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Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
1. A figura do antecipatory breach no ordenamento jurídico brasileiro A figura da quebra antecipada do contrato nasce no direito inglês, berço da common law, tendo sido posteriormente importada para o direito norte americano. Este instituto, apesar de não positivado no Brasil, não é novo no ordenamento jurídico nacional. Segundo Judith Martins-Costa1, o inadimplemento antecipado não é um terceiro gênero de inadimplemento, mas sim espécie inserida dentro do inadimplemento definitivo. Afirma a eminente autora que, embora já presente na doutrina desde a década de 50, o primeiro caso que se tem notícia em que aplicado o conceito, ainda que não com esta nomenclatura, foi em 1983, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Naquele julgado2 o tribunal gaúcho entendeu pela rescisão de contratos em conta de participação firmados pelos subscritores de quotas, em razão da ausência de providências relativas a centro médico hospitalar na construção de um hospital, antes mesmo de encerrado o prazo contratual para tanto. A doutrina passou a conceber a ideia do inadimplemento antecipado quando desenvolvidos melhores estudos sobre o instituto da boa-fé e seus desdobramentos em critérios objetivos e subjetivos, conforme ressalta a autora. Desde então, passou-se a entender que a prática de atos ou declarações contrárias ao efetivo cumprimento do contrato violava o comportamento previsto na atuação em boa-fé. Desta forma, conclui a autora que, nos sistemas jurídicos em que admitida a figura do inadimplemento antecipado passou-se a exigir a presença de alguns requisitos obrigatórios para sua configuração. São eles: (i) inadimplemento caracterizado como grave violação do contrato, possibilitando a resolução por justa causa; (ii) a certeza de que o cumprimento não se dará no vencimento, e; (iii) uma conduta culposa pelo devedor, seja por declaração de que não irá cumprir a avença, seja por sua inércia nos atos prévios necessários ao cumprimento. O primeiro requisito diz respeito ao ato caracterizador do descumprimento em si. Isto é, o descumprimento contratual alardeado deve ser atinente a uma obrigação principal, e não acessória, ou secundária, cujo não cumprimento não afetaria o objeto principal do contrato. No que se refere à certeza de inadimplemento, esta não pode ser confundida com a alta probabilidade de incumprimento, pois, se assim o for, não está preenchido o segundo requisito necessário. Não pode haver dúvidas de que não será possível o cumprimento da avença na data aprazada. Quanto à conduta culposa do devedor, esta pode se dar pela confissão de que não cumprirá a avença, bem como por comportamento ou ausência de comportamento que  possa levar à conclusão de que os atos necessários ao adimplemento não serão atendidos. Nesta esteira, há recente discussão jurisprudencial acerca do enquadramento do instituto da quebra antecipada de contrato para as hipóteses em que o adquirente de unidade imobiliária com garantia de alienação fiduciária, isto é, o devedor fiduciante, pleiteia judicialmente a ruptura do contrato de alienação fiduciária em garantia e a devolução dos valores pagos, antes de sua constituição em mora. O tema tem sido trazido à tona em razão da ausência de previsão na lei 9.514/97 para casos em que o fiduciante, antes de inadimplir o pagamento da parcela, pleiteia a resolução do contrato. A lei 9.514/97 dispõe em seu art. 26, e seguintes, o passo a passo do procedimento extrajudicial a ser seguido para a execução da dívida garantida pela alienação fiduciária de bem imóvel. O cerne da controvérsia reside no caput do art. 26, o qual dispõe o seguinte - em recente nova redação: "vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.." O STJ, ao julgar o tema 1.095, em outubro de 2022, fixou tese em reconhecimento à preponderância dos procedimentos de execução previstos na lei 9.514/97 sobre o Código de Defesa do Consumidor. Os debates travados entre os ministros no julgamento do caso, contudo, deixaram claro que a concordância quanto aos termos jurídicos e às expressões específicas utilizadas na delimitação da tese revelava a divergência que havia entre os julgadores em outra questão periférica. A íntegra do voto condutor do ministro relator, Marco Buzzi, e a declaração de voto vogal pela ministra Nancy Andrighi, demonstraram o desentendimento de ambos os magistrados quanto à questão relativa à quebra antecipada do contrato. Enquanto o Relator se apegou à literalidade da redação do artigo 26 antes mencionado, a Ministra Nancy suscitou a larga aceitação no nosso ordenamento jurídico da figura da quebra antecipada do contrato. A fim de ilustrar a divergência de entendimentos, vale transcrever o entendimento dos Ministros acerca do tema. Neste sentido, o voto do ministro relator: "Do mesmo modo, não há como prevalecer o ditame especial da lei 9.514/97 quando inexistir inadimplemento do devedor ou embora existente, não tenha o adquirente sido constituído em mora nos exatos termos do procedimento especial estabelecido nos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97. Isso porque, o regramento especial estabelece, como requisitos mínimos para a sua deflagração, dívida "vencida e não paga, no todo ou em parte" E constituição em mora do fiduciante. Na falta de qualquer desses requisitos, não se afigura aplicável o procedimento especial de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária pelo ditame da lei 9.514/97." Em contrapartida, o voto-vogal da Ministra Nancy Andrighi assim dispõe: "37. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, regra geral prevendo o mecanismo do vencimento antecipado do contrato. No entanto, a aplicação do instituto é admitida pela jurisprudência (REsp n. 309.626/RJ, 4ª turma, DJ de 20/8/01; REsp n. 1.792.003/SP, 3ª turma, DJe de 21/6/21) e pela doutrina, "em analogia com a modelagem da exceptio non adimpleti contractus e, de modo especial, da exceção de inseguridade (art. 477), uma ou outra devendo ser, conforme o caso, conectada com o princípio da boa-fé objetiva (art. 422)" (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo CC: do inadimplemento das obrigações. Vol. V. Tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 244). (...) 39. Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. 40. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados." Para analisar o instituto do antecipatory breach sob a ótica dos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis, faz-se mister averiguar o seu conceito e prática no mercado, além dos precedentes nacionais para, enfim, entender os desdobramentos e efeitos não mapeados de uma distorção do instituto legal. Clique aqui par ler a íntegra da coluna. ________ 1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 682. 2 Contrato de participação, assegurando benefícios vinculados a construção de hospital, com compromisso de completa e gratuita assistência médico-hospitalar. O centro médico hospitalar de porto alegre ltda não tomou a mínima providência para construir o prometido hospital, e as promessas ficaram no plano das miragens; assim, ofende todos os princípios de comutatividade contratual pretender que os subscritores de quotas estejam adstritos a integralização de tais quotas, sob pena de protesto dos títulos. Procedência da ação de rescisão de contratos em conta de participação. (Apelação Cível, 582000378, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Athos Gusmão Carneiro, Julgado em: 08-02-1983).
Desde que a CN - Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ expediu os provimentos 172 e 175, ambos de 2024, que tratam da obrigatoriedade do uso da escritura pública para a instrumentalização de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis1, temos visto uma avalanche de argumentos tanto favoráveis quanto contrários a essa orientação. Nesse contexto, recentemente foi publicado um artigo da lavra dos renomados professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar no site Consultor Jurídico2, instigados por um artigo do igualmente culto André Abelha, no site Migalhas3, no qual defendem a interpretação do CN-CNJ quanto ao uso da escritura pública. Independentemente dos diversos argumentos que possam ser apresentados para se defender uma ou outra posição4, o que chama a atenção na argumentação do primeiro texto, e sobre o qual este artigo se debruça, é a sugestão de que o uso do instrumento particular em negócios de alienação fiduciária de bens imóveis estaria associado à informalidade e à insegurança jurídica.   Inicialmente, ressalvo a irrestrita concordância com os autores no sentido de que eventual economia financeira não deveria ser o mote principal a induzir alterações no direito positivo, sob pena de fragilizar a estabilidade das relações sociais, esta sim, o objetivo primordial do Direito. No entanto, os primeiros autores parecem incorrer em contradição ao discutir os custos relacionados ao uso do instrumento particular nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. Um exemplo disso é hipótese levantada de que os procedimentos de certificação e arquivamento dos instrumentos particulares poderiam, na prática, ser mais complexos e, portanto, mais onerosos do que a lavratura de uma escritura pública. Inclusive, tal argumento parece não fazer sentido já que a certificação e arquivamento são procedimentos intrínsecos à lavratura de escrituras públicas, ou seja, como parte do processo poderia ser mais custosa que o processo completo? Assim, ainda que se concorde com a premissa de que a eficiência econômica não deveria ser único motivo a induzir alterações legislativas, por coerência, a incidência ou não de emolumentos jamais deveria orientar alterações interpretativas da própria lei. Nesse ponto, portanto, não parece haver divergências. Baseando-se, então, em premissas desvinculadas de custos financeiros, o fato é que, apesar de a decisão do CN-CNJ ter origem na controvérsia gerada pela interpretação do art. 38 da lei 9.514/987 pela Corregedoria de Justiça de Minas Gerais (acompanhada por outras quatro corregedorias estaduais), as demais vinte e duas Corregedorias Estaduais de Justiça mantinham uma interpretação consolidada, permitindo o uso do instrumento particular, independentemente das partes envolvidas. Essa interpretação permitiu a celebração de milhares de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis por instrumento particular ao longo dos anos, sem que se tenha notícia de que essa prática tenha gerado controvérsias jurídicas relevantes. Neste aspecto, vale lembrar que, assim como a norma posta (fonte primaria), os usos e costumes são igualmente fontes de Direito, ainda que acessórias5, caracterizadas pela observância reiterada de certas regras (ou interpretação dessas regras, como neste caso), consolidadas pelo tempo e revestidas de autoridade. A simples observância do que de fato ocorreu nesses vinte e dois Estados, com o uso do instrumento particular por mais de duas décadas, fornece uma ideia valiosa sobre o que a prática nos ensina em termos de segurança jurídica. A afirmação dos autores, com a qual concordo plenamente, de que "a prática mostra que o vigente regime jurídico das alienações fiduciárias de imóveis tem garantido a um só passo o fomento do mercado imobiliário e a segurança jurídica dos seus agentes" e que "não faz sentido - menos ainda com base em ilações de ordem econômica - alterar um sistema que vem desempenhando eficazmente sua função", reforça a justamente a valorização do uso do instrumento particular, em vez da escritura pública nas Alienações Fiduciárias de bens imóveis.  A segurança jurídica não é um conceito abstrato, mas concreto.  A lei de Introdução às normas do direito brasileiro (Decreto-lei 4.657/42) em seu art. 20 estabelece que as decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial, com base em valores jurídicos abstratos, deverão considerar as consequências práticas da decisão. Atribuir ao uso do instrumento particular a pecha da insegurança jurídica tampouco condiz com o sistema jurídico vigente. A instrumentalização do negócio jurídico pode ocorrer de forma solene ou não.  Negócios jurídicos solenes são aqueles que devem obedecer à uma forma prescrita em lei para se aperfeiçoarem, enquanto os não solenes podem seguir uma forma livre6.  A regra vigente em nosso ordenamento jurídico é que os negócios jurídicos não dependem de forma especial como requisito de validade (art. 107 do CC); ou seja, a forma livre é a regra, e o formalismo, como exceção, depende de previsão expressa em lei.  Seguindo a regra prevista em nosso sistema, inúmeros negócios jurídicos são celebrados diariamente por instrumento particular, revestidos de plena validade e eficácia, sem que se cogite de insegurança jurídica. No âmbito das transações envolvendo ativos imobiliários, podemos citar contratos de locação, arrendamento, parceria, comodato, compra e venda, built to suit, entre outros. Associar o uso do instrumento particular à insegurança jurídica, como equivocadamente sugerem os autores, contraria o sistema jurídico brasileiro e, pior, a própria realidade da vida vivida.  Não se ignora que o art. 108 (antigo 134, II) do CC impõe a escritura pública como requisito de validade para negócios jurídicos que versem sobre constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Entretanto, o art. 108 é claro ao permitir exceções a essa regra, desde que previstas em lei. Ou seja, a norma é uma exceção que admite exceção.  Aqueles que defendem o uso do instrumento particular na alienação de imóveis, interpretam o art. 38 da lei 9514/97 como a exceção prevista no art. 108. Já os que entendem o contrário, não veem na redação do art. 38 tal permissivo. Independentemente da linha interpretativa adotada, não é razoável, à luz do sistema jurídico brasileiro, fazer qualquer ilação generalizada que associe o uso do instrumento particular na formalização de negócios jurídicos a uma suposta insegurança jurídica. Sob a perspectiva jurídica teórica, podem existir argumentos para aqueles que defendem o uso da escritura pública nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. No entanto, a segurança jurídica das partes envolvidas definitivamente não está entre esses argumentos. _______ 1 O instrumento particular seria privativo das entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), incluindo: I - as cooperativas de crédito; e II - as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou do Bacen relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, além de outras exceções previstas em lei (administradoras de Consórcio de Imóveis - art. 45 da lei 11.795/08; entidades integrantes do SFH, etc.). 2 Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: falácia da economia pela informalidade. 3 Disponível aqui.  4 Neste aspecto sugiro vivamente o acesso ao IbradimCast #77 - "Alienação Fiduciária por instrumento público ou particular: os Provimentos 172 e 175 do CNJ", em que rendo louvores à exposição tanto do querido e culto Alexandre Kassama, quanto do nobre e, não menos querido, mestre Melhim Challub. 5 "São consideradas fontes formais do direito a lei, a analogia, o costume e os princípios gerais de direito (arts. 4º da LINDB e 140 do CPC); e não formais a doutrina e a jurisprudência." CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 53). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 6 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 391). Editora Saraiva. Edição do Kindle.
Não obstante os profundos debates e atualizações experimentadas pela lei de alienação fiduciária de bens imóveis nos últimos anos - a lei  9.514/97, atual força motriz do crédito imobiliário que institui o regime de alienação fiduciária de imóveis - ainda há espaço para dúvidas e situações que impactam sobremaneira a etapa da retomada e leilões extrajudiciais de imóveis, em razão de lacunas no texto legal. A lei 9.514/97 gera questionamentos práticos quanto à responsabilidade pelo pagamento de débitos de IPTU e taxas condominiais (denominados aqui como "encargos do imóvel") de moradores em diversos casos, em alguns deles inclusive aguardando pronunciamento do STJ1. Abordaremos neste artigo, os possíveis endereçamentos da responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel na hipótese de arrematação de imóvel em primeira praça, sob  as perspectivas de advogada e leiloeiro especialistas no tema. A referida lei estabelece que o valor de primeira praça é o valor de avaliação do imóvel atribuído pelas partes à época da celebração do respectivo contrato e atualizado conforme critério contratual2. Porém, tanto a lei quanto a maioria dos contratos não fornecem maiores elementos quanto à responsabilidade pelo pagamento dos encargos dos imóveis se o arremate ocorrer em primeira praça:  seria a responsabilidade por tal pagamento do fiduciário, do fiduciante ou do arrematante? Por outro lado, a regra para a composição do cálculo do lance mínimo em segunda praça está expressamente prevista no art. 27, parágrafo 3º, da lei 9.514/143, a qual prevê a inclusão dos encargos do imóvel na composição do lance mínimo para o segundo leilão e, consequentemente, liquidados em decorrência da arrematação. A questão prática, objeto do presente artigo, surge especialmente quando o valor da primeira praça é inferior ao da segunda praça - evento não raro nos leilões da lei 9.514/97. A lei em comento, ao estabelecer expressamente que os encargos do imóvel estão incluídos apenas no valor de segunda praça, carecendo, portanto, de previsão expressa sobre quem seria o ator responsável pelo pagamento dos encargos do imóvel na primeira praça, sugere uma aparente lacuna legal com consequências nebulosas do lado prático. Vejamos as hipóteses de quem seria o responsável pelo pagamento dos encargos do imóvel em primeira praça: (i) Arrematante? Afinal, tratam-se de débitos propter rem e consequentemente, serão de responsabilidade do novo proprietário, por exemplo, à luz do art. 1.345 do CC4, devendo o edital, a pedido do fiduciário/comitente expressamente solicitar ao leiloeiro fazer constar a responsabilidade ao arrematante, a despeito de a lei 9.514/97 não dispor sobre o tema. Em relação a esta possibilidade, recentemente a 1ª Seção do STJ fixou a seguinte tese sob o rito dos recursos repetitivos (Resp 1.914.902), aplicável quando o arremate ocorre em hasta pública via processo judicial: "Diante do disposto no art. 130, parágrafo único do CTN, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação". Portanto, o STJ, ratificando o teor do art. 130, parágrafo único do CTN e o posicionamento de que a arrematação é forma de aquisição originária de propriedade, notadamente quanto aos débitos de IPTU e de condomínio, consolida segurança jurídica ao instituto ao desonerar o arrematante dos débitos de IPTU, ainda que o "edital" seja omisso ou que atribua ao arrematante tal responsabilidade. Por outro lado, há que se ponderar se a decisão do STJ alcançaria também os leilões extrajudiciais e, portanto, tornaria inválida disposição editalícia que atribua ao arrematante o pagamento do IPTU do imóvel, caso o valor do lanço não seja suficiente para suportá-lo. Em qualquer caso, a nosso ver, há que se considerar que, se o cerne do instituto da arrematação é se constituir de uma forma de aquisição originária de propriedade em relação aos encargos do imóvel, segundo a própria e vasta jurisprudência do STJ sobre o tema, é plausível que os efeitos desta decisão alcancem também os leilões extrajudiciais. Por outro lado, e apenas para ilustrar a complexidade do tema para o próprio Judiciário, e não obstante o entendimento do STJ, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo entende que a aquisição por meio de arrematação em leilão é considerada derivada, pois não se sobrepõe, por exemplo, a princípios registrais5. Outro aspecto que não pode ser negligenciado é o impacto comercial da atribuição da responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel, pois, a depender do valor do bem em primeira praça, o acréscimo destas dívidas ao arrematante pode significar a inviabilidade financeira da aquisição pelo mercado, ou seja, transferir débitos ao arrematante pode significar a inviabilidade da venda do bem. (ii) Sub-rogação no lanço: na linha do que decidiu recentemente o STJ, retro citado, teríamos o mesmo cenário na arrematação extrajudicial, ou seja, em princípio, o bem seria transferido livre desses débitos ao arrematante, conforme previsto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), e no art. 908, parágrafo primeiro, do CPC, aplicáveis às expropriações. A sub-rogação desses débitos no valor do lance poderia ocorrer automaticamente com a respectiva absorção dos valores pendentes de pagamento e o saldo do lanço, se restar algum, seria absorvido pela credora. Contudo, se o resultado arrecadado em 1ª praça for insuficiente para liquidar toda dívida dos encargos do imóvel, a fiduciária, ainda assim, estaria obrigada a outorgar a quitação ao fiduciante prevista no art. 26 e seguintes da lei 9.514/97, bem como transferir o imóvel arrematado via escritura de venda e compra? (iii) Devedor fiduciante: os contratos e a lei 9.514/97 preveem que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel é do fiduciante, notadamente pelo senso de que os respectivos fatos geradores remontam ao período da posse, uso e gozo do imóvel. Frise-se, inclusive, que este tema também está em análise pelo STJ6. Pois bem, se em última instância recaírem sobre o arrematante ou fiduciária os pagamentos de encargos do imóvel em decorrência do inadimplemento do fiduciante, seria àqueles possível pleito de ressarcimento em face do fiduciante pelos montantes dos encargos do imóvel, ou tal possibilidade estaria apenas ao alcance do arrematante, pois a fiduciária esbarraria na quitação obrigatória e na vedação de cobrança de saldo, ao menos nos financiamentos residenciais, nos termos do art. 26-A, parágrafo 4o da lei 9.514/97? A nosso ver, não nos parece descabida interpretar que a quitação obrigatória acima mencionada não abrangeria - e nem poderia abranger - o dever contratual do fiduciante sobre os débitos propter rem, pois tal quitação, nos termos dos artigos da lei. 9.514/97 que a mencionam, são literais abrangendo apenas dívida, isto é, o saldo contratual do financiamento pertencente ao fiduciário. Assim, parece-nos que a quitação prevista na lei está limitada ao saldo contratual da operação de financiamento, excluídos os débitos propter rem desse escopo, a uma, por literalidade dos artigos que definem o objeto da quitação obrigatória, que é justamente a dívida, que não se confunde com os encargos do imóvel e segundo, porque a fiduciária não tem legitimidade para dar quitação por valores que ela própria não é a credora e, por isso, não lhe pertencem, afigurando-se a possibilidade do devido reembolso perante o fiduciante. Por tudo exposto, resta  evidente a lacuna legal, tornando-se imperativo uma revisão normativa ou um entendimento jurisprudencial mais assertivo  acerca da responsabilidade pelo pagamento dos encargos de um imóvel arrematado em primeira praça. A dúvida sobre quem deve assumir tais despesas pode não apenas fomentar litígios, mas também abalar a confiança no mercado imobiliário, especialmente no delicado cenário das alienações fiduciárias. Nesse contexto, é fundamental que os legisladores e o Poder Judiciário atuem de forma proativa para sanar essa lacuna jurídica. Uma possível solução seria alteração da lei 9.514/97 que regulamente de maneira clara e inequívoca a responsabilidade pelo pagamento dos encargos em casos de arrematação em primeira praça. Alternativamente, os tribunais superiores poderiam emitir uma súmula vinculante ou enunciado sobre o tema, proporcionando uma orientação uniforme para todos os juízos do país. Tais medidas não apenas trariam segurança jurídica para as partes envolvidas, mas também contribuiriam para a eficiência e celeridade dos processos de execução, reduzindo o volume de recursos e contestações relacionados a essa questão. Ademais, uma definição precisa sobre a responsabilidade pelos encargos do imóvel poderia estimular a participação de mais interessados nos leilões, potencialmente resultando em melhores ofertas e beneficiando tanto credores quanto devedores. ________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:(...) VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; 3 Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei.  (...) § 3º Para os fins do disposto neste artigo, entende-se por: I - dívida: o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data do leilão, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais;  II - despesas: a soma das importâncias correspondentes aos encargos e às custas de intimação e daquelas necessárias à realização do leilão público, compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro;  III - encargos do imóvel: os prêmios de seguro e os encargos legais, inclusive tributos e contribuições condominiais.  4 Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios. 5 APELAÇÃO CÍVEL 1006103-56.2023.8.26.0048, São Paulo, 1º de março de 2024, Relator FRANCISCO LOUREIRO, Corregedor Geral da Justiça 6 Disponível aqui.
Nem sempre os imóveis destinados às operações da empresa são, apenas, galpões, escritórios ou lojas; podem ser necessários, também, imóveis destinados à residência, como é o caso de apartamentos que são locados para que neles resida um diretor ou, por exemplo, para estabelecer por algum tempo um engenheiro que tocará obra distante de seu domicílio.  São situações a cada dia mais usuais e a lei das locações delas cuidou (art. 55, da lei 8.245/91), classificando tais locações como "não residenciais", ou seja, dando maior relevância ao contratante (a locatária empresa) e à destinação especialmente determinada do que à natureza do imóvel (residencial).  Inserir a locação dentre os ativos da empresa locatária tem como consequência prática gozar, essa relação contratual, das liberdades que a própria lei confere às locações não residenciais, amplitude cuja tendência é aumentar, mercê do saudável liberalismo que parece nortear a atual legislação e os melhores projetos de lei em trâmite.  Abram-se parênteses para anotar que a liberdade de contratar existe, e concretiza os princípios da autonomia da vontade e da livre iniciativa e, quanto às locações não residenciais mostrou Fabio Ulhôa Coelho que "a liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim, a competição empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de redução dos preços e aumento da qualidade de produtos" (COELHO, 2014)1, citação que se fez tradicional.  Interessaria em acréscimo, lembrar das modificações não formalizadas, porém operadas. Não é somente através de novos pactos escritos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais e que expressam além da liberdade de contratar o que lhes convier, a liberdade de contratar da maneira que lhes for conveniente, no caso, sem escrever. É a singela aplicação da teoria da confiança, derivada da boa-fé objetiva, legalmente obrigatória.  Pensa-se que tal seria aplicável se alteradas condições do ajuste locatício também no que tange ao aspecto ora em foco, até por aplicação do Código Civil, cujo artigo 421-A, faz presumir "paritários e simétricos" os "contratos civis e empresariais", certeza a ser lida diante do artigo 113, buscando-se quanto "II - corresponder aos usos, costumes e prática do mercado relativas ao tipo de negócio", "III - corresponder à boa fé", aferível bem além da férrea e quiçá enganada literalidade; "V - corresponder a qual seria a razoável negociação [...] inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes [...]".  Pois bem. Essa previsão - tratar-se, nessa hipótese, de locação não residencial - foi inovadora (nada existia a respeito na lei anterior), traduzindo (como quase a totalidade da lei de 1.991) o estágio maduro da interpretação jurisprudencial. O entendimento então mais atualizado dos tribunais foi para o texto da lei.  (...) a proteção concedida pela Lei 6.649/1979 à locação residencial teve em mira atender à necessidade social de moradias. Esta inexiste quando é pessoa jurídica que figura como locatária, mesmo que o prédio se destine à moradia de um diretor. É que, no caso, a moradia desse diretor se integra entre os elementos com que a empresa conta para sua atividade, que não é residencial. [...]2.  Como se vê, o artigo 55 estampou a compreensão judicial, coerente com a expressada pelos atores do setor e aplaudida pela doutrina, é o que se colhe na obra do sempre importante professor Gildo dos Santos: "[...] O que avulta, no caso, é o fato de a empresa, no seu interesse, oferecer moradia àqueles que são seus colaboradores (sócios, diretores, empregados), do que decorre, nitidamente, que não se trata de locação residencial propriamente dita. [...]" (SANTOS, 2009).3  O professor de sempre, Sylvio Capanema de Souza, seguiu a mesma linha dizendo que "A lista, entretanto, não é exaustiva, e sim exemplificativa. O que importa é que a pessoa jurídica tenha alugado o imóvel para servir de residência a alguém ligado às suas atividades ou objetivos, pagando o respectivo aluguel (SOUZA, 2012)4.  Mas, deve ser observada a posição contrária ao entendimento majoritário, do inesquecível Juiz Francisco Carlos Rocha de Barros:  Sempre marchamos com os que pensavam em sentido contrário, defendendo a natureza residencial dessa locação e argumentando: a) a destinação da locação é que importa, e não a personalidade jurídica do locatário; b) apesar dos objetivos sociais da empresa locatária, a utilização do imóvel sempre será para fim residencial; c) o déficit habitacional é que justifica proteção à locação residencial - ainda que a locatária seja pessoa jurídica, quem vai residir no imóvel será a pessoa física, justamente por causa desse déficit. Está presente um interesse empresarial sem dúvida, mas a locação atende a uma necessidade habitacional. Some-se, ainda, que seria absurdo chamar de não residencial uma locação que, pela natureza do imóvel, inadmitisse outra utilização que não fosse a residencial [...]5.  Na realidade, a natureza do prédio é preservada, mas o tratamento deste contrato de locação é determinado com especificidade pela Lei, exatamente para contemplar o desenvolvimento empresarial, não lhe impedir a consecução, nem tampouco afrontar a evidência de que aquele ativo está destinado para o uso previsto pela empresa, em favor de seu objeto.  Tal se afigura imune a dúvidas, a ponto de tais locações poderem embasar ação renovatória, exclusivas das locações de imóveis destinados ao comércio, à indústria e às sociedades civis com fins lucrativos (art. 51, "caput" e parágrafo 4º, da lei das locações) - jamais nos casos das locações residenciais. No relato da Ministra Nancy Andrighi,  "O cabimento da ação renovatória não está adstrito ao imóvel para onde converge a clientela, mas se irradia para todos os imóveis locados com o fim de promover o pleno desenvolvimento da atividade empresarial, porque, ao fim e ao cabo, contribuem para a manutenção ou crescimento da clientela"6.  Nada diferente do que ocorreria com qualquer bem: uma geladeira pode servir para a guarda de alimentos na casa de uma família, ou ter a mesma função direta no refeitório de uma fábrica. O mesmo objeto terá em cada situação um tratamento jurídico distinto: lá, até a proteção como bem de família; aqui, um ativo fixo sujeito a determinações da empresa, a amortizações, penhorável. Mais uma daquelas situações em que o "ser" cede, de certa forma, à "razão de ser".  Mais: é palpável que diversos contratos integrem o ativo empresarial, que não haverá de ser composto somente por prédios e máquinas: é o caso dos contratos de franquia, dos contratos de locação (em pontos comerciais privilegiados ou não), dos contratos de propaganda, de comodato etc. Todos eles estão voltados ao atingimento do fim empresarial, todos eles contribuem para a valorização (ou, conforme o caso, desvalorização) do estabelecimento e da empresa.  E é isso que decorre da compreensão atual do "estabelecimento comercial", definido pelo Código Civil da seguinte forma no art.1.142, destacando-se o seu didático parágrafo único: "Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária." § 1º O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual.". A coerência com a previsão da lei das locações é absoluta, como se vê.  Nessa lógica, colhe-se na doutrina de Tokars, retratando concepção torrencial, que:  Neste contexto, surgiu a conclusão doutrinária de que os contratos podem ser considerados como parte integrante do estabelecimento empresarial, desde que se mostrem necessários ao desenvolvimento da atividade, como ocorre, classicamente, com os contratos de franquia, de aluguel, de fornecimento ou de distribuição, entre tantos outros que podem ser mencionados. Como em determinados casos, em certas relações jurídicas a conexão econômica com o fundo de comércio (estabelecimento) é intrínseca, tais contratos seguem, forçadamente, o destino do estabelecimento comercial.7       Ou, na lição de Marcelo Andrade Féres:  "No estabelecimento, de fato, além de outros elementos, podem figurar as mercadorias, o mobiliário ou as instalações, o nome empresarial, as invenções, os modelos de utilidades, os desenhos industriais, as marcas, os imóveis, o ponto empresarial e os nomes de domínio. Dessa maneira, concorrem para a composição do estabelecimento bens corpóreos e incorpóreos, móveis e imóveis. Não há qualquer restrição prévia. Tudo depende da sorte da empresa a que se destinam os bens."8  Desde que pontuamos acerca do estabelecimento, cumprirá concluir lembrando que a sua alienação ou transferência importará "a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento" (artigo 1.148, do Código Civil), vale dizer, o conjunto de contratos o integra, é item do ativo empresarial. Sobre esse dispositivo, ensinou Marcus Elidius Michelli de Almeida:  A dúvida que poderia existir era se os contratos continuavam a valer após a realização do negócio envolvendo o estabelecimento. Agora não cabe mais margem a qualquer discussão, uma vez que a norma é expressa em determinar que a transferência do estabelecimento importa na sub-rogação por parte do adquirente aos contratos já existentes, desde que relativos à exploração do próprio estabelecimento e que não seja de caráter pessoal.9  Ou seja, o aspecto legal da locação integra-se a todo o sistema legal pertinente (exatamente como há de ser, sabe-se) e a lei garante a relevância do intento de uso (e do contratante) sobre a característica (residencial) direta ou física do bem, e assegura estar o direito do locatário decorrente desta determinada locação, integrado ao ativo empresarial.  Estamos, enfim, diante de uma daquelas situações em que o "ser" cede, em certa medida, à "razão de ser", nada de novo para os filósofos: "Uma espada nunca matou ninguém; é apenas uma ferramenta nas mãos do assassino", disse Sêneca (4 AEC/65 DEC) na Roma antiga.  Ou, para que não nos iludamos ao ver uma residência e possamos, portanto, e concretamente, enxergar um item do estabelecimento e da empresa (a realidade), vem a sempre romântica lembrança de que "O essencial é invisível aos olhos" (Antoine de Saint- Exupéry - 1.900/1.944). Também no mundo dos contratos... __________ 1 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - direito de empresa. 1.v. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90.  2 2º TACivSP - Ap. 247.217 - 7ª Câmara - Relator Boris Kauffmann, julg. 14.02.1989. 3 SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. 7ª ed. rev., ampl. e atual. com as alterações da Lei 12.112/2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 390. 4 SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2.012, p. 240. 5 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1.997, p. 346. 6 STJ - 3ª Turma, RESP 1790074, relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 25/06/2.019, ementa. A ação objetivava um imóvel locado para a instalação de uma estação de rádio base ("antena"). 7 TOKARS, Fábio. Estabelecimento Empresarial. São Paulo: LTr, 2.006, p. 174. 8 Verbete "estabelecimento"; Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo IV (recurso eletrônico): direito comercial / coords. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018. 9 PRUX, Oscar Ivan; ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de; HENTZ, Luiz Antonio Soares. Comentários ao Código Civil Brasileiro. Volume X: da sociedade, do estabelecimento e dos institutos complementares. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 281.
A aquisição imobiliária, comumente, passa por diversas etapas negociais e envolve vários intermediários. Entre as várias possibilidades, é comum que uma pessoa, física ou jurídica, queria firmar um contrato forte, obrigando de forma irretratável a contraparte a vender o imóvel, porém com a faculdade de poder, posteriormente e de forma unilateral, confirmar se será ela quem adquirirá o bem, ou se será um terceiro por ela indicado. Esse terceiro pode ser uma pessoa jurídica ainda não constituída, um fundo de investimento, o adquirente ao qual o bem a ser reformado será destinado. O relevante é que, na hipótese narrada, a parte deseja ter a faculdade de decidir, posteriormente, quem ficará com o bem, sendo que, se vier a ser indicando um terceiro, ela não quer ter de arcar com custos tributários ou memos cartorários afetos à aquisição de direitos sobre o imóvel. Para tanto, o CC permite a clausulação da "reserva da pessoa a declarar". Preceitua o CC, em seu art. 467: "No momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as obrigações dele decorrentes". O dispositivo em comento institui a possibilidade de, ao ser firmado um contrato, ser previsto o direito de uma parte, no prazo determinado que for previsto no instrumento, designar outra pessoa para assumir a posição contratual. Esse direito, de eleição ou declaração futura do contratante final, é uma faculdade, a qual nasce de um negócio bilateral que, após constituído, concede ao titular uma posição de potestatividade. A declaração pode ou não ser feita, sem que o outro contratante original possa de qualquer modo se opor, dado que, para o posterior ato de eleição, sua vontade não será relevante. Em si, o ato de eleição, isto é, o ato de exercício do direito potestativo de escolha de parte contratante, é um ato unilateral, com efeito ex tunc, receptício e, quanto à causa, independente ou abstrato. Diz-se unilateral, porque adentra ao mundo jurídico pela vontade única da parte que detém o direito de nomear o terceiro. Tem efeito ex tunc, porque, uma vez eleito o terceiro, este assume o contrato como se houvesse a este aderido na data da contratação original, conforme expressamente previsto no art. 469 do CC ("Art. 469. A pessoa, nomeada de conformidade com os artigos antecedentes, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, a partir do momento em que este foi celebrado). Dada a retroação de efeitos, não existe qualquer transferência ou cessão de direitos entre a parte nomeante e a parte nomeada ao contrato (existe, isso sim, a "colocação" da parte no contrato). O ato é receptício, porque somente se aperfeiçoa, a colocação do contratante, quando a eleição é comunicada à contraparte. O ato é independente ou abstrato, porque, para o contrato em questão, é absolutamente irrelevante a causa da eleição; O motivo fático ou jurídico que leva uma pessoa a nomear outra não é elemento do ato de eleição. Isto não significa inexistir uma causa ou outro contrato subjacente para a eleição ocorrer, mas que, para o ordenamento civil, a causa da nomeação não é elemento principal ou acidental do negócio jurídico em que ingressará o indicado. Por outro lado, é evidente que o ato de eleição é "unilateral" e "potestativo" em relação ao contrato original e à contraparte deste. O eleito não se torna parte da relação negocial pelo simples fato da eleição, mas pela conjunção da eleição feita pelo outro e por sua aceitação. O ato de aceitação da eleição pelo terceiro não é disciplinado no CC, o que permite que a aceitação seja tácita (ex., após a indicação da eleição, o aderente solicita a entrega das chaves do apartamento adquirido, ou realiza o pagamento do preço devido). Como, na realidade negocial, a cláusula do contratante a declarar é aposta em instrumentos preliminares, a aceitação da eleição, pelo terceiro, no mais das vezes, será expressa quando for celebrado o contrato definitivo, ao qual se apresentará o eleito como parte original. Evidentemente, a eleição não gera qualquer transferência de direitos ou obrigações (decorrentes do contrato com pessoa a declarar) entre o nomeante e o nomeado, dado que não existe uma sucessão de direitos entre estes - repisando-se, o art. 467 do CC prevê a pessoa eleita "deve adquirir os direitos e assumir as obrigações (...) decorrentes (do próprio contrato)". O que há é uma relação contratual original e nova, formada diretamente entre a contraparte e o nomeado. Vale frisar, a cláusula da pessoa a declarar não desnatura o contrato. Segundo doutrina de Cario Mario: "O contrato já está formado. Nele fica, todavia, consignado que um dos contratantes reserva-se a faculdade de indicar a pessoa que adquirirá, em momento futuro, os direitos e assumirá as obrigações respectivas (electio amici). As partes contratantes estão definidas e identificadas. O que resta é vir a pessoa designada ocupar o lugar de sujeito da relação jurídica assim criada (CC, art. 467). (...) Desdobra-se, desta sorte, o contrato em duas fases. Numa primeira, o estipulante comparece em caráter provisório, permanecendo a avença entre um contratante certo, e outro, meramente indicado, porém dependente de aceitação. Numa segunda, o nomeado passa a ser o dominus negotii. (...) Segundo a dogmática italiana, que o Código adotou por modelo, o contrato por pessoa a indicar é um negócio jurídico válido, dotado de obrigatoriedade. Se o nomeado aceita na forma e nas condições estabelecidas nos arts. 468 e 469, adquire os direitos e assume as obrigações. Substitui, portanto, quem o designou na titularidade das relações jurídicas." (SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003, 206-A. Contrato com pessoa a declarar) Ao se adentrar na leitura do CC Italiano, fonte da disciplina nacional, observa-se que a literalidade da norma é elucidativa. O codex italiano disiplina a "Reserva de Nomeação de Contratante" em seus arts. 1.401 a 1.405. Ao que pertinente, assim é previsto: Art. 1401. (Riserva di nomina del contraente). Nel  momento  della  conclusione  del  contratto  una  parte puo 'riservarsi la facolta' di nominare  successivamente  la  persona  che deve acquistare i  diritti  e  assumere  gli  obblighi  nascenti  dal contratto stesso. Conforme consta do citado art. 1.401, a pessoa nomeada adquire as obrigações "nascentes do próprio contrato". Em seguida, o diploma estabelece a retroação de efeitos (igualmente ao feito pelo codex nacional, em seu art 469): Art. 1404. (Effetti della dichiarazione di nomina). Quando la dichiarazione di nomina e' stata  validamente  fatta,  la persona nominata acquista i diritti e assume gli  obblighi  derivanti dal contratto con effetto dal momento in cui questo fu stipulato. Porque o contratante declarado adquire direitos e assume obrigações do próprio contrato com efeito no momento em que o contrato foi estipulado, não é tecnicamente possível se falar em cessão de contrato. A pessoa que indicou desaparece da relação e esta é tido como existente, desde o início, apenas entre a contraparte e a pessoa eleita. Por isso, após a indicação e aceitação da pessoa a declarar, eventual anulabilidade arguível pela parte que reservara o direito de declarar restará afastada. Do dito, já se observa que em nada se iguala a eleição do contratante à cessão de contrato. A cessão é um negócio jurídico próprio, que em não elimina a relação contratual existente entre as partes originais. Na cessão, existe a transferência de direitos e obrigações de uma parte de dado contrato a um terceiro, que não fazia parte do contrato original. Essa parte não é "colocada" no contrato como contratante original. Daí que os vícios de consentimento do cedente no contrato original poderão tornar ineficaz a cessão sequente, o que não se dá de forma correspondente no contrato que passa a existir entre o eleito e a contraparte. A cessão tem efeitos ex nunc, sem retroação alguma. De forma técnica e sistêmica, o legislador italiano disciplinou, logo após o instituto do "Reserva de Nomeação de Contratante", a chamada "Cessão de Contrato", em seus arts. 1.406 a 1.410, para dispor que, neste instituto, existe propriamente uma cessão de direitos e obrigações, dependente de um novo acordo entre as partes e sem eficácia retroativa: Art. 1406. (Nozione). Ciascuna  parte  puo'  sostituire  a  se'  un  terzo  nei  rapporti derivanti da un contratto con prestazioni  corrispettive,  se  queste non sono state ancora eseguite, purche' l'altra parte vi consenta. O CC brasileiro não prevê, em caráter geral, a cessão de polo contratual. Segundo doutrina, "cessão de contrato é o negócio jurídico que tem por objetivo a transferência por uma das partes (cedente) a um terceiro (cessionário), com a anuência da outra parte (cedido), da posição contratual" (Cabral, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987). A jurisprudência determina que, na falta de maior regramento, aplicam-se, à cessão de contrato, onde couber, os dispositivos da cessão de crédito (art. 286 a art. 298) e da assunção de dívidas (art. 299 a 303). O requisito da anuência é uma característica prevista no direito comparado e empossado pela doutrina e jurisprudência em geral; aqui, porém, advoga-se não ser ela regra absoluta, dado que, na hipótese em que o cedido não guarde mais qualquer pretensão, não fará sentido a exigência dela. Nesse sentido, a recente lei 14.711/23, introduziu no CC a disciplina do "agente de garantia", sendo que, no §3º do art. 853-A é previsto que a substituição deste agente é feita de forma unilateral pela parte credora da garantia, sem necessidade de qualquer anuência do devedor e do garantidor. Nesse ponto, ao que mais útil, ao entender deste autor, pode-se definir que cessão de contrato é o negócio jurídico bilateral, pelo qual uma parte cede a um terceiro os direitos e obrigações decorrentes de um contrato, cuja eficácia (da cessão) dependerá da anuência da contraparte, na hipótese em que esta tenha pretensão exercível em relação à parte cedente. Retomando ao ponto central deste artigo, ao passo que o ato de eleição da pessoa contratante não acarreta transmissão de diretos ou obrigações do contrato, mas a formação de um novo contrato entre duas partes, na cessão contratual o que ocorre é justamente a transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa a outra, ou seja, coexistem o contrato original e o contrato de cessão. Na seara imobiliária, a legislação esparsa prevê a cessão de contratos imobiliários (ex., art. 26 da lei 6.766/79; art. 32, a, da lei 4.591/64), não havendo uma linha de texto legal que altere o pensamento sistêmico de que a natureza jurídica da cessão de direitos (ou de contrato) é de negócio jurídico bilateral (ou trilateral, quando necessária a anuência do cedido) e autônomo em relação ao crédito ou contrato cedido; a cessão não retroage, valendo a partir de quando realizada. Da inexistência de fato gerador tributário no ato de eleição do contratante (na compra e venda de imóveis) A distinção entre "ato unilateral de eleição" e "contrato de cessão", retro observada, é fundamental para se analisar a incidência tributária nos negócios imobiliários em que haja pessoa a declarar. Assim prevê a CF/88: Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre: (...) II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; Deste ponto em diante, não se tratará da análise do fato gerador tributário da transmissão de direitos reais ou da cessão de direitos aquisitos de direitos reais. Isto é, ao se pensar, exemplificativamente, numa compra e venda de imóvel, não se analisará o tributo incidente em decorrência da compra e venda em si. O objeto de análise é o ato de eleição do contratante. Ou seja, se há um compromisso de compra e venda (e considere-se que este esteja registrado na matrícula do imóvel), no momento em que é exercido o direito de nomeação do terceiro, existe transferência de direito real ou cessão de direito aquisitivo sobre imóveis? E, havendo transferência ou cessão de direito, seria este passível de tributação? Com base tão apenas no já exposto, já se para na primeira pergunta, que se responde, evidentemente, de forma negativa. Como visto, o ato de eleição é unilateral e somente tem o efeito de criar um novo e original contrato entre a parte declarara e a contraparte. Não existe qualquer cessão de direitos entre o nomeante e o nomeado referentes ao compromisso de compra e venda. Não é demais lembrar que os conceitos de transmissão e cessão, afetos ao direito tributário, são necessariamente os definidos no direito civil. De modo sucinto, tem-se que, na CF/88, em seu art. 146, é determinado que "Cabe à lei complementar: (...) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes". A referida lei federal com status de norma complementar é o CTN que, em seu art. 100, determina: "A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela CF/88, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias". Em outros termos, uma vez que, no âmbito civil, já resta definido que o ato de eleição não envolve cessão de direito algum, resolvida está a questão tributária posta: Não há transmissão de direito real ou cessão de direito aquisitivo no ato de eleição, logo, não há, neste momento, fato gerador tributário. No mais, não existe no CTN qualquer referência a possibilidade de tributação em razão de um ato de designação de parte contratante. Também não se conhece nenhuma lei municipal que dê amparo a outro pensamento. Sem pretender analisar cada legislação local, tendo como referência a legislação municipal do município de SP, resta evidente inexistir quaisquer dos elementos que permitiriam a configuração do fato gerador. A lei municipal 11.154/91, em seu art. 2º, lista o rol de negócios jurídicos aptos a ensejar a incidência tributária; Todos, demandam transmissão de direito real ou cessão de diretivo aquisitivo. O art. 6º define quem são os contribuintes, os quais são invariavelmente quem adquire ou cede direito real ou de aquisição de imóvel. E o art. 7º define que a base de cálculo é o valor venal do bem. Ora, ao se pensar na escolha do terceiro contratante, não há transmissão ou cessão de direito (pois há novo contrato), não há transmitente ou adquirente de direito real ou aquisitivo (pois somente se indica quem irá contratar com outrem) e não há valor venal algum no ato da indicação (dada sua abstração). Em avanço, vale mencionar. Embora o tema seja pouco explorado na doutrina e na jurisprudência nacionais, relevante julgado, na Itália, também definiu, mutatis mutantis, que não se observa cabível o imposto na compra e venda em decorrência do ato de eleição da parte contratante: Intitolazione: Elusione fiscale - Imposta di registro - Preliminare di compravendita immobiliare per persona da nominare - Promissario acquirente società immobiliare - Al definitivo designato acquirente il legale rappresentante della società in proprio - Successiva vendita da questi a terzi con restituzione alla società della caparra dalla stessa versata- Indizi di elusività - Insufficienza (Collegati Giurisprudenza - Sentenza del 05/06/15 65 - Comm. Trib. II grado di Bolzano Sezione/Collegio 2. Evidentemente que fraudes e abusos podem ocorrer de modo a desnaturalizar a nomeação de terceiro. Contudo, toda norma é passível de violação e não é isso que desnaturará a norma em si. A reserva do terceiro a declarar é instituto de gigante aplicabilidade prática e enseja maior inteligência aos negócios jurídicos. Finalmente, é de se frisar, o instituto em comento permite que, embora no compromisso de compra e venda conste determinada pessoa como promitente adquirente, por ocasião da escritura definitiva outra apareça como compradora, sem que se avente em qualquer cessão. Em mesma sorte, uma promessa de compra e venda registrada em nome de determinada pessoa poderá ser sucedida por uma escritura de compra e venda definitiva em nome de outrem, sem necessidade de qualquer instrumento de cessão ou averbação correspondente. Em situações como tal, é dever do oficial imobiliário, se instado a registrar uma promessa de compra e venda com cláusula de contratante a declarar, que faça constar, no mesmo assento registral, que o promitente adquirente poderá eleger, dentro do prazo estipulado, terceiro para assumir a posição contratual desde sua origem. ________ CABRAL, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987; SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, t. XXIII, São Paulo-SP, Revista do Tribunais, 2012, p. 494 e ss.; ROSENVALD, Nelson, in Código Civil comentado, doutrina e jurisprudência, coor. Cezar Peluso, 17ª ed., Santana de Parnaíba-SP, Manole, 2023, art. 467 e ss.
I. Introdução. II. Passado e presente. III. Efeito borboleta. IV. Propostas preliminares. Medida 1: Minutas-padrão nos memoriais de incorporação e loteamento Medida 2: Minutas universais editadas pelo CNJ. Medida 3: Arquivamento e certificação notarial de documentos. Quadro Geral. V. Conclusão. "Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder" Dilma Roussef, 2014 A frase acima geralmente é invocada como galhofa, mas a utilizo por considerá-la sob medida para tratar de uma questão bastante séria. Este texto é um convite à reflexão de advogados, notários, registradores, magistrados, empreendedores e consumidores, ou de quem simplesmente se interessa pelo assunto. Talvez seja uma provocação ridícula. Mesmo ridícula, se ela instigar alguma ideia sua, depois convertida em ação, cada palavra terá valido a pena. O trem está passando; não o deixemos partir. William Ury, mundialmente reconhecido no campo da negociação e mediação de disputas, gravou com Simon Sinek uma hipnotizante conversa na qual, entre frases inspiradoras, disse que "o mundo precisa de mais conflitos"1. Embora possa soar estranha, a expressão é apenas uma forma de dizer, com outras palavras, que sempre podemos fazer limonadas; um jeito atual de invocar os antigos chineses, que já enxergavam oportunidade na crise. Todo conflito, quando bem direcionado, pode desencadear verdadeiras transformações. Sim, a discordância pode ser amiga da evolução, se adotarmos a visão positiva do conflito2, e se aproveitarmos "a energia do atrito causado pela divergência de interesses, ideias e visões de mundo para construir novas realidades, novos relacionamentos, em patamares mais produtivos"3. Agora que apresentei o espírito deste artigo, estamos prontos para começar. I. Introdução A alienação fiduciária de bem imóvel ("AF"), surgida em 1997, foi um verdadeiro propulsor do mercado imobiliário brasileiro nos últimos 30 anos. Inicialmente pensada para o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), ela conquistou o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), suplantou a hipoteca, e passou a ser a garantia eleita em quase todos os financiamentos imobiliarios: A compra e venda com alienação fiduciária possui um regime jurídico próprio, bastante diferente da promessa, e genial em muitos aspectos, inclusive de funding. Não por outra razão, ela entrou no cardápio de incorporadores imobiliários, loteadores e investidores. A AF vai além dos financiamentos e empreendimentos imobiliários. Praticamente todo contrato que envolve a alienação de um imóvel pode utilizar essa garantia. Mais do que isso, a AF está à disposição de cooperativas de crédito, administradoras de consórcios imobiliários e de outros credores que desejam utilizá-la para garantir o pagamento de uma dívida, própria ou de terceiro, certa ou estimada, inclusive cláusulas penais. Estamos diante de um mundo inteiro de possibilidades e negócios típicos e atípicos, divididos em três grandes grupos, assim dispostos para nos ajudar a entender melhor o que está por vir: Na mesma medida em que o uso da AF se popularizava, uma discussão foi crescendo, por anos silenciosa, até ganhar, recentemente, as manchetes jurídicas de todo o Brasil. A resposta é controvertida, mas a pergunta é bem simples: Os contratos do Grupo 3, ao empregarem a AF como garantia, podem ser celebrados por instrumento particular, ou a escritura pública é essencial à sua validade? Os Grupos 1 e 2 assistem de camarote. Quanto a eles não há dúvida relevante, e seus contratos podem utilizar a forma particular, adotando a escritura se quiserem. Por isso, foquemos no Grupo 3. Tenha em mente: meu objetivo não é defender posições, e sim fazer com que mais gente compreenda o tanto que está em jogo nessa disputa, e se há algo a fazer para superá-la. Este texto contém três medidas. Se forem descartáveis, que ao menos, a partir delas, algum leitor criativo e perspicaz possa ter sua própria epifania, boa o bastante para transformar-se em soluções não-binárias, que aprimorem nosso sistema extrajudicial em benefício de todos os seus atores e usuários. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 SINEK, Simon. A Bit of Optimism: Resolving conflict with William Ury. Podcast disponível aqui. Acesso em 15.09.2024. 2 LONGO, Samantha Mendes. Direito Empresarial e Cidadania: A Responsabilidade da Empresa na Pacificação dos Conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2022, p. 26. 3 GRAHAM, Pauline (org.). Mary Parker Follett: Profeta do gerenciamento. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997, p. 298.
Introdução  As terras devolutas correspondem a um dos mais intricados problemas do Direito Imobiliário brasileiro. Suas causas são antigas e remontam à formação histórica do país, ainda no século XV. As consequências, por sua vez, são graves e sentidas ainda no século XXI, colocando em risco a segurança jurídica de produtores rurais e do agronegócio em geral, principal setor da economia nacional.  A questão se coloca quando o particular pretende regularizar sua área, caso não disponha de título de terra regular, embora a ocupe há muitos anos, ou se o Poder Público postular o cancelamento de títulos regulares, sob a alegação de que se trata de terras públicas.  As diretrizes normativas para julgar os casos são colidentes. De um lado, deve o julgador atentar para a garantia da propriedade e da segurança jurídica - o que o levaria a tutelar os direitos do proprietário ou possuidor de terras, em face da pretensão do Poder Público de não reconhecer, ou mesmo tomar suas áreas. Por outro, porém, não poderá descurar da tutela do patrimônio público ou do interesse social sobre imóveis devolutos, dado que sua destinação deve ser "compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária" (art. 188, Constituição Federal).  Neste artigo, inicialmente, expõe-se os principais problemas relacionadas às terras devolutas, com foco na formação fundiária do país e na omissão do Poder Público em cumprir a Lei de Terras. Em vista da complexidade de tais conflitos, e da dificuldade em generalizar soluções, propõe-se a adoção de boas práticas para solucioná-los, com vistas a contornar as principais dificuldades surgidas em casos com este objeto litigioso. Confira aqui a íntegra da coluna.
Introdução  O título do artigo tem por objetivo chamar a atenção, até porque o leitor mais atento logo percebe o erro técnico. Para que possamos voltar aos trilhos e de modo a evitar maiores equívocos, deve ser esclarecido que os direitos potestativos e as pretensões que decorrem do aparecimento de vícios construtivos estão (ou deveriam estar) sujeitos aos prazos decadenciais ou prescricionais estabelecidos em Lei. Não há imprescritibilidade em tal matéria.  Contudo, tal como será verificado, a jurisprudência, ao longo dos anos e a partir de interpretações ao Código Civil e ao Código de Defesa do Consumidor, optou por aplicar prazos alongados, além de fixar o início da contagem do prazo em momento muito posterior ao efetivo aparecimento do vício, tornando as opções conferidas aos lesados em medidas que podem ser propostas praticamente a qualquer tempo.  Além disso, também é objetivo do presente artigo demonstrar que, a respeito da matéria em análise, o atual ordenamento jurídico brasileiro não é claro e não atende ao princípio da operabilidade, resultando em jurisprudência confusa e pouco sólida. Todos esses elementos reduzem a segurança jurídica necessária para qualquer indústria, inclusive a da construção civil.  Para avançarmos, necessário analisar o ordenamento jurídico brasileiro no tocante ao tratamento conferido aos vícios construtivos, bem como o entendimento jurisprudencial e doutrinário mais atual. Confira aqui para a ver a íntegra da coluna.
A multipropriedade imobiliária é uma modalidade de propriedade em condomínio positivada pela lei 13.777/18. O diferencial dela - para as demais espécies de condomínio - está no parcelamento do tempo; um mesmo imóvel-base pode ser comercializado e compartilhado entre dezenas de compradores. O uso, porém, ocorrerá de forma exclusiva e alternada por cada multiproprietário. A ideia da divisão temporal surgiu na França em tempos de recessão econômica, na década de setenta.1 À época, os empreendedores desejavam atrair um novo público-alvo (até então ignorado pelo mercado): Indivíduos interessados em adquirir uma "segunda casa" para passar as férias, mas que não queriam/podiam arcar com a integralidade das despesas decorrentes do imóvel. O produto criado pelos empreendedores recebeu diferentes enquadramentos jurídicos na Europa (como a "multipropriedade" societária e a "multipropriedade" enquanto direito real limitado2), e foi como compartilhamento da propriedade que ela fez mais sucesso, tendo desembarcado em 1985 no Brasil.3 Existem diversas razões para a multipropriedade imobiliária ter emplacado pelo mundo; ela pode ser vantajosa sob diferentes perspectivas. Para o multiproprietário, é a chance de ter uma "casa de férias" a um preço mais acessível, tendo em vista que os custos (inerentes a qualquer imóvel) são diluídos com os outros proprietários. Para o empreendedor, é a oportunidade de aumentar a margem de lucro. Com a possibilidade de alienar o mesmo imóvel-base para mais de um proprietário, a lista de potenciais compradores para casas de praia ou de campo cresceu, assim como o valor geral de vendas ("VGV") do empreendimento. Para a região onde há a multipropriedade, a repercussão é sobre a economia como um todo, que se fortalece com a redução da sazonalidade do turismo. Para uma utilização mais consciente do imóvel.4 Em vez de apenas uma família aproveitar o bem em um curto período (restrito aos fins de semana e eventuais férias), até cinquenta e duas poderão usá-lo o ano todo. Apesar dos benefícios da multipropriedade imobiliária, até 2017 os investimentos no Brasil ainda se mostravam aquém do potencial de mercado. Havia um cenário de insegurança jurídica; faltava para alguns a compreensão do que era a multipropriedade (exemplo disso é a discussão sobre a natureza jurídica, que precisou ser solucionada no julgamento do REsp 1.546.165-SP). Foi sob esse contexto - para tentar conferir segurança à cadeia produtiva - que ocorreu o advento da lei 13.777/18. Essa legislação, ao inserir novos dispositivos no Código Civil e na lei dos registros públicos, contribuiu para consolidação da multipropriedade imobiliária. A essência do instituto foi positivada e, com isso, uma série de controvérsias pretéritas se encerraram. A despeito dos avanços obtidos com a lei 13.777/18, um dispositivo destoou dos demais: O art. 1.358-T, que restringe o direito do multiproprietário renunciar à multipropriedade (renúncia translativa) em favor do condomínio edilício. Duas dúvidas surgem ao observá-lo: (1ª) a verdadeira intenção do legislador ao criar esse dispositivo; e (2ª) a (in)constitucionalidade dele. Tentar desvendar o real objetivo do legislador com a restrição da renúncia translativa não é tarefa simples. Há quem sugira que o art. 1.358-T tenha sido concebido para solucionar um inconveniente: Evitar que o multiproprietário renuncie à propriedade periódica e, assim, torne o poder público titular daquela multipropriedade5, com fundamento no art. 1.276 do CC/02. O receio disso acontecer é compreensível. Ter o poder público como multiproprietário pode ser um entrave para a perpetuidade do condomínio em multipropriedade. Afinal, é provável que o poder público - diante da escassez de recursos, assim como da falta de interesse dele em usar o imóvel-base e manter a multipropriedade - deixará de pagar as contribuições de condomínio. O problema é que a renúncia translativa não obsta essa hipótese de perda da propriedade para a municipalidade, e, sim, a renúncia abdicativa, que nem sequer foi mencionada no art. 1.358-T. Renúncia translativa e abdicativa não são, então, sinônimas; elas produzem efeitos distintos. Enquanto a renúncia translativa é a faculdade que o titular tem de renunciar a propriedade em favor de qualquer sujeito - seja para pagar um débito (dação em pagamento)6 ou para beneficiar gratuitamente alguém -, a renúncia abdicativa é a vontade manifestada pelo titular no ofício de registro de imóveis de tornar o bem renunciado vago (res derelicta). A translativa é, portanto, uma espécie de alienação ou doação (atrai o ITBI ou o ITCD)7; a abdicativa, o abandono manifesto da coisa.8 Daí se extrai que o legislador talvez tenha se confundido ao fazer referência à renúncia translativa, em vez da abdicativa. Independentemente se houve equívoco na redação do art. 1.358-T da lei 13.777/18, deve prevalecer o entendimento de que a renúncia abdicativa permanece viável.9 O multiproprietário, no uso de suas atribuições, pode dispor como bem lhe aprouver do seu direito real, inclusive mediante a abdicação da propriedade periódica (a ser titularizada pelo poder público). Defender a ampliação da limitação do art. 1.358-T da lei 13.777/18 para a renúncia abdicativa importaria grave ofensa à faculdade do proprietário de tornar a coisa vaga, bem como prejuízo ao condômino que não pode mais arcar com os débitos condominiais, impossibilitando-o de se desvencilhar dos fatos geradores futuros.10 Na prática, eventual tentativa de aplicação extensiva será inconstitucional, por violação (1º) ao direito de propriedade; e (2º) ao princípio da proporcionalidade, pois o multiproprietário será impedido de estancar o problema (libertar-se das despesas vincendas).11 Como solução ao inconveniente da renúncia abdicativa, poderia o legislador submeter o multiproprietário renunciante ao preenchimento de requisitos para perfectibilização desse ato. Seria recomendável Exigir que o multiproprietário, antes de renunciar, informasse o condomínio edilício sobre o seu interesse em abdicar da propriedade periódica; e Permitir ao condomínio edilício assumir as eventuais dívidas propter rem, adquirindo a propriedade (ressalvada a discussão sobre a personalidade jurídica do condomínio). A comunicação prévia viabilizaria, portanto, a possibilidade de os multiproprietários buscarem uma forma de contornar a renúncia abdicativa - isso tudo, é claro, sem ofender qualquer direito constitucional do multiproprietário renunciante. __________ 1 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 111. 2 TERRA, Marcelo; CAFFARO TERRA, Guilherme. Férias Compartilhadas: A Experiência do Timeshare e da Multipropriedade no Brasil - Questões Registrais na Multipropriedade Imobiliária. Maceió: Viva Editora, 2017, p. 232. 3 TEPEDINO. Gustavo. Multipropriedade Imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 43. 4 CHALHUB, Melhim Namem. Multipropriedade: Uma Abordagem à Luz do Recurso Especial nº 1.546.165/SP. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 82/2017. Revistas dos Tribunais, p. 71. 5 TEPEDINO, Gustavo. Revista Brasileira de Direito Civil - v. 19 - Belo Horizonte: jan./mar. 2019, p. 12-13. 6 BUNAZAR, Maurício. Da Obrigação propter rem: Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 78. 7 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida (Coord.). Comentários à Lei da multipropriedade imobiliária (Lei nº 13.777/2018). 2ª Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 60. 8 VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil de 2002 Interpretado. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 1.497. 9 BORGES, Marcus Vinícius Motter (Coord.); e ABELHA, André. Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2ª Ed., São Paulo: Thompson Reuters, 2022, p 705. 10 DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Análise Detalhada da Multipropriedade no Brasil após a Lei nº 13.777/2018: Pontos Polêmicos e Aspectos de Registros Públicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas, Março/2019 (Texto para Discussão nº 255). Disponível aqui. Acesso em 9/7/2024. 11 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida (Coord.). Comentários à Lei da multipropriedade imobiliária (Lei nº 13.777/2018). 2ª Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 62.
O ano de 2024 ficará marcado na história dos gaúchos por uma catástrofe climática sem precedentes, que afetou a todos, direta ou indiretamente. Uma quantidade jamais vista de chuvas provocou a maior enchente da história e a destruição de parte considerável do Rio Grande do Sul. Os efeitos e repercussões são ainda incalculáveis, muitas vidas foram perdidas, lares e negócios aniquilados e milhares de pessoas foram desalojadas, passando a viver em abrigos e em casas de familiares ou amigos. Grande parte das indústrias e comércios do Estado ficaram embaixo da água, trabalhadores ilhados e estradas completamente destruídas.  Certo é que o trabalho de reconstrução será longo. Se algo de marcante e positivo tiraremos da tragédia foi a solidariedade e a união, não só do povo gaúcho, mas como também do povo brasileiro, que vem auxiliando de maneira comovente as pessoas mais necessitadas. Como não poderia ser diferente, as incorporações imobiliárias no RS também estão sendo impactadas pelo estado de calamidade pública provocada pelas enchentes, especialmente com relação ao cronograma estabelecido para a entrega das obras. É certo que algumas em maior medida do que outras. Os instrumentos contratuais de promessa de compra e venda, em regra, possuem uma data final para a entrega das obras, admitido um prazo de tolerância de 180 dias, e com a previsão de sua prorrogação em situações de caso fortuito e/ou força maior. A questão sensível diz respeito a possibilidade ou não da prorrogação do prazo de entrega das obras em função da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes no RS para além dos 180 dias de tolerância.  A relevância do tema decorre do fato de que, após escoado o prazo estabelecido contratualmente para a entrega das unidades, incide a multa contratual e a possibilidade de resolução do contrato por parte do adquirente, nos termos do art. 43-A da lei de incorporações imobiliárias.  De acordo com o Código Civil, em seu art.393: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado." O referido artigo é complementado em seu parágrafo único: "O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir." Decorre da lei que entre as situações que afastam a responsabilidade civil em razão do rompimento do nexo causal estão os eventos qualificados como caso fortuito ou força maior.  O caso fortuito é definido como o evento totalmente imprevisível decorrente de ato humano ou de evento natural. Já a força maior constitui um evento previsível, mas inevitável ou irresistível, decorrente de uma ou outra causa.  Em que pese a distinção conceitual, o que importa para efeitos da eventual exclusão da responsabilidade civil é se o evento correlato tem ou não relação com risco do empreendimento ou risco-proveito, ou seja, com a atividade desenvolvida pelo suposto responsável. É preciso constatar se o fato entra ou não no chamado risco do negócio (eventos internos e externos). O caso fortuito interno é aquele que o risco representado pelo fato é inerente, interno à conduta ou à atividade do agente, de modo que deve responder quando dele decorra o dano. Por outro lado, o caso fortuito externo (ou força maior) é aquele que decorre de causa completamente estranha à conduta do agente, e por isso causa exoneração de responsabilidade.  Nessa linha doutrinária, aprovou-se o enunciado, na V Jornada de Direito Civil, prevendo que: "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida" (enunciado 443). Seguindo essa mesma ordem de ideias, o STJ firmou o entendimento que somente o caso fortuito externo exclui o dever de indenizar por parte do fornecedor.  Entendemos que, pela excepcionalidade, magnitude e ineditismo do fato, a tragédia provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul não tem fato conexo com a atividade desenvolvida pelas incorporadoras, e deva ser interpretada como caso fortuito externo e passível, em tese, da extensão do prazo contratual, além do prazo de tolerância. E isto porque é difícil imaginar que exista alguma obra no Estado do Rio Grande do Sul, que não tenha, de alguma forma, sido impactada pela tragédia das enchentes, seja diretamente pela incursão das águas, seja pela ausência ou redução de recursos humanos, insumos, logística e infraestrutura pública mínima. Ocorre, no entanto, que as obras foram afetadas em graus e intensidade diferentes, de modo que o prazo de eventual prorrogação da data de entrega das unidades aos adquirentes dependerá da efetiva comprovação, no caso concreto, dos reais impactos no cronograma das obras, a partir de uma vinculação objetiva e responsável dos efeitos da tragédia climática com o retardo do cronograma das obras, em prestígio à boa-fé contratual. Nesse sentido, inclusive em função do dever de informação estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, recomenda-se que os incorporadores, produzam as provas cabíveis à espécie e prestem as devidas informações aos adquirentes sobre os efeitos da tragédia climática no cronograma da obra específica, informando-os justificadamente acerca da eventual necessidade de prorrogação do prazo para entrega das obras, medidas estas que poderão ser determinantes em eventual futura discussão judicial sobre a matéria.
Ao longo de 15 anos do programa MCMV - Minha Casa, Minha Vida, as regras, materiais e processos adotados no setor da construção civil incorporaram diversos mecanismos de industrialização que permitiram uma rápida evolução dos procedimentos e um inegável salto de qualidade do produto final, pois o início do programa se caracterizava por construções predominantemente de alvenaria estrutural, construídas tijolo a tijolo, tendo evoluído para edifícios erguidos em paredes de concreto, em que as formas são pré-fabricadas e montadas na obra, para posterior preenchimento, o que permite a elevação de andares em menos de uma semana. Mas, ainda que os processos venham se desenvolvendo junto com as próprias regras deste programa, ainda persistem diversas atividades artesanais, que dependem diretamente da ação humana, o que invariavelmente implica possíveis erros de execução e consequentes defeitos, havendo infelizes exemplos na fase de aprendizado do MCMV que são usualmente utilizados para estigmatizar todo um setor, apesar do significativo salto de qualidade dos produtos ao longo dos anos. Aproveitando este resquício do passado, nos últimos anos assistimos uma escalada de ações repetitivas reclamando vícios construtivos, que em sua quase totalidade se dirigiam ao programa Minha Casa, Minha Vida, propostas apenas contra a CEF - Caixa Econômica Federal, que as redireciona às construtoras,  com características próprias de litigância predatória ou temerária, como alguns setores do judiciário passaram a denominar, com pedidos idênticos e respaldados em sua esmagadora maioria por pareceres técnicos genéricos e não fundamentados. Esta difícil realidade para o setor produtivo levou à necessidade das empresas  se estruturarem para enfrentar o problema, objetivando diferenciar as atribuições de responsabilidade de forma correta, na medida da responsabilidade técnica do projeto, a partir das características inerentes de cada solução construtiva desenvolvida pela indústria da construção e sempre orientada pelas diretivas de assistência técnica e garantia, como destacam, por exemplo, as recomendações setoriais e o programa "De Olho na Qualidade", implementado pela CEF, que disciplina as regras e padrões construtivos dos programa habitacionais governamentais.  Primeiramente é necessário fazer a diferenciação entre assistência técnica e manutenção, pois o primeiro consiste  na obrigação do construtor em sanar vícios construtivos, decorrentes de falhas no método de execução ou de projeto e aqueles relacionados aos produtos aplicados, enquanto as atividades de manutenção são inerentes ao usuário ou ao proprietário, que consiste em atender às recomendações do manual de operação e utilização, no que se refere ao uso correto e aplicação das medidas de conservação do bem. Para melhor entender o que difere um do outro temos sugerido a adoção do princípio dos "3 P" que Punem e dos "3 M" que Mudam, que consiste em diferenciar as patologias endógenas, inerentes à construção, portanto relacionadas à ação do construtor, que compreendem Projetos, Produtos e Produção, enquanto as patologias exógenas fogem ao seu controle e consequentemente elidem sua responsabilidade sobre o defeito, que se relacionam à ausência de Manutenção, Mau uso e ao Meio externo. Dada a natureza técnica da matéria, para a análise das patologias e consequente classificação dos vícios, que fundamentará a futura atribuição de responsabilidade pelos julgadores, impera no processo judicial a primazia da perícia técnica de engenharia, que é uma atividade devolvida por profissionais especializados, com grande desenvolvimento no país e que se encontra devidamente positivada no nosso ordenamento jurídico, especialmente, no diploma processual civil. Ao promover a reforma do CPC, foram definidas obrigações essenciais para a condução da prova pericial, inclusive de natureza formal, em que se destaca a norma contida no art. 473, na qual o legislador adentrou no conteúdo do laudo pericial, trazendo requisitos bem delineados referentes à sua elaboração, determinando, dentre outros, que o trabalho do perito contenha a análise técnica ou científica, resposta conclusiva aos quesitos, fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, vedação de emitir opiniões pessoais, mas, principalmente, a indicação do método utilizado, demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da respectiva área do conhecimento. Dessa forma, não obstante as prescrições anteriores serem relevantes em sua totalidade, nos parece que a última delas merece maior atenção, uma vez que esta determinação se relaciona diretamente com o emprego das normas técnicas existentes, sendo que no caso de perícias que envolvam construções, elas devem ser fundamentadas naquelas originárias da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, que congrega um acervo abrangente, representando o estado da arte, fruto do consenso do meio técnico sobre determinado tema. Embora exista a correta percepção que norma técnica não é lei, elas podem estar vinculadas às leis, como no caso das incorporações (lei 4.591/64), acessibilidade (lei 10.098/09), obras públicas (lei 4.150/62) e licitações (lei 14.133/21), e ainda no CDC, que considera prática abusiva colocar produtos no mercado em desacordo com as normas oficiais, e na sua ausência, com as normas da ABNT, além de existirem diversas decisões que condenam a inobservância às normas técnicas, formando jurisprudência sobre o assunto. Dessa forma, a elaboração de trabalhos periciais no campo dos vícios construtivos deve se alicerçar primeiramente nestes instrumentos normativos, seguindo as principais normas regulamentadoras, que são a NBR-13.752/96 (perícias de engenharia na construção civil), NBR-15.575/13 (edificações habitacionais - desempenho), NBR-5.671/90 (participação dos  intervenientes em serviços e obras de engenharia e arquitetura), NBR-14.037/14 (diretrizes para elaboração de manuais de uso, operação e manutenção das edificações - requisitos para elaboração e apresentação dos conteúdos), NBR-5.674/12 (manutenção de edificações - requisitos para o sistema de gestão de manutenção), NBR-16.747/20 (inspeção predial - diretrizes, conceitos, terminologia e procedimento) e NBR-17.170/22 (edificações -garantias - prazos recomendados e diretrizes). Assim, ao elaborar seu laudo, o perito deverá observar questões fundamentais, que garantam a higidez do trabalho pericial, compreendendo a observância dos registros documentais, tais como projetos, memoriais, checklist de entrega, manual de uso e histórico de assistência técnica, elaboração das respostas aos  quesitos, direcionadas pela certeza da pergunta, adoção das técnicas de vistoria de causalidade, emprego dos procedimentos preconizados pelos regramentos normativos da ABNT ou instituições de reconhecida idoneidade, tais como o IBAPE, adoção da metodologia investigativa, com raciocínio lógico e definição do vínculo fático (nexo de causalidade), cuja conclusão deverá conter fundamentação técnica e exatidão. A perícia não pode se limitar à confecção de um laudo de constatação, simplesmente retratando eventuais defeitos na construção, como muito se tem visto nos casos examinados, mas deve se constituir na elaboração de um laudo de causalidade, contendo a análise do vínculo do eventual defeito constatado, identificando a origem técnica do problema, permitindo a sua correta classificação, sem deixar de ponderar eventual concomitância de causas, seja quanto a origem do problema, seja para sopesar a contribuição de cada parte no agravamento do defeito, conforme previsto na nova edição da NBR-13.752.  Nesse sentido, a recomendação 16 do CJF, no bojo da adoção de fluxo processual e a padronização dos quesitos para a realização da prova pericial, para as ações judiciais em que se discutem vícios construtivos em imóveis do programa Minha Casa Minha Vida Faixa I, já discrimina requisitos específicos a serem observados pelo perito na elaboração do laudo pericial, consagrando conceitos e procedimentos, tais como: Análise da construção de acordo com o projeto e memorias descritivos aprovados; Confirmação efetiva da existência dos problemas reclamados na inicial, com a devida comprovação fotográfica; Cotejo dos problemas encontrados com os requisitos definidos pelas normas técnicas da ABNT, com especificação dos prazos de garantia dos respectivos itens; Análise se foram realizadas manutenções rotineiras e periódicas no imóvel e áreas de uso comum, de modo a inibir ou minorar os danos decorrentes das patologias identificadas no imóvel; Orçamentação dos reparos para corrigir eventuais vícios construtivos, especificando as quantidades dos serviços a serem executados (estimar o custo de forma discriminada item por item) com base na SINAPI - Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil. Assim, verifica-se claramente a importância do entrelaçamento entre a perícia e as normas técnicas para o deslinde das reclamações referentes ao que genericamente se chama de vício construtivo, cuja exata definição quanto a sua origem e natureza decorre da elaboração de um cuidadoso laudo pericial, da lavra de um profissional especializado, que se utilize de instrumentos técnicos de reconhecida capacidade, resultando na correta definição do nexo de causalidade entre as responsabilidades do construtor/incorporador e aquelas inerentes ao proprietário/usuário do imóvel.
Diante da atual polêmica envolvendo a tramitação da PEC 3/2022 -equivocadamente chamada de "PEC das Praias -, com inúmeros vídeos circulando nas mídias sociais, abaixo-assinados e até troca de farpas entre famosos sobre o tema, torna-se mais do que necessária uma explicação técnica sobre o objeto do que está sendo proposto e as consequências da sua aprovação no Congresso Nacional.  Apenas para fins de contextualização, toda proposta de emenda à constituição (PEC), como a própria nomenclatura diz, tem por objeto alterar algum dispositivo da nossa Constituição Federal de 1988. Trata-se de um dos processos legislativos mais complexos, com tramitação nas duas casas legislativas com amplos debates, realização de audiências públicas e quórum elevado de aprovação. E não poderia ser diferente, pois a aprovação de uma PEC modifica o texto da carta magna, a nossa lei suprema que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro.  Logo, para se emitir qualquer opinião sobre a PEC 3/2022, é imprescindível entender qual é verdadeiramente o seu objeto.  De acordo com o texto disponível no endereço eletrônico do Senado Federal1, a proposta de alteração ao texto constitucional prevê a exclusão de dois dispositivos constitucionais: primeiramente o inciso VII do Artigo 20, bem como o parágrafo terceiro do Artigo 49 das Disposições Constitucionais Transitórias. Ambos os dispositivos tratam, exclusivamente, dos terrenos de marinha.  Terrenos de marinha de forma alguma se confundem com as praias. Também não há qualquer relação com a Marinha do Brasil, instituição das Forças Armadas Brasileira. As praias, diferentemente dos terrenos de marinha, são classificadas como bens de uso comum, tais como as praças e ruas e se destinam ao uso de todas as pessoas, sem distinção ou exclusividade, pertencentes, portanto, à coletividade, não sendo possível a sua apropriação individual.  Os terrenos de marinha, verdadeiro e único objeto da PEC nº 3/2022, têm sua origem em legislação específica que remonta à década de 40, promulgada, portanto, há quase 80 anos.  Nos termos do Artigo 2º do Decreto-Lei 9.760/46, são considerados terrenos de marinha toda faixa de terra em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés ou os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.  O tema é de difícil compreensão, até mesmo para os funcionários públicos ou operadores de direito que lidam com a matéria. O procedimento de demarcação dessas áreas é supercomplexo, custoso para os cofres públicos, perdura por décadas e, na grande maioria das vezes, antes mesmo de sua conclusão, é contestado ou suspenso judicialmente.  E não poderia ser diferente, afinal de contas, "preamar" é termo derivado do castelhano "pleamar", que significa pleno mar ou maré cheia, ou seja, o auge da maré cheia. Assim, a tal linha que serve de ponto de partida para a demarcação do que é ou não terreno de marinha deve ser (ou deveria ser) traçada a partir da média dos auges das marés cheias do ano de 1831!  É isso mesmo. Os técnicos da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) - órgão federal conhecido de muitos brasileiros que residem em cidades litorâneas - precisam realizar inúmeros estudos por meio de cálculos regressivos das tabelas da maré, antigas plantas cartográficas ou cartas náuticas, fotos aéreas, análise vegetativa etc. para se chegar a um ponto de partida de medição.  Logicamente, diante dos inúmeros desafios, grande parte da costa brasileira e quase a totalidade das margens dos rios e lagoas federais ainda não possuem as áreas de terrenos de marinha demarcadas.  Como consequência dessa falta de conclusão do complexo procedimento demarcatório dos terrenos de marinha, qualquer cidadão que porventura esteja ocupando uma área considerada como tal, ainda que a linha não esteja demarcada, pode vir a ser surpreendido com uma notificação da SPU informando que a propriedade daquele terreno é da União, independentemente de possuir título aquisitivo registrado no Cartório de Registro de Imóveis ou mesmo provar estar ocupando aquela área há décadas. Inquestionável insegurança jurídica que muitos brasileiros estão sujeitos atualmente.  Mas não é só. Todos os ocupantes de terrenos de marinha, mesmo tendo quitado integralmente o preço de compra de seu imóvel, devem pagar uma prestação pecuniária anual à União pelo uso do terreno de marinha. Se o regime for de ocupação, essa taxa é de 2% (taxa de ocupação) sobre o valor do domínio pleno do terreno atribuído pela própria União (excluídas as benfeitorias). Se o regime for o de aforamento, essa taxa cai para 0,6% do valor do domínio pleno do terreno (o foro).  Além da taxa de ocupação ou do foro, conforme o regime aplicável, sobre qualquer transação onerosa envolvendo áreas situadas em terreno de marinha, é devida à União a quantia equivalente à 5% do valor de avaliação do bem (o laudêmio).  Outro dado importante é que essas taxas patrimoniais não são classificadas como tributos e, portanto, são pagas aos cofres públicos sem qualquer tipo de contrapartida pelo Estado.  Portanto, os terrenos de marinha causam inúmeros transtornos aos cidadãos brasileiros. O objetivo da PEC nº 3/2022 é justamente acabar com o terreno de marinha e, consequentemente, com o custoso e complexo procedimento demarcatório envolvido, bem como conferir maior segurança jurídica aos proprietários de imóveis situados no litoral.  Diferentemente do que se está sendo propagado, a PEC nº 3/2022 não altera em nada o livre e permanente acesso, fiscalização ou uso das praias por qualquer cidadão, direitos esses que permanecem garantidos pela própria Constituição Federal e, mais precisamente, pela Lei Federal nº 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.  Portanto, mesmo com a aprovação da PEC nº 3/2022, as praias - tal como os rios, o mar territorial, as ilhas, os recursos naturais, dentre outros - permanecem como bens da União, na forma do Artigo 20 da Constituição Federal, assim como permanecem protegidas pelas legislações específicas as áreas de proteção ambiental ou de segurança nacional. __________ 1 Disponível aqui.
 Nos últimos dias, sofremos a maior tragédia ambiental vivenciada pela população do Estado do Rio Grande do Sul, com mais de 610 mil desabrigados e mais de 140 mortes já registradas. Porto Alegre, por exemplo, já havia vivido situação similar, no ano de 1941, quando o nível do Rio Guaíba atingiu 4,76m. Desta vez chegou a 5,33m. Não há dúvidas de que a dor vivida pelos gaúchos é imensurável e que será necessário longo tempo para uma reconstrução dos danos causados pela inundação. Em decorrência dessa catástrofe, alguns temas jurídicos passaram a estar no holofote, entre eles a locação de imóvel urbano. Se retornarmos ao ano de 2020, no momento de pandemia da Covid-19, os contratos locatícios também foram objeto de discussão. Na época, muito se debateu sobre a possibilidade de alteração do índice de correção IGP-M pelo IPCA, alegando-se onerosidade excessiva. André Abelha, em artigo publicado neste mesmo periódico1, teceu comentários importantes, distinguindo os impactos jurídicos sobre as obrigações e responsabilidade dos contratantes, bem como a revisão e resolução dos contratos: impossibilidade permanente, frustração do fim do contrato, impossibilidade temporária, onerosidade excessiva e empobrecimento do devedor. Cada categoria com suas regras e efeitos.  Agora, a partir da calamidade vivida pelo Estado do Rio Grande do Sul, a relevância e necessidade de debates envolvendo os contratos de locação, novamente, se faz necessário. A problemática a ser enfrentada no presente ensaio é clara: de quem é a responsabilidade de reparar os danos causados ao imóvel locado? Locador ou locatário? O locatário tem direito a resolver o contrato sem o pagamento da multa pela entrega antecipada? Por fim, pode o locatário exigir do locador indenização pelos danos sofridos? Tais questões merecem reflexão, e este ensaio não tem a pretensão de esgotar o debate ou decretar uma solução estanque, e sim fomentar o debate e apresentar as ponderações do autor. Pois bem. Afinal, "em casa que falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão", este o dito popular que motiva esperar-se ocorra um sensível volume de demandas acerca da responsabilidade de parte a parte, diante da devastação experimentada no Rio Grande do Sul. Seria, locador ou locatário, demandado? O sendo, a lição veio ainda de Clovis Bevilaqua e repele quaisquer acréscimos, "Ao devedor incumbe provar o caso fortuito ou força maior que alega. Não lhe aproveita a prova do fato, se teve culpa na sua realização. O incêndio, por exemplo, é um fato que poderá ser invocado como determinante da impossibilidade, em que se acha o devedor de cumprir a sua obrigação. Mas, bem se compreende, quando quem o invoca não lhe deu causa, nem concorreu para aumentar-lhe os efeitos. Também lhe não aproveita a prova do fato, se dele não resulta a impossibilidade da prestação."2          O que leva à indagação sobre a ocorrência de "caso fortuito" ou "força maior", voltando-se nesse passo ao mesmo Clovis, que parece tão esquecido pela literatura recente, para quem: "Conceitualmente o caso fortuito e a força maior se distinguem. O primeiro, segundo a definição de Huc, é "o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes". A segunda é "o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer".3 Nada a destoar conceitualmente da previsão inserta no art. 393, do Código Civil vigente, mas a exigir, ainda, alguma discussão, diante da redação legal: (i) qual o elastério da previsão de "se expressamente não se houver e por ele responsabilizado"? (ii) aplicar-se-ia em todos os casos a premissa de que se tem presente um fato "cujos efeitos não eram possível evitar ou impedir"? Os contratos existem porque nenhum homem é autossuficiente. É absolutamente inviável que cada pessoa produza tudo o que é necessário para a sua sobrevivência4. O principal conceito econômico do contrato é justamente o de ser uma ferramenta que ajuda as partes a maximizar o seu bem-estar5. Enzo Roppo, por sua vez, disserta que o tipo contratual estipulado pelas partes corresponde a um gênero de operação econômica, sendo a locação a aquisição da disponibilidade material de uma coisa, por um dado tempo, contra o pagamento periódico de uma renda6, exatamente como dispõe o art. 565, do Código Civil. Os contratos de locação são consensuais, contínuos (de trato sucessivo), bilaterais, onerosos e solenes. Dessas características, a bilateralidade, a continuidade e a onerosidade são de sua essência7. Em nosso ordenamento jurídico, a Lei de Locações (8.245/91) legisla, justamente, sobre os direitos, deveres e obrigações das partes envolvidas nos contratos de locação de imóvel urbano. As obrigações principais do locatário e do locador estão previstas nos artigos 22 a 26 da lei. Dispõe o art. 23, inciso V, que é responsabilidade de locatário reparar os danos causados ao imóvel por ele, seus dependentes, familiares, visitantes ou prepostos. De outro lado, o art. 22, inciso III, da mesma lei, impõe ao locador manter a forma e o destino do imóvel durante a locação. O Código Civil, por sua vez, em seu art. 567, aplicável às locações em geral, e subsidiariamente às reguladas pela lei especial, prevê a possibilidade de o locatário requerer a redução do aluguel8 ou a resolução do contrato, caso o bem não sirva mais para a finalidade a que se destinava. Esse foi, justamente, o fundamento utilizado pelo magistrado em caso analisado no TJ/RJ, ao possibilitar a resolução do contrato de locação sem qualquer ônus ao locatário em decorrência de alagamento ocasionado pela enchente9 Aqui, trata-se de causa para a revisão ou resolução do contrato. Em outro caso, agora analisado pela Terceira Turma do STJ10, foi apreciada situação em que o imóvel objeto da locação sofreu incêndio de grande monta. A controvérsia se deu para definir se os aluguéis devidos o seriam até a data do incêndio ou até a data da efetiva entrega das chaves. O voto preponderante fez distinção relevante sobre deterioração e perecimento (entendendo que, no caso analisado pela Corte, haveria situação clara de perecimento). Dessa forma, sendo caso de perecimento do bem alugado, implicaria "a automática extinção do contrato de locação e, por conseguinte, impede a cobrança de aluguéis", com a determinação de que o aluguel só seria devido até o momento do incêndio e não até o momento da entrega das chaves. No tocante à responsabilidade, e o nexo de causalidade essencial à sua caracterização, vem a lume o art. 393 do Código Civil, pelo qual o devedor11 não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Isto significa ser possível, em contratos paritários12, alocar o risco para o devedor, que ficará, neste caso, obrigado a indenizar o credor da obrigação pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior. Ao julgar caso impactado pela pandemia de Covid-19, o TJDFT decidiu que, sendo o prejuízo "decorrente de caso fortuito ou força maior, o locador assumirá, em regra, os prejuízos, conforme o art. 393, caput, do CC/2002, haja vista a aplicação do brocardo res perit domino (a coisa perece para o dono)"13. Somando-se a tal fundamento, importante o ensinamento trazido por André Abelha em seu artigo anteriormente mencionado, em que corrobora essa conclusão ao mencionar o que dispõe o art. 248 do mesmo Código Civil. Ou seja, há a possibilidade de que, em contrato paritário, seja modificada a regra geral prevista no referido art. 393 do Código Civil, com a possibilidade de o locador exigir do locatário os prejuízos decorrentes das enchentes, considerando que estes podem sim ser considerados como caso fortuito ou força maior. Logo, salvo previsão contratual diversa, insista-se, em relação paritária, são de responsabilidade do locador os prejuízos/danos que acometeram o imóvel atingido pelas enchentes, bem como a impossibilidade de aplicação da multa contratual em desfavor do locatário no caso de entrega do imóvel antes do final do prazo contratual. Pondere-se: no âmbito privado, até que ponto teriam os contratantes assumido os riscos relacionados com específica locação? Por evidente não se cogita aqui da imensa quantidade de brasileiros desvalidos economicamente, aos quais restou residir em favelas ou ainda, denominação tristemente exata, em "alagados". Mas, existem os que construíram em locais alagadiços ou geologicamente precários; cuidaram pouco das obras de contenção; fizeram-se cegos a evidências até entranhadas na sabedoria popular. Uns construíram e contrataram na qualidade de locadores, outros, de locatários. Sabiam o que faziam, sabiam do objeto do contrato, se nada expressaram no instrumento, por certo a ciência guiou ou esteve presente na celebração. Não parece haver, então, campo para imputações de responsabilidade de parte a parte, excepcionadas situações concretas, bem provadas.    E, certamente, por fim serão indagadas as responsabilidades. Vem a pelo, a excludente do caso fortuito ou da forca maior14 mas a demonstração das razoes e origens do dano, será imprescindível15. Feitas essas considerações, resta responder o último questionamento: o locatário poderia exigir do locador indenização pelos danos sofridos? Em regra, não. Se ninguém responde por um resultado a que não deu causa16, ganham relevo as causas de exclusão de nexo causal17, também denominadas de excludentes de responsabilidade18. A única possibilidade deferida ao suposto ofensor para se exonerar da obrigação de indenizar será a demonstração de que um fato externo é a causa do evento danoso, como nos casos de acontecimento de caso fortuito ou força maior. O Enunciado n. 443, do Conselho de Justiça Federal, dispôs sobre o limite de aplicação do caso fortuito e força maior, determinando que só serão considerados como excludentes de responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida. Sendo assim, no caso ora analisado, respeitando-se sempre posições diversas, entende-se que a calamidade acometida à boa parte do Estado do Rio Grande do Sul seria suficiente para romper com o nexo causal das obrigações contraídas pelas partes no contrato de locação. Dito de forma diversa, não haveria possibilidade de o locatário impedir a ocorrência da enchente que acometera o imóvel, exonerando-o de qualquer responsabilidade sobre os danos ocasionados ao bem. Entretanto, no que diz com a possibilidade de "evitar ou impedir" os efeitos das enchentes, surgem, de seu turno, mais inferências. Não é a intenção dos autores adentrar na presente temática, mas apenas apresentar ao leitor uma outra faceta que, invariavelmente, surgirá e deverá ser analisada com a atenção e ponderação necessárias. Para isso, será necessário iniciar um novo debate, sobre se teriam os sucessivos gestores públicos (como, por igual, as casas legislativas), na medida das respectivas responsabilidades, contribuído para os acontecimentos.  Se esse enfrentamento - inclusive em situação de enchentes - não é novo nos Tribunais19, quiçá as soluções, graças aos extensos e profundos estudos técnicos já realizados e disponíveis, tendam a ser diferentemente novas, propondo novas alternativas. Tenha-se presente, de resto, a responsabilidade civil do Estado no que diz com os atos de seus agentes (art. 43, do Código Civil), que é objetiva (isto é, independe da prova de culpa, esta indagada no eventual regresso ante os agentes). Anote-se, aos filiados à corrente doutrinária que, para responsabilizar por omissão (situação conhecida como "faute de service"), persegue a prova de dolo ou culpa, na situação de hoje tal demonstração deverá ser realizada e não poderá, jamais, ser feita imputação precipitada.  Ao final de todo o caos e da tragédia vividos pelo povo e pelo Estado do Rio Grande do Sul, faz-se votos de dias melhores e com a certeza de que todos se reerguerão ainda mais fortes. Como o próprio hino rio-grandense menciona: "Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra (...)". __________ 1 Disponível aqui.  2 BEVILAQUA, Clóvis: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clóvis Bevilaqua. 2ª tiragem: edição histórica. Ed. Rio. 1976, p.174. 3 BEVILAQUA, Clovis: ob. Cit. P. 173 4 TIMM, Luciano Benetti; GUARISSE, João Francisco Menegol. Análise Econômica dos Contratos. In: Direito e economia no Brasil: estudos sobre a análise econômica do direito. 3 ed. Indaiatuba/SP: Editora Foco, 2019, p. 159. 5 ZAMIR, Eyal; TEICHMAN, Doron. Behavioral law and economics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 238. 6 ROPPO, Enzo. O Contrato. Almedina, 2009, p. 133. 7 BUSHATSKY, Jaques. Locação Residencial de Imóveis Urbanos. In: Manual de contratos imobiliários / coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 259. 8 A propósito, o disposto no art. 26, da Lei das Locacões (desconto proporcional no aluguel se as obras durarem mais de dez dias), o que não elimina a possibilidade da rescisão, até por imprestabilidade do bem locado. 9 APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL. FALTA DE CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE. ENTREGA DAS CHAVES SEM A QUITAÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO EMBARGANTE, COM PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA, PARA A CASSAÇÃO DA SENTENÇA. NO MÉRITO, PEDE REFORMA DA SENTENÇA COM A PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. 1. Afastamento da preliminar de cerceamento de defesa, diante da expressa manifestação da parte no sentido de que não tinha outas provas a serem produzidas, instada que foi à especificação de provas. 2. Desocupação do imóvel e simultânea devolução das chaves em virtude da superveniência de falta de condição de utilização do imóvel, em virtude de danos causados por alagamento decorrente de enchente. Fatos não impugnados especificamente e oportunamente. Ônus da impugnação específica desatendido. Princípio da presunção da veracidade dos fatos. Extinção do contrato na forma do artigo 567 do Código Civil.  3. Extinção da execução que se impõe. 4. Conhecimento e provimento do apelo. (0058004-07.2014.8.19.0205 - APELAÇÃO. Des(a). LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA MARQUES - Julgamento: 26/09/2018 - VIGESIMA CAMARA DE DIREITO PRIVADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL). 10 DIREITO CIVIL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL. PERECIMENTO DO BEM EM INCÊNDIO. IRRESIGNAÇÃO SUBMETIDA AO NCPC. ENTREGA DAS CHAVES EM MOMENTO POSTERIOR. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE ALUGUÉIS NO PERÍODO CORRESPONDENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Aplicabilidade do NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2. Discute-se nos autos a exigibilidade dos aluguéis no período compreendido entre o incêndio que destruiu o imóvel locado e a efetiva entrega das chaves pelo locatário. 3. A locação consiste na cessão do uso ou gozo da coisa em troca de uma retribuição pecuniária, isto é, tem por objeto poderes ou faculdades inerentes à propriedade. Assim, extinta a propriedade pelo perecimento do bem, também se extingue, a partir desse momento, a possibilidade de usar, fruir e gozar desse mesmo bem, o que inviabiliza, por conseguinte, a manutenção do contrato de locação. 4. O mutualismo que está na base dessa relação jurídica pressupõe, necessariamente, a existência de prestações e contraprestações recíprocas, sendo certo que a quebra desse sinalagma pode configurar enriquecimento sem causa vedado pelo ordenamento pátrio. 5. Recurso especial provido. (REsp n. 1.707.405/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 7/5/2019, DJe de 10/6/2019.). 11 Lembre-se que locador e locatário são devedores das suas respectivas obrigações, havendo uma relação mútua de crédito e débito, decorrente da bilateralidade do contrato. 12 Sublinhe-se que em muitos casos essa alocação é vedada pelo art. 45 da Lei de Locações, que determina serem "nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei". 13 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. TRAMITAÇÃO PRIORITÁRIA. PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL. RECURSO DE APELAÇÃO. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PROVA TESTEMUNHAL. REJEIÇÃO. RÉU REVEL. CULPA EXCLUSIVA DO RÉU. NÃO COMPROVADA. DANOS MATERIAIS EM RAZÃO DE CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. ALAGAMENTO DO IMÓVEL EM RAZÃO DE CHUVAS. TELHADO. DANO MATERIAL NÃO SE PRESUME. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 944 DO CC. IMPOSSIBILIDADE DE CULMINAÇÃO DE MULTA. APELO IMPROVIDO. 1. Apelação interposta contra sentença que julgou parcialmente os pedidos iniciais para: a) decretar a rescisão contratual do vínculo de locação entre as partes, por fato não atribuível ao locatário, no entanto, sem cominação de multa; b) condenar os réus a devolverem aos autores a caução prestada no valor R$ 750,00. 1.1. Pretensão dos autores de cassação da sentença. Levantam a preliminar de cerceamento de defesa, em face da negativa de produção de prova testemunhal. No mérito, requer o reconhecimento da culpa exclusiva dos réus, bem como da condenação ao pagamento dos danos materiais e morais descritos na petição inicial. 2. Da preliminar de cerceamento de defesa. Da prova testemunhal. 2.1. Estando a matéria fática suficientemente produzida para amparar a decisão final, é desnecessária a produção de prova oral sob pena de violação dos princípios da duração razoável do processo, economia e celeridade processuais (artigo 355, inciso II do CPC). 2.2. Ademais, o juiz é destinatário das provas (art. 370, CPC), sendo-lhe assegurado o julgamento da lide, quando reputar desnecessárias novas provas para firmar seu convencimento. 2.3. Por fim, a prova testemunhal não seria hábil a comprovar a culpa exclusiva dos réus, porquanto sua oitiva estaria restrita a afirmar se houve ou não danos materiais em razão do evento fortuito que ocasionou a quebra dos telhados. 2.4. Preliminar rejeitada. 3. Do mérito. 3.1. O cerne da controvérsia versa em saber quem é o responsável por danos no imóvel alugado causados por eventos da natureza. 3.2. Via de regra, caso o prejuízo seja decorrente de caso fortuito ou força maior, o locador assumirá os prejuízos, conforme o art. 393, caput, do CC/2002, haja vista a aplicação do brocardo res perit domino (a coisa perece para o dono). 3.4. Assim, resumidamente, pela legislação, a responsabilidade por danos naturais é do proprietário do imóvel, exceto se o contrato assinado pelas partes expressar o oposto. 3.5. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves: "As obrigações do locador, especificadas no art. 566 do Código Civil, são de três espécies e consistem em: "(...) Compete ao locador realizar os reparos necessários para que a coisa seja mantida em condições de uso, salvo convenção em contrário Se, por exemplo, em virtude de fortes chuvas, a casa alugada é destelhada ou o telhado começa a apresentar inúmeros vazamentos, cabe ao locador promover as devidas reparações ou obras, para possibilitar ao inquilino a regular utilização do imóvel." (GONÇALVES, Carlos R., 2012, p. 314). . 3.7. Assim, os reparos devem recair aos inquilinos, no caso, os autores, não havendo que se falar em responsabilidade do locador, em obediência ao princípio do pacta sunt servanda, força obrigatória dos contratos. 4. Do dano material. 4.1. A despeito do fato de que o prejuízo deva recair ao locador em face de eventos da natureza, ainda assim os autores não comprovaram, por prova documental (notas fiscais), a extensão do dano suportado. 4.2. Pelas provas colacionadas aos autos (fotos e vídeos), não há como mensurar valores exatos e a extensão dos danos para eventual ressarcimento. 4.3. Cumpre mencionar que a indenização por danos materiais não pode ser presumida, mas deve ser demonstrada por prova documental, no caso, as notas fiscais dos bens danificados. Inteligência do artigo 944 do Código Civil: Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.4.4. Jurisprudência: "(...) 5. O dano material não se presume, dependendo de prova robusta do prejuízo patrimonial que foi efetivamente suportado para que ele venha a ser indenizado." (20160110943220, Relatora Desembargadora Fátima Rafael, DJE: 10/10/2018). 5. Para que haja incidência da multa prevista na cláusula penal é necessário que haja voluntariedade para a resolução da relação material firmada entre os sujeitos, o que não se verifica no caso, haja vista que a extinção da relação se deu em face de caso fortuito ou força maior. 5.1. Sentença mantida. 6. Apelo improvido. (TJDFT. Apelação Cível. Acórdão 1280555, 07026581420198070003, Relator: JOÃO EGMONT, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 2/9/2020, publicado no DJE: 15/9/2020. Pág.:  Sem Página Cadastrada.) 14 "APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENCHENTE. Enchente que atingiu imóvel dos autores. Fato incontroverso. Caso fortuito e força maior. Local que não tem histórico de alagamentos. Chuva intensa que atingiu a região provocando estragos. Projeto de drenagem de águas implantado pelo loteador era, conforme afirmado pelo perito judicial suficiente para drenar as águas. Não verificada responsabilidade dos requeridos. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - APL: 10002766320168260257 SP 1000276-63.2016.8.26.0257, Relator: Souza Nery, Data de Julgamento: 12/02/2019, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 12/02/2019)" . 15 "LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL - Ação indenizatória desacolhida - Imóvel locado que foi invadido por águas pluviais, ocasionando danos no mobiliário da inquilina - Evidência documental de que tanto a canalização ali existente, como o entupimento da fossa séptica, contribuíram para os danos ocasionados - Obrigação do locador de garantir ao locatário o imóvel locado em condições de servir ao uso a que se destina, respondendo por vícios nele existentes, segundo o artigo 22, incisos I, II e IV, da Lei nº 8.245/91- Ônus probatório sobre a ocorrência de caso fortuito ou força maior que era do locador, ante o disposto no artigo 373, II, do CPC - Ação indenizatória acolhida - Recurso parcialmente provido. (TJ-SP - AC: 10154416620218260002 SP 1015441-66.2021.8.26.0002, Relator: Caio Marcelo Mendes de Oliveira, Data de Julgamento: 13/12/2022, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/12/2022)". 16 Considerando que a responsabilidade civil somente se concretizará se demonstrada uma relação de causalidade entre o comportamento do agende e o dano. 17 Conceituada por Caitlin Mulholland como a "ligação jurídica realizada entre a conduta ou atividade antecedente e o dano, para fins de imputação da obrigação ressarcitória" (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 57. 18 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 16ed. Atlas, 2023, p. 86. 19 RESPONSABILIDADE CIVIL. MUNICÍPIO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENXURRADA. MORTE DE DUAS PESSOAS. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. Hipótese na qual as autoras buscam a reparação por danos morais em virtude de uma enxurrada que atingiu o Município de São Lourenço do Sul, invadindo a residência das autoras, vitimando Zilah Mary de Souza Martins (mãe da autora Marise e avó das demais) e Glória Regina de Souza Martins (irmã da autora Marise e tia das autoras Camila e Tânia). RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE COMPROVADA. Consoante reiteradamente tem-se decidido, responde o Município pelos danos resultantes da falha no serviço público, salvo prova de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Na espécie, a enxurrada que atingiu o Município de São Lourenço, invadindo a residência das autoras, matando duas pessoas, trata-se de caso fortuito, inexistindo, pois, o dever de indenizar pelo Município. RESPONSABILIDADE DA CEEE-D. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO NÃO DEMONSTRADA.É evidente que a companhia empreendeu todos os esforços possíveis para que a suspensão do serviço de energia ocorresse da forma mais célere possível. Ocorre que a excepcionalidade do evento também impediu que sua atuação fosse mais eficaz. Calha referir que a própria sede da CEEE-D foi amplamente atingida pela enchente, o que certamente dificultou o serviço. Sentença de improcedência mantida. APELAÇÃO CÍVEL DESPROVIDA. (TJ-RS - AC: 70059387555 RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Data de Julgamento: 30/07/2015, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: 18/08/2015).
A preocupação com a responsabilização ambiental de corporações e dirigentes tem aumentado a exigência e a busca por uma análise mais criteriosa dos aspectos ambientais de ativos em ambiente de negócios. Por óbvio, essa preocupação também se estende às negociações imobiliárias.  Em experiências passadas, as consequências da ausência da devida diligência foram sentidas seriamente por todas as partes envolvidas em transações comerciais. Para o empreendedor, o resultado eram gastos inesperados para resolver problemas ambientais, processos judiciais demorados e custosos, além  de ter que arcar com a desvalorização ou até mesmo a interdição de empreendimentos. Nessas situações, investidores também saíam prejudicados, uma vez que a falta de análise prévia desses riscos resultavam em  perdas financeiras significativas, bem como em complicações na gestão de empreendimentos. Sem falar no dano reputacional.  Esses são alguns dos motivos que levaram a inserção da parte socioambiental em due diligences tradicionais a ser prática corriqueira. Essa ferramenta, de cunho preventivo, tornou-se um grande aliado. Uma etapa fundamental e necessária, antecessora a qualquer tipo de negociação. O resultado buscado é uma visão ampla e precisa da situação fática atual dos aspectos socioambientais dos ativos sendo transacionados, e a responsabilização de cada envolvido. O resultado nem sempre é "apenas"para um go ou no go, mas sim nos termos das transações e nos valores a serem praticados.  No caso do segmento imobiliário, a diligência pode ser feita para qualquer operação (Compra e Venda, Arrendamento, Construção, Financiamento e etc). Na prática, o trabalho é dividido em 3 (três) etapas: Diagnóstico, Análise de Risco e Plano de Ação.  O produto final é um relatório com a descrição detalhada de cada uma dessas etapas. A conclusão é sintetizada de maneira objetiva em um resumo executivo, com destaque especial às contingências a serem realizadas considerando as expectativas do interessado.  Na aquisição de imóveis, por exemplo, na etapa de diagnóstico identificam-se as restrições (áreas de preservação permanente, reserva legal, unidades de conservação e etc), passivos ambientais (ações judiciais, danos ambientais e etc), bem como a conformidade legal.  Na aquisição de um empreendimento imobiliário constituído, além de incorporar as análises feitas para fins de aquisição do imóvel, tem-se ainda a verificação quanto à regularidade das licenças e autorizações ambientais emitidas, atendimento de condicionantes e programas ambientais, instrumentos urbanísticos correlatos e demais obrigações legais socioambientais.  Com o diagnóstico feito, passa-se então a avaliar os riscos de responsabilização ambiental dos interessados (Análise de riscos). Para cada fragilidade constatada, medidas de mitigação ou eliminação de cada risco são estabelecidas (Plano de Ação).  Como o propósito da due diligence ambiental é conhecer de forma prévia os riscos ambientais de um negócio, nada mais coerente do que abordarmos aqui (mesmo que de maneira superficial nesse momento) os tipos e alcance de sua materialização. Ou seja, quais as consequências práticas dos tipos de responsabilização ambiental.   Nesse sentido, primeiramente, cabe dizer que o instituto possui uma tríplice vertente - civil, administrativa e/ou criminal1. Muito embora as 3 (três) esferas de responsabilização se proponham a atingir objetivos distintos, o resultado almejado é o mesmo -  a proteção ambiental. A responsabilidade civil ambiental decorre da perpetração de um dano ambiental.  Ela é objetiva e solidária, dos responsáveis, diretos ou indiretos, pelo dano. Nessa modalidade de responsabilização, a preocupação que se tem é de quem é a obrigação de reparar o dano. Para identificá-lo, é preciso distinguir dois institutos bastante presentes nas discussões em âmbito ambiental: a responsabilidade civil - citada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) - e a obrigação "propter rem". Em síntese, para que se tenha responsabilidade civil, é preciso demonstrar a ocorrência do nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida por alguém e o dano constatado. De outro lado, a obrigação "propter rem", dever jurídico de natureza real, decorre da relação entre o atual titular do bem e a obrigação decorrente da própria existência deste último - ou seja, da coisa. Desse modo, a obrigação "propter rem" é temporária. Existe obrigação, enquanto houver relação de titularidade. Portanto, em termos práticos, a obrigação do adquirente de uma área que tenha eventual passivo não se confunde com a responsabilidade civil de quem deu causa ao dano ambiental. Ou seja, a obrigação do atual titular de um imóvel é limitada ao gerenciamento do passivo ambiental - que terá responsabilidade, assim, de, por exemplo, gerenciar e minimizar, dentro do possível, os efeitos causados pela prática danosa. Por outro lado, a responsabilidade civil em relação ao dano (obrigação de reparar, e/ou, ainda, de pagar significativas indenizações pecuniárias) é de quem deu causa ao ato lesivo ou de quem concorreu para tanto. Mas por solidária, a reperação do dano pode ser exigida de quem ocupa hoje a área. Na prática, ambos os institutos são comumente confundidos, na tentativa de aplicar a responsabilidade civil a todos os envolvidos - proprietários, adquirentes, locatários.  Cabe aos adquirentes o devido resguardo quanto à questão ambiental, procurando, desde o começo, evitar uma responsabilização indevida2.  Caso isso não seja possível, ainda há possibilidade de reaver seus direitos através de uma ação regressiva em face do antigo proprietário poluidor. Outro fato importante a se atentar é que o STF firmou a tese (Tema 999) de que a pretensão de reparação do dano ambiental é imprescritível. Em outras palavras, a responsabilização civil pelo cometimento de um dano ambiental pode ser realizada independentemente da data de ocorrência do dano. Tal indicativo deve servir como critério de classificação de risco, especialmente nos casos cuja análise de risco seja realizada referente a empreendimentos desenvolvidos em áreas contaminadas.  Vale lembrar também que, em 2018, o STF aprovou a Súmula 618, na qual o ônus da prova passou a ser do réu nas ações de degradação ambiental. Assim, nesse cenário de imprescritibilidade, devem especialmente se atentar aqueles que eventualmente cometeram danos ambientais anos atrás, pois em ações judiciais a esse respeito, quem vai ter que provar que não causou os danos serão os próprios acusados (réus).3 A responsabilidade administrativa e criminal, por sua vez, possuem aspectos fundamentais semelhantes, pois em ambos os casos necessita haver dolo (vontade do agente de cometer o dano) ou culpa do agente. Além disso, pressupõem-se a existência de uma conduta ilícita, enquadrada como infração administrativa no primeiro caso e tipificada como crime no segundo. Tal responsabilização significa a aplicação de uma punição pelo cometimento de conduta que contraria as normas vigentes. Assim, nessas duas hipóteses, os interessados poderão ser responsabilizados caso se constate a prática, pelos próprios, de uma conduta ilícita, demonstrando-se o seu dolo (vontade do agente) ou a sua culpa em tal conduta. Ainda, a Lei de Crimes Ambientais ( Lei Federal n. 9.605/98) regulamentou a imputação criminal às pessoas jurídicas. Também previu que, incidem nas penas lá previstas, o diretor, o administrador, o membro do conselho de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário que, sabendo da prática criminosa, deixa de impedi-la.  De toda forma, por se tratar de uma responsabilidade subjetiva, mesmo nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, é absolutamente imprescindível que se demonstre o vínculo da pessoa física com a conduta criminosa.5 Assim sendo, ao se conhecer a abrangência e o alcance de cada uma dessas modalidades de responsabilização ambiental, ao se categorizar os riscos a partir da relação entre a probabilidade e a severidade de sua ocorrência, considerando cada aspecto socioambiental identificado como frágil, e consequentemente as possíveis consequências de responsabilização ambiental  para os envolvidos, tem-se aí a importância da due diligence ambiental. Por todo o exposto, fica clara a necessidade de que antes de qualquer negócio imobiliário, pelo menos se avalie a questão ambiental. Não se atentar no presente a essa questão pode fazer com que ela volte, como um sério problema, no futuro. __________ 1 As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas , a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação reparar danos causados. " (art. 225, §3º,da Constituição Federal). 2 MUHAMAD, Ana Paula. Responsabilidade civil e obrigações propter rem: uma confusão que pode custar caro. Disponível aqui. Acesso em 31.08.2023. 3 No artigo "STF decidiu: dano ambiental é imprescritível. O que muda na prática?" abordamos alguns cenários e alternativas para mitigar o risco de responsabilização na esfera civil. Disponível aqui. 4 STJ, AgRg nos EDcl no RHC n. 162.662/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 2/12/2022.
É corriqueiro no contencioso imobiliário de incorporadoras a existência de ações propostas por adquirentes de unidades residenciais questionando a incidência de correção monetária nas parcelas do compromisso de compra e venda. Isso ocorre porque a compra e venda de unidades autônomas na planta é normalmente realizada com o parcelamento do preço e, na maioria dos casos (principalmente em empreendimentos populares), mediante obtenção de financiamento habitacional. Consequentemente, como o preço é pago durante o transcurso do contrato e para que não ocorra a desvalorização da moeda, incide a correção monetária, oriunda do fenômeno da inflação1. Trata-se de mecanismo econômico, a fim de repor o valor da moeda, não constituindo aumento, mas mera reposição de valor, ancorando-se, por isso, na equidade e no princípio que veda o enriquecimento sem causa, como ensina Judith Martins-Costa2. Desse modo, quando o adquirente se dirige ao estande de vendas, após concordar com o preço da unidade, ele manifesta os valores que está disposto a pagar a título de entrada e princípio de pagamento, bem como negocia as parcelas mensais ou semestrais, parcelando os valores até o momento em que a obra é entregue. Ocorre que, não obstante o parcelamento do preço da unidade, quando a obra é entregue, usualmente o contrato impõe que o adquirente quite a integralidade do saldo devedor perante o incorporador para recebimento das chaves. E é nesse momento que o financiamento habitacional se aperfeiçoa. Assim, determinada instituição financeira paga esse saldo devedor ao incorporador, tornando-se credora fiduciária da unidade como garantia ao contrato de mútuo celebrado com o adquirente3. Com efeito, o exercício realizado pelo adquirente no estande de vendas é parcelar o valor do preço das parcelas que pagará diretamente ao incorporador e o montante que será pago por meio do financiamento habitacional, simulando, também, o mútuo com possível instituição financeira (como se nota, são dois parcelamentos distintos). Essa simulação leva em consideração: a data de entrega da obra; a capacidade de obtenção de crédito do adquirente naquele momento, analisando o seu score bancário e a sua renda familiar; dentre outros fatores. No entanto, o transcurso do tempo pode frustrar o resultado de tal simulação por diversas razões. Exemplificando: o adquirente declara no estande de vendas possuir renda mensal de aproximadamente R$ 5.000,00 mensais. Contudo, quando a obra está próxima ao fim e ele reapresenta seus documentos e encontra-se em situação de desemprego, com menor capacidade para obtenção de crédito. Também é possível que a sua renda prossiga a mesma, mas alguma pendência financeira tenha reduzido o seu score de crédito, diminuindo a possibilidade de obter o mútuo bancário no valor então almejado e previsto na simulação realizada no estande de vendas. Nesse caso, em nossa opinião, não há responsabilidade da incorporadora, pois a empresa não possui ingerência no perfil financeiro do adquirente, tampouco pode influir na relação com a instituição financeira. É impossível que a incorporadora garanta que a simulação anteriormente realizada se mantenha a mesma no futuro, uma vez que, como ilustrado no exemplo acima, o adquirente poderá ter seu score de crédito e perfil alterados por uma multiplicidade de questões subjetivas e incontroláveis para o fornecedor. Sucede-se que o Poder Judiciário, em variados casos, vem imputando indevidamente esse risco à incorporadora. Em caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo4, julgou-se procedente o pedido de resolução contratual em favor da consumidora, restituindo a integralidade dos valores pagos e a comissão de corretagem, afastando, noutro turno, a indenização por danos morais arbitrada em primeiro grau. Em resumo: a consumidora propôs ação requerendo a resolução contratual e consequente restituição integral dos valores pagos à incorporadora, pois o financiamento habitacional foi aprovado pela instituição financeira em valor inferior ao que necessitava para pagamento da unidade imobiliária. Contudo, essa redução decorreu da mudança do perfil da consumidora em relação ao momento em que simulou o financiamento no estande de vendas. A consumidora, após a simulação, celebrou empréstimo consignado, modificando seu perfil e diminuindo o valor aprovado perante a instituição financeira. Mesmo assim, entendeu-se que houve descumprimento do dever de informação pelo fornecedor, resolvendo-se o contrato por suposta culpa da empresa com a determinação de devolução integral dos valores pagos pela consumidora. Por outro lado, em outro caso5, o juízo de primeiro grau rechaçou os pedidos autorais, dado que o atraso na obtenção do financiamento não poderia ser imputado à incorporadora, mas à consumidora, a qual estava com anotação negativa junto ao sistema cadastral do SERASA. Assim, os pedidos de resolução contratual e devolução integral dos valores foram julgados improcedentes, uma vez que a consumidora estava com problemas em seu cadastro financeiro, não podendo responsabilizar a fornecedora pela demora na celebração do financiamento que ocasionou a incidência de correção monetária e, consequentemente, "aumento" do preço da unidade adquirida. Por essa razão, nos instrumentos contratuais de compromisso de compra e venda é comum a inserção de cláusulas no quadro-resumo cientificando o consumidor da incidência de correção monetária na parcela reajustável do preço6, cumprindo o dever de informação oriundo do princípio da boa-fé objetiva e do Código de Defesa do Consumidor (CDC)7. As empresas tentam, desse modo, proteger-se contra essas intempéries, solicitando que o consumidor assine os instrumentos contratuais e aponha sua assinatura logo abaixo das principais cláusulas. Nesse quadro, avulta-se necessário investigar a distribuição dos riscos do negócio e densificar a posição das partes na contratação, sob pena de eximir o consumidor dos riscos que existem em todo e qualquer contrato8. Afigura-se patente essa investigação, principalmente em relação ao consumidor que realiza negócio jurídico relevante e cujo resultado da contratação pode ensejar uma série de resultados (sejam eles positivos ou negativos), não sendo adequado imputar riscos próprios do consumidor ao incorporador, o que contribui, ao fim e ao cabo, ao agigantamento do número de processos judiciais e ao uso da máquina pública para auferir vantagem indevida. Recorda-se, por oportuno, que a incorporação imobiliária9 é atividade empresarial que visa à comercialização de imóveis integrantes de conjuntos imobiliários a serem construídos, utilizando-se do contrato de compromissos de compra e venda para tanto10. O compromisso, por sua vez, não serve apenas para operar a transmissão de direito aquisitivo ao adquirente, mas também, e notadamente, para a captação de recursos para formação do capital da incorporação. Diferentemente de um compromisso de compra e venda entre particulares, quando se está diante de um compromisso de compra e venda entre o adquirente e o incorporador, que tem como obrigação a consecução de um empreendimento nos termos da Lei 4.591/1964, os consumidores são ligados por um nexo funcional comum11, um nexo objetivo, cujo escopo é o sucesso do empreendimento12. Mesmo com as vendas das unidades imobiliárias, o capital auferido parceladamente com os compromissos de compra e venda nem sempre é suficiente para consecução da obra, exigindo que o incorporador, em algumas ocasiões, vá ao mercado financeiro obter receita, oferecendo, como garantia à instituição securitizadora, a cessão fiduciária dos créditos dos compromissos e/ou à instituição financeira, o terreno em hipoteca. Nesse sentido, Melhim Chalhub aponta a importância dos valores auferidos pelo incorporador perante os adquirentes, pois, em regra, o montante das parcelas pagas durante a obra não é suficiente para custeá-la no prazo programado13. Por essa razão o incorporador já enfrenta uma variada gama de riscos14, não nos parecendo adequado onerá-lo com riscos extraordinários, como garantir o financiamento habitacional ao consumidor, sob pena de prejudicar a consecução do próprio projeto imobiliário e os demais adquirentes que participam da mesma incorporação imobiliária. É necessário, portanto, revisitar a distribuição dos riscos dentro do contrato de compromisso de compra e venda celebrado entre consumidor e fornecedor para aferir, concretamente, os riscos próprios do incorporador e os riscos próprios do adquirente. Em nossa opinião, não é correto impor riscos extraordinários ao incorporador, tal como as situações narradas acima, que são consideradas incontroláveis O risco próprio que o consumidor assume na obtenção de crédito pode ser classificado como subjetivo, pois não integra nenhum aspecto do contrato, menos ainda alguma particularidade objetiva do negócio e é inerente à própria pessoa do adquirente da unidade. Nessa toada, exemplificando, no tema da alteração superveniente das circunstâncias, a doutrina já se posicionou no sentido de rechaçar pedidos de revisão contratual fundados em particularidades subjetivas da parte, suas "condições pessoais"15, visto que não integram o negócio, tampouco sua álea. Arnoldo Medeiros da Fonseca, em clássica lição, assevera: [...] o devedor, quando contrata, assume implicitamente uma obrigação de não iludir as legítimas expectativas do credor de receber a prestação prometida. Se a assume superior às próprias forças, será culpado, e, por sua culpa, é natural que responde. [...] Nem seria justo, em relação ao credor, perante quem o devedor assumiu sem reservas a garantia de executar a obrigação, exonerar este último de responsabilidade, por suas condições pessoais, mesmo quando outro indivíduo, em análogas condições exteriores de tempo, lugar e meio, teria podido cumprir o estipulado.16 Nessa mesma linha, Catarina Monteiros Pires afirma: [...] um contraente do ramo da construção e imobiliário não pode invocar a crise econômica e financeira e retração do mercado imobiliário para se desvincular de um contrato-promessa. As alterações da taxa de juros e de esforço para pagamento do contrato prometido, o desemprego e a desvalorização da moeda resultantes da crise também não são alterações anormais.17 Em paralelo, menciona-se o instituto da impossibilidade superveniente da prestação. Acertadamente sustenta João Pedro de Oliveira de Biazi que o Direito brasileiro não tutela a impossibilidade pessoal ou subjetiva do devedor de cumprir prestação de fazer fungível, ou qualquer modalidade obrigacional, como o caso de pagamento do preço em dinheiro. Ressalvam-se os casos de impossibilidade pessoal ou subjetiva de prestação de fazer infungível, a qual se equiparará à impossibilidade objetiva18. Significa dizer que os riscos próprios do contratante no cumprimento da prestação, mesmo do adquirente em contrato subsumível ao CDC, são por ele assumidos, sob pena de imputar questões incontroláveis à parte contrária, atribuindo a ela riscos extraordinários e fora do próprio negócio. Desse modo, compete à jurisprudência melhor reflexão a respeito da atividade da incorporação imobiliária e dos riscos próprios dos adquirentes e das incorporadoras. Decisões que procurem inadvertidamente imputar riscos de uma parte à outra, apenas em razão de uma eventual vulnerabilidade de um dos contratantes, certamente acarretam profunda insegurança jurídica, além de serem questionáveis dogmaticamente. Propõe-se, por isso, que os litígios sejam analisados por meio da investigação concreta do risco de cada contratante, recordando, em arremate, a lição de Paulo Mota Pinto: "É esta mesmo uma das principais razões pelas quais se celebram contrato, correspondendo a uma função de redução, ou 'gestão', dos riscos do futuro, propiciando, assim, o necessário quadro de certeza ou segurança para a vida económica."19 __________ 1 SIMÃO, José Fernando. Art. 316. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 217. 2 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. V, t. I, p. 245-246. 3 Também é possível (em hipóteses mais excepcionais) que o próprio incorporador financie diretamente o saldo devedor com o adquirente, tornando-se credor fiduciário no contrato de mútuo. 4 TJ/SP; Apelação Cível 1006196-59.2021.8.26.0704; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV - Butantã - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/10/2022; Data de Registro: 07/10/2022. 5 Tribunal de Justiça de São Paulo, processo nº 1001708-20.2023.8.26.0016. 6 Por exemplo: "todas as parcelas previstas neste quadro resumo, sem exceção, inclusive aquelas oriundas dos recursos do saque do FGTS e do financiamento imobiliário, serão corrigidas mensalmente, a partir da presente data (data base), até a data da expedição do Auto de Conclusão (Habite-se), pelo Índice Nacional de Custo da Construção Civil divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (INCC-DI/FGV), conforme explicitado na Cláusula 2.6 do Instrumento Particular de Compra e Venda assinado pelas partes.". 7 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;". 8 Como já notado por António Menezes Cordeiro: "contratar é perigoso e, por isso, atraente: cada parte sabe, de antemão, que o seu grande sucesso acarreta o insucesso da outra parte, e assim por diante. Defender, entre as partes, a existência de uma comunidade de interesses revela, nos contratos patrimoniais, o mais das vezes, de um jusromantismo sem correspondência nas realidades e que, como tal, deve ser abandonado, enquanto instrumento técnico-jurídico." (MENEZES CORDEIRO, António. Da alteração das circunstâncias. Estudos em memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa: [s.n], 1989, p. 319).   9 Pertinente é a explicação de Caio Mario da Silva Pereira a respeito do contexto social desse contrato: "Um indivíduo procura o proprietário de um terreno bem situado, e incute-lhe a ideia de realizar ali a edificação de um prédio coletivo, mas nenhum dos dois dispõe do numerário e nenhum deles tem possibilidade de levantar por empréstimo o capital, cada vez mais vultoso, necessário a levar a termo o empreendimento. Obtém, então, opção do proprietário, na qual se estipulam as condições em que este aliena o seu imóvel. Feito isto, vai o incorporador ao arquiteto, que lhe dá o projeto. O construtor lhe fornece o orçamento. De posse dos dados que lhe permitem calcular o aspecto econômico do negócio (participação do proprietário, custo da obra, benefício do construtor e lucro), oferece à venda as unidades. Aos candidatos à aquisição não dá um documento seu, definitivo ou provisório, mas deles recebe uma "proposta" de compra, em que vêm especificadas as condições de pagamento e outras minúcias. Somente quando já conta com o número de subscritores suficientes para suportar os encargos da obra é que o incorporador a inicia. Se dá sua execução por empreitada, contrata com o empreiteiro; se por administração, ajusta esta com o responsável técnico e contrata o calculista, os operários, o fornecimento de materiais etc. Vendidas todas as unidades, promove a regularização da transferência de domínio, reunindo em uma escritura única o vendedor e compradores que ele nunca viu, aos quais são transmitidas as respectivas quotas ideais do terreno. Normalmente, os contratos com o construtor, fornecedores, empreiteiros de serviços e empregados são feitos em nome dos adquirentes, que o incorporador é encarregado de representar. Quando o edifício está concluído, obtém o "habite-se" das autoridades municipais, acerta suas contas com cada adquirente e lhe entrega as chaves de sua unidade. Normalmente, é o incorporador que promove a lavratura da escritura de convenção do condomínio." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 14. ed. atual. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 246-247. E-book). Tamanha relevância dessa atividade no mercado interno brasileiro que Orlando Gomes, em seu anteprojeto de Código Civil dos anos de 1962-1963, criou dispositivos sobre a incorporação e o condomínio de edifício no Capítulo VI do Livro III (Do Direito das Coisas), tratando: "Do Condomínios nos Edifícios de Apartamentos". Inclusive, o autor ressalta que, do ponto de vista do interesse social, incluir a "Incorporação" foi a mais importante inovação do anteprojeto (GOMES, Orlando. Código civil: projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 63). 10 Conforme sustenta José Osório de Azevedo Júnior: "Talvez se pudesse até afirmar que é "o mais brasileiro" dos contratos de direito civil, não pelas suas origens, mas pela frequência de sua utilização entre nós" (AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 15). 11 CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, p. 147-183, abr.-jun. 2016. 12 Para Rodrigo Xavier Leonardo, poder-se-ia falar em uma rede contratual (XAVIER, Rodrigo Leonardo. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. Revista dos Tribunais, vol. 832, p. 100-111, fev. 2005). 13 CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, p. 147-183, abr.-jun. 2016. 14 Riscos esses bem expostos por Alexandre Junqueira Gomide, cf. GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. 15 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 128-129; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos contratos: elementos para sua construção dogmática. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 112; SIMÃO, José Fernando; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Incorporação imobiliária: resolução/revisão dos contratos de promessa de compra e venda em tempos de pandemia. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2021. v. II, p. 900-905. Nesse sentido, ao direito português: "Ressalva-se que apenas relevam para avaliação deste acréscimo de exigência circunstâncias que, de facto, tenham incidência direta sobre o equilíbrio prestacional, isto é, sobre interesses das partes integrados na base do negócio, e não também circunstâncias cujo reflexo se materialize apenas na situação pessoal ou econômica do lesado, fora do contexto estrito da relação contratual assumida." (COSTA, Mariana Fontes da. Da alteração superveniente das circunstâncias: em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais. Coimbra: Almedina, 2019. p. 459). 16 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 316. 17 PIRES, Catarina Monteiro. Limites dos esforços e dispêndios exigíveis ao devedor para cumprir. Revista da Ordem dos Advogados, ano 76, 2016. p. 131. 18 BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A impossibilidade superveniente da prestação não imputável ao devedor. Rio de Janeiro: GZ, 2021. p. 76-77. 19 MOTA PINTO, Paulo. Direito Civil: estudos. Coimbra: Gestlegal, 2018. p. 465-466.
Marco Legal das Garantias O marco legal das garantias (lei 17.711, de 30 de outubro de 2023) trouxe em seu artigo 9º nova disciplina para a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, acompanhada da revogação expressa do Capítulo III do decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966. Constitucionalidade Nos julgamentos dos Recursos Extraordinários nºs 556.520 e 627106, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou tese de repercussão geral no sentido de que "É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no decreto-lei 70/66"1. Como se verá adiante, o procedimento previsto na Lei nº 17.711, de 2023, embora traga diversas inovações nas formalidades a serem observadas, não inova substancialmente em relação ao procedimento que era previsto no agora revogado Capítulo III do Decreto-lei nº 70, de 1966, de maneira que, a manter-se a linha jurisprudencial, os mesmos fundamentos que serviram ao reconhecimento da constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial do Decreto-lei nº 70, de 1966, servem ao reconhecimento da constitucionalidade do procedimento ora examinado2. Campo de aplicação A execução extrajudicial prevista no artigo 9º da lei 14.711, de 2023, se aplica aos créditos garantidos por hipoteca, exceto às operações de financiamento da atividade agropecuária, conforme o caput e o § 13 do artigo 9º. A hipoteca é direito real de garantia previsto no inciso IX do artigo 1.225 e disciplinado, ao lado do penhor e da anticrese, nos artigos 1.419 a 1.430, além de receber disciplina própria nos artigos 1.473 a 1.505, todos do Código Civil. No regime do Decreto-lei nº 70, de 1966, a execução extrajudicial se voltava para contratos de empréstimo com garantia hipotecária, como se colhia do seu artigo 9º. Agora, não se restringe a origem do crédito garantido. Previsão contratual: requisito da execução extrajudicial Conforme o § 15 do artigo 9º da lei 14.711, de 2023, o título constitutivo da hipoteca deve conter, sem prejuízo dos requisitos de forma do art. 108 do Código Civil, ou da lei especial, como requisito de validade, expressa previsão do procedimento de execução extrajudicial previsto no artigo 9º, com menção ao teor dos §§ 1º a 10. O preceito é compreensível: embora sempre caiba ao Poder Judiciário o monopólio da última palavra, há situações em que o ordenamento jurídico permite que os particulares, por livre manifestação de vontade, aceitem que o Poder Judiciário seja afastado de proferir a primeira palavra sobre uma pretensão, e a execução extrajudicial é uma dessas situações. Estando em jogo direitos patrimoniais disponíveis, dado que o particular pode dispor do próprio direito material, com maior razão ainda ele pode dispor do direito processual à tutela do direito material. Esta disposição se revela na manifestação de vontade no sentido de que um futuro conflito de interesses em torno dos direitos criados por um negócio jurídico seja resolvido fora da esfera jurisdicional, mas sem deixar de ter em perspectiva que a tutela jurisdicional pode ser acionada em caso de abusos. Assim se dá nas situações em que os particulares ajustam a solução de conflitos de interesses pela mediação, pela conciliação e pela arbitragem (espécies da chamada autocomposição) e assim também se dá nas situações em que os particulares aceitam que a pretensão creditícia seja satisfeita pela execução extrajudicial, que se insere no espectro da autotutela. Este preceito, diga-se de passagem, não é novidade na sistemática das execuções extrajudiciais de créditos imobiliários. O artigo 63 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, já previa ser "lícito estipular em contrato" a execução extrajudicial, sendo tranquilo o entendimento de que o texto legal, mais do que uma faculdade, previa um ônus para o credor, como se colhe de julgado do Superior Tribunal de Justiça3. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 2 de janeiro de 2024. 2 Sobre o tema, para maior aprofundamento: MARTINS, Samir José Caetano. "Execuções Extrajudiciais de Créditos Imobiliários - debate sobre sua Constitucionalidade. Revista de Processo, v. 36, n. 196, p. 21-64, 2011, e, do mesmo autor, o livro Execuções extrajudiciais de créditos imobiliários. Rio de Janeiro: Espaço Jurídico, 2006, especialmente o capítulo IV (p. 59 a 108). 3 Recurso Especial nº 345.677/SP. Jairo Berezin e Condomínio de Construção do Edifício Vanessa. Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro. 2 de dezembro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 jan. 2024.
O tema da retenção de valores em contratos imobiliários, especialmente após a lei 13.786/2018, permanece em destaque, ainda que a referida legislação tenha pacificado em boa parte as soluções das ações judiciais que versam sobre o assunto. Apesar da clareza dos comandos jurídicos da lei 13.786/2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem gerando discussões ao flexibilizar cláusulas contratuais que tratam da retenção após a conclusão da construção do empreendimento com a devida averbação da construção na matrícula imobiliária. O patrimônio de afetação, dentre vários impactos para determinado empreendimento; para os adquirentes das unidades imobiliárias; bem como para o incorporador/construtor, possui uma ligação umbilical com o percentual de retenção dos valores pagos em caso de resolução de contrato, conforme previsto no §5º1 do artigo 67-A da lei 4.951/1964, inovação trazida pela lei 13.786/2018. O TJSP, em decisões recentes, sugere que a averbação da construção, por si só, seria suficiente para extinguir o patrimônio de afetação, anulando, assim, as cláusulas que preveem retenção de 50% dos valores pagos. A exemplo, destacam-se os julgados abaixo sob relatoria dos Desembargadores Sergio Alfieri e Cláudio Godoy respectivamente em que tornam nula a cláusula de retenção de 50% quando finalizada a obra. Ressalta-se que ambos os precedentes foram julgados no ano de 2023. (...). Rescisão por conveniência do adquirente. Contrato celebrado na vigência da lei 13.786/2018. Devolução das parcelas. Cabimento. Inteligência das Súmulas 1, 2 e 3/TJSP e 543/STJ. Retenção de 50% dos valores pagos ao fundamento de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A e 31-F da lei 4.591/64). Inadmissibilidade. Conquanto instituído o regime do patrimônio de afetação, a obra já foi concluída, com a instituição de condomínio e atribuição das unidades aos adquirentes, segundo a afirmação do autor que foi confirmada pelas rés (art. 374, II, CPC). Abusividade de imposição dos efeitos do instituto ao adquirente após a conclusão da obra, sob pena de se perpetuar em seu desfavor garantia patrimonial em exclusivo interesse do incorporador. Retenção de 25% do montante pago (art. 67-A, II, da Lei nº 13.786/2018), aceita pela jurisprudência para cobrir as despesas administrativas suportadas pela vendedora. (...). RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, PROVIDO, sem reflexo no ônus de sucumbência2. Compromisso de compra e venda. Resolução por iniciativa da compradora, o que transitou em julgado. Percentual de retenção que de fato não se pode limitar a 20%, devendo-se majorar a 25%, pois firmado o contrato já sob a vigência do art. 67-A, II da lei 4.591/64, introduzido pela lei13.786/2018. Percentual de 50% do art. 67-A, § 5º da lei 4.591/64 que, porém, não se aplica ao caso. Empreendimento de fato sujeito ao regime de patrimônio de afetação, mas obra já concluída e entregues as unidades quando da resolução do contrato. Intepretação teleológica da norma. Percentual majorado de retenção que tem a finalidade de assegurar a consecução do empreendimento, e que não se justifica após a sua entrega, como no caso. Precedentes. Requisitos para a extinção formal do patrimônio de afetação do art. 31-E da lei 4.591/64 que não se confundem com a finalidade da multa mais alta estabelecida no art. 67-A, § 5º, do mesmo diploma. Sentença parcialmente revista. Recurso provido em parte.3 Seguindo a lógica utilizada para se proferir as decisões acima, o TJSP aparentemente desvirtua os requisitos previstos no artigo 31-E, I4, da lei 6.591/1964 e isso se dá, pois, pela simples interpretação gramatical, não basta somente o preenchimento de apenas um dos requisitos para a extinção do patrimônio de afetação, quais sejam: (i) averbação da construção na matrícula imobiliária; (ii) registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição do adquirente; (iii) extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento. Trata-se de preenchimento cumulativo.  Pelo preenchimento cumulativo dos requisitos acima, para haver extinção completa do patrimônio de afetação, há de se quitar o financiamento tomado junto a instituição financeira para a construção do empreendimento, o que pode ocorrer somente em momento posterior a averbação da construção por conta da sistemática de repasse comum na operação do mercado imobiliário. É justamente o que se vê como fundamento de outros julgados, sendo um deles de relatoria também do Desembargador Claudio Godoy, o mesmo que entende pela extinção de patrimônio de afetação com a simples averbação da construção na matrícula imobiliária, que se decide pelo preenchimento de todos os requisitos para se considerar extinto o patrimônio de afetação, com os destaques abaixo. (...) Conclusão das obras que, por si só, não libera o bem de sua afetação. Necessidade de comprovação de liquidação das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento (...)5 Extinção da afetação, ademais, que não se dá tão somente pelo término e averbação da obra, instituído o condomínio, senão também pela satisfação das obrigações garantidas, incluído o crédito do financiador, e cancelamento do registro respectivo. Artigo 31-E, inciso I, da lei 4.591/64, com redação dada pela lei 10.931/04.6 Não menos importante, mas para além de toda engrenagem imobiliária, há de se ressaltar também a lógica contratual pautada no princípio basilar da boa-fé objetiva, essencial na interpretação de todos os contratos, sejam eles privados e até mesmo de consumo. A boa-fé objetiva guarda consigo um principal parâmetro de comportamento a evitar traições e contradições entre as partes. É o que defende Flávio Tartuce a afirmar que as partes devem "atuar de modo a não trair a confiança do outro", de maneira a não frustrar justas expectativas7."" É neste sentido de se evitar a quebra de confiança e frustrações de expectativas inicialmente criadas que a boa-fé está positivada em alguns artigos do código civil, tais como o 113, III8, 187 e 4229, servindo, então, como um norte para todas as relações contratuais, as quais as partes devem respeitar quase que religiosamente. Dessa forma, para se uniformizar as decisões judiciais, é essencial uma análise ampla e completa a fim de evitar inseguranças e a criação de uma loteria jurídica, levando em consideração que o mercado imobiliário como peça vital na economia nacional. Evidentemente que havendo a existência da onerosidade excessiva, tanto em contratos paritários, quanto nas relações de consumo, existe a possibilidade de revisão equitativa das condições contratuais iniciais e até mesmo a extinção, conforme manda o artigo 6º, V10 do Código de Defesa do Consumidor ao dispor sobre os direitos dos consumidores. Para se configurar, com base no artigo 478 do Código Civil, onerosidade excessiva há de se preencher os requisitos contido no referido comando legislativo, a saber: (i) contrato de prestação continuada; (ii) acontecimento superveniente extraordinário; (iii) excessividade da prestação; (iv) extrema vantagem. Sendo assim, há de se analisar com cuidado e atenção acerca da flexibilização do percentual de retenção em caso de resolução contratual motivada pelo comprador para se evitar a violação de preceitos imobiliários e contratuais, gerando, assim, um protecionismo exacerbado e descontrole contratual. Não se deve perder de vista que, mesmo sendo, em regra, um contrato de adesão, muito pautado nos princípios do Código de Defesa do Consumidor, os adquirentes devem guardar consigo um comportamento probo e justo durante a execução da relação contratual e até mesmo com a extinção da relação. Em conclusão, a jurisprudência do TJSP quanto à retenção de percentual em casos de resolução de contrato imobiliários demanda análise crítica, buscando conciliar os interesses das partes e garantir a segurança jurídica necessária no setor. __________ 1 Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-­se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. 2 TJSP; Apelação n. 1009289-34.2022.8.26.0562; Des. Rel. Sergio Alfieri; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 23/02/2023 3 TJSP; Apelação n. 1024643-54.2021.8.26.0071; Des. Rel. Claudio Godoy; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 06/02/2023 4 Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:        I - Averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento 5 TJSP; Agravo de Instrumento n. TJSP; Agravo de Instrumento n. 2287505-50.2019.8.26.0000; Des. Rel.: Ana Lucia Romanhole Martucci; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 25/09/2020. 6 TJSP; Agravo de Instrumento n. 052507-11.2017.8.26.0000; Rel. Des.:Claudio Godoy; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 27/11/2017 7 TARTUCE, Flávio. Boa-Fé Objetiva Processual - Reflexões quanto ao atual CPC e ao Projeto do Novo Código. JusBrasil, [S. l.], 2012. Disponível aqui. 8 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. II - Corresponder à boa-fé 9 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 10 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:  V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Retrospectiva Direito Imobiliário 2023

Um ano intenso no Direito Imobiliário. Momento de olhar pelo retrovisor, a fim de entender onde estamos e pensar e planejar o futuro. Neste artigo, seleciono em poucas palavras o que, na minha visão, aconteceu de mais relevante. Legislativo O Congresso Nacional produziu poucas leis que afetam diretamente o setor imobiliário, as quais, mesmo em pequeno número, inundaram nossa área de novidades. A Lei 14.620/23 trouxe a nova fase do Programa Minha Casa Minha Vida, importantíssimo para a política habitacional, e que impulsiona em boa medida o PIB imobiliário. Mas não só isso. A mesma lei: (i) passou a permitir a adoção do patrimônio de afetação, antes restrito às incorporações, também aos loteamentos. Todavia, a Lei não alterou a legislação fiscal para permitir a adoção do Regime Especial de Tributação (RET), com redução de alíquotas, que foi o principal estímulo para incorporadores adotarem a técnica da segregação patrimonial do empreendimento. Sem o RET, o mercado se empolgará com a novidade? (ii) permitiu expressamente os editais e leilões eletrônicos na execução extrajudicial da alienação fiduciária; (iii) alterou o art. 1.473 do Código Civil, para explicitar que a propriedade superficiária e os direitos oriundos da imissão provisória na posse podem ser objeto de hipoteca; (iv) implementou novidades na regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S), ao promover, na Lei 13.465/17, alteração do art. 37 e inserção do art. 37-A. O art. 44 ganhou o parágrafo 8º, que destrava a finalização do procedimento no registro de imóveis: na abertura das matrículas individuais de ocupantes não constantes da lista de beneficiários da CRF, constará o titular originário, na condição de proprietário anterior, com a menção, no campo relativo ao proprietário atual, de que "o futuro proprietário será oportunamente citado na matrícula quando do envio de listas complementares de beneficiários"; e (v) inseriu na Lei 14.063/20 o art. 17-A, pelo qual "As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada". Dia 30 de outubro foi publicado o importantíssimo Novo Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23). Uma avalanche de alterações:  cartórios, garantias imobiliárias, loteamentos, debêntures, extratos eletrônicos, fundos de investimento, concurso de credores, precatórios e créditos judiciais, entre outras. Foram tantas que deixo de expô-las em texto. E se estiver curioso: (i) veja aqui o panorama geral das novidades, que já começaram a impactar o dia-a-dia do profissional do Direito Imobiliário; (ii) confira aqui, os 54 dispositivos alterados da Lei 9.514/97, com o texto comparado, e aqui, em esquema visual, as 13 alterações mais importantes; e (iii) aqui você encontra uma tabela com as atuais semelhanças e diferenças entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca. No apagar das luzes, dia 20/12/2023 foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que, após décadas de discussões, finalmente implementa, sob aplausos e críticas, a reforma tributária. Destaco os impactos diretos[1] para o Direito Imobiliário (não identifiquei modificações sobre o ITBI): (i) Entidades religiosas (art. 150, V, "b"): o dispositivo, que antes previa imunidade fiscal apenas para templos de qualquer culto, agora estende o privilégio para "entidades religiosas", "inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes"; (ii) Correios, autarquias e fundações públicas: (art. 150, §2º): As autarquias e fundações públicas eram imunes aos impostos sobre o patrimônio, e agora o §2º estende a imunidade a impostos sobre a renda ou serviços entre os entes públicos, além de incluir os Correios nesse conjunto de beneficiados; (iii) ITCMD: em razão da reforma: (a) o ITCMD sobre bens móveis, títulos e créditos, que antes competia ao Estado "onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador", agora pertence ao Estado "onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador", caracterizando uma alteração mais de redação do que de regra (art. 155, §1º, II); (b) o imposto tem sua progressividade fixada em razão do quinhão, do legado ou da herança (art. 155, §1º, VI); e (c) o ITCMD não incide sobre transmissões para instituições sem fins lucrativos com finalidade e relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar (art. 155, §1º, VII); e (iv) IPTU: Agora não há mais dúvida: o valor venal dos imóveis (base de cálculo do IPTU) pode ser atualizado diretamente pela Prefeitura, conforme critérios estabelecidos em lei do Município, sem a necessidade de aprovação de lei específica de atualização. E acabam de sair os pareceres das subcomissões de revisão do Código Civil. Aqui é possível fazer o download do relatório completo, e visualizar as atualizações propostas, muitas delas com impacto relevante no Direito Imobiliário. O caminho é longo, mas o avanço é notável! Parabéns a todos os que estão participando desse trabalho monumental. Judiciário Na área extrajudicial (regulada pelo Poder Judiciário), o novo Código Nacional de Normas, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consolidou diversos atos normativos anteriormente publicados, aplicáveis à área extrajudicial. No Brasil, aliás, as delegações dos cartórios são promovidas por cada ente Federativo. A seleção, por concurso público, de cada delegatário, a normatização infralegal e a fiscalização cabem ao Tribunal de cada Estado e do Distrito Federal. Um sistema com muitos méritos, mas que gera uma distorção inevitável: intensa heterogeneidade de entendimentos notariais e registrais. O que se faz no Rio de Janeiro não se consegue em São Paulo. E vice-versa. Vamos para o Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, e cada lugar terá, em certa medida, suas regras próprias. A lei é federal, mas o entendimento é local. Se, por exemplo, o Código de Normas de um Estado manda o registrador exigir uma determinada certidão negativa, de pouco adianta um acórdão do Supremo Tribunal Federal declarando a exigência inconstitucional. Enquanto a regra estiver ali, o registrador com a espada da Corregedoria Geral sobre sua cabeça, provavelmente exigirá a certidão. Vivemos uma pirâmide invertida de Kelsen. Daí que o novo Código Nacional deve ser celebrado, por ser um passo notável rumo à homogeneização paulatina de práticas em todo o país. Em setembro, o Provimento CNJ 150/23 (desenhado aqui) regulamentou a adjudicação compulsória extrajudicial, trazendo luz para o procedimento, e potencializando sua aplicação Brasil afora. Destaque, ainda, para os avanços do registro de imóveis brasileiro, que brilha cada vez mais no cenário mundial, e só para ficar em dois exemplos: (i) O mapa interativo está melhor a cada dia, um verdadeiro Google Earth do Direito Imobiliário, onde é possível obter informações extremamente úteis para auditorias jurídicas: matrículas, unidades de conservação, dados minerários, tombamentos, quilombos, último registro, entre outros. Difícil não se viciar. Salve no seu Favoritos. E use sem moderação. O projeto merecidamente recebeu, do CNJ, o Prêmio Solo Seguro 2023. Aqui você acessa o mapa, o vídeo explicativo e uma sugestão de minissérie para se ter a dimensão do quão revolucionária essa ferramenta pode ser; e (ii) O ranking nacional de usucapião extrajudicial é de grande utilidade, inclusive para os advogados visualizarem de antemão se determinado cartório costuma finalizar muitos ou poucos procedimentos dessa natureza. Na imagem, os 20 primeiros lugares no país em out/23 (mas ressalto que o ranking é relativo, pois a plataforma considera os dados do Diário Eletrônico do RIB/ONR, e, portanto, não computa as usucapiões de Estados que utiliza(va)m os Diários de Justiça Eletrônicos estaduais, a exemplo do Paraná). O STJ, em 2023, seguiu julgando muitos casos sobre o Direito Imobiliário. Para ver os principais acórdãos, confira aqui uma seleção das decisões divulgadas nos Informativos de Jurisprudência de mai/21 a dez/23, organizados por temas. E algo que até parece mentira, e que estava fora do radar de muita gente. Mais de 25 anos após a edição da Lei 9.514/97, a alienação fiduciária ainda estava sob grave risco. Havia no STF um recurso extraordinário com repercussão geral (RE 860631) questionando a constitucionalidade da execução extrajudicial da garantia. Em outubro, por maioria (houve quem votasse pela queda da AF, e imaginem o tsunami que isso poderia gerar), o STF fixou a seguinte tese: "É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". Não posso deixar de mencionar a forma distorcida com que parte da imprensa divulgou o julgamento, publicando que "bancos podem tomar imóveis de devedores sem decisão judicial". Um desserviço à informação. IBRADIM Por fim, o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. O IBRADIM segue sendo uma supermáquina de produzir conhecimento, conexões e amizades, e que este ano realizou, com o engajamento de suas comissões temáticas e diretorias estaduais, nada menos do que 304 eventos de Norte a Sul do país, além de um congresso memorável (confira aqui os melhores momentos). Sem contar as diversas publicações. E nosso adorado IbradimCast, cujas conquistas estão aqui. Um instituto cada vez mais forte, cada vez mais relevante. Difícil não se apaixonar. Então, caro leitor, se conseguiu chegar até aqui sem partir para algo mais útil no seu dia, só posso admirar sua paciência e resiliência, ou quem sabe um sacrifício por pura amizade. Muito obrigado de coração a todos que me ensinaram, a todos que se dispuseram a me ouvir, e a todos que de alguma forma contribuíram para um Direito Imobiliário mais justo, mais técnico e mais acessível. Que tenhamos um fim de ano com amor em família, saúde e momentos de alegria, e que possamos recarregar nossas baterias para recomeçarmos com tudo o próximo ciclo. Que venha 2024! __________ 1 Claro, há repercussões indiretas, que, todavia, não caberiam neste breviloquente texto.
I.  A tese jurídica fixada no Tema 1.095/STJ e as ressalvas do voto condutor  Ao julgar o REsp 1.891.498-SP, afetado ao Tema 1.095, o Superior Tribunal de Justiça definiu tese jurídica segundo a qual, em execução de crédito fiduciário imobiliário, a liquidação deve observar o critério definido especificamente pelos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, afastada a aplicação da regra geral do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes termos: TEMA 1095: "Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor."1 O que está em questão é a convivência, no sistema, de duas regras relacionadas ao tema: de uma parte, o art. 53 do CDC, que se refere genericamente à vedação do pacto comissório, ao considerar nula a cláusula inserta em contrato de promessa de venda ou  de alienação fiduciária que preveja a perda total das quantias pagas, em caso de resolução do contrato por inadimplemento do devedor, e, de outra parte, o art. 27, § 4º, da lei 9.514/1997, que, ao dispor sobre a liquidação do crédito em caso de execução fiduciária, obriga o credor fiduciário a promover leilão do imóvel e entregar ao devedor fiduciante o saldo, se houver, do produto aí apurado. A decisão soluciona a antinomia meramente aparente entre essas duas regras com fundamento nos critérios cronológico e da especialidade, até mesmo porque não há divergência em relação à vedação do pacto comissório. A afetação do Tema 1.095 não abrange a hipótese de o inadimplemento anterior ao termo, e embora tenha mencionado acórdãos da 3ª Turma que o reconhecem como fundamento para aplicação do critério de liquidação estabelecido pelo § 4º do art. 27 da lei 9.514/1997 (REsp 1867209/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 30/9/2020), o voto condutor considera que esse entendimento ainda não está maduro para ser apreciado pelo rito repetitivo. Em voto-vogal, a Ministra Nancy Andrighi, embora tenha acedido à redação da tese proposta pelo relator, ponderou que a iniciativa do devedor fiduciante de postular o desfazimento do contrato por simples desinteresse configura, por si só, quebra antecipada do contrato, que justifica a execução do crédito por parte do credor fiduciário.2 Além disso, e a despeito de reconhecer que o procedimento instituído pela lei 9.514/1997 é o modo adequado para a extinção forçada do contrato fiduciário imobiliário, o voto condutor acena para a eventualidade de variação de procedimentos mediante sua substituição pela resilição ou resolução do contrato, ao ressalvar que, "se inexistente o inadimplemento (falta de pagamento) ou, acaso existente, não houver o credor constituído em mora o devedor fiduciário, a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da lei 9.514/97, podendo se dar pelo ditame da legislação civilista (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (artigo 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação." Neste artigo submetemos ao debate algumas das principais questões relacionadas à anômala equiparação da execução e excussão fiduciária de bens imóveis aos efeitos da resolução do contrato preliminar de promessa de venda, ignorando a sistematização do tema da extinção dos contratos estabelecida pelo Código Civil de 2002, além de outras distorções decorrentes da dispensa do juízo de admissibilidade para decretação de resilição ou resolução dessa espécie de contrato. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 STJ, 2ª Seção, relator Min. Marco Buzzi, j. 26/10/2022, DJe 19.12.2022. 2 Extrai-se do voto da Ministra Nancy Andrighi "Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/1997 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados."
A discussão envolvida no RE 860631 teve por objetivo aferir "(...) a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário - SFI, conforme previsto na lei 9.514/1997". Antes de tratar propriamente da decisão, deve ser ressaltado que a alienação fiduciária é a garantia responsável pelo desenvolvimento do mercado imobiliário nos últimos 20 anos e pela crescente elevação do crédito imobiliário às famílias brasileiras. Devemos relembrar que, nos anos 90, a hipoteca foi bastante judicializada, tornando restrito (e de elevado custo) o acesso ao crédito imobiliário. Isso porque a morosidade e a insegurança jurídica que pairavam sobre a execução hipotecária aumentavam o risco na concessão do financiamento. A partir da Lei 9.514/1997, com a possibilidade de execução extrajudicial da garantia de maneira segura e célere, as instituições financeiras ampliaram o acesso ao crédito e o mercado imobiliário se reinventou. A verdade é que a garantia da alienação fiduciária não confere apenas segurança jurídica a quem concede o financiamento, mas, também, permite que as famílias possam ter acesso célere e simples ao crédito imobiliário. E não se diga que a alienação fiduciária reduz os direitos do mutuário. A Lei estabelece procedimento que se coaduna com as disposições constitucionais e as normas gerais do Código de Processo Civil, aplicáveis a trâmites judiciais envolvendo direitos reais sobre bens imóveis. Nesse sentido, uma vez inadimplida a obrigação, a Lei obriga que que o devedor fiduciante seja regularmente intimado, de modo que tenha a possibilidade de purgar a mora. Somente após o transcurso de referido prazo e uma vez não purgada a mora, a propriedade é consolidada em nome do credor fiduciário. E mesmo após a consolidação da propriedade, o imóvel não é "tomado" pelo credor fiduciário, como lamentavelmente noticiado por parte da imprensa. Após a consolidação, a lei obriga o credor fiduciário a proceder com os leilões regulares, de modo a permitir que o imóvel possa ser arrematado por terceiros. Havendo arrematação, o valor que eventualmente sobejar deve ser restituído ao devedor fiduciante. Por outro lado, não havendo arrematantes e considerando que o bem já foi consolidado em nome do credor fiduciário, somente em tal hipótese o credor poderá se apropriar do imóvel. Atente-se, contudo, que a apropriação não é automática e sem que antes sejam respeitados os já referidos direitos do mutuário. Também é relevante destacar que o procedimento de execução da alienação fiduciária é realizado por intermédio do Cartório de Registro de Imóveis que, regra geral, segue os exatos termos da lei 9.514/1997. Na hipótese de ausência de observância da regularidade da notificação, por exemplo, o Oficial não permite o prosseguimento do procedimento. Portanto, não há qualquer lesão constitucional ou infraconstitucional aos direitos do devedor fiduciante. Ademais, não se retira a possibilidade de o mutuário, verificando infração aos seus direitos, propor ação judicial para, por exemplo, impedir o leilão ou suscitar qualquer infração às determinações legais. Não é razoável, portanto, afirmar que o simples fato de a execução da garantia ser realizada de maneira extrajudicial implicaria infração aos direitos constitucionais à ampla defesa e ao contraditório. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu adequadamente pela constitucionalidade da lei 9.514/1997 e do procedimento de execução extrajudicial. Na qualidade de vice-presidente do IBRADIM, parabenizo o instituto pela participação como amicus curiae no processo, contribuindo com a correta interpretação e aplicação do Direito. É de se lamentar, contudo, que no ano de 2023 estamos discutindo a constitucionalidade da lei de 1997. De todo modo, a decisão, embora seja óbvia, reforça a segurança jurídica e beneficia milhares de brasileiros que continuarão a ter acesso simples e célere ao crédito imobiliário. Caso a Corte houvesse declarado a inconstitucionalidade da lei 9.514/1997, uma infinidade de procedimentos seria obstada e certamente o crédito imobiliário voltaria a ser reduzido aos brasileiros. Também é relevante destacar que uma parcela ínfima dos financiamentos habitacionais é inadimplida pelos mutuários, o que demonstra que a alienação fiduciária funciona adequadamente e cumpre a sua função. Destaco, ao final, que embora a constitucionalidade da lei 9.514/1997 seja evidente, isso não significa que a lei não possa sofrer aperfeiçoamentos. Tais ajustes têm sido realizados ao longo dos últimos anos e, brevemente, o aprovado PL 4188 poderá trazer outras melhorias. É por esse e outros motivos que o Seminário do Migalhas a respeito da lei, a ser realizado no dia 6 de novembro, mostra-se atual e relevante.
Introdução   Desde tempos imemoriais, existe a prática de parcelamento do solo para construções de unidades imobiliárias para servirem de morada a uma coletividade de pessoas1. O Brasil não configurou exceção: ainda sob o domínio da Coroa Portuguesa, havia a prática de desmembramento e parcelamento do solo urbano para construir moradas, configurando entre os habitantes daquela época uma coletividade de unidades imobiliárias semelhante às dos tempos atuais2.  Essas práticas persistiram, se diversificaram, e os loteamentos são a modalidade de habitação mais comum no país3. Diante das repercussões sociais e jurídicas dos loteamentos na sociedade brasileira, este texto - sem pretensão de esgotar o tema - fará uma breve retrospectiva histórica e legislativa dessa figura imobiliária no Brasil.  Do decreto-lei 58/37 à Lei de Registros Públicos  Com o declarado objetivo de aumentar a "segurança das transações", o Decreto-Lei nº 58/37, primeiro diploma normativo referente à figura dos loteamentos no Brasil Republicano4, atingiu parcialmente sua mens legis ao determinar a inscrição do loteamento em registro imobiliário, disciplinar o contrato de compra e venda, e prever a possibilidade de adjudicação compulsória em caso de recusa à outorga da escritura definitiva. Contudo, os avanços proporcionados pelo DL 58/37 foram insuficientes para lidar com as questões decorrentes do boom demográfico experimentado pelo país, que também aumentava seu grau de industrialização e urbanização5. Esses dois interligados fenômenos foram os principais motivos para o aumento dos fluxos migratórios da população rural para os centros urbanos, que também experimentavam a vinda em massa de imigrantes, o que encareceu os custos de habitação nesses locais. O resultado foi o acentuamento do déficit habitacional no país, o que impulsionou a difusão de loteamentos e edifícios residenciais com vários andares, configurando um cenário que demandava ajustes na legislação. Nesse contexto, foi concebido outro diploma de grande relevância ao mercado imobiliário: a lei Federal 4.591/64, que trouxe ao ordenamento jurídico o instituto da incorporação imobiliária e aprimorou o conceito de condomínio edilício6. Em seguida, a comunidade jurídica envidou esforços para a criação de um diploma legal específico para os loteamentos, o que foi refletido no decreto-lei 271/67.  Este buscou conferir aos loteamentos as normas de direito civil atinentes à incorporação imobiliária, condicionando essa aplicação a um (segundo) decreto, que jamais foi publicado7. Além disso, foi ganhando espaço a noção de que aplicação singular de normas de direito civil não era suficiente para atender aos multifacetados desafios dos loteamentos, razão pela qual - já no começo da década de 70 - se debatia, em substituição ao DL 271/67, a criação de lei especial que enfrentaria as questões ambientais, urbanísticas e civis dos loteamentos8.   A lei Federal 6.766/79 ("Lei de Parcelamento do Solo Urbano")  Os reclamos da doutrina surtiram efeito e, após intenso trabalho legislativo, foi promulgada a lei Federal 6.766/79 que, ao introduzir o conceito de parcelamento de solo urbano, apontou que este poderá ser realizado por meio de loteamento ou desmembramento (art. 1º da LF 6.766/79). Ao definir loteamento, o § 1º do art. 2º da LF 6.766/79 afirma que "Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes". Por sua vez, a gleba será fracionada mediante a criação de lotes ou áreas desmembradas, que deverão ser especificadas para criação de matrícula individual no registro de imóveis (art. 20, parágrafo único, da LF 6.766/79).9 Originalmente sem a previsão de um conceito urbanístico de lote, a LF 6.766/79 foi alterada pela Lei Federal nº 9.785/99 em dois principais pontos. O primeiro fora a alteração do art. 3º, caput, da LF 6.766/79, que ora dispõe que somente "será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal".   No mesmo sentido, a LF 9.785/99 também alterou o parágrafo 4º da LF nº 6.766/79 para dispor que somente "Considera-se lote o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe".  Em outros termos, os artigos inseriram à lei especial normas de Direito Urbanístico, que é caracterizado como "o requisito de respeito às próprias limitações pelo Poder Público para disseminação das cidades, tais como as normas que disciplinam o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo urbano, e as áreas de interesse especial"10.    Conquanto os requisitos legais específicos para constituição dos loteamentos não serão abordados, é indispensável mencionar que o interessado deve obter da Prefeitura a autorização para o projeto de loteamento, que deverá ser registrado no RGI e estar de acordo com o plano diretor. O loteador também terá o ônus de promover as obras de infraestrutura necessárias, havendo responsabilidade subsidiária do ente municipal com relação a esta obrigação (arts. 37 e seguintes da LF 6.766/79, respectivamente)11. Verifica-se, portanto, que a despeito de reconhecer que o parcelamento de solo urbano consiste em uma ação humana que independente da aprovação do Poder Público, a LF 6.766/79 condiciona sua legalidade "às disposições desta e as das legislações estaduais e municipais pertinentes" (artigo 2º da LF 6.766/79).   Caso o loteamento não esteja sendo de acordo com as especificações do projeto aprovado, será considerado irregular, cujo saneamento das questões irregulares o transformará em regular. Contudo, no caso mais grave, em que inexiste autorização municipal, o empreendimento será considerado clandestino12. Em ambos os casos, sem prejuízo de responsabilização na esfera cível, a conduta dos loteadores que comercializarem lotes nessas hipóteses poderá ser enquadrada como crime contra a Administração Pública (art. 50 da LF 6.766/79). Diplomas legais posteriores à LF 6.766/79 Por fim, cumpre apontar - em linha cronológica - os principais diplomas normativos posteriores à LF 6.766/79 que influenciam os loteamentos. A primeira menção é à Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 30, VIII, afirma que compete aos Municípios "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano".  Além disso, em que pese ter garantido o direito fundamental à propriedade, a CF/88 condicionou esse direito ao cumprimento da função social daquela (art. 5º, XXIII da CF/88). Ao definir os parâmetros para a aferição da função social de um imóvel urbano, o art. 182, § 2º, da CF/88 aponta que "A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor". Em seguida, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor (LF 8.078/90), elaborado para equilibrar a relação desigual entre o consumidor e fornecedor. No caso dos loteamentos, as principais repercussões são a inversão do ônus da prova em demandas judiciais, o dever de informação imposto aos loteadores e corretores, e a possibilidade de direito de arrependimento do comprador, no prazo de 7 dias, caso o negócio seja realizado no stand de vendas (arts.  6º, II, III, IV XII, VIII e 49º do CDC e art. 26-A da LF 6.766/79)13. No início deste século, foi promulgado o Estatuto da Cidade (LC 10.257/01), que disciplina as diretrizes gerais da política urbana previstas no mencionado art. 182 da CF. Nesse diálogo das fontes, verifica-se que a definição da função social e o atendimento das exigências urbanísticas não seguirão um padrão, sendo esse juízo discricionário reservado ao Município quando da análise do projeto de loteamento com as normas de seu plano diretor, o que impacta a concepção e execução dos loteamentos espalhados pelo país.14 Um ano depois do advento do Estatuto da Cidade, foi promulgado o Código Civil (LF 10.406/22). Em que pese sua aplicação subsidiária aos loteamentos em razão da especialidade da LF 6.766/79, o Código Civil promoveu importantes mudanças na estrutura dos condomínios edilícios e regulamentou a criação de condomínio composto por lotes, que estarão necessariamente vinculados a uma fração ideal das áreas comuns na proporção a ser definida no ato de instituição (art. 1.358-A do CC, incluído pela LF 13.465/17)15.           Conclusão Esse breve retrospecto permite duas conclusões. A primeira é a dificuldade do legislador, até o advento da LF 6.766/79, em adequadamente regulamentar os loteamentos, que, por sua ampla repercussão na "expansão e gênese" da cidade16, possuem uma complexidade superior aos condomínios edilícios. A segunda é a efetividade do vanguardista conceito de parcelamento de solo urbano, cuja legalidade está condicionada às limitações impostas pelas normas legais e urbanísticas. Assim, ao englobar os aspectos urbanísticos, ambientais, registrais e civis dos loteamentos, a LF 6.766/79 permitiu uma atuação mais eficaz do Poder Público e da sociedade civil no combate aos multifacetados desafios impostos pela atividade milenar de parcelamento do solo urbano. Não por outro motivo, após mais de quatro décadas de vigência (um recorde), a LF 6.766/79 continua a ser o principal diploma normativo da matéria. __________ 1 SILVA, Marcos Roberto Alves; CAMPOS, Camila Ribeiro. FINIZOLA, Carla Francisca Galvão. NOVAES, Eliene Greek Novaes. ALVARES, Liliana de Castro. MOURA, Maria Letícia Vieira. Impactos sociais e urbanísticos dos loteamentos fechados no Setor Sul de Uberlândia - um estudo de caso. Revista Caminhos da Geografia, v. 13, nº 43. Out/2012. 2012. 2 Disponível aqui. Acesso em 30.5.22. 3 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022 4 Este texto não abordará a Lei de Terras de 1850 ou outro diploma normativo anterior ao decreto-lei 58/37. 5 Disponível aqui. Acesso em 11.8.23. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 14ª ed. Editora Gen. Rio de Janeiro. 2020. 7 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022. 8 DIAS Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 20.  9 Nesse interim, contudo, foi promulgada a Lei Federal nº 6.015/73 ('Lei de Registros Públicos"), que pavimentou a estrutura pela qual funda-se o direito imobiliário moderno brasileiro e, portanto, de umbilical importância aos loteamentos. 10 DA SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo. 11 RODRIGUES, Carlos Alexandre. Como lotear uma Gleba - Parcelamento e Desmembramento do Solo, Loteamento e Condomínio de Lotes. Leme: Editora Imperium, 2023. 12 Recurso Especial nº 1.616.348/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13.12.16. 13 KINUAGA, Marcus Vinicius in DIAS. Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 150 e ss. 14 Emiliasi, Demétrios. Condomínio de Lotes. Editora BH. 1ª ed. São Paulo. p. 93. 15 Ademais, a LF 13.465/17 alterou o parágrafo 7º da LF 6.766/79 para fazer constar o condomínio de lotes, bem como o art. 8º daquela lei positivou a figura do loteamento de acesso controlado. 16 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.