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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
O ano de 2024 ficará marcado na história dos gaúchos por uma catástrofe climática sem precedentes, que afetou a todos, direta ou indiretamente. Uma quantidade jamais vista de chuvas provocou a maior enchente da história e a destruição de parte considerável do Rio Grande do Sul. Os efeitos e repercussões são ainda incalculáveis, muitas vidas foram perdidas, lares e negócios aniquilados e milhares de pessoas foram desalojadas, passando a viver em abrigos e em casas de familiares ou amigos. Grande parte das indústrias e comércios do Estado ficaram embaixo da água, trabalhadores ilhados e estradas completamente destruídas.  Certo é que o trabalho de reconstrução será longo. Se algo de marcante e positivo tiraremos da tragédia foi a solidariedade e a união, não só do povo gaúcho, mas como também do povo brasileiro, que vem auxiliando de maneira comovente as pessoas mais necessitadas. Como não poderia ser diferente, as incorporações imobiliárias no RS também estão sendo impactadas pelo estado de calamidade pública provocada pelas enchentes, especialmente com relação ao cronograma estabelecido para a entrega das obras. É certo que algumas em maior medida do que outras. Os instrumentos contratuais de promessa de compra e venda, em regra, possuem uma data final para a entrega das obras, admitido um prazo de tolerância de 180 dias, e com a previsão de sua prorrogação em situações de caso fortuito e/ou força maior. A questão sensível diz respeito a possibilidade ou não da prorrogação do prazo de entrega das obras em função da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes no RS para além dos 180 dias de tolerância.  A relevância do tema decorre do fato de que, após escoado o prazo estabelecido contratualmente para a entrega das unidades, incide a multa contratual e a possibilidade de resolução do contrato por parte do adquirente, nos termos do art. 43-A da lei de incorporações imobiliárias.  De acordo com o Código Civil, em seu art.393: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado." O referido artigo é complementado em seu parágrafo único: "O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir." Decorre da lei que entre as situações que afastam a responsabilidade civil em razão do rompimento do nexo causal estão os eventos qualificados como caso fortuito ou força maior.  O caso fortuito é definido como o evento totalmente imprevisível decorrente de ato humano ou de evento natural. Já a força maior constitui um evento previsível, mas inevitável ou irresistível, decorrente de uma ou outra causa.  Em que pese a distinção conceitual, o que importa para efeitos da eventual exclusão da responsabilidade civil é se o evento correlato tem ou não relação com risco do empreendimento ou risco-proveito, ou seja, com a atividade desenvolvida pelo suposto responsável. É preciso constatar se o fato entra ou não no chamado risco do negócio (eventos internos e externos). O caso fortuito interno é aquele que o risco representado pelo fato é inerente, interno à conduta ou à atividade do agente, de modo que deve responder quando dele decorra o dano. Por outro lado, o caso fortuito externo (ou força maior) é aquele que decorre de causa completamente estranha à conduta do agente, e por isso causa exoneração de responsabilidade.  Nessa linha doutrinária, aprovou-se o enunciado, na V Jornada de Direito Civil, prevendo que: "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida" (enunciado 443). Seguindo essa mesma ordem de ideias, o STJ firmou o entendimento que somente o caso fortuito externo exclui o dever de indenizar por parte do fornecedor.  Entendemos que, pela excepcionalidade, magnitude e ineditismo do fato, a tragédia provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul não tem fato conexo com a atividade desenvolvida pelas incorporadoras, e deva ser interpretada como caso fortuito externo e passível, em tese, da extensão do prazo contratual, além do prazo de tolerância. E isto porque é difícil imaginar que exista alguma obra no Estado do Rio Grande do Sul, que não tenha, de alguma forma, sido impactada pela tragédia das enchentes, seja diretamente pela incursão das águas, seja pela ausência ou redução de recursos humanos, insumos, logística e infraestrutura pública mínima. Ocorre, no entanto, que as obras foram afetadas em graus e intensidade diferentes, de modo que o prazo de eventual prorrogação da data de entrega das unidades aos adquirentes dependerá da efetiva comprovação, no caso concreto, dos reais impactos no cronograma das obras, a partir de uma vinculação objetiva e responsável dos efeitos da tragédia climática com o retardo do cronograma das obras, em prestígio à boa-fé contratual. Nesse sentido, inclusive em função do dever de informação estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, recomenda-se que os incorporadores, produzam as provas cabíveis à espécie e prestem as devidas informações aos adquirentes sobre os efeitos da tragédia climática no cronograma da obra específica, informando-os justificadamente acerca da eventual necessidade de prorrogação do prazo para entrega das obras, medidas estas que poderão ser determinantes em eventual futura discussão judicial sobre a matéria.
Ao longo de 15 anos do programa MCMV - Minha Casa, Minha Vida, as regras, materiais e processos adotados no setor da construção civil incorporaram diversos mecanismos de industrialização que permitiram uma rápida evolução dos procedimentos e um inegável salto de qualidade do produto final, pois o início do programa se caracterizava por construções predominantemente de alvenaria estrutural, construídas tijolo a tijolo, tendo evoluído para edifícios erguidos em paredes de concreto, em que as formas são pré-fabricadas e montadas na obra, para posterior preenchimento, o que permite a elevação de andares em menos de uma semana. Mas, ainda que os processos venham se desenvolvendo junto com as próprias regras deste programa, ainda persistem diversas atividades artesanais, que dependem diretamente da ação humana, o que invariavelmente implica possíveis erros de execução e consequentes defeitos, havendo infelizes exemplos na fase de aprendizado do MCMV que são usualmente utilizados para estigmatizar todo um setor, apesar do significativo salto de qualidade dos produtos ao longo dos anos. Aproveitando este resquício do passado, nos últimos anos assistimos uma escalada de ações repetitivas reclamando vícios construtivos, que em sua quase totalidade se dirigiam ao programa Minha Casa, Minha Vida, propostas apenas contra a CEF - Caixa Econômica Federal, que as redireciona às construtoras,  com características próprias de litigância predatória ou temerária, como alguns setores do judiciário passaram a denominar, com pedidos idênticos e respaldados em sua esmagadora maioria por pareceres técnicos genéricos e não fundamentados. Esta difícil realidade para o setor produtivo levou à necessidade das empresas  se estruturarem para enfrentar o problema, objetivando diferenciar as atribuições de responsabilidade de forma correta, na medida da responsabilidade técnica do projeto, a partir das características inerentes de cada solução construtiva desenvolvida pela indústria da construção e sempre orientada pelas diretivas de assistência técnica e garantia, como destacam, por exemplo, as recomendações setoriais e o programa "De Olho na Qualidade", implementado pela CEF, que disciplina as regras e padrões construtivos dos programa habitacionais governamentais.  Primeiramente é necessário fazer a diferenciação entre assistência técnica e manutenção, pois o primeiro consiste  na obrigação do construtor em sanar vícios construtivos, decorrentes de falhas no método de execução ou de projeto e aqueles relacionados aos produtos aplicados, enquanto as atividades de manutenção são inerentes ao usuário ou ao proprietário, que consiste em atender às recomendações do manual de operação e utilização, no que se refere ao uso correto e aplicação das medidas de conservação do bem. Para melhor entender o que difere um do outro temos sugerido a adoção do princípio dos "3 P" que Punem e dos "3 M" que Mudam, que consiste em diferenciar as patologias endógenas, inerentes à construção, portanto relacionadas à ação do construtor, que compreendem Projetos, Produtos e Produção, enquanto as patologias exógenas fogem ao seu controle e consequentemente elidem sua responsabilidade sobre o defeito, que se relacionam à ausência de Manutenção, Mau uso e ao Meio externo. Dada a natureza técnica da matéria, para a análise das patologias e consequente classificação dos vícios, que fundamentará a futura atribuição de responsabilidade pelos julgadores, impera no processo judicial a primazia da perícia técnica de engenharia, que é uma atividade devolvida por profissionais especializados, com grande desenvolvimento no país e que se encontra devidamente positivada no nosso ordenamento jurídico, especialmente, no diploma processual civil. Ao promover a reforma do CPC, foram definidas obrigações essenciais para a condução da prova pericial, inclusive de natureza formal, em que se destaca a norma contida no art. 473, na qual o legislador adentrou no conteúdo do laudo pericial, trazendo requisitos bem delineados referentes à sua elaboração, determinando, dentre outros, que o trabalho do perito contenha a análise técnica ou científica, resposta conclusiva aos quesitos, fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, vedação de emitir opiniões pessoais, mas, principalmente, a indicação do método utilizado, demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da respectiva área do conhecimento. Dessa forma, não obstante as prescrições anteriores serem relevantes em sua totalidade, nos parece que a última delas merece maior atenção, uma vez que esta determinação se relaciona diretamente com o emprego das normas técnicas existentes, sendo que no caso de perícias que envolvam construções, elas devem ser fundamentadas naquelas originárias da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, que congrega um acervo abrangente, representando o estado da arte, fruto do consenso do meio técnico sobre determinado tema. Embora exista a correta percepção que norma técnica não é lei, elas podem estar vinculadas às leis, como no caso das incorporações (lei 4.591/64), acessibilidade (lei 10.098/09), obras públicas (lei 4.150/62) e licitações (lei 14.133/21), e ainda no CDC, que considera prática abusiva colocar produtos no mercado em desacordo com as normas oficiais, e na sua ausência, com as normas da ABNT, além de existirem diversas decisões que condenam a inobservância às normas técnicas, formando jurisprudência sobre o assunto. Dessa forma, a elaboração de trabalhos periciais no campo dos vícios construtivos deve se alicerçar primeiramente nestes instrumentos normativos, seguindo as principais normas regulamentadoras, que são a NBR-13.752/96 (perícias de engenharia na construção civil), NBR-15.575/13 (edificações habitacionais - desempenho), NBR-5.671/90 (participação dos  intervenientes em serviços e obras de engenharia e arquitetura), NBR-14.037/14 (diretrizes para elaboração de manuais de uso, operação e manutenção das edificações - requisitos para elaboração e apresentação dos conteúdos), NBR-5.674/12 (manutenção de edificações - requisitos para o sistema de gestão de manutenção), NBR-16.747/20 (inspeção predial - diretrizes, conceitos, terminologia e procedimento) e NBR-17.170/22 (edificações -garantias - prazos recomendados e diretrizes). Assim, ao elaborar seu laudo, o perito deverá observar questões fundamentais, que garantam a higidez do trabalho pericial, compreendendo a observância dos registros documentais, tais como projetos, memoriais, checklist de entrega, manual de uso e histórico de assistência técnica, elaboração das respostas aos  quesitos, direcionadas pela certeza da pergunta, adoção das técnicas de vistoria de causalidade, emprego dos procedimentos preconizados pelos regramentos normativos da ABNT ou instituições de reconhecida idoneidade, tais como o IBAPE, adoção da metodologia investigativa, com raciocínio lógico e definição do vínculo fático (nexo de causalidade), cuja conclusão deverá conter fundamentação técnica e exatidão. A perícia não pode se limitar à confecção de um laudo de constatação, simplesmente retratando eventuais defeitos na construção, como muito se tem visto nos casos examinados, mas deve se constituir na elaboração de um laudo de causalidade, contendo a análise do vínculo do eventual defeito constatado, identificando a origem técnica do problema, permitindo a sua correta classificação, sem deixar de ponderar eventual concomitância de causas, seja quanto a origem do problema, seja para sopesar a contribuição de cada parte no agravamento do defeito, conforme previsto na nova edição da NBR-13.752.  Nesse sentido, a recomendação 16 do CJF, no bojo da adoção de fluxo processual e a padronização dos quesitos para a realização da prova pericial, para as ações judiciais em que se discutem vícios construtivos em imóveis do programa Minha Casa Minha Vida Faixa I, já discrimina requisitos específicos a serem observados pelo perito na elaboração do laudo pericial, consagrando conceitos e procedimentos, tais como: Análise da construção de acordo com o projeto e memorias descritivos aprovados; Confirmação efetiva da existência dos problemas reclamados na inicial, com a devida comprovação fotográfica; Cotejo dos problemas encontrados com os requisitos definidos pelas normas técnicas da ABNT, com especificação dos prazos de garantia dos respectivos itens; Análise se foram realizadas manutenções rotineiras e periódicas no imóvel e áreas de uso comum, de modo a inibir ou minorar os danos decorrentes das patologias identificadas no imóvel; Orçamentação dos reparos para corrigir eventuais vícios construtivos, especificando as quantidades dos serviços a serem executados (estimar o custo de forma discriminada item por item) com base na SINAPI - Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil. Assim, verifica-se claramente a importância do entrelaçamento entre a perícia e as normas técnicas para o deslinde das reclamações referentes ao que genericamente se chama de vício construtivo, cuja exata definição quanto a sua origem e natureza decorre da elaboração de um cuidadoso laudo pericial, da lavra de um profissional especializado, que se utilize de instrumentos técnicos de reconhecida capacidade, resultando na correta definição do nexo de causalidade entre as responsabilidades do construtor/incorporador e aquelas inerentes ao proprietário/usuário do imóvel.
Diante da atual polêmica envolvendo a tramitação da PEC 3/2022 -equivocadamente chamada de "PEC das Praias -, com inúmeros vídeos circulando nas mídias sociais, abaixo-assinados e até troca de farpas entre famosos sobre o tema, torna-se mais do que necessária uma explicação técnica sobre o objeto do que está sendo proposto e as consequências da sua aprovação no Congresso Nacional.  Apenas para fins de contextualização, toda proposta de emenda à constituição (PEC), como a própria nomenclatura diz, tem por objeto alterar algum dispositivo da nossa Constituição Federal de 1988. Trata-se de um dos processos legislativos mais complexos, com tramitação nas duas casas legislativas com amplos debates, realização de audiências públicas e quórum elevado de aprovação. E não poderia ser diferente, pois a aprovação de uma PEC modifica o texto da carta magna, a nossa lei suprema que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro.  Logo, para se emitir qualquer opinião sobre a PEC 3/2022, é imprescindível entender qual é verdadeiramente o seu objeto.  De acordo com o texto disponível no endereço eletrônico do Senado Federal1, a proposta de alteração ao texto constitucional prevê a exclusão de dois dispositivos constitucionais: primeiramente o inciso VII do Artigo 20, bem como o parágrafo terceiro do Artigo 49 das Disposições Constitucionais Transitórias. Ambos os dispositivos tratam, exclusivamente, dos terrenos de marinha.  Terrenos de marinha de forma alguma se confundem com as praias. Também não há qualquer relação com a Marinha do Brasil, instituição das Forças Armadas Brasileira. As praias, diferentemente dos terrenos de marinha, são classificadas como bens de uso comum, tais como as praças e ruas e se destinam ao uso de todas as pessoas, sem distinção ou exclusividade, pertencentes, portanto, à coletividade, não sendo possível a sua apropriação individual.  Os terrenos de marinha, verdadeiro e único objeto da PEC nº 3/2022, têm sua origem em legislação específica que remonta à década de 40, promulgada, portanto, há quase 80 anos.  Nos termos do Artigo 2º do Decreto-Lei 9.760/46, são considerados terrenos de marinha toda faixa de terra em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés ou os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.  O tema é de difícil compreensão, até mesmo para os funcionários públicos ou operadores de direito que lidam com a matéria. O procedimento de demarcação dessas áreas é supercomplexo, custoso para os cofres públicos, perdura por décadas e, na grande maioria das vezes, antes mesmo de sua conclusão, é contestado ou suspenso judicialmente.  E não poderia ser diferente, afinal de contas, "preamar" é termo derivado do castelhano "pleamar", que significa pleno mar ou maré cheia, ou seja, o auge da maré cheia. Assim, a tal linha que serve de ponto de partida para a demarcação do que é ou não terreno de marinha deve ser (ou deveria ser) traçada a partir da média dos auges das marés cheias do ano de 1831!  É isso mesmo. Os técnicos da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) - órgão federal conhecido de muitos brasileiros que residem em cidades litorâneas - precisam realizar inúmeros estudos por meio de cálculos regressivos das tabelas da maré, antigas plantas cartográficas ou cartas náuticas, fotos aéreas, análise vegetativa etc. para se chegar a um ponto de partida de medição.  Logicamente, diante dos inúmeros desafios, grande parte da costa brasileira e quase a totalidade das margens dos rios e lagoas federais ainda não possuem as áreas de terrenos de marinha demarcadas.  Como consequência dessa falta de conclusão do complexo procedimento demarcatório dos terrenos de marinha, qualquer cidadão que porventura esteja ocupando uma área considerada como tal, ainda que a linha não esteja demarcada, pode vir a ser surpreendido com uma notificação da SPU informando que a propriedade daquele terreno é da União, independentemente de possuir título aquisitivo registrado no Cartório de Registro de Imóveis ou mesmo provar estar ocupando aquela área há décadas. Inquestionável insegurança jurídica que muitos brasileiros estão sujeitos atualmente.  Mas não é só. Todos os ocupantes de terrenos de marinha, mesmo tendo quitado integralmente o preço de compra de seu imóvel, devem pagar uma prestação pecuniária anual à União pelo uso do terreno de marinha. Se o regime for de ocupação, essa taxa é de 2% (taxa de ocupação) sobre o valor do domínio pleno do terreno atribuído pela própria União (excluídas as benfeitorias). Se o regime for o de aforamento, essa taxa cai para 0,6% do valor do domínio pleno do terreno (o foro).  Além da taxa de ocupação ou do foro, conforme o regime aplicável, sobre qualquer transação onerosa envolvendo áreas situadas em terreno de marinha, é devida à União a quantia equivalente à 5% do valor de avaliação do bem (o laudêmio).  Outro dado importante é que essas taxas patrimoniais não são classificadas como tributos e, portanto, são pagas aos cofres públicos sem qualquer tipo de contrapartida pelo Estado.  Portanto, os terrenos de marinha causam inúmeros transtornos aos cidadãos brasileiros. O objetivo da PEC nº 3/2022 é justamente acabar com o terreno de marinha e, consequentemente, com o custoso e complexo procedimento demarcatório envolvido, bem como conferir maior segurança jurídica aos proprietários de imóveis situados no litoral.  Diferentemente do que se está sendo propagado, a PEC nº 3/2022 não altera em nada o livre e permanente acesso, fiscalização ou uso das praias por qualquer cidadão, direitos esses que permanecem garantidos pela própria Constituição Federal e, mais precisamente, pela Lei Federal nº 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.  Portanto, mesmo com a aprovação da PEC nº 3/2022, as praias - tal como os rios, o mar territorial, as ilhas, os recursos naturais, dentre outros - permanecem como bens da União, na forma do Artigo 20 da Constituição Federal, assim como permanecem protegidas pelas legislações específicas as áreas de proteção ambiental ou de segurança nacional. __________ 1 Disponível aqui.
 Nos últimos dias, sofremos a maior tragédia ambiental vivenciada pela população do Estado do Rio Grande do Sul, com mais de 610 mil desabrigados e mais de 140 mortes já registradas. Porto Alegre, por exemplo, já havia vivido situação similar, no ano de 1941, quando o nível do Rio Guaíba atingiu 4,76m. Desta vez chegou a 5,33m. Não há dúvidas de que a dor vivida pelos gaúchos é imensurável e que será necessário longo tempo para uma reconstrução dos danos causados pela inundação. Em decorrência dessa catástrofe, alguns temas jurídicos passaram a estar no holofote, entre eles a locação de imóvel urbano. Se retornarmos ao ano de 2020, no momento de pandemia da Covid-19, os contratos locatícios também foram objeto de discussão. Na época, muito se debateu sobre a possibilidade de alteração do índice de correção IGP-M pelo IPCA, alegando-se onerosidade excessiva. André Abelha, em artigo publicado neste mesmo periódico1, teceu comentários importantes, distinguindo os impactos jurídicos sobre as obrigações e responsabilidade dos contratantes, bem como a revisão e resolução dos contratos: impossibilidade permanente, frustração do fim do contrato, impossibilidade temporária, onerosidade excessiva e empobrecimento do devedor. Cada categoria com suas regras e efeitos.  Agora, a partir da calamidade vivida pelo Estado do Rio Grande do Sul, a relevância e necessidade de debates envolvendo os contratos de locação, novamente, se faz necessário. A problemática a ser enfrentada no presente ensaio é clara: de quem é a responsabilidade de reparar os danos causados ao imóvel locado? Locador ou locatário? O locatário tem direito a resolver o contrato sem o pagamento da multa pela entrega antecipada? Por fim, pode o locatário exigir do locador indenização pelos danos sofridos? Tais questões merecem reflexão, e este ensaio não tem a pretensão de esgotar o debate ou decretar uma solução estanque, e sim fomentar o debate e apresentar as ponderações do autor. Pois bem. Afinal, "em casa que falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão", este o dito popular que motiva esperar-se ocorra um sensível volume de demandas acerca da responsabilidade de parte a parte, diante da devastação experimentada no Rio Grande do Sul. Seria, locador ou locatário, demandado? O sendo, a lição veio ainda de Clovis Bevilaqua e repele quaisquer acréscimos, "Ao devedor incumbe provar o caso fortuito ou força maior que alega. Não lhe aproveita a prova do fato, se teve culpa na sua realização. O incêndio, por exemplo, é um fato que poderá ser invocado como determinante da impossibilidade, em que se acha o devedor de cumprir a sua obrigação. Mas, bem se compreende, quando quem o invoca não lhe deu causa, nem concorreu para aumentar-lhe os efeitos. Também lhe não aproveita a prova do fato, se dele não resulta a impossibilidade da prestação."2          O que leva à indagação sobre a ocorrência de "caso fortuito" ou "força maior", voltando-se nesse passo ao mesmo Clovis, que parece tão esquecido pela literatura recente, para quem: "Conceitualmente o caso fortuito e a força maior se distinguem. O primeiro, segundo a definição de Huc, é "o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes". A segunda é "o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer".3 Nada a destoar conceitualmente da previsão inserta no art. 393, do Código Civil vigente, mas a exigir, ainda, alguma discussão, diante da redação legal: (i) qual o elastério da previsão de "se expressamente não se houver e por ele responsabilizado"? (ii) aplicar-se-ia em todos os casos a premissa de que se tem presente um fato "cujos efeitos não eram possível evitar ou impedir"? Os contratos existem porque nenhum homem é autossuficiente. É absolutamente inviável que cada pessoa produza tudo o que é necessário para a sua sobrevivência4. O principal conceito econômico do contrato é justamente o de ser uma ferramenta que ajuda as partes a maximizar o seu bem-estar5. Enzo Roppo, por sua vez, disserta que o tipo contratual estipulado pelas partes corresponde a um gênero de operação econômica, sendo a locação a aquisição da disponibilidade material de uma coisa, por um dado tempo, contra o pagamento periódico de uma renda6, exatamente como dispõe o art. 565, do Código Civil. Os contratos de locação são consensuais, contínuos (de trato sucessivo), bilaterais, onerosos e solenes. Dessas características, a bilateralidade, a continuidade e a onerosidade são de sua essência7. Em nosso ordenamento jurídico, a Lei de Locações (8.245/91) legisla, justamente, sobre os direitos, deveres e obrigações das partes envolvidas nos contratos de locação de imóvel urbano. As obrigações principais do locatário e do locador estão previstas nos artigos 22 a 26 da lei. Dispõe o art. 23, inciso V, que é responsabilidade de locatário reparar os danos causados ao imóvel por ele, seus dependentes, familiares, visitantes ou prepostos. De outro lado, o art. 22, inciso III, da mesma lei, impõe ao locador manter a forma e o destino do imóvel durante a locação. O Código Civil, por sua vez, em seu art. 567, aplicável às locações em geral, e subsidiariamente às reguladas pela lei especial, prevê a possibilidade de o locatário requerer a redução do aluguel8 ou a resolução do contrato, caso o bem não sirva mais para a finalidade a que se destinava. Esse foi, justamente, o fundamento utilizado pelo magistrado em caso analisado no TJ/RJ, ao possibilitar a resolução do contrato de locação sem qualquer ônus ao locatário em decorrência de alagamento ocasionado pela enchente9 Aqui, trata-se de causa para a revisão ou resolução do contrato. Em outro caso, agora analisado pela Terceira Turma do STJ10, foi apreciada situação em que o imóvel objeto da locação sofreu incêndio de grande monta. A controvérsia se deu para definir se os aluguéis devidos o seriam até a data do incêndio ou até a data da efetiva entrega das chaves. O voto preponderante fez distinção relevante sobre deterioração e perecimento (entendendo que, no caso analisado pela Corte, haveria situação clara de perecimento). Dessa forma, sendo caso de perecimento do bem alugado, implicaria "a automática extinção do contrato de locação e, por conseguinte, impede a cobrança de aluguéis", com a determinação de que o aluguel só seria devido até o momento do incêndio e não até o momento da entrega das chaves. No tocante à responsabilidade, e o nexo de causalidade essencial à sua caracterização, vem a lume o art. 393 do Código Civil, pelo qual o devedor11 não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Isto significa ser possível, em contratos paritários12, alocar o risco para o devedor, que ficará, neste caso, obrigado a indenizar o credor da obrigação pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior. Ao julgar caso impactado pela pandemia de Covid-19, o TJDFT decidiu que, sendo o prejuízo "decorrente de caso fortuito ou força maior, o locador assumirá, em regra, os prejuízos, conforme o art. 393, caput, do CC/2002, haja vista a aplicação do brocardo res perit domino (a coisa perece para o dono)"13. Somando-se a tal fundamento, importante o ensinamento trazido por André Abelha em seu artigo anteriormente mencionado, em que corrobora essa conclusão ao mencionar o que dispõe o art. 248 do mesmo Código Civil. Ou seja, há a possibilidade de que, em contrato paritário, seja modificada a regra geral prevista no referido art. 393 do Código Civil, com a possibilidade de o locador exigir do locatário os prejuízos decorrentes das enchentes, considerando que estes podem sim ser considerados como caso fortuito ou força maior. Logo, salvo previsão contratual diversa, insista-se, em relação paritária, são de responsabilidade do locador os prejuízos/danos que acometeram o imóvel atingido pelas enchentes, bem como a impossibilidade de aplicação da multa contratual em desfavor do locatário no caso de entrega do imóvel antes do final do prazo contratual. Pondere-se: no âmbito privado, até que ponto teriam os contratantes assumido os riscos relacionados com específica locação? Por evidente não se cogita aqui da imensa quantidade de brasileiros desvalidos economicamente, aos quais restou residir em favelas ou ainda, denominação tristemente exata, em "alagados". Mas, existem os que construíram em locais alagadiços ou geologicamente precários; cuidaram pouco das obras de contenção; fizeram-se cegos a evidências até entranhadas na sabedoria popular. Uns construíram e contrataram na qualidade de locadores, outros, de locatários. Sabiam o que faziam, sabiam do objeto do contrato, se nada expressaram no instrumento, por certo a ciência guiou ou esteve presente na celebração. Não parece haver, então, campo para imputações de responsabilidade de parte a parte, excepcionadas situações concretas, bem provadas.    E, certamente, por fim serão indagadas as responsabilidades. Vem a pelo, a excludente do caso fortuito ou da forca maior14 mas a demonstração das razoes e origens do dano, será imprescindível15. Feitas essas considerações, resta responder o último questionamento: o locatário poderia exigir do locador indenização pelos danos sofridos? Em regra, não. Se ninguém responde por um resultado a que não deu causa16, ganham relevo as causas de exclusão de nexo causal17, também denominadas de excludentes de responsabilidade18. A única possibilidade deferida ao suposto ofensor para se exonerar da obrigação de indenizar será a demonstração de que um fato externo é a causa do evento danoso, como nos casos de acontecimento de caso fortuito ou força maior. O Enunciado n. 443, do Conselho de Justiça Federal, dispôs sobre o limite de aplicação do caso fortuito e força maior, determinando que só serão considerados como excludentes de responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida. Sendo assim, no caso ora analisado, respeitando-se sempre posições diversas, entende-se que a calamidade acometida à boa parte do Estado do Rio Grande do Sul seria suficiente para romper com o nexo causal das obrigações contraídas pelas partes no contrato de locação. Dito de forma diversa, não haveria possibilidade de o locatário impedir a ocorrência da enchente que acometera o imóvel, exonerando-o de qualquer responsabilidade sobre os danos ocasionados ao bem. Entretanto, no que diz com a possibilidade de "evitar ou impedir" os efeitos das enchentes, surgem, de seu turno, mais inferências. Não é a intenção dos autores adentrar na presente temática, mas apenas apresentar ao leitor uma outra faceta que, invariavelmente, surgirá e deverá ser analisada com a atenção e ponderação necessárias. Para isso, será necessário iniciar um novo debate, sobre se teriam os sucessivos gestores públicos (como, por igual, as casas legislativas), na medida das respectivas responsabilidades, contribuído para os acontecimentos.  Se esse enfrentamento - inclusive em situação de enchentes - não é novo nos Tribunais19, quiçá as soluções, graças aos extensos e profundos estudos técnicos já realizados e disponíveis, tendam a ser diferentemente novas, propondo novas alternativas. Tenha-se presente, de resto, a responsabilidade civil do Estado no que diz com os atos de seus agentes (art. 43, do Código Civil), que é objetiva (isto é, independe da prova de culpa, esta indagada no eventual regresso ante os agentes). Anote-se, aos filiados à corrente doutrinária que, para responsabilizar por omissão (situação conhecida como "faute de service"), persegue a prova de dolo ou culpa, na situação de hoje tal demonstração deverá ser realizada e não poderá, jamais, ser feita imputação precipitada.  Ao final de todo o caos e da tragédia vividos pelo povo e pelo Estado do Rio Grande do Sul, faz-se votos de dias melhores e com a certeza de que todos se reerguerão ainda mais fortes. Como o próprio hino rio-grandense menciona: "Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra (...)". __________ 1 Disponível aqui.  2 BEVILAQUA, Clóvis: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clóvis Bevilaqua. 2ª tiragem: edição histórica. Ed. Rio. 1976, p.174. 3 BEVILAQUA, Clovis: ob. Cit. P. 173 4 TIMM, Luciano Benetti; GUARISSE, João Francisco Menegol. Análise Econômica dos Contratos. In: Direito e economia no Brasil: estudos sobre a análise econômica do direito. 3 ed. Indaiatuba/SP: Editora Foco, 2019, p. 159. 5 ZAMIR, Eyal; TEICHMAN, Doron. Behavioral law and economics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 238. 6 ROPPO, Enzo. O Contrato. Almedina, 2009, p. 133. 7 BUSHATSKY, Jaques. Locação Residencial de Imóveis Urbanos. In: Manual de contratos imobiliários / coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 259. 8 A propósito, o disposto no art. 26, da Lei das Locacões (desconto proporcional no aluguel se as obras durarem mais de dez dias), o que não elimina a possibilidade da rescisão, até por imprestabilidade do bem locado. 9 APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL. FALTA DE CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE. ENTREGA DAS CHAVES SEM A QUITAÇÃO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO DO EMBARGANTE, COM PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA, PARA A CASSAÇÃO DA SENTENÇA. NO MÉRITO, PEDE REFORMA DA SENTENÇA COM A PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. 1. Afastamento da preliminar de cerceamento de defesa, diante da expressa manifestação da parte no sentido de que não tinha outas provas a serem produzidas, instada que foi à especificação de provas. 2. Desocupação do imóvel e simultânea devolução das chaves em virtude da superveniência de falta de condição de utilização do imóvel, em virtude de danos causados por alagamento decorrente de enchente. Fatos não impugnados especificamente e oportunamente. Ônus da impugnação específica desatendido. Princípio da presunção da veracidade dos fatos. Extinção do contrato na forma do artigo 567 do Código Civil.  3. Extinção da execução que se impõe. 4. Conhecimento e provimento do apelo. (0058004-07.2014.8.19.0205 - APELAÇÃO. Des(a). LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA MARQUES - Julgamento: 26/09/2018 - VIGESIMA CAMARA DE DIREITO PRIVADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO (ANTIGA 11ª CÂMARA CÍVEL). 10 DIREITO CIVIL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL. PERECIMENTO DO BEM EM INCÊNDIO. IRRESIGNAÇÃO SUBMETIDA AO NCPC. ENTREGA DAS CHAVES EM MOMENTO POSTERIOR. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE ALUGUÉIS NO PERÍODO CORRESPONDENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Aplicabilidade do NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2. Discute-se nos autos a exigibilidade dos aluguéis no período compreendido entre o incêndio que destruiu o imóvel locado e a efetiva entrega das chaves pelo locatário. 3. A locação consiste na cessão do uso ou gozo da coisa em troca de uma retribuição pecuniária, isto é, tem por objeto poderes ou faculdades inerentes à propriedade. Assim, extinta a propriedade pelo perecimento do bem, também se extingue, a partir desse momento, a possibilidade de usar, fruir e gozar desse mesmo bem, o que inviabiliza, por conseguinte, a manutenção do contrato de locação. 4. O mutualismo que está na base dessa relação jurídica pressupõe, necessariamente, a existência de prestações e contraprestações recíprocas, sendo certo que a quebra desse sinalagma pode configurar enriquecimento sem causa vedado pelo ordenamento pátrio. 5. Recurso especial provido. (REsp n. 1.707.405/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 7/5/2019, DJe de 10/6/2019.). 11 Lembre-se que locador e locatário são devedores das suas respectivas obrigações, havendo uma relação mútua de crédito e débito, decorrente da bilateralidade do contrato. 12 Sublinhe-se que em muitos casos essa alocação é vedada pelo art. 45 da Lei de Locações, que determina serem "nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei". 13 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. TRAMITAÇÃO PRIORITÁRIA. PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL. RECURSO DE APELAÇÃO. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PROVA TESTEMUNHAL. REJEIÇÃO. RÉU REVEL. CULPA EXCLUSIVA DO RÉU. NÃO COMPROVADA. DANOS MATERIAIS EM RAZÃO DE CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. ALAGAMENTO DO IMÓVEL EM RAZÃO DE CHUVAS. TELHADO. DANO MATERIAL NÃO SE PRESUME. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 944 DO CC. IMPOSSIBILIDADE DE CULMINAÇÃO DE MULTA. APELO IMPROVIDO. 1. Apelação interposta contra sentença que julgou parcialmente os pedidos iniciais para: a) decretar a rescisão contratual do vínculo de locação entre as partes, por fato não atribuível ao locatário, no entanto, sem cominação de multa; b) condenar os réus a devolverem aos autores a caução prestada no valor R$ 750,00. 1.1. Pretensão dos autores de cassação da sentença. Levantam a preliminar de cerceamento de defesa, em face da negativa de produção de prova testemunhal. No mérito, requer o reconhecimento da culpa exclusiva dos réus, bem como da condenação ao pagamento dos danos materiais e morais descritos na petição inicial. 2. Da preliminar de cerceamento de defesa. Da prova testemunhal. 2.1. Estando a matéria fática suficientemente produzida para amparar a decisão final, é desnecessária a produção de prova oral sob pena de violação dos princípios da duração razoável do processo, economia e celeridade processuais (artigo 355, inciso II do CPC). 2.2. Ademais, o juiz é destinatário das provas (art. 370, CPC), sendo-lhe assegurado o julgamento da lide, quando reputar desnecessárias novas provas para firmar seu convencimento. 2.3. Por fim, a prova testemunhal não seria hábil a comprovar a culpa exclusiva dos réus, porquanto sua oitiva estaria restrita a afirmar se houve ou não danos materiais em razão do evento fortuito que ocasionou a quebra dos telhados. 2.4. Preliminar rejeitada. 3. Do mérito. 3.1. O cerne da controvérsia versa em saber quem é o responsável por danos no imóvel alugado causados por eventos da natureza. 3.2. Via de regra, caso o prejuízo seja decorrente de caso fortuito ou força maior, o locador assumirá os prejuízos, conforme o art. 393, caput, do CC/2002, haja vista a aplicação do brocardo res perit domino (a coisa perece para o dono). 3.4. Assim, resumidamente, pela legislação, a responsabilidade por danos naturais é do proprietário do imóvel, exceto se o contrato assinado pelas partes expressar o oposto. 3.5. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves: "As obrigações do locador, especificadas no art. 566 do Código Civil, são de três espécies e consistem em: "(...) Compete ao locador realizar os reparos necessários para que a coisa seja mantida em condições de uso, salvo convenção em contrário Se, por exemplo, em virtude de fortes chuvas, a casa alugada é destelhada ou o telhado começa a apresentar inúmeros vazamentos, cabe ao locador promover as devidas reparações ou obras, para possibilitar ao inquilino a regular utilização do imóvel." (GONÇALVES, Carlos R., 2012, p. 314). . 3.7. Assim, os reparos devem recair aos inquilinos, no caso, os autores, não havendo que se falar em responsabilidade do locador, em obediência ao princípio do pacta sunt servanda, força obrigatória dos contratos. 4. Do dano material. 4.1. A despeito do fato de que o prejuízo deva recair ao locador em face de eventos da natureza, ainda assim os autores não comprovaram, por prova documental (notas fiscais), a extensão do dano suportado. 4.2. Pelas provas colacionadas aos autos (fotos e vídeos), não há como mensurar valores exatos e a extensão dos danos para eventual ressarcimento. 4.3. Cumpre mencionar que a indenização por danos materiais não pode ser presumida, mas deve ser demonstrada por prova documental, no caso, as notas fiscais dos bens danificados. Inteligência do artigo 944 do Código Civil: Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.4.4. Jurisprudência: "(...) 5. O dano material não se presume, dependendo de prova robusta do prejuízo patrimonial que foi efetivamente suportado para que ele venha a ser indenizado." (20160110943220, Relatora Desembargadora Fátima Rafael, DJE: 10/10/2018). 5. Para que haja incidência da multa prevista na cláusula penal é necessário que haja voluntariedade para a resolução da relação material firmada entre os sujeitos, o que não se verifica no caso, haja vista que a extinção da relação se deu em face de caso fortuito ou força maior. 5.1. Sentença mantida. 6. Apelo improvido. (TJDFT. Apelação Cível. Acórdão 1280555, 07026581420198070003, Relator: JOÃO EGMONT, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 2/9/2020, publicado no DJE: 15/9/2020. Pág.:  Sem Página Cadastrada.) 14 "APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENCHENTE. Enchente que atingiu imóvel dos autores. Fato incontroverso. Caso fortuito e força maior. Local que não tem histórico de alagamentos. Chuva intensa que atingiu a região provocando estragos. Projeto de drenagem de águas implantado pelo loteador era, conforme afirmado pelo perito judicial suficiente para drenar as águas. Não verificada responsabilidade dos requeridos. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - APL: 10002766320168260257 SP 1000276-63.2016.8.26.0257, Relator: Souza Nery, Data de Julgamento: 12/02/2019, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 12/02/2019)" . 15 "LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL - Ação indenizatória desacolhida - Imóvel locado que foi invadido por águas pluviais, ocasionando danos no mobiliário da inquilina - Evidência documental de que tanto a canalização ali existente, como o entupimento da fossa séptica, contribuíram para os danos ocasionados - Obrigação do locador de garantir ao locatário o imóvel locado em condições de servir ao uso a que se destina, respondendo por vícios nele existentes, segundo o artigo 22, incisos I, II e IV, da Lei nº 8.245/91- Ônus probatório sobre a ocorrência de caso fortuito ou força maior que era do locador, ante o disposto no artigo 373, II, do CPC - Ação indenizatória acolhida - Recurso parcialmente provido. (TJ-SP - AC: 10154416620218260002 SP 1015441-66.2021.8.26.0002, Relator: Caio Marcelo Mendes de Oliveira, Data de Julgamento: 13/12/2022, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/12/2022)". 16 Considerando que a responsabilidade civil somente se concretizará se demonstrada uma relação de causalidade entre o comportamento do agende e o dano. 17 Conceituada por Caitlin Mulholland como a "ligação jurídica realizada entre a conduta ou atividade antecedente e o dano, para fins de imputação da obrigação ressarcitória" (MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 57. 18 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 16ed. Atlas, 2023, p. 86. 19 RESPONSABILIDADE CIVIL. MUNICÍPIO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENXURRADA. MORTE DE DUAS PESSOAS. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. Hipótese na qual as autoras buscam a reparação por danos morais em virtude de uma enxurrada que atingiu o Município de São Lourenço do Sul, invadindo a residência das autoras, vitimando Zilah Mary de Souza Martins (mãe da autora Marise e avó das demais) e Glória Regina de Souza Martins (irmã da autora Marise e tia das autoras Camila e Tânia). RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. CASO FORTUITO. EXCLUDENTE COMPROVADA. Consoante reiteradamente tem-se decidido, responde o Município pelos danos resultantes da falha no serviço público, salvo prova de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Na espécie, a enxurrada que atingiu o Município de São Lourenço, invadindo a residência das autoras, matando duas pessoas, trata-se de caso fortuito, inexistindo, pois, o dever de indenizar pelo Município. RESPONSABILIDADE DA CEEE-D. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO NÃO DEMONSTRADA.É evidente que a companhia empreendeu todos os esforços possíveis para que a suspensão do serviço de energia ocorresse da forma mais célere possível. Ocorre que a excepcionalidade do evento também impediu que sua atuação fosse mais eficaz. Calha referir que a própria sede da CEEE-D foi amplamente atingida pela enchente, o que certamente dificultou o serviço. Sentença de improcedência mantida. APELAÇÃO CÍVEL DESPROVIDA. (TJ-RS - AC: 70059387555 RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Data de Julgamento: 30/07/2015, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: 18/08/2015).
A preocupação com a responsabilização ambiental de corporações e dirigentes tem aumentado a exigência e a busca por uma análise mais criteriosa dos aspectos ambientais de ativos em ambiente de negócios. Por óbvio, essa preocupação também se estende às negociações imobiliárias.  Em experiências passadas, as consequências da ausência da devida diligência foram sentidas seriamente por todas as partes envolvidas em transações comerciais. Para o empreendedor, o resultado eram gastos inesperados para resolver problemas ambientais, processos judiciais demorados e custosos, além  de ter que arcar com a desvalorização ou até mesmo a interdição de empreendimentos. Nessas situações, investidores também saíam prejudicados, uma vez que a falta de análise prévia desses riscos resultavam em  perdas financeiras significativas, bem como em complicações na gestão de empreendimentos. Sem falar no dano reputacional.  Esses são alguns dos motivos que levaram a inserção da parte socioambiental em due diligences tradicionais a ser prática corriqueira. Essa ferramenta, de cunho preventivo, tornou-se um grande aliado. Uma etapa fundamental e necessária, antecessora a qualquer tipo de negociação. O resultado buscado é uma visão ampla e precisa da situação fática atual dos aspectos socioambientais dos ativos sendo transacionados, e a responsabilização de cada envolvido. O resultado nem sempre é "apenas"para um go ou no go, mas sim nos termos das transações e nos valores a serem praticados.  No caso do segmento imobiliário, a diligência pode ser feita para qualquer operação (Compra e Venda, Arrendamento, Construção, Financiamento e etc). Na prática, o trabalho é dividido em 3 (três) etapas: Diagnóstico, Análise de Risco e Plano de Ação.  O produto final é um relatório com a descrição detalhada de cada uma dessas etapas. A conclusão é sintetizada de maneira objetiva em um resumo executivo, com destaque especial às contingências a serem realizadas considerando as expectativas do interessado.  Na aquisição de imóveis, por exemplo, na etapa de diagnóstico identificam-se as restrições (áreas de preservação permanente, reserva legal, unidades de conservação e etc), passivos ambientais (ações judiciais, danos ambientais e etc), bem como a conformidade legal.  Na aquisição de um empreendimento imobiliário constituído, além de incorporar as análises feitas para fins de aquisição do imóvel, tem-se ainda a verificação quanto à regularidade das licenças e autorizações ambientais emitidas, atendimento de condicionantes e programas ambientais, instrumentos urbanísticos correlatos e demais obrigações legais socioambientais.  Com o diagnóstico feito, passa-se então a avaliar os riscos de responsabilização ambiental dos interessados (Análise de riscos). Para cada fragilidade constatada, medidas de mitigação ou eliminação de cada risco são estabelecidas (Plano de Ação).  Como o propósito da due diligence ambiental é conhecer de forma prévia os riscos ambientais de um negócio, nada mais coerente do que abordarmos aqui (mesmo que de maneira superficial nesse momento) os tipos e alcance de sua materialização. Ou seja, quais as consequências práticas dos tipos de responsabilização ambiental.   Nesse sentido, primeiramente, cabe dizer que o instituto possui uma tríplice vertente - civil, administrativa e/ou criminal1. Muito embora as 3 (três) esferas de responsabilização se proponham a atingir objetivos distintos, o resultado almejado é o mesmo -  a proteção ambiental. A responsabilidade civil ambiental decorre da perpetração de um dano ambiental.  Ela é objetiva e solidária, dos responsáveis, diretos ou indiretos, pelo dano. Nessa modalidade de responsabilização, a preocupação que se tem é de quem é a obrigação de reparar o dano. Para identificá-lo, é preciso distinguir dois institutos bastante presentes nas discussões em âmbito ambiental: a responsabilidade civil - citada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) - e a obrigação "propter rem". Em síntese, para que se tenha responsabilidade civil, é preciso demonstrar a ocorrência do nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida por alguém e o dano constatado. De outro lado, a obrigação "propter rem", dever jurídico de natureza real, decorre da relação entre o atual titular do bem e a obrigação decorrente da própria existência deste último - ou seja, da coisa. Desse modo, a obrigação "propter rem" é temporária. Existe obrigação, enquanto houver relação de titularidade. Portanto, em termos práticos, a obrigação do adquirente de uma área que tenha eventual passivo não se confunde com a responsabilidade civil de quem deu causa ao dano ambiental. Ou seja, a obrigação do atual titular de um imóvel é limitada ao gerenciamento do passivo ambiental - que terá responsabilidade, assim, de, por exemplo, gerenciar e minimizar, dentro do possível, os efeitos causados pela prática danosa. Por outro lado, a responsabilidade civil em relação ao dano (obrigação de reparar, e/ou, ainda, de pagar significativas indenizações pecuniárias) é de quem deu causa ao ato lesivo ou de quem concorreu para tanto. Mas por solidária, a reperação do dano pode ser exigida de quem ocupa hoje a área. Na prática, ambos os institutos são comumente confundidos, na tentativa de aplicar a responsabilidade civil a todos os envolvidos - proprietários, adquirentes, locatários.  Cabe aos adquirentes o devido resguardo quanto à questão ambiental, procurando, desde o começo, evitar uma responsabilização indevida2.  Caso isso não seja possível, ainda há possibilidade de reaver seus direitos através de uma ação regressiva em face do antigo proprietário poluidor. Outro fato importante a se atentar é que o STF firmou a tese (Tema 999) de que a pretensão de reparação do dano ambiental é imprescritível. Em outras palavras, a responsabilização civil pelo cometimento de um dano ambiental pode ser realizada independentemente da data de ocorrência do dano. Tal indicativo deve servir como critério de classificação de risco, especialmente nos casos cuja análise de risco seja realizada referente a empreendimentos desenvolvidos em áreas contaminadas.  Vale lembrar também que, em 2018, o STF aprovou a Súmula 618, na qual o ônus da prova passou a ser do réu nas ações de degradação ambiental. Assim, nesse cenário de imprescritibilidade, devem especialmente se atentar aqueles que eventualmente cometeram danos ambientais anos atrás, pois em ações judiciais a esse respeito, quem vai ter que provar que não causou os danos serão os próprios acusados (réus).3 A responsabilidade administrativa e criminal, por sua vez, possuem aspectos fundamentais semelhantes, pois em ambos os casos necessita haver dolo (vontade do agente de cometer o dano) ou culpa do agente. Além disso, pressupõem-se a existência de uma conduta ilícita, enquadrada como infração administrativa no primeiro caso e tipificada como crime no segundo. Tal responsabilização significa a aplicação de uma punição pelo cometimento de conduta que contraria as normas vigentes. Assim, nessas duas hipóteses, os interessados poderão ser responsabilizados caso se constate a prática, pelos próprios, de uma conduta ilícita, demonstrando-se o seu dolo (vontade do agente) ou a sua culpa em tal conduta. Ainda, a Lei de Crimes Ambientais ( Lei Federal n. 9.605/98) regulamentou a imputação criminal às pessoas jurídicas. Também previu que, incidem nas penas lá previstas, o diretor, o administrador, o membro do conselho de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário que, sabendo da prática criminosa, deixa de impedi-la.  De toda forma, por se tratar de uma responsabilidade subjetiva, mesmo nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, é absolutamente imprescindível que se demonstre o vínculo da pessoa física com a conduta criminosa.5 Assim sendo, ao se conhecer a abrangência e o alcance de cada uma dessas modalidades de responsabilização ambiental, ao se categorizar os riscos a partir da relação entre a probabilidade e a severidade de sua ocorrência, considerando cada aspecto socioambiental identificado como frágil, e consequentemente as possíveis consequências de responsabilização ambiental  para os envolvidos, tem-se aí a importância da due diligence ambiental. Por todo o exposto, fica clara a necessidade de que antes de qualquer negócio imobiliário, pelo menos se avalie a questão ambiental. Não se atentar no presente a essa questão pode fazer com que ela volte, como um sério problema, no futuro. __________ 1 As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas , a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação reparar danos causados. " (art. 225, §3º,da Constituição Federal). 2 MUHAMAD, Ana Paula. Responsabilidade civil e obrigações propter rem: uma confusão que pode custar caro. Disponível aqui. Acesso em 31.08.2023. 3 No artigo "STF decidiu: dano ambiental é imprescritível. O que muda na prática?" abordamos alguns cenários e alternativas para mitigar o risco de responsabilização na esfera civil. Disponível aqui. 4 STJ, AgRg nos EDcl no RHC n. 162.662/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 2/12/2022.
É corriqueiro no contencioso imobiliário de incorporadoras a existência de ações propostas por adquirentes de unidades residenciais questionando a incidência de correção monetária nas parcelas do compromisso de compra e venda. Isso ocorre porque a compra e venda de unidades autônomas na planta é normalmente realizada com o parcelamento do preço e, na maioria dos casos (principalmente em empreendimentos populares), mediante obtenção de financiamento habitacional. Consequentemente, como o preço é pago durante o transcurso do contrato e para que não ocorra a desvalorização da moeda, incide a correção monetária, oriunda do fenômeno da inflação1. Trata-se de mecanismo econômico, a fim de repor o valor da moeda, não constituindo aumento, mas mera reposição de valor, ancorando-se, por isso, na equidade e no princípio que veda o enriquecimento sem causa, como ensina Judith Martins-Costa2. Desse modo, quando o adquirente se dirige ao estande de vendas, após concordar com o preço da unidade, ele manifesta os valores que está disposto a pagar a título de entrada e princípio de pagamento, bem como negocia as parcelas mensais ou semestrais, parcelando os valores até o momento em que a obra é entregue. Ocorre que, não obstante o parcelamento do preço da unidade, quando a obra é entregue, usualmente o contrato impõe que o adquirente quite a integralidade do saldo devedor perante o incorporador para recebimento das chaves. E é nesse momento que o financiamento habitacional se aperfeiçoa. Assim, determinada instituição financeira paga esse saldo devedor ao incorporador, tornando-se credora fiduciária da unidade como garantia ao contrato de mútuo celebrado com o adquirente3. Com efeito, o exercício realizado pelo adquirente no estande de vendas é parcelar o valor do preço das parcelas que pagará diretamente ao incorporador e o montante que será pago por meio do financiamento habitacional, simulando, também, o mútuo com possível instituição financeira (como se nota, são dois parcelamentos distintos). Essa simulação leva em consideração: a data de entrega da obra; a capacidade de obtenção de crédito do adquirente naquele momento, analisando o seu score bancário e a sua renda familiar; dentre outros fatores. No entanto, o transcurso do tempo pode frustrar o resultado de tal simulação por diversas razões. Exemplificando: o adquirente declara no estande de vendas possuir renda mensal de aproximadamente R$ 5.000,00 mensais. Contudo, quando a obra está próxima ao fim e ele reapresenta seus documentos e encontra-se em situação de desemprego, com menor capacidade para obtenção de crédito. Também é possível que a sua renda prossiga a mesma, mas alguma pendência financeira tenha reduzido o seu score de crédito, diminuindo a possibilidade de obter o mútuo bancário no valor então almejado e previsto na simulação realizada no estande de vendas. Nesse caso, em nossa opinião, não há responsabilidade da incorporadora, pois a empresa não possui ingerência no perfil financeiro do adquirente, tampouco pode influir na relação com a instituição financeira. É impossível que a incorporadora garanta que a simulação anteriormente realizada se mantenha a mesma no futuro, uma vez que, como ilustrado no exemplo acima, o adquirente poderá ter seu score de crédito e perfil alterados por uma multiplicidade de questões subjetivas e incontroláveis para o fornecedor. Sucede-se que o Poder Judiciário, em variados casos, vem imputando indevidamente esse risco à incorporadora. Em caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo4, julgou-se procedente o pedido de resolução contratual em favor da consumidora, restituindo a integralidade dos valores pagos e a comissão de corretagem, afastando, noutro turno, a indenização por danos morais arbitrada em primeiro grau. Em resumo: a consumidora propôs ação requerendo a resolução contratual e consequente restituição integral dos valores pagos à incorporadora, pois o financiamento habitacional foi aprovado pela instituição financeira em valor inferior ao que necessitava para pagamento da unidade imobiliária. Contudo, essa redução decorreu da mudança do perfil da consumidora em relação ao momento em que simulou o financiamento no estande de vendas. A consumidora, após a simulação, celebrou empréstimo consignado, modificando seu perfil e diminuindo o valor aprovado perante a instituição financeira. Mesmo assim, entendeu-se que houve descumprimento do dever de informação pelo fornecedor, resolvendo-se o contrato por suposta culpa da empresa com a determinação de devolução integral dos valores pagos pela consumidora. Por outro lado, em outro caso5, o juízo de primeiro grau rechaçou os pedidos autorais, dado que o atraso na obtenção do financiamento não poderia ser imputado à incorporadora, mas à consumidora, a qual estava com anotação negativa junto ao sistema cadastral do SERASA. Assim, os pedidos de resolução contratual e devolução integral dos valores foram julgados improcedentes, uma vez que a consumidora estava com problemas em seu cadastro financeiro, não podendo responsabilizar a fornecedora pela demora na celebração do financiamento que ocasionou a incidência de correção monetária e, consequentemente, "aumento" do preço da unidade adquirida. Por essa razão, nos instrumentos contratuais de compromisso de compra e venda é comum a inserção de cláusulas no quadro-resumo cientificando o consumidor da incidência de correção monetária na parcela reajustável do preço6, cumprindo o dever de informação oriundo do princípio da boa-fé objetiva e do Código de Defesa do Consumidor (CDC)7. As empresas tentam, desse modo, proteger-se contra essas intempéries, solicitando que o consumidor assine os instrumentos contratuais e aponha sua assinatura logo abaixo das principais cláusulas. Nesse quadro, avulta-se necessário investigar a distribuição dos riscos do negócio e densificar a posição das partes na contratação, sob pena de eximir o consumidor dos riscos que existem em todo e qualquer contrato8. Afigura-se patente essa investigação, principalmente em relação ao consumidor que realiza negócio jurídico relevante e cujo resultado da contratação pode ensejar uma série de resultados (sejam eles positivos ou negativos), não sendo adequado imputar riscos próprios do consumidor ao incorporador, o que contribui, ao fim e ao cabo, ao agigantamento do número de processos judiciais e ao uso da máquina pública para auferir vantagem indevida. Recorda-se, por oportuno, que a incorporação imobiliária9 é atividade empresarial que visa à comercialização de imóveis integrantes de conjuntos imobiliários a serem construídos, utilizando-se do contrato de compromissos de compra e venda para tanto10. O compromisso, por sua vez, não serve apenas para operar a transmissão de direito aquisitivo ao adquirente, mas também, e notadamente, para a captação de recursos para formação do capital da incorporação. Diferentemente de um compromisso de compra e venda entre particulares, quando se está diante de um compromisso de compra e venda entre o adquirente e o incorporador, que tem como obrigação a consecução de um empreendimento nos termos da Lei 4.591/1964, os consumidores são ligados por um nexo funcional comum11, um nexo objetivo, cujo escopo é o sucesso do empreendimento12. Mesmo com as vendas das unidades imobiliárias, o capital auferido parceladamente com os compromissos de compra e venda nem sempre é suficiente para consecução da obra, exigindo que o incorporador, em algumas ocasiões, vá ao mercado financeiro obter receita, oferecendo, como garantia à instituição securitizadora, a cessão fiduciária dos créditos dos compromissos e/ou à instituição financeira, o terreno em hipoteca. Nesse sentido, Melhim Chalhub aponta a importância dos valores auferidos pelo incorporador perante os adquirentes, pois, em regra, o montante das parcelas pagas durante a obra não é suficiente para custeá-la no prazo programado13. Por essa razão o incorporador já enfrenta uma variada gama de riscos14, não nos parecendo adequado onerá-lo com riscos extraordinários, como garantir o financiamento habitacional ao consumidor, sob pena de prejudicar a consecução do próprio projeto imobiliário e os demais adquirentes que participam da mesma incorporação imobiliária. É necessário, portanto, revisitar a distribuição dos riscos dentro do contrato de compromisso de compra e venda celebrado entre consumidor e fornecedor para aferir, concretamente, os riscos próprios do incorporador e os riscos próprios do adquirente. Em nossa opinião, não é correto impor riscos extraordinários ao incorporador, tal como as situações narradas acima, que são consideradas incontroláveis O risco próprio que o consumidor assume na obtenção de crédito pode ser classificado como subjetivo, pois não integra nenhum aspecto do contrato, menos ainda alguma particularidade objetiva do negócio e é inerente à própria pessoa do adquirente da unidade. Nessa toada, exemplificando, no tema da alteração superveniente das circunstâncias, a doutrina já se posicionou no sentido de rechaçar pedidos de revisão contratual fundados em particularidades subjetivas da parte, suas "condições pessoais"15, visto que não integram o negócio, tampouco sua álea. Arnoldo Medeiros da Fonseca, em clássica lição, assevera: [...] o devedor, quando contrata, assume implicitamente uma obrigação de não iludir as legítimas expectativas do credor de receber a prestação prometida. Se a assume superior às próprias forças, será culpado, e, por sua culpa, é natural que responde. [...] Nem seria justo, em relação ao credor, perante quem o devedor assumiu sem reservas a garantia de executar a obrigação, exonerar este último de responsabilidade, por suas condições pessoais, mesmo quando outro indivíduo, em análogas condições exteriores de tempo, lugar e meio, teria podido cumprir o estipulado.16 Nessa mesma linha, Catarina Monteiros Pires afirma: [...] um contraente do ramo da construção e imobiliário não pode invocar a crise econômica e financeira e retração do mercado imobiliário para se desvincular de um contrato-promessa. As alterações da taxa de juros e de esforço para pagamento do contrato prometido, o desemprego e a desvalorização da moeda resultantes da crise também não são alterações anormais.17 Em paralelo, menciona-se o instituto da impossibilidade superveniente da prestação. Acertadamente sustenta João Pedro de Oliveira de Biazi que o Direito brasileiro não tutela a impossibilidade pessoal ou subjetiva do devedor de cumprir prestação de fazer fungível, ou qualquer modalidade obrigacional, como o caso de pagamento do preço em dinheiro. Ressalvam-se os casos de impossibilidade pessoal ou subjetiva de prestação de fazer infungível, a qual se equiparará à impossibilidade objetiva18. Significa dizer que os riscos próprios do contratante no cumprimento da prestação, mesmo do adquirente em contrato subsumível ao CDC, são por ele assumidos, sob pena de imputar questões incontroláveis à parte contrária, atribuindo a ela riscos extraordinários e fora do próprio negócio. Desse modo, compete à jurisprudência melhor reflexão a respeito da atividade da incorporação imobiliária e dos riscos próprios dos adquirentes e das incorporadoras. Decisões que procurem inadvertidamente imputar riscos de uma parte à outra, apenas em razão de uma eventual vulnerabilidade de um dos contratantes, certamente acarretam profunda insegurança jurídica, além de serem questionáveis dogmaticamente. Propõe-se, por isso, que os litígios sejam analisados por meio da investigação concreta do risco de cada contratante, recordando, em arremate, a lição de Paulo Mota Pinto: "É esta mesmo uma das principais razões pelas quais se celebram contrato, correspondendo a uma função de redução, ou 'gestão', dos riscos do futuro, propiciando, assim, o necessário quadro de certeza ou segurança para a vida económica."19 __________ 1 SIMÃO, José Fernando. Art. 316. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 217. 2 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. V, t. I, p. 245-246. 3 Também é possível (em hipóteses mais excepcionais) que o próprio incorporador financie diretamente o saldo devedor com o adquirente, tornando-se credor fiduciário no contrato de mútuo. 4 TJ/SP; Apelação Cível 1006196-59.2021.8.26.0704; Relator (a): Marcia Dalla Déa Barone; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV - Butantã - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/10/2022; Data de Registro: 07/10/2022. 5 Tribunal de Justiça de São Paulo, processo nº 1001708-20.2023.8.26.0016. 6 Por exemplo: "todas as parcelas previstas neste quadro resumo, sem exceção, inclusive aquelas oriundas dos recursos do saque do FGTS e do financiamento imobiliário, serão corrigidas mensalmente, a partir da presente data (data base), até a data da expedição do Auto de Conclusão (Habite-se), pelo Índice Nacional de Custo da Construção Civil divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (INCC-DI/FGV), conforme explicitado na Cláusula 2.6 do Instrumento Particular de Compra e Venda assinado pelas partes.". 7 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;". 8 Como já notado por António Menezes Cordeiro: "contratar é perigoso e, por isso, atraente: cada parte sabe, de antemão, que o seu grande sucesso acarreta o insucesso da outra parte, e assim por diante. Defender, entre as partes, a existência de uma comunidade de interesses revela, nos contratos patrimoniais, o mais das vezes, de um jusromantismo sem correspondência nas realidades e que, como tal, deve ser abandonado, enquanto instrumento técnico-jurídico." (MENEZES CORDEIRO, António. Da alteração das circunstâncias. Estudos em memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa: [s.n], 1989, p. 319).   9 Pertinente é a explicação de Caio Mario da Silva Pereira a respeito do contexto social desse contrato: "Um indivíduo procura o proprietário de um terreno bem situado, e incute-lhe a ideia de realizar ali a edificação de um prédio coletivo, mas nenhum dos dois dispõe do numerário e nenhum deles tem possibilidade de levantar por empréstimo o capital, cada vez mais vultoso, necessário a levar a termo o empreendimento. Obtém, então, opção do proprietário, na qual se estipulam as condições em que este aliena o seu imóvel. Feito isto, vai o incorporador ao arquiteto, que lhe dá o projeto. O construtor lhe fornece o orçamento. De posse dos dados que lhe permitem calcular o aspecto econômico do negócio (participação do proprietário, custo da obra, benefício do construtor e lucro), oferece à venda as unidades. Aos candidatos à aquisição não dá um documento seu, definitivo ou provisório, mas deles recebe uma "proposta" de compra, em que vêm especificadas as condições de pagamento e outras minúcias. Somente quando já conta com o número de subscritores suficientes para suportar os encargos da obra é que o incorporador a inicia. Se dá sua execução por empreitada, contrata com o empreiteiro; se por administração, ajusta esta com o responsável técnico e contrata o calculista, os operários, o fornecimento de materiais etc. Vendidas todas as unidades, promove a regularização da transferência de domínio, reunindo em uma escritura única o vendedor e compradores que ele nunca viu, aos quais são transmitidas as respectivas quotas ideais do terreno. Normalmente, os contratos com o construtor, fornecedores, empreiteiros de serviços e empregados são feitos em nome dos adquirentes, que o incorporador é encarregado de representar. Quando o edifício está concluído, obtém o "habite-se" das autoridades municipais, acerta suas contas com cada adquirente e lhe entrega as chaves de sua unidade. Normalmente, é o incorporador que promove a lavratura da escritura de convenção do condomínio." (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 14. ed. atual. por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 246-247. E-book). Tamanha relevância dessa atividade no mercado interno brasileiro que Orlando Gomes, em seu anteprojeto de Código Civil dos anos de 1962-1963, criou dispositivos sobre a incorporação e o condomínio de edifício no Capítulo VI do Livro III (Do Direito das Coisas), tratando: "Do Condomínios nos Edifícios de Apartamentos". Inclusive, o autor ressalta que, do ponto de vista do interesse social, incluir a "Incorporação" foi a mais importante inovação do anteprojeto (GOMES, Orlando. Código civil: projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 63). 10 Conforme sustenta José Osório de Azevedo Júnior: "Talvez se pudesse até afirmar que é "o mais brasileiro" dos contratos de direito civil, não pelas suas origens, mas pela frequência de sua utilização entre nós" (AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 15). 11 CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, p. 147-183, abr.-jun. 2016. 12 Para Rodrigo Xavier Leonardo, poder-se-ia falar em uma rede contratual (XAVIER, Rodrigo Leonardo. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. Revista dos Tribunais, vol. 832, p. 100-111, fev. 2005). 13 CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, p. 147-183, abr.-jun. 2016. 14 Riscos esses bem expostos por Alexandre Junqueira Gomide, cf. GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. 15 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 128-129; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos contratos: elementos para sua construção dogmática. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 112; SIMÃO, José Fernando; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Incorporação imobiliária: resolução/revisão dos contratos de promessa de compra e venda em tempos de pandemia. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2021. v. II, p. 900-905. Nesse sentido, ao direito português: "Ressalva-se que apenas relevam para avaliação deste acréscimo de exigência circunstâncias que, de facto, tenham incidência direta sobre o equilíbrio prestacional, isto é, sobre interesses das partes integrados na base do negócio, e não também circunstâncias cujo reflexo se materialize apenas na situação pessoal ou econômica do lesado, fora do contexto estrito da relação contratual assumida." (COSTA, Mariana Fontes da. Da alteração superveniente das circunstâncias: em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais. Coimbra: Almedina, 2019. p. 459). 16 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 316. 17 PIRES, Catarina Monteiro. Limites dos esforços e dispêndios exigíveis ao devedor para cumprir. Revista da Ordem dos Advogados, ano 76, 2016. p. 131. 18 BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A impossibilidade superveniente da prestação não imputável ao devedor. Rio de Janeiro: GZ, 2021. p. 76-77. 19 MOTA PINTO, Paulo. Direito Civil: estudos. Coimbra: Gestlegal, 2018. p. 465-466.
Marco Legal das Garantias O marco legal das garantias (lei 17.711, de 30 de outubro de 2023) trouxe em seu artigo 9º nova disciplina para a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, acompanhada da revogação expressa do Capítulo III do decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966. Constitucionalidade Nos julgamentos dos Recursos Extraordinários nºs 556.520 e 627106, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou tese de repercussão geral no sentido de que "É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no decreto-lei 70/66"1. Como se verá adiante, o procedimento previsto na Lei nº 17.711, de 2023, embora traga diversas inovações nas formalidades a serem observadas, não inova substancialmente em relação ao procedimento que era previsto no agora revogado Capítulo III do Decreto-lei nº 70, de 1966, de maneira que, a manter-se a linha jurisprudencial, os mesmos fundamentos que serviram ao reconhecimento da constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial do Decreto-lei nº 70, de 1966, servem ao reconhecimento da constitucionalidade do procedimento ora examinado2. Campo de aplicação A execução extrajudicial prevista no artigo 9º da lei 14.711, de 2023, se aplica aos créditos garantidos por hipoteca, exceto às operações de financiamento da atividade agropecuária, conforme o caput e o § 13 do artigo 9º. A hipoteca é direito real de garantia previsto no inciso IX do artigo 1.225 e disciplinado, ao lado do penhor e da anticrese, nos artigos 1.419 a 1.430, além de receber disciplina própria nos artigos 1.473 a 1.505, todos do Código Civil. No regime do Decreto-lei nº 70, de 1966, a execução extrajudicial se voltava para contratos de empréstimo com garantia hipotecária, como se colhia do seu artigo 9º. Agora, não se restringe a origem do crédito garantido. Previsão contratual: requisito da execução extrajudicial Conforme o § 15 do artigo 9º da lei 14.711, de 2023, o título constitutivo da hipoteca deve conter, sem prejuízo dos requisitos de forma do art. 108 do Código Civil, ou da lei especial, como requisito de validade, expressa previsão do procedimento de execução extrajudicial previsto no artigo 9º, com menção ao teor dos §§ 1º a 10. O preceito é compreensível: embora sempre caiba ao Poder Judiciário o monopólio da última palavra, há situações em que o ordenamento jurídico permite que os particulares, por livre manifestação de vontade, aceitem que o Poder Judiciário seja afastado de proferir a primeira palavra sobre uma pretensão, e a execução extrajudicial é uma dessas situações. Estando em jogo direitos patrimoniais disponíveis, dado que o particular pode dispor do próprio direito material, com maior razão ainda ele pode dispor do direito processual à tutela do direito material. Esta disposição se revela na manifestação de vontade no sentido de que um futuro conflito de interesses em torno dos direitos criados por um negócio jurídico seja resolvido fora da esfera jurisdicional, mas sem deixar de ter em perspectiva que a tutela jurisdicional pode ser acionada em caso de abusos. Assim se dá nas situações em que os particulares ajustam a solução de conflitos de interesses pela mediação, pela conciliação e pela arbitragem (espécies da chamada autocomposição) e assim também se dá nas situações em que os particulares aceitam que a pretensão creditícia seja satisfeita pela execução extrajudicial, que se insere no espectro da autotutela. Este preceito, diga-se de passagem, não é novidade na sistemática das execuções extrajudiciais de créditos imobiliários. O artigo 63 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, já previa ser "lícito estipular em contrato" a execução extrajudicial, sendo tranquilo o entendimento de que o texto legal, mais do que uma faculdade, previa um ônus para o credor, como se colhe de julgado do Superior Tribunal de Justiça3. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 2 de janeiro de 2024. 2 Sobre o tema, para maior aprofundamento: MARTINS, Samir José Caetano. "Execuções Extrajudiciais de Créditos Imobiliários - debate sobre sua Constitucionalidade. Revista de Processo, v. 36, n. 196, p. 21-64, 2011, e, do mesmo autor, o livro Execuções extrajudiciais de créditos imobiliários. Rio de Janeiro: Espaço Jurídico, 2006, especialmente o capítulo IV (p. 59 a 108). 3 Recurso Especial nº 345.677/SP. Jairo Berezin e Condomínio de Construção do Edifício Vanessa. Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro. 2 de dezembro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 jan. 2024.
O tema da retenção de valores em contratos imobiliários, especialmente após a lei 13.786/2018, permanece em destaque, ainda que a referida legislação tenha pacificado em boa parte as soluções das ações judiciais que versam sobre o assunto. Apesar da clareza dos comandos jurídicos da lei 13.786/2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem gerando discussões ao flexibilizar cláusulas contratuais que tratam da retenção após a conclusão da construção do empreendimento com a devida averbação da construção na matrícula imobiliária. O patrimônio de afetação, dentre vários impactos para determinado empreendimento; para os adquirentes das unidades imobiliárias; bem como para o incorporador/construtor, possui uma ligação umbilical com o percentual de retenção dos valores pagos em caso de resolução de contrato, conforme previsto no §5º1 do artigo 67-A da lei 4.951/1964, inovação trazida pela lei 13.786/2018. O TJSP, em decisões recentes, sugere que a averbação da construção, por si só, seria suficiente para extinguir o patrimônio de afetação, anulando, assim, as cláusulas que preveem retenção de 50% dos valores pagos. A exemplo, destacam-se os julgados abaixo sob relatoria dos Desembargadores Sergio Alfieri e Cláudio Godoy respectivamente em que tornam nula a cláusula de retenção de 50% quando finalizada a obra. Ressalta-se que ambos os precedentes foram julgados no ano de 2023. (...). Rescisão por conveniência do adquirente. Contrato celebrado na vigência da lei 13.786/2018. Devolução das parcelas. Cabimento. Inteligência das Súmulas 1, 2 e 3/TJSP e 543/STJ. Retenção de 50% dos valores pagos ao fundamento de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A e 31-F da lei 4.591/64). Inadmissibilidade. Conquanto instituído o regime do patrimônio de afetação, a obra já foi concluída, com a instituição de condomínio e atribuição das unidades aos adquirentes, segundo a afirmação do autor que foi confirmada pelas rés (art. 374, II, CPC). Abusividade de imposição dos efeitos do instituto ao adquirente após a conclusão da obra, sob pena de se perpetuar em seu desfavor garantia patrimonial em exclusivo interesse do incorporador. Retenção de 25% do montante pago (art. 67-A, II, da Lei nº 13.786/2018), aceita pela jurisprudência para cobrir as despesas administrativas suportadas pela vendedora. (...). RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, PROVIDO, sem reflexo no ônus de sucumbência2. Compromisso de compra e venda. Resolução por iniciativa da compradora, o que transitou em julgado. Percentual de retenção que de fato não se pode limitar a 20%, devendo-se majorar a 25%, pois firmado o contrato já sob a vigência do art. 67-A, II da lei 4.591/64, introduzido pela lei13.786/2018. Percentual de 50% do art. 67-A, § 5º da lei 4.591/64 que, porém, não se aplica ao caso. Empreendimento de fato sujeito ao regime de patrimônio de afetação, mas obra já concluída e entregues as unidades quando da resolução do contrato. Intepretação teleológica da norma. Percentual majorado de retenção que tem a finalidade de assegurar a consecução do empreendimento, e que não se justifica após a sua entrega, como no caso. Precedentes. Requisitos para a extinção formal do patrimônio de afetação do art. 31-E da lei 4.591/64 que não se confundem com a finalidade da multa mais alta estabelecida no art. 67-A, § 5º, do mesmo diploma. Sentença parcialmente revista. Recurso provido em parte.3 Seguindo a lógica utilizada para se proferir as decisões acima, o TJSP aparentemente desvirtua os requisitos previstos no artigo 31-E, I4, da lei 6.591/1964 e isso se dá, pois, pela simples interpretação gramatical, não basta somente o preenchimento de apenas um dos requisitos para a extinção do patrimônio de afetação, quais sejam: (i) averbação da construção na matrícula imobiliária; (ii) registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição do adquirente; (iii) extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento. Trata-se de preenchimento cumulativo.  Pelo preenchimento cumulativo dos requisitos acima, para haver extinção completa do patrimônio de afetação, há de se quitar o financiamento tomado junto a instituição financeira para a construção do empreendimento, o que pode ocorrer somente em momento posterior a averbação da construção por conta da sistemática de repasse comum na operação do mercado imobiliário. É justamente o que se vê como fundamento de outros julgados, sendo um deles de relatoria também do Desembargador Claudio Godoy, o mesmo que entende pela extinção de patrimônio de afetação com a simples averbação da construção na matrícula imobiliária, que se decide pelo preenchimento de todos os requisitos para se considerar extinto o patrimônio de afetação, com os destaques abaixo. (...) Conclusão das obras que, por si só, não libera o bem de sua afetação. Necessidade de comprovação de liquidação das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento (...)5 Extinção da afetação, ademais, que não se dá tão somente pelo término e averbação da obra, instituído o condomínio, senão também pela satisfação das obrigações garantidas, incluído o crédito do financiador, e cancelamento do registro respectivo. Artigo 31-E, inciso I, da lei 4.591/64, com redação dada pela lei 10.931/04.6 Não menos importante, mas para além de toda engrenagem imobiliária, há de se ressaltar também a lógica contratual pautada no princípio basilar da boa-fé objetiva, essencial na interpretação de todos os contratos, sejam eles privados e até mesmo de consumo. A boa-fé objetiva guarda consigo um principal parâmetro de comportamento a evitar traições e contradições entre as partes. É o que defende Flávio Tartuce a afirmar que as partes devem "atuar de modo a não trair a confiança do outro", de maneira a não frustrar justas expectativas7."" É neste sentido de se evitar a quebra de confiança e frustrações de expectativas inicialmente criadas que a boa-fé está positivada em alguns artigos do código civil, tais como o 113, III8, 187 e 4229, servindo, então, como um norte para todas as relações contratuais, as quais as partes devem respeitar quase que religiosamente. Dessa forma, para se uniformizar as decisões judiciais, é essencial uma análise ampla e completa a fim de evitar inseguranças e a criação de uma loteria jurídica, levando em consideração que o mercado imobiliário como peça vital na economia nacional. Evidentemente que havendo a existência da onerosidade excessiva, tanto em contratos paritários, quanto nas relações de consumo, existe a possibilidade de revisão equitativa das condições contratuais iniciais e até mesmo a extinção, conforme manda o artigo 6º, V10 do Código de Defesa do Consumidor ao dispor sobre os direitos dos consumidores. Para se configurar, com base no artigo 478 do Código Civil, onerosidade excessiva há de se preencher os requisitos contido no referido comando legislativo, a saber: (i) contrato de prestação continuada; (ii) acontecimento superveniente extraordinário; (iii) excessividade da prestação; (iv) extrema vantagem. Sendo assim, há de se analisar com cuidado e atenção acerca da flexibilização do percentual de retenção em caso de resolução contratual motivada pelo comprador para se evitar a violação de preceitos imobiliários e contratuais, gerando, assim, um protecionismo exacerbado e descontrole contratual. Não se deve perder de vista que, mesmo sendo, em regra, um contrato de adesão, muito pautado nos princípios do Código de Defesa do Consumidor, os adquirentes devem guardar consigo um comportamento probo e justo durante a execução da relação contratual e até mesmo com a extinção da relação. Em conclusão, a jurisprudência do TJSP quanto à retenção de percentual em casos de resolução de contrato imobiliários demanda análise crítica, buscando conciliar os interesses das partes e garantir a segurança jurídica necessária no setor. __________ 1 Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-­se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. 2 TJSP; Apelação n. 1009289-34.2022.8.26.0562; Des. Rel. Sergio Alfieri; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 23/02/2023 3 TJSP; Apelação n. 1024643-54.2021.8.26.0071; Des. Rel. Claudio Godoy; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 06/02/2023 4 Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:        I - Averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento 5 TJSP; Agravo de Instrumento n. TJSP; Agravo de Instrumento n. 2287505-50.2019.8.26.0000; Des. Rel.: Ana Lucia Romanhole Martucci; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 25/09/2020. 6 TJSP; Agravo de Instrumento n. 052507-11.2017.8.26.0000; Rel. Des.:Claudio Godoy; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 27/11/2017 7 TARTUCE, Flávio. Boa-Fé Objetiva Processual - Reflexões quanto ao atual CPC e ao Projeto do Novo Código. JusBrasil, [S. l.], 2012. Disponível aqui. 8 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. II - Corresponder à boa-fé 9 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 10 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:  V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Retrospectiva Direito Imobiliário 2023

Um ano intenso no Direito Imobiliário. Momento de olhar pelo retrovisor, a fim de entender onde estamos e pensar e planejar o futuro. Neste artigo, seleciono em poucas palavras o que, na minha visão, aconteceu de mais relevante. Legislativo O Congresso Nacional produziu poucas leis que afetam diretamente o setor imobiliário, as quais, mesmo em pequeno número, inundaram nossa área de novidades. A Lei 14.620/23 trouxe a nova fase do Programa Minha Casa Minha Vida, importantíssimo para a política habitacional, e que impulsiona em boa medida o PIB imobiliário. Mas não só isso. A mesma lei: (i) passou a permitir a adoção do patrimônio de afetação, antes restrito às incorporações, também aos loteamentos. Todavia, a Lei não alterou a legislação fiscal para permitir a adoção do Regime Especial de Tributação (RET), com redução de alíquotas, que foi o principal estímulo para incorporadores adotarem a técnica da segregação patrimonial do empreendimento. Sem o RET, o mercado se empolgará com a novidade? (ii) permitiu expressamente os editais e leilões eletrônicos na execução extrajudicial da alienação fiduciária; (iii) alterou o art. 1.473 do Código Civil, para explicitar que a propriedade superficiária e os direitos oriundos da imissão provisória na posse podem ser objeto de hipoteca; (iv) implementou novidades na regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S), ao promover, na Lei 13.465/17, alteração do art. 37 e inserção do art. 37-A. O art. 44 ganhou o parágrafo 8º, que destrava a finalização do procedimento no registro de imóveis: na abertura das matrículas individuais de ocupantes não constantes da lista de beneficiários da CRF, constará o titular originário, na condição de proprietário anterior, com a menção, no campo relativo ao proprietário atual, de que "o futuro proprietário será oportunamente citado na matrícula quando do envio de listas complementares de beneficiários"; e (v) inseriu na Lei 14.063/20 o art. 17-A, pelo qual "As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada". Dia 30 de outubro foi publicado o importantíssimo Novo Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23). Uma avalanche de alterações:  cartórios, garantias imobiliárias, loteamentos, debêntures, extratos eletrônicos, fundos de investimento, concurso de credores, precatórios e créditos judiciais, entre outras. Foram tantas que deixo de expô-las em texto. E se estiver curioso: (i) veja aqui o panorama geral das novidades, que já começaram a impactar o dia-a-dia do profissional do Direito Imobiliário; (ii) confira aqui, os 54 dispositivos alterados da Lei 9.514/97, com o texto comparado, e aqui, em esquema visual, as 13 alterações mais importantes; e (iii) aqui você encontra uma tabela com as atuais semelhanças e diferenças entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca. No apagar das luzes, dia 20/12/2023 foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que, após décadas de discussões, finalmente implementa, sob aplausos e críticas, a reforma tributária. Destaco os impactos diretos[1] para o Direito Imobiliário (não identifiquei modificações sobre o ITBI): (i) Entidades religiosas (art. 150, V, "b"): o dispositivo, que antes previa imunidade fiscal apenas para templos de qualquer culto, agora estende o privilégio para "entidades religiosas", "inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes"; (ii) Correios, autarquias e fundações públicas: (art. 150, §2º): As autarquias e fundações públicas eram imunes aos impostos sobre o patrimônio, e agora o §2º estende a imunidade a impostos sobre a renda ou serviços entre os entes públicos, além de incluir os Correios nesse conjunto de beneficiados; (iii) ITCMD: em razão da reforma: (a) o ITCMD sobre bens móveis, títulos e créditos, que antes competia ao Estado "onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador", agora pertence ao Estado "onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador", caracterizando uma alteração mais de redação do que de regra (art. 155, §1º, II); (b) o imposto tem sua progressividade fixada em razão do quinhão, do legado ou da herança (art. 155, §1º, VI); e (c) o ITCMD não incide sobre transmissões para instituições sem fins lucrativos com finalidade e relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar (art. 155, §1º, VII); e (iv) IPTU: Agora não há mais dúvida: o valor venal dos imóveis (base de cálculo do IPTU) pode ser atualizado diretamente pela Prefeitura, conforme critérios estabelecidos em lei do Município, sem a necessidade de aprovação de lei específica de atualização. E acabam de sair os pareceres das subcomissões de revisão do Código Civil. Aqui é possível fazer o download do relatório completo, e visualizar as atualizações propostas, muitas delas com impacto relevante no Direito Imobiliário. O caminho é longo, mas o avanço é notável! Parabéns a todos os que estão participando desse trabalho monumental. Judiciário Na área extrajudicial (regulada pelo Poder Judiciário), o novo Código Nacional de Normas, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consolidou diversos atos normativos anteriormente publicados, aplicáveis à área extrajudicial. No Brasil, aliás, as delegações dos cartórios são promovidas por cada ente Federativo. A seleção, por concurso público, de cada delegatário, a normatização infralegal e a fiscalização cabem ao Tribunal de cada Estado e do Distrito Federal. Um sistema com muitos méritos, mas que gera uma distorção inevitável: intensa heterogeneidade de entendimentos notariais e registrais. O que se faz no Rio de Janeiro não se consegue em São Paulo. E vice-versa. Vamos para o Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul, e cada lugar terá, em certa medida, suas regras próprias. A lei é federal, mas o entendimento é local. Se, por exemplo, o Código de Normas de um Estado manda o registrador exigir uma determinada certidão negativa, de pouco adianta um acórdão do Supremo Tribunal Federal declarando a exigência inconstitucional. Enquanto a regra estiver ali, o registrador com a espada da Corregedoria Geral sobre sua cabeça, provavelmente exigirá a certidão. Vivemos uma pirâmide invertida de Kelsen. Daí que o novo Código Nacional deve ser celebrado, por ser um passo notável rumo à homogeneização paulatina de práticas em todo o país. Em setembro, o Provimento CNJ 150/23 (desenhado aqui) regulamentou a adjudicação compulsória extrajudicial, trazendo luz para o procedimento, e potencializando sua aplicação Brasil afora. Destaque, ainda, para os avanços do registro de imóveis brasileiro, que brilha cada vez mais no cenário mundial, e só para ficar em dois exemplos: (i) O mapa interativo está melhor a cada dia, um verdadeiro Google Earth do Direito Imobiliário, onde é possível obter informações extremamente úteis para auditorias jurídicas: matrículas, unidades de conservação, dados minerários, tombamentos, quilombos, último registro, entre outros. Difícil não se viciar. Salve no seu Favoritos. E use sem moderação. O projeto merecidamente recebeu, do CNJ, o Prêmio Solo Seguro 2023. Aqui você acessa o mapa, o vídeo explicativo e uma sugestão de minissérie para se ter a dimensão do quão revolucionária essa ferramenta pode ser; e (ii) O ranking nacional de usucapião extrajudicial é de grande utilidade, inclusive para os advogados visualizarem de antemão se determinado cartório costuma finalizar muitos ou poucos procedimentos dessa natureza. Na imagem, os 20 primeiros lugares no país em out/23 (mas ressalto que o ranking é relativo, pois a plataforma considera os dados do Diário Eletrônico do RIB/ONR, e, portanto, não computa as usucapiões de Estados que utiliza(va)m os Diários de Justiça Eletrônicos estaduais, a exemplo do Paraná). O STJ, em 2023, seguiu julgando muitos casos sobre o Direito Imobiliário. Para ver os principais acórdãos, confira aqui uma seleção das decisões divulgadas nos Informativos de Jurisprudência de mai/21 a dez/23, organizados por temas. E algo que até parece mentira, e que estava fora do radar de muita gente. Mais de 25 anos após a edição da Lei 9.514/97, a alienação fiduciária ainda estava sob grave risco. Havia no STF um recurso extraordinário com repercussão geral (RE 860631) questionando a constitucionalidade da execução extrajudicial da garantia. Em outubro, por maioria (houve quem votasse pela queda da AF, e imaginem o tsunami que isso poderia gerar), o STF fixou a seguinte tese: "É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". Não posso deixar de mencionar a forma distorcida com que parte da imprensa divulgou o julgamento, publicando que "bancos podem tomar imóveis de devedores sem decisão judicial". Um desserviço à informação. IBRADIM Por fim, o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. O IBRADIM segue sendo uma supermáquina de produzir conhecimento, conexões e amizades, e que este ano realizou, com o engajamento de suas comissões temáticas e diretorias estaduais, nada menos do que 304 eventos de Norte a Sul do país, além de um congresso memorável (confira aqui os melhores momentos). Sem contar as diversas publicações. E nosso adorado IbradimCast, cujas conquistas estão aqui. Um instituto cada vez mais forte, cada vez mais relevante. Difícil não se apaixonar. Então, caro leitor, se conseguiu chegar até aqui sem partir para algo mais útil no seu dia, só posso admirar sua paciência e resiliência, ou quem sabe um sacrifício por pura amizade. Muito obrigado de coração a todos que me ensinaram, a todos que se dispuseram a me ouvir, e a todos que de alguma forma contribuíram para um Direito Imobiliário mais justo, mais técnico e mais acessível. Que tenhamos um fim de ano com amor em família, saúde e momentos de alegria, e que possamos recarregar nossas baterias para recomeçarmos com tudo o próximo ciclo. Que venha 2024! __________ 1 Claro, há repercussões indiretas, que, todavia, não caberiam neste breviloquente texto.
I.  A tese jurídica fixada no Tema 1.095/STJ e as ressalvas do voto condutor  Ao julgar o REsp 1.891.498-SP, afetado ao Tema 1.095, o Superior Tribunal de Justiça definiu tese jurídica segundo a qual, em execução de crédito fiduciário imobiliário, a liquidação deve observar o critério definido especificamente pelos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, afastada a aplicação da regra geral do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes termos: TEMA 1095: "Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor."1 O que está em questão é a convivência, no sistema, de duas regras relacionadas ao tema: de uma parte, o art. 53 do CDC, que se refere genericamente à vedação do pacto comissório, ao considerar nula a cláusula inserta em contrato de promessa de venda ou  de alienação fiduciária que preveja a perda total das quantias pagas, em caso de resolução do contrato por inadimplemento do devedor, e, de outra parte, o art. 27, § 4º, da lei 9.514/1997, que, ao dispor sobre a liquidação do crédito em caso de execução fiduciária, obriga o credor fiduciário a promover leilão do imóvel e entregar ao devedor fiduciante o saldo, se houver, do produto aí apurado. A decisão soluciona a antinomia meramente aparente entre essas duas regras com fundamento nos critérios cronológico e da especialidade, até mesmo porque não há divergência em relação à vedação do pacto comissório. A afetação do Tema 1.095 não abrange a hipótese de o inadimplemento anterior ao termo, e embora tenha mencionado acórdãos da 3ª Turma que o reconhecem como fundamento para aplicação do critério de liquidação estabelecido pelo § 4º do art. 27 da lei 9.514/1997 (REsp 1867209/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 30/9/2020), o voto condutor considera que esse entendimento ainda não está maduro para ser apreciado pelo rito repetitivo. Em voto-vogal, a Ministra Nancy Andrighi, embora tenha acedido à redação da tese proposta pelo relator, ponderou que a iniciativa do devedor fiduciante de postular o desfazimento do contrato por simples desinteresse configura, por si só, quebra antecipada do contrato, que justifica a execução do crédito por parte do credor fiduciário.2 Além disso, e a despeito de reconhecer que o procedimento instituído pela lei 9.514/1997 é o modo adequado para a extinção forçada do contrato fiduciário imobiliário, o voto condutor acena para a eventualidade de variação de procedimentos mediante sua substituição pela resilição ou resolução do contrato, ao ressalvar que, "se inexistente o inadimplemento (falta de pagamento) ou, acaso existente, não houver o credor constituído em mora o devedor fiduciário, a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da lei 9.514/97, podendo se dar pelo ditame da legislação civilista (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (artigo 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação." Neste artigo submetemos ao debate algumas das principais questões relacionadas à anômala equiparação da execução e excussão fiduciária de bens imóveis aos efeitos da resolução do contrato preliminar de promessa de venda, ignorando a sistematização do tema da extinção dos contratos estabelecida pelo Código Civil de 2002, além de outras distorções decorrentes da dispensa do juízo de admissibilidade para decretação de resilição ou resolução dessa espécie de contrato. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 STJ, 2ª Seção, relator Min. Marco Buzzi, j. 26/10/2022, DJe 19.12.2022. 2 Extrai-se do voto da Ministra Nancy Andrighi "Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/1997 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados."
A discussão envolvida no RE 860631 teve por objetivo aferir "(...) a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário - SFI, conforme previsto na lei 9.514/1997". Antes de tratar propriamente da decisão, deve ser ressaltado que a alienação fiduciária é a garantia responsável pelo desenvolvimento do mercado imobiliário nos últimos 20 anos e pela crescente elevação do crédito imobiliário às famílias brasileiras. Devemos relembrar que, nos anos 90, a hipoteca foi bastante judicializada, tornando restrito (e de elevado custo) o acesso ao crédito imobiliário. Isso porque a morosidade e a insegurança jurídica que pairavam sobre a execução hipotecária aumentavam o risco na concessão do financiamento. A partir da Lei 9.514/1997, com a possibilidade de execução extrajudicial da garantia de maneira segura e célere, as instituições financeiras ampliaram o acesso ao crédito e o mercado imobiliário se reinventou. A verdade é que a garantia da alienação fiduciária não confere apenas segurança jurídica a quem concede o financiamento, mas, também, permite que as famílias possam ter acesso célere e simples ao crédito imobiliário. E não se diga que a alienação fiduciária reduz os direitos do mutuário. A Lei estabelece procedimento que se coaduna com as disposições constitucionais e as normas gerais do Código de Processo Civil, aplicáveis a trâmites judiciais envolvendo direitos reais sobre bens imóveis. Nesse sentido, uma vez inadimplida a obrigação, a Lei obriga que que o devedor fiduciante seja regularmente intimado, de modo que tenha a possibilidade de purgar a mora. Somente após o transcurso de referido prazo e uma vez não purgada a mora, a propriedade é consolidada em nome do credor fiduciário. E mesmo após a consolidação da propriedade, o imóvel não é "tomado" pelo credor fiduciário, como lamentavelmente noticiado por parte da imprensa. Após a consolidação, a lei obriga o credor fiduciário a proceder com os leilões regulares, de modo a permitir que o imóvel possa ser arrematado por terceiros. Havendo arrematação, o valor que eventualmente sobejar deve ser restituído ao devedor fiduciante. Por outro lado, não havendo arrematantes e considerando que o bem já foi consolidado em nome do credor fiduciário, somente em tal hipótese o credor poderá se apropriar do imóvel. Atente-se, contudo, que a apropriação não é automática e sem que antes sejam respeitados os já referidos direitos do mutuário. Também é relevante destacar que o procedimento de execução da alienação fiduciária é realizado por intermédio do Cartório de Registro de Imóveis que, regra geral, segue os exatos termos da lei 9.514/1997. Na hipótese de ausência de observância da regularidade da notificação, por exemplo, o Oficial não permite o prosseguimento do procedimento. Portanto, não há qualquer lesão constitucional ou infraconstitucional aos direitos do devedor fiduciante. Ademais, não se retira a possibilidade de o mutuário, verificando infração aos seus direitos, propor ação judicial para, por exemplo, impedir o leilão ou suscitar qualquer infração às determinações legais. Não é razoável, portanto, afirmar que o simples fato de a execução da garantia ser realizada de maneira extrajudicial implicaria infração aos direitos constitucionais à ampla defesa e ao contraditório. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu adequadamente pela constitucionalidade da lei 9.514/1997 e do procedimento de execução extrajudicial. Na qualidade de vice-presidente do IBRADIM, parabenizo o instituto pela participação como amicus curiae no processo, contribuindo com a correta interpretação e aplicação do Direito. É de se lamentar, contudo, que no ano de 2023 estamos discutindo a constitucionalidade da lei de 1997. De todo modo, a decisão, embora seja óbvia, reforça a segurança jurídica e beneficia milhares de brasileiros que continuarão a ter acesso simples e célere ao crédito imobiliário. Caso a Corte houvesse declarado a inconstitucionalidade da lei 9.514/1997, uma infinidade de procedimentos seria obstada e certamente o crédito imobiliário voltaria a ser reduzido aos brasileiros. Também é relevante destacar que uma parcela ínfima dos financiamentos habitacionais é inadimplida pelos mutuários, o que demonstra que a alienação fiduciária funciona adequadamente e cumpre a sua função. Destaco, ao final, que embora a constitucionalidade da lei 9.514/1997 seja evidente, isso não significa que a lei não possa sofrer aperfeiçoamentos. Tais ajustes têm sido realizados ao longo dos últimos anos e, brevemente, o aprovado PL 4188 poderá trazer outras melhorias. É por esse e outros motivos que o Seminário do Migalhas a respeito da lei, a ser realizado no dia 6 de novembro, mostra-se atual e relevante.
Introdução   Desde tempos imemoriais, existe a prática de parcelamento do solo para construções de unidades imobiliárias para servirem de morada a uma coletividade de pessoas1. O Brasil não configurou exceção: ainda sob o domínio da Coroa Portuguesa, havia a prática de desmembramento e parcelamento do solo urbano para construir moradas, configurando entre os habitantes daquela época uma coletividade de unidades imobiliárias semelhante às dos tempos atuais2.  Essas práticas persistiram, se diversificaram, e os loteamentos são a modalidade de habitação mais comum no país3. Diante das repercussões sociais e jurídicas dos loteamentos na sociedade brasileira, este texto - sem pretensão de esgotar o tema - fará uma breve retrospectiva histórica e legislativa dessa figura imobiliária no Brasil.  Do decreto-lei 58/37 à Lei de Registros Públicos  Com o declarado objetivo de aumentar a "segurança das transações", o Decreto-Lei nº 58/37, primeiro diploma normativo referente à figura dos loteamentos no Brasil Republicano4, atingiu parcialmente sua mens legis ao determinar a inscrição do loteamento em registro imobiliário, disciplinar o contrato de compra e venda, e prever a possibilidade de adjudicação compulsória em caso de recusa à outorga da escritura definitiva. Contudo, os avanços proporcionados pelo DL 58/37 foram insuficientes para lidar com as questões decorrentes do boom demográfico experimentado pelo país, que também aumentava seu grau de industrialização e urbanização5. Esses dois interligados fenômenos foram os principais motivos para o aumento dos fluxos migratórios da população rural para os centros urbanos, que também experimentavam a vinda em massa de imigrantes, o que encareceu os custos de habitação nesses locais. O resultado foi o acentuamento do déficit habitacional no país, o que impulsionou a difusão de loteamentos e edifícios residenciais com vários andares, configurando um cenário que demandava ajustes na legislação. Nesse contexto, foi concebido outro diploma de grande relevância ao mercado imobiliário: a lei Federal 4.591/64, que trouxe ao ordenamento jurídico o instituto da incorporação imobiliária e aprimorou o conceito de condomínio edilício6. Em seguida, a comunidade jurídica envidou esforços para a criação de um diploma legal específico para os loteamentos, o que foi refletido no decreto-lei 271/67.  Este buscou conferir aos loteamentos as normas de direito civil atinentes à incorporação imobiliária, condicionando essa aplicação a um (segundo) decreto, que jamais foi publicado7. Além disso, foi ganhando espaço a noção de que aplicação singular de normas de direito civil não era suficiente para atender aos multifacetados desafios dos loteamentos, razão pela qual - já no começo da década de 70 - se debatia, em substituição ao DL 271/67, a criação de lei especial que enfrentaria as questões ambientais, urbanísticas e civis dos loteamentos8.   A lei Federal 6.766/79 ("Lei de Parcelamento do Solo Urbano")  Os reclamos da doutrina surtiram efeito e, após intenso trabalho legislativo, foi promulgada a lei Federal 6.766/79 que, ao introduzir o conceito de parcelamento de solo urbano, apontou que este poderá ser realizado por meio de loteamento ou desmembramento (art. 1º da LF 6.766/79). Ao definir loteamento, o § 1º do art. 2º da LF 6.766/79 afirma que "Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes". Por sua vez, a gleba será fracionada mediante a criação de lotes ou áreas desmembradas, que deverão ser especificadas para criação de matrícula individual no registro de imóveis (art. 20, parágrafo único, da LF 6.766/79).9 Originalmente sem a previsão de um conceito urbanístico de lote, a LF 6.766/79 foi alterada pela Lei Federal nº 9.785/99 em dois principais pontos. O primeiro fora a alteração do art. 3º, caput, da LF 6.766/79, que ora dispõe que somente "será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal".   No mesmo sentido, a LF 9.785/99 também alterou o parágrafo 4º da LF nº 6.766/79 para dispor que somente "Considera-se lote o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe".  Em outros termos, os artigos inseriram à lei especial normas de Direito Urbanístico, que é caracterizado como "o requisito de respeito às próprias limitações pelo Poder Público para disseminação das cidades, tais como as normas que disciplinam o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo urbano, e as áreas de interesse especial"10.    Conquanto os requisitos legais específicos para constituição dos loteamentos não serão abordados, é indispensável mencionar que o interessado deve obter da Prefeitura a autorização para o projeto de loteamento, que deverá ser registrado no RGI e estar de acordo com o plano diretor. O loteador também terá o ônus de promover as obras de infraestrutura necessárias, havendo responsabilidade subsidiária do ente municipal com relação a esta obrigação (arts. 37 e seguintes da LF 6.766/79, respectivamente)11. Verifica-se, portanto, que a despeito de reconhecer que o parcelamento de solo urbano consiste em uma ação humana que independente da aprovação do Poder Público, a LF 6.766/79 condiciona sua legalidade "às disposições desta e as das legislações estaduais e municipais pertinentes" (artigo 2º da LF 6.766/79).   Caso o loteamento não esteja sendo de acordo com as especificações do projeto aprovado, será considerado irregular, cujo saneamento das questões irregulares o transformará em regular. Contudo, no caso mais grave, em que inexiste autorização municipal, o empreendimento será considerado clandestino12. Em ambos os casos, sem prejuízo de responsabilização na esfera cível, a conduta dos loteadores que comercializarem lotes nessas hipóteses poderá ser enquadrada como crime contra a Administração Pública (art. 50 da LF 6.766/79). Diplomas legais posteriores à LF 6.766/79 Por fim, cumpre apontar - em linha cronológica - os principais diplomas normativos posteriores à LF 6.766/79 que influenciam os loteamentos. A primeira menção é à Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 30, VIII, afirma que compete aos Municípios "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano".  Além disso, em que pese ter garantido o direito fundamental à propriedade, a CF/88 condicionou esse direito ao cumprimento da função social daquela (art. 5º, XXIII da CF/88). Ao definir os parâmetros para a aferição da função social de um imóvel urbano, o art. 182, § 2º, da CF/88 aponta que "A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor". Em seguida, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor (LF 8.078/90), elaborado para equilibrar a relação desigual entre o consumidor e fornecedor. No caso dos loteamentos, as principais repercussões são a inversão do ônus da prova em demandas judiciais, o dever de informação imposto aos loteadores e corretores, e a possibilidade de direito de arrependimento do comprador, no prazo de 7 dias, caso o negócio seja realizado no stand de vendas (arts.  6º, II, III, IV XII, VIII e 49º do CDC e art. 26-A da LF 6.766/79)13. No início deste século, foi promulgado o Estatuto da Cidade (LC 10.257/01), que disciplina as diretrizes gerais da política urbana previstas no mencionado art. 182 da CF. Nesse diálogo das fontes, verifica-se que a definição da função social e o atendimento das exigências urbanísticas não seguirão um padrão, sendo esse juízo discricionário reservado ao Município quando da análise do projeto de loteamento com as normas de seu plano diretor, o que impacta a concepção e execução dos loteamentos espalhados pelo país.14 Um ano depois do advento do Estatuto da Cidade, foi promulgado o Código Civil (LF 10.406/22). Em que pese sua aplicação subsidiária aos loteamentos em razão da especialidade da LF 6.766/79, o Código Civil promoveu importantes mudanças na estrutura dos condomínios edilícios e regulamentou a criação de condomínio composto por lotes, que estarão necessariamente vinculados a uma fração ideal das áreas comuns na proporção a ser definida no ato de instituição (art. 1.358-A do CC, incluído pela LF 13.465/17)15.           Conclusão Esse breve retrospecto permite duas conclusões. A primeira é a dificuldade do legislador, até o advento da LF 6.766/79, em adequadamente regulamentar os loteamentos, que, por sua ampla repercussão na "expansão e gênese" da cidade16, possuem uma complexidade superior aos condomínios edilícios. A segunda é a efetividade do vanguardista conceito de parcelamento de solo urbano, cuja legalidade está condicionada às limitações impostas pelas normas legais e urbanísticas. Assim, ao englobar os aspectos urbanísticos, ambientais, registrais e civis dos loteamentos, a LF 6.766/79 permitiu uma atuação mais eficaz do Poder Público e da sociedade civil no combate aos multifacetados desafios impostos pela atividade milenar de parcelamento do solo urbano. Não por outro motivo, após mais de quatro décadas de vigência (um recorde), a LF 6.766/79 continua a ser o principal diploma normativo da matéria. __________ 1 SILVA, Marcos Roberto Alves; CAMPOS, Camila Ribeiro. FINIZOLA, Carla Francisca Galvão. NOVAES, Eliene Greek Novaes. ALVARES, Liliana de Castro. MOURA, Maria Letícia Vieira. Impactos sociais e urbanísticos dos loteamentos fechados no Setor Sul de Uberlândia - um estudo de caso. Revista Caminhos da Geografia, v. 13, nº 43. Out/2012. 2012. 2 Disponível aqui. Acesso em 30.5.22. 3 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022 4 Este texto não abordará a Lei de Terras de 1850 ou outro diploma normativo anterior ao decreto-lei 58/37. 5 Disponível aqui. Acesso em 11.8.23. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 14ª ed. Editora Gen. Rio de Janeiro. 2020. 7 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022. 8 DIAS Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 20.  9 Nesse interim, contudo, foi promulgada a Lei Federal nº 6.015/73 ('Lei de Registros Públicos"), que pavimentou a estrutura pela qual funda-se o direito imobiliário moderno brasileiro e, portanto, de umbilical importância aos loteamentos. 10 DA SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo. 11 RODRIGUES, Carlos Alexandre. Como lotear uma Gleba - Parcelamento e Desmembramento do Solo, Loteamento e Condomínio de Lotes. Leme: Editora Imperium, 2023. 12 Recurso Especial nº 1.616.348/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13.12.16. 13 KINUAGA, Marcus Vinicius in DIAS. Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 150 e ss. 14 Emiliasi, Demétrios. Condomínio de Lotes. Editora BH. 1ª ed. São Paulo. p. 93. 15 Ademais, a LF 13.465/17 alterou o parágrafo 7º da LF 6.766/79 para fazer constar o condomínio de lotes, bem como o art. 8º daquela lei positivou a figura do loteamento de acesso controlado. 16 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.
Recente julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2.059.278/SC. Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Ac. Min. Raul Araújo, sessão de 26/05/2023, acórdão pendente de publicação), acrescentou um novo capítulo à discussão acerca de suposta antinomia quanto aos interesses da massa condominial versus o credor fiduciário, caso inadimplente o devedor fiduciante quanto ao pagamento dos débitos condominiais do imóvel em garantia. Entre os aspectos recorrentes no debate quanto à solução das dívidas condominiais em imóveis alienados em garantia, a controvérsia perfaz usualmente as seguintes questões: (i) eventual responsabilidade pessoal do credor fiduciário; (ii) possibilidade de penhora do imóvel, e; (iii) prioridade de obrigações propter rem (condomínio e IPTU/ITR) frente ao direito de garantia do credor fiduciário. De modo geral, duas são as correntes atualmente adotadas. A primeira, predominantemente na 3ª Turma do STJ, estabelece que, não sendo o credor fiduciário responsável pela obrigação (art. 27, §8º da lei 9.514/97), estaria afastada a possibilidade de penhora do imóvel, já que a propriedade resolúvel integra o patrimônio do credor fiduciário e a penhora não poderia avançar sobre patrimônio de terceiro. Assim, restaria ao condomínio tão somente a penhora e excussão dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante sobre o imóvel. A segunda corrente, presente em julgados de cortes estaduais1 e recentemente abraçada pela 4ª Turma do STJ (acórdão pendente de publicação), entende que, sendo a obrigação condominial de natureza propter rem, o imóvel responde pela dívida e deve ser alienado para pagamento da massa condominial, cujos interesses prevaleceriam sobre os interesses do credor fiduciário. Importante ressaltar que a propriedade fiduciária de bens imóveis foi introduzida em nosso ordenamento jurídico pela lei 9.514/97. Conforme lição no mestre Melhim Challub2, na formalização do negócio fiduciário em garantia, opera-se a transmissão da propriedade de um bem ou direito do devedor fiduciante para o credor fiduciário, vinculada ao cumprimento de uma obrigação. Em consequência dessa vinculação, o bem é excluído do patrimônio do devedor fiduciante, sem, contudo, integrar plenamente o patrimônio do credor fiduciário, passando a constituir o que se denomina "patrimônio em afetação". Constituído o patrimônio em afetação, tanto a propriedade resolúvel do credor fiduciário quanto os direitos reais aquisitivos do devedor fiduciante estão ligados indissociavelmente ao bem e este, por sua vez, ao cumprimento da obrigação garantida. Com o desdobramento da titularidade do bem e sua afetação, a posse direta do imóvel permanece com o devedor fiduciante, enquanto este se mantiver adimplente em suas obrigações. Entre as obrigações a cargo do devedor fiduciante incluem-se não só o pagamento da obrigação garantida, mas também, o pagamento de "todos os impostos, taxas e contribuições que incidem sobre o imóvel, notadamente o imposto predial e as contribuições condominiais, e é civilmente responsável pela correta utilização do imóvel perante terceiros e poderes públicos, devendo indenizar qualquer prejuízo ou dano, material ou pessoal, a que der causa, além de estar obrigado a conservar e manter o imóvel (art. 24, IV)."3 O dever do devedor fiduciante quanto ao pagamento das despesas condominiais decorre não só do uso e gozo exclusivo do bem, mas também, da responsabilidade quanto à guarda e conservação do imóvel em garantia. Assim prevê expressamente a lei 9.514/97 em seu art. 27, § 8º, reforçado pelo recentíssimo § 2º do art. 23, introduzido pela lei 14.620/2023. Pretender atribuir ao credor fiduciário a responsabilidade pessoal pelo pagamento das despesas condominiais, vai de encontro à natureza jurídica da propriedade resolúvel e à letra expressa da lei. A divergência explicitada pelo julgamento da 4ª Turma do STJ, corretamente, não lança nenhuma dúvida quanto ao óbice de responsabilizar o credor fiduciário pelos débitos condominiais. E sendo o devedor fiduciante responsável pelo pagamento das despesas condominiais, a elas responde com todo o seu patrimônio particular (art. 789 do CPC), o que inclui, por óbvio, os direitos reais de aquisição sobre o imóvel que poderão ser penhorados na falta de outros bens preferenciais à satisfação da execução. A penhora é ato de constrição judicial sobre o patrimônio do executado para garantia do pagamento da dívida e tem por finalidade tornar tal patrimônio indisponível ao executado.4 Por tal razão, não há como contestar o sem número de julgados que afastam a tentativa de penhora do imóvel alienado fiduciariamente, pois implicaria em avançar sobre patrimônio de terceiro (devedor fiduciante).5 Ocorre que, se por um lado, na alienação fiduciária em garantia, o bem não está vinculado à pessoa do credor, mas sim ao cumprimento da obrigação garantida, não menos verdade é que o bem está igualmente vinculado ao cumprimento de outras obrigações a ele indissociáveis, como os débitos condominiais, por sua natureza propter rem. As obrigações de natureza propter rem acompanham o imóvel, independentemente de sua titularidade ou das relações sobre ele estabelecidas, uma vez que tais obrigações possuem os atributos da acessoriedade especial e da ambulatoriedade. Assim, ainda que se busque atribuir à lei 9.514/97 uma suposta suspensão transitória da natureza propter rem dos débitos condominiais ao imóvel alienado fiduciariamente, o que absolutamente não parece ter sido a intenção do legislador, o fato é que, mais cedo ou mais tarde, estes débitos recairão sobre o imóvel e impactarão a garantia constituída. Os que defendem a suspensão transitória do caráter propter rem das obrigações condominiais na alienação fiduciária, entendem que tal expediente visa preservar os interesses do credor fiduciário, garantindo que o imóvel permaneça integro para responder por eventual inadimplência do fiduciante. No entanto, tal assertiva parece desconsiderar que as obrigações propter rem não deixam de acompanhar o imóvel e deverão ser quitadas no futuro, seja pelo credor fiduciário, em caso de consolidação da propriedade, seja por eventual arrematante do bem em leilão extrajudicial, o que certamente afetará negativamente o valor patrimonial do bem e a sua atratividade, em caso de excussão da garantia. Os credores fiduciários que se sentem blindados com a impossibilidade da excussão do imóvel por dívidas condominiais, estão, na verdade, sendo indiretamente atingidos pela depreciação da garantia ocasionada pelos efeitos da mora de tais despesas, sem que, na maioria das vezes, tenham sequer conhecimento dessa situação. Note-se que essa é justamente a situação tratada no REsp 2.059.278/SC, onde a obrigação garantida está sendo quitada regularmente pelo devedor fiduciante, apesar do inadimplemento condominial. Muito se alega sobre a impossibilidade prática de os credores fiduciários, especialmente as instituições financeiras, controlarem o pagamento das obrigações propter rem. Se por um lado, a gestão da garantia é de interesse do credor fiduciário a fim de assegurar a preservação física e econômica da coisa, eventual dificuldade de seu exercício em nada freia a deterioração da garantia em caso de inadimplemento fiscal ou condominial, havendo somente uma falsa sensação de proteção que irá ruir no momento em que o devedor fiduciante ficar inadimplente e o credor fiduciário der início à execução da garantia. Diante de tal situação, qual seria então a melhor maneira de satisfazer o crédito da massa condominial, recaindo o ônus dessa inadimplência sobre quem de direito - o devedor fiduciante - e, ao mesmo tempo, preservar o direito de garantia do credor fiduciário? Tal impasse não é novo e decorre da coexistência de direitos patrimoniais sobre um mesmo bem indivisível, conforme já enfrentado tanto pelo CPC de 1973, em seu art. 655-B, quanto pelo CPC de 2015, em seu art. 843 e teve início com a oposição de cônjuges meeiros à execução de bens comuns ao casal para saldar dívidas contraídas exclusivamente por um dos cônjuges. Por outro lado, a impossibilidade de alienação do imóvel comum, como forma de preservar os direitos do cônjuge inocente, implicava, na prática, em tornar a execução ineficaz pela pouca atratividade na alienação de fração ideal e estabelecimento de condomínio com o futuro adquirente. Conforme lição de Humberto Theodoro Junior6, "é evidente o quase nenhum interesse despertado entre os possíveis licitantes numa hasta pública em tais condições; e quando algum raro interessado aparece só o faz para oferecer preço muito inferior àquele que se apuraria na alienação total do bem." Foi assim que o legislador buscou adotar solução intermediária, aceitando a alienação do imóvel, o que atenderia aos interesses do exequente, sem descuidar, todavia, de garantir ao cônjuge inocente o recebimento integral da sua quota parte, como condição para a excussão do bem (art. 655-B do CPC/73 introduzido pela Lei nº 11.382/2006). Com o advento do CPC de 2015, o legislador reforçou a sua escolha ao ampliar as hipóteses de alienação do imóvel, ainda que o executado detenha somente parte dos direitos sobre tal bem, sempre que seu fracionamento alterar a sua substância, diminuir considerável seu valor, ou prejudicar o uso a que se destina (art. 87 do Código Civil). A possibilidade de excussão do imóvel por dívida pessoal de um de seus cotitulares decorre, portanto, de um esforço legislativo de tornar efetiva a satisfação da execução, com a remoção de óbices formais e a ampliação das medidas executivas em favor do credor7, assegurando, no entanto, a preservação do patrimônio dos demais titulares, ainda que monetizado. Ao se garantir a efetividade da execução ao mesmo tempo em que se preserva o patrimônio daquele que dela não participa, a lei processual busca garantir isonomia a todos os envolvidos. No caso da alienação fiduciária, os direitos reais do credor fiduciário e do devedor fiduciante sobre o bem estão indissociavelmente ligados, razão pela qual não é possível seu fracionamento sem diminuir consideravelmente seu valor e sua atratividade.  Não por outra razão, o art. 799 do CPC estabelece a obrigação do exequente em intimar os credores fiduciários da execução sobre o bem, sendo reputada ineficaz a alienação de imóvel quando não houver tal intimação (art. 804, 3º do CPC)8.  Importante ressaltar que a solução adotada pelo legislador pondera que mesmo para aqueles titulares de vínculo pessoal sobre o imóvel, não haveria óbice à sua monetização. No caso do credor fiduciário, cuja vinculação com o bem se dá exclusivamente por sua capacidade financeira de fazer frente ao pagamento de uma dívida em dinheiro, a monetização de seus interesses já está dada pela essência da relação com o bem. Dessa forma, com execução judicial dos débitos condominiais, o credor fiduciário deverá ser intimado para conhecimento da existência da dívida (art. 889, V do CPC), abrindo-se a ele as seguintes opções, a seu exclusivo critério: (i) pagamento do debito condominial com a consequente sub-rogação do crédito, dando início à execução extrajudicial da garantia, nos termos da Lei nº 9.514/97; (ii) exercício do direito de preferência na arrematação do bem (art. 843, §1º do CPC), ou ainda; (iii) aguardar o leilão judicial para  o recebimento de seus direitos fiduciários no equivalente em dinheiro, sendo vedada a arrematação por terceiros, caso o valor ofertado não seja suficiente para garantir o recebimento integral de sua quota-parte de acordo com o valor de avaliação do imóvel (art. 843, §2º do CPC)9. Finalmente, importante ressaltar que não há qualquer entrave jurídico de a penhora recair unicamente sobre os direitos aquisitivos do devedor fiduciante e o imóvel ser alienado como um todo para satisfação da execução condominial. Isso porque, a venda do imóvel ocorre como um instrumento de liquidação dos direitos penhorados e é, por esta razão, que o interesse patrimonial do terceiro não devedor é preservado (art. 843, §2º do CPC). Essa é a opinião de Humberto Theodoro Junior: "A penhora, na verdade, não vai além da quota ideal do executado. O imóvel é alienado judicialmente por inteiro, como meio de liquidar a quota penhorada. Mas essa venda, de maneira alguma, poderá afetar a quota do condômino não devedor. Por isso, o § 2º do art. 843 defende o direito real deste, não permitindo que a expropriação por preço menor que o da avaliação prejudique o valor de sua quota ideal. Não se deferirá, portanto, a arrematação por preço que não assegure ao coproprietário "o correspondente à sua quota parte calculado sobre o valor da avaliação".10 Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi "daí porque, mesmo em se tratando de bem indivisível, a penhora deve cingir-se à quota-parte pertencente ao devedor, pois somente esta está afetada à execução e, uma vez liquidada, é que se destinará ao pagamento do credor."11 Por tudo o que foi dito acima, a ponderação feita neste artigo quanto a inexistência de conflito entre a satisfação da massa condominial e a preservação dos direitos do credor fiduciário parte das seguintes premissas: (i) o credor fiduciário não é devedor das despesas condominiais, enquanto o fiduciante estiver na posse do imóvel em garantia; (ii) não sendo devedor, a penhora deverá recair exclusivamente sobre patrimônio do devedor fiduciante (direitos reais aquisitivos sobre o imóvel); (iii) não obstante a penhora recair sobre os direitos reais aquisitivos do fiduciante, o imóvel pode ser levado à leilão por inteiro para satisfação da execução, uma vez que o fracionamento seria um obstáculo à satisfação da dívida; (iii) por ser o débito condominial uma obrigação de natureza propter rem, aceitar a suspensão de sua acessoriedade ao imóvel enquanto não executada a garantia fiduciária, seria impor um duplo ônus a terceiros não devedores: a massa condominial por suportar o custo da inadimplência e ao credor fiduciário por suportar a depreciação da garantia, muitas vezes, ignorando tal situação; (iv) a satisfação da execução da massa condominial, todavia, somente poderá ocorrer, caso assegurado ao credor fiduciário o recebimento de seu direito patrimonial no equivalente ao valor de avaliação do imóvel. Com a divergência aberta pela 4ª Turma do STJ, abre-se a oportunidade para a consolidação de um entendimento a respeito da matéria que garanta a segurança jurídica necessária a todos os envolvidos. __________ 1 "Agravo de Instrumento. Execução de título extrajudicial. Despesas condominiais. Deferimento da penhora sobre os direitos que o executado possui sobre o imóvel, impedindo, contudo, que o bem seja levado à hasta pública. Decisão que deve ser reformada na medida em que o fato de o imóvel ser objeto de alienação fiduciária não afasta a natureza propter rem da obrigação condominial que, por essa razão, adere a coisa. Situação em que deve prevalecer o interesse da coletividade condominial ao da instituição financeira. Possibilidade de penhora sobre o bem, com observância das regras contidas nos artigos 799, I e 889, V, do CPC, a fim de que se dê cientificação e oportunização ao credor fiduciário de se posicionar frente à demanda. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO, com observação." TJ/SP - Agravo de Instrumento nº 2103758-63.2020.8.26.0000. Juiz prolator da decisão: Dr. Alexandre Bucci. 2 Chalhub, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. - 7. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. (p. 458-459).  3 Chalhub, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. - 7. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. (p. 490). 4 Disponível aqui. 5 Recurso Especial nº 2.036.289 - RS (2022/0344164-7) de Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 6 Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. III. 56ª Edição. Forense. (p. 469) 7 Vide voto da Ministra Nancy Andrigui no Resp n º 1.818.926 - DF (2019/0154861-7). 8 "O exequente deve providenciar a intimação do coproprietário no caso da penhora de bem indivisível ou de direito real sobre bem indivisível" (Enunciado nº 154/CEJ/CJF). 9 "essa nova disposição legal (...) amplia a proteção de coproprietários inalcançáveis pelo procedimento executivo, assegurando-lhes a manutenção integral de seu patrimônio, ainda que monetizado" (REsp 1.728.086/MS, 3ª Turma, DJe 03/09/2019, grifou-se) 10 Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. III. 56ª Edição. Forense. (p. 469) 11 Recurso Especial nº 1.818.926 - DF (2019/0154861-7). Julgamento em 13.04.2021.
O setor imobiliário, conhecido por seu caráter eminentemente conservador, está se reinventado: na era da transformação digital, o segmento tem buscado acompanhar o progresso tecnológico, abraçando tecnologias disruptivas e iniciativas de cunho inovador. Nessa esteira, uma das principais tendências que tem impulsionado essa transformação é o uso da tecnologia blockchain e dos tokens imobiliários. Neste artigo, sem pretensão de exaurir o tema, exploraremos cinco tipos distintos de tokens imobiliários que estão revolucionando a forma como compramos, vendemos, financiamos e rastreamos projetos imobiliários. Essas soluções inovadoras têm o potencial de democratizar o acesso ao mercado imobiliário, aumentar a transparência e simplificar processos, abrindo novas perspectivas para investidores, proprietários e demais agentes do setor. 1. Financiamento Imobiliário Baseado em NFTs O financiamento imobiliário utilizando tokens não-fungíveis (NFTs) está ganhando destaque no mercado. Empresas como a Netspace tem liderado essa iniciativa, viabilizando a utilização dos NFTs dos imóveis como garantia para concessão de empréstimos a partir da digitalização de propriedades. No modelo idealizado pela Netspace, é criado um "vínculo bidirecional entre o token e o imóvel", pelo qual o token traz informações sobre a matrícula do imóvel em Registro Geral de Imóveis (RGI) e a matrícula contém a descrição dos dados do token. Na prática, o arranjo jurídico consiste na lavratura de uma escritura pública de contrato de permuta entre Netspace e a pessoa que solicitou a digitalização da propriedade, sendo tal escritura posteriormente registrada no RGI; a propriedade digital do imóvel é então registrada por uma transação em blockchain pela Netspace, tornando o permutante no proprietário digital em sua plataforma. Como consequência desse modelo de negócio, por meio do provimento 38/2021, a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul regulamentou a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos, e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do estado. Ao utilizar NFTs de imóveis como garantia, o processo de aprovação de crédito se torna mais rápido e eficiente, com taxas e custos de transação reduzidos, tornando-o mais acessível para pessoas que, de outra forma, teriam dificuldade em obter crédito, especialmente trabalhadores autônomos. 2. Rastreabilidade de Construções por meio da Tecnologia Blockchain A startup Prodomos apresentou uma solução inovadora de rastreabilidade para o setor imobiliário, baseada na tecnologia blockchain: a empresa lançou sua primeira coleção de NFTs possibilitando o acompanhamento minucioso de todas as etapas de desenvolvimento de empreendimentos imobiliários. Essa abordagem traz transparência e imutabilidade aos processos de construção, permitindo que os agentes tenham controle detalhado sobre custos, serviços e indivíduos envolvidos em cada obra. Ao utilizar a imutabilidade e a transparência da blockchain para registrar informações relevantes em cada etapa de construção, os compradores de imóveis têm acesso a dados confiáveis sobre a qualidade da construção e a utilização adequada dos recursos, o que pode aumentar a confiança dos investidores e a valorização dos empreendimentos. Do ponto de vista legal, é importante destacar que o uso dessa ferramenta permite (i) maior conformidade regulatória, garantindo a observância de leis e regulamentos, (ii) viabiliza uma auditoria mais precisa e eficiente, que se mostra essencial nos longos e detalhados processos de incorporação imobiliária, incluindo aqui as obrigações relacionadas ao patrimônio de afetação, e, por fim, (iii) tais registros também servem à apuração de fatos e circunstâncias, e consequente responsabilização das partes envolvidas por eventuais falhas e/ou omissões. 3. Cashback Tokens para Benefícios em Imóveis A inovação também chegou ao mercado imobiliário por intermédio do desenvolvimento de "cashback tokens" por empresas como Vitacon, Housi e Insignia. Esses tokens são classificados como criptoativos do tipo utility token e proporcionam benefícios aos proprietários de imóveis. Os detentores desses tokens recebem uma carteira digital na plataforma da Insignia, por exemplo, onde mensalmente é depositado um valor referente a um percentual das vendas do minimercado (varejo) localizado no empreendimento. Esse cashback pode ser utilizado para abater parcial ou integralmente as despesas condominiais, tornando a vida dos proprietários mais conveniente e econômica. Essa abordagem inovadora cria um sistema de incentivo para os proprietários, fomentando a permanência e a satisfação dos moradores em um empreendimento. Além disso, atrai novos compradores interessados em receber esses benefícios exclusivos, o que pode impulsionar as vendas e o valor dos imóveis. 4. Permuta com Fornecedores e Captação de Recursos Outra aplicação dos tokens lastreados em ativos imobiliários é facilitar a permuta com fornecedores e otimizar a captação de recursos pelas incorporadoras. Esse modelo visa desburocratizar o acesso ao crédito, ao mesmo tempo em que torna a negociação com fornecedores mais eficiente e atraente. Com a utilização de tokens imobiliários como forma de pagamento pelos serviços ou insumos da obra, as incorporadoras podem contratar com fornecedores sem a necessidade de captação de recursos, de forma mais ágil e diversificada, reduzindo a dependência de empréstimos tradicionais. 5. Token para o Mercado Imobiliário como Acesso ao Ecossistema O token RIB, idealizado pela plataforma Ribus, oferece uma forma inovadora de acesso ao ecossistema da cadeia imobiliária. Similar ao conceito de Ether (ETH) no Ethereum. Trata-se de um coin token, em que a moeda presente tão somente no mercado imobiliário é utilizada como pagamento na contratação de serviços e insumos. O token RIB, por exemplo, é utilizado por prestadores de serviços como construtores, arquitetos, engenheiros e corretores, que o recebem como remuneração pelo trabalho prestado. Esses profissionais, detentores dos coin tokens imobiliários recebidos, utilizam-no para adquirir produtos e serviços dentro da plataforma, mantendo o ambiente do setor, podendo ainda convertê-lo em outras moedas digitais ou moeda corrente. Conclusão Os tokens imobiliários já são o presente, não mais um futuro distante, e estão redefinindo a indústria imobiliária, introduzindo soluções inovadoras que abrangem desde o financiamento até a rastreabilidade de construções. Através do uso da tecnologia blockchain, essas soluções proporcionam maior transparência, agilidade e acessibilidade ao mercado imobiliário, abrindo novas possibilidades para investidores, incorporadoras, fornecedores e adquirentes. O futuro do setor imobiliário será marcado pela adoção crescente dessas tecnologias, que têm o potencial de otimizar processos, aumentar a confiança e democratizar o acesso ao mercado imobiliário. Resta agora, e isso é fundamental para a propagação desse novo caminho, a regulação dos tokens imobiliários pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a fim de garantir a necessário segurança jurídica para seu pleno desenvolvimento.
Quase dois anos após a promulgação da lei 14.181/2021 ("Lei do superendividamento") a inadimplência cresce em ritmo acelerado. Em abril de 2023, 71 milhões de consumidores encontravam-se em situação de endividamento1. De acordo com pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), 40% dos brasileiros estavam com o nome "negativado"2. O número de dívidas em atraso aumentou 18% em relação ao mesmo mês de 20223, concentrando-se a maior parte em dívidas com bancos (64%) e sendo a faixa etária de 30 a 39 anos com a participação mais expressiva dentre os inadimplentes. A mesma pesquisa indica que 25% dos entrevistados afirmaram ter realizado alguma compra sabendo que não conseguiria adimplir, no trimestre anterior à pesquisa, e que 53% dos inadimplentes tem gastos superiores ao que o orçamento permite. O tema é sensível, de extrema relevância, e deve ser tratado à luz da legislação, visando à prevenção e tratamento do superendividamento. Fato é que com certa frequência o Judiciário tem sido instado a solucionar conflitos relacionados à situação de superendividamento. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou em 2022 cartilha de orientação para autuação do Judiciário no tratamento do superendividamento do consumidor, em consonância com a norma legal, que tem por finalidade estabelecer diretrizes mínimas e procedimentos uniformes para enfrentamento do tema4. O superendividamento é definido pelo parágrafo 1º, do art.54-A, da lei 8.078/90 ("Código de Defesa do Consumidor") como a "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação". O decreto 11.150/22 regulamentou a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial, para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento, estabelecendo como mínimo existencial o percentual de 25% (vinte e cinco por cento) do salário-mínimo vigente para o ano de 2022, como quantia necessária para o pagamento de despesas básicas. Ato contínuo, o decreto 11.150/22 foi alterado pelo decreto 11.567/23 para atualizar o valor correspondente ao mínimo existencial para R$ 600,00 (seiscentos reais). O ponto central da lei é a preservação do mínimo existencial do consumidor, conforme regulamentação, a fim de se evitar que as dívidas de consumo ultrapassem a sua renda mensal. Nesse sentido, a lei acrescentou procedimento específico, nos artigos 104-A e 104-B, para repactuação das dívidas do consumidor superendividado com a instalação de audiência de conciliação com apresentação de plano de pagamento, e se frustrada, a instauração de processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Estão excluídas do procedimento de repactuação de dívidas aquelas oriundas de contratos de financiamento imobiliário ou de crédito com garantia real. Não obstante haver previsão em lei para exclusão de dívidas decorrentes de financiamento imobiliário e de créditos com garantia real do processo de repactuação de dívidas, o fornecedor de crédito de natureza imobiliária, incluindo incorporadores e loteadores, deve observar o dever de avaliar previamente à contratação de venda, e de forma responsável, as condições de crédito do adquirente de unidade imobiliária e/ou lote. A Lei do Superendividamento incluiu no art.54-D, II, obrigação ao fornecedor do crédito de avaliação prévia e de forma responsável das condições de crédito do consumidor, por meio de informações disponíveis do consumidor em bancos de dados de proteção ao crédito, sob pena de acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal, bem como dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais ao consumidor, nos termos do parágrafo único do art. 54-D. Trata-se de um importante ponto de cautela ao empreendedor. Como se verifica, a lei não traz métricas para aplicação da sanção, apesar da regulamentação que diz respeito ao não comprometimento do mínimo existencial pelo decreto  11.567/23. Se eventualmente aplicada a sanção referida no parágrafo único do art. 54-D, pelo Poder Judiciário, isto é, por um terceiro que não faz parte da relação jurídica, impactos relevantes podem ser causados ao incorporador, ao loteador, e ao mercado imobiliário como um todo. Por essa razão a importância do fornecimento de crédito responsável, após análise prévia das condições do adquirente de imóvel, é essencial para preservação da segurança jurídica do mercado imobiliário. Quanto mais cautelosa for a análise pelo empreendedor sobre a situação de consumo do adquirente, menor será o percentual de desfazimento de contratos imobiliários e de risco de aplicação de sanções. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
Na data do dia 08 de agosto ocorreu, pelo COLENDO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, o julgamento do procedimento de controle administrativo nº Nº 0000145-56.2018.2.00.0000.  A contrário senso do que a legislação de Alienação Fiduciária estabelece, tanto o Ministro Relator como os Conselheiros do CNJ entenderam por bem julgar IMPROCEDENTE o PEDIDO DE PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO contra Provimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. De acordo com o julgamento, foram consideradas legais as exigências contidas nos Provimentos das Corregedorias dos Estados de Minas Gerais, Paraíba, Pará e Bahia que vedam a celebração de Instrumento Particular de Venda e Compra com Alienação Fiduciária por empresas particulares (Loteadoras/Incorporadoras) e particulares em geral como documento hábil para ser levado a registro na matrícula do imóvel. Por citadas Normas da Corregedoria de indigitados Estados, somente entes que operam no SFI (Sistema Financeiro Imobiliário) ou Cooperativas de Crédito podem utilizar do instrumento particular para operacionalizar a alienação fiduciária de imóveis, restando aos Loteadores, Incorporadores e pessoas físicas no geral, tão somente a celebração de Escritura Pública de Venda e Compra com Alienação Fiduciária. - SFI podem firmar por Instrumento Particular. Infelizmente, por citado julgamento, deixou o CNJ de se ater ao princípio da especialidade e o da legalidade, uma vez que os Provimentos das citadas Corregedorias - atos infralegais-   ferem frontalmente  os  arts. 38, art. 22, §1º e 5º, §2º, todos da lei 9.514 que não traz qualquer restrição para que os instrumentos particulares com força de escritura sejam celebrados por quem não opera no SFI ou SFH. Se o legislador quisesse assim fazê-lo, teria incluído no final do texto do artigo 38 da lei 9.514/97, a expressão "quando for o caso", ou outra similar, para diferenciar as hipóteses que deveriam ser utilizadas pelo SFI ou SFH, o que não o fez. "Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública" Ainda, o art. 5º, parágrafo 2º, da mesma lei determina que: "§ 2o As operações de comercialização de imóveis, com pagamento parcelado, de arrendamento mercantil de imóveis e de financiamento imobiliário em geral poderão ser pactuadas nas mesmas condições permitidas para as entidades autorizadas a operar no SFI." g.n Como se pode verificar, a lei assegura EXPRESSAMENTE a celebração de instrumento particular tanto pelo agente financeiro, como pelas pessoas jurídicas de direito privado e/ ou físicas, não impondo que para as pessoas jurídicas deva ser celebrado instrumento público. O CNJ julgou de forma contrária aos julgamentos já proferidos pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça - STJ. O STJ já reconheceu que é legítima a formalização da alienação fiduciária como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. (Recurso especial provido. REsp 1542275/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, DJe 02/12/2015). Senão vejamos: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA  SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL.OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA."(Grifos nossos) Da mesma forma, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, em recurso administrativo contra decisão em que autorizou a medida, decidiu ser possível registrar contrato de alienação fiduciária de bem imóvel firmado por instrumento particular com pessoa jurídica que não integra o Sistema Financeiro Imobiliário (CCG/SP 11/07/2016). Veja-se, a propósito, ementa a seguir transcrita: "ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL - Possibilidade de o contrato ser firmado por pessoa jurídica que não integre o SFI - Contrato que pode validamente revestir formas pública ou particular Arts. 22 e 38 da Lei 9.514/97, e item 230, Capítulo XX, das NSCGJ -  Precedente -  Recurso Desprovido (CGC/SP 11.07.2016)." Extrai-se dos julgados colacionados a certeza de que é defeso aos órgãos do Poder Judiciário restringir a utilização do instrumento particular na celebração dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos às entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) ou às Cooperativas de Crédito. Reitera-se: a lei que regulamenta a alienação fiduciária é a Lei 9.514/97. Pelo art. 22, §1º permite-se que a modalidade de garantia possa ser contratada não somente pelas entidades financeiras, como por pessoas físicas e ou jurídicas, conforme segue: "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1o  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: (Grifos nossos) Outro ponto a ser ponderado é que não pode norma estadual e ou qualquer ato infralegal,  como fez o Provimento Estadual de Minas Gerais, estabelecer diversamente do que for assegurado por lei federal, em especial quando a União é o ente competente para legislar exclusivamente sobre o assunto. No caso em tela, por força da Constituição Federal, é a União quem deve legislar sobre registros públicos. Tomamos emprestado abaixo julgamento de um caso análogo em que houve negativa dos cartórios em proceder registros com base em legislações ou atos infralegais contrários à norma federal: "Apelação Cível. Pedido de Providências. Não alteração do Registro Civil. Competência Privativa da União para legislar sobre Registros Públicos. Art. 22, XXV. Código das Normas da Corregedoria Geral da Justiça. Art. 384. Apelo improvido. (TJ/MA, acórdão publicado no Diário da Justiça do Maranhão em 11.01.2012, p. 24)  Ademais, sobre a possibilidade de ser celebrada a alienação fiduciária, tomamos emprestadas as lições de Melhim Namem Chalhub: "Os atos e contratos referidos na Lei n° 9.514/97, bem como aqueles resultantes da sua aplicação, poderão ser formalizados por instrumento particular. A lei não faz restrição alguma quanto às modalidades de contrato passíveis de ser formalizados mediante instrumento particular em relação à Lei nº 9.514/97; ao contrário, estende a possibilidade de formalizar por instrumento particular a todos os atos e contratos referidos nesta lei ou resultantes de sua aplicação.' Assim, quando resultantes da referida lei, podem ser celebrados por instrumento particular a compra e venda, a promessa de venda, a hipoteca, a caução de direitos aquisitivos, a cessão fiduciária, a alienação fiduciária, enfim, os atos e contratos relacionados à comercialização de imóveis e à constituição de garantias imobiliárias previstas na Lei nº 9.514/97 ou resultantes dela.(CHALHUB, Melhim Namem. "Negócio Fiduciário", Ed. Renovar, Rio de Janeiro - São Paulo - Recife, 2009, p. 234-235).(Grifos nossos)  Não obstante todos os pontos acima abordados, NÃO FOI ASSIM QUE JULGOU O CNJ. Entendeu a Colenda Corte pela aplicabilidade do art. 108 do Código Civil em detrimento de uma norma especial, Lei de Alienação Fiduciária, que não traz qualquer restrição a utilização da forma particular para aqueles que não operam no SFI.   De acordo com o voto proferido pelo Relator, todos os contratos de venda e compra com Alienação Fiduciária devem observar a forma da escritura pública, mesmo se a Legislação Especial, que é a de Alienação Fiduciária, excepcione e estenda a celebração de instrumentos particulares com força de escritura aos particulares não vinculados ao Sistema do SFI, SFH e ou Cooperativas de Crédito.  Citado julgado, além de importar em um retrocesso na legislação, importará em aumento expressivo do custo do financiamento a ser repassado ao comprador final. Somente os tabelionatos de notas é quem passarão a ter competência para lavrar escrituras de venda e compra com alienação fiduciária. Haverá substancial aumento operação ao consumidor, porque serão cobrados todos os custos e emolumentos inerentes da escritura pública. Dependendo do tipo de empreendimento e o público para o qual está voltado o empreendimento, essa majoração de custo poderá inviabilizar a operação imobiliária. Esta decisão é grave, pois contraria Lei Federal, - específica sobre a matéria de alienação fiduciária,- e terá consequências nefastas. Lembrando, ainda, inexiste crédito para loteadores no Brasil, o que os obriga a executarem as obras de infraestrutura com recursos próprios. Esta decisão dificultará ainda mais o acesso ao crédito que antes era feito com operações de securitização das carteiras dos recebíveis imobiliários, celebrados com garantia real da alienação fiduciária através de instrumento particular. Se definitiva, tal decisão encarecerá o processo, como poderá inviabilizar o acesso de recursos para este mercado tão importante para o país. Todas as alterações realizadas com a edição da Lei do Bem, editada e promulgada para desenvolver o setor imobiliário, foram sepultadas com o julgamento do CNJ.
Em 7.5.2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)1, por meio da Segunda Seção, julgou o Recurso Especial (REsp) 1.348.640/RS, definindo a seguinte tese (sob o tema de n. 677): "Na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada.". No entanto, foi suscitada e acolhida questão de ordem no bojo do REsp 1.820.963/SP, ocasião em que a Corte Especial revisitou a matéria, alterando seu entendimento2 para fixar a nova tese, em 19.10.2022: "Na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial.". Cumpre-se indicar, brevemente, os principais fundamentos para essa virada jurisprudencial. De início, a relatora destaca a natureza jurídica diversa que o STJ conferiu às categorias do "pagamento" e "garantia do juízo"3. Sustentou que a Terceira Turma já havia relativizado a tese do tema 6774, onde o Min. Relator, à época, argumentou que, pelo Código Civil (CC/02), depósito em garantia do juízo não equivale a pagamento, inexistindo, portanto, o efeito liberatório. Nessa toada, afirmou: "Assim, melhor refletindo a respeito da matéria, não vejo como se possa liberar o devedor dos consectários da mora quando efetua o depósito judicial da dívida para fins de garantia do juízo, uma vez que seu propósito ao fazê-lo é justamente impugnar a obrigação que lhe é atribuída, atitude que se mostra incompatível com seu cumprimento.". Concordando com essa orientação, a Min. Nancy cita os arts. 394, 395 e 401, I, do CC/02, assinalando que a purga da mora ocorre com a efetiva entrega da soma ao credor e não com a simples perda da posse do valor pelo devedor. Nessa seara, asseverou que tal lacuna do CC/02 é preenchida pelo Código de Processo Civil (CPC), ao deixar claro que a satisfação do crédito se dá pela entrega do dinheiro ao credor, nos termos do art. 904, I5. Conclui, ao fim, que somente o depósito judicial voluntário pelo devedor, com vistas à satisfação do credor, sem qualquer sujeição do levantamento à discussão do débito, cessa a mora do devedor e extingue a obrigação. Por conseguinte, no entendimento da Min., o depósito a título de garantia do juízo não cessa a mora por não ocorrer a imediata entrega do dinheiro ao credor, o que ensejaria a quitação do débito. O fundamento principal da Min. é a finalidade do depósito: se com objetivo de pronto pagamento, enseja a liberação dos efeitos da mora; se com a finalidade de garantia, não exime, continuando a incidir os juros moratórios e a correção monetária. Essa reviravolta no tema 677 suscita uma ampla gama de problemas e discussões que superam os limites da presente coluna. Mesmo assim, pretende-se apontar alguns argumentos e propor, ao fim, caminhos considerando a tese fixada. Segundo Agostinho Alvim: "Retardamento é o atraso no efetuar a prestação, materialmente considerado. Mora é o retardamento culposo"6. Essa lição permanece atual, considerando a igualdade de redações do art. 963 do Código Civil de 19167 (CC/16) e do Art. 396 do CC/028. No mesmo sentido, a definição de Menezes Cordeiro, segundo quem há o cumprimento retardado quando, no momento da prestação, esta não seja efetuada. Por outro lado, "sendo o atraso imputável ao devedor, este entra em mora"9. O problema da orientação é que os artigos aludem à imputabilidade, e imputar: "é atribuir responsabilidade a alguém. O nexo de atribuição de responsabilidade - que se chama imputação - pode ser informado pelos princípios da culpa, do risco, da segurança 'haja o que houver', ou da garantia (fatores de imputação)"10. Desta forma, a mora do devedor exige: (i) o descumprimento no tempo, lugar e forma11 (elemento objetivo); e (ii) a imputabilidade (elemento subjetivo). Consequência dessas premissas que os efeitos da mora apenas se aplicam quando há fato ou omissão imputável ao devedor12 juntamente do descumprimento da obrigação. Esse raciocínio guarda profunda relevância com o tema 677. Isso porque, quando o devedor deposita em juízo os valores a título de garantia para afastar os efeitos da mora e continua discutindo a matéria em sede recursal, de impugnação ao cumprimento de sentença ou embargos à execução, não há fato imputável ao devedor na demora da resolução que permita sua responsabilidade pelos consectários legais da correção monetária e dos juros de mora. Muito pelo contrário: afastando-se da inércia, age para garantir o direito creditório, sendo duvidosa a relevância jurídica da finalidade do depósito, mormente a considerar que o devedor perde a disponibilidade do valor, ficando na dependência de decisão judicial para sua liberação. Não tendo êxito em sua defesa, o valor será liberado ao credor13. O que se está a fazer, a partir da revisão do tema, é penalizar o devedor diligente que, depositando o valor em juízo - montante este que já não estará sob sua esfera de disponibilidade -, deduz judicialmente um válido questionamento acerca do valor efetivamente devido. É dizer: o revisitado tema 677 fixou uma tese contraditória com a sistemática do ordenamento jurídico, pois permite que o devedor se defenda com os meios processualmente existentes contra a pretensão do credor e, ao mesmo tempo, imputa-lhe o retardamento no cumprimento da prestação quando já garantiu ao credor a satisfação do seu direito de crédito. A inobservância do requisito da imputabilidade do devedor levará a consequências um tanto questionáveis14, notadamente a eternização15 de execuções quando o processo obrigacional é polarizado ao adimplemento da obrigação com a satisfação dos interesses do credor16 e o sancionamento de devedores que se valem do devido processo legal garantido constitucionalmente17. Ainda, o argumento de possível delonga de ações executivas para alterar o tema 677 é questionável, considerando que o executado pretende com o depósito a título de garantia é a concessão de efeito suspensivo ao seu mecanismo defensivo. Para a atribuição desse efeito à impugnação ao cumprimento de sentença, cumpre-se, para além da garantia do juízo, que os fundamentos sejam relevantes (art. 525, § 6º, CPC). Igualmente, o efeito suspensivo será atribuído aos embargos à execução desde que "verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória" (art. 919, § 1º, CPC); a probabilidade do direito e o risco na demora processual. Ou seja, a nova tese penaliza o devedor que, valendo-se do regular exercício de suas garantias processuais, suscita relevantes fundamentos. Por isso, não se trata de beneficiar um devedor que pretende estender indefinidamente uma discussão com o objetivo de se furtar do cumprimento da obrigação, mas de possibilitar que um devedor com fortes argumentos possa manejar seus meios de defesa sem ser sancionado por isso. Não se pode desconsiderar, nesse âmbito, o atual e sobejamente conhecido cenário de duração irrazoável do processo nos tribunais pátrios, até em virtude do assoberbamento do Judiciário nacional18. Tem-se, portanto, um estado de coisas em que, para além do descumprimento do princípio constitucional (art. 5º, LXXVIII), resta afastado por completo o preceito geral de menor onerosidade da execução19. Extrai-se, no mesmo sentido, incongruência da interpretação sistêmica e finalística dos arts.  525, § 8º, e 919, § 3º, do CPC, ao estabelecerem que o efeito suspensivo pode ser atribuído apenas a parte do objeto da execução, prosseguindo esta quanto à parte restante. A rigor, sob a nova tese, o juízo nunca estará integralmente garantido: se os juros não param de fluir com o depósito, a garantia sempre será insuficiente. Em paralelo, nota-se contradição com a orientação do tema 1.002 do STJ, segundo a qual nos compromissos de venda e compra anteriores à lei 13.786/18, em hipóteses de pleito de resolução contratual por iniciativa do promitente comprador de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros de mora incidirão a partir do trânsito em julgado da decisão, em relação à nova tese fixada através do tema 677. Pois à hipótese de cumprimento provisório da sentença resolutória, seguindo o tema 1.002, não incide juros moratórios, já pelo entendimento fixado no tema 677, eventual depósito realizado a título de garantia no cumprimento provisório não faria cessar a incidência de juros. Desse modo, há desconformidade entre os temas e seus fundamentos, o que a Corte deverá enfrentar para garantir segurança jurídica. Na seara imobiliária, o tema igualmente tem relevo. A título exemplificativo, cogite-se de execuções extrajudiciais sobre quotas condominiais, débitos de adquirentes inadimplentes, ou cumprimentos de sentença de ações condenatórias em obrigação de pagar em geral. Sob o novo entendimento, mesmo que a parte executada deposite o valor nos autos, os juros e correção monetária continuarão correndo, o que tornará a estratégia pouco eficiente e desvantajosa economicamente. Os litigantes deverão observar, a partir de agora, as chances de êxito na discussão contrapondo com o valor que será acrescido pela demora no julgamento de suas defesas ou recursos, pois ocorrerão situações em que, mesmo que o valor declarado devido seja inferior, com os juros moratórios e correção monetária que incidirão, os montantes se "compensarão". Logo, considerando que o depósito não afasta os consectários da mora, torna-se mais vantajoso o oferecimento de garantias judiciais não-financeiras, como a fiança bancária e o seguro garantia judicial, que se equiparam a dinheiro, com o devido acréscimo de trinta por cento, ex vi art. 835, § 2º do CPC. Assim, o executado não se descapitalizará, mantendo-se os valores para sua operação econômica. De todo modo, afora os problemas suscitados, com soluções à vista, propõem-se que os advogados, ao depositarem os valores, em juízo façam a devida distinção do valor incontroverso e o valor controvertido. Isso é necessário para que o valor incontroverso contenha a finalidade de imediato pagamento, não sofrendo juros moratórios, e sejam liberados ao credor, mantida a discussão apenas pelo valor controvertido, que não tem finalidade de imediato pagamento, mas de garantia. Os advogados deverão requerer, em sede de tutela provisória, que o juízo suspenda o cumprimento de sentença ou a execução pelos poderes advindos do art. 525, § 6º20, e 919, § 1º21, do CPC, atribuindo efeito suspensivo à impugnação ao cumprimento de sentença ou aos embargos à execução, esclarecendo que o efeito suspensivo abarcará, também, os juros moratórios. Dessa forma, os litigantes deverão observar os requisitos da tutela provisória para que os juros de mora não fluam. Considerando que o magistrado possui o poder geral de cautela e pode, cessando as circunstâncias que motivaram a suspensão, modificar ou revogar a decisão suspensiva (§ 2º do art. 919 do CPC22), a solução estará sempre sob o pálio judicial e, verificando no caso concreto o abuso do direito de recurso ou o propósito protelatório, o magistrado, seja na instância de primeiro ou segundo grau, poderá revogar a decisão, retornando a fluição dos juros moratórios e os atos expropriatórios. Por derradeiro, percebe-se que o tema gerará novos debates pela doutrina e jurisprudência, principalmente pela sua relevância prática, especialmente nos litígios imobiliários que ocasionem execuções de títulos extrajudiciais ou cumprimentos de sentença, no que as presentes linhas propõem contribuir com a discussão.   __________ 1 Agradece-se às contribuições do Presidente do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário), André Abelha, ao presente texto. 2 A Ministra (Min.) Nancy Andrighi, relatora, votou para prover o Recurso Especial fixando a tese acima, acompanhada pelos Min. Laurita Vaz, João Otávio de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Og Fernandes e Benedito Gonçalves, vencidos os Min. Jorge Mussi, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e Francisco Falcão. O apertado placar de 7 a 6 demonstra a profunda controvérsia da matéria. 3 Aliás, questiona-se essa distinção atualmente, considerando que o depósito judicial garantidor não é mais pressuposto para apresentação dos embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, como sustentado na vigência do CPC/1975 pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito (Ag n.715.490/SP, DJ de 31/8/2006). Além disso, parece que a distinção colocou a garantia em local de desprestígio, situando-a, indevidamente, inferiormente ao pagamento. Ignora-se que a garantia possui função satisfativa do credor, proporcionando ao credor um poder de excussão do patrimônio garantidor (o próprio depósito nos autos, à hipótese tratada) sem necessidade de execução forçada em busca do próprio patrimônio do devedor (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Garantia e responsabilidade patrimonial: novos meios executivos e a execução forçada como reforço da obrigação. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 25, p. 59-89, out-dez. 2020). A segurança jurídica provida pelo depósito garantia não pode, também, ser apequenada ou desprezada. 4 REsp 1.475.859/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, DJe de 25.8.2016. 5 "Art. 904. A satisfação do crédito exequendo far-se-á: I - pela entrega do dinheiro;" 6 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 23. 7 "Art. 963. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." 8 "Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora." 9 CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil: direito das obrigações, cumprimento e não-cumprimento, transmissão, modificação e extinção. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2017, v. IX, p. 234. Nessa linha, cf. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 12. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p. 1.048 e ss. 10 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II, p. 373. Igualmente, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atual. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. XXIII, p. 211 e ss. Catarina Monteiro Pires indica que imputação em Direito é funcional, criando nexo de atribuição de certas normas jurídicas, e normativa, pois parte de critério fixado por meio de uma regra jurídica, fundamentando-se em considerações axiológicas ou valorativas (PIRES, Catarina Monteiro. O que é imputar? AGIRE | Direito Privado em Ação. Disponível aqui. Acesso em 24 jul. 2023). 11 "Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer." 12 "Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. [...] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado." 13 A rigor, conforme dicção do § 6º do art. 525 do CPC, ainda que o juízo seja garantido, se os fundamentos da impugnação não forem relevantes, a garantia poderá ser levantada pelo credor, com evidente efeito liberatório. 14 O voto divergente do Min. Sanseverino (in memoriam), percucientemente, indica três consequências práticas da revisão do tema: (i) desestimular o devedor em efetuar o depósito em dinheiro na fase de execução, em desprestígio à efetividade da execução; (ii) incentivar o devedor a pleitear a substituição de eventual penhora de dinheiro por fiança bancária; e (iii) uma possível "eternização" da execução, pois, mesmo após o recebimento da dívida principal, restaria um saldo de juros a executar. 15 Esse argumento também fora levantado pelo voto-vista divergente do Min. Raul Araújo. 16 COUTO E SILVA, Clovis v. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2006, p. 17. 17 Ademais, recorda-se que o credor, com o depósito judicial, não será prejudicado, haja vista que os valores sofrerão incidência de correção monetária. Destarte, a alteração de entendimento, parece, ter o condão apenas de onerar o devedor diligente.   18 O relatório "Justiça em Números", em sua edição de 2022, produzido pelo CNJ, dá conta da existência de cerca de 62 milhões de ações judiciais em andamento. 19 Cândido Rangel Dinamarco diz que essa disposição: "representa o núcleo de um verdadeiro sistema de proteção ao devedor contra excessos executivos, inspirado nos princípios da justiça e da equidade, sabendo-se que essa proteção constitui uma das linhas fundamentais da história da execução civil em sua generosa tendência à humanização" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, v. IV, p. 49-50). 20 "Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação. [...] § 6º A apresentação de impugnação não impede a prática dos atos executivos, inclusive os de expropriação, podendo o juiz, a requerimento do executado e desde que garantido o juízo com penhora, caução ou depósito suficientes, atribuir-lhe efeito suspensivo, se seus fundamentos forem relevantes e se o prosseguimento da execução for manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação." 21 "Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo. § 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes." 22 "§ 2º Cessando as circunstâncias que a motivaram, a decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada."
I Construção para aluguel de moradias Nos anos 1.940 a "Mineração Geral do Brasil", construiu 500 casas em Mogi das Cruzes, para os seus empregados; naquela década e nas seguintes foram construídos vilas e prédios em todo o país, voltados à moradia dos empregados desta ou daquela indústria. Igualmente, foram construídos vilas e prédios residenciais com unidades destinadas unicamente à locação; muitas dessas vilas se transformaram em locais disputadíssimos, seja para residência, seja para instalação de lojas e escritórios sofisticados. A destinação à moradia de empregados sofreu diante da evolução das leis laborais; o tratamento fiscal desfavoreceu esses empreendimentos; a evolução dos costumes e das relações de trabalho findou deixando no passado aqueles conjuntos residenciais; assistiremos muita mudança, ainda, conforme oscilem as vontades e as necessidades sociais. Já a construção para a locação residencial teve também os seus percalços seríssimos, ora consequentes da legislação extremamente protetiva (exageradamente, a ponto de prejudicar os pretendidos destinatários das benesses, em clara sequência semelhante à dos vasos comunicantes: enchendo demasiadamente um, a pressão acabará em outro...), ora da movimentação da economia; até mesmo questões relevantíssimas, de saúde pública, influenciaram a construção dos prédios e vilas residenciais1. Em 1.9422 a Lei do Inquilinato de Getúlio Vargas congelou os aluguéis, obviamente levando à destruição os empreendimentos voltados à locação. Opções legislativas semelhantes3 pontuaram a história brasileira, aliás, sempre findando no desmantelamento dos investimentos e da oferta de residências (afinal, frase atribuída a Albert Einstein por perfeitamente coerente com a sua filosofia, ?insanidade é repetir os mesmos erros e esperar resultados diferentes). Seja como for, os congelamentos e as restrições remanesceram por longos períodos, exigindo muito, muito tempo para que as pessoas acreditassem terem sido afastadas na lei de 1.991. E aí reside a razão (com base inteligente e histórica, a quiçá mudar no futuro) de não se cobrarem os encargos embutidos no aluguel: os aluguéis volta e meia foram congelados no passado; os encargos somente o seriam se num passe de mágica não se alterassem salários (dos que trabalham nos prédios e também os indiretos), energia, água, produtos de limpeza usados nos edifícios e assim por diante. Logo, embutir encargos no aluguel significaria que o locador assumiria o risco inflacionário, insuportável, o que geraria litígios infindáveis. Daí a distinção na cobrança, entre alugueis, encargos (e impostos). Dentre surtos inflacionários, ganhos pontuais e espetaculares em investimentos mobiliários, recessões, quebras de bancos e de empresas e fases de euforia econômica, chegamos aos tempos atuais, em que pessoas precisam morar, mas não podem ou não querem comprar imóveis para isso. De outro lado, dispensando o Estado dessa obrigação (até por absoluta inaptidão e falta de dinheiro para essa destinação), investidores têm eleito o setor imobiliário como opção segura e de longo prazo para suas inversões; a legislação locatícia já é antiga, conhecida e respeitada; os contratos têm oferecido4 boa garantia e não têm, de modo geral, sofrido com a insegurança jurídica que estapeia outros setores. Dessa conjunção, têm crescentemente surgido prédios de dono único, destinados à locação residencial: várias unidades, não constituídas sob a forma do condomínio edilício, pertencentes todas a apenas um proprietário. II O rateio das despesas entre unidades autônomas de um proprietário Pois bem. Nada impede a locação dessas várias unidades a vários locatários, ajustando-se vários contratos; essas locações são regidas pela Lei n. 8.245, de 1.991, a "Lei das Locações". Mas, tem surgido recentemente, com a vinda de novos empreendimentos, forte questionamento sobre o rateio das despesas de conservação e de manutenção do prédio: podem ser cobradas dos locatários, desde que tão somente assim esteja previsto no contrato? Sim, podem, isso está previsto no parágrafo terceiro, do artigo 23 da Lei das Locações: "§ 3º No edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade da mesma pessoa, os locatários ficam obrigados ao pagamento das despesas referidas no § 1º deste artigo, desde que comprovadas". Porém, não é suficiente que tão somente esteja contratado o rateio, como se verá. III Condições do rateio entre as unidades e distinção do rateio em condomínio edilício Realmente esse rateio merece algumas observações e a primeira é que as despesas a ratear devem ser comprovadas. Essa previsão difere do que ocorre com os condomínios edilícios, nos quais o condômino deverá paga-las (art. 1.336 - I, do Código Civil); as despesas deverão ser orçadas pelo síndico (art. 1.348 - VI, do Código Civil), prevendo a Convenção qual "a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições" (art. 1.334 - I, do Código Civil), cabendo ao síndico cobrar os condôminos e prestar contas da movimentação financeira (art. 1.348 - VII, VIII do Código Civil). Interessa notar que mesmo que o condomínio funcione mal, o síndico seja desatento quanto aos seus deveres, mesmo assim os condôminos deverão pagar as contribuições, afinal a simples existência da propriedade já gera despesas que hão de ser suportadas pontualmente pelos interessados, os proprietários. A esse respeito, a jurisprudência5 é tradicional e pacífica. Mas, nas locações das unidades que não integram um condomínio edilício, o pagamento somente poderá ser exigido se provadas as despesas, o diz a lei. IV Quais e como as despesas que podem ser rateadas Que despesas podem ser consideradas como sendo de manutenção dessas unidades e, portanto, poderão ser cobradas? Novamente, a resposta está na própria lei das locações, que as equipara às despesas ordinárias do condomínio edilício (art. 23, inciso XII)6. Estas, lembremos, podem7 sempre ser atribuídas ao locatário8 da unidade condominial, desde que prevista esta obrigação no contrato9. Logo, havendo previsão contratual, as despesas de manutenção e conservação serão atribuídas ao locatário; na situação dos edifícios não constituídos como condomínios edilícios, mas constituídos por unidades autônomas de propriedade de uma pessoa, essa atribuição também será possível, mas a comprovação das despesas será condição incontornável da cobrança. V O aspecto tributário Entretanto, essa cobrança pelo Locador impõe breve estudo de um outro aspecto, o tributário. E nesse tópico, a diferença entre consistir ou não um "condomínio edilício" será importante. Em se tratando de condomínio edilício, os valores que o Condômino Locador receber do Locatário não sofrerão incidência do imposto de renda. Como em matéria tributária a literalidade é crucial, convém mencionar que a exclusão desses valores do cômputo da base de cálculo do tributo está expressa no artigo 42 - IV10 e no artigo 689 - IV11 do Regulamento do Imposto de Renda. Essa certeza de exclusão das despesas de condomínio, constante em Instrução Normativa12, foi sedimentada quando consultada formalmente a Receita Federal13. Num primeiro vislumbre poderia parecer também não haver tributação no recebimento das despesas de conservação e manutenção cobradas em edifícios constituídos por unidades autônomas de um só proprietário, sabendo-se que a discriminação14 dessas despesas é mais que baseada, copiada da relação de despesas ordinárias condominiais. Mas, não é bem assim. A legislação tributária há de ser interpretada literalmente (art. 111, do Código Tributário Nacional), vai daí a analogia (entre despesas de condomínio atribuídas a unidades condominiais e despesas de manutenção de unidades não condominiais) ou a equidade (malgrado palpável a sua Justiça) não é de ser admitida, numa aplicação rigorosa da lei. Sobre a aplicação da analogia, ou da equidade agora com esteio no art. 108, do CTN15, a par da notória dificuldade de convencimento da Receita Federal, existe um certo consenso de que "A analogia, quando empregada ao caso concreto, beneficia mais ao Fisco do que ao contribuinte."16 . Exatamente nessa toada já decidiu a Receita Federal, quando analisou o tratamento fiscal dado à taxa de manutenção de associação de proprietários e fincou que "o condomínio difere da associação", concluindo que a "taxa de manutenção da Associação de Proprietários" não é dedutível da base de cálculo do imposto sobre a renda17. Por certo será arriscado supor que as despesas no prédio com várias unidades organizado como condomínio edilício não diferem das despesas no prédio com várias unidades de um dono somente e arriscar operação com essa base. Espere-se a evolução da interpretação fiscal, será mais recomendável. Enfim: (i) é verdade que os gastos, as destinações de dinheiro são os mesmos; (ii) é verdade que as despesas de condomínio e as despesas de manutenção de unidades não condominiais, ambas podem ser cobradas do Locatário, desde que assim o diga o contrato celebrado; (iii) a legislação tributária exclui as despesas de condomínio da base de cálculo do imposto sobre a renda que o Locador deve pagar; (iv) a legislação tributária não exclui expressamente tais despesas na situação do prédio de um dono somente; (v) a legislação tributária deve ser interpretada literalmente e, portanto, será arriscado tentar essa exclusão. Essa tributação (como, por igual, a das despesas de manutenção das associações de moradores) deixa parcela dos locadores em situação desbalanceada, injusta: hão de pagar, nesse pensar, tributo sobre valores que percebem a título de reembolso de despesas, que não são renda de aluguel propriamente dita! VI Arriscando sugestões Sob o prisma da tributação, esse obstáculo interpretativo, essa dificuldade de mostrar que as despesas, ocorram no condomínio edilício ou ocorram no prédio de um proprietário, são as mesmas (o diz a lei, além da evidência), pois decorrem do prédio e não (jamais) da formatação jurídica de seu domínio, precisa ser superado. O caminho mais rápido consistiria na evolução interpretativa pelo Fisco; um segundo caminho, que ofereceria solução definitiva e consistiria na inserção de referência expressa a esse rateio na legislação tributária (bastaria, aos incisos IV dos artigos 42 e 689 do Regulamento do Imposto de Renda e do art. 31 do Decreto n. 9.580, de 22/11/2.018, acrescentar "IV - as despesas de condomínio ou as despesas de previstas no § 3º da Lei n. 8.245 de 1991"18. A singela incrustação dessas verbas no valor do aluguel, no atual estágio de interpretação e aplicação da legislação tributária é inviabilizador do negócio, devido à tributação19. Outra solução, sob o olhar tributário, seria a constituição de Sociedade, que arrecadasse os rateios e pagasse os dispêndios, operação com saldo zerado, que não seria onerado pelo imposto, mas que implicaria em custos administrativos. Entretanto, a par desse custo operacional, se essa verba não for classificada como "encargo locatício", o seu inadimplemento não permitirá a promoção de ação de despejo por falta de pagamento, dirigida somente aos casos de "falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação".20 Como se vê, a interpretação fiscal, se não inviabiliza esse negócio, o onera. Sob o aspecto cível: o contrato de locação deverá ser transparente (conduta a seguir em qualquer contrato, diga-se), mantendo claro que ocorrerá o rateio dos custos, informando quais serão eles. Deverá ser comunicado, ainda, onde e quando estarão, à disposição do locatário, as prestações de contas e os comprovantes de despesas. Quanto a isso, tem se difundido a comunicação eletrônica, exatamente como fazem os condôminos (mais uma vez, a semelhança é absoluta), perfeitamente suficiente para a prova exigida na lei. VII Concluindo  É, portanto, perfeitamente possível cobrar as despesas de manutenção, desde que satisfeito o requisito da comprovação da despesa (que deverão  ser aquelas legalmente admitidas). O contrato deverá prever a responsabilidade por tais pagamentos e como se fará a prova da realização das despesas, certo que a transparência evitará dúvidas e litígios, trará segurança jurídica. Diante dos caminhos operacionais, deverá ser lembrado que se as despesas forem consideradas como encargos da locação, elas poderão motivar despejo por falta de pagamento, mas serão consideradas aluguel, não sendo, a rigor, dedutível seu valor para fins de imposto sobre a renda do Locador, pois a Receita Federal não as reputa iguais às despesas de condomínio (dedutíveis do tributo). Se não forem consideradas encargos da locação, mas consistirem em reembolso sem relação direta como aluguel, o inadimplemento não poderá motivar despejo por falta de pagamento, mas não sofreriam a tributação como aluguel. Os crescentes investimentos em prédios residenciais de um proprietário (não instituídos condomínios edilícios) aumentarão a disponibilização de moradias (que todos desejam) e exigirão, certamente, diante do claro interesse social, a reavaliação do entendimento fiscal. __________ 1 Uma boa leitura a respeito: Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo, da professora e ex senadora Eva Blay. S. Paulo. Ed. Nobel. 1.985. 2 O Decreto Lei n 4.598, de 20/08/1.942, que instituiu: "Art. 1º Durante o período de dois anos, a contar da vigência desta lei, não poderá vigorar em todo o território Nacional, aluguel de residência, de qualquer natureza, superior ao cobrado a 31 de dezembro de 1941, sejam os mesmos ou outros o locador ou sublocador e o locatário ou sublocatário, seja verbal ou escrito o contrato de locação ou sublocação". 3 Quando não congelaram, tabelaram os alugueis, como ocorreu sob a presidência de João Goulart (Decreto n. 53.702 de 14/03/1.964). 4 Inclusive através dessa separação - a lei retratou a prática - entre aluguel e encargos. 5 "DESPESAS DE CONDOMÍNIO - COBRANÇA - PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE - INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL NÃO RECONHECIDA - multa, correção monetária e os juros de mora que derivam do atraso no pagamento - INTELIGÊNCIA, ADEMAIS, DO art. 1.336, § 1º, do Código Civil - VÍCIO DE JULGAMENTO EXTRA PETITA NÃO CONFIGURADO - PEDIDO DE GRATUIDADE DA REQUERIDA INDEFERIDO - AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE EVIDENCIEM A SITUAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA - RECURSO DO CONDOMÍNIO-AUTOR PROVIDO, DESACOLHIDO O APELO DA RÉ. Há presunção de legitimidade das despesas condominiais reclamadas de cada condômino. Essa presunção juris tantum dispensa a exibição de boleto, ata de assembleia ou balancetes, sob pena de se instituir o primado do rigorismo excessivo, incumbindo ao condômino infirmá-la" (T-SP. AC: 10043561720208260100 SP 1004356-17.2020.8.26.0100, Relator: Renato Sartorelli, Data de Julgamento: 06/10/2021, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/10/2021).    "CONDOMÍNIO. Alegação de nulidade da representação processual do condomínio por ausência de ata de assembleia em que ocorreu a eleição do síndico. Não ocorrência. Ata juntada aos autos e devidamente registrada. Preliminar rejeitada. CONDOMÍNIO. Cobrança de Despesas Condominiais - Ausência de documentos indispensáveis - Inocorrência. Na demanda ajuizada para cobrar despesas condominiais dispensa-se a apresentação de documentos que tenham o condão de demonstrar a formação do crédito e o respectivo inadimplemento - Não são necessários balancetes, prestação de contas e atas de assembleias, especialmente porque a higidez dos valores cobrados é presumida considerando que a simples existência da propriedade condominial gera despesas que devem ser suportadas pelos condôminos. Recurso não provido." (TJSP; Apelação Cível 0015533-26.2011.8.26.0127; Relator (a): Gilson Delgado Miranda; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de Carapicuíba - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/12/2012; Data de Registro: 12/12/2012). "Há a presunção de que o imóvel gera despesas, e há a certeza de que a ré não pagou qualquer quantia referente ao período invocado pelo autor; em dívida de condomínio, a regra é dies interpellat pro homine, não necessitando qualquer procedimento judicial ou extrajudicial para a constituição da devedora em mora" (TJSP, Apelação nº 681.663, 2º TAC, Rel. Henrique Nelson Calandra, j. em 29.07.2003). 6 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 O locatário é obrigado a: [...] XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio. § 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração respectiva, especialmente: a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos empregados do condomínio; b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum; c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum; d) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos, mecânicos e de segurança, de uso     comum; e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum destinados à prática de esportes e lazer; f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas; g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum; h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da locação; i) reposição do fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou complementação das despesas referidas nas alíneas anteriores, salvo se referentes a período anterior ao início da locação. 7 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 [...] I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato; 8 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 23 [...] § 2º O locatário fica obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo anterior, desde que comprovadas a previsão orçamentária e o rateio mensal, podendo exigir a qualquer tempo a comprovação das mesmas. 9 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 25. Atribuída ao locatário a responsabilidade pelo pagamento dos tributos, encargos e despesas ordinárias de condomínio, o locador poderá cobrar tais verbas juntamente com o aluguel do mês a que se refiram." 10 BRASIL. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018. Regulamenta a tributação, a fiscalização, a arrecadação e a administração do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza. Art. 42. Não serão computados no rendimento bruto, na hipótese de aluguéis de imóveis: I - o valor dos impostos, das taxas e dos emolumentos incidentes sobre o bem que produzir o rendimento; II - o aluguel pago pela locação de imóvel sublocado; III - as despesas pagas para cobrança ou recebimento do rendimento; e IV - as despesas de condomínio. 11 BRASIL. Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018. Regulamenta a tributação, a fiscalização, a arrecadação e a administração do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza. Art. 689. Não integrarão a base de cálculo para incidência do imposto sobre a renda, na hipótese de aluguéis de imóveis: I - o valor dos impostos, das taxas e dos emolumentos incidentes sobre o bem que produzir o rendimento; II - o aluguel pago pela locação do imóvel sublocado; III - as despesas para cobrança ou recebimento do rendimento; e IV - as despesas de condomínio 12 Instrução Normativa RFB n. 1.500, de 16/09/2.013, cujo artigo 31 - IV prevê que as despesas de condomínio não integrarão a base de cálculo para efeito de incidência do imposto sobre a renda do locador. 13 Conforme "Solução de Consulta DISIT/SRRF 10 n. 10004, de 22/02/2.023": "IMÓVEIS. ALUGUÉIS. DEDUÇÕES. DESPESAS DE CONDOMÍNIO. FUNDO DE RESERVA. BENFEITORIAS. As despesas de condomínio, ordinárias e extraordinárias, incluída a despesa para constituição de fundo de reserva, constante da alínea "g" do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 8.245, de 1991, constituem dedução dos aluguéis recebidos, desde que o ônus tenha sido do locador, por força do disposto no art. 31, inciso IV e § 1º, da Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 2014, e nos arts. 42, inciso IV, e 689, inciso IV, do Regulamento do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, aprovado pelo Decreto nº 9.580, de 2018 (RIR/2018).  Solução de Consulta vinculada à Solução de Consulta COSIT nº 167, de 27 de setembro de 2021. Dispositivos Legais: Regulamento do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (RIR/2018) aprovado pelo Decreto nº 9.580, de 2018, arts. 42 e 689; Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 2014, arts. 30 a 35." 14 Lembremos que no art. 23, o parágrafo terceiro ora tratado faz expressa referência às despesas listadas no parágrafo primeiro (que alude às despesas de condomínio). 15  BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido 16 Segundo a Procuradora Federal Maira Cauhi Wanderley, em A interpretação da norma tributária segundo o Código Tributário Nacional - "Conteúdo Jurídico", 23/12/2014), que completa: "É aplicada somente quando a lei conter lacunas que não expresse a sua vontade para determinado caso, sendo também necessário que haja semelhança visível entre o caso concreto e o escolhido para comparação." 17 "Assinale-se que condomínio difere a associação. Num condomínio (artigos 1314 a 1346 do Código Civil) o bem pertence a mais de uma pessoa, há copropriedade, estando o condômino obrigado, na proporção de sua fração ideal, a contribuir para as despesas de condomínio. Já uma associação, segundo o disposto no art. 53 da mesma Lei, é formada pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos, na qual não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos. Assim, conclui-se que a "taxa de manutenção da Associação de Proprietários" não e dedutível da base de cálculo do imposto sobre a renda de apuração mensal (carne leão)." (Solução de Consulta n. 116, de 26/03/2.019). 18 Ou tal se poderia fazer através de redação provavelmente melhor... 19 Situação diferente e dependente da contabilidade e opção fiscal, existiria no lançamento como dessas operações. 20 BRASIL. Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Art. 62.
É crescente o número de decisões judiciais decretando rescisão de contratos de venda e compra de lotes com pacto adjeto de alienação fiduciária, prevista na lei 9.514/97, sob argumento de que não pode existir confusão entre loteador e credor fiduciário, atividade esta "exclusiva das instituições financeiras". Sim, isso mesmo, muito embora entendemos não ser possível a rescisão da Alienação Fiduciária, conforme inúmeros precedentes, isso está se consolidando em algumas recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo. COMPRA E VENDA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EMPREENDEDORA E CREDORA FIDUCIÁRIA QUE SE CONFUNDEM  RESCISÃO  POSSIBILIDADE - A alienação fiduciária de imóvel objeto de compromisso de compra e venda não obsta o pedido de rescisão por parte do promitente comprador, especialmente na hipótese em que a empreendedor se confunde com o credor fiduciário. (TJSP; Apelação Cível 1002294-69.2019.8.26.0704; Relator (a): Ronnie Herbert Barros Soares; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV - Butantã - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/05/2020; Data de Registro: 26/05/2020, grifo nosso). g.n EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. RESCISÃO CONTRATUAL. TUTELA URGÊNCIA. No caso em questão a vendedora se confunde com a credora fiduciária, na tentativa de burlar o sistema de defesa do consumidor, o que não se admite e assim, presentes elementos que evidenciam a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo fica demonstrada a possibilidade da concessão da tutela de urgência. Inteligência do art. 300 do CPC. Decisão mantida. Recurso desprovido.(TJ/SP, AI nº 2086602-91.2022.8.26.0000, 26ª Câmara Direito Privado, Des. Rel. Felipe Ferreira, v.u., j. 28/07/2022, grifos nossos) O instituto da alienação fiduciária nasceu direcionado somente para as instituições financeiras e/ou empresas ligadas ao sistema de financiamento habitacional. Justamente para incrementar a atividade do setor imobiliário, precisamente pela Medida Provisória 2223/2021, posteriormente convertida pela Lei 10.931/2004 (Lei do Bem),  foi estendida a possibilidade de serem celebrados contratos de venda e compra de imóvel com alienação fiduciária entre pessoa física e jurídica, como se depreende da leitura da redação do art. 22 da Lei 9.514, abaixo transcrito: "Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1º  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena (....)          Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título." A respeito deste tema, o STJ - Superior Tribunal de Justiça, também reconheceu que é legítima a formalização da alienação fiduciária como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária, podendo inclusive ser prestada por terceiros. Inteligência dos arts. 22, § 1º, da Lei nº 9.514/1997 e 51 da Lei nº 10.931/2004. (Recurso especial provido. Resp 1542275/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/11/2015, Dje 02/12/2015), veja-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE GARANTIA FIDUCIÁRIA  SOBRE BEM IMÓVEL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. DESVIO DE FINALIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. COISA IMÓVEL. OBRIGAÇÕES EM GERAL. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO AO SISTEMA FINANCEIRO IMOBILIÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22, § 1º, DA LEI Nº 9.514/1997 E 51 DA LEI Nº 10.931/2004. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA."(g.n) Corroborando com tal entendimento, o item 224 do Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, dispõe que: "224. A alienação fiduciária, regulada pela Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, e suas alterações, é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência da propriedade resolúvel de coisa imóvel ao credor, ou fiduciário, que pode ser contratada por qualquer pessoa, física ou jurídica, e não é privativa das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI)."( g.n.) Como se pode verificar, a alienação fiduciária não é privativa das entidades que operam no SFI. Sendo assim, por qual razão estaria o loteador impossibilitado de vender o lote e ao mesmo tempo parcelar o valor para o comprador, com garantia de alienação fiduciária, já que qualquer cidadão pode usar este instrumento para a venda de um imóvel? Como bem lembrado pela Registradora Imobiliária de Assis/SP, Dra. Maria do Carmo R. C. Couto: "É direito das partes escolherem o tipo de contrato de transmissão ou oneração da propriedade que melhor lhes convêm, sendo possível, portanto, a utilização do instituto da propriedade resolúvel mediante alienação fiduciária, prevista no artigo 22 e seguintes da Lei Federal nº 9.514/97." (COUTO, Maria do Carmo R. C. O contrato-padrão de loteamento, as restrições convencionais e a utilização do instituto da alienação fiduciária pelo loteador. Em: http://www.irib.org.br/html/boletim/boletim-iframe.php?be=454).g.n Sabemos da grande dificuldade em se conseguir crédito imobiliário para desenvolver loteamentos no país. Os bancos e gestoras da "Faria Lima (SP)" se interessam em financiar projetos de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e não loteamentos (lei 6.766/79). Dentre as inúmeras razões para esse desinteresse, que seriam por si só o tema para mais um artigo, está a falta de conhecimento (e vontade) de sujar o pé de barro para entender a fundo um setor pulverizado nos mais de 5500 municípios brasileiros. De fato, o crédito se restringe a alguns poucos incumbentes que representam uma pequena parcela do mercado.  Já os menores, quando eventualmente acessam algum produto de crédito , é apenas na etapa em que quase todo risco foi mitigado. Mesmo depois de pronto, argumentos comuns como o fato de o lote não resolver diretamente o problema da moradia, que dependerá da construção, para seu uso e gozo, e que, portanto, não é uma "boa garantia", pode ser facilmente refutado.  Lotes bem localizados e bem avaliados podem ser uma excelente garantia.  Seu valor mais acessível, na maioria dos casos mais barato que um carro médio, faz com que um bom lote seja um ativo muito mais líquido, e ademais, não foi fisicamente ocupado. Lembrando, o ciclo do loteamento tem diversas etapas, dentre elas uma das mais arriscadas e tortuosas é o processo de aprovação, e que em alguns Estados como São Paulo, dura cerca de 3 anos, podendo aumentar a depender do tamanho da área. Loteamentos bem estruturados e com estudos de viabilidade adequados, podem representar uma excelente garantia e com um risco menor, já que as margens do setor são consideravelmente maiores em um produto com um ciclo bem mais longo. O loteador, não apenas faz o papel do empreendedor de risco, urbanizando regiões muitas vezes remotas, como também é o agente financiador, por absoluta falta de opção, sendo obrigado a financiar ao comprador final. O problema de moradia no Brasil é iminente. Limitar o direito a garantia para um setor já limitado pelo crédito é um desfavor para a sociedade, ou seja, mais um obstáculo a uma das principais categorias de empreendedores responsáveis pelo crescimento do Brasil. Então por qual razão o loteador não pode figurar como credor fiduciário? Apesar de a lei 6.766 ser excelente para o setor, ela é antiga - data  de 1.979,- muito antes da edição da Lei 9.514/97, que regra a alienação fiduciária de bens imóveis, que inclusive, deveria ter um acréscimo em sua redação para prever que lotes de até R$200.000 (duzentos mil reais) fossem isentos dos custos e dos tributos necessários para o registro  da alienação - moradia de interesse social, o que ajudaria resolver o déficit habitacional no país. Qualquer decisão que venha a determinar a rescisão de um contrato com alienação fiduciária sob argumento de que loteador não pode ser credor fiduciário, além de violar os preceitos do §2º, do art. 5º, da Lei 9.514, afronta os art. 22 retro transcrito, como também os art. 18  da lei 9.514/97. _____________ *Kelly Durazzo é advogada, sócia do Durazzo & Medeiros Advogados e Presidente da Coordenaria da Comissão de Loteamento da OAB/SP e Ibradim/SP. *Renata Mathias de Castro Neves, advogada, especialista em Direito Imobiliário Secovi e Direito Tributário - CÉU, membro do Conselho Jurídico AELO, Membro Comissão Loteamento OAB/SP.    *Cleo Groeninga de Almeida é empreendedor, loteador e investidor.  Sócio da CGA Investimentos e Participações e sócio e CRO da Hent Crédito para Loteadores.   
O presente artigo tem como objetivo principal discorrer sobre a aplicação do art. 413 do CC à Lei dos Distratos (lei 13.786/2018), em situações em que o comprador busca reduzir o valor estipulado contratualmente à título de cláusula penal. Dispõe o art. 67-A, §5º, introduzido na Lei n. 4.591/64 que, quando a incorporação estiver submetida ao patrimônio de afetação, a penalidade referida no inciso II do caput poderá ser estabelecida em até 50% da quantia já paga, desde que o distrato ou resolução por inadimplemento absoluto da obrigação tenha como origem o adquirente. Referido dispositivo foi criado justamente pela grande crise pela qual passou o setor imobiliário a partir dos anos de 2013 e 2014 (quando os lançamentos de imóveis novos chegaram a diminuir 56%1), provocada por razões macroeconômicas e também por uma enxurrada de extinções de promessas de compra e venda promovidas pelos adquirentes. Ora, quanto à constitucionalidade da legislação e/ou da validade do próprio dispositivo legal (art. 67-A, §5º), entendemos ser debate plenamente superado, conforme o próprio STJ, já se manifestou sobre o tema, como no REsp 2.023.713/SP, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro2, bem como no caso do AgInt no Resp n. 2.055.691/SP, de relatoria do Ministro Raul Araújo. Sob o tema em análise, no plano dogmático, André Abelha, em seu artigo intitulado "lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal?", chegou à seguinte conclusão: que o art. 413 do CC aplica-se normalmente ao referido art. 67-A, porém, com uma redução da multa para 50%, se comparado com o teto previsto no art. 412 do CC, de 100%3. Dito de forma diversa, para André Abelha, não poderia ser afastada a possibilidade de redução, pelo Judiciário, da penalidade contratual pactuada, mesmo que ajustada pelas partes dentro dos limites previstos na lei 13.786/20184. Porém, o mesmo autor ressalta que tal medida é excepcional e que apenas poderá ocorrer quando houver "excesso manifesto"5. Obviamente, fica implícito que o ônus da prova seria do adquirente do imóvel, dado que a lei presumiu a legalidade da multa de 50% da quantia paga, presumindo sua razoabilidade e legalidade e também presumindo o prejuízo experimentado pelo vendedor. Parece-nos claro que a grande problemática existente no presente debate seja a dificuldade de conceituar ou, ao menos, elucidar critérios para uma conceituação de "penalidade manifestamente excessiva"6, indicada no art. 413 do CC. Dito de outra forma, a utilização de conceitos com definições vagas ou subjetivas cria problemas práticos significativos, tanto na seara do direito material quanto processual. É possível identificar que boa parte da jurisprudência sobre esse tema aplica o art. 413 do CC sem a indicação prática dos reais motivos pelos quais a multa seria "manifestamente excessiva". Em outras palavras, o Juízo acaba por não fundamentar a sua decisão, nos termos exigidos pelo art. 489, §1º, do CPC e, também, acaba por não indicar as partes o que seria, efetivamente, um típico caso de cláusula penal "manifestamente excessiva". Dito de outra forma, parece-nos que a fundamentação utilizada em determinado caso poderia ser utilizada em outro, tamanha a ausência de indicadores concretos sobre o que seria uma multa "manifestamente excessiva". Isso tudo provoca um alto grau de insegurança jurídica e subjetividade, com alta probabilidade de que o caso jurídico, na prática, mesmo sem a prova de que a cláusula penal seja "manifestamente excessiva" pelo adquirente, seja revisado, com a redução do seu percentual previsto em contrato. Dito de forma diversa, aquele contrato firmado, de boa-fé, com a plena ciência e concordância das partes com os seus termos e condições, se judicializado, pode ser modificado, sem efetivos e concretos parâmetros para tanto. Essa afirmação pode ser exemplificada em caso paradigmático, julgado pela 28ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP. Trata-se de análise sobre compromisso de compra e venda de imóvel firmado em 2019, portanto, submetido à Lei n. 13.786/2018. No caso, a resolução contratual partiu do adquirente, pelo seu inadimplemento. No mérito, foi debatida a excessividade (ou não) da cláusula penal de 50% sobre o valor já pago, nos termos do art. 67-A, §5º, da Lei n. 4.591/64. Em seu voto, o Desembargador Relator dispôs o seguinte: "Isto não significa, entretanto, que essa cláusula penal não possa, como qualquer outra, à luz da função social do ajuste e sem prova concreta de prejuízo capaz de autorizar retenção dessa envergadura, ser reduzida a patamares não abusivos, sobretudo a partir do caráter principiológico da Lei nº 8.078/90 e do seu status constitucional, como abordei em obra doutrinária"7. Em momento seguinte, o Relator prossegue: "A multa/retenção de 50% sempre foi e continuará sendo abusiva, como inúmeras vezes reconhecido pelo Excelso Superior Tribunal de Justiça, que permitia a flutuação desse componente entre 10% a 25%, como já elucidado". Identifica-se, de pronto, no referido caso, que para o referido magistrado, a prova cabal do prejuízo por parte da incorporadora seria fundamental, ignorando completamente o previsto no art. 416 do CC. Como já mencionado, atribuiu-se o ônus da prova ao vendedor do imóvel, que é o credor da cláusula penal tratada especificamente pela lei. No segundo trecho supracitado, é possível identificar que, o resultado do recurso seria o mesmo, independentemente das provas que fossem acostadas. Quando é mencionado o seguinte trecho: "A multa/retenção de 50% sempre foi e continuará sendo abusiva (...)", fica claro o posicionamento pessoal do magistrado, independentemente do caso apresentado. Esse é o ponto crucial. Casos julgados dessa forma - para além de sua ilegalidade e irrazoabilidade - transmitem à sociedade incentivos econômicos perversos, que podem induzir aos players do mercado a conotação de que a determinação existente no art. 67-A, §5º da Lei n. 4.591/64 não será acolhido pela jurisprudência. E tudo isso feito sem que magistrados atentem, na prática, para as consequências econômicas e sociais de suas decisões recheadas de boas intenções e impregnadas de "justiça social", que seria obrigação legal na forma do art. 20 da LINDB, que se aplica, por analogia, ao direito civil. Nessa esteira, a apreciação jurisdicional do art. 67-A, §5º da Lei n. 4.591/64, em conjunto com o art. 413 do CC, tem carecido de maiores explicações sobre suas consequências práticas! No momento em que se torna impossível atribuir ao caso concreto o mínimo de previsibilidade, aumentamos a judicialização e, consequentemente, os custos de transação às partes contratantes. Essa consequência causada pelo Poder Judiciário é prejudicial à sociedade como um todo, prejudicando a tomada de decisão e diminuindo o investimento privado no ramo da construção civil, que está entre as cinco atividades econômicas que mais empregam no país8. Portanto, os incentivos emanados pelo Poder Judiciário importam e, consequentemente, são balizadores para as tomadas de decisão pelos agentes. Sendo assim, a revisão de cláusulas penais sem qualquer justificativa e apontamento concreto do motivo, parece-nos prejudicial a todo o mercado imobiliário, fazendo com que os preços aumentem de forma desfavorável aos adquirentes. __________ 1 Disponível aqui. Acessado em 20 de junho de 2023. 2 AgInt no REsp n. 2.023.713/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 28/11/2022, DJe de 30/11/2022. 3 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 49. 4 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 47. 5 ABELHA, André. Lei 13.786/2018: Pode o Juiz Reduzir a Cláusula Penal? In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Olivar Vitale (Coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 48. 6 Ao comentarem o art. 413 do CC, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery advertem: "Para que se possa chegar à determinação do que seja manifestamente excessiva não se pode, pois, levar em consideração apenas o valor da cláusula penal em confronto com o efetivo prejuízo, já que é da essência da pena o seu valor pode ser, mesmo, maior que o do efetivo prejuízo. Além da análise da proporcionalidade entre o valor da pena e o prejuízo causado, devem ser buscados outros critérios para a aferição da necessidade da redução equitativa da pena pelo juiz, como, por exemplo, o grau da culpa, a função social do contrato e a base econômica em que foi celebrado" (in Código Civil Comentado. São Paulo. RT. 2011, 8ª Ed., p. 529). 7 COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL. Rescisão contratual requerida pelos autores. Possibilidade. Art. 53 do CDC e Súm. 543 do STJ. Ajuste posterior à Lei nº 13.786/18. Retenção reduzida para 25% dos valores pagos. Razoabilidade. Hipótese em que é possível a adoção de critério simétrico àquele usado pelo STJ para vínculos antigos no intuito de reduzir a cláusula penal, como qualquer outra, a patamares não abusivos. Incidência do art. 413 do CC. É impossível admitir um direito adquirido ao abuso.  A multa/retenção de 50% para empreendimentos com regime de afetação de patrimônio sempre foi, e continuará sendo, abusiva. Precedentes específicos da Corte e desta Câmara. Recurso provido em parte.   (TJSP;  Apelação Cível 1018599-32.2021.8.26.0002; Relator (a): Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2022; Data de Registro: 31/08/2022). 8 Disponível aqui. Acessado em 20 de junho de 2023.
quinta-feira, 15 de junho de 2023

Aquisição de imóveis rurais por estrangeiros

Um novo desdobramento no julgamento de duas ações relevantes sobre aquisição de imóveis rurais por estrangeiros gerou grande repercussão: a votação para decidir o ingresso da OAB, por meio de seu Conselho Federal (CFOAB), na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 342 (ADPF 342) e na Ação Civil Originária 2.463 (ACO 2.463). Os casos referem-se ao mesmo tema: a validade e constitucionalidade do parágrafo 1º do art. 1º da lei 5.709/71 (norma que trata da aquisição e arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros). Esse dispositivo determina que, para fins de aquisição de terras por estrangeiros, a empresa brasileira considerada "controlada" por estrangeiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas, estará sujeita às mesmas regras que uma pessoa jurídica estrangeira". A Sociedade Rural Brasileira (SRB) propôs a ADPF 342, sustentando que a publicação da Constituição Federal (CF) de 1988 revogou o art. 1º, § 1º, da lei 5.709/71 e, portanto, a interpretação da Advocacia Geral da União (AGU) expressa no Parecer LA/01 - atualmente em vigor - é equivocada e descumpre preceito fundamental. De acordo com o Parecer LA/01, ao revogar o art. 171 da CF, a Emenda Constitucional 6 de 1995 extinguiu a inconstitucionalidade da lei 5.709/71. Com isso, a equiparação de empresas brasileiras a estrangeiras pode ser considerada constitucional, como determina essa lei (já o artigo 171 da CF considerava como "empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país"). Esse posicionamento, defendido pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), é ainda objeto da ACO 2.463. A ação foi proposta por essas mesmas autoridades contra a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que adotou em suas normas reguladoras da atuação de tabeliães e oficiais de registro o entendimento de que a Lei 5.709/71 está revogada - não haveria, portanto, impedimento para empresas brasileiras controladas por estrangeiros adquirirem ou arrendarem imóveis rurais. Por causa da semelhança nas controvérsias, essas duas ações estão sendo julgadas em conjunto pelo STF. Nesse contexto, em 29 de março deste ano, o CFOAB peticionou nos autos da ADPF 342 e da ACO 2.463 para requerer seu ingresso na condição de amicus curiae. Alegou-se que a matéria é fundamental para defesa da soberania nacional e da ordem constitucional e, portanto, a manifestação do conselho seria relevante. Além disso, por tratar-se de um tema sensível com implicações complexas, o CFOAB requereu, ainda, em caráter liminar, a suspensão: - de todos os processos judiciais que tiverem controvérsia sobre o mesmo tema que a ACO 2.463 e a ADPF 342; e - dos negócios jurídicos que apliquem, sob qualquer forma, o parágrafo 1º do art. 1º da lei 5.709/1971. O ministro André Mendonça, em decisão monocrática publicada no dia 26 de abril deste ano, havia deferido parcialmente o pedido liminar formulado pelo CFOAB. O ministro determinou que, até o julgamento final desses processos pelo STF, ficassem suspensas todas as ações que envolvessem a equiparação a estrangeiro de empresas brasileiras controladas por estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas, para fins de aquisição de imóveis rurais. Além disso, deferiu o pedido do CFOAB para integrar a lide na condição de amicus curiae. Já o requerimento de suspensão dos negócios jurídicos foi considerado desnecessário e, portanto, indeferido, nos termos da decisão do ministro André Mendonça, que acolheu parcialmente os pedidos do CFOAB. Essa decisão, porém, não foi referendada pelo plenário do STF. Em votação que terminou com empate de 5 a 5, o plenário, desfalcado do ministro Ricardo Lewandowski, em razão de sua aposentadoria, optou por não endossar a decisão do ministro André Mendonça. A confirmação da decisão do ministro dependia da aprovação da maioria absoluta do plenário, o que não ocorreu. Diante do empate, nos termos do regimento interno, o STF poderia: - suspender o julgamento até a chegada de novo ministro para desempatar; - ter a votação desempatada pelo voto de qualidade do presidente do STF; ou - aplicar o art. 146 do regimento interno e decidir que, em caso de empate, será negado o pedido pretendido. A Corte, seguindo a tendência dos julgamentos mais recentes, optou pela terceira alternativa. Por conta disso, os pedidos do CFOAB foram negados. Embora o desfecho tenha sido esse, os pedidos da CFOAB não tratavam do mérito das ações e, com isso, a ACO 2.463 e a ADPF 342 seguem em pauta para julgamento definitivo. O acompanhamento do julgamento dessas duas ações é fundamental para entender os rumos dos investimentos estrangeiros em imóveis rurais brasileiros. Caso uma decisão derrube a equiparação das empresas brasileiras a estrangeiras, o processo de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros no Brasil poderá ser simplificado.