públicos, a despeito do óbvio ganho social, houve certamente perdedores. Entre os registradores, há os que perderam receita direta. A redação atual do art. 130 da lei 6.015 determina que os registros em Títulos e Documentos se realizarão "no domicílio das partes contratantes e, quando residam estas em circunscrições territoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas". Por minha sugestão, a lei 14.382/2022 modificou esse artigo para que o registro se dê apenas no domicílio de um dos outorgantes ou garantidores, eliminando a duplicidade de atos registrais idênticos, inútil num contexto de centralização digital e, a rebote, reduzindo o custo transacional dos cidadãos com emolumentos registrais. Não por acaso, a alteração proposta sofreu resistência e foi a única submetida a vacatio legis, de mais de 18 meses, entrando em vigor apenas em 1º de janeiro de 2024. A escolha do domicílio do outorgante como o único competente é natural. Havendo direitos reais que gravem os bens de uma pessoa, que os outorgou, a publicidade registral e as buscas por registros de base pessoal se concentrarão no respectivo domicílio. É o mesmo que ocorre com as distribuições judiciais, que se cadastram e buscam nos domicílios dos réus, jamais dos autores. Convidado a dar aulas em uma pós-graduação lato sensu, um registrador da Grande São Paulo tem classificado a Lei do SERP como algo "pior que o Genocídio Ianomâmi", segundo relatos, e feito sobre mim comentários desabonadores. Compreende-se perfeitamente a indignação visceral, quando o interesse público impõe a um agente delegado a perda da competência para o registro de todos os contratos de um dos maiores bancos do país, sediado em sua comarca. O que não se deve admitir, todavia, é que interesses privados venham a fantasiar-se de virtuosa e republicana defesa doutrinária, ademais em ambiente acadêmico ou institucional. Aderindo à linha argumentativa lastreada em comparações exóticas, o artigo do Prof. Ricardo Campos infere que a expansão do uso de extratos registrais, a partir da Lei do SERP, seria um movimento alegadamente semelhante à degradação jurídica experimentada com a ascensão do nazismo. Sem citar-me nominalmente, o autor reage à minha manifestação na audiência pública realizada, em fevereiro, na sede do CNJ, em Brasília, ocasião em que defendi a nova lei e a ampliação na utilização dos chamados extratos, resumos eletrônicos que substituem o contrato integral no envio aos cartórios, simplificando o processo de registro. Em suas palavras, referindo-se textualmente ao exemplo da Alemanha entreguerras, "figuras jurídicas podem perverter e levar à [sic] mutações jurídicas indesejáveis sem a necessidade de uma mudança legislativa no núcleo duro dos direitos". A perversão da Lei do SERP e do uso de extratos estaria no enfraquecimento da escritura pública, da prerrogativa dos registradores em qualificar integralmente os títulos e do poder de polícia exercido pelo Judiciário. Entre os tabeliães, parece haver uma minoria incomodada com os avanços tecnológicos nos registros públicos, cuja maior facilidade de acesso poderia tornar irrelevante a escritura pública ou, de outro modo, causar prejuízo à atividade notarial. Nada mais falso que esse pensamento. De um lado, é verdade que a função do notário nas compras e vendas puras e simples, nos contratos de garantia e demais contratações padronizadas, em um mundo interligado e digital, tende a perder relevância. Essa perda não é motivada pela introdução do SERP e dos extratos registrais, mas simplesmente pelo avanço tecnológico. A inteligência artificial e os meios de identificação digitais, em maior medida; a tokenização ou os smart contracts, em menor medida, tendem a reduzir a necessidade de intervenção de um agente dotado de fé pública na formalização de negócios jurídicos de massa. A tentativa de sabotagem do SERP, ainda que bem-sucedida, jamais mudaria esse cenário. Por outro lado, ainda que a forma da intervenção notarial sofra mudanças, a função da fé pública não será superada - na recente evolução do sistema jurídico brasileiro, os notários ganharam em qualidade: tornaram-se relevantíssimos no Direito Processual Civil, por exemplo, em matéria de prova; tornaram-se protagonistas da usucapião extrajudicial e, finalmente, na lei 14.382/22 foram prestigiados como agentes essenciais à adjudicação compulsória de imóvel. A constatação e transmutação jurídica dos fatos da vida pelos tabeliães, atividade intelectual, deverá suplantar os atos de intervenção puramente formal, em escrituras simples e reconhecimentos de firma. Talvez o abandono gradual desses atos formais e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em menor necessidade numérica de tabeliães e escreventes - mas haverá, em contrapartida, necessidade de tabeliães mais qualificados e, por consequência, mais valorizados. Para introduzir seu pensamento, o Prof. Ricardo Campos afirma que os extratos surgem, no Brasil, "de um imperativo da necessidade de automatização de processos em larga escala envolvendo bens imóveis dentro do sistema registral ligado ao sistema financeiro". Os extratos imobiliários levariam então à coexistência de dois sistemas: um geral e formalista, do título integral e da escritura pública; e um microssistema simplificado, com uso do extrato e do instrumento particular com força de escritura pública, restrito às instituições - majoritariamente financeiras - participantes do SFH e do SFI. Eis o primeiro grande equívoco do eminente articulista. O art. 38 da lei 9.514/1997, que introduziu a alienação fiduciária de imóveis, dispensa a escritura pública para a formalização de todos os contratos dessa modalidade de garantia real, ainda que não envolvam o SFH ou o SFI, e mesmo entre pessoas físicas. A interpretação majoritária do mesmo artigo tem permitido, inclusive, a dispensa da escritura pública nas alienações de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária, fora do SFH ou SFI, em diversas unidades da Federação, especialmente pelos incorporadores imobiliários. Por sua vez, o §6º do art. 26 da lei 6.766/1979, que trata dos loteamentos, foi introduzido pela lei 9.785/1999 e dispensa a escritura pública para a transmissão da propriedade de todo imóvel, desde que pelo loteador ao adquirente. Nos loteamentos, basta a apresentação ao registrador imobiliário da promessa de compra e venda, celebrada por instrumento particular, e da prova de sua quitação para transmitir a propriedade. A mesma solução, vale dizer, tem sido pregada por respeitada doutrina a toda hipótese de prévia promessa de compra e venda, a exemplo do seguinte enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil do CJF, de nº 87: "Considera-se também título translativo, para fins do art. 1.245 do novo Código Civil, a promessa de compra e venda devidamente quitada (arts. 1417 e 1418 do CC e § 6º do art. 26 da lei 6.766/79)". Ainda, o art. 8º da lei 10.188/2001 dispensou a escritura pública para a aquisição de imóveis, por pessoa física, por meio do Programa de Arrendamento Residencial. São alguns exemplos do desuso da escritura pública nas aquisições imobiliárias, especialmente nas contratações massificadas. Dessa feita, não existe, na realidade brasileira, a dicotomia que se pretendeu estabelecer, restringindo a dispensa da escritura pública (e o registro mais simples e ágil, por meio de extrato) ao microssistema do SFH/SFI. Nem foi essa a intenção dos autores da Medida Provisória 1.085/2021 ou teríamos ali sedimentado, expressamente, redação semelhante à já existente no Provimento nº 94/2020 do CNJ, que legitima a apresentarem extratos imobiliários apenas os "agentes financeiros autorizados a funcionar no âmbito do SFH/SFI, pelo Banco Central do Brasil". Ao contrário, nossa intenção era que o CNJ paulatinamente pudesse admitir, por seu poder regulatório delegado pela nova lei, novos agentes como apresentantes de extratos. E, não por coincidência, passei a sugerir que pudessem apresentar extratos, além dos agentes financeiros que já detêm essa legitimidade, também as companhias securitizadoras - que exercem função análoga, embora sem serem financeiras -, e os loteadores e incorporadores. Estes, por duas razões: (i) já são obrigados a alienar imóveis por meio de contratos padronizados previamente depositados no registro imobiliário, de modo que já previamente submetidos ao crivo do registrador; e (ii) já são autorizados, por lei, a transmitir imóvel sem recorrer à escritura pública, como acima demonstrado. Em um segundo grave equívoco, portanto, o Professor aventa, em tom alarmista, que "a Lei do SERP permite o uso de extratos eletrônicos (...) que podem ser produzidos pelas partes (...) e apresentados a registro por elas ou por terceiro interessado", indiscriminadamente, por "pessoas físicas ou jurídicas de todos os portes". No mundo real, jamais se pensou em extratos apresentados por "qualquer das partes" ou, muito menos, por "terceiros interessados". Nas dezenas de países em que existem extratos eletrônicos, prevalece a regra de que são apresentados exclusivamente pelo credor, titular do direito que se pretende registrar. São esses os termos em que, na parcela da comunidade jurídica dedicada ao estudo da modernização dos Registros Públicos, discutem-se extratos e sua eventual expansão no registro imobiliário. Ninguém defende, até onde se sabe, a substituição do sistema registral imobiliário pelos extratos eletrônicos, nem mesmo que possam ser apresentados por qualquer um ou para qualquer negócio jurídico. São fantasmas que já procurei exorcizar noutro artigo publicado neste Informativo, há cerca de um ano, intitulado "MP 1.085/21: A luz dos fatos para espantar os monstros noturnos". O uso de extratos no registro imobiliário tem sentido sobretudo em relação aos contratos massificados, como os de compra e venda simples realizada pelo próprio empreendedor (loteadores, incorporadores) e os de financiamento e garantia, realizados com agentes financeiros e agentes do mercado de capitais, a exemplo das companhias securitizadoras. Esses contratos, por serem padronizados e, no caso de loteadores e incorporadores, previamente depositados na circunscrição imobiliária em forma de minuta, estão plenamente disponíveis para a supervisão e a fiscalização das atividades extrajudiciais, feita pelo Poder Judiciário. Não se pretende, em sentido inverso, facultar o uso do extrato nos negócios mais complexos, que dependam de efetiva qualificação, cognição e interpretação do registrador para ingresso no fólio real. Afirma o Prof. Ricardo Campos que, "nesse novo contexto, os oficiais de registro não terão acesso ao instrumento pactuado, mas somente ao extrato produzido pelo pacto entre privados, que tomarão como fundamento para a qualificação do ato jurídico de base e inscrição registral. Dessa forma, não haverá a possibilidade de exercício de poder de polícia (...) sobre elementos que não constem no extrato". E isso é perfeitamente verdade quanto ao caso concreto, embora o poder de polícia esteja assegurado na fiscalização das instituições financeiras ou sobre os contratos padronizados previamente depositados, dos quais os atos concretos se originam, como acabo de explicar. A qualificação registral também está assegurada nos extratos, como o referido articulista acaba por reconhecer, o que se dará pelo cotejo dos elementos do extrato, da matrícula e dos documentos de suporte, que tornam especial cada negócio jurídico. Não haverá, entretanto, constante (re)qualificação das cláusulas contratuais e de aspectos formais do negócio jurídico de base. Esse olhar menos disperso do registrador, que alguns alardeiam como temerário, é a grande vantagem do sistema de extratos. Na prática, se evitará que um mesmo contrato, já examinado e aceito por registradores, escreventes e pelo Judiciário país afora, tenha suas cláusulas reescritas e reavaliadas ao bel prazer do escrevente de plantão, resultando aleatoriamente em negativas de registro e, frequentemente, em exigências ininteligíveis e injustificáveis. O que alguns têm defendido como uma inabdicável prerrogativa da qualificação registral não passa, muitas vezes, de uma análise mecânica supostamente minuciosa feita por prepostos, que em realidade resulta numa enorme variabilidade de opiniões pouco balizadas sobre questões juridicamente irrelevantes ou, simplesmente, na negativa do acesso ao registro. Essas idiossincrasias do sistema registral nada acrescem à segurança jurídica, mas certamente resultam no aumento dos prazos e custos transacionais, na frustração das partes e num grave prejuízo à confiança social nos Registros Públicos. Ao fim, são solo fértil às iniciativas verdadeiramente pararregistrais. Causa espécie que algum registrador se posicione contrariamente ao SERP, um sistema eletrônico gerido por registradores e supervisionado pelo CNJ, quando a seu largo brotam diuturnamente soluções oriundas do "Direito Digital" com a declarada pretensão de aposentar os Registros Públicos. Para os registradores, há também um avanço irreversível da tecnologia que irá tornar ultrapassadas atividades meramente burocráticas e formais. Isso inclui o exame de atos padronizados, para os quais as comunidades jurídica e econômica ocasionalmente apresentam alternativas bradadas como mais rápidas, seguras e baratas: mas, afinal, o Blockchain e os tokens podem substituir o Registro de Imóveis? Penso que não. Talvez o abandono gradual do exame minucioso de títulos padronizados, meramente formal e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em necessidade de menor número de registradores e escreventes, que se dedicarão aos casos em que há efetivo desafio à altura de um jurista - haverá, em contrapartida, necessidade de registradores e escreventes mais qualificados e, por consequência, repito, mais valorizados. O Prof. Ricardo Campos, finalmente, apresenta dois questionamentos em vista desse novo cenário, aos quais cabe resposta. Primeiro, se haveria "uma nova delimitação do regime de responsabilidade dos oficiais de registros visto que termos contratuais não presentes no extrato poderiam extrapolar o dever de conhecimento dos elementos essenciais à qualificação do título originário". Nesse ponto, complementa se "poderia se questionar se os oficiais de registros não poderiam ser acionados judicialmente à [sic] responderem sobre atos/fatos omissivos ou comissivos decorrentes do exercício de suas funções que não correspondam fielmente ao contido no extrato, quando este tenha sido formado por terceiros de maneira incompleta ou viciada". Parece evidente que o registrador não poderá responder por algo que não examinou. Portanto, a limitação da qualificação ao conteúdo do extrato é, além de tudo, uma proteção ao oficial de registro, não apenas em vista das partes, mas também de responsabilidades anômalas que ocasionalmente decorrem da delegação, como a responsabilidade tributária estendida aos oficiais pelos municípios na fiscalização do recolhimento do ITBI. O segundo e último questionamento diz respeito à oponibilidade do conteúdo contratual. Afinal, "a parte não poderá opor perante terceiros direitos que não estejam ali (no extrato) descritos, pois não gozam de publicidade registral". Essa afirmação é verdadeira em todos os países que adotam a forma de extrato e, para compreendê-la melhor e seus impactos, é necessário breve contextualização. Desde os anos 1960, os EUA adotam o extrato como o único meio de registro para garantias sobre bens móveis - lá, não é possível, nem voluntariamente, apresentar o contrato integral para qualquer exame pelo registro. Há uma infinidade de literatura jurídica examinando o impacto dessa adoção nos EUA, com destaque à linha de Law and Economics1. Evidentemente, houve também nos EUA ceticismo quanto à maior propensão do sistema de extratos às fraudes, de modo que o alarmismo brasileiro a esse respeito chega seis décadas atrasado. A conclusão é que o ganho econômico na simplificação do acesso ao registro é enorme, como se pode esperar, mas o aumento de ocorrência de fraudes, nesse sistema, é supreendentemente desprezível. O principal fator mitigador de fraudes é justamente que a oponibilidade dos direitos reais decorre da publicidade de declarações prestadas pelos seus próprios titulares. Em termos simples, se um banco credor apresenta uma garantia para registro e comete erro na transcrição das informações do contrato ao extrato, apenas duas consequências são lógica e legalmente possíveis: (i) primeiro, apenas aquilo que foi objeto de publicidade tornou-se oponível, de modo que, ao deixar de publicar algo, o credor prejudicou a oponibilidade do próprio direito (um exemplo: a garantia tinha por objeto dois bens, mas o extrato apenas mencionou um, de modo que apenas sobre um constituiu-se direito real); (ii) mesmo publicado, um direito convencional só é e permanece eficaz se decorrente de contrato válido, dado o caráter causal do nosso sistema - ou seja, de nada adianta pretender "inflar" seus direitos no extrato, pois diante da futura objeção de terceiro será necessário fazer prova do título. Enquanto não houver direitos controversos sobre a coisa, a publicidade não é posta à prova - sem controvérsia, a veracidade do registro é juridicamente irrelevante. Se houver controvérsia, entretanto, e esta ocorre em uma quantidade ínfima de casos, é preciso compreender que o registro goza apenas de presunção relativa, podendo a parte interessada fazer prova do seu direito. Finalmente, não custa lembrar que a grande maioria das garantias reais registradas jamais será executada. Segundo dados do Registro de Imóveis do Brasil, na média histórica, o número de consolidações de propriedade em excussão de alienação fiduciária equivale a 2% dos registros2. Na mesma linha, a experiência norte-americana demonstra que, sendo apenas os credores e titulares dos direitos os responsáveis pela redação do extrato, há pouquíssimo espaço para fraude, simplesmente porque fraudar o extrato não é capaz de gerar qualquer benefício ao apresentante. O sucesso no uso de extratos mobiliários, nos EUA, levou à sua adoção como modelo de melhores práticas por organismos internacionais e em mais de 45 países, inclusive na América Latina, como Colômbia e México. A Lei Modelo da ONU sobre Garantias Mobiliárias, aprovada em junho de 2016 no âmbito da UNCITRAL3 e ratificada pela Assembleia Geral por meio da Resolução 71/1361, de 2016, adotou o extrato como único modelo de registro de garantias reais sobre bem móveis - participei da redação da Lei Modelo como delegado do governo brasileiro, nomeado em 2015, e integrei a delegação até 2018, quando encerrou o mandato, na ONU, do grupo dedicado ao estudo das garantias reais. Desde 2020, integro o grupo responsável pela redação dos princípios para um processo de execução eficaz do UNIDROIT - Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado, em Roma. Também nos textos que vêm sendo redigidos por esse grupo4, adota-se o sistema de extratos como modelo preferencial do registro de garantias reais sobre bens móveis, em seguimento à Lei Modelo da ONU. Como esperado, trata-se de grupo com grande participação de juristas de tradição romano-germânica, sendo um dos coordenadores Rolf Stürner, Professor Emérito da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Há, com efeito, numerosa produção acadêmica em defesa da adoção dos princípios da Lei Modelo da ONU em países de tradição romano-germânica, incluindo o registro por extratos5. No caso brasileiro, dediquei algumas páginas ao tema no meu livro Garantias das Obrigações, publicado em 20176, em que relaciono diversas fontes e exemplos do uso de extratos. Daí por que só posso crer que o Prof. Ricardo Campos, de quem desconheço interesses individuais que o desabonem para a função a que foi nomeado, tenha em boa-fé se deixado impressionar pelos velhos fantasmas que ecoam das vozes corporativas. Talvez lhe falte apenas conhecimento, em maior profundidade, da produção acadêmica atual sobre os registros eletrônicos. Ao afirmar que "a figura da "extratificação" se assemelha, em seus efeitos, a figuras como da utilização de atos infralegais para erodir ordens constitucionais ou da objetivação do direito para deteriorar a ordem de direito civil", permitiu-se comparar minha atuação e de outros estudiosos sérios a um dos capítulos mais tristes da Humanidade, o nazismo. No entanto, ignora que os extratos registrais são uma evolução do Direito Contemporâneo de reverberação mundial, celebrada inclusive no continente europeu e nos organismos internacionais. Criados no contexto do pós-guerra e oriundos da Liga das Nações, esses organismos prestam-se justamente ao oposto do que o articulista receia: ao modernizar e harmonizar institutos ancestrais, promovem a democratização do estado da arte, fortalecem os sistemas jurídicos e aprimoram seu impacto social, em cumprimento aos princípios constitucionais que, nos Estados republicanos, regem o interesse público. Espera-se que a Corregedoria Nacional de Justiça, ao regulamentar o tema, atente-se mais a esses princípios, deixando adormecer os ecos do atraso e da ignorância. __________ 1 J. ARMOUR, The Law and Economics debate about secured lending: lessons for European lawmaking? in H. Eidenmüller, E.-M. Kieninger (eds.), The Future of Secured Credit in Europe, ECFR special volume, p. 14, Berlin, De Gruyter, 2008. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.   4 Disponível aqui. 5 ALEJANDRO M. GARRO, Harmonization of personal property secutiry law: national, regional and global initiatives, in ULR, v. 1/2, p. 357 ss, 2003; Id., El concepto genérico, global e integrado de "garantía mobiliaria": perspectivas comparadas, in C. Larroumet (org), L'evolution des garanties mobilières dans les droits français et latino-americains, p. 87 ss, Paris, Édition Panthéon-Assas, 2016; GIULIANO G. CASTELLANO, Reforming Non-Possessory Secured Transactions Laws: A New Strategy?, in MLR, Vol. 78, No. 4, Jul. 2015, pp. 611-640; Id., Reverse engineering the law: reforming secured transactions law in Italy, in S V Bazinas, O Akseli (eds), International and Comparative Secured Transactions Law - Essays in honour of Roderick A Macdonald, Hart, 2017, pp. 285-326; LUIS. M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, 2ª. Ed, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 34-5; EVA-MARIA KIENINGER, Introduction: security rights in movable property within the common market and the approach of the study, in E.M. Kieninger (org.), Security Rights in Movable Property in European Private Law, p. 6, Cambridge, Cambridge University Press, 2004; JEAN-FRANÇOIS RIFFARD, Le Security Interest ou l'approche fonctionnelle et unitaire des sûretés mobilières, Presses Universitaires de la Faculté de Droit de Clermont-Ferrand / LGDJ, 1997, p. 25, nº 40. 6 FÁBIO R. P. E SILVA, Garantias das Obrigações, São Paulo, Ed. IASP, 2017, pp. 606 ss.
Sabem aquelas imagens dos testes de Rorschach na psicologia, em que uma borboleta parece uma bruxa, uma mulher parece um golfinho ou um tronco de árvore que realça o perfil de uma face humana? Acompanhadas da fatídica pergunta "o que você vê primeiro?", logo vem a promessa de que a resposta há de definir a personalidade do observador. Pois bem. Imaginem uma gleba subdivida por abertura de novas vias de circulação e implantação de infraestrutura urbana, cuja oferta ao mercado contempla a entrega futura de partes menores individualizadas (lotes) destinadas à edificação. Loteamento, condomínio de lotes, incorporação imobiliária ou incorporação de casas? A depender da sua primeira percepção, sua especialidade jurídica ou empresarial há de ser revelada. Três tipos de empreendimentos, três distintos conceitos com natureza jurídica completamente distintas. Mas, com certa frequência, eles renovam o debate no mesmo ritmo daquele frisson da internet acerca do vestido branco e dourado (ou preto e azul?). Separemos o "joio do trigo"! Incorporação imobiliária. No artigo 28, parágrafo único, e artigo 29, da lei 4591/74, o legislador a definiu como uma atividade empresarial exercida pelo empreendedor que assume o compromisso de vender frações ideais de terreno, vinculando-as às futuras unidades autônomas, com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações sob regime condominial. Sob ponto de vista empresarial, é comum a confusão entre incorporação imobiliária e o ato de construir em si. Mas, sob o aspecto jurídico, a incorporação imobiliária é um negócio jurídico que permite o exercício da atividade empresarial de venda de unidade a ser construída ou em construção em regime condominial. Vale comentar, inclusive, que, caso se trate de um condomínio edilício com unidades à venda somente depois da conclusão das obras, não há necessidade de ser feita a incorporação imobiliária. Haverá simplesmente a instituição de condomínio com a possibilidade de venda de unidades já existentes (e não futuras). O objetivo especial da incorporação imobiliária é dar identidade e regulamentar a venda de imóvel inexistente no momento da celebração do negócio (unidade futura). Loteamento. O artigo 2º, § 1º, da Lei 6.766/79, o definiu como uma modalidade de parcelamento do solo caracterizada pela subdivisão de uma gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. Nesta modalidade, desde o registro, conforme dispõe o artigo 22 da mesma lei, as vias de circulação, áreas institucionais, praças e espaços de uso coletivo (áreas institucionais) passam a ser de domínio público. Condomínio de lotes. Aqui, a explicação atrai um breve contexto histórico. Quando a Lei 4.591/64 definiu a atividade da incorporação imobiliária, o legislador a vinculou à venda de futuras unidades imobiliárias a serem construídas e submetidas ao regime condominial, recebendo tratamento específico no Título I da lei. Ou seja, o objeto desta atividade era a venda "na planta" de unidades de um edifício em construção. Neste formato, é instituído o condomínio edilício, cuja edificação passa a ter partes que são propriedade exclusiva (unidades autônomas) e partes que são propriedade comum dos condôminos. Logo, as áreas comuns (hall de entrada, piscina, espaços de circulação, entre outros) são de domínio particular. Talvez em razão das principais preocupações do mercado imobiliário da época estarem distantes da tímida atuação do loteador como empreendedor profissional, talvez por desatenção. Mas é certo que assim o legislador definiu. Ocorre que, aquele empreendedor - isto é, o loteador - que se compromete a subdividir uma gleba em lotes, promovendo a infraestrutura de urbanização com "abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes", também vende e promete entregar futuras unidades imobiliárias. Elas não estarão vinculadas a uma edificação nem submetida ao regime condominial, mas este empreendedor também oferta e negocia um imóvel que ainda não existe. Percebam, portanto, que a atividade empresarial em si é semelhante. Mas, por definição legal e diante da ausência de edificação e/ou do regime condominial, o loteador ficou fora da categoria dos incorporadores. O art. 3º, do Decreto-Lei 271/67, publicado três anos depois, tentou remendar a situação, ao dispor que: Art. 3º Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação. §1º O Poder Executivo, dentro de 180 dias regulamentará êste decreto-lei, especialmente quanto à aplicação da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, aos loteamentos, fazendo inclusive as necessárias adaptações. Porém, a regulamentação prometida no parágrafo primeiro nunca ocorreu. E, assim, um acirrado debate vem se arrastando por décadas: o loteamento poderia, ainda assim, ser submetido ao regime da incorporação? Seria possível subdividir uma gleba em lotes, sem vinculá-los a uma edificação, mas submetê-los ao regime condominial? Seria possível estabelecer áreas comuns em um loteamento? Se sim, poderia usufruir dos mesmos benefícios e deveres estabelecidos ao incorporador? O loteamento tido como "fechado" poderia ser constituído em regime condominial? O condomínio edilício, tal como previsto na Lei 4.591/64 e foi previsto no Código Civil de 2022, admitiria sua constituição sem vinculá-lo às edificações? As divergências entre os juristas pelo Brasil afora fizeram, inclusive, surgir normas estaduais que vedavam a venda de lotes em regime condominial (como em São Paulo); enquanto, em outros, admitia-se o registro deste tipo de empreendimento, contemplando as vias como áreas comuns e os lotes como áreas privativas (como ocorreu no Rio Grande do Sul, onde se tem notícia do primeiro condomínio de lotes registrado na cidade de Santa Maria em 1978). Como a demanda do mercado não respeita as lacunas ou omissões legislativas, o imbróglio acabou por não impedir o surgimento dos conhecidos "condomínios ou loteamentos fechados". Um empreendimento que, a olho nu, apresenta-se como um condomínio, com portaria e muro. Mas que tem a natureza jurídica de parcelamento do solo (loteamento propriamente dito) com vias de circulação e espaços comuns pertencentes ao domínio público, cujo controle do acesso é apenas concedido pelo Município de forma precária ao administrador do empreendimento. Mas, na verdade, são loteamentos, os quais a Lei 13.465/2017 tipificou como sendo loteamento com acesso controlado (artigo 2º, § 8º, da Lei 6.766/79). Foi somente com o advento da Lei nº 13.465/2017 que o assunto foi apaziguado no contexto da legislação federal. Ela incluiu o artigo 1.358-A no Código Civil, esclarecendo, enfim, que é possível sim ter um condomínio edilício independe de suas frações ideais estarem vinculadas a uma edificação. O dispositivo sofreu modificações também pela Lei 14.382/22 e, agora, vigora nos seguintes termos: Art. 1.358-A.  Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.  § 1º  A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.  § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes:     I - o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística; e II - o regime jurídico das incorporações imobiliárias de que trata o Capítulo I do Título II da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o empreendedor ao incorporador quanto aos aspectos civis e registrários. § 3º  Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.  Portanto, condomínio de lotes não é modalidade de parcelamento do solo. É forma de organização da propriedade imobiliária, revelando-se em uma espécie de condomínio edilício, pela qual a lei prevê que "pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos". No mesmo sentido, dispõe o artigo 2º, §7º, Lei 6.766/79, também incluído pela mesma lei de 2017, que estabelece: "o lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes". Vale comentar que, em razão do longo debate sobre o tema, bem como por força da competência constitucional atribuída aos Municípios para legislarem sobre seu ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, há locais que tratam o "condomínio de lotes" como uma tipologia de parcelamento do solo. Mas, este ponto merece estudo próprio, para o qual é essencial a leitura da obra de autoria do brilhante Bernardo Amorim Chezzi, o livro intitulado "Condomínio de Lotes: Aspectos Civis, Registrais e Urbanísticos" e publicado pela Editora Quartier Latin, chega à sua 2ª edição. Mas, para fins do contexto da legislação federal, restou expresso que a constituição do condomínio edilício, como um condomínio especial, pode se dar de forma desvinculada da edificação; e, agora, por expressa disposição legal, estabeleceu-se também que a oferta de suas futuras unidades durante a fase de construção da infraestrutura do condomínio de lotes poderia ser objeto da incorporação imobiliária. Percebem, portanto, que os conceitos não se confundem. Loteamento é a divisão de uma gleba em partes menores, transformando-a em vários imóveis menores e destinando as vias e espaços de uso coletivo ao domínio público. Condomínio de lotes é um condomínio especial que organiza a propriedade de um imóvel subdividindo-a a gleba em frações ideias, distinguindo o que é parte comum do que é privativo, sem vinculá-las às edificações e mantendo as vias e áreas comuns como de propriedade privativa. E incorporação imobiliária é uma atividade empresarial. Repito: incorporação imobiliária é uma atividade empresarial por expressa definição legal! Neste sentido, a legislação também impôs direitos, deveres e benefícios ao incorporador, especialmente para que essa atividade empresarial pudesse ser fomentada de maneira segura e ordeira, protegendo os adquirentes de futuras unidades, especialmente diante da sua relevância econômica no mercado brasileiro. Dentre os benefícios, encontra-se o RET, o Regime Especial Tributário instituído pela Lei nº 10.931/2004 que prevê um regime simplificado aplicável às incorporações imobiliárias que tenham sido submetidas ao patrimônio de afetação previsto nos artigos 31-A a 31-E da Lei nº 4.591/1964, contemplando uma forma de apuração dos tributos federais simplificada e reduzida. Esta lei diz: Art. 1º Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: I - entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Por definição legal, portanto, o RET foi permitido à atividade empresarial desempenhada pelo empreendedor que "assume o compromisso de vender frações ideais de terreno, vinculando-as às futuras unidades autônomas, com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações sob regime condominial" e que submete tal empreendimento ao patrimônio de afetação. Ou seja, o RET é permitido somente para os empreendimentos que podem ser objeto da incorporação imobiliária prevista na Lei 4.591/64; que, por sua vez, não abrange a atividade desempenhada pelo loteador na venda de futuros lotes. Tema que, inclusive, foi pacificado pela Solução de Consulta Cosit nº 196, de 05 de agosto de 2015, da Receita Federal.1 Contudo, para elevar o nível de dificuldade de distinção das "cores do vestido", eis que o legislador trouxe uma nova figura na Lei 14.382/22: a incorporação de casas, prevista nos seguintes termos: Art. 68. A atividade de alienação de lotes integrantes de desmembramento ou loteamento, quando vinculada à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 desta Lei ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, caracteriza incorporação imobiliária sujeita ao regime jurídico instituído por esta Lei e às demais normas legais a ele aplicáveis. § 1º A modalidade de incorporação de que trata este artigo poderá abranger a totalidade ou apenas parte dos lotes integrantes do parcelamento, ainda que sem área comum, e não sujeita o conjunto imobiliário dela resultante ao regime do condomínio edilício, permanecendo as vias e as áreas por ele abrangidas sob domínio público. § 2º O memorial de incorporação do empreendimento indicará a metragem de cada lote e da área de construção de cada casa, dispensada a apresentação dos documentos referidos nas alíneas e, i, j, l e n do caput do art. 32 desta Lei. § 3º A incorporação será registrada na matrícula de origem em que tiver sido registrado o parcelamento, na qual serão também assentados o respectivo termo de afetação de que tratam o art. 31-B desta Lei e o art. 2º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, e os demais atos correspondentes à incorporação. A nova figura misturou "alhos com bugalhos". A incorporação de casas é uma atividade empresarial desenvolvida pelo empreendedor imobiliário que faz um loteamento (isto é, parcela o solo, subdividindo a gleba em partes menores mediante a abertura de novas vias de circulação; e não o organiza como se fosse um condomínio edilício), mas promete entregar não apenas o lote, mas também a edificação sobre ele. Diante dessa paella de empreendimentos e atividades empresariais imobiliárias, a Receita Federal publicou recentemente a Solução de Consulta COSIT Nº 24, de 20 de janeiro de 2023, dispondo que: INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO. PARCELAMENTO DO SOLO MEDIANTE LOTEAMENTO. CONSTRUÇÃO DE UNIDADES HABITACIONAIS. ADMISSIBILIDADE DE ADESÃO. MARCO TEMPORAL. Anteriormente a 28 de junho de 2022, data de publicação da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, no DOU, o parcelamento do solo mediante loteamento, per se, ainda que contratualmente vinculado à opção de construção de unidades habitacionais segundo projetos previamente aprovados pelo órgão competente, era insuficiente para caracterizar a incorporação imobiliária, para fins de adesão ao Regime Especial de Tributação (RET) instituído pelos arts. 1º a 10 da Lei nº 10.931, de 2004. A partir de 28 de junho de 2022, o parcelamento do solo mediante loteamento caracteriza a incorporação imobiliária, para fins de adesão ao Regime Especial de Tributação (RET) instituído pelos arts. 1º a 10 da Lei nº 10.931, de 2004, desde que sejam atendidos os requisitos da legislação de regência, entre os quais se destaca a vinculação da atividade de alienação de lotes integrantes do loteamento à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 da Lei nº 4.591, de 1964, ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 1979. SOLUÇÃO DE CONSULTA PARCIALMENTE VINCULADA À SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 196, DE 5 DE AGOSTO DE 2015. Dispositivos Legais: Lei nº 4.591, de 1964, arts. 28, parágrafo único, 29 e 68; Lei nº 6.766, de 1979, art. 2º, §§ 1º e 2º; Lei nº 10.406, de 2022 (Código Civil), art. 1.358-A; Lei nº 10.931, de 2004, arts. 1º e 4º; Lei nº 14.382, de 2022, arts. 10 e 14; Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013, art. 2º, § 1º. A leitura dinâmica nas mídias sociais levou milhares de loteadores e advogados à ligeira felicidade de que, enfim, o RET seria aplicado ao loteamento. Porém, há ali um "desde que" que muda tudo. Vejam: "(...) desde que sejam atendidos os requisitos da legislação de regência, entre os quais se destaca a vinculação da atividade de alienação de lotes integrantes do loteamento à construção de casas". Esta ressalva feita pela Consulta define que objeto da resposta é - e tão somente - a incorporação de casas; o que já está previsto no artigo 68 da Lei 4.591/64, e que, portanto, pode sim ser submetida ao patrimônio de afetação e, por conseguinte, usufruir dos benefícios do RET. Aliás, o contribuinte que formulou a consulta queria, na verdade, questionar a Receita Federal sobre o RET em condomínio de lotes. Mas, a resposta acabou por tratar de loteamento. Novamente, uma mistura de joio e trigo. O assunto, então, poderia ser organizado da seguinte forma: Em suma: Onde há incorporação imobiliária, pode ter RET; onde não há incorporação imobiliária, não tem RET. Isso porque o legislador assim definiu. Ele enxergou branco e dourado ao invés de preto e azul. É clarividente que a diferença é tênue. A atividade do empreendedor loteador, cada vez mais expressiva e pujante no mercado pós-pandemia, urge por um reconhecimento no mesmo patamar do incorporador. E, por isso, são esperançosas e animadoras as teses em defesa da suficiência do disposto no art. 3º, do Decreto-Lei 271/67 e os movimentos de propositura legislativa que possam promover essa plena equiparação.   Porém, é importante pontuar que, em defesa da segurança e previsibilidade jurídica, é razoável perseguirmos o respeito à lei - qualquer que seja - ao invés de insistirmos na imposição de interpretações extensivas que acabam por criar instabilidade nas relações negociais. Assim sendo, diante do arcabouço legislativo vigente neste momento, trazer o RET para todas as modalidades de loteamento demanda alteração legislativa. Como, por exemplo, sugere a proposta da Emenda 63 à Medida Provisória nº 1.162, de 2023, que propõe alteração na Lei 6.766/79 e na Lei 10.931/2004 para expressamente dispor sobre a possibilidade do loteador - em qualquer que seja seu empreendimento (com ou sem casas em construção) - optar pelo RET. Mas, ainda resta o debate se a expressa opção seria suficiente ou se não seria necessário também o acréscimo, na Lei 6.766/79 ou na Lei 4.591/64, da equiparação do loteador ao incorporador, ou da previsão do loteamento ser objeto de incorporação imobiliária, já que o art. 1º da Lei nº 10.931/2004 ao dispor sobre o RET, estabelece que é um regime exclusivo à incorporações imobiliárias que tenha constituído o patrimônio de afetação. Essa equiparação, permitiria o loteador, enfim, ser reconhecido como um empreendedor imobiliário. Um pequeno ajuste de foco. E todos enxergarão que o "vestido" era mesmo preto e azul. Ou, enfim, perceberão todos as cores, ops! Nuances multidisciplinares dos empreendimentos imobiliários.  __________ 1 ASSUNTO: NORMAS DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. EMENTA: REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO. INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS. O Regime Especial de Tributação (RET), instituído pelos arts. 1º a 10 da lei 10.931, de 2004, aplica-se exclusivamente às incorporações imobiliárias, não sendo, portanto, extensivo ao parcelamento do solo, mediante loteamento ou desmembramento. Caso ocorra posterior incorporação realizada nos lotes resultantes do parcelamento, o incorporador poderá aderir ao RET e ter as receitas decorrentes da incorporação tributadas na forma prevista no art. 4º da lei mencionada, desde que observados os requisitos previstos na Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 10.931, de 2004, arts. 1º e 4º; lei 4.591, de 1965, arts. 28, parágrafo único, e 29; lei 6.766, de 1979, art. 2º, §§ 1º e 2º; IN RFB nº 1.435, de 2013, art. 2º, § 1º. Disponível aqui. Acesso em 13. fev. 2023.
Não são raros os exemplos de cidades que sofreram com a degradação de seus centros e que buscaram, de diversas formas, a sua revitalização, nem sempre com sucesso.  Tomando como exemplo São Paulo, assistimos um processo de espraiamento da Cidade e de acentuado deslocamento do centro financeiro e de grande parte do comércio estabelecido no centro para outras regiões.   Há quem atribua como causa inicial desse êxodo das empresas rumo a outras centralidades, o fato de ter sido implantado na década de 70, o denominado "calçadão", solução urbanística pela qual se restringiu sobremaneira o tráfego de veículos na região central, prestigiando o deslocamento a pé.   Com o tempo, os calçadões se tornaram espaços desagradáveis, seja pela qualidade do piso, seja pela ausência de definição de faixas de circulação para veículos de serviços ou ainda, pelo desconforto de, em dias de chuva por exemplo, se chegar ao destino pretendido apenas a pé.  O fato é que com a desocupação dos imóveis voltados a atividades não residenciais nessa região dos calçadões, as mazelas do abandono acabaram sendo irradiadas para outras áreas do centro da Cidade nas quais não se tinha introduzido a solução dos calçadões.  Ainda que não haja apenas um motivo causador do esvaziamento do centro da Cidade, mas sim a conjugação de vários fatores, o que se verifica é que a região se encontra degradada e em absoluta situação de abandono, em que pese ainda podermos constatar uma ou outra hercúlea e isolada iniciativa de lá desenvolver uma atividade empresarial.  Não bastasse o aspecto histórico (riqueza do patrimônio cultural do qual podemos destacar o Teatro Municipal, Bibliotecas, Museus, monumentos, etc), o centro oferece todos os importantes equipamentos públicos (mercados públicos, sacolões, dezenas de unidade de ensino público infantil, fundamental e médio, unidades de ensino técnico público, além das unidades do SENAI, SESI, SENAC, ambulatórios especializados, UBS, dezenas de hospitais,  agências do Correios, Poupatempo e as várias estações de Metrô e estações de ônibus).  Para agravar essa situação de esvaziamento da região central, o advento da pandemia da COVID-19 provocou mais esvaziamento, alcançando alto índice de vacância dos imóveis e baixa probabilidade de futura ocupação diante da modificação da cultura de trabalho, com a implementação do trabalho remoto.  A propósito, interessante reportagem trazida pela revista The Economist destaca essa situação que também está sendo experimentada em Manhattan onde a taxa de vacância dos escritórios está em seu maior recorde. Muitas lojas e restaurantes que tinham como clientes, os trabalhadores que iam aos seus escritórios, com o trabalho remoto, tais estabelecimentos estão fechando ou enfrentando graves problemas para manter-se na ativa.  Essa situação, conforme relata a reportagem, levou o Prefeito Eric Addams e o Governador do Estado Kathy Hochul a apresentarem um plano para transformar a cidade de Nova Iorque, com 40 iniciativas atacando três amplas áreas: distritos comerciais, mobilidade e moradia, sempre levando em conta crescimento e equidade (fonte).  Uma das iniciativas se volta na transformação dos imóveis até então utilizados para atividades não residenciais, para unidades destinada à moradia.  Assim contextualizada a situação, é que devemos analisar a alteração trazida no Código Civil, referente à mudança de destinação de um condomínio edilício.   No âmbito dos condomínios edilícios, a exigência de unanimidade para a alteração da destinação do edifício ou mesmo de uma única unidade autônoma, sempre se mostrou como um grande empecilho às transformações arquitetônicas, de molde que, por iniciativa do Senador Carlos Portinho (PL 4.000/21), foi modificada a redação do artigo 1351, do Código Civil para permitir a alteração da destinação da edificação mediante a aprovação de 2/3 dos condôminos, o que certamente contribuirá para tal finalidade.   Acontece, todavia, que não se pode perder de vista que a alteração da destinação da edificação pode afetar o direito de propriedade dos condôminos, na medida em que é possível encontrar proprietários de unidades autônomas que exerçam o seu direito de propriedade há muito e não desejam a modificação, a qual pode inclusive causar prejuízos financeiros expressivos. Por exemplo: um escritório de advocacia há muito situado em um determinado edifício que seja transformado em edifício exclusivamente residencial. De um momento para o outro, diante da alteração, estaria esse condômino impedido de seguir com a exploração de sua atividade empresarial diante da decisão assemblear de alterar a destinação do edifício para uso residencial. Deparamo-nos aqui com o primeiro questionamento: a alteração da destinação do edifício é impositiva (todas as unidades deverão ter a nova destinação, conforme deliberado em assembleia) ou autorizativa (os condôminos que quiserem dar às suas unidades a nova destinação, passam a estar autorizados a assim proceder)?  À primeira vista, parece-nos que o texto legal é imperativo, ou seja, 2/3 dos votos dos condôminos podem mudar a destinação do edifício ou da unidade autônoma, cabendo aqui lembrar o disposto no artigo 1.336 do Código Civil, que impõe como dever dos condôminos "IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes".   Todavia, vale ressaltar que essa interpretação literal do artigo poderá levar a teratológicas situações, por exemplo, em que 2/3 dos condôminos titulares de unidades destinadas a uso não residencial deliberem que as demais unidades correspondentes a 1/3 do condomínio tenham sua destinação modificada para uso residencial (ou vice-versa), o que poderia caracterizar situação de abuso de direito que não compatibilizaria com o objetivo da norma.    O que parece dar guarida à imposição da mudança da destinação do edifício por deliberação de 2/3 dos condôminos é antes de tudo, o respeito ao princípio constitucional do cumprimento da função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII).  Nesse sentido, a recomendação que se faz para aqueles que pretendam modificar a destinação do edifício mediante aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos, que o faça calcado em justificativas técnicas demonstrando que tal como se encontra o edifício, não se tem exploração sustentável, tampouco estão as unidades autônomas, ao menos em sua maioria, cumprindo sua função social.  Assim, justificada a alteração da destinação, não nos parece viável que algum condômino descontente com a mudança possa impedir que ela se opere.  Outra questão que se apresenta se refere ao quórum para alteração da fachada.  Como se sabe, o inciso III do artigo 1336 do Código Civil impõe como dever do condômino "III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas"; tal como previsto no inciso I do artigo 10 da lei 4591/64.  Ocorre que se a Assembleia Condominial aprovar, por 2/3 dos condôminos, modificar a destinação do edifício, seria plausível exigir a aprovação da unanimidade dos condôminos para alterar a fachada da edificação?  A nosso ver, a exigência do quórum especialíssimo da unanimidade não se mostra razoável devendo aqui prevalecer a máxima "a maiori, ad minus", razão pela qual as alterações de fachada que decorram exatamente da modificação de destinação da edificação poderiam ser aprovadas pelo quórum de 2/3 dos condôminos.  Outro ponto que cabe reflexão está relacionado à irretroatividade da lei.  Sem pretender exaurir o tema, não se pode deixar de consignar que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada conforme assegurado pelo inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal.   No âmbito condominial, há muito se consolidou o entendimento de que, diante da natureza estatutária dispositiva da convenção de condomínio, o Código Civil se sobrepõe às normas da convenção anteriormente instituída, não obstante em reiteradas oportunidades, igualmente se verificou que, não tendo sido revogados expressamente os artigos 1º a 27, da lei 4.591/64, aplicam-se seus dispositivos para condomínios constituídos antes de 11 de janeiro de 2003.  Por isso, cabe indagar sobre a hipótese de condomínio com determinada destinação instituído antes da alteração do artigo 1351, CC, contemplando regra na convenção de que a alteração somente poderia ocorrer mediante quórum de unanimidade, se esta regra estaria superada e derrogada pela lei 14.405/22. A princípio, tratando-se as normas da convenção de condomínio de meras restrições ao direito de propriedade, contornos ao seu exercício, a alteração da destinação não constituiria uma limitação, no sentido conferido por Pontes de Miranda, de subtração do direito de propriedade, de modo que esta alteração aprovada pela maioria qualificada teria o condão de impor a todos os condôminos esta nova conformação da propriedade, no âmbito deste condomínio, posto que não diminui o conteúdo do direito de propriedade, mas apenas o reduz. Tal alteração todavia exigirá uma análise específica em cada situação em concreto, posto que a convenção de condomínio poderá contemplar regras mais restritivas e não necessariamente sujeitas à supressão pela lei nova, especialmente quando afetar a esfera jurídica patrimonial de algum condômino, não de forma genérica, mas de forma específica e determinante.   Por tratar de matéria relacionada ao direito de propriedade, garantido nos termos do inciso XXII do art. 5º da C. F., cabe questionar: a alteração do artigo 1.351 do Código Civil seria inconstitucional?  Na nossa opinião, não.  Com o devido respeito às opiniões contrárias, dentre elas, aquela constante do parecer exarado pela respeitabilíssima Comissão de Direito Condominial da OAB, Subseção São Paulo, não há inconstitucionalidade na alteração, a qual, inclusive em controle de constitucionalidade preventivo, pela Comissão de Constituição e Justiça, assim não foi entendido. Como é sabido, o direito de propriedade, apesar de constituir direito fundamental, deve sempre observar sua função social, a qual se expressa inexoravelmente no âmbito condominial na compatibilização dos direitos e deveres dos condôminos, conforme deliberações nas assembleias gerais, mediante o quórum qualificado quando a lei assim determinar, observado o consagrado princípio da pluralidade dos direitos reais limitados concebido por Wilson de Campos Batalha.  A alteração da destinação é uma das hipóteses que somente poderá valer a partir da aprovação pela maioria qualificada de 2/3 dos condôminos, de modo que a alteração, atendido o quórum, será legal, impondo inclusive aos dissidentes o dever de cumprimento da nova deliberação.  As circunstâncias do caso em concreto merecem ser analisadas, à luz até mesmo do princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro - a intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), posto que também não vislumbra coerente, justo e ético, que se desconsidere o uso efetivo da propriedade, sob o argumento de que os demais desejam outra destinação para o edifício. Seria então o caso de se buscar uma indenização para aquele que se sentir prejudicado pela decisão da maioria? Cumpre sopesar direitos fundamentais de modo a construir uma solução jurídica compatível com o sistema, o que pode ensejar, desde a definição de uma destinação mista, até a venda da unidade pelo condômino, com a aplicação dos artigos 14 e 15, da lei 4591/64 de modo que a maioria pudesse adjudicar as unidades da minoria. Eventual pleito indenizatório, nesta hipótese, dependeria da demonstração da ocorrência de ato ilícito, como a própria demonstração do abuso do direito (art. 187, CC), não simplesmente da alteração da destinação, ainda que possa ser causadora de prejuízo ou insatisfação do condômino dissidente, posto que a alteração constituiria, em regra, exercício regular de direito. Como se verifica, em apertada análise, o tema é deveras controvertido, de extrema relevância e aplicação prática, merecendo especial atenção e cuidado em sua aplicação, de modo a atender aos melhores interesses do condomínio, em sua maioria qualificada, atendendo, desta forma, a função social da propriedade. Muitas outras repercussões decorrem da análise dos programas de requalificação dos imóveis que vem sendo incentivados em diversos municípios, o que será objeto de outros comentários futuros.
A aquisição de imóvel em construção é, ou deveria ser, uma das decisões mais importantes dos consumidores, por envolver, para a grande maioria deles, recursos financeiros muito elevados em relação à sua renda. Poucos são aqueles que podem adquirir um imóvel à vista, sendo quase sempre necessário um longo parcelamento, que constitui compromisso assumido por anos ou mesmo décadas, seja com a incorporadora, seja com um banco financiador. Por outro lado, para a empresa produtora, planejar, adquirir o terreno, aprovar e construir o empreendimento é atividade das mais complexas e difíceis, diante da responsabilidade de entregar em prazo determinado uma edificação de alto valor. A aquisição se dá usualmente por meio de um contrato de promessa de venda e compra entre a incorporadora (fornecedor) e o adquirente (consumidor), regrado pelo Código Civil, pela Lei 4.591/64 e também tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), a lei 8.078/90. Nessa relação contratual, a rescisão do contrato pelo adquirente, mediante desistência do negócio, justificada ou imotivada, com o recebimento em devolução de parte dos valores pagos, tem sido chamada de forma pouco técnica simplesmente por "distrato".  Trata-se de uma das questões mais complexas e importantes das relações contratuais consumeristas e de direito imobiliário. A promessa de venda e compra de bem imóvel é, em regra, irretratável, conforme art. 22 do decreto-lei 58/1969, arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil e, especificamente no âmbito da incorporação imobiliária, pelo parágrafo 2º do art. 32 da lei 4.591/64. Embora o texto original da Medida Provisória 1095/2022 revogasse esta última disposição, a irretratabilidade foi mantida com a conversão da MP na Lei 14.382/2022. A manutenção de tal atributo ao contrato é de grande importância, pois sua supressão poderia dar margem a duas interpretações indesejadas e contrárias ao consumidor: a que qualquer das partes poderia pleitear o desfazimento do negócio ou que seu registro não conferiria direito real oponível a terceiro (pelo art. 1.417 do Código Civil a irretratabilidade é condição do direito real). Entretanto, há tempos a jurisprudência é pacífica no sentido de que o comprador de unidade autônoma, adimplente ou não, pode pleitear o desfazimento do negócio, recebendo em devolução parte dos valores pagos. A matéria foi, inclusive, objeto da Súmula 1 do Tribunal de Justiça de São Paulo1. E a chamada "Lei dos Distratos" (lei 13.786/2018) veio positivar essa possibilidade, com a inclusão do art. 67-A na Lei de Incorporações. Assim, a rescisão do contrato, por iniciativa do adquirente ou por seu inadimplemento, é admissível, mediante a penalidade estabelecida contratualmente, com base na lei. O ponto de maior divergência sempre residiu justamente em qual o percentual dos valores pagos poderá ser retido pela incorporadora. As decisões judiciais anteriores à lei variavam em uma retenção entre 10% e 25%, sendo que no período mais imediato antes da nova norma, prevalecida no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o percentual em torno de 25%. E, por meio da Súmula 543, o STJ determinou a devolução dos valores à vista2. A possibilidade do comprador, no caso de pretender o desfazimento contratual,  receber de volta a quase totalidade dos valores por ele pagos, corrigidos monetariamente e em de um única vez, se constituiu em verdadeiro incentivo ao litígio. Ao menor desconforto financeiro, ou ficando em dúvida quanto a ter ou não realizado bom negócio, os adquirentes partiram para o chamado "distrato", gerando severo impacto para as empresas do setor. A promessa de venda e compra irrevogável foi convertida em uma verdadeira "opção", em que o adquirente ao longo do tempo e, conforme sua conveniência, decidia se mantinha ou não o negócio, praticamente sem penalidade.  Poderia até mesmo fazer uma aposta: se o imóvel valorizar, a compra é mantida; se não valorizar, exige-se a devolução de quase todos os valores pagos, corrigidos monetariamente. Essa situação, é claro, distorceu totalmente a atividade econômica, que necessita de um mínimo de segurança e previsibilidade. Embora o fenômeno dos distratos seja jurídico, está relacionado diretamente com o momento econômico, pois as "desistências" aumentam exponencialmente em situações de crise, como nos anos de 2015 e 2016, em que o índice de distratos sobre vendas superou 40%3, levando inúmeras empresas à recuperação judicial ou mesmo quebra, paralisação de centenas de obras, com os consequentes efeitos negativos, não apenas para as incorporadoras, mas para os compradores adimplentes, para os empregados e para o mercado em geral.  Muitas dessas decisões não consideravam aspectos importantes da incorporação imobiliária, especialmente o conceito do patrimônio de afetação, criado pela lei 10.931/2004, justamente para dar maior proteção ao grupo de condôminos e evitar atrasos e paralisação nas obras. Ao ser adotado o patrimônio afetado, os recursos obtidos em um empreendimento têm necessariamente que ser destinados para o término das obras e quitação do financiamento e não para outras finalidades, havendo inclusive vedações para retirada de valores pela empresa, antes de garantidas receitas para término da construção. Esse patrimônio especial tem o objetivo de blindar as contas do empreendimento, em benefício da comunidade de consumidores. É de grande importância que, em um empreendimento de altíssimo custo e longo prazo de produção, haja controle e previsibilidade dos recursos com que se pode contar e com as despesas que se incorrerá. Nesse sentido, a quantidade de apartamentos vendidos e recebimento das parcelas do preço tornam-se uma questão fundamental sobre a segurança em se desenvolver o projeto. Tanto é assim que o art. 34 da lei 4.591/1964 permite à incorporadora estabelecer previamente ao lançamento, como condição de prosseguir com a edificação, ter vendido um número mínimo de unidades. Trata-se de norma para proteger a todos os envolvidos, pois há risco considerável, também para os compradores, o prosseguimento de uma obra sem uma quantidade de vendas mínimas para manter seu equilíbrio financeiro. Ora, se o próprio ordenamento jurídico compreende essa situação, não poderia ele ser condescendente com o esvaziamento dos compradores em uma obra em desenvolvimento. A facilidade conferida ao adquirente de se desobrigar do compromisso assumido, drenando recursos do patrimônio afetado, tornou-se sério risco para a continuidade das obras e entrega do empreendimento e, assim, acabou se configurando também uma ameaça aos consumidores que permaneciam adimplentes. Os efeitos e impactos do distrato devem ser analisados dentro do contexto da incorporação e do patrimônio afetado, que congrega a produtora do bem e o conjunto de adquirentes. Por se tratar de atividade que demanda capital elevado para a construção, desde 1964 há no Brasil um sistema para viabilizar e incentivar a produção de moradias, o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), posteriormente complementado também pelo Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). O SFH permite que a incorporadora tenha acesso a financiamento bancário para realização das obras e que os adquirentes possam financiar sua aquisição por longo prazo, com juros menores. O financiamento para a incorporadora é muitas vezes um requisito necessário para a realização do empreendimento e somente é acessado após atingido determinado número de vendas, por exigência do agente financeiro. Por sua vez, a quitação do financiamento se dá logo que concluídas as obras, normalmente quando os adquirentes quitam os apartamentos, com recursos próprios ou contraindo financiamento bancário de longo prazo. Nesse contexto, a elevação do número de distratos tem gravíssimos efeitos sobre o empreendimento. Com um contrato rescindido, deixa de ingressar no patrimônio de afetação o valor das parcelas contratadas por aquele adquirente e, pior, é necessário retirar valores que seriam carreados para a obra, para entregar ao desistente. Com menos recursos ingressando na obra, aumenta-se o risco de atrasos, o que gera obrigação de pagamento de multa pela incorporadora. Um número elevado de distratos na fase inicial pode fazer com que a incorporadora não atinja o numero mínimo de vendas para liberação do financiamento, comprometendo a saúde financeira do projeto. E ainda, com muitos distratos ao longo da fase de obra, a incorporadora tem menos recursos para quitar o agente financeiro, tendo que repactuar prorrogações a juros maiores ou mesmo sofrendo execução bancária. Também por tais razões, os impactos dos distratos podem ser muito severos para as empresas e até para os consumidores adimplentes. Há outro elemento não percebido de imediato: com o aumento do risco proporcionado pelos distratos, as condições de obtenção de financiamento e taxas de juros tornaram-se maiores, elevando o preço final da habitação. A chamada Lei dos Distratos veio com o objetivo de ajustar essa perigosa distorção. Foi estabelecida uma diferença entre as obras não submetidas ao patrimônio de afetação e aquelas que adotam tal regime. Nas primeiras, a incorporadora está autorizada a prever no contrato a retenção de 25% dos valores pagos no caso de desfazimento do negócio, enquanto que nos empreendimentos submetidos ao regime de afetação, a multa contratual pode ser de 50%.  Também no caso do patrimônio de afetação e justamente para proteger o interesse dos adquirentes, a devolução se dá trinta dias após o certificado de conclusão das obras, norma de grande importância para o equilíbrio do empreendimento e que derroga parte da citada Súmula 543 do STJ, que determinava devolução imediata. Embora tenha considerado os impactos acima referidos, a norma que prevê a penalidade de 50% das importâncias pagas não foi bem recebida por parte da jurisprudência, por entender se tratar de percentual elevado. Tais decisões têm afastado a cláusula que prevê tal percentual, ou por considerá-la "abusiva", ou valendo-se do art. 413 do Código Civil, segundo o qual "a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio".   A divergência já se encontra no STJ, com decisões favoráveis e contrárias à cláusula que segue o parâmetro legal.  No primeiro caso, é exemplo o Agravo em Recurso Especial 2062928-SP, relator min. Luis Felipe Salomão, de 24/03/2022. Já no segundo, citamos Recurso Especial 1979096-SP, relator Min. Moura Ribeiro, de 01/02/2022. Com todo o respeito às decisões contrárias, não se pode considerar uma prática abusiva a aplicação de penalidade em absoluta consonância com lei expressa e especial.  Além disso, no que se refere ao art. 413,  sua aplicação ocorre quando a multa é estabelecida livremente pelas partes, sem seguir parâmetros legais,  mas não quando segue preceito normativo a respeito, como no caso concreto. Se a penalidade foi estabelecida na própria legislação, a cláusula contratual não pode ser "manifestamente excessiva." Entretanto, o cerne principal da questão é que as decisões judiciais que afastam a penalidade permitida pela lei não levam em conta - até porque muitas vezes não são devidamente informados - os graves impactos e riscos que os distratos trazem para a incorporadora, para o patrimônio de afetação e para os demais consumidores. A nova lei, em atenção à própria análise econômica do direito, veio com o objetivo de harmonizar a relação contratual, desincentivando a desistência abusiva que tantos riscos trazia para essa atividade essencial. A lei traz a correta finalidade de proteger o empreendimento e os consumidores que nele permanecem, esforçando-se para pagar as parcelas do preço com a justa expectativa de receber sua casa própria. Pode-se dizer, assim, que para efetivo enquadramento da questão, é necessário vê-la além do plano da relação individual de certo comprador com determinada incorporadora. Há uma segunda dimensão, que congrega a saúde financeira do patrimônio de afetação e a necessidade de proteger os demais adquirentes para que o empreendimento chegue a bom termo, dentro do prazo. E, em uma dimensão mais ampla, a banalização do compromisso contratual e incentivo aos distratos podem ameaçar não apenas o empreendimento em si, mas também a própria atividade econômica e social de produção de moradias a preços acessíveis, aumentado custos e risco para as empresas, dificultando financiamento e elevando juros bancários.  Como resultado, tem-se a indesejada elevação de preços dos imóveis, retratação na oferta de habitação e na geração de empregos. Como se vê, a questão é de suma importância e transcende a relação entre as partes contratantes. __________ 1 Súmula 1: O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem.  2 Súmula 543: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de venda e compra de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, no caso de culpa exclusiva do incorporador/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. 3 Pesquisa FIPE/Abrainc.
Questão ainda tormentosa na jurisprudência é definir sobre o cabimento ou não do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) nas permutas de imóveis de valores distintos sem a torna do preço. A permuta imobiliária é o negócio jurídico por meio do qual uma parte dá imóvel de sua propriedade a outra pessoa em troca de outro imóvel, de propriedade dessa segunda pessoa. Trata-se da troca de bens imóveis que podem ter ou não o mesmo valor monetário. A permuta de imóveis pode ser feita com ou sem torna em dinheiro. A permuta com torna ocorre quando, além da transferência da titularidade do imóvel, uma das partes efetua pagamento em dinheiro como complementação do pagamento pela titularidade do imóvel que está recebendo. Neste artigo, buscaremos demonstrar que na ausência de torna e diante da natureza onerosa da permuta, é impraticável exigir ITCMD na operação, ainda que os imóveis permutados tenham valores diferentes. Segundo a Constituição Federal, é da competência dos estados e do Distrito Federal exigir o ITCMD: "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;" A Constituição diz ainda ser da competência dos municípios a cobrança do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI): "Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;" Definidas as hipóteses de incidência tributária acima descritas, é necessário verificar a definição legal da permuta e da doação. De acordo com o artigo 538 do Código Civil, entende-se por doação "o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra." Portanto, para que se esteja diante de doação, é preciso que haja ato de mera liberalidade, não oneroso. Em relação à permuta, embora não exista conceituação sobre ela no Código Civil, há nele disposições que ajudam a diferenciá-la da doação: "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante." Como dito, a permuta imobiliária pode ocorrer sob duas modalidades: com ou sem torna em dinheiro. A torna ocorre quando, além da troca da titularidade dos bens imóveis, há o pagamento de resíduo (diferença) do valor dos bens de uma parte a outra em dinheiro. O entendimento majoritário da doutrina é que, em caso de torna, seu valor não pode superar 50% do valor do imóvel que se recebe em permuta, sob pena de se descaracterizar a permuta - caso supere, teríamos venda e compra de imóvel com dação em pagamento. Para que se caracterize a permuta, é essencial haver ato oneroso. Os conceitos legais de permuta e doação, portanto, não se confundem nem se assemelham. Outra consequência do artigo 533 do Código Civil é que, nas permutas de imóveis, por representarem transferência onerosa, haverá a incidência do ITBI, como já estabelecido na jurisprudência. Sobre o eventual ganho de capital em permutas de imóveis sem torna, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta Cosit 166/19 e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional lavrou o Parecer PGFN/CRJ/COJUD SEI 8.694/2021/ME esclarecendo que não haverá ganho de capital a ser tributado pelo imposto de renda na permuta sem torna. Detalhados os conceitos legais de ambos os institutos, passamos a examinar a possibilidade de se exigir o ITCMD nas permutas sem torna de imóveis de valores distintos. Na prática imobiliária e tributária, existem muitos questionamentos, seja por parte dos notários ou registradores ou mesmo das autoridades fazendárias, que buscam recolher o ITCMD na permuta sem torna de imóveis de valores distintos. Um exemplo dessas discussões é a resposta dada pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo à Consulta Tributária 21.030/19. Segundo a secretaria, "a permuta envolvendo imóveis de diferentes valores, realizada sem a devida compensação financeira, caracteriza uma doação, operação sujeita à tributação do ITCMD (...)". O mesmo entendimento teve o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, para o qual a permuta de bens imóveis de valores distintos sem torna representaria "acréscimo patrimonial de forma não onerosa a caracterizar doação."1 Em nossa visão, atropelam-se e embaralham-se diversos conceitos jurídicos na decisão. Permuta e doação, como visto, não se confundem nem se assemelham. Enquanto a permuta é necessariamente onerosa, a doação é sempre a título gratuito. Não podem as autoridades, portanto, sejam os registradores, os notários ou mesmo as fazendárias, se valer de equiparação ou presunção para sustentar que, diante de permuta de imóveis de valores distintos em que não haja a torna em dinheiro da diferença, se estaria diante de doação disfarçada e, assim, exigir o ITCMD sobre o valor da diferença dos imóveis. As razões que demonstram o desacerto dessa forma de proceder das autoridades são variadas. Caso as autoridades estejam convencidas de que não se trata de permuta sem torna, mas sim de doação simulada, há no Código Civil e no Código de Processo Civil condições, procedimentos e ritos a serem observados para a desconsideração do negócio jurídico. Os artigos 166 a 170 do Código Civil regulamentam justamente os conceitos de atos nulos. Já os artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil estabelecem o rito a ser observado para a desconsideração dos negócios jurídicos: Código Civil: "Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º  Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. § 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes. Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade." Código de Processo Civil: "Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. § 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. § 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. § 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. § 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. § 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º. § 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente." Sem a observância do rito imposto pelo Código de Processo Civil, portanto, não podem as autoridades, ao seu arbítrio e de maneira subjetiva e discricionária, requalificar a permuta sem torna em doação, especialmente para viabilizar a exigência de tributo. Isso porque, além do necessário respeito ao rito comentado acima, há no Código Tributário Nacional norma expressa que veda o uso da analogia para fins de exigência tributária: "Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido." Não se pode, portanto, aplicar entendimento por analogia, semelhança, equiparação ou presunção de institutos positivados no direito brasileiro para fins de exigência de tributos, como também veda o artigo 110 do Código Tributário Nacional: "Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias." É pertinente relembrar as razões do voto-condutor do ministro Gurgel de Farias no julgamento do RESP 1.937.821/SP - sobre o qual comentamos em outro artigo escrito em co-autoria. Na ocasião, assentou-se que "a base de cálculo do ITBI é o valor venal em condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo, pode sofrer oscilações diante das particularidades de cada imóvel, do momento em que realizada a transação e da motivação dos negociantes". O comentário do ministro Gurgel de Farias é fundamental, pois, afinal, a presunção reinante no sistema normativo brasileiro é a de boa-fé das partes, conforme disposto no artigo 113 do Código Civil: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei." Além disso, a bitributação de uma mesma grandeza econômica por entes distintos configuraria invasão de competência constitucional, o que não é permitido. Com isso queremos dizer que, se nas permutas, com ou sem torna, há visível obrigação de pagamento do ITBI sobre o valor efetivo da transação, não se pode cogitar da concomitante exigência do ITCMD nessa mesma transação. Outro ponto fundamental é que os valores dos imóveis em uma permuta não se restringem necessariamente àqueles determinados pelo mercado. Em não raras circunstâncias, inclusive de foro íntimo das partes, é possível que se permutem, sem torna, imóveis de valores distintos, em virtude de preferência da localização física do outro imóvel, do seu padrão, da finalidade de uso ou mesmo de repentino desinteresse ou desencanto pelo imóvel a ser permutado. Para os proprietários, o valor material desse imóvel pode não corresponder ao valor atribuído pelo mercado. O valor para o seu titular, em determinadas circunstâncias, passa a ser secundário, pois o desejo mais imediato é o de se desfazer daquele imóvel. Não necessariamente, portanto, o descasamento entre os valores do imóvel numa permuta sem torna deve ser tratado como uma doação disfarçada. É preciso haver provas contundentes das autoridades de que se está diante de ato simulado ou fraudulento para justificar a sua desqualificação ou requalificação. Justamente nesse contexto é que a juíza de direito das 1ª e 2ª varas de registros públicos da comarca de São Paulo afastou a cobrança do ITCMD em permuta sem torna de imóveis de valores distintos.2 Sobre o desbalanceamento entre os valores dos imóveis objeto de permuta sem torna, a magistrada pontuou que: "De fato, para os contratantes, o valor intrínseco dos bens pode ser bastante variável, ganhando relevante valorização por questões personalíssimas de fundo emocional e afetivo tornando-se desinteressantes e até desprezíveis por alterações na condição de vida de cada um, como no caso da requerente que informa ter se mudado para Portugal, o que a impede de usufruir o imóvel rural, preferindo imóveis urbanos com a expectativa de retorno financeiro que não alcançaria com o sítio." Estamos assim convencidos que a permuta sem torna de imóveis de valores distintos apenas pode justificar a exigência do ITCMD se houver evidências concretas de simulação ou fraude do ato. Além disso, deve-se observar o rito previsto no Código de Processo Civil para a desconsideração dos negócios jurídicos. Julgadores e autoridades precisam ter sempre em mente que, por presunção, os negócios jurídicos são idôneos e foram realizados de boa-fé entre as partes. Sua desnaturação ou requalificação exigem provas em sentido contrário e observância do rito dos artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil, não bastando presunções abstratas. __________ 1 Proc. 1001733.55.2015.8.26.0615, DJe de 23 de novembro de 2021. 2 Proc. 1127941.72.2021.8.26.0100, DJe de 17/01/2022.
Introdução O direito de resolução do contrato por inadimplemento é modalidade de extinção que deve ser reservada à situação de descumprimento do dever de prestar, imputável ao devedor, que afete a função concreta do negócio celebrado1.  Nesse sentido, se houve inadimplemento definitivo - modalidade de descumprimento que colmata o interesse útil do credor na prestação -, há espaço para o remédio da resolução por inadimplemento. Sabe-se que o direito de resolução pode ser legal2 ou convencional3.  A regra geral de resolução por inadimplemento definitivo pode ainda ser facilitada em regimes jurídicos específicos, em que já se identifica hipótese de descumprimento capaz de dar apoio ao direito de resolução. Essa última modalidade é exemplificada na Lei 4.591/64, que regula a incorporação imobiliária.  O artigo 43-A do referido diploma, incorporado pela Lei 13.786/18, postula que o atraso, pelo incorporador, de até cento e oitenta dias corridos da data estipulada para a conclusão do empreendimento "não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente"4. O artigo supracitado cuida da hipótese de inadimplemento do incorporador, ante ao seu fracasso no cumprimento da obrigação de entregar o empreendimento ao adquirente no tempo e modo avençados.  Pela literalidade do texto normativo, o referido descumprimento não dará espaço à resolução do contrato caso o atraso na entrega não extrapole o prazo de cento e oitenta dias. Ante à relevância da hipótese extintiva para a prática do direito imobiliário brasileiro, tenta-se contribuir, ainda que brevemente, com a construção do modelo hermenêutico do artigo 43-A da Lei 4.591/64.  A exposição divide-se na busca (i) dos requisitos de aplicação da modalidade extintiva; (ii) do modo de operação do direito de resolução pelo adquirente; e (iii) dos efeitos da resolução. Requisito de aplicação Em manifestação clara do princípio do favor negotii, o nosso sistema dá preferência a remédios que não promovem o rompimento do vínculo contratual. A própria regra do direito legal de resolução por inadimplemento afirma que a busca pela resolução acontecerá se a parte lesada pelo descumprimento "não preferir exigir o cumprimento"5. Esta característica extrema do direito de resolução dá a pauta principal para o regramento em torno dos seus pressupostos de aplicação: o seu âmbito de atuação encontra-se inexoravelmente associado ao descumprimento essencial de obrigações contratuais. No que se refere à modalidade extintiva prevista no artigo 43-A da Lei 4.591/64, há previsão específica do legislador no sentido de qualificar o inadimplemento do incorporador que atrasa a entrega do empreendimento.  O dispositivo normativo esvazia as consequências do atraso imputável ao incorporador inferior a cento e oitenta dias.  O adquirente, ainda que lesado por este descompasso com o avençado, não poderá requisitar indenização por perdas e danos ou manejar a resolução do contrato. Na eventualidade do atraso do incorporador superar cento e oitenta dias, haverá o surgimento do direito potestativo da resolução em favor do adquirente, bem como a irradiação de efeitos restitutórios e indenizatórios próprios do inadimplemento definitivo. A especificidade da norma facilita a superação do requisito geral de aplicação da resolução por inadimplemento: a classificação do descumprimento como definitivo.  Pelo artigo 43-A, que um atraso superior a cento e oitenta dias é, indiscutivelmente, apto a prejudicar peremptoriamente o interesse útil do credor na prestação, autorizando o manejo da resolução.  Da mesma forma, inadimplemento inferior a este termo carece de definitividade apta à extinção prematura da avença. Vale prestar nota ao intérprete de que o contrato de compra e venda disciplinado pela Lei 4.591/64 admite outras modalidades de descumprimento por parte do incorporador.  O descumprimento de quaisquer outros deveres de prestar por sua parte, distintos da hipótese específica de atraso na entrega do empreendimento, devem seguir a regra prevista no artigo 475 do Código Civil, atinente ao direito legal de resolução por inadimplemento definitivo - não irradiando sobre elas a tolerância de cento e oitenta dias do artigo 43-A.  Nessas circunstâncias, o intérprete precisará averiguar se o referido descumprimento prejudica ou não o interesse útil do credor.  Se há, ou não, rompimento grave nos interesses que gravitam em torno da prestação. Modo de operação É de se observar uma tendência, estimulada pela experiência de países de common law6e vista nas tentativas de unificação e harmonização do direito privado7, de consolidar a possibilidade de se exercer o direito de resolução pela via extrajudicial8.  No direito brasileiro, a regra geral do exercício do direito legal de resolução por inadimplemento, estabelecida no artigo 474 do Código Civil, é comumente interpretada no sentido de se exigir que o exercício do direito potestativo resolutório se dê pela via judicial, extraindo-se efeitos da resolução apenas na circunstância de uma sentença que julgue procedente o pedido do autor9.  É importante registrar que esta posição, atualmente, é questionada em publicação recente e especializada sobre o tema10. Alguns regimes jurídicos especiais afastaram expressamente essa exigência de manejo judicial da resolução.  Exemplo importante encontra-se no regime especial da compra e venda internacional de mercadorias, estabelecido pela Convenção de Viena sobre o tema (CISG).  O artigo 49, (1) "a" da CISG foge da regra geral da interpelação judicial do Código Civil ao prever que, nos contratos sob seu regime jurídico, o comprador poderá declarar o contrato resolvido nas hipóteses de descumprimento essencial11.  A mesma regra é fornecida ao vendedor no artigo 64, (1) "a" da Convenção12.  Ambas as regras são unificadas pela literalidade do artigo 26 da CISG13, que classifica a "declaração" de resolução como manifestação receptícia de vontade14. A Lei 4.591/64, diferentemente da CISG, não atribui expressamente uma exceção à regra de operatividade do artigo 474 do Código Civil, recaindo sobre a hipótese específica o mesmo debate que existe sobre a regra geral.  A despeito da existência recente de posicionamento no sentido de se permitir exercício extrajudicial do direito potestativo, a posição predominante na literatura brasileira segue sustentando a necessidade de se manejar judicialmente o direito legal de resolução. A maneira mais conveniente para assegurar a possibilidade de exercício extrajudicial dá-se pela elaboração de cláusula resolutiva expressa, que muito bem pode reproduzir a hipótese de inadimplemento definitivo prevista na Lei 4.591/64.  Dessa forma, prescinde-se de sentença para que a resolução se configure, embora não se exclua a opção de obter-se sentença declaratória - e não constitutiva negativa - de resolução15.  O exercício dependerá de uma manifestação receptícia de vontade do adquirente, direcionada ao incorporador. Efeitos O termo inicial da irradiação dos efeitos da resolução segue de perto a modalidade operativa. Na hipótese em que a resolução caminha pelo exercício judicial, os seus efeitos são produzidos apenas com o trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa de resolução.  Caso o exercício seja promovido por manifestação receptícia de vontade, a irradiação de efeitos se dá a partir da chegada da mensagem ao destinatário - ou de quando ele já tinha condições de conhecê-la. De maneira sintética, pode-se reconhecer três efeitos possíveis à resolução: liberatórios, restitutórios e indenizatórios. O efeito liberatório destina-se a dissolver a relação jurídica contratual entre as partes, libertando-as do vínculo que antes as unia.  Assim como a perfeita entrega do empreendimento pelo incorporador e o pagamento integral do preço pelo adquirente dá fim ao vínculo contratual, a resolução também libera as partes contratantes de prosseguir com cartilha contratual anteriormente avençada. O efeito restitutório destina-se a reposicionar as partes nas circunstâncias anteriores ao descumprimento.  No caso da Lei 4.591/64, o artigo 43-A, §1º destaca que o incorporador deve restituir todos os valores que tiver até então recebido do adquirente, corrigidos na forma da própria lei. O efeito indenizatório, que não se confunde com o restitutório, destina-se a reparar danos sofridos pela parte inocente ante a ocorrência do inadimplemento.  Sua quantificação deve seguir o prisma da extensão integral do dano, conforme o artigo 944 do Código Civil.  O artigo 43-A, §1º da Lei 4.591/64, após fazer referência à eficácia restitutória da resolução, afirma a possibilidade de trazê-la junto com uma "multa estabelecida". O texto normativo parte do pressuposto de que o contrato entre incorporador e adquirente possui cláusula penal específica para a hipótese de atraso do incorporador, responsável por predeterminar o valor pecuniário da pretensão de perdas e danos em favor do adquirente. Admitindo-se que o ambiente de contratação não impõe qualquer limitação à liberdade de contratar, é perfeitamente cabível que adquirente e incorporador avencem os limites dos efeitos indenizatórios do descumprimento. Se, entretanto, o contrato é silente sobre o tema - ou se o dispositivo que aborda o assunto no contrato carece de validade - é de se reconhecer a possibilidade do adquirente formular pedido de satisfação de sua pretensão de perdas e danos.  Nessa hipótese, deverá o adquirente provar o prejuízo que justifique a indenização, que por sua vez será quantificada nos limites do artigo 944 do Código Civil - e a latere da pretensão restitutória. Ainda quanto aos efeitos, a legislação impõe um importante fator de eficácia para que o adquirente possa resgatar seus valores restitutórios e indenizatórios.  Determina o artigo 43-A, §1º da lei 4.591/64 que, após a ocorrência da resolução - momento em que passa a irradiar o efeito liberatório -, o incorporador terá sessenta dias corridos para organizar-se financeiramente e satisfazer os efeitos restitutórios e indenizatórios.  Apenas após a superação deste termo essas pretensões são exigíveis pelo adquirente, que poderá enfim cobrá-las judicial ou extrajudicialmente. __________ 1 SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento, adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. In: Revista Trimestral de Direito Civil, nº32, 2007, p. 25 2 O espaço do direito legal de resolução é ocupado pelos artigos 474 e 475 do Código Civil. 3 Trata-se do espaço reservado à cláusula resolutiva expressa, disciplinada no artigo 474 do Código Civil. Sobre o tema, faz-se referência a um estudo anterior: BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A cláusula resolutiva "de estilo". Revista Brasileira de Direito Contratual, Porto Alegre, v. 2, n. 7, abr./jun. 2021. 4 Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador. 5 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 6 BEALE, Hugh. Remedies for Breach of Contract, London, Sweet&Maxwell, 1980, pp. 240/242. 7 A título exemplificativo, cita-se o artigo 7.3.2 dos Princípios Unidrot: "Article 7.3.2. Notice of Termination. (1) The right of a party to terminate the contract is exercised by notice to the other party." No mesmo sentido, aponta-se o artigo 3:507 do Draft Common Frame of Reference: "III.-3:507: Notice of termination (1) A right to terminate under this Section is exercised by notice to the debtor." (Disponível em: VON BAR, Christian et alii. Principles, definitions and model rules of European private law. Draft Common Frame of Reference (DCFR). Full edition. v. III. Munich, Sellier, 2009, p. 401). 8 É a linha adotada pelo Código Civil Português, em seu artigo 436º (Artigo 436º. Como e quando se efectiva a resolução. 1. A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte. 2. Não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade). A doutrina portuguesa também reconhece que o direito lusitano segue a regra geral da extrajudicialidade: FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento, Coimbra, Almedina, 2020 pp. 32/33 9 A título exemplificativo: ASSIS, Araken de. Comentários ao código civil brasileiro, v. V, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 582. 10 Registra-se, nesse sentido, as considerações sobre o tema no trabalho de Giovanni Ettore Nanni (NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2021, pp. 506/518). 11 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the international sale of goods (CISG). Third Edition. Oxford, Oxford University Press, 2010, p.757 12 Article 64. (1) The seller may declare the contract avoided: (a) if the failure by the buyer to perform any of his obligations under the contract or this Convention amounts to a fundamental breach of contract; [...] Tradução: Artigo 64. (1) O vendedor poderá declarar resolvido o contrato se: (a) o descumprimento pelo comprador de qualquer das obrigações que lhe incumbem segundo o contrato ou a presente Convenção constituir violação essencial do contrato; [...] 13 Article 26. A declaration of avoidance of the contract is effective only if made by notice to the other party. Tradução: Artigo 26. A declaração de resolução do contrato tornar-se-á eficaz somente quando notificada por uma parte à outra. 14 FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento, Coimbra, Almedina, 2020 p. 42 15 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução), Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 57.
Introdução O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos relata, em sua obra "Sociología jurídica crítica: para un nuevo sentido común en el derecho"1, os resultados de uma pesquisa de campo que realizou nos anos 1970 em uma comunidade carente (popularmente também chamada de favela2) localizada na cidade do Rio de Janeiro, à qual ele deu o nome fictício de "Pasárgada"3. Em suma, trata-se de uma ilustração criada pelo sociólogo para demonstrar a existência de direito para além do direito do Estado. Na ilustração, Boaventura Santos aponta a existência de duas ordens jurídicas: o direito do Estado e o "direito de Pasárgada". Enquanto o primeiro dispensa apresentações, o segundo se refere a uma série de estratégias idealizadas pelos indivíduos que habitam naquela localidade para preencher o vácuo deixado pela ausência do direito do Estado e para assegurar um mínimo de ordem social nas relações dentro daquela comunidade.4 Em "Pasárgada", os problemas envolvendo os habitantes e o tema da propriedade eram frequentes. Mas, como "Pasárgada" é um assentamento ilegal formado por uma sucessão de atos irregulares, os títulos de propriedade que poderiam ser apresentados pelos moradores da localidade eram inválidos aos olhos do direito do Estado. Essa invalidade dos títulos era um grande obstáculo para que as disputas pudessem ser levadas ao Poder Judiciário, que consideraria as posses como ilegais e sem qualquer validade. Considerando a ilustração de "Pasárgada", que se baseia em uma vivência da década de 1970, temos que a questão da regularização fundiária urbana é um problema antigo na sociedade brasileira. No Brasil, a regularização fundiária é questão de grande relevância tanto no âmbito nacional quanto no local. Desde a lei Federal 10.257/2001, conhecida como "Estatuto da Cidade", a regularização fundiária dos assentamentos urbanos ganhou maior repercussão. Hoje, a regularização fundiária é entendida como um caminho para se garantir o acesso à posse legal da moradia digna.5 Ocorre que, da mesma forma que o fenômeno da verticalização pode ser verificado nos centros urbanos, ele também está presente nos assentamentos urbanos ilegais. Importante destacar que as razões que justificam a existência de um mesmo fenômeno nessas duas localidades são diversas. No entanto, fato é que, mesmo com a regularização fundiária sendo um tópico de alta relevância na pauta nacional, nem todas as construções existentes nas favelas foram abraçadas pela legislação existente até então. Esse foi o caso dos "puxadinhos", "construções feitas em acréscimos, superiores ou inferiores, a imóveis já edificados, com a finalidade de ampliar o uso do solo, viabilizando o exercício do direito de moradia".6 Nesse sentido, foi feita uma tentativa para se confrontar a questão por meio da MP n° 759/16, convertida na lei 13.465/2017. A referida Medida Provisória, que trata, dentre outras coisas, da regularização fundiária urbana e rural no Brasil, acabou por adicionar um novo inciso ao art. 1.225 do CC, o inciso XIII, que possui a seguinte redação: "a laje". Dessa forma, foi adicionado ao rol dos direitos reais do dispositivo o direito de laje. Além disso, foi também adicionado um novo título no livro III do CC/02 especialmente para tratar do direito de laje (art. 1.510-A e ss.). Nas palavras de George Marmelstein, "o direito de laje nasce como um fenômeno social espontâneo no seio de várias favelas brasileiras".7 Portanto, não se trata de mais um caso em que o Direito age de forma a guiar a sociedade de forma transformadora. Na verdade, o que se teve com a MP 759/16,8 convertida na lei 13.456/2017,9 foi o Direito tendo de se adequar a uma realidade construída pela sociedade. Nessa mesma linha, Ricardo Pereira Lira ensinava que o direito de laje procura transpor para o ordenamento jurídico formal a realidade que caracteriza as favelas verticalizadas de grandes centros urbanos. Em favelas verticalizadas, afigura-se extremamente frequente o uso da laje por terceiro de modo independente do uso dado pelo possuidor do imóvel subjacente, transferindo-se de pessoa a pessoa, com base em assentamentos mantidos por associações de moradores.10 Portanto, o presente ensaio busca compreender o direito de laje. Assim, a questão que se propõe é se o direito de laje possui a capacidade de ser aplicado na regularização fundiária. Para isso, o artigo será dividido em duas partes. Primeiro, será feita uma breve apresentação dos aspectos históricos relevantes para o nascimento do direito de laje em conjunto com a evolução desse direito até sua inclusão no CC/2002 pela MP 759/16, convertida na lei 13.456/2017. Em um segundo momento, o direito de laje será trabalhado de forma mais aprofundada, de modo a abordar a noção de direito de laje, seus requisitos legais, sua constituição e aquisição, a regulamentação da laje e, por fim, a extinção do direito de laje. Clique aqui para ler a íntegra da coluna. __________ 1 Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009. 2 Sobre o termo "favela", Pedro Pontes de Azevedo ensina que o termo, na origem, nomeia arbusto ou árvore (Jatropha phyllacantha) da família das euforbiáceas encontrada no Sudeste e Nordeste Brasileiros, especialmente nos morros onde inicialmente se instalaram as primeiras aglomerações de moradias irregulares, dando-lhes o nome com o passar do tempo. AZEVEDO, Pedro Pontes de. Usucapião da propriedade possível em terras públicas: o direito de superfície e à moradia em áreas de exclusão social. Curitiba: Juruá, 2016. p. 87. 3 "La denominé Pasárgada, siguiendo el título del poema escrito por el poeta brasileño Manuel Bandeira." Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117. 4 "Debido a la ausencia del sistema jurídico estatal, y especialmente al carácter ilegal de las favelas como asentamientos urbanos, las clases populares que habitan en ellas idearon estrategias de adaptación con el objeto de asegurar un mínimo de orden social en las relaciones de comunidad." Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117. 5 D'OTTAVIANO, M. C. L.; SILVA, S. L. Q. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL: VELHAS E NOVAS QUESTÕES. Planejamento e Políticas Públicas, [S. l.], n. 34, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 ago. 2022. 6 FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. - 4ª ed. rev. atual. e ampl. - Salvador: Juspodivm, 2020, págs. 29 e 30. 7 MARMELSTEIN, George. Do direito de Pasárgada ao direito do asfalto. Prefácio. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. - 4ª ed. rev. atual. e ampl. - Salvador: Juspodivm, 2020, pág. 17. 8 Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022. 9 Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022. 10 LIRA, Ricardo Pereira. A aplicação do direito e a lei injusta. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, n. 5, 1997, pág. 85-97. In: SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, págs. 787 e 788.
A lei 14.382/2022 cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos - SERP, altera a Lei de Registros Públicos, com o propósito de adequar os serviços de registros públicos a novas tecnologias, e aperfeiçoa o sistema de proteção dos adquirentes de imóveis em construção, previsto pela Lei 4.591/64, consolidando requisitos de segurança patrimonial da aquisição, simplificando procedimentos registrais e reduzindo custos. Especificamente em relação à Lei 4.591/1964, a nova lei introduziu alterações segundo as quais o condomínio especial, que o Código Civil denomina edilício, é instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas (art. 32, "i"1e §§ 1º-A2 e 153), e, em consequência, o "habite-se" da edificação é objeto apenas de averbação, afastada a exigência de novo registro do condomínio (art. 444). A alteração legislativa é justificada pela necessidade de compatibilizar a redação desses dispositivos (i) à tipificação da incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno sob regime condominial conjugada com a construção de conjunto imobiliário, estabelecida pelo art. 29 da lei 4.591/19645, (ii) ao princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual a existência de direito de propriedade de bens imóveis é determinada pelo assentamento, no Registro de Imóveis, dos caracteres que identificam as frações de terreno como objeto de propriedade condominial, dotadas de "individualidade autônoma"6, e, em consequência, (iii) aos requisitos da livre disposição da propriedade e dos correspondentes direitos reais, de forma a viabilizar sua transmissão aos adquirentes, mediante registro de contrato no qual a descrição do imóvel (fração ideal e acessões) seja rigorosamente coincidente com os caracteres constantes do assentamento do Registro de Imóveis que identifica as frações do terreno como objeto de direito de propriedade condominial, sob pena de serem considerados "irregulares" (Lei 6.015/1973, art. 225). A lei 14.382/22 tem vigência imediata e já vem sendo colocada em prática segundo normas editadas pelas Corregedorias estaduais, a exemplo do novo Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, instituído pelo Provimento CGJ nº 87, de 16/12/2022, cujo art. 1.351 dispõe taxativamente que "o registro da incorporação institui o condomínio edilício"7. No âmbito da administração pública a Instrução Normativa nº 2.119/20228 da Receita Federal do Brasil (Anexo VIII) reconhece o registro da Incorporação Imobiliária como modo de instituição do condomínio edilício e prevê sua inscrição no CNPJ, ainda que em construção. Contudo, ainda  há quem se insurja contra a unicidade do registro, entendendo que a lei teria criado "um regime de condomínio especial que vigora temporariamente" e que por isso persistiria a exigência de novo registro por ocasião da conclusão da construção, partindo da equivocada premissa de que "até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios", daí se concluindo que somente edificações dotadas de habitabilidade  poderiam ser objeto de condomínio especial/edilício9. Ao sugerir a efetivação de dois registros de condomínio, um "temporário" e outro "definitivo", essa interpretação se contrapõe aos propósitos de simplificação e redução de custos visados pela lei, até porque a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da Lei 4.591/1964. Além disso, a afirmação de que no curso da construção "existe um só imóvel" é incompatível com o sistema da Lei 4.591/1964, afrontando especificamente seus arts. 29 e 32, "i", § 1º-A, que dispõem sobre a divisão do terreno e sobre a identificação das frações ideais daí resultantes como objeto de propriedade condominial especial, a que se vincularão as unidades imobiliárias projetadas.  Há também quem entenda que a lei pretendeu criar mais uma espécie de situação proprietária condominial ("regime condominial especial", "condomínio por frações autônomas"), sugerindo a criação de mais uma denominação - "condomínio protoedilício" -, fundamentando-se em que "a existência física da edificação é um pressuposto para o condomínio edilício"10.   A proposição parece sustentar-se em que a natureza jurídica do direito de propriedade de bens imóveis sob regime de condomínio especial/edilício (isto é, regime jurídico caracterizado pela combinação da propriedade exclusiva e com a propriedade comum sobre uma mesma coisa) seria determinada pela configuração física do bem imóvel.  É verdade que o tema envolve uma certa complexidade, mas essa interpretação despreza os arts. 8º11 e 9º12 da Lei 4.591/1964, que deixam absolutamente claro que o condomínio especial pode ter por objeto a copropriedade de edificação com "habite-se" ou de "terreno onde não houver edificação", ou, ainda, de lotes de terreno sem construção, como prevê o art. 1.358-A do Código Civil, pois, como bem ilustra André Abelha, "o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário."13 E despreza também o mais importante efeito do registro da incorporação como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes, que viabiliza a atribuição do direito real de aquisição mediante registro dos contratos de comercialização e, até mesmo, a averbação dos instrumentos preliminares de ajuste, que confere direito real aquisitivo aos adquirentes nos termos do § 4º do art. 35. Ignora, ainda, que é a existência de condomínio instituído mediante assentamento no Registro de Imóveis que confere efetividade à limitação da responsabilidade financeira dos adquirentes em relação à garantia de financiamento da construção, que só pode ser contida na proporção das frações ideais, nos termos do art. 1.488 do Código Civil14, se o condomínio edilício tiver sido instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas. Desconsidera, ainda, que os efeitos da instituição de condomínio se projetam sobre todo o campo dos direitos reais, assegurando efetividade ao exercício das prerrogativas dos adquirentes, entre elas a de destituir o incorporador em caso de paralisação da obra ou atraso, sem justa causa, que só é juridicamente viável se o condomínio estiver constituído, porque é o condomínio que tem legitimidade para promover o procedimento extrajudicial de destituição, que, aliás, também foi instituído pela mesma Lei 14.382/2022. Ora, desde a promulgação da Lei 4.591, em 1964, nunca houve qualquer objeção a que o direito de propriedade incida sobre terra nua para fins de incorporação ou terreno com edificação averbada, pois, em qualquer desses casos, a propriedade pode ser atribuída sob regime de condomínio geral, pro indiviso, ou de condomínio especial, por frações autônomas.15 Recorde-se, a propósito, que a caracterização do condomínio especial e da incorporação imobiliária foi entronizada no direito positivo brasileiro pela Lei 4.591/1964, que os separou em dois Títulos. No Título I, a lei dispõe sobre o condomínio especial, caracterizado pela conjunção de partes de propriedade exclusiva e partes de propriedade comum de edificações coletivas (arts. 1º ao 27), e no Título II a lei caracteriza a incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno e acessões caracterizadas como objeto de condomínio especial (arts. 28 ao 70). O art. 7º dispõe sobre a instituição de condomínio por ato entre vivos ou por testamento, tendo por objeto edificações com habite-se, enquanto o art. 8º dispõe sobre a instituição de condomínio "em terreno onde não houver edificação". Anote-se, por relevante, que apesar de o art. 7º (condomínio em edificações) foi sucedido pelos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil, mas o art. 8º permanece em vigor por não ter sido derrogado e por não haver lei posterior que tenha tratado da matéria. A despeito da divisão da Lei 4.591/1964 em dois segmentos, há neles disposições comuns à disciplina do condomínio e da incorporação imobiliária. É o caso do art. 8º, que, ao exigir a instituição de condomínio "em terreno onde não houver edificação" para fins de incorporação imobiliária, opera necessariamente em articulação com a regra do art. 29 da mesma Lei 4.591/1964, que caracteriza essa atividade como negócio jurídico de venda de frações de terreno "sob regime condominial", e também em articulação com o art. 6º da Lei 4.864/1965, compondo um conjunto normativo que disciplina a instituição de condomínio especial/edilício sobre terreno destinado à realização de incorporação imobiliária. Assim, em matéria de instituição de condomínio especial, coexistem a regra do art. 1.332 do Código Civil, cujo objeto é o condomínio de edificação com habite-se, instituído pelo registro, no Registro de Imóveis, do respectivo instrumento público ou particular, inter vivos ou causa mortis, e, ainda, a regra da lei 4.591/1964 (arts. 8º e 32, "i", § 1º-A), cujo objeto é o condomínio de frações ideais de terreno destinado à realização de incorporação imobiliária, que, instituído pelo registro do respectivo memorial, afasta a exigibilidade de novo registro de instituição. Não bastasse a profusão e o emaranhado de disposições legais que tratam do tema, em razão da qual a leitura apressada de um ou outro dispositivo, isoladamente, pode induzir o intérprete conclusões irrefletidas, a falta de uniformidade terminológica sobre o tema também pode comprometer a compreensão do instituto. A doutrina tem chamado a atenção para a diversidade de denominações,16 tais como condomínio em edificação (lei 4.591/1964, art. 7º e CC, arts. 1.331 e ss), condomínio edilício (CC, art. 1.331), regime condominial especial (lei 4.591/1964, art. 32, "i", § 1º-A), condomínio de terreno "onde não houver edificação", destinado a uma incorporação ou a várias incorporações (lei 4.591/1964, arts. 8º e 32 e lei 4.864/1965, art. 6º), condomínio de lotes de terreno (CC, art. 1.358-A), entre outras. Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, "i", § 1º-A, da Lei 4.591/1964, e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade. Portanto, a diversidade terminológica não importa em diversidade da natureza jurídica do condomínio especial/edilício, observando Orlando Gomes que "qualquer dessas denominações pode ser aceita"17, dada a rigorosa identidade dos elementos de caracterização estabelecidos pela lei 4.591/1964 (art. 32, alínea "i") e pelo Código Civil18, a saber, (i) determinação das frações ideais sobre o terreno e partes comuns, (ii) identificação dos apartamentos ou "unidades isoladas entre si", existentes ou a construir e (iii) destinação do imóvel.  Bem a propósito, Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto que deu origem à Lei 4.591/1964, em diversas passagens de sua clássica obra Condomínio e Incorporações, utiliza a expressão "condomínio especial" como sinônimo de propriedade horizontal, ou seja, condomínio edilício19. É como também entende Francisco Eduardo Loureiro: "Após a vigência da alteração legislativa, se discutiu se o condomínio especial a que alude a L. 4.591/64 é o condomínio edilício dos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil. Não resta dúvida alguma que se trata de instituto único, que somente recebeu nomes diversos nas duas leis"20. Assim também esclarecem os Enunciados de Interpretação nº 8921 da I Jornada de Direito Civil e nº 10022 da I Jornada de Direito Processual Civil, segundo os quais todas essas diferentes denominações designam o mesmo condomínio especial, independente da configuração física do imóvel e das diferentes denominações que a lei lhes atribua, seja condomínio edilício ou regime condominial especial. Retomando a apreciação das alterações introduzidas pela Lei 14.382/2022, importa ter presente que, ao consolidar em caráter definitivo as normas que definem o registro da incorporação como modo de instituição do condomínio especial/edilício mediante ato único, essa lei não chega a inovar, pois se limita a compatibilizar a redação dos arts. 32 e 44 da Lei 4.591/1964 ao conteúdo normativo do seu art. 29. É o caso da adequação da redação do art. 32, caput. Partindo da caracterização legal da atividade e do contrato de incorporação imobiliária como negócio jurídico de "venda de frações ideais de terreno (...), sob regime condominial" (...) mediante "vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção" (lei 4.591/1964, art. 29 e parágrafo único), a Lei 14.382/2022 dá nova redação ao art. 32 mediante substituição da locução genérica "negociar sobre unidades autônomas" por "alienar ou onerar as frações ideais de terrenos" e respectivas acessões. Sabendo-se, assim, que a incorporação imobiliária é negócio jurídico de alienação de frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas projetadas, resulta claro que o exercício dessa atividade e a celebração desse contrato têm como requisito essencial a divisão do terreno e a sujeição das frações ideais daí resultantes ao regime da propriedade condominial, tal como configurado no art. 29.  É o registro da incorporação que confere existência legal às frações de terreno e respectivas acessões sob regime condominial especial e viabiliza sua alienação válida e eficaz, à luz do princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual, as frações resultantes da divisão do terreno devem ser identificadas como objeto de direito de propriedade em assentamento no Registro de Imóveis, com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro", como ensina Afrânio de Carvalho.23 O "regime condominial" a que o art. 29 da Lei 4.591/64 se refere não é o condomínio geral definido pelos arts. 1.314 e ss do Código Civil, que sujeitaria os adquirentes e o incorporador à "concorrência de direitos iguais na mesma coisa"24, sob regime da indivisão do objeto e divisão dos sujeitos. Trata-se, diferentemente, de um condomínio especial por frações ideais de terreno dotadas de autonomia e identificadas pela destinação do terreno e pela sua vinculação às unidades imobiliárias projetadas, descritas no memorial de incorporação25, cujo registro constitui o "ato formal (...) que qualifica o terreno (como um todo) e as suas respectivas frações, que passam a estar vinculadas às futuras unidades autônomas e, de modo mais abrangente, ao 'negócio da construção' e ao próprio negócio incorporativo."26 Consideradas as distintas conformações, funcionalidade e dinâmica do imóvel objeto do condomínio, a lei 4.591/1964 (arts. 34 e ss) e o Código Civil (arts. 1.333 e ss) instituem diferentes regimes de gestão do condomínio para a fase da construção e para a fase da fruição do conjunto imobiliário, atribuindo a administração do condomínio no curso das obras a uma comissão de representantes composta por três adquirentes, nomeada no contrato de construção, se for o caso, ou eleitos em assembleia geral dos condôminos convocada pelo incorporador até seis meses após o registro da incorporação. Em relação a esse período merecem atenção certas peculiaridades, situações ou procedimentos operacionais típicos da fase da construção, que a lei identifica mediante emprego da expressão "condomínio da construção", e disso são exemplos (i) o art. 31-F, § 1º, e o art. 43, § 3º,27 que se referem à deliberação de assembleia geral para constituição do condomínio especial/edilício, nos casos em que o incorporador não o tiver constituído por ocasião do registro da incorporação e vier a falir ou a ser destituído, e (ii) o art. 213 da lei 6.015/1973,28 cujo § 10 distingue a representação do condomínio em procedimento de retificação de registro, dispondo no inciso I que o condomínio geral será representado por qualquer condômino e no inciso II que condomínio especial será representado pelo síndico a partir do habite-se e pela comissão de representantes quando ainda em fase de construção, situação na qual o identifica como "condomínio por frações autônomas". Nesse período, e até que seja concluída a edificação, cabe à comissão de representantes a gestão do condomínio, inclusive em juízo, em todos os assuntos de interesse dessa coletividade; o acompanhamento da construção a partir dos demonstrativos trimestrais que receberá do incorporador; a prática dos atos necessários à preservação do fluxo normal da obra, inclusive medidas judiciais e extrajudiciais relacionadas ao procedimento de destituição do incorporador em casos de paralisação ou retardamento injustificado da obra e, ainda, de insolvência, para as quais essa comissão está investida em mandato legal para, em caso de inadimplemento de obrigações dos adquirentes ou do incorporador (em casos de insolvência ou destituição), promover leilão das respectivas frações ideais e acessões visando a satisfação de créditos do patrimônio da incorporação, entre outros atos de representação em geral ou previstos expressamente pela Lei 4.591/1964. O mandato legal da comissão de representantes expira por ocasião da conclusão da obra, quando o condomínio passará a ser administrado por um síndico e demais órgãos de representação definidos pelos arts. 1.333 e seguintes do Código Civil (sobre o uso e a administração do condomínio após o habite-se)29.  O critério legal de representação do condomínio por uma comissão de representantes em vigor há mais de meio século tem se mostrado adequado à administração de situações de crise da empresa incorporadora de que resultem a paralisação ou o retardamento da obra, sem justa causa, e veio a ser consolidado pelas normas da Lei 14.382/2022 que instituem procedimento extrajudicial de destituição do incorporador, cuja efetividade depende, obviamente, da regular existência do condomínio especial30. Do mesmo modo que a falta de uniformidade na denominação do condomínio especial é irrelevante, também o fato de a lei empregar expressões distintas para identificar situações fáticas típicas da fase da construção não importa em alteração de nenhum dos elementos de caracterização do condomínio especial/edilício estabelecidos pelos arts. 8º e 32 da lei 4.591/1964, pelo art. 6º da lei 4.864/1965 e pelo art. 1.332 do Código Civil, pois, a despeito da diversidade terminológica, há um só condomínio especial/edilício, constituído pelo registro da incorporação. Uma vez concluída a construção e à vista da certidão do habite-se, as unidades que integram a edificação assimilarão automaticamente o regime jurídico do terreno por simples efeito do princípio superficies solo cedit (observada a destinação e a discriminação definidas no projeto e no memorial de incorporação), registrando Pontes de Miranda que "a acessão àquelas [partes indivisas] beneficia a todos os comunheiros e a acessão a essas [partes divisas] somente àquele ou aqueles a que tocam as partes divisas, razão por que o mesmo fato pode beneficiar a todos e a algum ou a alguns, conforme o que acede se integra na parte indivisa ou na parte divisa."31 Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária,32 daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil. Isso é o que deflui da nova redação dada pela lei 14.382/2022 ao art. 44 da lei 4.591/1964, pela qual foi suprimido o trecho que dispunha que a construção seria averbada "para efeito de individualização e discriminação das unidades", passando esse dispositivo a exigir apenas a "averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula", tendo em visa os efeitos do fenômeno da acessão na formação do produto oriundo da atividade empresarial da incorporação imobiliária. A leitura do art. 44 em articulação com as disposições antecedentes, evidencia que todas essas regras compõem um conjunto normativo formulado em conformidade com os fundamentos dos direitos reais e do sistema registral, pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico do solo em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação. Efetivamente, como bem observa Marcus Vinícius Motter Borges, na medida em que o condomínio edilício (ou condomínio especial) foi instituído pelo registro da incorporação, resulta claro que "a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício."33. De fato, como é de conhecimento corrente, a averbação "não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende", como ensina Afrânio de Carvalho34, observando Francisco Eduardo Loureiro que, na incorporação imobiliária, "concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído".35 Afinal, não se pode esquecer que o produto da atividade da incorporação imobiliária se forma por efeito natural do fenômeno da acessão, e é por isso que comporta apenas "averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula" (lei 4.591/1964, art. 44), sem duplicação do registro do condomínio especial/edilício já instituído pelo registro da incorporação. Bem consideradas as disposições legais que compatibilizam as normas sobre os atos registrais ao conteúdo normativo do art. 29 da lei 4.591/1964, resulta claro o propósito de conferir efetividade à instituição de condomínio como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes de imóveis em construção, o que  consolida a afirmação de Caio Mário da Silva Pereira no sentido de que "a grande inovação instituída pela lei 4.591/1964 foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação" (destaques do autor)36 Assim, esse conteúdo normativo é preservado pela alteração legislativa introduzida pela Lei 14.382/2022 que assegura a efetividade do sistema registral e incorpora ao ordenamento novos e decisivos mecanismos de segurança jurídica capazes de assegurar o exercício das prerrogativas dos adquirentes a partir da instituição de condomínio edilício pelo registro da incorporação. __________ 1 Lei 4.591/64: Art. 32. "O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (...) i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão;" (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 2 Lei 4.591/64: Art. 32 (...). § 1º-A "O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos."  (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 3 Lei 4.591/64: art. 32 (...). § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) 4 Lei 4.591/64: "Art. 44. Após a concessão do habite-se pela autoridade administrativa, incumbe ao incorporador a averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula do terreno, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação. (...)" (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 5 Lei 4.591/64: Art. 29. "Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial (...). Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção, (...)." 6 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247. 7 Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editado pelo Provimento nº 87/2022: "Art. 1.351. O registro da incorporação imobiliária institui o condomínio edilício, ensejando a cobrança de emolumentos por um único ato (art. 32, §§ 1º-A e 15º, da Lei nº 4.591/1964). Parágrafo único. Exigir-se-á o registro da convenção de condomínio concomitantemente ao da averbação da construção, caso ainda não tenha sido registrada."  8 ITEM 1.1.44 NATUREZA JURÍDICA (NJ) Condomínio Edilício: NJ 308-5. DATA DO EVENTO Data de registro da convenção ou data de registro da assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ. (quando não existir convenção) ATO CONSTITUTIVO (REGRA GERAL) Convenção do condomínio registrada no RI, acompanhada da ata de assembleia de eleição do síndico, registrada no RTD; OU, caso não exista a convenção, Certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio, acompanhada da ata de assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ, e da ata de assembleia de eleição do síndico, registradas no RTD. BASE LEGAL CC, arts. 1.332 a 1.334, 1.347 e 1.348; Lei nº 4.591/1964, arts. 3º, 7º, 9º, 22 e 32. 9 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila, O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da Lei 14.382/22, in Migalhas, acesso em 24.1.2023. 10 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias e TARTUCE, Flávio, Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP) in Migalhas, acesso em 24.01.2023. 11 Lei 4.591/1964: "Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte:" 12 Lei 4.591/1964: "Art. 9º Os proprietários, promitentes compradores, cessionários ou promitentes cessionários dos direitos pertinentes à aquisição de unidades autônomas, em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas, elaborarão, por escrito, a Convenção de condomínio, e deverão, também, por contrato ou por deliberação em assembleia, aprovar o Regimento Interno da edificação ou conjunto de edificações. (...)". 13 ABELHA, André,  Incorporação imobiliária e condomínio edilício antes do habite-se: unidade futura, condomínio de construção e suas perplexidades tonitruantes in Migalhas, acesso em 25/01/2023 14 Código Civil: "Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito."  15 O tema é tratado mais detidamente em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 7. ed., 2023, itens 1.4.3 e 2.1.1. 16 Observa Caio Mário da Silva Pereira que "O Código Civil de 2002 trata do condomínio especial dos edifícios coletivos nos seus arts. 1.331 a 1.358, sob o título 'Do Condomínio Edilício', denominação que criticamos durante toda a fase da elaboração do Projeto do Código, sem sucesso. Cabe o registro, aliás, que esta espécie de condomínio recebeu denominações as mais variadas, 'propriedade horizontal" (...); 'condomínio especial'; condomínio de edifícios divididos em planos horizontais', e 'copropriedade de prédio de apartamentos', dentre muitas outras" (PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: GenForense, 25. ed., 2017, p. 182.    17 GOMES, Orlando, Direitos Reais. Rio de Janeiro: GenForense, 19. ed., 2009.Atualizador Edson Fachin, p. 250.  Diz o autor: "A terminologia não é uniforme. Insiste-se em qualificá-la, acentuando um dos seus aspectos, como condomínio, acrescentando, para distingui-lo do ordinário ou geral, as seguintes expressões: relativo, sui generis, por andares ou apartamentos de edifícios com apartamentos autônomos, condomínio em edificações, ou condomínio especial em edifícios. Qualquer dessas denominações pode ser aceita." 18 Código Civil: "Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III - o fim a que as unidades se destinam." 19 A exemplo dos seguintes trechos: "Que é esta propriedade horizontal, ou este condomínio especial, por unidades autônomas?" (p. 70); "... a noção deste condomínio especial na associação da propriedade exclusiva da unidade com a copropriedade do solo e partes comuns" (p. 77); "a propriedade horizontal ou o condomínio especial por unidades autônomas compreende um sistema..." (p. 77); "... sem o que não se constitui a propriedade horizontal, ou o condomínio especial" (p. 78); "... o cumprimento do testamento importará na criação do condomínio especial, em que cada legatário ou herdeiro testamentário receberá a propriedade individual da unidade autônoma..." (p. 95); e "... promovam a constituição do condomínio especial sob regime de propriedade horizontal..." (pp. 95-96). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 20 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil. 21 I Jornada de Direito Civil - Enunciado 89: "O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo." 22 I Jornada de Direito Processual Civil - Enunciado 100: Extensão da expressão "condomínio edilício" no CPC/73: "Interpreta-se a expressão condomínio edilício do art. 784, X, do CPC de forma a compreender tanto os condomínios verticais, quanto os horizontais de lotes, nos termos do art. 1.358-A do Código Civil." 23 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247 24 GOMES, Orlando, Direitos Reais, cit., p. 240. 25 FLORENZANO, Zola, Condomínio e Incorporações: Comentários à Lei de Estímulo à Construção Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pp. 106/110. 26 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. Coord. Marcus Vinicius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2d ed., 2022, p. 410. 27 Lei 4.591/1964, com a redação dada pela Lei 14.382/2022: "§ 3º A ata de que trata o § 2º deste artigo, registrada no registro de títulos e documentos, constituirá documento hábil para: (...); c) à inscrição do respectivo condomínio da construção no CNPJ" 28 Lei 6.015/1973: "Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação: (...). § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes."  29 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.83. 30 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.407/423. 31 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 12. ed., §§ 1.206 e 1.211. 32 Só por expressa definição legal é possível excepcionar o princípio da acessão, como é o caso da concessão do direito de superfície, que "é substancialmente uma suspensão ou interrupção da eficácia do princípio da acessão" (Ricardo Cesar Pereira Lira, O direito de superfície. Ensaio de uma teoria geral. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro n. 38, 1979). É também o que decorre da concessão de direito de laje. Em ambos os casos é excepcionado o princípio da acessão com a consequente bifurcação da propriedade, de que resultam propriedades distintas, cada uma delas dotada de autonomia (CC, arts. 1.369 e ss, Estatuto da Cidade, arts. 21 e ss e CC, arts. 1.510-A e ss).  33 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso ..., cit., p. 481. 34 CARVALHO, Afrânio de, Registro de imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 110. Diz o autor: "A averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende. A estrutura de uma inscrição não pode, portanto, ser mudada pela averbação de um ato retro operante, podendo apenas servir de substrato a um ato que, reconhecendo a existência inteiriça, em um instante do tempo, daí parte para dar-lhe nova figura em instante ulterior. 35 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil. 36 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 331.
Notícias relatam que o contrato built to suit passou a ser firmado no Brasil a partir do final dos anos 90. Todavia, com a edição da lei 12.744/2012 e, especialmente nos últimos anos, o contrato se popularizou. Em meus estudos de mestrado (finalizados em 2016), ainda eram escassos os julgados que tratavam sobre o referido contrato. É verdade que muitas vezes a solução do conflito nessa modalidade contratual é resolvida via arbitragem e, em razão da confidencialidade, não se tem acesso ao resultado de diversos litígios apreciados por câmaras arbitrais. Contudo, recentemente, quando elaborava a segunda edição do livro "Contratos built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual" (cuja primeira edição data de 2017 e a segunda será lançada no primeiro semestre de 2023), notei incremento de decisões judiciais que apreciaram e interpretaram litígios envolvendo o built to suit. O objetivo do presente artigo não é tratar especificamente dos traços gerais da modalidade contratual, mas, sim, do comportamento jurisprudencial a partir dos mais recentes julgados que verificamos em nossa pesquisa. Tal como defendemos no livro referido anteriormente e, ainda, em outros artigos a respeito da contrato built to suit1, é relevante que a interpretação do contrato leve em consideração a autonomia privada e, tal como determina o art. 54-A da Lei 8.245/1991, a prevalência das condições livremente pactuadas no contrato respectivo. Nesse sentido, é imprescindível que o intérprete conheça os riscos envolvidos no built to suit, bem como os fundamentos que sustentam a economia dessa modalidade contratual. Ora, o empreendedor apenas tem interesse em construir sob medida ao futuro ocupante caso tenha razoável segurança jurídica de que conseguirá obter o retorno de seu investimento ao longo dos anos. Nesse sentido, o empreendedor normalmente contrata mediante sólidas garantias de pagamento da remuneração mensal, por parte do ocupante. Da mesma forma, tal como admite o § 1º, do art. 54-A, o empreendedor também insistirá que o ocupante renuncie ao direito de propor ação revisional de aluguéis (artigos 68 e seguintes), justamente para que não corra o risco de o valor estabelecido pelas partes ser reduzido, em razão de uma suposta alteração do preço de mercado da remuneração mensal. Pois bem. Um dos primeiros julgados que analisou o contrato foi proferido antes mesmo do advento da lei 12.744/2012. O Tribunal de Justiça de São Paulo2, em 2011, corretamente, considerou que a natureza do contrato built to suit diferia daquela do contrato típico de locação. Segundo o julgado, o built to suit não é um contrato "puramente de locação de imóvel, visto que esta é apenas uma de suas facetas, na medida em que apresenta elementos dos contratos de construção, empreitada, financiamento e incorporação, além de outras características próprias". Precisamente em razão da atipicidade do contrato e dos riscos envolvidos no contrato é que a Lei do Inquilinato (art. 4º) também admite que em caso de resilição unilateral e antecipada do contrato por parte do ocupante, a cláusula penal não sofra as reduções de um contrato típico de locação (normalmente proporcional ao período de ocupação e limitada apenas a três alugueres). Como já referido, a determinação para que as partes respeitem o valor da multa imposta é questão imprescindível para a economia do contrato e eventual decisão que reduza a multa do contrato, com fundamento no art. 413, do Código Civil (diante de valor manifestamente excessivo) ou ainda com fundamento no art. 317, do mesmo diploma (em razão de fatos supervenientes e extraordinários), deve ser muito bem fundamentada, comprovando os requisitos que autorizam a revisão contratual. Em nossa pesquisa jurisprudencial, verificamos que os tribunais, em sua maioria, têm respeitado os valores estabelecidos no contrato em caso de resilição unilateral por parte do ocupante, tornando a revisão uma situação bastante excepcional. Para tanto, fazemos referências a julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo3, Tribunal de Justiça de Minas Gerais4, Tribunal de Justiça do Paraná5 e Tribunal Regional Federal da 3ª região6. Em tais casos e com fundamento no pacta sunt servanda, ao consignar as características do contrato, os referidos tribunais mantiveram o valor estabelecido no contrato, embora também seja possível verificar julgado que admitiu a redução da cláusula penal, com aplicação do art. 413, do Código Civil7. Com relação ao valor da remuneração mensal, embora a Lei 8.245/1991 admita que as partes possam renunciar ao direito à ação revisional de alugueres, já aduzimos anteriormente8 que tal renúncia não significa que a parte lesada não possa requerer a revisão da remuneração na ocorrência de fatos supervenientes ou extraordinários, ou seja, situações bastante excepcionais ou pontuais podem ensejar o pedido de revisão contratual, com fundamento nos artigos 317 ou 478, ambos do Código Civil. Não obstante tal permissão, também em nossa pesquisa verificamos que a revisão contratual tem sido medida excepcional. Antes da pandemia e em contrato firmado enquanto não editada a lei 12.744/2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo9 afastou pedido revisional de aluguéis, após detida avaliação dos requisitos do contrato. Isso porque, segundo o julgado,  [...] a fixação do aluguel, segundo a livre estipulação das partes, levou em conta não apenas a finalidade de servir de contraprestação pelo uso do bem, mas, sobretudo, de retorno do investimento realizado no local. Assim, diante dessa particularidade, inviável se apresenta cogitar de revisão do valor da contraprestação enquanto não se esgotar o prazo estabelecido no contrato.  Já ao longo da pandemia e, sobretudo, com a elevação do índice normalmente utilizado pelos contratantes no built to suit, foram propostas ações judiciais com caráter revisional, aduzindo a elevação abrupta do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM) e, consequentemente, majoração repentina e desmedida da remuneração mensal paga pelo ocupante. Ocorre que em nossa pesquisa também verificamos que tais pleitos, em sua maioria, foram afastados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que a pandemia e seus reflexos não permitem, automaticamente, o reajuste do preço e intervenção judicial no contrato empresarial10, embora tenhamos localizado julgado que admitiu a revisão uma vez comprovada dificuldade financeira por parte do ocupante11, situação que, em nossa opinião, não enseja a revisão do contrato12. Mas ainda a demonstrar que o Poder Judiciário tem respeitado a vontade dos contratantes, citamos outro julgado, datado de 2020 e apreciado pelo Tribunal de Justiça do Paraná13. Naquele processo determinada instituição bancária firmou contrato built to suit com empresa de construção no ano de 2012 (antes da edição da Lei 12.744/2012) para edificação de agência bancária, que foi entregue em 2015. O contrato possuía prazo determinado de dez anos. Contudo, após dois anos de ocupação no imóvel, a instituição financeira realizou denúncia unilateral ao contrato, disponibilizando-se a pagar a multa estabelecida no contrato, que seguia a regra tradicional da locação (três alugueres de maneira proporcional). Nesse cenário, o construtor procurou declarar a nulidade da referida cláusula, para que fosse aplicado o art. 473, parágrafo único, do Código Civil14, ou seja, considerando os investimentos que realizou, o objetivo do construtor era permitir que a denúncia unilateral só produzisse efeitos depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. Ao apreciar o contrato, a Des. Rel. Rosana Fachin aduziu que: A despeito do poderio econômico do locatário Banco do Brasil S/A, trata-se de contrato empresarial firmado com conhecimento da locadora. A compreensão do conteúdo do contrato, de suas obrigações e das consequências financeiras da assinatura desse instrumento impede que se declare nulidade do contrato desde sua origem/formação. Conforme se pode depreender do áudio por ele juntado (mídia mov. 67.1), a Autora-apelante sabia da existência da cláusula impugnada desde o princípio das negociações, chegando a comentar sobre ela com o representante do Banco, mas com ela acabou anuindo. Segundo o representante do Banco, era possível propor a alteração de cláusulas contratuais, o que seria submetido ao jurídico do Banco. Oportuno frisar que a revisão contratual deve ocorrer somente de forma excepcional e limitada, quando configurada hipótese de abuso de direito ou de desequilíbrio contratual. A anulação de cláusulas contratuais, por sua vez, depende de conteúdo ilícito (art. 166, II CC). Como se nota, ao avaliar as tratativas negociais, a relatora do caso entendeu que a denúncia antecipada e a multa estabelecida eram riscos próprios do contrato, aos quais havia anuído o empreendedor, porque "a renúncia convencional pela locadora ao direito de ser indenizada pela antecipação do termo contratual representa direito patrimonial disponível". A nulidade foi afastada e prestigiou-se a vontade das partes, afastando-se a aplicação do art. 473, parágrafo único, do Código Civil. Em nossa avaliação e após pesquisa jurisprudencial, há boa compreensão dos tribunais a respeito das características do contrato empresarial built to suit e da necessidade de excepcional intervenção judicial. Esperamos que em 2023 a jurisprudência prossiga em seu caminho de conferir segurança jurídica, sobretudo às relações empresariais. __________ 1 Vide, por exemplo, GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023. 2 TJSP, Apelação com Revisão 9156991-70.2008.8.26.0000 (992.08.037348-7), rel. Antônio Benedito Ribeiro Pinto, j. 04.05.2011. 3 TJSP, Apelação Cível 1004786-65.2020.8.26.0068; rel. Rosangela Telles; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 2ª Vara Cível; j. 13/10/2021; Data de Registro: 13/10/2021. Vide, também, TJSP, Apelação Cível 1056478-46.2016.8.26.0100; rel.  Jayme Queiroz Lopes; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 5ª Vara Cível; j. 25/06/2020; Data de Registro: 25/06/2020, que também trata da tentativa de redução da multa contratual. 4 TJMG, Apelação Cível 1.0000.21.014326-9/001, rel. Des.(a) Fernando Caldeira Brant, 20ª Câmara Cível, julgamento em 07/04/2021, publicação da súmula em 08/04/2021 5 TJPR, 17ª Câmara Cível 0001228-91.2020.8.16.0194; rel. Des. Fabio André Santos Muniz; j. 27/06/2022. No mesmo sentido e pelo mesmo Tribunal, vide TJPR, 17ª Câmara Cível 0021361-25.2018.8.16.0001; Rel. Des. Marcel Guimarães Rotoli de Macedo; j. 19/05/2022. 6 TRF 3ª Região. Apelação cível 0025624-84.2008.4.03.6100/SP, Rel. Des. José Lunardelli; j. 15/12/2011. 7 TJSP, Apelação Cível 1002019-57.2016.8.26.0274; rel. Alfredo Attié; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itápolis - 1ª Vara; j. 24/09/2019; Data de Registro: 27/09/2019. 8 Cite-se, novamente, o já referido artigo de nossa autoria: GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023. 9 TJSP, Apelação Cível 1010336-32.2017.8.26.0008; rel. Antonio Rigolin; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII - Tatuapé - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/07/2022; Data de Registro: 12/07/2022. Antes da pandemia e a respeito da manutenção dos valores, vide também TJSP, Apelação Cível 1001315-32.2017.8.26.0008; rel. Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII - Tatuapé - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2018; Data de Registro: 13/07/2018. 10 Vide, por exemplo, TJSP, Apelação Cível 1134436-35.2021.8.26.0100; rel. Melo Bueno; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 13ª Vara Cível; j. 07/12/2022; Data de Registro: 13/12/2022. Vide também TJSP, Apelação Cível 1006728-08.2020.8.26.0562; rel. Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 4ª Vara Cível; j. 06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020 e TJSP, Apelação Cível 1065813-53.2020.8.26.0002; rel. Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 5ª Vara Cível; j. 02/08/2022; Data de Registro: 03/08/2022. 11 TJPR, 18ª Câmara Cível 0058770-67.2020.8.16.0000, rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, j. 03/03/2021. Em sentido, contrário, todavia, TJPR, 17ª Câmara Cível, 0039574-35.2021.8.16.0014, rel. Des. Tito Campos de Paula, j. 03/10/2022. 12 A respeito da dificuldade de cumprimento da obrigação e revisão contratual, remetemos o leitor para GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 329 e seguintes. 13 TJPR. Apelação Cível 0038166-97.2017.8.16.0030. Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, j. 10/06/2020. 14 "Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos".
quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Taxa SELIC é a segurança dos juros moratórios

Como em um triângulo, onde o vértice formado entre dois lados permite inferir onde deve estar o terceiro, a interpretação e aplicação de um Código Civil deve buscar uma lógica sistemática. Isto seguramente será tomado em consideração no julgamento do REsp 1795982/SP, no âmbito da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ).  Pautado para fevereiro, os eminentes Ministros e Ministras terão a oportunidade de desatar controvérsia sobre a interpretação do art. 406 do Código Civil (CC). Ao deixar de pagar uma dívida, o dispositivo impõe ao devedor que pague juros ao credor no valor "segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". Mesmo após vinte anos de vigência, o trecho é motivo de aceso debate  Os juros moratórios são devidos pela privação de certo recurso que o credor deveria receber, e não recebeu. Como espécie de frutos civis, durante o período da inadimplência os juros pingam periodicamente da quantia devida, sem a diminuir1. Como o próprio nome designa, o instituto objetiva impor um ônus ao atraso, ou ao inadimplemento, do devedor, que deverá arcar com o valor suplementar ao débito, tanto maior seja a sua mora2.  A leitura do art. 406 à luz da metáfora do triângulo e da própria função dos juros moratórios parece deixar poucas dúvidas sobre sua correta compreensão. O dispositivo aplica-se no silêncio das partes. Sendo este o caso, a taxa devida será equivalente à SELIC3, como previsto na lei 9.065/95 e em outros dispositivos. A despeito disso, razões respeitáveis levaram a maior parte da doutrina brasileira a colocar-se contra esta interpretação linear.  Já na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, o grupo de juristas ali reunidos aprovou o enunciado n. 20, em sentido contrário ao que dispõe a lei. Assentou-se que "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a [de] um por cento ao mês". Em sua justificativa4, o grupo ponderou que o uso da SELIC não era seguro porque a taxa muda com frequência, nem era operacional porque ela embute juros e correção monetária.  A despeito disso, não foi aparentemente considerado que o legislador previamente examinou os ônus e bônus envolvidos, e fez sua opção - legítima e distinta da solução proposta pelo enunciado. O enunciado tomou como um problema o uso da SELIC porque ela é uma taxa móvel. Porém, não há qualquer dificuldade para o seu cálculo5; ao contrário, facilita-se, porque a SELIC já embute correção monetária6, dispensando o complexo mecanismo de corrigir o valor e a ele somar os juros. Seja como for, mais do que por uma questão operacional, o texto legal escolheu atrelar os efeitos da mora no tempo às taxas básicas no juros no período, e não a um número fixo.  Ao fazer incidir a SELIC sobre um débito inadimplido não se concede ao credor uma espécie de aplicação financeira com juros de 1% ao mês, mais correção. A opção pela SELIC significa que o legislador quis fixar uma taxa móvel que não se tornasse excessiva ou minúscula ao longo das sucessivas curvas inflacionárias, sem prejuízo de as partes, em seus contratos, definirem uma taxa distinta.  Esta mesma opção pode ser vista em legislações que serviram de inspiração para o Código Civil brasileiro. Na França, por exemplo, os juros moratórios são revisados periodicamente pelo Ministério da Economia7. Na Itália, embora o Codice Civile mencione uma taxa fixa, a mobilidade foi garantida pela possibilidade de alteração anual por ato do Ministério do Tesouro8.  Para além disso, a escolha legislativa tem sólidos fundamentos econômicos. Em nota técnica emitida sobre o tema, o economista Gustavo Franco alerta que "Regras para a mora não deveriam ter a sua razoabilidade dependente das condições meteorológicas". Para ele, o uso de taxas fixas arbitrárias são "escombros de uma civilização perdida", algo não mais admitido pela ciência econômica. Estipular que a taxa de juros moratórios deve ser de 1% ao mês seria como lançar mão "de um número arbitrário, um juros de algibeira", que tanto poderia ser 1% ao mês, como "uma libra de carne, ou duas", sendo algo exótico, inadequado e inútil9.  A despeito destes fundamentos, a doutrina sustenta que é função da SELIC fixar a taxa devida aos investidores de títulos públicos, o que não seria compatível com os juros moratórios. Porém, o seu uso se dá por referência, à luz do fato de que ela é um instrumento para controle da inflação. Assim, considerar que SELIC não pode ser juros moratórios seria como recusar que o câmbio ou um índice de inflação possam ser aplicados para se chegar ao valor de obrigações de toda natureza, o que não é verdade.  Essas circunstâncias permitem refletir sobre o discurso da segurança, no contexto da lide em torno dos juros. As duas posições em jogo argumentam em favor deste ponto, mas a suposta segurança de uma taxa fixa mensal não pode ser obtida fora da lei, nem fora do contexto econômico. Se o cenário econômico for de baixa inflação, o percentual de 1% ao mês pode se revelar excessivo, distante da realidade de aplicações financeiras ordinárias. Se for de alta, o mesmo percentual pode se revelar baixo, não alcançando o próprio objetivo dos juros moratórios. Daí se justificar a escolha legítima pela SELIC.  Tudo isto resta ainda mais claro ao ter-se em conta que o STJ também firmou entendimento, na Corte Especial, em favor da SELIC10. Ainda que existam acórdãos anteriores em sentido contrário, é bastante significativo o fato de a Corte, desde então, ter passado a inadmitir embargos de divergência sobre o tema, justamente porque entendeu que não há mais dissenso a ser resolvido11.  Apesar disso, os eminentes Ministros e Ministras avaliarão o tema novamente, agora tendo em vista um possível distinguishing quanto a manutenção ou não da SELIC na hipótese de responsabilidade civil extracontratual, e a recalcitrância dos tribunais locais, que não raro insistem em não aplicar a jurisprudência firmada sobre o tema.  Quanto ao primeiro ponto, o regime dos efeitos da mora nos contratos e nas obrigações extracontratuais tem previsão expressa no Código Civil12. Não tendo havido distinção quanto à taxa de juros, ela deve ser aplicada do mesmo modo nos dois casos, como tem decidido o STJ13.  Pretendendo criar uma regra geral, o Código Civil não diferencia os efeitos do incumprimento quanto a este ponto, ressalvada às partes a possibilidade de estipularem expressamente os juros moratórios ao firmarem seus negócios. A unificação dos juros de mora, portanto, prestigia a opção legislativa e a conquista histórica da redução da margem de arbitrariedade na sua fixação, ao contrário do que ocorria na origem do uso dos juros como consequência da mora, como relatado por Zimmermann14.   Quanto ao segundo ponto, este talvez seja o momento de a Corte, ao examinar novamente a matéria, aprovar súmula com o objetivo de proibir julgamento em sentido contrário. Embora o tema encontre-se pacificado há quase 15 anos, curiosamente o entendimento contrário aprovado na I Jornada de Direito Civil parece se impor mais do que compreensão do Superior Tribunal de Justiça. Esta circunstância recomenda que o verbete seja fixado, com o que a jurisprudência será mantida estável e coerente, dando-se também maior publicidade à comunidade jurídica.  A SELIC representa segurança: econômica, porque está atrelada às curvas de inflação; e jurídica, porque inegavelmente foi a escolha do legislador, ratificada pelo STJ. À luz disso, não é razoável criar dúvidas quanto a metodologia indicada na legislação para o cálculo dos juros moratórios. Se reafirmar sua jurisprudência, a Corte estabelecerá marco importante sobre o tema e as bases necessárias, quem sabe, para a construção de uma plataforma unificada de cálculos judiciais pelo Conselho Nacional de Justiça, o que economizará tempo e recursos de advogados, juízes e usuários do Poder Judiciário. __________ 1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. XXIV. São Paulo: RT, 2012, p. 77. 2 SILVA, José Marcelo Tossi. Juros legais. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Obrigações. São Paulo: Atlas, p. 694.  3 "Art. 13. A partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da lei 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da lei 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da lei 8.981, de 1995, o art. 84, inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da lei 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente". Inúmeros outros dispositivos na legislação tributária confirmam o uso da SELIC, seja ao tratar da mora ou da atualização da dívida na hipótese de parcelamento ou compensação tributária. A este respeito, ver: art. 39, §4º, lei 9.250/95; art. 5º, §3º e art. 61, §3º, lei 9.430/96. 4 Eis a justificativa: "A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano". O enunciado foi proposto pelo Desembargador Francisco Moesch, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo Nelson Nery Júnior, membro da comissão que examinou a proposta e relator dos trabalhos no dia 12/09/2002, a aprovação se deu por unanimidade (NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 14. ed. São Paulo: RT, 2022). 5 O Banco Central mantém em seu site ferramenta intitulada "Calculadora do Cidadão", onde facilmente qualquer pessoa pode obter o resultado da incidência da taxa SELIC sobre um valor, em um dado período. 6 Por isto a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária, sob pena de bis in idem. Quanto ao ponto, apenas para ilustrar, confira-se: EDcl no REsp 1.025.298, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 28/12/2012, com referência a inúmeros outros acórdãos. 7 "Art. 1231-6. Les dommages et intérêts dus à raison du retard dans le paiement d'une obligation de somme d'argent consistent dans l'intérêt au taux légal, à compter de la mise en demeure". Os juros legais são calculados de acordo com o art. 313-2 do Código Monetário e Financeiro: "Il comprend un taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels et un taux applicable dans tous les autres cas. Il est calculé semestriellement, en fonction du taux directeur de la Banque centrale européenne sur les opérations principales de refinancement et des taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement. Les taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement pris en compte pour le calcul du taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels sont les taux effectifs moyens de crédits consentis aux particuliers. Les modalités de calcul et de publicité de ces taux sont fixées par décret". 8 "Art. 1224. Danni nelle obbligazioni pecuniarie. Nelle obbligazioni che hanno per oggetto una somma di danaro, sono dovuti dal giorno della mora gli interessi legali (...)". O cálculo deverá observar o art. 1.284 do Codice: "Art. 1284. Saggio degli interessi. Il saggio degli interessi legali è determinato in misura pari allo 0,8 per cento in ragione d'anno. Il Ministro del tesoro, con proprio decreto pubblicato nella Gazzetta Ufficiale della Repubblica italiana non oltre il 15 dicembre dell'anno precedente a quello cui il saggio si riferisce, può modificarne annualmente la misura, sulla base del rendimento medio annuo lordo dei titoli di Stato di durata non superiore a 12 mesi e tenuto conto del tasso di inflazione registrato nell'anno. Qualora entro il 15 dicembre non sia fissata una nuova misura del saggio, questo rimane invariato per l'anno successivo. (...)" 9 A nota técnica foi apresentada nos autos do REsp 1795982/SP pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC). 10 "CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. CÓDIGO CIVIL, ART. 406. APLICAÇÃO DA TAXA SELIC. 1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, 'Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional'. 2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da lei 8.981/95, 39, § 4º, da lei 9.250/95, 61, § 3º, da lei 9.430/96 e 30 da lei 10.522/02). 3. Embargos de divergência a que se dá provimento." (EREsp 727.842/SP, rel. Min. Teori ZAVASCKI, Corte Especial, j. 08/09/2008). 11 Exemplo recente pode ser visto no AgInt no EREsp 1731193/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, j. 03/08/2022. 12 Se a mora for de obrigação líquida, dá-se no vencimento (art. 397, CC); se não for líquida, a partir da citação (art. 405, CC); se decorrer de ato ilícito, a partir do evento danoso (art. 398, CC). Este arranjo foi ratificado nas Jornadas de Direito Civil, nos enunciados 163 ("A regra do CC 405 aplica-se somente à responsabilidade contratual, e não aos juros moratórios na responsabilidade extracontratual, em face do disposto no CC 398...") e 428 ("Os juros de mora, nas obrigações negociais, fluem a partir do advento do termo da prestação, estando a incidência do disposto no CC 405 limitada às hipóteses em que a citação representa o papel de notificação do devedor ou àquelas em que objeto da prestação não tem liquidez"). 13 A SELIC tem sido igualmente aplicada como juros moratórios em indenizações (AgInt nos EDcl no REsp 1872866 / PR, rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 20/06/2022) e dívidas cíveis (AgInt no REsp 1900859 / MS, rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 14/09/2020). 14 "What were (and what are) the effects ofmora debitoris? The medieval lawyers were presented with a specific problem by the Roman rule that interest could be charged in bonae fidei contracts. For how could this be reconciled with the canonical usura prohibition? Interest on account of mora, ran the argument usually presented to resolve the difficulty, was not to be regarded as genuine (illicit) usura, but as a (lawful) way of compensating the creditor for his damages: "hie usuras ut interesse peti" (Accursius) or ". . . pro interesse petatur" (Gofredus de Trano), and such a claim was not dishonest, "quia tale lucrum ex mutuo non speratur" (Cinus da Pistoia). Mora thus became one of the most important titles for awarding interest. The statutory or customary rates differed from town to town, from region to region. In the medieval upper Italian city states up to 20 % or even 30 % could be charged: in later centuries 5 % came to be widely accepted" (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Cape Town: Jota & Co Ltd, 1990, p. 799).
O tempo é ingrediente fundamental para o cumprimento ou descumprimento dos contratos, independentemente da sua natureza. Por ser uma variável totalmente imponderável, há muito instiga o Direito (e seus operadores) a estudá-lo. Sendo assim, o contrato configura-se como um ato entre as partes de apreensão e de comprometimento mútuo futuro1. Consequentemente, a promessa de um cumprimento de determinada obrigação futura, por certo, estará diretamente relacionada e vinculada a acontecimentos futuros. Tais incertezas geram apreensões entre as partes. A partir dessa premissa, fica a pergunta: é possível estipular um contrato que preveja todas as circunstâncias possíveis e futuras? Para a chamada Incomplete Contract Theory (Teoria Econômica do Contrato Incompeto), não. Giuseppe Bellantuono, por sua vez, dispõe que "nenhum contrato estabelece uma disciplina específica para todos os eventos que poderiam interferir na execução das obrigações". Consequentemente, tentar especificar todas as possíveis contingências futuras seria uma atividade custosa e, mesmo assim, sujeita a condições de incerteza2. Neste ponto, passa a ser importante a noção do que chamamos de bargain costs (custos de negociação). Muitas vezes, o detalhamento exacerbado das previsões contratuais subsidia os chamados comportamentos oportunistas, que acabam por utilizar dessa justificativa para o rompimento de relações que, em determinado momento, não lhe sejam mais vantajosas. Sendo assim, liberando as partes da custosa e desestimulante tarefa de buscar prever as incontáveis hipóteses de ocorrência de incidentes possíveis em um contrato, pode-se dedicar mais recursos à definição do objeto do contrato, qual seja, o preço e a forma de pagamento3. No Código Civil, os artigos 3174, 4785 e 4796 colocam o juiz como figura central capaz de solucionar toda e qualquer situação que pudesse alterar as bases originais do contrato, desde que verificados fatos que causem onerosidade excessiva a uma das partes. Dito de outro modo, o legislador permaneceu silente quanto à opção das partes já, previamente em cláusula contratual, estabelecerem eventual remédio jurídico para essa situação. Pois bem. Na presente reflexão, o intuito é debater, de forma suscinta, alguns contratos imobiliários de longa duração, como os chamados contratos de parceria imobiliária, built to suit, contratos de locação, promessas de compra e venda e permuta. Não é intuito discorrer cada um dos referidos contratos, mas sim de que forma o tempo pode afetá-los e se é possível atenuar os efeitos das incertezas do tempo nos respectivos instrumentos contratuais. É possível dizer, então, que o momento negocial do contrato (pré-contratual) é o pertinente para tais preocupações. Explica-se. Tal período de aproximação das partes e da berganha das posições contratuais é o que criará o espaço negocial para a elaboração das condições do contrato. Via de regra, nesse momento, existe um elevado otimismo entre as partes. Tal ambiente promissor deve ser utilizado, justamente, para as tratativas que visem proteger o contrato às eventuais futuras adversidades7. Esse é o ponto. Nesse momento negocial, entende-se adequada a inserção no contrato da cláusula de renegociação (hardship). Pelo princípio da autonomia privada é permitido aos figurantes no contrato ampla possibilidade de modelação de soluções visando atacar ou minimizar o eventual e futuro desequilíbrio contratual. Quanto maior o espaço para que seja exercida a autonomia privada, maior a liberdade de criatividade dos advogados na busca por soluções contratuais. Consequentemente, maior o espaço para atenuar situações supervenientes8. Dessa forma, as partes farão constar no contrato uma cláusula de renegociação, com intuito de revisar ou acomodar o contrato às novas circunstâncias, definindo, já no próprio texto contratual, um "projeto de adaptação" ou dispondo sobre um período de nova negociação entre as partes, caso determinada situação ocorra. Dito de outro modo, as partes plasmam, no contrato, uma obrigação de negociar, uma readaptação, se verificados certos acontecimentos capazes de atingir substancialmente o contrato (cláusula de hardship)9. Para Alexandre Junqueira Gomide, a cláusula de renegociação seria uma modalidade de as partes precaverem dos riscos decorrentes do decurso do tempo. Para o autor, as partes poderão, objetivamente, declarar em quais circunstâncias são obrigadas a renegociar, como também poderão firmar em caráter mais genérico, ou seja, determinando que as partes estão sujeitas a renegociar quando uma delas alegar a presença de um fato que acabou onerando excessivamente o cumprimento do que fora pactuado10. Nas palavras de Judith Martins-Costa: "Por via do poder modelador da autonomia privada atuam-se, pois, cláusulas cuja finalidade é, justamente, prover, contínua e dinamicamente, a acomodação do contrato às circunstâncias supervenientes ao momento de sua formação, sendo a configuração dessas cláusulas marcada pela atipicidade, o que importa numa grande variedade de formas e eficácias"11. Veja-se alguns exemplos práticos. Em contratos de permuta financeira, por exemplo, é comum que a incorporadora estabeleça com o proprietário do terreno ("terreneiro") um percentual de VGV (Valor Geral de Vendas) sobre a venda futura das unidades. Essa modalidade contratual pode perdurar por anos, tendo em vista que a obra do empreendimento possui um tempo considerável, bem como a venda das unidades (especialmente a prazo) também pode perdurar por anos. Pois bem, imagine que, no momento da estruturação do contrato de permuta financeira a incorporadora tenha previsto um valor X pelo metro cúbico de concreto. Com base nessa previsão, a incorporadora oferece ao "terreneiro" 30% (trinta por cento) do VGV da venda das unidades. Porém, um ano após a assinatura do contrato, o valor concreto triplica, alterando substancialmente o custo da obra. Dessa forma, para a manutenção de um equilíbrio mínimo entra as prestações será necessário que o VGV do negócio entabulado seja, também, modificado. Caso o contrato não possua uma cláusula de renegociação, essa situação pode gerar graves prejuízos na relação negocial, podendo resultar em eventual demanda judicial. Veja-se outro caso hipotético. João firma contrato de promessa de compra e venda com Maria com intuito de adquirir 500 (quinhentos) hectares na cidade de Passo Fundo/RS. Tal área será destinada por João para o plantio de soja. Dessa forma, como precificação do hectare, as partes estipulam que cada hectare custará X sacos de soja. João fica obrigado a pagar a quantia total em 24 meses. Pois bem. Passados 10 (dez) meses, em razão de fatossupervenientes e extraordinários, o valor do hectare duplica, prejudicando o negócio jurídico firmado. As partes poderiam, por exemplo, estabelecer um teto contratual no preço da soja. Por exemplo, caso o valor da soja aumente, o preço máximo ficará pactuado em um teto de 20% sobre o valor originariamente pactuado. A vantagem desse dispositivo contratual de renegociação é clara. Ninguém melhor do que as partes para modificar o contrato firmado. A partir dessa premissa, a transferência de competência para apreciação do contrato para o Poder Judiciário aumenta significativamente o grau de incerteza e insegurança jurídico, podendo fazer com que o resultado final seja totalmente diverso do pretendido inicialmente12. Diante disso, pode-se verificar que a apreciação jurisdicional no momento de revisar os contratos, podem gerar externalidades, especialmente negativas, como apreciações diferentes a casos análogos. Assim, "se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo - tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la"13. Portanto, a partir das premissas acima apresentadas, pode-se afirmar que a implementação das cláusulas de renegociação nos contratos de longa duração podem trazer uma maior segurança jurídica às partes, bem como uma redução substancial nos custos de transação, tendo em vista a impossibilidade de previsão de toda e qualquer situação superveniente que possa atingir o negócio jurídica entabulado. __________ 1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 647. 2 CAMINHA, Uinie; LIMA, Juliana Cardos. Contrato Incompleto: uma perspectiva entre Direito e Economia para contratos de longo tempo. Revista Direito GV. São Paulo. 10(1), p. 155-200. Jan/Jun de 2014. 3 TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. Análise Econômica do Direito dos Contratos: Uma nova abordagem do direito contratual como redutor das falhas de mercado. Londrina: Troth, 2021, p. 180. 4 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 5 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 6 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato. 7 FORGINIO, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 76. 8 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 651. 9 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 652. 10 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e incorporação imobiliária. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 205-206. 11 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 652-653. 12 GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; ENGELMANN, Wilson. A Inteligência Artificial nos Contratos: Uma hipótese possível? ULP LAW REVIEW. Vol. 15, n. 01, p. 49-67. 13 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na ADPF 828-DF analisou o quarto pedido de extensão da suspensão (que terminaria no dia 31/12/2021, segundo a Lei 14.126/2.021) das reintegrações de posse. Esta quarta decisão judicial não adiou mais uma vez (como se fizera anteriormente) o termo final fixado pelo Legislativo e promulgado pelo Executivo, mas estabeleceu um regime para a sua efetivação, o que por si só já motiva sérios debates doutrinários. A par desses debates, que os doutos solverão, a decisão do Eminente Ministro Barroso procurou cuidadosamente atentar à Resolução 90/2.021 do CNJ, que recomendou "aos órgãos do Poder Judiciário, a adoção de cautelas na solução dos conflitos sobre desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)".  A decisão, ainda, buscou base legal no artigo 565, do CPC que determina que antes de ser analisado o requerimento de liminar de desocupação, seja designada uma audiência de mediação nos litígios coletivos por posse de imóvel ocorridos há mais de ano e dia. Ou seja, a decisão se mostrou bastante precavida no que tange aos ocupantes das terras.  No mais, a decisão impôs aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais a imediata instalação de comissões focadas nos conflitos fundiários que possam subsidiar os juízes, incumbindo-as: (1) da elaboração da estratégia para a retomada das decisões de reintegração de posse que estão suspensas; (2) de realizarem inspeções judiciais e audiências de mediação antes de qualquer decisão para desocupação, mesmo nos casos em que já tenham sido expedidos os mandados de reintegração. Como se vê, expressou-se o intento de que tudo se realize com muita cautela, muita atenção às situações em foco. Ninguém dirá, creio, que esse intento não seja louvável. Mas, creio que seja válido pontuar alguns aspectos: (1) O silêncio acerca dos direitos dos proprietários cujas terras foram invadidas, sequer se falando de seus prejuízos e de suas situações fáticas, bastante sensíveis;  (2) Os seus direitos são claros, previstos na Constituição Federal (art.5º - XXII) e no Código Civil (art. 1228) e haveriam de ser concretizados segundo a legislação processual;  (3) Essa desatenção perdura nesta quarta oportunidade e, até aqui, esses proprietários estão sem as suas propriedades e sem  indenizações, malgrado não se tenha, em alguns casos, sequer analisado a invasão e fixado as suas características e consequências, o que já deveria ter sido efetivado a teor da lei e, em outros casos, já esteja superada a fase legalmente prevista e já exista ordem de reintegração expedida (isto é, questão já analisada será revista); (4) Mediações (muito conveniente e validamente previstas na lei - e isso é indubitável) se fazem por certo período e em certas condições e, essas circunstâncias já se esvaíram: fosse possível algum acordo, já teria ocorrido nesse ano que correu. Isso é relevante: a mediação é feita, mas não é lógico ou obrigatório nem esperar resultado indefinidamente, nem que chegue a alguma solução: não chegar também é um fim! E aí, cabe ao Judiciário julgar; (5) Em todo o Brasil há carência de estrutura para a realização de mediações e conciliações, o dizem milhares de decisões judiciais desde 2016, o que enevoa o futuro das providências previstas nesta decisão, não obstante a determinação enfática de criação de Comissões de Conflitos Fundiários nos tribunais: conseguirão nossos Tribunais, já às voltas com tanta demandas e necessidades, investir e operar esses novos trabalhos?; (6) Pelo objetivo declarado (mediar, passado tanto tempo) e pela necessidade estrutural (instalação e operação das comissões), nada acena em prol da solução almejada;  (7) A perdurar a invasão remanesce, por igual, a violação ao nosso arcabouço constitucional e legal, o que jamais é admissível até porque o Legislativo, ao qual cabe eventual alteração da norma, não sinalizou qualquer mudança, mesmo instado com veemência na decisão liminar proferida aos 31/12/2021. Vai daí, a louvável cautela judiciária, ao se alongar quase indefinidamente no tempo, poderá se transmudar em injustiça e ilegalidade, penso. Por fim, merece realce nesta importante decisão, notar que voltou a viger o regime legal para os despejos, isto é, voltamos ao império da Lei das Locações naquelas situações em que fora afastada (estava suspensa a aplicação da Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX). E essa volta merece aplauso: afinal, exatamente a vigência dessa trintenária lei é que pacificou - como nunca se vira no país - as locações urbanas, a indicar, qual uma bússola, qual é o bom Norte: a vigência de leis justas, bem elaboradas na forma, na origem e no fundo, traz a efetiva paz social.   _____________ Jaques Bushatsky é advogado, foi Procurador do Estado de São Paulo e Juiz do TIT/SP por dois mandatos e chefiou a Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Presidente da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, fundador e diretor da MDDI - Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Autor da obra "Aspectos Principais do Aluguel Comercial" e coautor da obra "Locação Ponto a Ponto" publicada pelo IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.