COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Introdução As intervenções em áreas urbanas centrais levaram à deterioração urbana, impulsionando uma nova abordagem para as diretrizes urbanísticas locais. A evolução da compreensão dos espaços urbanos, seja pelo avanço tecnológico, pela intensificação das atividades ou pelo crescimento populacional, resultou em novos planejamentos e gestões, acompanhados de restrições urbanísticas e civis. Essas restrições buscam organizar o espaço urbano e melhorar a qualidade de vida dos moradores. O aspecto urbanístico é de competência municipal, enquanto o civil é responsabilidade exclusiva da União. Nesse contexto, as leis orgânicas municipais estabelecem normas para edificações, zoneamento e parcelamento do solo. Frequentemente associadas a empreendimentos imobiliários, tais restrições nem sempre estão regulamentadas, permitindo que empreendedores imponham restrições particulares. Com o tempo, as normas urbanísticas precisam se adaptar às novas realidades. Este artigo explora as características das restrições existentes, os requisitos para sua validade e a necessidade de adequações conforme as mudanças urbanas. Restrições urbanísticas legais As restrições urbanísticas legais são definidas pelos entes federativos para regular o parcelamento, uso e ocupação do solo urbano. Principalmente, cabem aos municípios o ordenamento territorial, a execução da política urbana e a garantia da função social da propriedade, conforme os arts. 30, VIII, e 182, caput e § 2º, da CF/88. Essas restrições, de ordem pública, determinam limites de áreas, tamanhos, coeficientes de aproveitamento e usos permitidos. Exemplos incluem normas de parcelamento e zoneamento urbano, que restringem atividades comerciais em áreas residenciais, impõem recuos mínimos, alturas máximas para edificações e exigências para aprovação de condomínios de lotes. Além disso, há restrições previstas no Código Civil, como desapropriação (art. 1.228, § 3º), direito de vizinhança (arts. 1.277 e 1.313), tombamento, servidões, passagem forçada e limitações ambientais (Código Florestal - lei 12.641/12, lei estadual de mananciais). O estatuto da terra (lei 4.504/64) também regula a propriedade rural. As restrições urbanísticas legais são imposições realizadas para satisfazer o princípio urbano de cuidar da maior parte da população e preservar o interesse da coletividade sobre o predomínio da menor parte populacional. Restrições urbanísticas convencionais As restrições urbanísticas convencionais são um tema debatido e ainda controverso no direito urbanístico. Segundo Hely Lopes Meireles (1975, p. 480), "essas restrições convencionais são supletivas das normas legais e atuam nos seus claros enquanto o legislador não estabelece normas urbanísticas que irão tomar o seu lugar". Geralmente aplicadas em loteamentos, essas restrições permitem que empreendedores imponham diretrizes urbanísticas supletivas à legislação vigente, conforme o art. 26, VII, da lei 6.766/79. No entanto, para serem válidas, devem constar no contrato padrão de promessa de compra e venda, conforme os arts. 18 e 26 da mesma lei. A validade das restrições convencionais exige sua formalização em contrato, aprovação pelo ente municipal e averbação no Cartório de Registro de Imóveis, garantindo publicidade e respeito ao Princípio da Concentração dos Atos na Matrícula. Ainda assim, é essencial verificar se tais restrições não contrariam a legislação urbanística vigente ou se apenas refletem interesses particulares em detrimento do coletivo. Outro aspecto relevante é a temporalidade dessas restrições, pois a dinâmica urbana impõe mudanças constantes. A adequação às novas realidades fáticas, à legislação municipal e aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal deve ser analisada para evitar a perpetuação de regras obsoletas. Diante disso, as restrições convencionais devem ser interpretadas com cautela, garantindo que cumpram sua função sem desrespeitar a legislação ou os interesses coletivos. Jurisprudência das restrições urbanísticas Os tribunais, especialmente o TJ/SP, têm consolidado o entendimento de que as restrições convencionais de loteamento não podem se sobrepor à legislação municipal, que prevalece mesmo quando o ato restritivo é reconhecido como válido. Esse posicionamento é evidenciado nos julgados 0028555-18.2010.8.26.0506, 2172228-15.2021.8.26.0000 e 1046169-07.2019.8.26.0602. O STJ também reforça que as restrições convencionais são apenas supletivas às normas legais e, portanto, não podem prevalecer sobre as leis urbanísticas municipais, que são normas de ordem pública. O Plano Urbanístico, de interesse geral e dinâmico, não pode ser limitado por restrições particulares que impeçam a adequação do ordenamento urbano às realidades locais. Esse entendimento foi firmado no recurso especial 289.093/SP, entre outros. Ao longo do tempo, o STJ tem consolidado essa linha de raciocínio em precedentes como o REsp 226.858/RJ, REsp 289.093/SP e REsp 1.774.818/SP. O TJ/SC também possui entendimento firmado sobre a questão, conforme o julgado 5047048-55.2022.8.24.0000. Apesar dessas decisões, não há um entendimento unificado sobre o tema nos tribunais brasileiros. Há divergências entre julgados que defendem: (i) a prevalência das restrições convencionais mais rígidas em relação à legislação vigente; (ii) a supremacia da lei sobre tais restrições; e (iii) a necessidade de requisitos específicos para a validade das restrições convencionais, entre outros posicionamentos. Conclusão As restrições urbanísticas são e continuarão sendo essenciais para a política urbana. No entanto, é fundamental garantir a legalidade das restrições urbanísticas convencionais impostas por particulares. Embora essas restrições possam suprir lacunas nas legislações municipais, sua aplicação deve ser razoável, sem visar apenas interesses particulares ou econômicos. Além disso, é imprescindível o cumprimento dos requisitos mínimos exigidos, incluindo a formalização no ato de aprovação do empreendimento, nos contratos de promessa de compra e venda, no registro no Cartório de Imóveis, nas matrículas dos imóveis e em demais documentos necessários para sua publicidade. Diante das constantes transformações sociais, é essencial avaliar a eficácia prática dessas restrições, que podem perder validade com a entrada em vigor de novas leis suplementares. Por fim, o tema demanda maior aprofundamento e a consolidação de um entendimento pacificado nos tribunais, dada sua relevância para o ordenamento urbano e o desenvolvimento social. ____________ 1 AMADEI, Vicente Celeste; AMADEI, Vicente de Abreu. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano e seus aspectos essenciais - loteamento e desmembramento. 3. Ed. São Paulo. Millennium, 2012. 2 BORDALO, Rodrigo. Direito urbanístico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. 3 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 4 BRASIL. Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967. 5 BRASIL. Decreto-lei 3.079, de 15 de setembro de 1938. 6 BRASIL. Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937. 7 BRASIL. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. 8 BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. 9 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 10 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: Aspectos Civis, Registrais e Urbanísticos. 2.ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. 11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 12 FERNANDES JÚNIOR, João Gilberto Belvel. O bairro através do direito e da economia: um modelo analítico para restrições convencionais de loteamento urbano. In: Revista de Direito Imobiliário, vol. 92. p. 139-158. São Paulo: Ed. RT, jan/jun. 2022. 13 MEIRELLES, Hely Lopes. As restrições urbanísticas de loteamento e as leis urbanísticas supervenientes. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Ed. Fórum, nº 120 abr/jun, 1975. 14 MORANDI, Giceli Cristiani. As restrições urbanísticas convencionais e sua averbação na matrícula imobiliária como forma de publicidade e segurança jurídica. In: Revista de Direito Imobiliário, vol. 82. p. 295-312. São Paulo: Ed. RT, jan/jun. 2017. 15 NASCIMENTO, Fábio Severiano do. As Restrições Convencionais e as Leis Urbanísticas no Loteamento. In: Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2012. 16 NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do solo urbano. In: Curso de Direito Imobiliário / Marcus Vinícius Motter Borges, coordenador. - 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. 17 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 18 SOUZA, Demetrius Coelho. O direito de construir e limitações de ordem administrativa. In: Estudos em Direito Imobiliário e Direito Urbanístico / Gabriel Carmona Baptista e Renata Calheiros Zarelli, coordenadores. v. 4. Londrina: Thoth, 2023. 19 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 20 VARGAS, Heliana Comin; CASTILHO, Ana Luisa Howard de. Intervenções em centros urbanos: objetivos, estratégias e resultados. 3. ed. Barueri. Manole, 2015.
A dignidade do ser humano passa pelo reconhecimento da propriedade imobiliária. Ter um patrimônio para ser chamado de seu significa conquista a partir dos próprios esforços, assim como moradia para si mesmo ou para a família, além da possibilidade de realizar negócios e auferir renda. O mesmo imóvel poderá, ainda, servir como herança. Assim, é inegável a importância da propriedade imobiliária, e consequentemente, dos instrumentos à disposição para se obter o título de proprietário de determinado bem imóvel. Nesse contexto, destaca-se aqui como objeto de estudo o procedimento extrajudicial de usucapião inaugurado no nosso sistema jurídico através da lei 13.105/15 - Código de Processo Civil, que completando agora 10 anos de vigência vem se mostrando como excelente ferramenta, produzindo reflexos positivos a toda a sociedade. Assim, apesar de já internalizado no ordenamento jurídico, pretende-se contribuir para dar ainda mais luz a esse instrumento jurídico. Do texto constitucional já podemos extrair a importância da propriedade, pois no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e precisamente no art. 5º, caput, (BRASIL, 1988) temos que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] Ou seja, a propriedade é garantia fundamental, consequentemente, tem-se a importância dos instrumentos jurídicos à disposição para obtenção e proteção da propriedade. Neste trabalho, a proposta é o destaque ao procedimento extrajudicial de usucapião, haja vista sua praticidade e celeridade em contraposição ao processo judicial, sendo um procedimento extremamente vantajoso por vários aspectos, desde o acesso ao tabelião para troca de informações e sugestões, até a concretização do procedimento. Certamente foi um ganho enorme para a sociedade ter a abertura dessa porta de acesso para o reconhecimento da propriedade, seja rural ou urbana. Sobrecarregado com o volume de processos das mais variadas espécies, o Poder Judiciário não detém condições de entregar resposta rápida à pretensão, sendo que a cada exigência de documento e peticionamento o processo retorna à fila de conclusão, que não é pequena, levando assim, anos para a efetiva tutela jurisdicional. Ao contrário, perante o tabelião de notas, e numa segunda fase junto ao Oficial de Registro de Imóveis, é muito mais fácil e prático o acesso, apesar das exigências documentais e procedimentais a serem respeitadas que, é claro, igualmente demandam tempo, mas, é um tempo muito menor se comparado ao processo judicial, apesar dos esforços dos integrantes do Poder Judiciário. Claro que não há perfeição, podendo existir algum ponto ou outro que necessite de ajuste, como por exemplo, maior transparência no trâmite do procedimento extrajudicial, ou seja, informações sobre o seu andamento e posição na lista de trabalhos do respectivo cartório. Algumas diligências simples como essas poderiam garantir que cada procedimento observasse a ordem de protocolos, que não fosse dada preferência àqueles mais fáceis de resolver em detrimento dos casos mais complexos. Importante ainda, em razão da precariedade das aquisições e transferências imobiliárias, o procedimento extrajudicial de usucapião ganha relevo como instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana sob o viés da propriedade. Direito fundamental à propriedade Historicamente o direito à propriedade acompanha a evolução da humanidade, passando de caráter absoluto e intocável para atualmente revestir-se de função social, conforme estabelecido no art. 5º, inciso XXIII e art. 170, inciso III, da CF/88. Afirmam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 146): A propriedade privada era considerada um dos mais importantes direitos fundamentais na época do Liberalismo Clássico. Era o direito de propriedade, então, visto como um direito absoluto - consubstanciado nos poderes de usar, fruir, dispor da coisa (jus utendi, jus fruendi e jus abutendi), bem como reivindicá-la de quem indevidamente a possuísse - e oponível a todas as demais pessoas que de alguma forma não respeitassem o domínio do proprietário.No âmbito do nosso Direito Constitucional positivo, não mais é cabível essa concepção da propriedade como um direito absoluto. Deveras, nossa Constituição consagra o Brasil como um Estado Democrático Social de Direito, o que implica afirmar que também a propriedade deve atender a uma função social. Essa exigência está explicitada logo no inciso XXIII do art. 5º, e reiterada no inciso III do art. 170 (que estabelece os princípios fundamentais de nossa ordem econômica). Percebemos assim, uma evolução de concepção da função e da importância da propriedade, deixando de ser algo destinado somente ao atendimento do interesse individual para se tornar parte da colaboração para o bem-estar da sociedade como um todo, principalmente no que se relaciona com o direito à moradia. Ora, para haver moradia, presume-se a edificação sobre um terreno que deve pertencer a alguém, estando, assim, moradia e propriedade imobiliária umbilicalmente ligadas. Oportunizar a concretização do direito à moradia sem igualmente assegurar o direito à propriedade seria conceder apenas metade do direito. Além da edificação que servirá de lar para a pessoa ou família, a segurança, tranquilidade e bem-estar do ser humano passa por ter em mãos a propriedade do imóvel, garantia de que aquele bem não lhe será retirado, ou no mínimo, de que terá os meios para defesa do que é seu. Segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2011, p. 167): Sem dúvida, embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, a moradia e o uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. Este novo século terá sem dúvida, como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade.A concepção de propriedade continua a ser elemento essencial para determinar a estrutura econômica e social dos Estados. A previsão do jurista se confirma na medida em que o direito fundamental à propriedade continua sendo essencial, com ainda mais relevo no momento atual de mudanças climáticas, haja vista eventos da natureza que atingem por primeiro e mais gravemente aqueles que residem em locais de risco, justamente por não possuírem uma propriedade em lugar seguro e adequado para fixar moradia, muito menos é claro, a regularidade documental do imóvel. Conforme matéria divulgada pela ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil - (CUNHA, 2019): 30 milhões dos imóveis no Brasil, não possuem escritura ou documento elaborado em cartório que comprove a titularidade do imóvel, segundo informações do Ministério de Desenvolvimento Regional. [...] E complementando, a ANOREG/SP - Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (2023), igualmente tratando sobre o assunto, publicou o seguinte texto de referência: Mas o que leva a esse alto número de imóveis irregulares no Brasil? Bem, as razões são diversas e até mesmo históricas. A ausência de políticas públicas ao longo dos anos, a desinformação por parte da população e ilegalidades na comercialização são alguns dos catalizadores desse problema.A falta de regularização dos imóveis traz inúmeras consequências, principalmente econômicas, aos municípios e até mesmo à União, que deixam de arrecadar impostos como: IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbano, ITBI - Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis e IR - Imposto de Renda. Em relação às empresas e pessoas físicas, esse problema afeta na transmissão da propriedade, impedindo ou dificultando os atos de compra e venda, doação ou até mesmo impossibilitando oferecer o imóvel em garantia para um empréstimo ou financiamento.Em São Paulo, principal metrópole da América do Sul, o cenário se repete. Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, há cerca de 750 mil imóveis em situação irregular na cidade. É exatamente esse o cenário atual, o direito fundamental à propriedade, apesar de firmemente previsto na Constituição Federal, é ainda pouco usufruído pela população que convive com a irregularidade nas ocupações de terrenos, formando um círculo vicioso de prejuízos. Em ADIn 5.783, de relatoria da ministra Rosa Weber, o STF detidamente abordou esse direito fundamental, trazendo aspectos culturais e coletivos ao julgar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei do Estado da Bahia. O julgado, em resumo, é assim ementado: Impugnado o art. 3º, § 2º, da lei 12.910/13 do Estado da Bahia, que impõe prazo à regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades de fundo e fecho de pasto mediante a concessão de uso [...] Violação dos arts. 1º, III, 5º, XXII, 215, § 1º, 216, I e § 1º, da Constituição. O direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII), compreendido à luz do direito fundamental à cultura e do direito humano à propriedade e à posse coletivas, traduz moldura normativa que abriga a proteção das formas tradicionais de pertencimento. (ADIn 5.783, STF, rel. min. Rosa Weber, j. 6/9/23, P, DJE de 14/11/23). O que podemos concluir é que o direito fundamental à propriedade é consagrado na Lei Suprema do ordenamento jurídico que é a Constituição Federal, reafirmado pelo Poder Judiciário e normas infraconstitucionais. Contudo, para o efetivo acesso a ele, temos alguns entraves, dentre os quais a morosidade e os custos parecem ser os maiores obstáculos, pois é caro e demorado realizar o procedimento - que envolve inclusive a coleta de documentos - para se ter o registro nos termos do art. 1.245 do Código Civil, lei 10.406/02 (BRASIL, 2002). Deveria o Estado (lato sensu) buscar fomentar a regularidade imobiliária, buscando associar moradia e propriedade, objetivando a dignidade da pessoa humana regada pela segurança jurídica. Talvez o lançamento de programas sociais em períodos específicos do ano para fomentar que as pessoas busquem o registro imobiliário com algum desconto no pagamento de valores seria uma forma válida. Um programa em tais moldes exigiria a união de esforços entre Oficiais de Registro de Imóveis, tabelionatos de notas e prefeituras municipais, e precisaria contar também, com a participação dos Estados e da União. Os reflexos positivos compensam o trabalho, pois concretizado o direito fundamental à propriedade, aqui imobiliária, a pessoa terá mais segurança, poderá obter um financiamento para edificar, realizar um novo negócio com o imóvel, transferir com maior valor, doar, transmitir aos herdeiros etc., além do que, os cofres públicos irão receber os tributos incidentes sobre o imóvel, como o tributo municipal IPTU. Do direito fundamental positivado à realidade do cidadão brasileiro há claramente uma distância que precisa ser encurtada, razão da importância do instrumento que possibilita a aquisição e regularidade da propriedade imobiliária de forma extrajudicial. Confira a íntegra da coluna.
A indústria da construção civil e da incorporação imobiliária exerce um papel estratégico no desenvolvimento econômico e social, gerando empregos, promovendo infraestrutura e impulsionando o crescimento urbano. Contudo, esse setor, devido à sua complexidade e à magnitude de seus projetos, também é vulnerável e sujeito a se deparar com a prática de crimes no seu cotidiano, o que pode comprometer a segurança e a imagem dos empreendimentos, como também gerar altos prejuízos aos financiadores de projetos imobiliários. Nesse contexto, surgem questões relacionadas tanto aos crimes passíveis de cometimento por representantes de construtoras e incorporadoras, quanto aos crimes dos quais essas empresas podem ser vítimas. Representantes das construtoras e incorporadoras imobiliárias No curso da execução de projetos de construção e de incorporação imobiliária não é incomum depararmos com a atuação da polícia judiciária em atos investigativos e abertura de procedimentos apuratórios de crimes. Por vezes, obras são fiscalizadas por agentes policiais que identificam irregularidades as quais consideram estar diante de atos criminosos. Nesse sentido, a polícia responsável por investigar crimes contra o meio ambiente é a mais presente em canteiros de obras de empreendimentos imobiliários. As incursões policiais geralmente fiscalizam situações relacionadas a crimes de desmatamento ilegal, descarte irregular de resíduos, poluição, entre outros delitos. A presença da polícia judiciária em obras demanda atenção redobrada dos empreendedores e responsáveis técnicos, que devem garantir o cumprimento das normas ambientais e urbanísticas desde as fases iniciais do projeto. Isso inclui a obtenção de licenças e autorizações adequadas, a correta destinação de resíduos sólidos, a preservação de áreas protegidas e o atendimento às exigências de compensação ambiental, quando aplicáveis. O não atendimento das regras legais relativas ao meio ambiente pode caracterizar a prática de ilícitos na esfera administrativa - passíveis de multas e embargo-, mas, em determinadas situações, também pode configurar ilícitos penais previstos na lei 9.605/98. A apuração minuciosa desses crimes por agentes policiais desagua na  responsabilização penal de pessoas diretamente ligadas às obras, assim como das construtoras e incorporadoras, na figura da pessoa jurídica, uma vez que nos casos de detecção de crimes ambientais a pessoa jurídica também é penalmente punida. Outra situação bastante corriqueira no ambiente de obras, na qual são vistos alguns desdobramentos criminais, é a ocorrência de acidentes de trabalho. Nesses eventos, seja por desatenção dos trabalhadores, ausência de equipamentos de segurança ou por outras tantas circunstâncias, o resultado pode culminar em casos de lesão corporal ou morte de trabalhadores. Por vezes, investigadores e peritos são acionados a comparecer aos canteiros de obra para apurar eventos dessa natureza e identificar os respectivos responsáveis. Promovida a investigação policial, os personagens ligados ao pelo fato são acusados de crimes previstos no Código Penal (geralmente culposos - sem intenção) e eventualmente punidos criminalmente, ao final de um processo penal. Com menos recorrência, outras modalidades de crimes são observadas no mundo da construção civil. Representantes de construtoras e incorporadoras podem ser investigados por crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo, quando se valem de práticas abusivas que afetam diretamente os adquirentes dos imóveis, como a publicidade enganosa, a omissão de informações essenciais sobre o empreendimento e a entrega de unidades em desacordo com o contrato ou memorial descritivo. Por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor prevê penalidades para práticas que podem induzir o consumidor a erro. Além disso, crimes contra a ordem tributária e a sonegação fiscal também são objeto de apuração em empreendimentos imobiliários. A omissão de receitas, a emissão de notas fiscais fraudulentas e a criação de empresas de fachada para evitar o recolhimento de tributos são condutas que podem configurar infrações previstas na lei 8.137/90 e no Código Penal. Ademais, os delitos de falsidade ideológica e documental também são vistos no setor da construção civil e da incorporação imobiliária. Esses crimes ocorrem, por exemplo, quando há a inserção de informações falsas ou omissão de dados relevantes em documentos públicos ou particulares, como alvarás de construção, licenças ambientais e escrituras de imóveis. A falsidade documental pode ensejar punição criminal, conforme disposto nos artigos 297 e 299 do Código Penal. Mas as empreses do ramo da construção civil também estão sujeitas a ser vítima de criminosos e de seus atos, que por vezes geram enormes prejuízos e transtornos. Construtoras e incorporadoras podem ser vítimas Quando se pensa nos crimes que afetam construtoras e incorporadoras, os primeiros que vêm à mente são o furto e o roubo de ferramentas, materiais, equipamentos e outros objetos utilizados nas obras. O grande fluxo de pessoas nos canteiros facilita o acesso a esses bens, e casos de desvios são frequentemente noticiados. Medidas como vigilância eficiente, organização dos ambientes, gestão de estoque e controle de acessos ajudam a prevenir esses incidentes. Embora questões de segurança pública não sejam de responsabilidade direta das construtoras, ações internas de prevenção podem minimizar perdas. Além disso, a identificação e punição dos envolvidos são fundamentais para coibir novas ocorrências. No entanto, as situações que mais preocupam atualmente o setor da construção civil são os golpes e fraudes. Há inúmeros relatos de esquemas fraudulentos que geram prejuízos consideráveis às empresas do ramo. Entre os episódios mais comuns, destacam-se a falsificação de boletos bancários, a criação de empresas fictícias, o cadastramento indevido de fornecedores em sistemas de pagamento, a invasão de computadores, o desvio de dados e informações sensíveis e a simulação de operações financeiras. Essas práticas causam danos financeiros expressivos e comprometem a atividade das construtoras. Muitas dessas fraudes contam com a participação de funcionários e agentes internos, que se aproveitam do acesso a informações privilegiadas para facilitar a execução dos golpes. Em grande parte dos casos, os crimes só são descobertos quando os prejuízos já atingiram proporções significativas. A realização de auditorias internas é essencial para identificar fraudes, responsabilizar os envolvidos e, eventualmente, recuperar os valores desviados. A investigação externa, através da polícia também tem papel importante, especialmente quando são necessárias medidas legais mais rigorosas, como a quebra de sigilo bancário e a expedição de mandados de busca e apreensão. Uma apuração bem conduzida não apenas permite a responsabilização dos infratores, mas também contribui para o aperfeiçoamento dos procedimentos internos e a recuperação de recursos. Para mitigar riscos e evitar prejuízos, a melhor estratégia é a implementação de medidas rígidas de controle, o investimento em tecnologias que promovam transparência e eficiência nos processos e a adoção de um programa de compliance rigoroso, garantindo o cumprimento da legislação e a integridade das operações. Além disso, contar com assessoria jurídica especializada e adotar boas práticas de governança são fundamentais para a segurança e regularidade dos empreendimentos imobiliários.
Introdução  Há condomínios sem convenção condominial, registrada ou não1. A par das dificuldades gerenciais, a rotina do dia a dia é regulada pelo Código Civil2. As alterações sobre a aplicação da taxa de juros moratórios pela lei 14.905/243 trouxeram mudanças significativas na rotina dos condomínios edilícios sem convenção ou sem taxa convencionada na convenção, pois os devedores passaram a ser cobrados de modo diverso daquele já sedimentado por décadas: 1% de juros moratórios por mês de inadimplência4. Nos condomínios edilícios com previsão dos juros moratórios na convenção, a atenção se voltará ao teto desses juros remuneratórios. Naqueles sem convenção ou sem previsão de juros moratórios na convenção, o foco será a forma da cobrança e a possibilidade de instituição dos juros por meio diverso da convenção. A lei 14.909/24 também padronizou o índice de atualização monetária quando inexistente essa previsão nas convenções condominiais. Diante das novas mudanças, será necessária atenção para evitar-se insegurança jurídica em prejuízo à recomposição do patrimônio do condomínio nas hipóteses da sempre lamentável execução judicial da dívida. Vale lembrar que as alterações legislativas aplicam-se às relações obrigacionais como um todo, o que transbordará aquilo aqui tratado, embora as balizas gerais lhe sirvam. 1 Os efeitos do atraso no pagamento do condomínio O atraso no pagamento da cota condominial implica prejuízo à conservação das áreas comuns do condomínio e dos serviços que atendem aos condôminos, pois a finalidade da conta condominial é rateio de despesas condominiais aprovadas em assembleia. A inadimplência, especialmente em níveis altos, traduz desvalorização do patrimônio de todos os coproprietários pela deterioração das áreas comuns e declínio dos serviços em favor dos ocupantes. A esse quadro acrescente-se que é incorreta a aplicação pragmática do valor da cota condominial, isso é, desprezando as unidades inadimplentes, porque uma vez adimplido o débito pelas unidades desprezadas na fixação do rateio se observará o fenômeno lucro, contrário ao art. 1336, I, do Código Civil5, pois a arrecadação terá sido maior do que as despesas autorizadas. De acordo com a nova lei, o atraso no pagamento da cota condominial acarreta multa moratória de 2%, percentual que recebe críticas porque considerado baixo em comparação com outras operações financeiras, como o cheque especial e o cartão de crédito. Imagina-se, agora, a possibilidade de inexistência de juros moratórios aplicados à inadimplência ou sua aplicação em patamares inferiores a 1% ao mês e temos o cenário controverso trazido pela lei 14.905/2024. 2 Juros moratórios: Ou convencionados ou os juros legais Os condomínios edilícios sem previsão de juros moratórios na convenção deverão usar os juros legais para os casos de inadimplência a partir de 30 de agosto de 2024; para os condomínios com percentual de taxa de juros moratórios fixados na convenção não houve qualquer mudança. A lei 14.905/24 alterou o parágrafo primeiro do art. 1.336, do Código Civil para dar-lhe nova redação que, em síntese, substituiu a previsão da taxa de juros moratórios de 1% ao mês pelos juros legais6, quando não estiver convencionada outra taxa. Como forma de evitar interpretações sobre o que seriam juros legais, a lei 14.905/24 definiu que os juros legais - ou taxa legal - são compostos pela Selic com o abatimento da correção monetária que integra o índice7, cabendo ao Conselho Monetário Nacional fixar a metodologia desse cálculo, divulgando-a por meio do Banco Central do Brasil8. Nessa realidade, dada a flutuação da Selic e do IPCA, pode ser aferido índice de taxa de juros tanto positivo quanto negativo, superior ou inferior à taxa de 1% ao mês, razão pela qual será impossível aferição do saldo devedor sem auxílio dos índices oficiais, de modo diverso daquele aplicado até então9, especialmente na hipótese de judicialização da cobrança. 2.1 O teto dos juros moratórios convencionados e os limites da convenção Ante a possibilidade de aplicação de taxa de juros moratórios inferiores a 1% ao mês, será natural que muitos condomínios edilícios tentem regular esse percentual e até majorá-lo em patamar superior ao percentual de 1% ao mês, fixando-o na convenção condominial. A legislação deve ser interpretada como unidade para se evitarem contradições que levem a insegurança. Ao longo dos últimos anos, observa-se que o legislador tem privilegiado a autonomia das vontades, primando pela interferência mínima do Estado nas relações paritárias, isso é, aquelas em que as partes possuem equivalência de armas, caso das relações entre condôminos num condomínio edilício. Exemplo disso é a lei 13.874/19. Isso não implica afirmar que os condôminos possuem ampla liberdade para a fixação da taxa de juros10 11 e a lei 14.905/2412 não contribuiu para dirimir a dúvida. A começar, a convenção condominial é ato-norma, de caráter estatutário13, oponível não somente aos signatários, mas aos ocupantes das unidades autônomas, presentes e futuros. Não é contrato, portanto, não cabendo arguição sobre aplicação da lei da usura14, embora esta lei tenha servido como parâmetro para aplicação dos juros moratórios em momento anterior à lei 14.905/24, autorizando a aplicação do dobro da taxa legal. Noutro giro, tampouco é obrigação tributária, não havendo se falar em observância do art. 161, parágrafo primeiro, do Código Tributário Nacional. Portanto, a ponderação que se faz é sobre a possibilidade da convenção fixar o dobro da taxa legal, de modo abstrato, como sendo a taxa de juros moratórios. Desde já se argumenta que acompanhando a evolução legislativa - que vem se valendo de normas de caráter geral -, inexiste fundamento para impedir a mesma possibilidade ao ato-norma, especialmente diante da flutuabilidade dos juros legais após a lei 14.905/24. Há na doutrina quem argumente não se tratar sequer de cláusula geral e sim de regra, pois "se aplica a casos concretos para: atribuir poderes, faculdade e poder-deveres aos sujeitos de direito; dar solução a problemas da vida; resolver conflitos de interesse"15. Se a convenção pode fixar que a taxa será o dobro da taxa legal, quando a dobra for inferior a 1%, por exemplo, será aplicada taxa de 1% de juros moratórios. Aqui se está diante de possível conflito de normas jurídicas, pois enquanto a lei 14.905/24 privilegia o percentual livremente pactuado, a previsão tal como acima exposta pode se revelar manobra com a finalidade de driblar a lei da usura, o que, inicialmente, implicaria a invalidade da convenção condominial nesse particular. Contudo, é imperiosa a necessidade de análise ampla por parte da comunidade jurídica, sob o viés da função social da norma. Nunca é demais lembrar: a proteção deve ser do todo, do condomínio edilício, e não da propriedade exclusiva. Nesse contexto, o atraso do pagamento sem sanção perceptível, o que ocorre quando os juros moratórios são ínfimos, é estimular o pagamento de contas "mais caras" com o sacrifício das mais baratas. Essa crítica já se mostrava comum e frequente antes mesmo da lei 14.905/24, pois a multa de 2% é considerada ínfima quando comparada com outras obrigações comuns à população, como, por exemplo, o cartão de crédito e o cheque especial ou, mesmo, financiamentos veiculares. Portanto, a fixação na convenção de percentual a ser aplicado caso a taxa de juros legais seja inferior a determinado patamar parece revestir-se de razoabilidade e estar de acordo com a função social, pois ao mesmo tempo que pune o devedor, estimula os demais condôminos ao pagamento da cota condominial. O ganho lateral é claro, não custa repetir: preserva-se a propriedade comum a todos, impedindo desvalorização pela ausência de conservação/manutenção, ou pela prestação defeituosa ou até mesmo nula de serviços condominiais. 2.2 A forma para convencionar sobre os juros moratórios e a correção monetária Dois pontos exsurgem como importantes nesse debate. O primeiro é o questionamento sobre a possibilidade dos condomínios edilícios sem convenção disporem sobre a taxa de juros moratórios e o índice de atualização monetária por meios diversos da convenção, isso é, através de regulamentos internos ou assembleias gerais, para os quais o quórum de aprovação é a maioria simples, e não os 2/3 dos votos necessários à aprovação da convenção. O segundo é saber se seria possível aos condomínios edilícios com convenções omissas quanto à taxa de juros ou com previsão de 1% majorar a taxa com base em decisão assemblear cuja pauta não contemple a alteração da convenção. O art. 1.334, do Código Civil, traz que a convenção deve prever as sanções a que estão sujeitos os condôminos ou possuidores e os juros moratórios são classificados como sanção. Vê-se, pois, que se trata de hipótese reservada à convenção condominial, observado o quórum privilegiado. Portanto, a interpretação que melhor se coaduna com a lei é aquela que confere à convenção condominial dispor sobre os percentuais de taxa juros e o índice de correção monetária aplicados para a cobrança das cotas condominiais atrasadas, sendo nulas as disposições assembleares ou cláusulas de regulamento interno que disponham sobre o tema e que sejam aprovados por quórum inferior a 2/3 dos condôminos. 3 IPCA como índice de atualização monetária Tal qual ocorreu com a taxa de juros moratórios, a lei 14.905/24 igualmente balizou a aplicação da correção monetária quando não convencionado o índice, fazendo opção pelo IPCA16. O legislador manteve a linha de valorização da manifestação de vontade, não intervindo nas relações obrigacionais livremente pactuadas. Em prestígio da segurança jurídica, contudo, optou por estabelecer o índice de correção monetária quando ausente sua previsão. Conclusão No caso de atraso no pagamento da cota condominial, a apuração do valor da dívida tornou-se mais complexa para os condomínios edilícios sem convenção ou com convenção omissa quanto ao percentual de taxa de juros, pois são necessárias informações e dados externos ao condomínio. A lei 14.905/24 criou a figura do juro legal, definindo-o como o saldo apurado entre a Selic e o IPCA, rubrica de correção monetária que integra a Selic, e determinou ao Banco Central do Brasil disponibilizar informações sobre o metodologia desse cálculo. Na ferramenta "calculadora do cidadão" do Banco Central do Brasil já consta, inclusive, a possibilidade de correção de valores com base no critério dos juros legais. Os juros legais são flutuantes, e podem, portanto, superar ou não a revogada taxa de juros moratórios de 1% ao mês. Os juros legais podem até obter percentual negativo, sendo que nessa hipótese o juro moratório aplicado para correção de valores inadimplidos será igual a 0. Logo, a previsibilidade tão cara aos administradores e gestores condominiais recomenda a fixação em convenção do percentual da taxa de juros para o atraso no pagamento da cota condominial, o que implica ponderar sobre a possibilidade dos condomínios edilícios cujas convenções já a prevejam alterarem-na para que nelas conste que a taxa de juros será o dobro dos juros legais. Com essa providência, evita-se a insegurança jurídica que poderia advir da ausência de previsibilidade. Registre-se: não é possível fixar taxa de juros moratórios por meio de decisões assembleares ou regulamento interno por tratar-se de hipótese restrita à convenção condominial, conforme art. 1.334, IV, do Código Civil. A liberdade prevista na lei 14.905/24 para a pactuação da taxa de juros convencionais não é irrestrita e deve ser balizada pela legislação vigente. O legislador não contemplou os condomínios edilícios no rol das relações obrigacionais excluídas dos efeitos da lei 14.905/24. 1 Nas incorporações imobiliárias, a minuta preliminar da convenção de condomínio é obrigatória para registro do memorial de incorporação, na forma do art. 32, "j" da lei 4.591/64, devendo ser ratificada ou retificada pelos condôminos para que surta efeitos. 2 Aqui não se entrará na discussão sobre a revogação tácita ou ab-rogação do título I, da lei 4.591/64, que trata de condomínio, pelo Código Civil. 3 Lei 14.905/24. 4 Código Civil - art. 1336, parágrafo primeiro. 5 Código Civil - art. Art. 1.336. São deveres do condômino: I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; 6 Código Civil - Art.1.336, § 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito à correção monetária e aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, aos juros estabelecidos no art. 406 deste Código, bem como à multa de até 2% sobre o débito. 7 A taxa legal mensal é determinada pela diferença entre a taxa Selic mensal e a taxa de variação do IPCA-15 - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15, ambos do mês anterior ao de referência. No caso de valores negativos, a taxa legal do mês será definida como zero. A atualização pela taxa legal utiliza a metodologia de juros simples, com acumulação das taxas mensais e a apuração de juros proporcionais (fração pro rata) com seis casas decimais. Os juros proporcionais (fração pro rata) serão resultado da multiplicação do juro diário, calculado utilizando-se a razão entre a taxa legal do mês de referência e o respectivo número de dias corridos do mês de referência, pelo número de dias corridos a ser apropriado. Para um maior detalhamento, veja a resolução CMN 5.171, de 29 de agosto de 2024. 8 Código Civil - art. 406, I 9 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Calculadora do cidadão. Correção de valores. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 10 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 11 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui.; e VIÉGAS, Francisco de Assis. Lei 14.905: limites à autonomia privada na pactuação dos juros de mora, publicado em 5 set. 2024, ambos com acesso em: 11 fev. 2025. 12 Art. 3º Não se aplica o disposto no decreto 22.626, de 7 de abril de 1933, às obrigações: I - contratadas entre pessoas jurídicas; II - representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; III - contraídas perante: a) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; b) fundos ou clubes de investimento; c) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; d) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a lei 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou IV - realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários. 13 ANDRADE, Vander Ferrreira de. O caráter obrigatório da convenção de condomínio. Migalhas, publicado em 26 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 14 Decreto 22.626/33. 15 SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados: da parte geral do Código Civil brasileiro. Vitória: EDUFES; Rio de Janeiro: MC&G, 2021. p. 21. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 16 Código civil - art. 389, parágrafo primeiro. 17 ANDRADE, Vander Ferrreira de. O caráter obrigatório da convenção de condomínio. Migalhas, publicado em 26 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 18 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Calculadora do cidadão. Correção de valores. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 19 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 20 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Os juros moratórios convencionais após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): o caso do art. 5º da lei de usura e a situação do crédito rural, comercial e industrial. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 7 ago. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 21 ROCHA, Ana Maria Muniz dos Santos; NERY, Camila Brito; RIBEIRO, Bruno Marques. Cláusulas gerais: contexto histórico e seus reflexos no ordenamento jurídico. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 21, 1. p. 37-58, jan./mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 22 SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados: da parte geral do Código Civil brasileiro. Vitória: EDUFES; Rio de Janeiro: MC&G, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 23 VIÉGAS, Francisco de Assis. Lei  14.905: limites à autonomia privada na pactuação dos juros de mora. Publicado em 5 set. 2024. Acesso em: 11 fev. 2025. 24 ZAIM, Miguel. Legalidade dos juros moratórios estipulados na convenção condominial. Anacon - Associação Nacional da Advocacia Condominial, publicado em 5 mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
Introdução In claris non fit interpretatio: essa máxima, longe de fazer apologia à interpretação gramatical da lei, apenas repudia malabarismos exegéticos que oportunistas, sem cerimônia, usam para distorcer conteúdos normativos de regras que o legislador cuidadosamente escreveu com objetividade e clareza. Mesmo considerando que, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados"1, não raro surgem teóricos dedicados à reinvenção da roda, empunhando bandeiras que atritam com a obviedade. Exemplo disso está em um sofisma criado a partir da falsa premissa de que o § 15 no art. 32 da lei 4.591/64, incluído pela lei 14.382/22, teria bipartido em duas subespécies a propriedade em condomínio especial, dando lugar à inclusão de um tal "condomínio protoedilício" no rol dos direitos reais,2 que veio a ser adotada pela Corregedoria do CNJ ao regulamentar a aplicação desse dispositivo legal no provimento 169, pelo qual impõe a prática de mais um registro de instituição de condomínio, ainda que não previsto em lei. Deixaram de considerar que, ao conceituar o condomínio especial e prever seu registro juntamente com o registro da incorporação, a lei 14.382/22 "copia" os elementos de tipificação do direito de propriedade condominial estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil para o condomínio denominado "edilício" e "cola" essa conceituação legal no art. 32 da lei 4.591/64, deixando claro que, independente da diversidade de denominações, o conceito é um só e "se trata de instituto único, que somente recebeu nomes diversos em duas leis,"3 como há muito advertia a mais abalizada doutrina a respeito das incontáveis denominações dadas pela lei ao condomínio especial em oposição ao condomínio geral.4 Mesmo divergindo da interpretação de que seria possível criar direitos reais e definir atos de registro independentemente de lei formal, naturalmente cabe respeitá-la, máxime por expressar opinião de renomados juristas. Este modesto artigo visa, porém, fazer um alerta para o deletério efeito que brota da bipartição do direito de propriedade condominial especial, instituto jurídico que existe e funciona em nosso país há mais de 50 anos. Nessse contexto, torna-se oportuno rememorar a reflexão que há mais de um século preocupava Lafayatte: "Quantas vezes, nas controvérsias jurídicas, as questões se enredam e se complicam por falta de noções precisas das ideias elementares que entram na composição dos princípios que dominam o assunto?"5 O provimento CNJ 169/24 Ao editar o provimento 169/24, o CNJ fez coro à interpretação citada, tanto que, em um de seus considerandos, referiu ao neologismo "condomínio protoedilício"6 para, em seguida, dispor que o registro da incorporação e da instituição cria apenas um direito de propriedade "temporário", um "primeiro condomínio", ao passo que a conclusão da edificação das unidades autônomas, atestada por "habite-se" e somada a um segundo registro da mesma instituição, faria nascer uma propriedade em "condomínio definitivo". Ainda de acordo com o provimento, esse "segundo condomínio", sim, é que poderia ser caracterizado como "condomínio edilício", ou um "segundo condomínio", já sem o prefixo "proto". Estaria aí a consagração da duplicidade de registro imobiliário, sem previsão legal, que, aos olhos da lei 6.015/73, é ato destinado exclusivamente para constituir direito real, transmitir ou onerar domínio. Além da desconformidade do provimento com o conjunto harmônico de normas alojado na lei 6.015/73, na lei 4.591/64 e no Código Civil, a imposição do segundo registro nada acrescenta em termos de segurança jurídica a seus destinatários, os adquirentes de unidades habitacionais; ao revés, esses são apenas atingidos no bolso com a desmedida elevação do custo dessa burocrática exigência. Tudo isso criado pela falsa premissa de que o condomínio edilício não existe antes da conclusão das edificações das unidades autônomas. "Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?", indagaria Bertolt Brecht7. A lei de incorporação imobiliária, ao expressar, em seu art. 32, § 1º-A, que "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões ao regime do condomínio especial", por óbvio quis dizer que basta o registro do memorial de incorporação - referido pelo citado art. 32 e pelo art. 1.332, do Código Civil - para fazer surgir, automaticamente, a figura do direito de propriedade em regime de condomínio especial, permitindo que o incorporador - titular do mesmo direito real, agora apenas desdobrado em novas matrículas - possa "alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas". É como ensinam Venosa e Van Well ao observarem que, com o registro na repartição imobiliária, "a instituição transforma em condomínio edilício a propriedade, que até então poderia se encontrar em situação jurídica de condomínio pro-indiviso"8. Se aquele "primeiro registro", mencionado no provimento CNJ 169/24, que criaria uma propriedade condominial provisória, desdobra um direito real de propriedade em vários direitos reais de propriedade, tanto que permite alienar ou onerar frações ideais de terreno e acessões (leia-se "edificações") que "corresponderão às futuras unidades autônomas", obviamente não se há condicionar a prévia conclusão das edificações para dar existência ao condomínio edilício. A tese que animou o CNJ a editar o provimento 169/24, segundo a qual o condomínio edilício estaria instituído apenas após a edificação das unidades autônomas e o tal "segundo registro", foi veementemente combatida em artigo de Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Guilherme Allevato, com a observação de que se procede à desconstrução de tal sofisma "a começar pelo pressuposto da existência física da edificação pronta e acabada" pois, segundo lembram, "o caput do art. 8º da lei 4.591/64 reconhece, desde a sua redação original, condomínio edilício em terreno onde não houver edificação"9. É como se dissesse, mutatis mutandis, que o direito de propriedade singular de um lote de terreno deveria ser alterado para submeter-se ao regime jurídico de uma nova espécie de propriedade singular pelo simples fato de sobre ele ter sido erigida uma casa. Definição de condomínio edilício no Direito brasileiro: Lei 4.591/64 e suas alterações O Código Civil não modificou a forma de criação do direito de propriedade em condomínio especial prevista na lei 4.591/64. Em momento algum condicionou sua existência, mesmo sob o rótulo "condomínio edilício", à prévia edificação. Tanto é assim que seu art. 1.358-A reconhece o condomínio de lotes de terreno, sem construção. O desembargador Francisco Eduardo Loureiro, corregedor-Geral da Justiça de São Paulo, lembra que, "após a vigência da alteração legislativa, se discutiu se o condomínio especial a que alude a lei 4.591/64 é o condomínio edilício dos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil. Não resta dúvida alguma que se trata de instituto único, que somente recebeu nomes diversos em duas leis"10. O instituto sempre foi o mesmo, desde 1964. Sua alteração naturalmente não pode decorrer de ato infralegal, como um provimento, ou pela adoção, por algumas vozes na doutrina, do neologismo "condomínio protoedilício". Não houve mudança legislativa nesse sentido, até porque não há justificativa alguma para se instituir uma nova modalidade de direito real de propriedade e, para tal, definir um novo ato de registro para simples reprodução da descrição da edificação constante da certidão de "habite-se", salvo em hipóteses como a da concessão de superfície. E, afinal, a nomenclatura não dá e nem tira direito real; o instituto continua o mesmo e sua natureza jurídica remanesce intacta. Caio Mário da Silva Pereira aponta que o surgimento do condomínio edilício "não ocorre com a averbação da construção, nem depende da aprovação da convenção (que apenas o regula), nem de assembleia de instalação [...] é o ato de instituição (Código Civil, art. 1.332) que determina o nascimento do condomínio edilício"11. Isso está na lei, de forma expressa. Em 2022, portanto 20 anos após a edição do Código Civil em vigor, a lei 14.382, fruto da conversão da MP 1.085/21, deixou claro que a instituição do condomínio edilício se dá antes mesmo da expedição do "habite-se": "o registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime de condomínio especial" e "investe o incorporador e futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos". Como refere o professor Caio Mário, "o regime condominial especial a que alude a lei não é outro senão o próprio condomínio edilício. Não há, aqui, criação de outro tipo condominial, que dependeria de regulação específica pelo legislador"12. Uma vez que o registro da instituição, que necessariamente precede qualquer atividade negocial do incorporador, cria o condomínio edilício, fazendo surgir uma propriedade fracionada em partes ideais autônomas, com edificação presente ou futura, não há razão para um segundo registro. O fenômeno da construção não modifica a estrutura do direito de propriedade já balizada pela instituição condominial, mas apenas altera a conformação física do imóvel, pois a edificação somente adere ao terreno, como a acessão de que trata a própria lei 4.591, impondo mera "averbação" na repartição imobiliária. E isso não é novidade, é princípio secular do Direito Civil, expresso pelo brocardo superficies solo cedit. Vale lembrar que a construção se dá em terreno próprio, não se aplicando a exceção prevista no art. 1.255, do Código Civil: [...] após a conclusão da obra e a concessão da licença de ocupação pela autoridade administrativa (habite-se), o incorporador deve requerer a averbação da construção no registro de imóveis [...] na omissão do incorporador e do construtor, a averbação por ser adquirida por qualquer adquirente da unidade (art. 44)13. Se dúvida houvesse sobre a limitação do ato a um registro único, bastaria a atenção para o art. 32, da lei 4.591, em seu § 15. Nele, justamente para evitar a babel interpretativa nas Corregedorias de Justiça dos Estados, está escrito em bom vernáculo: "O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único". Dois registros para a constituição de um mesmo direito de propriedade? Da leitura do provimento CNJ 169/24, que inseriu no Código Nacional de Normas - Foro Extrajudicial o art. 440-AN ("O registro da incorporação e da instituição do condomínio especial sobre frações ideais não se confunde com o registro da instituição e da especificação do condomínio edilício"), a primeira indagação que surge é: no registro da incorporação e da instituição do condomínio, exigido pela lei como condição para oferta e negociação de unidades autônomas, construídas ou não, já não estariam presentes os mesmos elementos da especificação do condomínio? Ou ainda, em outras palavras, os elementos de caracterização da propriedade estabelecidos pelo art. 1.332, do Código Civil, diferem daqueles definidos pelo art. 32, da lei 4.591/64? Não. É a mesma propriedade, como assevera Francisco Eduardo Loureiro, já mencionado antes. Note-se, dentre inúmeros outros documentos, especialmente aqueles listados na letra "i", do mesmo art. 32, em que se lê a exigência da apresentação de "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão", documentos destinados, exatamente, à instituição e especificação do condomínio. No corpo do provimento é que o CNJ alude à duplicidade registrária: CONSIDERANDO as divergências existentes na interpretação do §15 do art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, especificamente, para definir se o registro futuro da instituição do condomínio edilício é, ou não, dispensado em razão de anterior registro da incorporação; CONSIDERANDO que o registro da instituição da incorporação imobiliária cria um condomínio de frações ideais, também chamado de condomínio protoedilício, sujeito a regime jurídico próprio que não se confunde com o condomínio edilício; CONSIDERANDO que o registro da instituição do condomínio edilício não foi afastado por lei [...]. O provimento olvida que "o registro da instituição de incorporação imobiliária" mencionado em seu segundo considerando exige a mesma composição material do "registro de instituição do condomínio edilício" aludido no terceiro considerando. O provimento considera que o tal "protoedilício" seria um condomínio edilício ainda em gestação, cujo parto se daria com a conclusão da edificação, certificada pelo "habite-se", demandando novo registro. Mal comparando, o "primeiro" (do condomínio especial, referido pela lei 4.591/64) estaria para o registro de nascituro, e o "segundo" (do condomínio edilício, referido pelo Código Civil) representaria o registro do nascido com vida. A realidade é que o registro único exigido pela lei gera o direito de propriedade em condomínio edilício definitivamente constituído sob o ponto de vista jurídico antes mesmo de iniciada a construção, gerando direito real de imediato, sem necessidade de nenhum outro futuro registro, malgrado a pendência, em certos casos, da obrigação pessoal de edificar que, uma vez cumprida, em nada afeta a substância do registro anteriormente realizado, que caracteriza, em definitivo, a propriedade em condomínio especial. É importante lembrar que, de 1964, quando da promulgação da lei 4.591, até 2003, com a entrada em vigor do Código Civil, o registro único imperou sem qualquer questionamento. A partir de 2022, contudo, com o acréscimo do § 15 ao art. 32, da lei 4.591/64, pela lei 13.482, o mesmo instituto (condomínio especial), como numa diplopia, passou a ser visto em duas dimensões distintas, apenas pela nomenclatura que se resolveu dar à mesma figura que desde 1964 existe, como se o emprego de novo nomen juris ao mesmo instituto o transformasse em dois. Seria o caso de indagar: com esse provimento, como ficariam os registros únicos, das incorporações com edificações feitas antes de 2024? E aquelas cujas edificações findaram depois da edição do provimento? Será que a presença da construção geraria um direito real novo, suscetível de novo registro, ou representaria mera acessão passível de averbação com a apresentação do "habite-se"? Só uma espécie de direito real de propriedade O registro imobiliário tem, dentre outras nobres finalidades, a de dar publicidade ao direito real representado pelo condomínio especial/edilício14. Não há razão para registro de construção, porque o que a lei exige para publicidade da nova conformação física do imóvel é a mera averbação da edificação, pois o regime jurídico desta acompanhará, sempre, o do terreno, coisa principal, sobre o qual já está constituído o direito real, que é um só e não se altera em razão da nova configuração física dada pela acessão. ANDRÉ ABELHA é cirúrgico ao lembrar que o art. 44, da lei 4.591/64, já com a redação dada pela lei 14.382/22, prescreve que [...] após a concessão do habite-se pela autoridade administrativa, incumbe ao incorporador a averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula do terreno, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação15. Na sequência, responde à pergunta que compõe o tema de seu artigo com outra indagação: Para que, então, serve o art. 44 da lei de incorporações? Que "efeito" ele realmente gera? Simples: a averbação do habite-se não só põe fim à incorporação imobiliária (permanecendo alguns efeitos dela decorrentes, como as obrigações e responsabilidades do incorporador), como altera a qualificação das unidades autônomas. O bem imóvel, presente, existente, e "a ser construído", transforma-se em bem imóvel, presente, existente e construído. O sistema é coerente por si só; não precisamos complicá-lo. A leitura do art. 44 em articulação com as disposições antecedentes evidencia que todas essas regras compõem um conjunto normativo formulado em conformidade com os fundamentos dos direitos reais e do sistema registral, pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo. Como observam Melhim Chalhub e Daniella Rosa16, a instituição do condomínio ocorre no registro da incorporação, garantindo a regularidade das frações ideais desde o início, sem necessidade de um novo registro após a construção. A averbação do habite-se tem mero efeito informativo e não altera o regime jurídico previamente consolidado. Dessa forma, o sistema registral brasileiro já reconhece que a instituição do condomínio ocorre no momento do registro da incorporação, não havendo necessidade de um novo ato registral após a construção. O caráter meramente declaratório da averbação do habite-se confirma que a edificação não altera a estrutura jurídica previamente consolidada. Em resumo, o condomínio edilício pode, sim, ser instituído independentemente da edificação. É esse o ensinamento do professor Álvaro Villaça Azevedo17: O condomínio edilício pode ser instituído mesmo antes de construído o edifício, como acontece no lançamento de construções, pelo incorporador, ou, ainda, estando o prédio em construção ou já construído. Todavia, o ato de instituição e consequente registro imobiliário são indispensáveis para que venha a existir. Nesse caso, deve o incorporador cumprir todas as exigências que lhe são impostas, registrando a incorporação, antes que possa alienar as unidades autônomas, discriminando-as com suas respectivas frações ideais no terreno, elaborando minuta da futura convenção condominial, e do contrato de alienação das mesmas unidades, entre muitos outros requisitos conforme a legislação específica (especialmente, art. 32 da lei 4.591/64, que cuida das obrigações e direitos do incorporador, e art. 167, inciso I, n; 17 [da lei 6.015/73], que determina o registro das incorporações, instituições e convenção de condomínio e art. 1.332 do novo Código Civil). (destaques acrescidos) O sofisma construído para justificar a bipartição do direito de propriedade em condomínio especial afronta princípios que regem o direito registrário, em especial o da taxatividade do direito real, que não existe sem previsão legal. Realmente, atenta contra a lógica do princípio da taxatividade a tese de que o "ato registral único", mencionado no art. 32, da lei 4.591/64, daria espaço para duplicidade de ato registral, como se um só direito real pudesse existir em duas dimensões. Isso não ocorre, por óbvio. O provimento 169, com todo respeito, nenhum benefício extra traz aos consumidores, destinatários da proteção da lei, limitando-se a gerar mais receita aos cartórios. Mais uma vez é preciso pedir licença para expressar que as premissas aqui invocadas não vão além do que se revela óbvio à leitura da legislação que rege o condomínio especial, ainda que a ele se atribua, como fez o Código Civil, a denominação "condomínio edilício", ou mesmo que seja cognominado "condomínio protoedilício". Concluindo, não custa lembrar a genialidade do mais eloquente "escrutinador da natureza humana", Nelson Rodrigues, autor de variações do postulado segundo o qual "nada é mais difícil e cansativo do que defender o óbvio". 1 Código Civil Português, 2 do art. 9º. 2 Parecer proferido pelos Professores Flávio Tartuce e Carlos Elias de Oliveira a pedido da ARISP - Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, que instruiu o PA SEI - Procedimento Administrativo disponível no Sistema Eletrônico de Informações 00437/2023 da Corregedoria Nacional de Justiça. 3 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Comentários aos arts. 1.331 e seguintes. In: GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Lei 10.406 de 10/1/02. Coordenação Cezar Peluso. ed. Santana de Parnaíba-SP: Manole, ano. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: GenForense, 25. ed., 2017, p. 182. GOMES, Orlando, Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 19. ed., coord. Luiz Edson Fachin, 2009, p. 240. 5 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. XXVII. 6 "Proto: elemento de composição de palavras que traz consigo a ideia de primeiro, do que é anterior aos demais. Do grego prõtos; alemão brot. francês prote". "Protoedilício" seria, então, "primeiro condomínio edilício". Fora disso, a linguística mostra que "proto" seria um "tipo de pão preparado com farinha de milho e centeio" ou seria o "tipógrafo". Disponível aqui. Acesso em: 16 jan. 2025. 7 Poeta e dramaturgo alemão (1898-1956). 8 VENOSA, Sílvio de Salvo; VAN WELL, Lívia. Condomínio em edifício: teoria e prática. 2. ed. Indaiatuba-SP: Foco, 2022. p. 49. 9 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; ALLEVATO, Guilherme Cinti. Lei do SERP e a instituição antecipada dos condomínios edilícios. Migalhas, 20 abr. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 jan. 2025. 10 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Comentários aos arts. 1.331 e seguintes. In: GODOY, Claudio Luiz Bueno de et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Lei 10.406 de 10/1/02. Coordenação Cezar Peluso. ed. Santana de Parnaíba-SP: Manole, ano. 11 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 16. ed. Atualizada por Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2024. p. 89. 12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações, cit., p. 90. 13 ASSIS, Olney Queiroz; KÜMPEL, Vitor Frederico; PERES, Iehuda Henrique. Manual de Direito Condominial. São Paulo: YK, 2016. p. 170. 14 PEDROSO, Alberto Gentil Almeida; BRANDELLI, Leonardo; MAZITELI NETO, Celso; GARCIA, Enéas Costa; SILVA, José Marcelo Tossi. Condomínio e incorporação imobiliária. v. VII. 2. ed. São Paulo: RT, 2022. 15 ABELHA, André. Incorporação imobiliária: em que momento, afinal, nasce o condomínio edilício? Migalhas, 13 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 13 jan. 2025. 16 CHALHUB, Melhim e ROSA, Daniella. A instituição do condomínio edilício pelo registro da incorporação. Migalhas, 27 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 4 fev. 2025. 17 AZEVEDO, Álvaro Villaça. O Condomínio no Novo Código Civil: arts. 1314 a 1.358. In: FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (org.). O Novo Código Civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003. p. 1.027.
O instituto da indisponibilidade de bens tem agora uma atualização regulatória com a edição do provimento 188 pela CNJ - Corregedoria Nacional de Justiça, de dezembro de 2024. Aproveitando a necessidade de compatibilizar a CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens com o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, o CNJ tornou formal algumas características sedimentadas da indisponibilidade de bens. A indisponibilidade é uma medida extrema. Implica a restrição dos direitos de propriedade, retirando do proprietário a faculdade de dispor voluntariamente da coisa. No âmbito do Direito Imobiliário, a indisponibilidade deve se efetivar com a averbação do decreto de indisponibilidade de bens, o que impossibilita o registro de transmissões de direitos reais ou sua oneração. Ressalta-se que a ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escrituras1, vedando apenas o registro dela no Registro de Imóveis (momento da efetiva transmissão em razão do art. 1.227 do Código Civil). Dada a intensidade da limitação, a indisponibilidade sempre é encarada como uma medida de exceção2. Sua aplicação comumente busca evitar a dilapidação do patrimônio pelo devedor, sendo notada historicamente em ações judiciais que dizem respeito ao interesse público. Panorama da indisponibilidade Em sua origem, durante a Era Vargas, a medida visava garantir o erário. Destacava-se a restritividade prevista pela legislação na aplicação do instituto, tendo como alvos apenas os réus por crimes ou contravenções relacionados à "aplicação ou ao uso indébito ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos". Como ensina Sérgio Jacomino: "o decreto 19.630/31 declarava que continuava expressamente proibida 'a alienação, ou oneração, de quaisquer bens, moveis, ou imóveis, ações, ou direitos pertencentes às pessoas' a que se referia o decreto 19.440/30 (arts. 9º, 12 e 43). Para disposição de bens imóveis atingidos exigia-se a expedição de alvarás pela autoridade competente."3. A Constituição Federal4 manteve o tratamento excepcional à indisponibilidade de bens, aplicando-a como sanção à prática de atos de improbidade administrativa. Essa previsão é observada na lei 8.429/92 ("Lei de Improbidade Administrativa"), que permite o decreto de indisponibilidade após provocação, e na lei 8.397/92, que prevê que a indisponibilidade de imediato quando da decretação de uma medida cautelar fiscal. A lei 11.101/05 ("Lei de Falências") também introduziu a possibilidade de formulação de pedido de indisponibilidade de bens contra: (i) os sócios de responsabilidade limitada, (ii) os controladores e (iii) os administradores da sociedade falida. Nessa hipótese, a indisponibilidade de bens não é geral, devendo ser determinada de forma compatível com o dano provocado por decisão judicial de ofício ou respondendo a um requerimento das partes. Indica-se também o art. 185-A da lei 5.172/66 ("Código Tributário Nacional"), com redação dada pela LC 118/05, que prevê que o juízo pode decretar a indisponibilidade de bens até o valor total exigível em execuções fiscais em que o executado foi citado e não foram encontrados bens para satisfação do débito. Embora a indisponibilidade tenha previsão para hipóteses específicas, o Poder Judiciário passou a se utilizar também do instituto como medida executiva atípica. Nesse contexto, tem-se observado em uma banalização do instituto, muitas vezes aplicado para garantia de "obrigações de bagatela - ou teratológicas, como as originadas de pequenas dívidas trabalhistas que gravam e embaraçam todo o patrimônio de construtoras ou de bancos"5. Com o julgamento do REsp 1.963.178/SP, exemplificativo dessa posição, a Terceira turma do STJ reconheceu a possibilidade de utilização da indisponibilidade como medida executiva atípica, condicionando-a ao exaurimento dos meios típicos. Extrai-se do julgado que: "A adoção do CNIB atende aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, assim como não viola o princípio da menor onerosidade do devedor, pois a existência de anotação não impede a lavratura de escritura pública representativa do negócio jurídico relativo à propriedade ou outro direito real sobre imóvel, exercendo o papel de instrumento de publicidade do ato de indisponibilidade. Contudo, por se tratar de medida executiva atípica, a utilização do CNIB será admissível somente quando exauridos os meios executivos típicos, ante a sua subsidiariedade, conforme orientação desta Corte Superior." O provimento 188 O provimento 188 busca regulamentar a indisponibilidade de bens com a fixação de conceitos já consolidados do instituto, pouco inovando como regra geral. A ordem de indisponibilidade deverá ser proveniente de autoridade administrativa ou judicial6. Os oficiais de Cartórios de Registro de Imóveis devem consultar a CNIB diariamente e prenotar de ofício eventuais ordens nas matrículas em nome dos alvos, ou seja, nas que figurem como proprietários ou detenham direito de aquisição. Há previsão de que, na hipótese de aquisição de bens pelo alvo, o oficial promova o registro da transmissão e, ato contínuo, a averbação da indisponibilidade sem que o adquirente seja previamente notificado. O acesso à CNIB será público, sendo gratuito para aquele que é alvo de ordem de indisponibilidade e cobrado para terceiros, entidades de proteção de crédito e demais interessados. O provimento 188 também reformula o regramento para transmissões involuntárias (arrematações, alienações por iniciativa particular ou adjudicações). Se antes o CNJ previa a necessidade de indicação de "prevalência da alienação judicial em relação à restrição oriunda de outro juízo ou autoridade administrativa a que foi dada ciência da execução", agora se admite que a autoridade judicial apenas preveja o cancelamento das constrições oriundas de outros processos. O texto do provimento deixa de esmiuçar a nova prerrogativa da autoridade judicial, não indicando o tratamento adequado em situações com créditos privilegiados ou com preferência de penhoras. A decisão parece tentar afastar a discussões processuais da rotina registral. Todavia, o tema exige cautela dada a possiblidade de anulação da alienação judicial. O CNJ esclareceu que a averbação da indisponibilidade não impede a alteração da especialidade objetiva do imóvel. Permanece possível a retificação administrativa, a unificação, o desdobro, o desmembramento, a divisão, a estremação ou a REURB7. Decorre do provimento 188, também, a estruturação da forma de cobrança dos emolumentos pela averbação da ordem de indisponibilidade. O pagamento da averbação ocorrerá posteriormente, concomitante ao pagamento da averbação de seu cancelamento. Assim, o oficial deverá realizar a averbação da indisponibilidade sem o recolhimento dos emolumentos, que serão cobrados futuramente do interessado pelo cancelamento da restrição, salvo se esse for parte do processo em que originada a ordem de indisponibilidade e conte com a benesse da justiça gratuita8. Importante destacar que após o cadastro da ordem de cancelamento da indisponibilidade na CNIB, o oficial do Cartório de Registro de Imóveis fica "obrigado a averbar o seu cancelamento", desde que pagos os emolumentos quando cabíveis. Assim, o único canal de informação das ordens de indisponibilidade será a CNIB. O provimento, inclusive veda "a utilização de quaisquer outros meios, tais como mandados, ofícios, malotes digitais e mensagens eletrônicas". A despeito da relevância das atualizações indicadas acima, o provimento 188 traz duas alterações que chamam muita atenção: (i) a instituição de uma ordem de preferência de indisponibilidade pelo alvo e (ii) a definição do momento de início dos efeitos da ordem de indisponibilidade. Quanto à ordem de preferência, o art. 320-K do provimento 188 possibilita que os proprietários ou titulares de direitos reais sobre imóveis elejam bens sobre os quais deverão recair eventuais ordens de indisponibilidade. A indicação de preferência não vincula os órgãos do Poder Judiciário ou as autoridades administrativas, que ainda poderão determinar a indisponibilidade de imóveis não indicados. Entretanto, cria-se uma base indicativa importante, especialmente para as hipóteses de ordens de indisponibilidade de patrimônio determinado, como aquelas provenientes de execuções fiscais ou de ações de falências. A formação, pelos devedores, de uma base indicativa de preferência representa outro avanço operacional. Embora já houvesse previsão de ordens de indisponibilidade de imóveis específicos (ou um patrimônio determinado), a CNIB não dava suporte a tais solicitações, obrigando as autoridades judiciais ou administrativas a recorrerem a ofícios e mandados. Agora, as autoridades podem, via CNIB, determinar a indisponibilidade de bem específico ou de bens até um montante determinado. Todavia, o provimento perdeu a oportunidade de prever um mecanismo que defina um valor limite para as ordens de indisponibilidade. Assim, entende-se que caberá à autoridade judicial ou administrativa calcular a equivalência entre o patrimônio bloqueado e o direito que se busca assegurar com a ordem. Poderia o CNJ ter indicado balizas claras para realização desse cálculo (adotando a utilização do valor venal ou de referência dos imóveis ou o valor atribuído pelo proprietário para fins de declaração tributária como indicativo do patrimônio bloqueado). Ressalvada essa questão operacional específica, tal modernização da CNIB tende a gerar um impacto prático positivo no mercado imobiliário. A possibilidade de limitar o alcance de ordens de indisponibilidade por meio da CNIB confere maior eficiência às ordens que incidem sobre um patrimônio distinto. Espera-se que essa facilidade incentive a adoção de ordens de indisponibilidade específicas, em vez daquelas que abrangem o patrimônio total do alvo, contribuindo para a manutenção de bens no mercado e a livre circulação das riquezas. Já a definição do momento de início dos efeitos da ordem de indisponibilidade no provimento 188 é bastante controversa. O provimento prevê em seu art. 320-I, § 3º, que "a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". Referida disposição tem sido objeto de críticas9, especialmente por excepcionalizar o princípio da prioridade registral em relação à indisponibilidade de bens, sem fundamento legal, causando insegurança jurídica à sociedade. A previsão destoa de normas de corregedorias estaduais como São Paulo e Minas Gerais10, que prestigiam a prioridade e a segurança jurídica ao possibilitar o registro dos títulos que estejam previamente prenotados quando do recebimento da ordem de indisponibilidade. Há que se ressaltar que o oficial de registro de imóveis deve consultar diariamente a CNIB e prenotar tão logo as ordens de cancelamento. Além disso, a consulta à CNIB pelo notário é condição da lavratura de escritura de transmissão de direitos reais, sendo o resultado da consulta consignado no ato. Assim, a hipótese do art. 320-I, § 3º, trata especificamente do adquirente de boa-fé, que será surpreendido por um decreto de indisponibilidade não averbado na matrícula e posterior à aquisição do bem. Em situações similares, o Poder Judiciário tem entendido pela prevalência da aquisição de boa-fé em detrimento das ordens de indisponibilidade supervenientes, como se observa em julgados do STJ11, e do TJ/SP12. De igual forma, a legislação tem optado por prestigiar o adquirente de boa-fé, destacando-se a nova redação do art. 54 da lei 13.097/15, dada pela lei 14.382/22, que reforça a proteção ao adquirente de boa-fé com o simples exame da matrícula do imóvel. O provimento 188 caminha em sentido diverso, criando situação de insegurança jurídica ao adquirente de boa-fé. Se o acesso à CNIB é público e os efeitos da indisponibilidade independem do registro, não há necessidade de ser realizada a averbação. De igual forma, não poderá o adquirente (que em tese está dispensado da emissão das certidões forenses em razão da regra do art. 54, inciso II, lei 13.097/15) se resguardar de uma decretação posterior de indisponibilidade contra o alienante. Esse mesmo adquirente será penalizado com o impedimento de registro e, por consequência, da não transmissão do imóvel, sendo que não houve de sua parte qualquer desídia. Entende-se, portanto, que o dispositivo que relativiza o princípio da prioridade peca formalmente ao avançar em competência legislativa, negando vigência ao art. 186 da lei 6.015/73 ("Lei de Registros Públicos"). Além disso, o dispositivo inova, contrariando histórico regulatório e jurisprudencial, bem como o próprio racional do instituto e do sistema registral público. A judicialização de situações de indisponibilidade superveniente não será inesperada se o CNJ optar por manter a posição do art. 320-I, § 3º, do provimento 188. Conclusão O provimento 188 representa avanço na padronização do instituto da indisponibilidade e marco importante na atualização do Direito Imobiliário com o SERP. Entretanto, o provimento gera preocupação dos operadores de direito ao inovar e prever que a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados. Essas questões indicam a oportunidade de um ajuste legislativo que alinhe o instituto aos princípios constitucionais e às normas históricas do Direito Registral brasileiro. Uma solução de lege ferenda poderia também estabelecer um tratamento isonômico à indisponibilidade, mitigando arbitrariedades e desproporcionalidades na atuação dos juízes. Caso a posição atual seja mantida, não se pode descartar uma ampliação da judicialização, sobretudo em cenários envolvendo a boa-fé do adquirente. Assim, é essencial que futuras regulamentações busquem equilibrar a eficácia da indisponibilidade com a preservação da estabilidade jurídica e econômica. 1 Referida condição já constava do provimento 39 do CNJ, tendo sido mantido no art. 320-F do provimento 188. 2 Nesse sentido, Moacyr Pretocelli indica que: "Não é demais lembrar que à luz do princípio da livre circulação das riquezas, os bens em geral devem permanecer in commercium. Somente em hipóteses mui excepcionais, autorizadas expressamente por lei e mediante ordem fundamentada da autoridade competente, admite-se que bens determinados sejam retirados do comércio, tornando-se indisponíveis por seus titulares". 3 O autor apresenta um relato histórico do instituto em artigos para o portal Migalhas (disponível aqui. Acesso em 15/1/25). 4 CF/88. Art. 37, § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. 5 Novamente conforme lição de Sérgio Jacomino, no artigo supracitado. 6 Rememora-se que o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, já tinha formulado entendimento de que "a intervenção drástica sobre o direito de propriedade exige a atuação do poder Judiciário", quando do julgamento da constitucionalidade do art. 20-B, inciso II, da lei 10.522/02, com redação dada pela lei 13.606/18, que permitia à União indisponibilizar bens com a mera apresentação de certidão e dívida ativa. 7 Fica impedida REURB se houver decisão específica que impeça a análise, aprovação e registro do projeto de regularização fundiária urbana, conforme dispõe o art. 74 da lei 13.465/17. 8 Questão que merece comentário é que o custo de averbação e cancelamento de averbações pode alcançar montantes excessivos quando observada a prática de se decretar a indisponibilidade do patrimônio indistinto de grandes intuições financeiras. Como alerta Sérgio Jacomino em "Indisponibilidade de bens - A CNIB 2.0 e a eficácia do Registro", não são raras as averbações e subsequente cancelamento de ordens de indisponibilidade, onerando empresas com maior patrimônio imobilizado (disponível aqui. Acesso em 28/1/25). 9 Indica-se o já citado "Indisponibilidade de bens - A CNIB 2.0 e a eficácia do Registro" e os artigos "Concentração legal, prioridade registral e a arrepsia da indisponibilidade regrada no provimento 188 do CNJ - arrebatamento matricial" de Douglas Gavazzi (disponível aqui. Acesso em 15/1/25) e "Averbação de indisponibilidade de bens - O CNJ prestigia a insegurança jurídica" de Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (disponível aqui. Acesso em 15/1/25). 10 Provimento 58/89, Cap XX, Seção IV, Subseção II, 108.3, do TJ/SP e provimento conjunto 93/20, art. 850, § 2º e 3, do TJ/MG. 11 Vide recurso AgInt no REsp 1952193/SP, no qual se entendeu que "Caracterizada a boa-fé dos adquirentes, não deve subsistir a constrição do bem imóvel, ainda que não registrada em Cartório a promessa de compra e venda". 12 Vide apelação cível 1059731-53.2023.8.26.0114, em que expressamente dito que "Prova, ainda, sobre lavratura de escritura pública em data anterior ao decreto de indisponibilidade. Boa-fé da autora que deve prevalecer, ante inexistência de comprovação sobre fraude".
1. Introdução O crédito é fundamental para o setor imobiliário e a garantia imobiliária, por sua vez, é essencial para concessão do crédito. Entre as garantias mais usuais se destacam a alienação fiduciária e a hipoteca. A alienação fiduciária tem sido utilizada em larga escala ante a segurança jurídica, previsibilidade e agilidade na sua execução, proporcionadas pelo procedimento extrajudicial traçado pela lei 9.514/97. Assim como a alienação fiduciária, a hipoteca ganhou nova musculatura com a edição da lei 14.711/23, marco legal das garantias. No entanto, uma parcela da lei necessitava de regulamentação específica para extrair o máximo de eficácia das garantias imobiliárias turbinadas pela mudança legislativa. Essa regulamentação veio recentemente com a edição pelo CMN - Conselho Monetário Nacional da resolução 5.197/24. A resolução do CMN trouxe aspectos essenciais para o uso do imóvel na garantia de mais de uma operação de crédito imobiliário. O texto proporciona maior clareza sobre a sua utilização e os cuidados que devem ser observados na hora de formatar o contrato de garantia. 2. O marco legal das garantias e a resolução do CMN A lei do marco legal das garantias inovou o ambiente legal das garantias reais estruturadas no Direito brasileiro, direcionando esforços na expansão da capacidade de contratação de financiamento no país, além de ter fortalecido a extrajudicialização das execuções de garantias1. Entre as alterações promovidas pela lei, destacam-se as regras relativas à alienação fiduciária de bem imóvel, a hipoteca e sua execução extrajudicial, a utilização de várias garantias e a execução extrajudicial conjunta, bem como a criação do agente das garantias e a utilização da ata notarial para verificar o implemento ou descumprimento das condições negociais acertadas pelas partes. Em síntese, o aperfeiçoamento do sistema das garantias pela lei do marco das garantias propicia condições adequadas para otimizar o aproveitamento dos ativos imobilizados por parte dos devedores e credores. É o caso da extensão da alienação fiduciária e da hipoteca, bem como alienação fiduciária superveniente. A extensão da hipoteca e a extensão da alienação fiduciária consistem, basicamente, na utilização da garantia para a contração de novas operações de crédito, em regra, com o mesmo credor2. Com efeito, a garantia outorgada não pode exceder o prazo final de pagamento, bem como o valor garantido constante do título da garantia original. A transferência do crédito garantido pelo imóvel a outra instituição financeira somente pode ser feita se englobar a totalidade dos créditos que foram assegurados pela garantia, de maneira a preservar a unicidade do credor. Já no caso da alienação fiduciária superveniente, o imóvel que foi alienado fiduciariamente é utilizado como garantia em nova operação de crédito antes que a operação originalmente contratada seja quitada. Não é necessário que a nova operação de crédito seja feita com o credor original. Porém, fica a sua eficácia condicionada à resolução da propriedade fiduciária do imóvel em relação ao primeiro negócio jurídico, mediante o pagamento da dívida e de seus encargos ou, em caso de inadimplemento, após sua satisfação pela realização da garantia3. As mudanças provocadas pela lei do marco das garantias já são uma realidade desde sua promulgação em outubro de 2023. No entanto, é preciso reconhecer que havia necessidade de sistematizar e dar mais clareza sobre os aspectos regulatórios e cuidados que devem ser observados na hora de formatar o contrato de garantia nessas modalidades de expansão e garantia superveniente. Essa lacuna agora foi preenchida pela resolução 5.197/24 do CMN. Mas antes de olhar para as novidades proporcionadas pela resolução, cabe um esclarecimento inicial que foi o gancho que justificou a inovação legislativa no marco das garantias, agora regulamentada pelo CMN. No mercado imobiliário, é natural que o imóvel seja usado apenas para fins de garantir a própria compra estruturada pelo mutuário e pela instituição financeira. No geral, o imóvel servia apenas para garantir o pagamento do financiamento feito pelo comprador que sobre ele recaia. Esse modelo de negócio imobiliário era uma bala de prata. Eis que resolvia o problema de affordability (financiabilidade) do comprador, ao mesmo tempo que assegurava ao credor fiduciário a recomposição ágil do crédito em caso de inadimplemento mediante a execução extrajudicial da garantia4. Ocorre que o imóvel dado em garantia ficava engessado até a quitação do financiamento. Esse cenário mudou com a lei do marco das garantias e mais recentemente ganhou a regulamentação necessária pelo CMN para dar fôlego ao crédito imobiliário por meio de um mesmo imóvel. 3. A regulamentação do CMN sobre uso de imóvel como garantia em múltiplas operações de crédito O CMN introduziu alterações importantes nas regras das operações de crédito imobiliário por meio da resolução 5.197/24, a fim de que um mesmo imóvel sirva de garantia para mais de uma operação financeira. Como já destacado, a regulamentação feita pelo CMN foi impulsionada pela lei 14.711/23, notadamente no que diz respeito à hipoteca e à alienação fiduciária. A resolução entra em vigor a partir de 1/7/25. O objetivo foi trazer mais efetividade e ampliar o uso dessas modalidades de garantia em operações de crédito. A resolução trata especificamente das hipóteses de hipoteca sucessiva, da extensão da hipoteca, extensão da alienação fiduciária, bem como da propriedade fiduciária superveniente. Ela dispõe sobre as condições que essas estruturas contratuais devem observar, para que fiquem aderentes às melhores práticas regulatórias, inclusive para preservar a higidez do SFN - Sistema Financeiro Nacional, como se vê da própria exposição de motivos da resolução. Foram disciplinadas tanto as operações com finalidade imobiliária determinada - financiamento para aquisição, produção e construção de imóveis - como também as operações de crédito que não possuem destinação específica para a aplicação dos recursos, como é o caso dos empréstimos de pessoas naturais garantidos por imóveis residenciais. A esse respeito, a resolução do CMN estabelece as condições para que as operações de crédito sejam estruturadas. Esse é o caso da limitação do prazo da garantia, que deve ser igual ou inferior ao prazo remanescente da operação de crédito original, considerada a data da nova operação. Ela também trata do teto do valor da garantia, ou seja, a soma do valor nominal da nova operação e dos saldos devedores das operações garantidas não poderão ser superiores ao valor garantido constante do título original. 4. Principais mudanças Para compreender as atualizações e mudanças feitas, é necessário entender os conceitos tratados pela resolução, inclusive os ajustes adotados nas terminologias da resolução 4.676/18, que foram modificados por essa resolução do CMN5. As operações de crédito imobiliário - terminologia adotada pela resolução - contemplam não apenas as situações relativas às operações de financiamento imobiliário, mas, igualmente, tratam das operações de empréstimo contratadas por pessoas naturais que tenham imóveis como a única garantia ou como sendo a garantia de maior valor. O financiamento imobiliário, por sua vez, compreende as operações de crédito imobiliário composto pelas operações destinadas à aquisição, à produção, à reforma e à ampliação de imóveis residenciais e não residenciais, bem como as operações destinadas à aquisição de materiais para a construção, ampliação e reforma de imóveis residenciais ou não residenciais. A conceituação destes tipos de operações que estão submetidas à resolução é importante para compreender o espaço de atuação dessas alterações. Vamos, agora, a elas: 4.1. Compartilhamento de garantias: Com o marco legal das garantias, passou a ser permitido utilizar um único imóvel como garantia em várias operações de crédito imobiliário. A previsão para esta faculdade está na lei e, igualmente, na resolução, que traz as condições necessárias que devem ser observadas nesta estrutura negocial para produção regular de efeitos. Por exemplo, o estabelecimento de que o somatório dos valores das operações respeite o limite de crédito aplicável à operação predominante, assim como observe o prazo nela estabelecido na data da contratação. Esse é um dos aspectos que representa o maior avanço regulatório quando considerada a lei do marco das garantias e a resolução 5.197/24 do CMN. Isso se dá porque a compreensão então predominante - a de que o imóvel serve apenas à uma única garantia - não mais se sustenta, seja porque a lei faculta a sua contratação para mais de uma operação, seja porque existe regulamentação específica dando os contornos deste negócio de garantia. Além disso, o compartilhamento de garantias permite que o mesmo imóvel possa servir ao financiamento imobiliário e, ao mesmo tempo, aos empréstimos tomados pela pessoa física sem destinação específica, valendo-se do imóvel para garantia da operação. Essa permissão reforça a posição dos devedores que conseguem alavancar sua posição financeira a partir do ativo que está sob sua propriedade, sem ignorar os compromissos anteriormente assumidos. 4.2. Flexibilidade negocial: A autonomia privada não é prejudicada pela contratação de uma garantia adicional sobre o imóvel. Isto é, as condições específicas de remuneração, atualização e amortização das novas operações de crédito podem ser ajustadas independentemente das condições da operação original6. Essa flexibilidade no arranjo da contratação da nova garantia reforça a mensagem da lei do marco das garantias de fortalecer o uso consciente e sustentável do ativo imóvel não apenas para uma única finalidade, ao passo que assegura a autonomia privada na estruturação do contrato de garantia. É certo que existem limites que devem ser observados pelos devedores e credores. Esses limites servem justamente para preservar a posição dos credores e devedores originais, com a finalidade de tornar o mercado de crédito mais eficiente, mas sem negligenciar a segurança jurídica. Assim, os limites impostos não engessam as operações de crédito adotadas por um mesmo imóvel. Ao contrário, as orientações firmadas pela resolução 5.197/24 fomentam a oferta e melhoram as condições de crédito, reduzindo a subtilização das garantias. Esse movimento contribui para própria liquidez do mercado7. As limitações que devem ser observadas estão descritas no art. 6º, §2º, ss. c/c art. 22-B, I e II e, ainda, art. 22-C da resolução do CMN. 4.3. Garantias securitárias opcionais: Quando da contratação de empréstimos, as instituições financeiras podem exigir seguros para cobrir os riscos como morte, invalidez permanente e danos ao imóvel, garantindo maior proteção ao mutuário e à sua família. A resolução passou a prever que as instituições financeiras e os mutuários contratem uma garantia para servir aos seguros firmados pelas partes. Esta não é uma regra impositiva, mas uma faculdade que estará à disposição dos devedores e seguradoras. De acordo com a exposição de motivos, o seguro garantirá a quitação do saldo devedor perante as instituições financiadoras. Embora a sua contratação seja facultativa, ela propicia segurança econômica e jurídica para os mutuários e às instituições financiadoras. Isso porque ela permitirá o aproveitamento da garantia de maneira eficaz na contratação de empréstimos quando for compartilhada com o financiamento habitacional. O mutuário terá a liberdade de escolher a apólice de seguro, não estando vinculado àquela indicada pela instituição financeira. 5. Aspectos positivos da regulamentação do CMN Os aperfeiçoamentos no sistema de garantias pela lei do marco das garantias somada à resolução do CMN permitem a ampliação do crédito imobiliário e sua otimização no uso de imóveis como ativos financeiros, dando liquidez ao mercado sem deixar de lado a segurança jurídica. Nesse sentido, a possibilidade de utilizar o mesmo imóvel para servir de garantia em múltiplas operações abre um leque de oportunidades para os mutuários e para o mercado financeiro, no geral, promovendo benefícios em diferentes vertentes: (a) ampliação do crédito; (b) aumento do volume das operações de crédito garantidas; (c) maior capacidade de alavancagem aos mutuários e empresas, tornando o mercado mais competitivo, além (d) de personalizar as soluções de crédito aos diferentes perfis de consumidores, injetando liquidez no mercado e, por fim, contribuir para uma (e) taxa de juros mais competitivas entre os credores na formalização das operações de crédito dado o lastro obtido a partir garantia. De forma objetiva, os aspectos positivos podem ser capturados nos itens abaixo: Acesso ampliado ao crédito: As medidas facilitam a obtenção de novos financiamentos utilizando um mesmo ativo imobiliário. Isso é especialmente útil para pessoas físicas, uma vez que não há mais restrição apenas às operações de crédito imobiliário direcionados ao financiamento habitacional. Ou seja, pode-se valer da garantia fiduciária ou hipotecária sobre o mesmo imóvel para assegurar obrigações decorrentes de empréstimos de pessoa física, descolados do financiamento imobiliário; Otimização do uso de ativos imobiliários: Permite explorar todo o potencial financeiro de um imóvel, maximizando seu valor como garantia, que até a edição da lei 14.711/23 estava subutilizado. Afinal, essas medidas impulsionam o uso do imóvel para uma alavancagem financeira, sem esquecer da segurança jurídica e da previsibilidade essenciais no cenário de concessão de crédito; Maior flexibilidade nas condições financeiras: Cada operação de crédito pode ter características próprias, possibilitando o mutuário e o credor adaptar condições específicas para cada operação que não precisam ser idênticas ou formalizadas apenas com o mesmo credor fiduciário ou hipotecário. Essa maleabilidade destrava importantes frentes no mercado, atendendo melhor as suas necessidades. Os avanços do marco das garantias, sistematizados pela resolução do CMN, consubstanciam incentivos diretos aos mutuários para explorarem o patrimônio de maneira estratégica, usando-os como alavanca para novos investimentos ou aquisições. Sob a ótica das instituições financeiras, as alternativas são positivas, já que propiciam eficiência e sustentabilidade ao mercado pelo uso da garantia real. 6. Conclusão Uma vez que o acesso ao crédito é facilitado, a medida tem o potencial de aquecer diversos setores da economia, especialmente o mercado imobiliário e de construção civil. A possibilidade de utilizar um imóvel para múltiplas operações é um avanço na inclusão financeira, permitindo que pessoas com menor capacidade de adquirir novos bens possam acessar crédito através de um único ativo imóvel, que estava congelado - usualmente chamado de dead capital - até a quitação do financiamento. Como benefício direto, democratiza-se o acesso à novas fontes de financiamento mediante a estruturação de garantias sobre um mesmo imóvel. Por conseguinte, a regulamentação moderniza o sistema de garantias, promovendo um uso mais racional e dinâmico dos imóveis como verdadeiros ativos financeiros. Com isso, cria-se um ambiente favorável para a inovação nos produtos de crédito, o crescimento econômico e o fortalecimento da segurança nas operações de crédito através da garantia imobiliária. 1 A esse respeito, cf.: SILVA, Fábio Rocha Pinto e. A lei 14.711 e o direito comparado. In: O novo Marco das garantias: aspectos práticos e teóricos da Lei 14.711/23. [coord.] Bernardo Chezzi e Martha El Debs. São Paulo: Juspodvm, 2024. p. 32. 2 Também se observa na doutrina a expressão recarregamento ou refil da Alienação fiduciária e da hipoteca. Fábio Rocha Pinto e Silva bem ilustra a situação: "recarregamento ou extensão da garantia real - tanto na hipoteca quanto na alienação fiduciária, o projeto permite que o banco devolva ao mutuário o valor já quitado, voltando a dívida ao valor original. Essa devolução funciona como um refil de refrigerante: quanto mais a dívida original é paga, mais espaço sobra para tomar nova dívida, enchendo novamente o copo, até o limite original. Não são alterados os juros e o prazo final de pagamento" (SILVA, Fábio Rocha Pinto e. PL 4.188/21: o caminho para a reforma das garantias e a falsa polêmica. Acesso em 10/1/25). 3 Melhim Chalhub explica essa modalidade de negócio fiduciário: "a contratação e o registro da alienação fiduciária da propriedade superveniente independem de anuência do credor titular da propriedade fiduciária anteriormente registrada, pois a eficácia da nova garantia é subordinada à extinção daquela que já se encontrava registrada, com a consequente averbação do seu cancelamento" (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária da propriedade superveniente. In: O novo Marco das garantias: aspectos práticos e teóricos da lei 14.711/23. [coord.] Bernardo Chezzi e Martha El Debs. São Paulo: Juspodvm, 2024. p. 144). 4 Segundo o Banco Central do Brasil, em 2018 mais de 90% dos financiamentos de imóveis do mercado imobiliário se deram por meio de alienação fiduciária, o que mostra a sua relevância econômica e social. Disponível aqui. Acesso em 8/1/25. 5 É o caso por exemplo da cota de financiamento por cota de crédito, assim como a substituição da expressão agente financeiro, por outra expressão mais compatível com cada tipo de operação; além dessas modificações, há a revogação dos dispositivos que tratavam do compartilhamento da alienação fiduciária, originalmente previstas na MP 992 de 2020. 6 Art. 22-B. A contratação de novas operações de crédito garantidas pela extensão da alienação fiduciária ou da hipoteca deve atender às seguintes condições:I - prazos iguais ou inferiores ao prazo remanescente da operação de crédito original na data da contratação da nova operação; eII - soma do valor nominal da nova operação e dos saldos devedores das operações já garantidas menor ou igual ao valor garantido constante do título da garantia original, observado também o disposto no art. 6º, § 2º.Parágrafo único. É facultada, nas novas operações de crédito imobiliário de que trata o caput, a pactuação de condições de remuneração, atualização monetária e amortização distintas daquelas pactuadas na operação de crédito original. (NR)Art. 22-C. Nas novas operações de crédito garantidas pela alienação fiduciária da propriedade superveniente, é facultada a pactuação de prazo e de condições de remuneração, atualização monetária e amortização distintos daqueles pactuados na operação de crédito original. 7 Essa aliás foi a justificativa adotada no PL 4.188 que deu origem a lei do marco das garantias.
1. A locação de imóvel encomendado com especificações e minúcias, cujo atendimento define o negócio O contrato built to suit, "locação por encomenda"1, é negócio jurídico em que o empreendedor imobiliário (locador) reforma ou edifica determinado imóvel conforme as especificações contratadas com o futuro ocupante (locatário), ou seja, um contrato em que o proprietário do terreno ou investidor será responsável pela construção do imóvel sob medida para um locatário especifico2; finda a obra, passa o locatário a usar a edificação erigida especialmente, por período determinado, pactuando contrapartidas significativas (valores, revisões, período de locação etc.). Atinge-se, mercê do atendimento preciso das necessidades empresariais do locatário, a satisfação do investidor (locador), pois possibilitada a operação daquele (alcançado o desiderato colimado no negócio), viabilizada restará a remuneração deste.   A modalidade de locação built to suit é especialíssima por contar com fundamentos econômicos e funcionais muito próprios e particulares, portanto, a sua concretização depende de o locador obedecer, minuciosamente, aos interesses, planejamento, padrões e necessidades do locatário, notadamente porque de outro modo, não cumprirá o seu escopo. Por isso, a análise das consequências do inadimplemento do contrato em foco, pelo locador, merece especial atenção. Na lição de Pontes de Miranda: "Os atos humanos interiores ao campo de atividade, a que se chama auto regramento da vontade, "autonomia privada", ou "autonomia da vontade": É o espaço deixado às vontades, sem se repelirem do jurídico tais vontades. Enquanto, a respeito de outras matérias, o espaço deixado à vontade fica por fora do Direito, sem relevância para o Direito; aqui, o espaço que se deixa à vontade é relevante para o Direito"3. Destacando a importância de serem pactuadas cláusulas penais compensatórias ou indenizatórias extraordinárias nessa modalidade, Ana Cristina Rocha e Érica Fernandes Campos Veríssimo explicam: "Elas limitam previamente o valor da indenização e assim, reduzem incertezas. Dessa forma, o credor desincumbe-se do ônus de provar a extensão do dano, o que poderia demandar tempo e custos, e o devedor reduz o risco de incorrer em indenização excessiva, ou seja, ambos se sujeitam ao risco de um dano real maior ou menor que o valor estabelecido na cláusula penal compensatória em prol de uma maior previsibilidade"4. A autonomia da vontade no âmbito do contrato built to suit é admitida com intensidade, concretizada na própria base da modalidade contratual. Não fora assim e o legislador jamais preveria no art. 54-A que, em se tratando de locação da espécie, "prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação (...)", aliás, em perfeita consonância com o disposto no art. 54 - lojistas e empreendedores - onde também prevalecerão as condições livremente pactuadas.5 Com esteio legal, locador e locatário expressam as suas vontades, mostram quais são os objetivos, assumem os respectivos riscos, informam o ponto de equilíbrio do contrato, estabelecem corolários, contemplam situações e fixam os tópicos de atenção irrestrita. 2. O inadimplemento do locatário Há dedicação da doutrina ao inadimplemento do locatário, submetido a multas elevadas em caso de rescisão imotivada e/ou antecipada, conforme autoriza a lei6; o locador deve ser ressarcido pelo locatário, quando este desista do negócio, frustrando a contratada expectativa de recebimento de aluguéis por determinado prazo, que remunerariam (a preço e condições pactuados) o investimento encetado na construção e/ou reforma do imóvel objetivado. Observa-se que embora limitada pelo § 2º do art. 54-A, a satisfação em favor do locador é boa, porquanto se lhe assegura o recebimento da totalidade dos aluguéis não pagos, exceto se redução de tal se houver ajustado no contrato, de cumprimento obrigatório. Por conseguinte, o locador tem boa segurança. Verifica-se que o legislador se preocupou expressamente com o retorno financeiro do locador, atribuindo segurança jurídica aos contratos built to suit, fomentando o mercado para essa modalidade de empreendimento e locação. Nessa senda, a jurisprudência é uníssona ao determinar o pagamento das "perdas e danos" prefixadas no contrato em favor do locador: "CIVIL. LOCAÇÃO. CONTRATO ATÍPICO. "BUILT TO SUIT". INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA CONTRATUAL DE PERDAS E DANOS PREFIXADOS. CONTRATO PARITÁRIO. VALIDADE E EFICÁCIA DO AJUSTE. RECURSO PROVIDO. 1 - As operações imobiliárias denominadas "built to suit" podem ser traduzidas como uma construção sob medida (...). 2 - Na hipótese, discute-se o alcance da cláusula que estipula o valor das perdas e danos decorrentes da rescisão unilateral do negócio jurídico, em prazo inferior ao do contrato. 3 - Ressalte-se que o contrato em tela é paritário, ou seja, as partes se encontram em situação de igualdade e as cláusulas foram livremente pactuadas, não havendo falar na imposição unilateral de condição, típica dos contratos de massa (por adesão), os quais se submetem a regramento específico e admitem certa relativização, razão pela qual descabe discussão acerca da validade ou eficácia da cláusula questionada. (...)"7. 3. O inadimplemento do locador Todavia, e quando o inadimplemento ocorrer por parte do locador, como será a indenização do locatário? Se de um lado a indenização e a aplicação de penas levam ao saneamento da posição do empreendedor/locador, a situação e bem mais dura quando o locatário seja atingido pelo inadimplemento do locador. Realmente, esse formato de locação permite que o locatário concentre a sua expertise no seu próprio negócio8, a par de voltar seus investimentos à preparação da futura utilização do imóvel. O locatário não se envolve com obras, com o cumprimento de aspectos específicos e burocráticos para implementação do seu projeto, com os percalços da construção, enfim; o locatário não precisa investir seu capital na compra de terreno e na construção de um prédio especial, mas evidentemente paga para poder locar um prédio com especificidades, o negócio celebrado impõe mais obrigações do que uma singela locação imobiliária urbana: Um constrói e atende especificações com exatidão; outro há de cumprir prazos de locação, valores, demais estipulações (até mesmo pode renunciar a revisões de aluguel, que quiçá o beneficiariam). Da exata conjugação dos deveres contratuais é que resulta o sucesso esperado e, se o locador atrasar a entrega do prédio, se errar na construção, se falhar na regularização do empreendimento, é certo que haverá a frustração do negócio e terrível prejuízo ao locatário. As consequências serão graves e quiçá de árdua ou impossível indenização, devido ao espraiamento dos danos sofridos pelo locatário frustrado. Portanto, devem ser rigorosamente respeitados os prazos de entrega do prédio, nos exatos termos contratados, bem como as características especificadas no contrato, para que as atividades comerciais do locatário possam ser efetivamente iniciadas na data do termo inicial da locação, sob pena do locatário exigir do locador indenização integral do prejuízo pelo inadimplemento do contrato. Não se tem por inadimplemento somente o atraso na entrega do imóvel, mas também a sua entrega insatisfatória, porque de nada adiantará o locatário receber as chaves do prédio nos moldes físicos contratados, todavia, sem: Alvará de funcionamento; emissão de carta de ocupação ou habite-se; licença ambiental; licença operacional; dentre outras pendências que inviabilizem o início das atividades no prazo e decorram do contrato ou da legislação. Os intentos idoneamente pactuados precisam ser alcançados, para que se considere entregue o imóvel. Há de ser cumprida exatamente cada disposição debatida em posta no contrato (art. 421 - A, do Código Civil) A doutrina moderna não discrepa, como se observa em Alexandre Junqueira Gomide: "Considerando as partes contratantes, o Direito Patrimonial disponível envolvido e o princípio da autonomia privada, as obrigações contratuais estabelecidas em contrato devem ser respeitadas. E a esse respeito é a base da livre iniciativa. Destaque-se, também, que a livre iniciativa é tida em alta conta, a ponto de seu valor social figurar como um dos fundamentos da república, nos termos do art. 1º, inc. IV, da Constituição Federal"9 Bem por isso, lembre-se, a par das obviedades (construção segura, aprovada, atenta às normas técnicas, eficiente etc.), as especificações e procedimentos de averiguação devem estar nos contratos. É usual que se prevejam que a entrega somente ocorra se feita vistoria formal, para conferir se foi erigido cada um dos itens combinados e que o locador prove (embora isso seja mais que evidente - como funcionar sem?) que obteve todos os alvarás necessários (licenças ambientais, AVCB, Auto de Conclusão, Alvará de Funcionamento na Edificação documentação relativa à geração de Tráfego etc.) nos prazos pactuados e com antecedência suficiente para que o locatário organize regularmente a sua mudança e a instalação no local (mais uma vez, não são atividades que se possam realizar de imediato). Quando verificado o inadimplemento pelo locador que desrespeite o prazo de correta e integral entrega do imóvel, em homenagem à justa expectativa do locatário e ao sempre desejável equilíbrio contratual, essa falta se considerará gravíssima (mesmo que se consiga realizar a entrega parcial do imóvel, suprindo uma ou outra expectativa do negócio, o que seria objeto de alguma remuneração parcial, conforme a situação) e resultará, como inevitável consequência, no dever de o locador arcar com as penas porventura previstas no contrato, de indenizar por danos emergentes e pelos lucros cessantes experimentados pelo locatário malogrado, não havendo o que se falar em abusividade10 das cláusulas que responsabilizem o locador. Portanto, é justa a indenização integral em favor do locatário (igualmente é justa aquela devida ao locador, como visto incialmente), que engloba os danos emergentes e os lucros cessantes (não se excluindo eventual dano moral por prejuízo causado ao nome da marca/empresa), vindo pelos princípios da equidade e do equilíbrio contratual, reforçados pela certeza de que: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção"11. A jurisprudência tem se posicionado em favor da correta reparação, reconhecendo que o prejuízo é presumível quando houver atraso na entrega do imóvel que seria utilizado para fins empresariais: "Também inequívocos os lucros cessantes, visto que a autora não teve condições de tomar posse do imóvel na data pactuada, e, consequentemente, não pôde dar início a suas atividades comerciais (...). Nestes termos, evidente causalidade a justificar reconhecimento de responsabilidade também por lucros cessantes, vez que atraso na entrega da obra influiu diretamente na possibilidade de início das atividades comerciais pela apelada e na eventual possibilidade de auferir lucro (...)".12 Pontua-se que este acórdão tratou muito bem da matéria atinente aos lucros cessantes, esclarecendo que, ainda que sejam difíceis a apuração e a comprovação, a indenização é devida, porquanto o entendimento do STJ "é no sentido de que possível admitir presunções e deduções em apuração de lucros cessantes por atividade que não foi exercida por culpa do devedor", acrescentando que, "entendimento diverso poderia subtrair eventual direito indenizatório a que faria jus a apelada" (locatária)13. Uma ilustração das sequelas do inadimplemento do locador tem sido referida e pode ser colhida na literatura jurídica: "Imagine-se que o locatário tenha tudo organizado para as vendas e promoções de Natal (produtos e embalagens estocados, propaganda veiculada a preços sabidamente altos devido à sazonalidade, atores selecionados para que vários papais noéis recebam a criançada, vendedores e entregadores contratados e treinados, tudo financiado por bancos que pretendem receber a partir do janeiro seguinte). Em seguida, imagine-se que o prédio em que tudo aconteceria não ficou pronto, ou ficou "meio pronto", ou se mesmo que fisicamente acabado ainda estejam pendentes os alvarás de funcionamento, autorizações, aprovações, tudo a impedir o bom funcionamento, como planejado. Fácil imaginar a frustração do negócio do locatário, decorrente do inadimplemento do locador".14 Ferida a expectativa de perfeito recebimento do prédio, será devida indenização pelos danos materiais, emergentes e lucros cessantes. Se a verificação dos danos emergentes não oferece maiores dificuldades, a apuração dos lucros cessantes representa problema, pois se considerará a probabilidade objetiva que resultaria do desenvolvimento normal e esperado dos acontecimentos. Contudo, não pode ser admitido que o locatário deixe de ser indenizado pela dificuldade em demonstrar o quantum dos lucros cessantes, pois é presumível que, no mínimo, a atividade empresarial realizada no imóvel seria capaz de gerar receita suficiente para pagar o aluguel mensal, as equipes que tenha contratado para trabalhar no empreendimento, as aquisições e custos financeiros dos estoques e equipamentos, e assim por diante, a par de lhe trazer lucros ou benefícios (a razão de ser do seu empreendimento). Por evidente, o bom contrato conterá os parâmetros para a melhor - e ajustada - averiguação de inadimplemento, penalização e composição dos danos sofridos em extensão tida por certa pelos contratantes. E, as cláusulas certamente debatidas com amplitude e suficiência técnica, mutuamente aceitas pelos contratantes, formam o sinalagma e são prestigiadas pela lei específica das locações e pelo CC. Assim, o inadimplemento contratual acarretará as consequências pertinentes; inadimplente o locador (como por igual o locatário), deverá indenizar e arcar com as multas contratadas. E, se o contrato contiver, dentre as condições e termos largamente negociados entre as partes, as fórmulas para a composição das situações de inadimplemento, por evidente se alcançará com melhor presteza a justa composição. Por todos esses motivos, o nosso entendimento, em face dessa modalidade contratual, está a exigir maior prestígio à autonomia da vontade, admitindo-se a mais completa indenização em caso de inadimplemento, conforme consequências e penalidades pactuadas entre partes, sem prejuízo de impor-se eventual indenização por dano extrapatrimonial15, suportado em razão do referido descumprimento contratual16, naturalmente, porque um direito não exclui o outro17. ____________________________ *Com a colaboração de Amanda Magalhães de Araújo, pós-graduada em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica. **A versão original foi publicada em Revista Opinião Jurídica 10: direito imobiliário: São Paulo: 2022. 1 O built to suit está previsto no art. 54-A da lei 8.245/91, que foi acrescentado em 2012 pela lei 12.744: "Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão às condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta lei". 2 MAGLIONE, Bruno; Disponível aqui. Acesso em 28/12/24. 3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1970. Tomo III. págs. 54 e 55. 4 ROCHA, Ana Cristina Nogueira; VERÍSSIMO, Érica Fernandes Campos. Cláusulas importantes nos contratos de built to suit sob o ponto de vista da securitização. In: RUBINIAK, Juliana (coord.). Operações de Built to suit: A prática e novas tendências. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 135. 5 A propósito, merecem conferência as seguintes obras: SANTOS, Gildo dos. Locação e Despejo. São Paulo: 2010. 6. ed.; BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato. São Paulo: Saraiva, 1997. 2. ed.; PINTO, José Guy de Carvalho. Locação e Ações Locativas. São Paulo: Saraiva, 1997. 6 BRASIL. Lei 8.245/91. Artigo 54-A, § 2º: "Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação". 7 TRF da 3ª região. Apelação Cível 0025624-84.2008.4.03.6100. Relator desembargador Federal José Lunardelli. Data de publicação: 12/1/12. 8 Enquanto o prédio é construído/reformado, o locatário, naturalmente, terá investido em seu core business treinando suas equipes; desenvolvendo produtos e estratégias de marketing; adquirindo ou contratando o fornecimento de mercadorias e insumos; organizando a sua estratégia de capital e financiamento e assim por diante, com a expectativa de iniciar as suas atividades na data pactuada. 9 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Contratos built to suit aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2017, p 110. 10 Como concluiu o acórdão antes invocado, relatado pelo desembargador Federal José Lunardelli: "Ressalte-se que o contrato em tela é paritário, ou seja, as partes se encontram em situação de igualdade e as cláusulas foram livremente pactuadas, não havendo falar na imposição unilateral de condição, típica dos contratos de massa (por adesão), os quais se submetem a regramento específico e admitem certa relativização, razão pela qual descabe discussão acerca da validade ou eficácia da cláusula questionada..." 11 BRASIL. Código Civil. Art. 421-A. 12 TJ/SP. Apelação Cível 0203033-25.2011.8.26.0100. Relator Francisco Casconi. Data de publicação: 28/7/17. 13 Atraso gera indenização, é assertiva jurisprudencial corrente: "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ATRASO NA ENTREGA DO BEM. DANOS MATERIAIS. LUCROS CESSANTES. CONFIGURAÇÃO. PREJUÍZO PRESUMIDO. MULTA CONTRATUAL. PREVISÃO. REVISÃO. SÚMULAS 5 E 7/STJ. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/15 (enunciados administrativos 2 e 3/STJ). 2. A orientação jurisprudencial do STJ, no caso de lucros cessantes, é firme no sentido de que, comprovado o atraso na entrega das chaves do imóvel, é devida indenização, independentemente de comprovação do prejuízo do comprador. 3. Rever o entendimento do tribunal de origem, que reconheceu a previsão de multa contratual no acordo firmado pelas partes, esbarraria nos óbices das súmulas 5 e 7/STJ. 4. Agravo interno não provido" (STJ. AgInt no REsp 1.710.441/SP. Relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de publicação: 28/5/18). 14 BUSHATSKY, Jaques. No built to suit é vital que o locador entregue corretamente o imóvel. Disponível aqui. Acesso em 14/10/22. 15 Súmula 227, STJ: "A pessoa jurídica pode sofrer dano moral", resgatada a necessidade de demonstração do prejuízo extrapatrimonial. 16 BRASIL. CF/88. Art. 5º, inciso X: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" e BRASIL. Código Civil. Art. 186 e demais úteis. 17 Súmula 37, STJ: "São cumuláveis as indenizações por dano moral e dano material oriundos do mesmo fato".
Resumo: O presente estudo visa a analisar a possibilidade jurídica da autocomposição entre a administração pública e o proprietário de imóvel com construção irregular, com escopo de suprir a falta de licença para construir, mediante contrapartidas do particular. Analisa-se, ainda, quais seriam as condições para a validade de tal espécie de compromisso administrativo, bem como os requisitos procedimentais. Para fins de direito, entende-se por construção toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar o imóvel às suas conveniências.1 Estão abrangidos pelo conceito tanto a edificação ou a reforma, como a demolição, o muramento, a escavação, o aterro, a pintura2 e demais trabalhos destinados a beneficiar, tapar, desobstruir, conservar ou embelezar o prédio.3 O direito de construir encontra fundamento no direito de propriedade, na medida em que das faculdades de usar, gozar e dispor da coisa (art. 1.228, CC)4, decorre o direito de transformá-la e de beneficiá-la com todas as obras que lhe favoreçam a utilização ou lhe aumentem o valor econômico. Estes acréscimos decorrentes de obras podem caracterizar benfeitorias5 ou acessões voluntárias,6 a depender das circunstâncias.    A liberdade de construir é a regra, limitando-se tal apenas pelas imposições do direito de vizinhança7 ou pelos regulamentos administrativos, conforme preceitua o art. 1.299 do CC.8 Para fins do presente assunto, interessa analisar, apenas, as restrições ao direito de construir decorrentes dos regulamentos administrativos. Estes regulamentos administrativos limitadores do direito de construir decorrem, na feliz expressão de José Cretella Júnior, do poder de polícia das construções - decorrente do poder "geral" de polícia. Para o autor: "(...) cabe à polícia de construções, na salvaguarda dos interesses coletivos, fiscalizar, dentro dos limites consignados nas leis, regulamentos e posturas, as construções sob o prisma da segurança, da higiene, das dimensões, da estética, a fim de que a infração de um não constitua perturbações maiores ou menores à coletividade"9 A classificação e estratificação dos prismas de proteção das regras de polícia das construções têm extrema relevância para a análise do cabimento, ou não, de acordos na esfera administrativa e em matéria de licença edificações irregulares, pois a inobservância do regulamento administrativo do direito de construir, que seja fundamentado em exigências de segurança ou higiene, não admitirá qualquer espécie de acordo, pois não se transige com a vida (nas hipóteses de normas de segurança) e nem com a saúde (na hipótese de normas de higiene). Constituem, portanto, nestes dois casos acima citados, vícios insanáveis, sujeitando-se a obra à necessidade de adequação ou, no caso de impossibilidade, à medida extrema de demolição. Por outro lado, a não observância de normas administrativas, derivadas do poder de polícia de construções, fundamentadas em exigências de dimensões prediais10 ou estética predial11, podem ser objeto de compromisso entre a administração pública e particulares, sobretudo quando o direito fundamental à moradia e à dignidade de grandes grupos de pessoas confrontar-se com o interesse coletivo ao ordenamento urbanístico e proteção cultural. Se o suprimento é possível em determinadas situações, com regras legais de suporte, entende-se que tais hipóteses constituem meras irregularidades e não vícios insanáveis. Ainda a título de delimitação do que se está tratando nesta breve análise, para que não se alargue demasiadamente as hipóteses sugeridas como passíveis de acordo administrativo, ressalta-se que pelo conceito de "restrições administrativas ao direito de construir", pode-se fazer referências tanto às chamadas limitações administrativas quanto às servidões administrativas e desapropriações. No presente escrito, analisa-se apenas o acordo derivado da inobservância das normas representativas de limitações administrativas, notadamente daquelas derivadas das regras municipais de regulamentação edilícia12 (Códigos de Edificações; leis de uso e ocupação do solo; leis de zoneamento urbano; entre outros regulamentos administrativos) e do plano diretor ou plano de desenvolvimento integrado. Sobre o assunto, historicamente, já se considerou como hipótese de vício insanável qualquer inobservância das regras edilícias constantes dos regulamentos administrativos, excluindo-se em absoluto este objeto dos possíveis acordos firmados entre particular e administração pública. A legislação mais contemporânea parece quebrar este paradigma e seguir no caminho aqui por nós delimitado. A título de exemplo, cite-se a LC 507, de 17/11/04, do município de Santos - Estado de São Paulo, que "autoriza a regularização de construções que especifica e dá outras providências". Em consonância com tudo aquilo que se sustentou acima, perceba-se que os elementos cujos vícios a referida lei municipal tratou como passíveis de suprimento em âmbito administrativo foram exatamente aqueles relativos às dimensões prediais e estética predial, permitindo-se o suprimento de irregularidades decorrentes da inobservância aos regulamentos administrativos mediante a oferta de contrapartidas financeiras pelo particular: Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a regularizar, excepcionalmente, as construções e acréscimos executados em desacordo com a LC 312, de 24/11/98, no que concerne a recuos mínimos, taxa de ocupação e índice de aproveitamento, mediante contrapartida financeira. § 1º O valor da contrapartida financeira exigida para a regularização da obra será equivalente a 10% (dez por cento) do valor venal da construção correspondente a cada área irregularmente excedente da edificação. (...) Art. 2º A regularização prevista no artigo anterior aplica-se somente às construções ou acréscimos para os quais exista processo de regularização na prefeitura, requerido pelo interessado anteriormente a data da publicação desta LC. Tratou-se, naquela época, de medida política com vistas a permitir a regularização de imóveis em desconformidade com a lei de uso e ocupação de solo que seis anos antes havia sido publicada no referido município litorâneo. A mesma norma acima citada permitiu a regularização de edificações ou reformas de bens tombados ou gravados de outros níveis de proteção cultural, desde que houvesse, à época, manifestação favorável do Conselho local de Defesa do Patrimônio Cultural. Seja qual for a razão motivadora da flexibilização, fato é que, a partir da análise de tal norma transitória de flexibilização, é possível ilustrar a tese gizada nas linhas acima, segundo a qual as limitações administrativas ao direito de construir, fundadas em exigências de dimensões prediais e de estética predial, não ostentam caráter absoluto, admitindo-se, em determinadas hipóteses, flexibilizações fundamentadas também no interesse coletivo. Ainda citando exemplos de normas de flexibilização, em âmbito nacional, a lei 13.465/17 disciplinou o procedimento e criou requisitos especiais para a regularização fundiária ("Reurb") de núcleos urbanos informais existentes até 22/12/16, que sejam irreversíveis ou de difícil reversão. Para além dos instrumentos insuficientes de regularização fundiária até então previstos nos arts. 38 a 40 da lei Federal 6.766/79, a referida lei 13.465/17 criou um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. Nessa direção, em atenção aos interesses existenciais dos ocupantes de tais núcleos urbanos informais, a referida lei permitiu a flexibilização da fração mínima de áreas públicas dentro de loteamentos, bem como a fração mínima de parcelamento (art. 11, §1º, da lei 13.465/17); contém autorização para regularização de loteamento em área ambientalmente protegida, desde que atendidos alguns requisitos (art. 4º, §§5º e 6º, do decreto 9.310/18); e, em matéria jurídica, permite a unificação de imóveis de proprietários diferentes, permitiu registro da Reurb com atribuição dominial aos ocupantes independentemente da existência de ônus e indisponibilidades (art. 74 da lei 13.465/17); ingresso do direito possessório no fólio real (arts. 16 e 17 da lei 13.465/17); entre outras regras de flexibilização. O mais interessante, na conceituação destes núcleos urbanos informais, é que a lei deixou espaço também para regularização da construção de edifícios irregulares, consoante recorda Ana Paula Almada: "(...) Além disso, dentro do espectro do núcleo informal, também se incluem os condomínios e conjuntos habitacionais irregulares, inovação que torna a Reurb um processo realmente condizente com a realidade"13 Em outras palavras, a regularização das obras clandestinas (sem comunicação e aprovação municipal) ou irregulares (com aprovação municipal, mas em desatenção às regras administrativas ou cujo registro seja inviabilizado por alguma outra restrição) que não atentem contra a segurança e à higiene das pessoas, mais do que um poder, constitui um dever da administração pública, devendo a prefeitura envidar esforços, por algum dos meios disponíveis, para proceder a tal regularização. Destas duas leis de flexibilização acima referidas pode-se inferir mais um requisito para a regularização de edificações irregulares: A situação consolidada da construção. Este último requisito destina-se a impedir o manejo indevido dos instrumentos de regularização por aqueles que pretendam construir em inobservância das regras edilícias. Deste modo, da análise do conteúdo normativo destas e de outras normas de flexibilização, podemos citar condições comuns para a regularização imobiliária de edificações constituídas com inobservância dos regulamentos administrativos: (i) situação urbana já consolidada e (ii) inobservância de limitação administrativa que diga respeito apenas às normas de dimensão predial ou estética, sem afronta às condições de segurança e higiene da edificação. Assim, as mesmas bases teóricas que justificam as hipóteses excepcionais e transitórias de regularização contidas em lei (regularizações de modo amplo e geral), devem autorizar, também, que a administração proceda à regularização em determinados casos de modo individualizados, quando, a despeito da ausência do mecanismo político de regularização de modo amplo (leia-se, a lei geral e abstrata), o particular, por si ou por intermédio de associações de moradores ou cooperativas, procure a via administrativa e apresente ao ente municipal pleito de regularização de seu prédio individualizado. Para tanto, a administração deve observar as diretrizes gerais da lei Federal 13.140/15, que autoriza a resolução administrativa de conflitos envolvendo a administração pública e particulares, mediante autocomposição e atribui ao ente público a competência para celebração do termo de ajustamento de conduta (art. 32, II e III, L. 13.140/15). Seguindo a mesma diretriz, a lei Federal 13.655, do ano de 2018, incluiu na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro o art. 26, que assim prevê: Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. (Incluído pela lei 13.655, de 2018) (Regulamento) Portanto, a ressalva quanto à possibilidade de negociação e obtenção de consenso em matéria de licenças administrativas evidencia a possibilidade de tal objeto dentro do contexto do compromisso firmado entre particular e administração pública. A novel lei apenas aclara que a Administração Pública também pode celebrar o instrumento de compromisso, há muito tempo positivado no CC como instrumento de solução de litígios mediante a autocomposição (art. 851, CC). Obviamente, este termo de compromisso firmado pela administração, conquanto sujeito ao regime jurídico de direito privado contratual, sofrerá influxos do direito público, consoante exigências contidas no art. 26, §1º, do decreto-lei 4.657/42, incluído por força da lei 13.655, de 2018, e outras contidas no art. 10 do decreto 9.830/19, que, embora aplicável apenas no âmbito Federal, pode servir de direção ao ente estadual ou municipal que não tenha, em sua legislação local, um decreto regulamentador do instrumento compromissório previsto agora na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Destaca-se, ainda, que apesar de a lei 13.655, de 2018, não ter criado a figura do compromisso ou mesmo inaugurado a sua possibilidade de utilização pela administração pública, a referência a tal instrumento jurídico em uma norma geral sobre outras normas ("lex legum") traçou a ideia de que se trata de um instituto geral do direito, fomentando o seu uso e afastando qualquer indagação sobre a sua validade jurídica. Os instrumentos existem, sendo imperativo maior esforço das autoridades para que mais pessoas alcancem o acesso à regularidade registral, consoante destaca José Renato Nalini: "A moradia é direito fundamental e impõe contínuo esforço dos agentes de autoridade para a facilitação do acesso à regularidade registral, pressuposto à fruição desse direito primário sem o qual não existe verdadeira dignidade humana"14 Uma advertência, no entanto, é necessária. A negociação a respeito de licenças administrativas versa sobre matéria indisponível, embora, nestes casos acima tratados (questões afetas à dimensão predial e estética predial), sejam passíveis de transação, mediante contrapartidas do particular. Em razão da indisponibilidade das normas que preveem as limitações administrativas ao direito de construir, o instrumento que resulte do consenso obtido pelas partes deverá ser homologado em juízo, com oitiva do órgão do MP, sob pena de nulidade, atendendo-se, assim, à prescrição do art. 3º da L. 13.140/15. 1 MEIRELES. Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, p. 13. 2 Anota-se que a caracterização de pinturas como formas de "construção" não impede que, em determinados casos, tal atividade seja dispensada de licenças ou alvarás, a critério do município onde serão realizadas as atividades. A título exemplificativo, cita-se a LC 1.025, de 16/1/19, do município de Santos (Código Municipal de edificações), no litoral de São Paulo, pela qual é dispensada da licença administrativa a atividade de pintura que não dependa de andaime ou tapume, bastando, nestes casos, apenas a comunicação prévia ao órgão competente, a teor do art. 31 e parágrafos da citada LC. 3 TJSP, RT 251/256, 256/275 4 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. 5 Quando um bem móvel adere ao bem imóvel sem constituir objeto autônomo e distinto, mas criando opção de recreio ou deleite ao bem principal; aumentando ou facilitando o uso; ou conservando ou evitando que se deteriore o bem, a teor do art. 96 do Código Civil. 6 Quando, a teor do art. 1.253 do Código Civil, esta aderência do bem móvel (e.g., cimento e tijolos) ao bem imóvel (e.g., ao terreno) constituam obras distintas e dignas de consideração e valoração autônoma 7 Estas limitações estão previstas nos artigos 1.277 e seguintes do Código Civil. 8 Art. 1.299. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos. 9 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense: 2006, v. 5, p. 195 10 Imposições de zoneamento, recuo, afastamento, altura, entre outras. 11 Cite-se, por exemplo, as exigências de manutenção de estética de imóveis tombados ou com níveis de proteção diversos assegurados por leis locais de proteção do patrimônio histórico e cultural da região. 12 A expressão edilícia, conforme relembra Hely Lopes Meireles, "originou-se da atividade dos Edis romanos incumbidos da administração da cidade, e que através de edictus dispunham sobre a urbe e suas construções. Daí as derivações correntes em nossa língua: Edil (vereador); Edilidade (Câmara de vereadores); Edilício (relativa a edil ou edilidade). Regulamentação edilícia, atualmente, abrange todas as normas municipais de ordenamento urbano, provenham da câmara ou do prefeito" (MEIRELES. Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, p. 103) 13 ALMADA. Ana Paula P. L. In: GENTIL, Alberto [org.]. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 848 14 NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.). Regularização fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013. Prefácio. 15 ALMADA. Ana Paula P. L. In: GENTIL, Alberto [org.]. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 848 16 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense: 2006, v. 5. 17 LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: Peluso, Cezar [org.]. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Manole, 2017 18 MEIRELES, Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979. 19 NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.). Regularização fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013. 20 ZANELLA, Di Pietro. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
Recentemente, a Terceira Turma do STJ1 decidiu por unanimidade pela possibilidade de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel garantido por alienação fiduciária em garantia não registrada no assento imobiliário, afastando a aplicação do procedimento previsto na lei 9.514/97. Essa decisão, contudo, não representa um precedente vinculante e está longe de pacificar o tema, que ainda divide opiniões no âmbito jurídico e nas próprias Turmas do STJ. Neste artigo, abordaremos os pontos centrais do debate e explicaremos as razões que não permitem a rescisão desses contratos, ainda que ausente o registro imobiliário. O caso concreto e a decisão da Terceira Turma do STJ Como referido, no caso em análise o contrato de compra e venda com alienação fiduciária não havia sido registrado no Cartório de Registro de Imóveis mesmo após dois anos da celebração (o registro apenas ocorreu após pedido de rescisão formulado pela devedora-fiduciante em ação judicial). A relatora, ministra Nancy Andrighi, em seu voto, aplicou o princípio da boa-fé objetiva por meio da figura parcelar da supressio, fundamentando que o credor fiduciário não poderia, após prolongada inércia, valer-se do registro tardio para afastar a aplicação das normas gerais do CC e do CDC e impedir a rescisão do negócio. O Tema 1.095 e a necessidade de registro A Segunda Seção do STJ, ao julgar o Tema 1.095 sob o rito dos recursos repetitivos, estabeleceu que os contratos de alienação fiduciária devidamente registrados devem observar as disposições da lei 9.514/97 para a execução extrajudicial. Entretanto, a ausência de registro não prejudica a validade e eficácia do contrato, mas é condição para permitir a execução extrajudicial, conforme readequação do tema no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.866.844/SP, em 27/11/23. Essa diferenciação é crucial para entender os limites das decisões judiciais recentes. A própria Terceira Turma do STJ, no julgamento do AgInt no RESp 2077633/SP, em 8/4/24, entendeu que, embora o registro seja uma formalidade necessária para a constituição da propriedade fiduciária, sua ausência não confere ao devedor fiduciante o direito de promover a rescisão a avença por meio diverso daquele contratualmente previsto, tampouco impede o credor fiduciário de, após a efetivação do registro, promover a execução extrajudicial. Em seu voto, o ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva asseverou que a aplicação do procedimento previsto no contrato com pacto adjeto de alienação fiduciária independe de quem seja responsável pelo registro, tendo em vista que o credor fiduciário pode solicitar ao Oficial de Registro de Imóveis o registro antes de iniciar a alienação extrajudicial. Essa posição está fundamentada no princípio da autonomia privada e na função social dos contratos, que asseguram que os acordos firmados livremente entre as partes produzam seus efeitos, respeitando-se a boa-fé objetiva e a segurança jurídica. A boa-fé e a Supressio: Princípios limitadores Embora a boa-fé objetiva (na figura parcelar da supressio) seja princípio importante, sua aplicação irrestrita pode gerar insegurança jurídica, sobretudo em contratos imobiliários complexos. Admitir que a falta de registro permite a rescisão contratual pode levar a interpretações divergentes e desestimular a formalização de negócios jurídicos no mercado imobiliário. Ademais, não há de se falar em violação da boa-fé objetiva por parte do credor fiduciário que promove posteriormente o registro do contrato de alienação fiduciária, considerando que, regra geral do mercado imobiliário, é atribuída ao comprador e devedor fiduciante a responsabilidade pelo registro do contrato e pelo pagamento das respectivas despesas, em conformidade com os termos do contrato e com as disposições do art. 490 do CC. Por outro lado, deve ser reconhecido o comportamento desleal e contraditório por parte do devedor fiduciante que deixa de registrar o contrato após sua formalização, evitando o pagamento das custas de registro antes do pagamento integral do preço e busca afastar a aplicação do procedimento extrajudicial da alienação fiduciária. Afastar a aplicação da lei 9.517/97 devido à inércia deliberada do devedor fiduciário em registrar o contrato abre espaço para um comportamento contraditório, caracterizando o venire contra factum proprium. Essa conduta pode incentivar compradores a permanecerem inertes em relação à sua obrigação de registrar o contrato no competente Cartório de Registro de Imóveis, visando a evitar a aplicação das disposições da lei 9.514/97. O comportamento desleal e contraditório do devedor fiduciário impede, portanto, a aplicação do instituto da supressio. Por outro lado, a inércia deliberada do devedor fiduciário permite ao credor fiduciário o registro do contrato antes de iniciada a alienação extrajudicial. Conclusão A decisão da Terceira Turma do STJ, ora comentada, representa interpretação pontual sobre a rescisão de contratos com alienação fiduciária, não constituindo precedente vinculante ou entendimento consolidado sobre o tema. De acordo com o próprio STJ, a ausência de registro no cartório de imóveis não invalida os termos contratuais. O registro, no entanto, é imprescindível para que o credor fiduciário possa iniciar o procedimento de alienação extrajudicial, sendo uma prerrogativa que ele pode exercer a qualquer momento. Nota-se, que o debate está longe de ser pacificado, e a jurisprudência sobre o tema continua a evoluir. Contudo, é essencial que se preserve a segurança jurídica para todos os envolvidos, respeitando os instrumentos criados para regular os direitos e obrigações das partes no mercado imobiliário. Isto posto, é essencial que os operadores do Direito, consumidores e incorporadores estejam atentos à evolução jurisprudencial e busquem interpretações que respeitem a essência dos contratos, preservando a estabilidade e a confiança nas transações imobiliárias. 1 REsp 2.135.500/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/11/24, DJe de 8/11/24
segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Retrospectiva Direito Imobiliário 2024

O avanço tecnológico em benefício da humanidade tem se manifestado de maneira notável em diversos setores, sendo o setor automotivo um dos mais expressivos exemplos dessa transformação. No Brasil, o segmento de veículos híbridos e elétricos destaca-se por seu crescimento exponencial, refletindo a consolidação de uma tendência global em direção à mobilidade sustentável. De acordo com a ABVE - Associação Brasileira do Veículo Elétrico1, no Brasil, considerando o período de janeiro a novembro de 2024, foram vendidos 138.581 veículos elétricos, isto é, a análise e o monitoramento desses dados revelam-se imprescindíveis para compreender as tendências de adoção de tecnologias de baixo carbono, bem como para identificar os padrões geográficos que caracterizam a expansão da eletromobilidade. Considerando a evidente popularização dos veículos elétricos no Brasil, o ordenamento jurídico precisa abordar os aspectos legais, normativos e práticos relacionados aos veículos elétricos em condomínios, o que resulta na necessidade de regulamentações específicas para permitir o ingresso dos veículos elétricos no planejamento urbano e a adaptação ao atual quadro fático. Em âmbito nacional, a ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas estabeleceu, por meio da NBR 17.019/22, os requisitos para instalação de infraestrutura de recarga de veículos elétricos em locais residenciais e comerciais, abrangendo segurança elétrica, dimensionamento de carga e especificações técnicas. No Brasil, algumas incorporadoras estão comercializando novos empreendimentos imobiliários, aprovados por meio da lei 4.591/64, garantindo vagas de garagem com possibilidade de carregamento de veículo elétrico com base na NBR 17.019/22, no entanto, a carência legislativa específica traz insegurança aos órgãos responsáveis pela aprovação e regularização dos referidos empreendimentos imobiliários e, consequentemente, ao consumidor final das unidades a serem construídas. No município de São Paulo, por exemplo, a lei 17.336/20 dispõe sobre a obrigatoriedade da previsão de solução para carregamento de veículos elétricos em condomínios residenciais e comerciais, por meio de modo de recarga do veículo elétrico, conforme as normas técnicas brasileiras, medição individualizada e cobrança da energia consumida, conforme os procedimentos das concessionárias de energia elétrica, porém, não estabelece os métodos a serem implementados, tampouco a garantia da segurança pública quanto ao carregamento dos veículos elétricos em locais fechados ou abertos. Considerando que os incêndios dos veículos elétricos são de difícil extinção, bem como a grande dissipação de gases tóxicos e do calor com alto potencial de reignição do incêndio, o Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo emitiu a minuta do parecer técnico, por meio da portaria CCB-001/800/24, datada de 2/4/24, visando conhecer, estudar e analisar as especificidades dos espaços destinados à recarga das baterias de veículos elétricos, bem como sugerir medidas de segurança contra incêndio. A referida portaria do Corpo de Bombeiros ratifica as especificidades técnicas da NBR 17.019/22, quanto à instalação dos pontos de recarga e estabelece outros critérios como, por exemplo, a necessidade de aprovação de projeto técnico, sendo vedado o licenciamento simplificado em alguns casos. Convém salientar que o Corpo de Bombeiros orienta que, em razão dos riscos, deve ser fomentado, aqui especialmente destacado o mercado imobiliário, que os pontos de recarga de veículos elétricos devam ser, preferencialmente, instalados em áreas descobertas e externas à edificação, de modo a otimizar a segurança e acessibilidade, com o objetivo de proteger os condôminos, o patrimônio e o meio ambiente. Atualmente, a situação fática do ordenamento jurídico é compreender os riscos dos veículos elétricos e seus pontos de carregamento, as necessidades dos usuários e os iminentes avanços tecnológicos no Brasil, mas, para isso, há de se avaliar três hipóteses: (i) condomínios construídos e em uso; (ii) condomínios aprovados e em fase de obras; e (iii) condomínios em fase de aprovação. A adaptação de condomínios, construídos e em uso, enfrenta desafios como a infraestrutura elétrica inadequada e a resistência dos condôminos, porém, permite maior analogia aos casos abrangentes na lei, como a aprovação do projeto por meio de alteração da convenção de condomínio, seguindo as regras da lei de incorporações imobiliárias 4.591/64, bem como os termos da NBR 17.019/22, e as orientações de conduta do Corpo de Bombeiros local, se for o caso, no entanto, é de suma importância observar o espaço físico para as implantações necessárias. O inciso III, do art. 10, da lei 4.591/64 proíbe que o condômino destine a unidade para utilização nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos. Neste sentido, mesmo que a lei introduza o assunto de modo taxativo quanto à unidade, há de se compreender, também, a vaga de garagem como unidade autônoma, bem como a composição da vaga de garagem com a fração ideal da unidade autônoma. No Estado de São Paulo, há ampla discussão acerca das vagas de garagem, especialmente em virtude da insuficiência de capacidade edificada para atender à crescente demanda por espaços destinados ao estacionamento de veículos automotores, resultando no dimensionamento reduzido das vagas, na proximidade excessiva entre os veículos, bem como na formação das denominadas "vagas presas", onde os condôminos são compelidos a compartilhar o acesso aos seus veículos para viabilizar o estacionamento dos demais proprietários, seja em pares ou trios de vagas, o que acarreta desafios operacionais e potenciais conflitos internos. Mantendo o exemplo do Estado de São Paulo, de acordo com a portaria CCB-001/800/24 do Corpo de Bombeiros, para implantação do sistema de carregamento de veículos elétricos, as vagas devem ser separadas entre si, e entre as demais vagas de veículos que não possuam carregamento, interpondo distanciamento de 5 metros de comprimento. Sendo assim, cada vaga que possuir carregamento de veículo, deverá haver distanciamento entre os demais veículos e paredes de 5 metros, aumentando em, pelo menos, 10 metros o tamanho da vaga de garagem, o que é simplesmente inviável na maioria dos empreendimentos edificados em São Paulo. Uma excelente alternativa para esses empreendimentos que não possuem capacidade física para a implantação de vagas de carregamento de veículos elétricos é destinar uma área comum do condomínio para a implantação de eletroposto de recarga rápida, controlada por aplicativo de celular, de modo a facilitar o uso regular e constante dos condôminos. Ressalta-se, ainda, que a alteração da destinação de qualquer área comum de um condomínio requer a alteração da convenção de condomínio, aprovação do novo projeto e registro das alterações no competente cartório de registro de imóveis. Quanto aos condomínios aprovados e em fase de obras, há duas distintas situações fáticas, sendo: (i) o condomínio que foi aprovado e está sendo construído sem a observação das orientações do Corpo de Bombeiros competente; e (ii) o incorporador que deseja alterar o projeto aprovado para implementar as vagas de carregamento de veículos elétricos. Sumariamente, vale salientar que o exemplo do Estado de São Paulo não é objeto para alteração de projeto de empreendimentos imobiliários que preveem a implantação do sistema de carregamento de veículos elétricos. No caso em tela, a minuta do parecer técnico do Corpo de Bombeiros de São Paulo é, ainda, uma mera orientação e demonstração de necessidade de regulamentação do assunto, visto que carece de força normativa. Atualmente, os empreendimentos que estão aprovados, registrados e comercializados contendo a previsão de carregamento de veículos elétricos devem se manter inalterados, no entanto, caso o incorporador deseje alterar o projeto aprovado e comercializado, deverá cumprir as regras da lei 4.591/64, sobretudo no tocante ao art. 43, inciso IV, o qual proíbe o incorporador de alterar o projeto, especialmente no que se refere à unidade do adquirente e às partes comuns, modificar as especificações, ou desviar-se do plano da construção, salvo autorização unânime dos interessados ou exigência legal. Sob a visão do mesmo inciso IV, do art. 43, da lei de incorporações imobiliárias estão os empreendimentos onde o incorporador deseja alterar o projeto aprovado para implementar as vagas de carregamento de veículos elétricos. Especificamente ao município de São Paulo, a lei 17.336/20 tornou obrigatória a previsão de solução para carregamento de veículos elétricos em condomínios, assim sendo, há uma previsão legislativa, em outras palavras, uma exigência legal que permite a alteração do projeto para a implantação dos sistemas de recarga dos veículos elétricos. Importante observar que a exigência legal do município de São Paulo está limitada aos empreendimentos protocolados a partir da data de vigência da lei, isto é, os empreendimentos protocolados a partir de 31/3/21 (art. 6º da lei municipal de São Paulo 17.336/20). Considerando a limitação da norma municipal, os empreendimentos protocolados até 30/3/21 não poderão requerer a alteração do projeto por força legislativa, sendo obrigados à submissão da autorização unânime dos interessados, quais sejam, os compradores e promitentes compradores dos empreendimentos imobiliários, nos termos do inciso IV, do art. 43 da lei 4.591/64. Os condomínios em fase de aprovação devem, obrigatoriamente, considerar as condições fáticas atuais e o contínuo avanço da tecnologia no Brasil, submetendo-se integralmente às leis municipais aplicáveis, às normas expedidas pelo Corpo de Bombeiros competente e, de forma destacada, aos preceitos estabelecidos pela ABNT por meio da NBR 17.019/22. A eletromobilidade desempenha um papel central na transição global para uma economia sustentável e de baixo carbono, por isso, a regulamentação do carregamento de veículos elétricos em condomínios é um tema em evolução, que requer alinhamento entre legislação, normas técnicas e práticas sustentáveis. Não há norma que imponha aos condomínios a obrigatoriedade de implementação de sistemas de carregamento de veículos elétricos, assim como não há, no presente momento, viabilidade física segura que justifique a imposição de exigências legais nesse sentido. Cabe, portanto, a cada condomínio, de maneira autônoma e isolada, observar as suas peculiaridades estruturais e os interesses coletivos dos condôminos, proceder a análise sobre a viabilidade e a conveniência da implantação de infraestrutura destinada ao carregamento de veículos elétricos. No tocante aos futuros empreendimentos, incumbe ao mundo jurídico promover o fomento de debates especializados, a realização de palestras e audiências públicas, além da elaboração e regulamentação de normas técnicas específicas que disciplinem a matéria, assegurando um arcabouço normativo adequado às demandas emergentes. Em suma, é iminente a necessidade de lei específica sobre a regulamentação dos veículos elétricos em condomínios, abrangendo não só os incentivos fiscais, mas também a segurança dos usuários e condôminos, consumidores finais e partes vulneráveis de qualquer relação contratual, de modo a garantir a promoção da segurança jurídica para os incorporadores imobiliários que se alinhem às inovações tecnológicas globais, favorecendo uma transição mais eficiente e ordenada para a mobilidade elétrica, em conformidade com os princípios de proteção ambiental e desenvolvimento sustentável. 1 Associação Brasileira do Veículo Elétrico - Disponível aqui.
A lei 4.591/1964 completa 60 anos de vigência na data de hoje (16 de dezembro de 2024) conservando sua atualidade como estatuto da atividade empresarial da incorporação imobiliária, caracterizada pela coordenação dos fatores de produção correspondentes à construção e venda de frações ideais de terreno e respectivas acessões em regime de condomínio especial, venda de lotes de terreno vinculada à construção de casas em regime de propriedade singular ou, ainda, lotes de terreno urbano sob regime de condomínio especial/edilício (Lei 4.591/1964, arts. 29 e 68, e Código Civil, art. 1.358-A). O evento é digno de celebração e reverência à extraordinária figura do Professor Caio Mário da Silva Pereira,1 um jurista à frente do seu tempo, como deflui da conformidade da caracterização da incorporação imobiliária às exigências da função social do contrato e da propriedade, da livre concorrência e da defesa do consumidor, que vieram a ser consagradas pelo art. 170 da Constituição Federal. Recorde-se que a lei foi promulgada para suprir a falta de legislação adequada para atender à intensa demanda por imóveis nos grandes centros urbanos em meados do século passado, ambiente no qual, como relata Caio Mário da Silva Pereira, surgiam empreendedores inescrupulosos que, aproveitando-se da omissão legal, nadavam livremente neste mar sem controle, causando perdas irreparáveis ou de difícil reparação aos adquirentes, deixando-os à deriva, envolvidos com obras paralisadas.2 A lei 4.591/1964 preencheu essa lacuna. Nos arts. 1º ao 273 definiu-se o regime de propriedade em condomínio especial tendo por objeto edificações ou terrenos destinados à implantação de edificações coletivas (arts. 7º e 8º) e estabelecendo a estrutura básica dos direitos e obrigações dos condôminos e demais ocupantes dos edifícios. Os arts. 28 e seguintes disciplinam a atividade da incorporação imobiliária, caracterizando-a como negócio jurídico de "venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial." Esse mesmo dispositivo define como incorporador a pessoa física ou jurídica que promove a venda de frações ideais de terreno destinado a edificações "ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas." Requisito essencial para a "venda de frações ideais do terreno" (art. 29) é sua caracterização como objeto de direito de propriedade em condomínio especial, dotado dos mesmos elementos de caracterização estabelecidos pelo Código Civil para o condomínio edilício, mediante prévio registro da incorporação no Registro de Imóveis da situação do imóvel (art. 32, "i", §§ 1º-A e 15, e Código Civil, art. 1.332). Dotado de fé pública, o registro da incorporação promovido pelo oficial do Registro de Imóveis infunde na generalidade das pessoas a legítima confiança em que o incorporador, ali identificado, está habilitado para transmitir aos futuros adquirentes a propriedade ou o direito real de aquisição dessas frações ideais e respectivas acessões já submetidas ao regime do condomínio, bem como para captar recursos de terceiros por meio dessa comercialização e/ou por financiamento garantido por essas mesmas frações ideais e acessões.4 A par da segurança jurídica conferida pelo registro da instituição do condomínio, a Lei da Incorporação Imobiliária institui normas prudenciais de alocação de riscos e de controle orçamentário; submete a atividade a regime legal de vinculação de receitas; define a forma de exercício dos direitos obrigacionais e reais dos adquirentes, abrangendo a fase da construção e da utilização do edifício; cria a figura da comissão de representantes dos adquirentes e a ela outorga mandato legal para administrar o condomínio especial na fase da construção; permite a criação de um patrimônio de afetação composto pelos direitos e obrigações correspondentes a cada empreendimento; torna impenhoráveis e indisponíveis determinados bens e direitos do ativo da incorporação em casos de falência e destituição do incorporador, visando preservar meios de realização objeto da incorporação - execução da obra, entrega das unidades aos adquirentes, liquidação do passivo e apropriação do resultado pelo incorporador. Dentre esses e outros elementos de caracterização da incorporação imobiliária este pequeno e singelo artigo traz à reflexão e debate a priorização legal do interesse da coletividade dos contratantes nas situações excepcionais de falência ou destituição do incorporador, para as quais a lei dispõe sobre impenhorabilidade e indisponibilidade dos créditos oriundos das vendas e das frações ideais e acessões do estoque do incorporador, além daquelas reincorporadas ao ativo da incorporação por efeito de resolução ou distrato da promessa de venda de frações ideais. Trata-se, em parte, de alterações recentes introduzidas na lei 4.591/1964 pela lei 14.382/2022. Esse é um dos maiores desafios com os quais se defronta o condomínio durante a fase da construção, quando sua comissão de representantes deve assumir a gestão do empreendimento em situações de crise oriundas de falência ou destituição do incorporador, pois o êxito em sua missão dependerá preponderantemente da preservação do ativo da incorporação como meio de levantamento de recursos para conclusão da obra e entrega das unidades aos adquirentes. A incorporação imobiliária como unidade econômica autônoma O ponto de partida para adequada compreensão da situação é a configuração da atividade empresarial da incorporação imobiliária como unidade econômica autônoma, dotada de capacidade de autossustentação com os recursos provenientes da venda do seu próprio ativo, como bem ilustra Orlando Gomes ao conceituá-la como atividade que "consiste em obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por antecipação, dos apartamentos de que se constitui."5 Ocorre que o potencial econômico-financeiro desse lastro é limitado pela quantidade de apartamentos do projeto aprovado e disso resulta que o êxito de uma incorporação imobiliária depende da preservação do seu ativo e da regularidade do fluxo financeiro proveniente das vendas e/ou de financiamento, destinado ao pagamento das obrigações do seu passivo. Em consequência, eventual desvio de elementos do ativo desse patrimônio, para aplicação em fins estranhos ao escopo específico de realização do empreendimento, provocará inevitável drenagem dos recursos orçamentários vinculados a esse fim, frustrando as legítimas expectativas da coletividade dos contratantes, notadamente os adquirentes. Esses são alguns dos elementos essenciais que expressam a racionalidade econômica da incorporação imobiliária e constituem os pressupostos em que se fundamentam as normas que permitem a criação de um património de afetação para cada empreendimento6 (lei 4.591/1964, arts. 31-A a 31-F, 43 e seus parágrafos e 50); a vinculação da cessão fiduciária de créditos oriundos das vendas ao pagamento do financiamento da construção (lei 9.514/1997, arts. 18 e seguintes); a sujeição de cada empreendimento a um regime de vinculação de receitas por meio da impenhorabilidade (CPC, art. 833, XII);7 e a impenhorabilidade e indisponibilidade em casos de destituição do incorporador (lei 4.591/1964, art. 43 e seus parágrafos). No plano do direito material, a Lei das Incorporações permite a constituição de um patrimônio separado para cada incorporação, que se desenvolve com autonomia funcional em relação ao patrimônio geral da empresa incorporadora e confere poderes aos adquirentes, pela sua comissão de representantes, para destituir o incorporador da gestão do empreendimento e dar-lhe prosseguimento até mesmo em caso de quebra da empresa incorporadora, com autonomia em relação ao processo de falência ou recuperação judicial e independentemente de intervenção judicial. Nesse caso, os adquirentes deverão realizar uma assembleia geral para deliberar se prosseguirão as obras ou se liquidarão o patrimônio da incorporação e a comissão de representantes do condomínio promoverá os procedimentos correspondentes a uma ou outra situação. De outra parte, no plano do direito procedimental, a impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas dos imóveis em construção, assim como a indisponibilidade e a impenhorabilidade das frações (unidades) do estoque do incorporador e, ainda, daquelas frações (unidades) reintegradas ao patrimônio da incorporação em decorrência de resolução ou distrato, são medidas destinadas a assegurar efetividade específica às regras de preservação dos recursos destinados à execução da obra, qualquer que seja o regime da incorporação imobiliária, ainda que não afetada. Regime legal de restituição aos ex-adquirentes em decorrência de resolução da promessa ou distrato  Para preservação dos recursos vinculados à execução da obra, pouco importando se a incorporação imobiliária é objeto de afetação ou integre o patrimônio geral do incorporador, os arts. 63 e 67-A da Lei 4.591/1964 definem critérios de restituição de quantias a ex-adquirentes em termos compatíveis com a programação orçamentária, impedindo que lhes sejam restituídas quantias antes do "habite-se", para preservar o ritmo de continuidade da obra no interesse da coletividade dos contratantes. No caso de procedimento extrajudicial de resolução, o art. 63 determina a oferta do imóvel em leilão da fração ideal para levantamento dos recursos necessários à liquidação do débito e entrega do saldo, se houver, ao inadimplente. Por essa forma, afasta-se o risco de saída de recursos do patrimônio da incorporação, afetada ou não, pois o débito é pago com o produto da arrematação, e o arrematante se sub-roga na obrigação de pagar o saldo do preço da promessa, possibilitando, assim, manter o curso normal da construção. Para os casos de ação judicial de resolução, o art. 67-A também prioriza a preservação do orçamento da construção ao diferir a restituição de quantias ao antigo adquirente para 30 dias após o "habite-se" somente admitindo a antecipação desse pagamento se a unidade for revendida antes desse prazo, nos termos dos §§ 5º e 7º do art. 67-A da lei 4.591/1964, com a redação dada pela lei 13.786/2018.8 Como se percebe, a lei define uma ordem legal de preferência que confere primazia ao interesse da coletividade dos contratantes, na medida em que prioriza a execução da obra e, consequentemente, o pagamento das obrigações relativas aos materiais e serviços da construção, aos encargos trabalhistas previdenciários, tributários etc, diferindo a restituição ao ex-adquirente para momento posterior à conclusão da obra, no limite do percentual fixado pela lei. Impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas das frações (unidades) Como vimos, a impenhorabilidade dos recursos oriundos das vendas instituída pelo art. 833, XII, do CPC/2015 é regra geral aplicável a toda e qualquer incorporação imobiliária, mesmo àquelas não submetidas ao regime da afetação, visando a preservação do orçamento da construção, e, dado seu caráter cogente, preenche importante lacuna da Lei 4.591/1964. É que, enquanto pela Lei 4.591/1964 a impenhorabilidade é um dos efeitos da afetação, que, por sua vez, constitui uma faculdade do incorporador, pelo CPC a impenhorabilidade por dívidas estranhas ao empreendimento é norma cogente por expressa definição do art. 833, XII, aplicável a toda e qualquer incorporação, independentemente de opção do incorporador pela afetação. Indisponibilidade e impenhorabilidade das frações (unidades) do "estoque" da incorporação em caso de falência e destituição do incorporador As frações ideais e acessões do estoque do incorporador são objeto de tratamento legal específico tanto na hipótese de falência como no de destituição do incorporador, visando igualmente a priorização da execução da obra e observados os peculiares efeitos decorrentes de cada uma dessas situações. No primeiro caso, o art. 31-F, §§ 14º ao 18º, da Lei 4.591/1964 determina que, no prazo de 60 dias, contado da data da assembleia geral que decidir pelo prosseguimento da obra, a Comissão de Representantes promova a venda das frações ideais de terreno e acessões do incorporador mediante leilão nos termos do art. 63 e empregue o produto aí obtido no pagamento das obrigações do incorporador perante o patrimônio de afetação, na proporção correspondente a essas unidades, além de outros pagamentos, e arrecadando à massa o saldo, se houver. Já no segundo caso - destituição do incorporador -, as frações ideais do incorporador (unidades do estoque) ficarão indisponíveis até que ele comprove a regularidade do seu custeio (art. 35, § 6º) e, se não fizer tal comprovação no prazo de 15 dias da notificação que receber da Comissão de Representantes, esta ficará autorizada a promover o leilão dessas frações, empregando os recursos na liquidação de sua dívida e entregando-lhe o saldo, se houver (art. 43, §§ 4º e 5º). Nesse caso, a regra geral segundo a qual, nas incorporações imobiliárias, "a penhora somente poderá recair sobre as unidades imobiliárias ainda não comercializadas" (CPC, art. 862, § 3º)9, é excepcionada para os casos em que houver destituição do incorporador nos termos do § 4º do art. 43 da lei 4.591/1964, com a redação dada pela lei 14.382/2022, segundo o qual as unidades do estoque ficam indisponíveis e impenhoráveis "até que o incorporador comprove a regularidade do pagamento" do respectivo custeio.10 Ao atribuir à Comissão de Representantes dos adquirentes a administração do empreendimento nos casos de falência ou destituição e tornar indisponíveis e impenhoráveis as "unidades do estoque" do incorporador a lei reforça os meios de controle do orçamento da construção e de venda em leilão das unidades dos adquirentes inadimplentes e do "estoque" do incorporador,11 sempre com o propósito de recompor o orçamento e destinar seus recursos à conclusão da obra. Impenhorabilidade das frações (unidades) reintegradas ao patrimônio de afetação em cumprimento de sentença de resolução da promessa de venda Situação que ocorre com relativa frequência nas hipóteses de falência ou destituição do incorporador envolve a pretensão de ex-adquirentes que, tendo obtido a resolução do contrato promessa em ações propostas contra a incorporadora, promovem o cumprimento de sentença contra o condomínio ou contra a própria comissão de representantes, havendo, também, casos de adquirentes que ajuízam ação de resolução da promessa depois de deliberada a destituição da incorporadora e incluem no polo passivo o condomínio e/ou a comissão de representantes. Nesse contexto, esses ex-adquirentes buscam o recebimento desse crédito antes da conclusão da obra e requerem a penhora de frações ideais do terreno. Apesar de a inclusão do condomínio ou da comissão de representantes ser inteiramente destituída de fundamento, vez por outra é acolhida. Embora não se possa questionar o direito individual dos ex-adquirentes de cobrar seu crédito constituído em sentença de resolução da promessa de compra e venda, não se pode esquecer que a exigibilidade dessa espécie de crédito é diferida por força de lei para momento posterior à conclusão da obra, de acordo com a ordem legal de preferência que suspende a exigibilidade dessas quantias para momento posterior ao "habite-se", priorizando o interesse da coletividade dos adquirentes em face do direito individual do ex-adquirente (lei 4.591/1964, art. 67-A, §§ 5º e 6º). Trata-se de regra geral, cuja aplicação em situação de crise caracterizada pela quebra da incorporadora ou sua destituição exige maior rigor, como consta do parecer do relator do Projeto de lei 1.220/2015, convertido na Lei 13.786/2018, segundo o qual "a função social do contrato exige que a devolução de valores àqueles que desistem do negócio realizado deva ocorrer após a conclusão das obras, com encerramento do patrimônio de afetação,"12 como, aliás, há muito reconhece a jurisprudência do STJ.13 O critério legal assim instituído é aplicável à resolução de contratos de promessa de venda em incorporações imobiliárias celebrados posteriormente à vigência da Lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, e é aplicável às resoluções de contrato de promessa em geral, inclusive naquelas cujo objeto seja a resolução de promessa de venda de imóveis integrantes de incorporação em que houver destituição ou falência do incorporador. A despeito das novas regras, persistem controvérsias na jurisprudência, seja em relação aos limites percentuais, seja em relação ao diferimento das quantias a serem restituídas. No caso especial das incorporações imobiliárias em que tiver ocorrido falência ou destituição do incorporador, a jurisprudência é majoritária no sentido da restituição imediata, à coletividade dos adquirentes que se empenham no prosseguimento da obra o injustificado encargo de redirecionar parte dos recursos que aportam para a execução da obra. Entretanto, já se registram decisões que afastam a pretensão de penhora de frações ideais do terreno objeto da incorporação imobiliária, ainda que se trate de resolução por culpa do incorporador, pois tal constrição "prejudicaria sobremaneira os demais adquirentes que se associaram para concluir a incorporação (...). Esta é a exegese do art. 31-A, ao observar o objetivo do instituto, consignou expressamente, em sua parte final, que o patrimônio de afetação tinha uma finalidade específica, assim o fez: '... manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes."14 A questão, de fato, envolve controvérsia, cuja superação depende de interpretação sistemática e teleológica das normas que compõem o conjunto normativo de proteção patrimonial dos adquirentes de imóveis nas incorporações imobiliárias. Disso é exemplo a decisão da 3ª Turma do STJ que reconheceu a necessidade de preservação de todo o ativo da incorporação com fundamento em interpretação extensiva da regra geral do art. 833, XII, do CPC, fundamentando-se em que, embora essa regra tenha por objeto a impenhorabilidade das receitas das vendas vinculadas à execução da obra, "comporta interpretação extensiva, incidindo sobre todo o patrimônio de afetação destinado à consecução da incorporação imobiliária, a fim de atender ao escopo da lei, consistente na proteção dos direitos dos consumidores atuais e futuros adquirentes das unidades imobiliárias autônomas."15 Dada a relevância do interesse da coletividade dos contratantes, que constitui elemento central da racionalidade econômica da incorporação imobiliária, é digna de nota a observação do voto condutor no sentido de que "a lei foi tímida, dizendo menos do que queria dizer para alcançar o seu intento, motivo pelo qual deve ser conferida interpretação extensiva ao inciso XII do art. 833 do CPC/2015, para ampliar a proteção legal a todo o patrimônio de afetação do incorporador, notadamente o terreno onde se construirá a edificação." Afinal, é preciso dar consequência prática à prioridade legal da conclusão da obra com observância da ordem legal de preferência dos credores como forma de "assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes."16 Conclusão A breve apreciação sobre alguns aspectos da estrutura e função da atividade empresarial da incorporação imobiliária demonstra a capacidade de adaptação e aperfeiçoamento da lei 4.591/1964 diante das transformações socioeconômicas, consagrando-se como um marco regulatório fundamental dotado de mecanismos capazes de assegurar a higidez dos negócios e proteção patrimonial dos adquirentes, mesmo em cenários críticos como a falência ou a destituição do incorporador. Nesse contexto, em consonância com os princípios constitucionais da função social da propriedade e do contrato, da livre concorrência e da defesa do consumidor, que orientam e legislação que veio a se agregar à sua estrutura inaugural, a lei 4.591/1964 assegura os meios necessários à satisfação das legítimas expectativas da coletividade dos contratantes, em conformidade com a funcionalidade econômica da atividade da incorporação imobiliária e a função social do contrato. E, retomando as lições inovadoras do Professor Caio Mário da Silva Pereira, é possível afirmar que, a partir do eficiente sistema que assegura proteção patrimonial e define responsabilidades instituído pela lei 4.591/1964, não mais se admite que os adquirentes sejam deixados à deriva "num mar sem controle", com obras paralisadas. __________ 1 A lei 4.591/1964 é resultante de anteprojeto de lei apresentado pelo Professor Caio Mário da Silva Pereira no I Congresso Nacional de Direito realizado em Fortaleza em 1959 o anteprojeto convertido na Lei 4.591/1964, como esse autor relata no prefácio de sua obra Propriedade horizontal, lançada em 1960 pela Editora Forense. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 16. ed. revista e atualizada, 2024, n. 129. "O mau incorporador, irresponsável e inconsequente, tratou de imprimir ao empreendimento feição propícia e cogitou, então, de 'armar as incorporações', expressão com que designava as operações iniciais de imaginar e projetar a edificação, anunciar a venda com farta publicidade, colocar as unidades, contratando a construção não em seu próprio nome, porém no dos adquirentes, e saindo às pressas, antes que a espiral inflacionária se agravasse, encurtando os recursos e suscitando os desentendimentos. (...). A grita era geral. Acolhemo-la em nosso livro da Propriedade horizontal, apontando o descalabro em que andava este rendoso comércio e clamando por uma lei que viesse pôr paradeiro a esta irresponsabilidade e ordem nesse caos." 3 O regime jurídico do condomínio em edificações passou a ser regulado quase que inteiramente pelos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil de 2002, com a denominação condomínio edilício. 4 Sobre o rigor jurídico e técnico da formação do Memorial de Incorporação, permitimo-nos remeter à nossa obra Incorporação Imobiliária, 8 ed., 2024, capítulo II. 5 GOMES, Orlando, Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 1962, 2ª ed., p. 305. 6 Permito-me remeter à obras Propriedade imobiliária - função social e outros aspectos (Editora Renovar, 1999), na qual apresentei o anteprojeto de lei de constituição de patrimonio de afetação patrimonial na atividade da incorporação imobiliária.  7 Código de Processo Civil (lei 13.105/2015): "Art. 833. São impenhoráveis: (...); XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra". 8 Lei 4.591/1964: "Art. 67-A. (...). § 5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. (...). § 7º Caso ocorra a revenda da unidade antes de transcorrido o prazo a que se referem os §§ 5º ou 6º deste artigo, o valor remanescente devido ao adquirente será pago em até 30 (trinta) dias da revenda."                      9 Código de Processo Civil: "Art. 862. (...). § 3º Em relação aos edifícios em construção sob regime de incorporação imobiliária, a penhora somente poderá recair sobre as unidades imobiliárias ainda não comercializadas pelo incorporador." 10 Lei 4.591/1964: "Art. 43. (...). § 4º As unidades não negociadas pelo incorporador e vinculadas ao pagamento das correspondentes quotas de construção nos termos do § 6º do art. 35 desta Lei ficam indisponíveis e insuscetíveis de constrição por dívidas estranhas à respectiva incorporação até que o incorporador comprove a regularidade do pagamento." (Incluído pela lei 14.382, de 2022). 11 Lei 4.591/1964: "Art. 43. (...). § 5º Fica autorizada a comissão de representantes a promover a venda, com fundamento no § 14 do art. 31-F e no art. 63 desta Lei, das unidades de que trata o § 4º, expirado o prazo da notificação a que se refere o § 1º deste artigo, com aplicação do produto obtido no pagamento do débito correspondente." (Incluído pela lei 14.382, de 2022). 12 "Não se pode desfalcar o patrimônio - de interesse da coletividade de condôminos - priorizando a restituição de valores, de forma imediata e corrigida, justamente àqueles adquirentes que não têm mais interesse na consecução da obra. (...). Por consequência, dentro do bem jurídico maior que deve ser a proteção dos consumidores que se mantêm no empreendimento, e, portanto, querem efetivamente cumprir e ver cumpridos seus contratos, a função social do contrato exige que a devolução de valores àqueles que desistem do negócio realizado deva ocorrer após a conclusão das obras, com encerramento do patrimônio de afetação." (Parecer do relator do Projeto de Lei 1.220/2015, Deputado José Stédile. Disponível aqui) 13 [...]. 2. Embora o art. 43, III, da Lei nº 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes. 3. Apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da Lei nº 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria. 4. Recurso especial provido." (Trecho da ementa do REsp 1.115.605/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18.4.2011). 14 TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo de Instrumento nº 2197318-30.2018.8.26.0000, rel. Des. Nilton Santos Oliveira, j. 26.9.2018. No mesmo sentido: "APELAÇÃO. Embargos de terceiro. Penhora de unidades de incorporação assumida por comissão de adquirentes. Sentença de improcedência. Recurso dos embargantes. Comissão que assume somente as dívidas relativas à incorporação, que não se confundem com as dívidas do incorporador. Ausência de transmissão de responsabilidade quanto às dívidas decorrentes dos compromissos de compra e venda de unidades. Precedente. Hipótese distinta daquela em que há responsabilização do próprio incorporador. Comissão de adquirentes que foi igualmente lesada pelo abandono das obras. Responsabilização que causaria prejuízos injustos e excessivos à coletividade e violaria a função social da obra. Afastada a responsabilidade dos apelantes e da incorporação. RECURSO PROVIDO." (TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1019566-40.2022.8.26.0100, relatora Desembargadora Celina Dietrich Trigueiros, j. 6.2.2024). "PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. Rescisão de instrumento de compra e venda. Cumprimento de sentença. Decisão que cancelou a penhora que recaiu sobre terreno. Patrimônio afetado por averbação, instituído para execução da obra pelos associados. Afetação anterior à citação da empreendedora. Patrimônio que só submete a constrição de créditos decorrentes de sua finalidade. Exegese do artigo 31-A, "caput" e § 1º, da lei 4.591/64, incluído pela lei 10.931/2004. Manutenção do cancelamento da penhora a fim de salvaguardar os direitos dos demais compradores que criaram associação a fim de dar continuidade ao empreendimento. Exequente que deve, por ora, diligenciar acerca de outros bens. Recurso improvido". (TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 2197318-30.2018.8.26.0000, rel. Des. Nilton Santos Oliveira, j. 26.9.2018). "Respeitado o esforço do patrono do embargado, não há como autorizar que o credor (cujo crédito foi constituído em razão do distrato do contrato de sociedade em conta de participação) satisfaça o montante que lhe é devido por meio da penhora do terreno em questão, sobretudo em razão da proteção conferida ao patrimônio de afetação e da necessária proteção ao interesse da coletividade de compradores. [...]. Assim, forçoso reconhecer que o patrimônio afetado, cuja posse é da Comissão embargante, não deveria, e não deve responder pelo crédito do embargado, que, ressalta-se, se originou da relação societária entre ele e a executada (instrumento particular de distrato de sociedade em conta de participação), até porque, conforme restou apontado no agravo de instrumento supracitado, a contrapartida dos investimentos feitos pelo embargado consistente nas unidades autônomas do quarto andar do edifício que viria a ser construído no terreno penhorado (nos termos do instrumento particular de constituição de sociedade em conta de participação - fls. 44) , foi substituída por obrigação pecuniária, por força do distrato celebrado entre o embargado e a executada, a infirmar a excepcionalidade que justificasse afastar a proteção do patrimônio de afetação. (Apelação Cível nº 1047348-27.2019.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo)." "Embargos de terceiros - Oposição pela Comissão de Representantes dos adquirentes reunidos para dar continuidade ao empreendimento abandonado pela incorporadora - Sentença de improcedência - Inconformismo da embargante - Abandono da obra, pela incorporadora, que atingiu igualmente as partes - Direito de crédito dos embargados, decorrente da rescisão do compromisso de compra e venda, que não pode inviabilizar a continuidade das obras assumidas pelos demais - Patrimônio de afetação que garante a função social de entrega das unidades - Penhora de fração ideal do imóvel que causaria prejuízos injustos e excessivos à coletividade - Hipótese distinta daquela em que há responsabilização do próprio incorporador, ainda vinculado ao empreendimento - Apelo acolhido." (TLSP, Apelação Cível nº 1060310-43.2023.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado, DJe 27.8.2024). 15 Recurso Especial. Processual civil. Incorporação imobiliária. Ausência de prequestionamento. Interpretação extensiva do art. 833, XII, do CPC/2015. Possibilidade. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido. 1. O propósito recursal consiste em definir se a hipótese de impenhorabilidade constante do art. 833, XII, do CPC/2015 pode ser objeto de interpretação extensiva. 2. A ausência de prequestionamento das teses relacionadas aos arts. 789 e 805 do CPC/2015, apontados como violados, obsta o conhecimento do recurso especial, atraindo, com isso, a incidência das Súmulas 282 e 356/STF. 3. A impenhorabilidade constante do inciso XII do art. 833 do CPC/2015 comporta interpretação extensiva, incidindo sobre todo o patrimônio de afetação destinado à consecução da incorporação imobiliária, a fim de atender o propósito legal consistente na proteção dos direitos dos consumidores atuais e futuros adquirentes das unidades imobiliárias autônomas. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido." (STJ, 3ª Turma, REsp n. 1.675.481-DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 29.4.2021). 16 Trecho da ementa do REsp 1.115.605/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18.4.2011.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sobre o despejo extrajudicial - Algumas anotações

O país vem evoluindo consistentemente no campo da solução de conflitos sem a invocação do Poder Judiciário. São processados extrajudicialmente, por exemplo, os divórcios, os inventários com ou sem testamento, com ou sem herdeiros menores de idade; a adjudicação compulsória; a usucapião. Não existe notícia de reclamações ou impugnações em quantidade sensível, a demonstrar quão satisfatórias são tais soluções não judiciais. Lembremos, aliás, da "consignação em pagamento" para a qual se abriu a possibilidade de exercício não judicial em 1994 (ainda antes do atual CPC, se tratou de evolução quanto ao Código de 1973) - sem problema sério algum tendo sido arguido. Esse afastamento da solução judicial tem agradado a todos devido à velocidade e à eficácia maiores, aos custos menores, à obtenção de segurança jurídica idêntica à alcançada judicialmente, à liberação do assoberbado Judiciário para que possa julgar questões mais intrincadas. Por evidente, lesão alguma é afastada da apreciação judicial, exatamente conforme o comando constitucional (art. 5º - XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito). Quanto aos processos judiciais de despejo por falta de pagamento, a par de sabido que não exigem maiores empenhos de erudição, já estando bastante sistematizada a respectiva operação há décadas (e raramente levantada questão processual em nossos tribunais), temos desde 1991, ao menos, a certeza legal, declarada no art. 80 da lei das locações: "As ações de despejo poderão ser consideradas como causas cíveis de menor complexidade". Esse dispositivo legal permite que tais ações sejam julgadas até em "Juizados Especiais", a depender de normatização específica, certamente. Seja como for: De fato e de lei, são procedimentos sem complexidade, simples. Detectando esse quadro em que se somavam a boa acolhida social dos procedimentos não judiciais, com a simplicidade das ações de despejo, os juristas cariocas Arnon Velmovitsky e Carlos Gabriel Feijó de Lima desenvolveram estudos e passaram a preconizar o despejo extrajudicial, levando aos casos de inadimplemento de aluguéis e de consignação de chaves do imóvel locado, a possibilidade de solução sem que seja necessário percorrer os caminhos forenses. Seus estudos, realizados na época da pandemia, findaram acolhidos no PL 3.999/20, do deputado Hugo Leal, seguindo-se a sua análise pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, quando foi relator o deputado Celso Russomano, que apresentou um projeto substitutivo, aprovado pela mesma Comissão. Atualmente, o PL está sob análise da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania, aguardando-se o trâmite. Particularmente, estranhei a remessa do PL para a Comissão de Defesa do Consumidor, pois locação imobiliária não é matéria de consumo, já o disse o STJ (AgRg no AREsp 101.712/RS, relator ministro Marco Buzzi, julgado em 3/11/15) secundado por tribunais em todo o país. As locações são regidas pela lei específica se não pelo Código Civil n' algumas situações, jamais pelo CDC. Mas, o projeto está tramitando graças ao seu mérito indiscutível, e cuida não somente do despejo extrajudicial, mas também da consignação extrajudicial de chaves, alterando pontualmente a lei 8.245, de 18/10/1991 (que dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes). A iniciativa certamente merece aplausos, e a esperada legislação reforça a necessidade essencial do despejo por falta de pagamento: A celeridade. Cada dia importa, pois o débito se eleva, de sorte que assegurar a simplificação do procedimento, a agilidade e a efetividade, é imprescindível, a justificar a modalidade extrajudicial desejada, preservada a segurança jurídica necessária. A finalidade remota? Estimular as locações, melhor regulá-las para que possam ser mais e mais utilizadas (a propósito: "O princípio da finalidade não é constituitivo, mas regulador", ensinou Kant). Evidentemente direito algum poderá ser retirado de locador ou locatário em consequência do caminho escolhido, judicial ou extrajudicial. Tão somente objetiva-se abrir mais um modo de resolver tais problemas locatícios. Afinal, jamais seria o talher de peixe ou de carne que definiria o almoço... ao contrário! Realmente, judicial ou não judicial, o despejo atende aos direitos dos contratantes; há de assegurar, por ilustração, o direito à purga da mora e a sua limitação exatamente como os temas são cuidados no âmbito forense, sempre obedecidas as solenidades estatuídas na lei. Enfim: Almeja-se simplificar e baratear os procedimentos, atingindo-se maior velocidade. Obviamente, perseguem-se a utilidade e a equidade na nova lei. Nas palavras de Burke (1.729 - 1.797), "there are two, and only two foundations of law, equity and utility", algo como: S+ão somente dois os fundamentos da lei: Equidade e utilidade. E, acredito que tal se atinja na lei em elaboração. Assim, a par de serem cumpridos termos e conceitos já presentes no arcabouço legal vigente, será importante, esta é a sugestão ora resumida e posta sob debate, que a legislação cuide (e certamente isso é estudado pelos legisladores) de: Diminuir ao mínimo, mas respeitada a segurança jurídica, os atos e passos do procedimento, assegurando velocidade e custos reduzidos. As solenidades existirão, mas deverão ser avaliadas sob os prismas da adequação e da finalidade; Na trilha do que é disposto no art. 62 da lei das locações, contemplar a "falta de pagamento do aluguel e acessórios da locação, de diferenças de aluguel ou somente de qualquer dos acessórios da locação"; Clarear e afastar a eventual imputação de que seria necessário contrato escrito, habilitando os procedimentos também a locações verbais, desde que seguramente provadas; Prever que a aplicação da nova legislação não dependerá de estipulação no contrato de locação, afastando eventuais distorções que impeçam a sua utilização, ou seja: Permitindo a aplicação imediata em todas as locações; Considerar a participação de advogado, para assegurar o respeito à lei e evitar alegações de que a ignorância sobre os temas legais teria levado a este ou àquele ato (malgrado seja certo que "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece", na letra do art. 3º, da lei de introdução às normas do Direito brasileiro). A participação de advogado não é estranha em procedimentos extrajudiciais: Ele participa, por exemplo, nos inventários ou em usucapiões, respeitando o art. 133, da Constituição Federal ("O advogado é indispensável à administração da justiça..."); Regular a purgação da mora e os seus limites de modo congruente com a atual lei das locações; Na esteira, prever que o depósito dos aluguéis devidos ou das chaves consignadas se faça unicamente no cartório, evitando-se alongamentos decorrentes de discussões e imprecisões; Assegurar que a desocupação realizada não elidirá o direito de cobrança de aluguéis e verbas locatícias em aberto, nem tampouco afastará a cobrança de indenizações por danos por ambos os contratantes; Garantir e regular, expressando adequadamente, o livre e posterior acesso ao Poder Judiciário, se necessário, como a Constituição prevê. São, evidentemente, alguns itens lembrados por mais este - dentre tantos e mais ilustres - estudioso da matéria, sempre com o objetivo do aperfeiçoamento e crescimento das locações imobiliárias urbanas.
(I) O crédito imobiliário: surgimento, reestruturação, AF e patrimônio de afetação 1.1. Contexto fático O mercado imobiliário é dependente do crédito para sustentar a capacidade de compra de imóveis. Assim, a falta ou incapacidade dos instrumentos de financiamento compromete a sua sustentabilidade. O setor da construção civil tem papel fundamental no cenário nacional. Ele representa aproximadamente 7% do PIB brasileiro e continua exercendo uma grande influência na capacidade de geração de emprego, na indústria e, essencialmente, no acesso à moradia. A capacidade de compra do cliente ou afordability é conhecida de todos os agentes do mercado. Sob outra roupagem, ela é conhecida também do seu destinatário final: o cliente. É que para o cliente a sua capacidade de compra é medida pela parcela do financiamento de seu imóvel. O cliente para poder comprar o imóvel necessita compor sua capacidade financeira e para isso se vale do financiamento bancário ou do financiamento direto com as incorporadoras e loteadoras. Mas, no final do dia, o importante é que a parcela do pagamento tem que caber no seu bolso. Ocorre que o CNJ editou o provimento 172 que restringe o alcance da lei de alienação fiduciária, principal instrumento utilizado pelas incorporadoras e loteadoras para conceder crédito. De acordo com o provimento, o uso do contrato particular está restrito ao SFI e SFH. Assim, toda a contratação fora destes ambientes deve observar a forma pública. A decisão impacta diretamente o crédito imobiliário e a segurança jurídica, impondo um olhar cuidadoso para o assunto. 1.2. O mercado imobiliário a partir da década de 90, os instrumentos de financiamento e o acesso à moradia O crédito imobiliário tem histórico interessante no Brasil. Se olharmos para década de 60, tivemos a criação de dois instrumentos de financiamento habitacional fundamentais ao desenvolvimento da moradia social: o BNH e o FGTS. Esses dois instrumentos compunham o SFH e permitiram, por meio da participação do Estado, impulsionar o desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social, assegurando a capacidade de compra dos adquirentes. Assim, foi criado o SFH pela lei 4.380/64, com o objetivo de implantar uma política habitacional com prioridade para o interesse social1. Esses instrumentos eram utilizados para financiamento da indústria da construção civil e para assegurar o acesso à moradia. O crédito tinha (e sempre teve) papel essencial na compra do imóvel pelo cliente. Porém, a partir dos anos 70, o cenário macroeconômico passou por mudanças significativas. A dívida interna, o ciclo inflacionário e a macroeconomia fizeram com que nos idos de 1980 o crédito se tornasse escasso inclusive por meio destas duas fontes. Foi então que no final da década de 90 surge o SFI, que teve como objetivo implementar novas ferramentas de fomento ao crédito imobiliário, mediante o acesso ao mercado de capitais e, assim, alavancar as operações imobiliárias por meio do mercado secundário. O SFI foi concebido para desregulamentação da economia e modernização dos instrumentos e mecanismos de financiamento à atividade produtiva2. Basicamente, o SFI renovou as energias do SFH, dada a exaustão da captação dos recursos que estão concentrados nos depósitos na caderneta de poupança. O SFI criou fontes novas de recursos para o financiamento imobiliário. Por meio do SFI, permitiu-se a colocação de títulos em créditos constituídos originalmente pelos próprios incorporadores, construtores e loteadores. Nesse sentido, criou-se uma fonte de recursos para o mercado imobiliário consubstanciada no CRI3_4, cenário em que foram também estabelecidas novas garantias reais imobiliárias. É que havia risco pela demanda do crédito e preocupação com a falência do incorporador. E do lado da oferta de crédito, a preocupação com a retomada dos imóveis deixava o apetite para sua concessão baixo. Afinal, o processo de recomposição às situações de mora dos adquirentes era lento, caro e burocrático. Aqui entra em cena a alienação fiduciária, que está no epicentro das discussões recentes de crédito imobiliário no contexto do CNJ. Essa garantia real deu a musculatura necessária para energizar o SFI e garantir a sustentação do mercado, uma vez que oferece vantagens consideráveis quando comparada à situação do credor hipotecário, anticrético e pignoratício5. Do lado dos credores, a alienação fiduciária; do lado do consumidor, o patrimônio de afetação que afastava o risco de insucesso do incorporador. Os riscos mais latentes estavam, desse modo, mitigados. O principal instrumento direcionado à garantia e à recomposição do crédito imobiliário foi, de fato, a alienação fiduciária de bens imóveis. A alienação fiduciária é uma garantia contratada pela instituição financeira ou pelo particular que torna possível a execução do contrato em caso mora de maneira mais rápida e sem a necessidade de demanda judicial, uma vez que o procedimento é feito extrajudicialmente no cartório de registro de imóveis. Por meio da alienação fiduciária, então, a capacidade de financiamento dos clientes melhorou e o crédito ficou mais barato. É que a alienação fiduciária se mostra mais eficiente e ágil na execução do contrato, o que permitiu que os credores imobiliários (instituições financeiras, incorporadores, loteadores, pessoas jurídicas no geral, fundos de investimento etc.) a adotassem em praticamente todas as suas operações. Inclusive, por ser menos burocrática e mais célere, bem como tornar possível a securitização e distribuição no mercado de capitais. No entanto, essa medida não foi única na busca pelo fomento ao crédito imobiliário. No ano de 2004 foi editada a lei 10.931/04 que estabeleceu o patrimônio de afetação para as incorporações imobiliárias6. O patrimônio de afetação tem como objeto a segregação dos ativos do empreendimento dos demais bens do incorporador, de modo a evitar que em caso de falência do incorporador aquele patrimônio seja arrastado à recuperação judicial.Portanto, vê-se que o mercado de crédito imobiliário a partir da década de 90 passou a contar com ferramentas adicionais para impulsionar o setor da construção civil e de acesso ao imóvel pela facilitação do crédito e reforço das garantias aos adquirentes. I.3. Novas regras de Financiamento da Caixa Econômica Federal A partir de 1 de novembro de 2024, a Caixa ajustou as regras de financiamento dada a crescente demanda por imóveis e o volume de saques líquidos da poupança, que é a origem dos recursos utilizados pelo banco para os empréstimos via o SBPE. O mês de setembro foi recorde com um volume de saques líquidos na ordem de R$ 7,1 bilhões. Três mudanças essenciais foram adotadas pela Caixa, que concentra quase 70% do mercado: (a) limitou-se o valor do imóvel para fins de financiamento ao valor de R$ 1,5 milhão; (b) nos sistemas SAC e PRICE, as cotas de financiamento foram reduzidas, bem como (c) não é mais possível ter mais de um financiamento ativo com a instituição. Tratando das cotas de financiamento, no modelo SAC no qual as parcelas vão diminuindo ao longo do tempo e a amortização dos juros se dá ao mesmo tempo do pagamento da parcela principal. Nessa modalidade, houve a redução do valor de financiamento de 80% para 70%. Já no modelo Price, em que as parcelas são constantes, mas primeiro são amortizados os juros e posteriormente o principal, o financiamento de 70% foi reduzido para 50%. Essas mudanças feitas pela Caixa revelam que a parcela de entrada devida pelo consumidor para compra do imóvel ficou mais alta. O objetivo, logicamente, não é dificultar o financiamento habitacional, mas, sim, assegurar a sustentação da poupança e a perenidade dos recursos para cobertura de um contingente maior de famílias. As regras não atingirão os financiamentos em curso e não há prazo de validade para estas mudanças. É fato, no entanto, que crédito está mais restrito. Porque há uma quantidade limitada de recursos disponíveis. Esse cenário revela a importância de fontes alternativas ao mercado, tal como a alienação fiduciária. Porém, as primeiras decisões do CNJ tendem a dificultar o uso desse fundamental instrumento de crédito imobiliário que é a alienação fiduciária para os agentes não integrantes do SFI e SFH. Vamos à problemática. (II) O mercado geral do crédito e escritura pública nos contratos de alienação fiduciária O crédito imobiliário passou por processos de transformações nos últimos 30 anos e se mostrou resiliente, criando alternativas ao financiamento habitacional. No entanto, o CNJ editou o provimento 1727, que restringiu a formalização de contratos garantidos por alienação fiduciária por instrumento particular pelas incorporadoras e loteadoras, exigindo-se a formalização por escritura pública. Ele foi complementado pelo provimento 1758, que incluiu as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos à regulamentação da CVM ou do BCB, relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI. O provimento vai na contramão de todo o esforço feito na desburocratização do crédito imobiliário e na otimização das garantias imobiliárias. A restrição imposta pelo CNJ permite, de modo geral, que apenas as entidades integrantes do SFI e do SFH continuem a celebrar por instrumento particular, a retirada das incorporadoras e loteadoras traz consigo um risco fundamental ao fomento do crédito imobiliário, bem como representa um retrocesso ao movimento de desburocratização que se construiu ao longo dos anos. O resultado deste movimento do CNJ é o encarecimento do crédito imobiliário. Além dos custos financeiros diretos com a escritura pública do tabelião de notas, que são extremamente relevantes para o negócio, a elaboração desse ato notarial acrescenta mais uma etapa procedimental para chegar no registro da propriedade no CRI. Inevitavelmente, eleva-se o custo de transação na economia e reduz-se e a velocidade do processo de formalização da venda. Estima-se que o custo de transação após a edição do provimento 172 do CNJ representará mais de 5% do valor do negócio. Se analisado o impacto direto da escritura, há o incremento de mais de 50% dos custos de cartório que não são financiáveis pelo cliente e que, geralmente, são pagos no ato de aquisição ou nos primeiros 20 dias da compra. Essa exigência encarece a transação sem oferecer nenhum benefício, pois a escritura pública terá que passar pelo juízo de qualificação do registrador do mesmo jeito que o instrumento particular. Esse custo adicionado é suportado pelo comprador que não obtém vantagem com essa nova etapa adicionada pelo CNJ. É relevante anotar que o provimento 172 surgiu de um pedido de providências 0008242-69.2023.2.00.0000, que não trouxe consigo nenhum dado acerca da segurança jurídica das operações celebradas por instrumento particular. Aliás, o contrato particular de alienação fiduciária tem sido posto à prova em vários momentos no Poder Judiciário. Todavia, em nenhuma dessas discussões, tratou-se do suporte - se por escritura pública ou contrato particular. Normalmente as discussões que cercam o assunto envolvem o registro do contrato, a oponibilidade nas relações de consumo, a responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento de IPTU, cotas condominiais etc. Mas isso é tema para outra hora. Portanto, a conclusão é de que a forma - pública ou particular - nunca foi uma questão capaz de inspirar cuidado do legislador ou mesmo do Poder Judiciário, mesmo porque o contrato passa pelo crivo do Oficial de Registro de Imóveis quando do registro da garantia. E é por isso que o movimento do CNJ na edição do provimento 172 levanta preocupação, seja pelo seu papel institucional, seja pelos impactos diretos e indiretos que essa medida traz para o setor imobiliário. II.1. O aumento no custo de transação e suas consequências A restrição imposta pelo CNJ em junho de 2024 impacta novas contratações e mesmo o próprio funding. É que o encarecimento do custo direto para celebrar o contrato aliado à burocracia documental são fatores de desestímulo à adoção da garantia. Por conseguinte, o setor imobiliário pode sofrer com o arrefecimento do mercado. Haverá desdobramentos inclusive no volume de unidades ofertadas pelas incorporadoras e loteadoras. Afinal, se o instrumento de financiamento direto está mais caro e burocrático, as decisões estratégicas de lançamento e análise de capacidade de pagamento do consumidor mudam. O mercado ficará receoso quanto aos riscos de financiabilidade de seus clientes, especialmente para os desenvolvedores imobiliários que estão fora do SFI e do SFH. Essa constatação foi apresentada também pela Nota SEI 7/24/CGRFIN/SRMI/ser-MF do Ministério da Fazenda que estima um potencial de aumento de custo nas operações de crédito com este provimento. Com a manutenção do provimento do CNJ - caso não seja revisto pelo CNJ ou pelo Poder Judiciário - haverá o desaceleramento do setor imobiliário, uma vez que estará limitado às formas tradicionais e que se mostram estressadas de financiamento. A consequência desta desaceleração é sentida não apenas pelo cliente. Mas, sobretudo para os indicadores de contribuição ao PIB, emprego e demais setores da cadeia produtiva. Os reflexos sob a ótica urbana não devem ser desconsiderados, já que o processo de urbanização das cidades se dá, em grande medida, pelo parcelamento do solo - loteamento e desmembramento - que tem o intuito de promover o desenvolvimento organizado e planejado das cidades, mas cuja fonte de financiamento prioritária está sendo diretamente afetada. Como resultado, haverá prejuízo no próprio combate ao déficit habitacional. É que o aumento do custo do crédito imobiliário e da burocracia dificulta o principal meio de financiamento utilizado pelo setor de loteamento, o que é crítico, pois compromete o objetivo central da política urbana: garantir o desenvolvimento ordenado das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, o que só se mostra possível mediante o acesso ao crédito. II.2. Liberdade econômica, custos de transação e perda de eficiência Na prática, o provimento 172 do CNJ limitou a atuação por instrumento particular pelas incorporadoras e construtoras. A dispensa do instrumento público está concentrada às instituições que operem no SFI. Porém, não houve nenhum dado concreto utilizado no pedido de providências ou pelo CNJ, na edição do provimento, para justificar a imposição do instrumento público, notadamente porque não ficou demonstrada insegurança jurídica da forma particular, então adotada pelas incorporadoras, loteadoras e particulares, bem como não houve modificação legislativa. Veja-se que a autorização para contratar a alienação fiduciária por instrumento particular consta da própria lei 9.514/97, em seu art. 38 que expressamente autoriza a utilização do instrumento particular por qualquer pessoa, independentemente da vinculação ao SFI ou SFH. A conclusão que se chega a partir da leitura do art. 38 da lei 9.514/97 é que o instrumento particular não é aplicável restritivamente apenas às entidades do SFI e SFH. Logo, a edição do provimento pelo CNJ cria uma barreira de acesso à moradia, ao encarecer os custos de formalização da garantia fiduciária, bem como restringe a própria livre iniciativa. A lei 9.514/97, ao permitir que incorporadoras, loteadoras e outros agentes econômicos pudessem se valer da alienação fiduciária por instrumento particular, teve por objetivo desburocratizar e potencializar o acesso ao crédito imobiliário mediante a redução dos custos de transação, respeito à livre iniciativa, bem como traz como benefício a concorrência, rompendo com a necessidade de intermediação bancária. A decisão do CNJ de impor a celebração do instrumento público - embora a lei expressamente autorize a formalização por documento particular - viola a ordem econômica e cria uma barreira à participação dos agentes no mercado, na medida em que não integram o SFI e do SFH. Cria-se uma reserva de mercado injustificável e prejudicial aos consumidores e à concorrência, assim como fragiliza o movimento de desintermediação bancária. Nesse sentido, a lei de liberdade econômica - lei 13.784/19 - dá conta do dever da administração pública evitar o abuso do poder regulatório que indevidamente crie reserva de mercado ou aumente os custos de transação9, exatamente o que se vê no caso concreto. Com a edição do provimento 172, o CNJ burocratizou o acesso ao crédito e tornou mais onerosa a operação de venda e compra dos imóveis, sem que exista nenhum benefício com a adição desta exigência aos agentes não integrantes do SFI e SFH. A ineficiência gerada ao mercado de crédito, os custos de transação e a própria insegurança jurídica aos agentes econômicos devem ser revistas, porque não há nenhuma vantagem na solução proposta pelo CNJ para instrumentalização da garantia por escritura pública. A decisão do CNJ não só causa um prejuízo ao crédito imobiliário, mas, igualmente, traduz em vantagem competitiva indevida e prejudicial à livre concorrência, porque a restrição imposta às incorporadoras e loteadoras levará ao aumento dos preços e ao encarecimento dos juros de financiamento. (III) Panorama atual da discussão O resultado da restrição à celebração de instrumentos particulares por incorporadoras e loteadoras já tem surtido efeitos práticos. A reação nacional do mercado imobiliário foi imediata. Por sua vez, as Corregedorias de Justiça dos Estados passaram a editar normativos internos regulando a obrigatoriedade do instrumento público após a edição do provimento 172 do CNJ. Muito embora o CNJ tenha tentado diminuir o impacto da decisão, adotando uma regra de modulação de efeitos da decisão administrativa para os contratos celebrados até 11 de junho de 2024, por meio do provimento 175, observa-se que o ambiente de instabilidade e insegurança jurídica continua a ecoar no mercado imobiliário e jurídico. Isso se dá essencialmente porque no âmbito do CNJ a discussão ainda segue viva através do recurso administrativo protocolado no pedido de providência com o objetivo de reformar a decisão, alertando, ainda, para os desdobramentos econômicos que a decisão tem para o crédito imobiliário, bem como a invasão de competência do CNJ sobre a esfera do STJ quanto à uniformização da interpretação da lei Federal. A esse respeito, o próprio CNJ houvera reconhecido em decisão de 2023 que não dispunha de competência funcional para a interpretação de lei Federal, cabendo ao STJ a definição do alcance da norma10. Muito embora tenha se contido no passado, no julgamento do pedido de providências que deu origem ao provimento 172 desconsiderou sua decisão anterior e avançou na competência do STJ para alterar e, assim, restringir o alcance do art. 38 da lei 9.514/97. Embora o julgamento do recurso administrativo ainda não tenha sido encerrado, foi impetrado no STF um mandado de segurança 39.805/PR, que versa justamente sobre o desvio funcional do CNJ na edição do provimento e a necessidade de que o STF reconheça o ato coator praticado pelo CNJ, de maneira que seja reformada a decisão, respeitando-se, assim, os limites de sua atuação constitucional. O processo está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, já foram prestadas informações pelo então Corregedor Nacional, mi Luis Felipe Salomão, sucedido em setembro de 2024 pelo mi Mauro Campbell Marques. O caso ainda aguarda desfecho no Supremo. Mais recentemente, e no que importa a estas breves reflexões, a União Federal apresentou pedido de providência registrado sob o 0007122-54.2024.2.00.0000 junto ao CNJ para suspensão liminar dos efeitos do provimento 172 e 175. E, ao final, para que fossem revogados os provimentos, de modo a afastar a restrição de aplicação do art. 38 da lei 9.514/97 apenas as entidades especificadas ao CNJ, permitindo-se a ampla formalização da alienação fiduciária por meio de instrumento particular com efeitos de escritura pública. A partir do pedido de providência da União Federal, em 28 de novembro de 2024, o atual corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, concedeu a liminar para suspender os efeitos dos provimentos editados pelo CNJ, restaurando a possibilidade de utilização do instrumento particular. Em sua fundamentação, o mi Mauro Campbell destaca que a restrição da norma imposta pela edição dos provimentos 172 e 175 pode comprometer a segurança jurídica e os negócios celebrados fora do âmbito do SFI e SFH. O ministro destacou que a permissão para celebrar contrato de alienação fiduciária por instrumento particular decorre do próprio art. 38 da lei 9.514/97, independentemente da vinculação ao SFH ou SFI. A decisão liminar deu luz para o fato de que o provimento 172, além de contrariar o texto expresso da lei, aumenta os custos de transação e, conforme destacamos acima, também reduz a competitividade do mercado. De acordo com o corregedor: (...) a formalização da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e atos conexos, levada a efeito nos termos do provimento 172/24 e modificações posteriores promovidas pelos provimentos 175/24 e 177/24 - ao exigir dos demais agentes não enquadrados no SFI e no SFH que a formalização da avença ocorra exclusivamente por meio de escritura pública - incrementa custos a adquirentes de bens imóveis e a mutuários que utilizam os imóveis como garantia dada em alienação fiduciária, ao mesmo tempo em que, em tese, cria uma possível desvantagem competitiva entre agentes de mercado11. Segundo a decisão, a manutenção desta exigência impacta diretamente no custo de transação, dificulta o acesso ao crédito, que se torna mais oneroso, além de gerar barreira burocrática, o que tende a inviabilizar as operações de compra e venda de imóveis, afetando os incorporadores, loteadores e consumidores. A decisão vem em boa hora e revela o cuidado do mi corregedor quanto aos riscos de manutenção dos efeitos do provimento enquanto se analisa a questão no âmbito do colegiado do CNJ. A decisão busca preservar a segurança jurídica, evitando o aumento da burocracia, assim como o sobrecusto nas operações de alienação fiduciária pela instrumentalização via escritura pública, o que onera na visão do ministro, da qual partilhamos, injustificadamente as transações imobiliárias. A decisão liminar tem efeitos imediatos e deve ser observada em todo território nacional. A decisão suspende os efeitos do provimento 172, o que, na prática, reestabelece a possibilidade de uso do instrumento particular para contratar alienação fiduciária, não ficando restrita às entidades integrantes do SFI e SFH. A postura do mi corregedor nacional de Justiça no deferimento da liminar não poderia ser mais acertada, porque prestigia o texto expresso da lei Federal, art. 38 da lei 9.514/97, bem como impede que seja elevado o custo do crédito para as famílias e empresas pela celebração do instrumento público. A decisão será enviada às corregedorias estaduais para que adequem suas normativas em atenção à decisão liminar. A determinação é assertiva, em especial, em caso de dúvida registral, de modo que deve ser observada a liminar exarada pelo corregedor nacional de Justiça. (IV) Conclusão O mercado imobiliário depende dos instrumentos de financiamento para manter firme sua atividade produtiva destinada a viabilizar o acesso à moradia. As mudanças que aconteceram ao longo dos anos revelam a resiliência do setor às intempéries econômicas, sociais, políticas e jurídicas. A construção de um ambiente de previsibilidade e segurança jurídica é fundamental para a sustentar o contínuo movimento de desenvolvimento do mercado sem solavancos. Na contramão desta estrada, surgem os provimentos 172 e 175 que burocratizam o procedimento e aumentam os custos do crédito imobiliário, penalizando os adquirentes pela imposição da formalização da escritura pública para entidades fora do SFI e SFH. Os provimentos comprometem o importante papel da alienação fiduciária que surgiu como instrumento alternativo para impulsionar o crédito imobiliário, ajudando na desintermediação bancária, na efetividade da garantia real e no acesso ao crédito. Os agentes econômicos reagiram ao provimento e a própria União Federal entendeu a importância da temática e os danos econômicos, sociais e jurídicos que a medida traz para a sociedade e solicitou atuação do CNJ para endereçar o assunto. O mi corregedor nacional de Justiça, atento à robusta fundamentação técnica, econômica e consequencialista apresentada pela União, bem respaldada pelos dados do setor imobiliário12 e, fundamentalmente, pelo desacerto jurídico na restrição outrora imposta, concedeu a liminar e determinou a suspensão dos efeitos dos provimentos, reestabelecendo o instrumento particular para todos, e não apenas para agentes integrantes do SFI e SFH. Ainda existe um caminho longo a ser percorrido rumo à definitiva restauração da ampla aplicação do art. 38 da lei 9.514/97. Mas é importante reconhecer o golaço que foi a decisão liminar do CNJ em suspender os efeitos do provimento 172. ______ 1 Melhim Chalhub traz um recorte histórico e normativo interessante para estes instrumentos de financiamento: "na sua formação original, o SFH era integrado pelo BNH, tendo como seus agentes financeiros órgãos federais, estaduais, inclusive sociedade de economia mista que operassem no financiamento habitacional, sociedade de créditos, associações de poupança e empréstimos, fundações, cooperativas e outras associações organizadas com a finalidade de construção e aquisição de casa própria para seus associados" (CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 7ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2023. p.315) 2 Esse objetivo fica claro da exposição de motivos interministerial 32/MPO-MF, de 9 de junho de 1997, do Projeto de lei que resultou na edição da lei 9.514/97. 3 Em 2022, foi editada a lei 14.430/22 que estabeleceu novas regras para a emissão de títulos de crédito destinadas à securitização de direitos creditórios. Essa lei foi responsável por instituir um regime jurídico geral, que compreende a emissão de títulos e valores mobiliários lastreados em direitos creditórios de qualquer natureza, oriundos de todos os setores da econômica, envolve créditos financeiros, comerciais, prestação de serviços, precatórios e mesmo de ações judiciais. 4 Os instrumentos de funding tem ganhado relevância ao longo dos anos, em 2024, a participação das incorporadoras na emissão de CRIs foi de 7% para 14%, confira aqui.  5 NORONHA, Fernando. Alienação fiduciária em garantia e o leasing financeiro como supergarantias das obrigações. Revista dos Tribunais | vol. 845/2006 | p. 37 - 49 | Mar / 2006 Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 5 | p. 739 - 756 | Jun / 2011 DTR\2006\196. p.8. 6 A partir de 13 de julho de 2023, o regime do patrimônio de afetação passou a ser admitido também nos loteamentos urbanos (art. 18-A da Lei 6.766/79), por força da com a edição da lei 14.620. 7 Art. 440-AO. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI (art. 2º da Lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do CC, como os atos envolvendo: I - administradoras de consórcio de imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8 de outubro de 2008); II - entidades integrantes do SFH (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21 de agosto de 1964). 8 provimento 175 (...) "§2º São considerados regulares os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e os atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do SFI, desde que tenham sido lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do provimento CN 172)." 9 Art. 4º  É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; V - aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; 10 Recurso administrativo no âmbito do CNJ: 0010967-07.2018.2.00.0000, relatora: conselheira Salise Sanchonete. Dje. 15/09/23. 11 Trecho da decisão liminar do e. mi Mauro Campbell Marques, no pedido de providência 0007122-54.2024.2.00.0000, proferida em 28/11/24. 12 Confira-se a nota SEI nº 7/24/CGRFIN/SRMI/SRE-MF do Ministério da Fazenda.
1. A suspensão dos efeitos dos Provimentos 172, 175 e 177 da Corregedoria do CNJ  Em decisão proferida em 27/11/24 no pedido de providências 007122-54.2024.2.00.0000, o Corregedor do CNJ suspendeu os efeitos do provimento 172/24 e as modificações posteriores dos provimentos 175/24 e 177/24,  que restringiram às empresas integrantes do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário e outros entes sujeitos a regulamentação da CVM - Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil a faculdade de contratar alienação fiduciária de bens imóveis por instrumento particular. A decisão acolheu pedido da União (Ministério da Fazenda), representada pela AGU - Advocacia-Geral da União, que, entre outros fundamentos, invoca o art. 4º da lei 13.874/19 (lei da liberdade econômica), segundo o qual entre os deveres do órgão regulatório está o de abster-se de "criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço (...), inclusive de uso de cartórios, registros..."2,e no mérito requer a revogação dos provimentos 172, 175 e 177.3 Em juízo não exauriente, a decisão restabeleceu a faculdade de contratação dos atos e contratos resultantes da aplicação da lei 9.514/97 por instrumento particular, sem restrição, como prevê seu art. 38, reconhecendo o risco de dano iminente e de grave repercussão na economia e fundamentando-se em que a jurisprudência do STJ reconhece a liberdade de contratação de alienação fiduciária pelos diversos setores da economia, "sendo irrelevante que o referido bem não esteja vinculado ao sistema de financiamento imobiliário - SFI."4 Ao suspender os efeitos do provimento 172, a decisão reconhece que esse ato normativo "ao exigir dos demais agentes não enquadrados no SFI e no SFH que a formalização da avença ocorra exclusivamente por meio de escritura pública (...), em tese cria uma possível desvantagem competitiva entre agentes de mercado."  A par desses e outros aspectos, e ainda que se abstraia da análise do limite constitucional do poder regulamentador conferido ao CNJ pelo art. 103-B da Constituição Federal, a questão suscitada nos provimentos recomenda a revisitação dos fundamentos que justificam a liberdade de forma conferida pelo art. 38 da lei 9.514/97, em conformidade com o art. 108 do Código Civil, no contexto da reformulação legislativa dos mercados imobiliário, financeiro e de capitais promovida no final do século XX e início do século XXI, envolvendo fundamentalmente: O sistema do título e modo (CC, arts. 107, 108 e 1.227 e ss); O conteúdo necessário do contrato (lei 9.514/97, arts. 22 a 33); O controle da legalidade do contrato pela qualificação registral (lei 6.015/73); O teste da eficiência do Registro de Imóveis. 2. A segurança jurídica propiciada pelo instrumento particular no contexto do sistema do título e modo A compreensão da liberdade de forma conferida pelo art. 38 da lei 9.514/97 para contratação da alienação fiduciária de bens imóveis tem como ponto de partida a adequada interpretação do art. 108 do Código Civil.5 Embora excepcione a regra geral da liberdade de forma definida pelo art. 107 do Código Civil, o art. 108 admite a celebração negócios jurídicos de atribuição de direitos reais imobiliários por instrumento particular, desde que prevista em lei, com fundamento em que a segurança jurídica da constituição desses direitos é conferida pelo registro no Registro de Imóveis, e não pela forma, que pode ser pública ou particular, como dispõe o art. 1.227 do Código Civil: "os direitos reais sobre imóveis (...), só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis...".6 Essas regras, em conjunto, conformam o sistema denominado título e modo, pelo qual a atribuição desses direitos é desdobrada em duas etapas, a primeira representada pela formação de uma relação jurídica obrigacional em instrumento público ou particular (título), e a segunda caracterizada pelo registro desse título no Registro de Imóveis (modo), sendo esse o ato que investe o adquirente ou o credor no direito de propriedade do imóvel ou no direito de garantia real e, portanto, confere segurança jurídica compatível com a função dessa espécie de negócio jurídico. Esse conjunto de normas codificadas é replicado na lei 9.514/97 nos seus arts. 23 e 38. Assim, quanto ao título, o art. 38 permite a formalização do contrato por instrumento particular, como admitido pelo art. 108 do Código Civil, e, quanto ao modo, o art. 237 reproduz a disposição do art. 1.227 do Código Civil ao dispor que a propriedade fiduciária em garantia é constituída pelo registro da alienação fiduciária no Registro de Imóveis. Mas não é só. 3. A definição legal do conteúdo necessário do contrato como fator de equilíbrio da relação jurídica Além da permissão legal prevista no art. 108 do Código Civil, no caso específico da alienação fiduciária o legislador cuidou de definir o conteúdo necessário do contrato, visando padronizar os elementos essenciais da formação, execução e extinção do contrato, não permitindo amplo exercício da autonomia privada pelos contratantes. A padronização legal da alienação fiduciária em garantia estabelecida pelos arts. 22 a 33 da lei 9.514/97 a inclui entre os chamados "contratos dirigidos" ou "contratos ditados", nos quais, como observa Cláudia Lima Marques8, "a lei ou o regulamento pode 'ditar' o conteúdo de um determinado contrato", limitando o exercício da autonomia privada, de modo a impedir que o contratante mais forte imponha ao outro estipulações contratuais diversas daquelas pré-estipuladas pela lei. A padronização constitui, também, fator de eficiência dessa espécie de contrato, cuja entronização no direito positivo atendeu ao propósito de criar direito real de garantia capaz de lastrear títulos e outros instrumentos passíveis de ampla circulação nos mercados financeiro e de capitais. Além disso, a sujeição dos contratantes ao balizamento de um padrão legal opera como fator de equilíbrio e higidez do contrato e pode ser compreendida pelo seu caráter inovador na época de sua tipificação, bem como pela sua aplicação em larga escala no financiamento habitacional. Nesse caso, por merecer tutela especial, a alienação fiduciária é objeto de tratamento legal diferenciado em determinados aspectos, como é o caso da exoneração de responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante pelo pagamento do saldo devedor remanescente, caso, em procedimento de execução e excussão, o produto do leilão não seja suficiente para pagamento integral da dívida (art. 26-A e §§). Entre as disposições definidoras do conteúdo necessário da alienação fiduciária de imóveis, os arts. 24 a 27 da lei 9.514/97 exigem a observância de um prazo de carência pelo credor antes de iniciar as diligências de intimação do devedor para purgação de mora; a minuciosa explicitação dos critérios que autorizam a intimação por edital para purgação da mora; a concessão, ao devedor fiduciante, de prazo adicional para purgação da mora nos financiamentos habitacionais; a definição de valor mínimo do imóvel para oferta em leilão, tomando como referencial a avaliação imparcial realizada pela prefeitura para cálculo do ITBI em data próxima à do leilão; a preferência do devedor para recompra do imóvel até o segundo leilão pelo valor do saldo devedor; a exoneração da responsabilidade patrimonial do devedor fiduciante pelo saldo remanescente da dívida, nos financiamentos para moradia, caso não se apure no leilão quantia suficiente para resgate integral da dívida, entre outras disposições da lei que devem ser obrigatoriamente reproduzidas em cláusulas do contrato. Como se vê, a lei 9.514/97 predispõe inteiramente o conteúdo necessário das cláusulas do contrato de alienação fiduciária, desde sua formação, passando pela execução e extinção, normal ou forçada, numa configuração que, nas palavras de Arnaldo Rizzardo9 "chega muitas vezes, a determinar a própria minuta do contrato" visando assegurar o equilíbrio da relação contratual. 4. A evolução legislativa do art. 38 da lei 9.514/97. Do caráter restritivo à permissão ampla e irrestrita Uma vez que as disposições da lei 9.514/97 se conformam ao sistema do título e modo definido no Código Civil, e considerando, ademais, a definição legal do conteúdo necessário do contrato, a alienação fiduciária de bens imóveis vem sendo contratada por instrumento particular sem objeção desde que tipificada, exceto em cinco estados da federação que, contrapondo-se ao expresso texto do seu art. 38, restringem a forma particular às operações do SFI. A liberdade de forma prevista pelo art. 38 sem restrição é coerente com a secular tradição do direito brasileiro de dispensa de escritura pública para contratos de atribuição de direitos reais10,tendo sua redação passado por diversas alterações, desde a versão original que adotava caráter restritivo, à semelhança do que os provimentos 172, 175 e 177 vieram a adotar, até a atual liberdade de forma sem restrição. Na redação original da lei, no ano de 1997, a forma particular era restrita às operações em que o beneficiário final fosse pessoa física; em 2001 passou a ser admitida amplamente (MP 2.223/01); três anos depois voltou a ter caráter restritivo, somente sendo permitida para celebração dos contratos de compra e venda com alienação fiduciária, mútuo, arrendamento mercantil e cessão fiduciária (lei 10.941/04); e, finalmente, em 2004 consolidou-se a redação atual que confere ampla liberdade da forma particular para todos "os atos e contratos" referidos na lei 9.514/97 ou resultantes de sua aplicação (MP 221, convertida na lei 11.076/04). Como se vê, a liberdade de forma lançada em caráter restrito em 1997 e consolidada para aplicação irrestrita desde 2004 é fruto de prolongado processo de construção legislativa, no curso do qual o legislador colheu lições da sua aplicação prática e adequou a redação do art. 38 ao contexto institucional em que está inserido. De fato, a atual redação do art. 38 conforma-se ao amplo emprego desse contrato de garantia em todos os setores da economia, em articulação com os mais modernos instrumentos e mecanismos de financiamento do setor produtivo e de circulação do crédito, envolvendo atuação conjunta dos mercados imobiliário, financeiro e de capitais por meio de securitização de créditos imobiliários, emissão de CCI - Cédula de Crédito Imobiliário, CCB - Cédula de Crédito Bancário, CDA - Certificado de Depósito Agropecuário, WA - Warrant Agropecuário, entre outras operações usualmente formalizadas por instrumento particular, cartular, escritural ou eletrônica. É com a atenção voltada para esse vasto campo de aplicação que, ao explicitar as razões que justificam a contratação da alienação fiduciária pela forma particular em termos irrestritos, mesmo fora do âmbito do SFI, a exposição de motivos da MP 221/04 esclarece que a alteração dos arts. 22, § 1º, e 38 da lei 9.514/97 "visa tornar mais claros esses dispositivos legais, de modo a dar mais segurança nas relações jurídicas da construção civil."11 Assim, na medida em que a dinâmica da geração e circulação do crédito imobiliário na sociedade contemporânea torna indispensável a integração dos agentes econômicos de todos os setores da economia, e considerando que para esse fim o lastro imobiliário oriundo da atividade produtiva cumpre função relevante, resulta clara a necessidade de assegurar condições homogêneas de contratação de alienação fiduciária desde a origem do crédito, no setor produtivo, com observância dos padrões estabelecidos na lei 9.514/97, inclusive a formalização do contrato. Não se pode deixar de registrar que em todo esse trabalho de elaboração legislativa o legislador preservou o interesse do consumidor ao manter a forma particular para contratação da compra com financiamento e alienação fiduciária, em que são beneficiários os adquirentes, critério não adotado na edição dos provimentos 172, 175 e 177 ao exigirem escritura pública para as operações dos setores da incorporação imobiliária e do loteamento, além de criarem restrições a parte das operações do sistema financeiro.12 5. O controle da legalidade da escritura pública ou do instrumento particular pelo oficial do Registro de Imóveis Como é de conhecimento corrente, a observância dos requisitos de segurança jurídica dos contratos de atribuição de direitos reais imobiliários sujeita-se ao juízo de um agente estatal imparcial, o oficial do Registro de Imóveis, que, no caso específico da alienação fiduciária, haverá de aferir sua conformidade ao padrão legal estabelecido pelos arts. 22 a 33 da lei 9.514/97 mediante procedimento de qualificação registral, definido por Ricardo Dip13 como "juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império do seu registro ou de sua irregistração." Trata-se de  como um filtro que impede o assentamento de atos carregados de vício, como ensina Afrânio de Carvalho14, e no caso específico da alienação fiduciária de bens imóveis, qualquer que tenha sido a forma adotada, pública ou particular, o exame do teor do título é condicionado pelo conteúdo necessário do contrato definido na lei, só se efetivando o registro se o oficial do Registro de Imóveis constatar sua regularidade, "de forma a evitar que nele [no título] se aninhem germes de futuras demandas."15 Dado o rigor exigido pelo Código Civil, pela lei de Registros Públicos e pela lei 9.514/97 na aplicação dessas normas de ordem pública, percebe-se que no procedimento de qualificação registral a forma pública e a particular se equivalem, pois é "dever do registrador proceder ao exame exaustivo do título exibido, que seja uma escritura notarial, um título judicial, um contrato particular com ou sem força de escritura pública, um requerimento etc, sob pena de incorrer em responsabilidade", como salienta Flauzilino Araújo dos Santos.16 6. A eficiência do sistema do Registro de Imóveis O sistema assim estruturado confere segurança jurídica aos negócios jurídicos de atribuição de direitos reais imobiliários, e, particularmente em relação à contratação de alienação fiduciária de bens imóveis, opera com tal eficiência que não se tem notícia de ações judiciais de revisão ou anulação do contrato com fundamento em alegação de vício decorrente de sua celebração por instrumento particular, tanto que a justificativa da edição dos provimentos 172, 175 e 177 do CNJ não indica a existência de demandas versando sobre o tema. Esses requisitos legais de segurança jurídica vêm sendo colocados à prova há mais de vinte anos em mais de dez milhões de contratos, em relação aos quais a eficiência do sistema pode ser constatada desde a constituição do direito real pelo registro do contrato até sua extinção normal ou forçada, com a consequente reversão da propriedade plena ao devedor fiduciante ou sua consolidação no patrimônio do credor fiduciário. Observe-se que mesmo ao passar pelo crivo do Judiciário, em controvérsias suscitadas por devedores fiduciantes no contexto de execução do crédito fiduciário e realização da garantia, ainda assim as decisões judiciais têm reconhecido maciçamente a conformidade do procedimento ao padrão legal e o rigor no cumprimento das diligências pelo registrador, situação que foi objeto de pesquisa realizada pelo registrador Ivan Jacopetti do Lago no TRF da 3ª Região em 2017, na qual se constatou a improcedência de 94,07% das pretensões dos devedores, com fundamento em rigorosa observância dos requisitos do contrato de alienação fiduciária submetido ao procedimento de execução.17 7. Conclusão Essas breves considerações, embora não constituam novidade sobre o tema, evidenciam os riscos de desequilíbrio concorrencial causados pela restrição à contratação de alienação fiduciária de bens imóveis por instrumento particular imposta pelos provimentos 172, 175 e 177 da Corregedoria do CNJ, prudentemente estancados pela decisão liminar que suspendeu os efeitos dos provimentos e restaurou a igualdade de tratamento entre os agentes econômicos do mercado previsto pelo art. 38 da lei 9.514/97, até posterior apreciação do mérito. A par desse efeito imediato, a decisão liminar desperta a atenção para os fundamentos a serem suscitados na apreciação do mérito da questão, a partir da conformidade do art. 38 da lei 9.514/97 com o secular sistema do título e modo, pelo qual a segurança jurídica dos negócios jurídicos de atribuição de direitos reais imobiliários decorre do registro do título e não da forma (CC, arts. 107, 108 e 1.227 e ss). Para esse fim, são equivalentes a escritura pública e o instrumento particular, isto significando que uma escritura pública sem registro é tão insegura quanto um instrumento particular sem registro. Nesse contexto, a segurança jurídica e a estabilidade da relação contratual são comprovadas na prática há mais de vinte anos pela existência de mais de dez milhões de financiamentos com alienação fiduciária contratados por instrumento particular sem que haja notícia de litígios, o que é confirmado até mesmo pelo silêncio da justificativa dos provimentos 172 e 175 do CNJ em relação eventuais demandas versando sobre o tema. Ademais, a eficiência do controle da legalidade exercido pelo registrador mediante qualificação registral desde a constituição do direito real de garantia e de aquisição até a extinção forçada do contrato, confere segurança jurídica compatível com a função econômica e social da alienação fiduciária, demonstrando que "o sistema [de registro de imóveis] é tão mais seguro quanto o resultado das demandas acompanhe aquilo que, em sede administrativa, já foi estabelecido pelos registros." 18 Diante da conformidade do art. 38 da lei 9.514/97 com o art. 108 do Código Civil e com o sistema do título e modo, é imprescindível a manutenção do regime jurídico atual restabelecido pela decisão liminar do Corregedor Nacional não apenas em razão da sua coerência com a tradição do direito brasileiro em matéria de flexibilização da forma contratual para negócios jurídicos de atribuição de direitos reais imobiliários, mas também visando assegurar a continuidade de um sistema que tem se mostrado exemplar em sua função de garantir a estabilidade e a segurança jurídica no mercado imobiliário. _________ 1 Os Provimentos restringem a contratação por instrumento particular às entidades autorizadas a operar no SFI, incluindo: I - as cooperativas de crédito; e II - as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou do Bacen relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, além de outras exceções previstas em lei (administradoras de Consórcio de Imóveis - art. 45 da lei 11.795/08; entidades integrantes do SFH, etc.). 2 lei 13.874/2019: "Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: (...) VI - criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros." 3 Processo nº 0007122-54.2024.2.00.0000 da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça. 4 AgInt no AREsp n. 1.307.645/MS, AgInt no AREsp n. 1.470.388/SP, AgInt no REsp n. 1.630.139/MT, AgInt no AgRg no AREsp n. 772.722/PR, AgInt no AREsp n. 711.778/MS, REsp n. 1.542.275/MS, AgInt no Resp n. 1.530.556/MS. 5 Código Civil: "Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País." 6 Código Civil: "Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (...). Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis." 7 lei 9.514/1997: "Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título." 8 Marques, Cláudia Lima, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor - Artigo por artigo, comentário ao art. 54. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed., 2006, p. 801. 9 RIZZARDO, Arnaldo, Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 9. ed., 2009, p. 1.414 10 A dispensa de escritura pública para negócios de atribuição de direito real foi prevista pelo art. 134 do Código Civil de 1916 para o penhor agrícola, foi estendida aos compromissos de venda de lotes de terreno pelo Decreto-lei 58/1937 (arts. 11 e 18) e atualmente é autorizada pela lei 4.380/1964 para financiamentos do SFH de que são parte seus agentes financeiros, enquanto a lei 6.766/1979 considera o instrumento particular de compromisso de venda como título hábil para transmissão do domínio quando acompanhado do comprovante de quitação do preço e do pagamento do ITBI. 11 Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 221, de 1º/10/2004, que foi convertida na lei 11.076/2004. 12 No Pedido de Providências dirigido à Corregedoria do CNJ em que requer a revogação dos Provimentos, a AGU apresentou estudo sobre o impacto financeiro provocado pelos Provimentos nas operações de compra de um imóvel com alienação fiduciária na capital de São Paulo no valor de R$308.700,00, envolvendo ITBI, escritura pública e registro teria um custo de R$11.935,70 se formalizada por instrumento particular e de R$16.436,24 se formalizada por escritura pública. 13 DIP, Ricardo Henry Marques, Sobre a qualificação no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário n. 29, 1991. 14 CARVALHO, Afrânio de, Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 2. ed., 1977, p. 250. 15 RODRIGUES, Marcelo, Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. São Paulo: Jus Podium, 5. ed., 2023, p. 694. Diz o autor: "Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela legislação, pelo exame e verificação de seus requisitos de validade extrínsecos, independentemente de sua origem, sejam títulos públicos, particulares ou judiciais. Situa-se como um verdadeiro poder-dever do delegado do registro público, a quem cabe zelar, em primeiro momento, pela regularidade do serviço de forma a evitar que nele se aninhem germes de futuras demandas." 16 SANTOS, Flauzilino Araújo dos, Princípio da legalidade e Registro de Imóveis. São Paulo: Revista de Direito Imobiliário, nº 60, Ano 29, já-jun/2006, p, 322. 17 LAGO, Ivan Jacopetti, A segurança jurídica gerada pelo registro e os tribunais: análise da experiência brasileira recente na execução extrajudicial da alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. Revista de Direito Imobiliário, ano 42, v. 87, jul-dez 2019, São Paulo: Revista dos Tribunais-Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, p. 455-475. Diz o autor: "se a segurança jurídica significa certeza e previsibilidade, então o sistema [de registro de imóveis] é tão mais seguro quanto o resultado das demandas acompanhe aquilo que, em sede administrativa, já foi estabelecido pelos registros 18 LAGO, Ivan Jacopetti, A segurança jurídica ..., cit.
Introdução O direito imobiliário tem passado por processos de modernização que buscam dar maior eficiência aos negócios jurídicos envolvendo direitos reais. Essa transformação passa pela segurança com a publicidade dos negócios jurídicos entabulados. Tem-se observado, nessa seara, um movimento legislativo que busca garantir que os atos jurídicos tenham acesso aos Registros Públicos. Desta forma, o objetivo deste artigo é tratar das principais alterações legislativas que culminaram na possibilidade de acesso ao fólio registral de outros títulos, além dos indicados no inciso II do art. 167 da lei 6.015/77 ("LRP"- lei de registros públicos de registros públicos), bem como na flexibilização da qualificação registral do registrador. Contextualização da Atividade Registral A atividade registral imobiliária é considerada um serviço público, por meio do qual o registrador recebe a delegação do Estado, nos termos do art. 236 da CF/88. Conforme disposto no art. 3º da lei 8.935/94, o registrador é um agente público que exerce funções estatais de natureza administrativa, com o objetivo de assegurar segurança jurídica para a atividade notarial e de registro. Tais atividades são fiscalizadas pelo Poder Judiciário, nos termos do parágrafo 1º do art. 236 da CF/88. A Constituição Federal estabelece em seu art. 22, inciso XXV, que a competência para legislar sobre a matéria de registros públicos é privativa da União e, neste sentido, tal matéria é regulamentada principalmente, mas não só, pela LRP.  A legislação federal, estadual e outros atos legislativos e administrativos, por meio do CNJ e das Corregedorias Estaduais de Justiça, possuem efeito suplementar, uma vez que as normas gerais que regem a disciplina e responsabilidade dos registradores estão estabelecidas na LRP, como legislação de alcance nacional. Modernização Os negócios imobiliários se tornaram cada vez mais complexos ao longo dos anos; esta evolução foi acompanhada de perto de um processo significativo de modernização no sistema registral, impulsionado pela evolução tecnológica e pelas novas demandas do mercado. Para tanto, foi de suma importância que a LRP passasse por revisões e adaptações, assegurando que o sistema registral acompanhasse essas transformações, proporcionando a desburocratização de novos negócios imobiliários. As alterações na LRP foram necessárias para garantir que as práticas de registro pudessem atender de forma eficaz às exigências de um mercado imobiliário cada vez mais dinâmico.  O marco desta nova era registral ocorreu com a promulgação da lei 13.097/15, que consolidou a concentração dos atos na matrícula, vinculada principalmente ao instituto da publicidade registral imobiliária, constituída para assegurar a eficácia da produção dos efeitos à situação jurídica do imóvel perante terceiros.  No entanto, o sistema registral precisava de ainda mais adequações para garantir que o registro estivesse alinhado com a realidade fática do imóvel, seja para o acesso às informações pelo mercado e pelo público geral (entendimento que é reforçado pela criação da Certidão de Situação Jurídica do Imóvel pela lei do SERP, que incluiu o §9º do art. 19 da lei 6015/73), seja pela maior autonomia na retificação de atos de ofício pelo registrador ou pela flexibilização do registro pelos demais operadores de Direito. Além das alterações mencionadas acima, vivenciou-se um movimento de modernização procedimental a partir da pandemia da Covid-19. Em razão da necessidade de afastamento social, a atividade notarial e de registro progrediu consideravelmente, haja vista que os cartórios se viram compelidos a aceitar os atos eletrônicos e adequar seus sistemas internos para o trâmite de pedidos de forma digital e remota. Alterações Legislativas A lei 14.382/22 trouxe algumas novidades legislativas significativas para a LRP. Neste contexto, destaca-se a inclusão do §15º no art. 176, que permite ao registrador flexibilizar alguns elementos de especialidade objetiva e subjetiva para proceder à abertura da matrícula, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel. O princípio de especialidade objetiva refere-se à identificação e descrição do imóvel na matrícula imobiliária, com especificidades para imóveis urbanos e rurais, de acordo com o exposto no art. 176, §1º, inciso II, número 3, da LRP (vide julgado do TJ/SP na apelação cível 1000517-11.2017.8.26.0125). Por outro lado, o princípio da especialidade subjetiva está relacionado à forma correta e completa da qualificação dos agentes das operações que são objeto do registro, ou seja, refere-se à titularidade do imóvel, abrangendo tanto pessoas físicas quanto jurídicas. A lei 14.382 incluiu o §17º no art. 176 da LRP, o qual flexibilizou a qualificação registral para registro de títulos, indicando que os elementos da especialidade objetiva e/ou subjetiva, aqueles indicados no inciso II, do art. 176 da LRP, que não alterarem elementos essenciais do ato ou negócio jurídico praticado, quando não constantes do título ou do acervo de vontade, poderão ser complementados por outros documentos ou por declarações dos proprietários e interessados (quando se tratar de manifestações de vontade), sob sua responsabilidade. Tais alterações trazem impactos significativos no mercado imobiliário, considerando que diversos negócios jurídicos imobiliários não eram oponíveis contra terceiros, pois o registro era obstado por exigências formuladas para complementações de informações e correções do título. Com a inclusão do §17º do inciso II do art. 213 da LRP, passou a ser possível que as informações não constantes nos títulos que não sejam consideradas como elementos essenciais sejam complementadas por documentos e declarações firmadas pelas partes interessadas. Da mesma forma, a inserção do §15º do inciso II do art. 213 da LRP viabilizou a abertura de matrículas de imóveis cujas descrições nas transcrições são precárias (sem todas as especificações expostas no art. 176 da LRP), sem exigir previamente as retificações das descrições das áreas.  Adicionalmente, a lei 14.382 corroborou a interpretação de que o rol dos atos de averbação indicados no inciso II do art. 213 da LRP tem natureza exemplificativa. Diante da inserção do art. 246, que permite ao registrador praticar outros atos de averbação além daqueles indicados no rol, houve reforço ao entendimento da natureza não taxativa do dispositivo legal. Posteriormente, o objetivo de flexibilização registral foi expandido para aumentar os títulos que têm acesso ao fólio registral e, consequentemente, são passíveis de atos de registro, com a promulgação da lei 14.711/23 ("Marco Legal das Garantias").  A expansão interpretativa se deu a partir da inclusão do item 48 no inciso I do art. 167 da LRP, o qual possibilita o registro de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico. O que se extrai de tal alteração é que o título apresentado não precisa corresponder estritamente à literalidade das hipóteses elencadas no inciso I do art. 167 da LRP. Permite-se, por exemplo, o registro de cláusula de vigência de arrendamento, tokens oriundos de smart contracts, compra e venda com cláusula de permuta (Debs, Martha El. O Novo Marco das Garantias: Aspectos Práticos e Teóricos da Lei 14.711/23. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 543-545) etc. Todavia, as condições essenciais do negócio precisam estar explícitas, de forma que não gerem dúvidas com relação ao direito real que está constituído e às partes envolvidas. Ademais, essa inclusão legislativa não alterou a tipicidade dos direitos reais, mas validou a flexibilização de atos registráveis no Cartório de Imóveis, facilitando a transmissão da propriedade ou a instituição de direitos reais. É livre a criação de contratos atípicos pelas partes, embora essa mesma amplitude de liberdade não exista para a criação de direitos reais atípicos. Não obstante ao exposto acima, a flexibilização autorizada pelos dispositivos legais mencionados dependerá da avaliação prévia do oficial de registro de imóveis, que observará os elementos da especialidade objetiva e subjetiva essenciais (Gomide, Alexandre Junqueira. Sistema eletrônico de registro públicos: Lei 14.382, de 27/6/22 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 323).  Sob esse aspecto, é importante salientar o papel fundamental do registro de imóveis para assegurar a publicidade das situações jurídicas relativas a bens imóveis, sejam eventos de âmbito real ou pessoal. Cria-se um sistema sólido e eficiente de registro e divulgação das informações de negócios jurídicos, contribuindo principalmente para a segurança jurídica e a celeridade nos serviços do sistema registral brasileiro (Brandelli, Leonardo. Registro de Imóveis: Eficácia Material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 114-116). Conclusão A segurança da publicidade registral está atrelada à qualificação registral a partir de um juízo lógico e crítico realizado pelo registrador para verificar se o título apresentado está em conformidade com o direito e, a partir de uma decisão fundamentada, determinar a prática dos atos de registro ou averbação, observando todos os elementos previstos em lei. Assim, a função qualificadora está diretamente relacionada à aplicação do direito e, consequentemente, à sua interpretação. O sistema registral e a legislação não podem ser reféns de conceitos e estigmas do passado: Devem evoluir de acordo com os interesses da sociedade atual e das novas dinâmicas do mercado, a fim de proporcionar adaptabilidade à nova realidade. Desse modo, as alterações introduzidas pelas respectivas leis asseguraram aspectos mais permissivos aos registradores para desburocratização e simplificação de acesso para novos negócios imobiliários no âmbito do sistema registral. Assim, vale destacar a importância do papel do oficial de registro de imóveis acerca da qualificação da vontade e formalização dos atos e negócios jurídicos que se pretende praticar, tendo em vista que essa atuação busque garantir a eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de conflitos.
No dia 08/11/24 o Banco Central colocou para consulta pública duas propostas de regulação para o mercado de ativos virtuais com o objetivo1 de buscar mais informações e opiniões para propostas de regulamentação. A proposta deResolução estabelece diretrizes específicas para determinados ativos digitais, mas exclui de seu escopo, os ativos projetados sob a forma de tokens não fungíveis (NFTs), os instrumentos financeiros tokenizados, como ativos financeiros e valores mobiliários, e os bens móveis ou imóveis submetidos a processos de tokenização, mesmo quando concebidos com fins de investimento. Ainda assim, com a exclusão do processo de tokenização de imóveis, a atenção do mercado imobiliário é válida diante do panorama desenhado pelas resoluções. Este artigo não busca esgotar o tema, tampouco adentrar propriamente dito na análise de artigo por artigo das propostas das resoluções, mas sim fomentar reflexões sobre os obstáculos e oportunidades que a regulamentação de ativos virtuais da CVM pode representar. Além disso, objetiva alertar o mercado para a importância de se engajar nas discussões regulatórias e analisar as implicações práticas que essa nova estrutura normativa pode trazer para os setores imobiliário e tecnológico. Papel regulamentador da CVM Cumprindo seu papel regulamentador trazido na lei 6.385/76, a CVM traz à tona consulta para manifestações do público em geral, consulta a fim de assegurar um ambiente juridicamente seguro, garantir a solidez, a eficiência e o regular funcionamento das sociedades prestadoras de serviços de ativos virtuais e demais instituições integrantes do mercado de ativos virtuais, além de dispor sobre aspectos relacionados aos riscos e às vulnerabilidades identificadas nesse mercado. A consulta pública 109/2024 propõe regulamentar os serviços de ativos virtuais previstos no art. 5º da lei 14.478/22, abordando a constituição e funcionamento das sociedades prestadoras desses serviços e definindo as instituições autorizadas pelo Banco Central para operá-los, além das tarifas aplicáveis. A proposta ainda classifica essas sociedades em três modalidades: intermediárias, que negociam e distribuem ativos virtuais; custodiantes, responsáveis pela guarda dos ativos; e corretoras, que acumulam as funções de intermediação e custódia.2 A consulta pública 110/243 apresenta proposta de regulação a partir de processos de autorização para o funcionamento de sociedades corretoras de câmbio, corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários, além das prestadoras de serviços de ativos virtuais. Entre os principais pontos abordados estão: (1) a unificação e atualização das regras de autorização para atuação no mercado de ativos virtuais por diferentes segmentos, visando maior clareza e segurança regulatória; (2) a inclusão de requisitos mínimos de capacidade financeira, técnica e operacional para funcionamento das entidades, bem como critérios para seus administradores e controladores; e (3) o ordenamento das condições de entrada e saída do mercado regulado. Nesse contexto, emerge o questionamento sobre os impactos que a presente regulamentação proposta pode gerar na crescente prática da tokenização imobiliária, uma inovação que vem ganhando destaque no Brasil. Trata-se de uma atividade que alia tecnologia blockchain ao mercado imobiliário, proporcionando novas possibilidades de negócios e investimentos, mas que também traz desafios regulatórios significativos. Ativos virtuais e operações imobiliárias Quanto aativos virtuais o conceito é demasiadamente amplo que vai além de uma mera conjectura de uma moeda virtual. Conforme definido pela FATF (Financial Action Task Force), ativo virtual é uma representação digital de valor que pode ser transferida ou transacionada eletronicamente, sendo utilizada como meio de pagamento ou para fins de investimento. Pode-se dizer que ativo virtual é gênero do qual moedas virtuais (bitcoin, alt-coins e as stablecoins) e os NFT (non-fungible tokens) são espécies. Para a Resolução derivada da consulta pública 109/24, ativo virtual4 é a representação digital de valor que pode ser negociado ou transferida por meios eletrônicos, a exemplo de sistema baseado na tecnologia dos registros distribuídos (DLT - Distributed Ledger Technolagy) ou similar e que pode ser utilizada para realização de pagamentos ou com o propósito de investimento, conforme o art. 3º da lei 14.478/22. Para efeitos da resolução, a tokenização de ativos5 é o processo de transformação da representação de um instrumento ou ativo qualquer em token no formato digital, com a realização de seu registro em sistema baseado na tecnologia de registros distribuídos ou similar, com a possível incorporação de outros elementos característicos de ativos virtuais. A tokenização imobiliária abrange diversas características de negócio, funcionando mais como um gênero do que uma espécie propriamente dita, dado que há diferentes modelos de negócios associados bens imóveis.Exemplos incluem tokens para prestadores de serviços como construtores, arquitetos, engenheiros e corretores como remuneração do trabalho desenvolvido no imóvel; ou tokens de pagamento projetados para facilitar transações financeiras com referência no mercado imobiliário vinculado ao mercado secundário; ou tokens atrelados à locação de imóveis, que distribuem rendimentos proporcionais aos investidores; e tokens de pagamento vinculados a operações imobiliárias, como garantias em contratos de compra e venda, assim como outros modelos de negócios. Embora à primeira vista a proposta de resolução exclua determinados casos de sua aplicabilidade, o debate pode permanecer e, eventualmente, se intensificar. Isso porque, caso um modelo de negócio específico não seja claramente identificado como não abrangido pela exclusão da resolução, poderá ser automaticamente enquadrado como ativo virtual regulado, gerando incertezas, sanções e ainda mais conflitos no âmbito da CVM. A regulação dos ativos virtuais e o entendimento sobre valores mobiliários No atual contexto, quando se fala de regulação dos mercados de valores, o objetivo não é eliminar os riscos inerentes aos investimentos, como aqueles relacionados ao desempenho do capital investido, que depende diretamente dos resultados financeiros das empresas. A regulação busca, na verdade, mitigar os riscos decorrentes de falhas de mercado, prevenindo e reprimindo comportamentos ilícitos, obrigando os emissores a divulgar todas as informações relevantes e combatendo o uso de informações privilegiadas.6 O fortalecimento da regulação no mercado de capitais é hoje, mais essencial do que nunca, especialmente em um cenário de globalização e avanços tecnológicos que tornam a economia cada vez mais complexa. Ao estabelecer as "regras do jogo", a regulação contribui para a estabilidade do mercado, tornando-o mais confiável e seguro para os investidores. Essa segurança não apenas incentiva a participação nas operações de compra e venda de valores mobiliários, mas também reduz custos de transação e de acesso à informação, criando um ambiente mais eficiente. Como resultado, há um aumento no capital circulante, favorecendo o crescimento econômico das empresas que operam nesse mercado e, consequentemente, impulsionando o desenvolvimento econômico do país. No Brasil, a delimitação legal sobre "valor imobiliário" experimentou significativo alargamento desde a promulgação da lei 3875/76, modificando de concepção nas últimas décadas, quando a lei 10.198/01 no seu art. 1º introduz no direito brasileiro uma definição abrangente, "títulos ou contratos de investimentos coletivos, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros." Aplicando-se oHowey Test7, devemos analisar os 4 requisitos para saber se o token deve ser considerado como um valor mobiliário. Os elementos são: 1) Oferta Publica; 2) Aquisição em pecúnia ou através qualquer bem com valor econômico; 3) Expectativa de Lucro; 4) o ganho econômico seja resultado de esforço de terceiro ou do investido. No parecer de orientação 40/22, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários discorreu um pouco mais sobre o requisito "esforço de empreendedor ou de terceiro", que pode ser considerado presente quando, a título de exemplo, "a criação, aprimoramento, operação ou promoção do empreendimento dependam da atuação do promotor ou de terceiros"8 Dessa forma, podemos idealizar que os tokens lastreados em bens imóveis negociados publicamente, por meio da rede mundial de computadores, adquiridos em pecúnia com expectativa de lucro, em função de um ganho econômico fruto de esforço de empreendedor oudeterceiroé considerado como valor mobiliário. O fato de a proposta de resolução excluir os bens imóveis objeto de processos de tokenização não afasta a natureza jurídica de ativo virtual e, possivelmente ser considerado como valor mobiliário caso possua os elementos do Howey Test. Interpretação da CVM sobre a tokenização Em 2022 diversos projetos ligados ao setor de tokens9 enfrentaram stop orders emitidos pela entidade reguladora, sob a alegação de serem confundidos com valores mobiliários que deveriam estar sob sua regulamentação e supervisão. A ausência de uma regulamentação específica para o mercado de tokens tem dificultado sua expansão e crescimento, pois muitos projetos acabam sendo interrompidos ou barrados pela Comissão de Valores Mobiliários, criando incertezas e obstáculos para empreendedores e investidores do setor. Após diversos casos e debates na entidade, a decisão de um token ser ou não um valor mobiliário acaba se tornando dividida. Enquanto alguns diretores entendem que esses ativos devem ser enquadrados como valores mobiliários, por exercer um papel central e preponderante para o sucesso do negócio e, consequentemente para a valorização do token, devendo submeter-se à regulamentação da CVM10; outros defendem que sua classificação deve considerar as características e funcionalidades específicas do token, respeitando a natureza inovadora do mercado e buscando evitar barreiras desnecessárias ao desenvolvimento tecnológico.11 Caso a caso a CVM vem interpretando os diversos modelos metodológicos que vem se aplicado no mercado, e rotineiramente necessita emitir circular a fim de trazer clareza12 de que determinadas modalidades de investimento em direitos creditórios podem se caracterizar como valores mobiliários. O que se percebe é que a ausência de legislação específica gera insegurança jurídica, agravada pelo posicionamento da CVM de que a caracterização de um ativo como valor mobiliário não depende de sua manifestação prévia.13 Assim, enquanto não houver regulamentação clara para a tokenização de ativos, os riscos tanto para o adquirente, que pode investir sem acesso às informações exigidas em ofertas públicas, quanto para o emissor, que pode enfrentar sanções pela ausência de registro prévio na CVM permanecem. Conclusão Embora a consulta pública exclua, de forma imediata, os bens imóveis objeto de tokenização de sua aplicabilidade, percebe-se um indício de que a CVM reconhece a necessidade de regulamentações específicas para esses ativos no futuro. Essa exclusão, ao invés de afastar a supervisão regulatória, destaca as particularidades jurídicas e econômicas inerentes à tokenização imobiliária, sinalizando um possível caminho para uma regulamentação progressiva e mais detalhada, que leve em conta as especificidades desse mercado emergente. Essa atenção torna-se ainda mais relevante à medida que conceitos e diretrizes começam a ser delineados no mercado, com estruturações em fase inicial que podem moldar a regulamentação futura de ativos digitais. A tokenização de bens imóveis, assim como o uso de NFTs nesse contexto, encontra-se em um estágio embrionário, mas sua crescente relevância no mercado aponta para a necessidade de um acompanhamento mais próximo e eventual formalização normativa. É fundamental monitorar as movimentações regulatórias, pois elas poderão impactar diretamente os modelos de negócios relacionados à tokenização. A ausência de regulamentação específica atualmente não significa que esses ativos estejam isentos de supervisão no longo prazo, mas sim que a CVM e outras entidades reguladoras reconhecem a complexidade do tema e a importância de abordagens que combinem inovação tecnológica, desenvolvimento e segurança jurídica para o mercado. ________ 1 Disponivel aqui. 2 "Virtual asset" as a digital representationofvaluethatcanbedigitallytradedortransferredandcanbeused for paymentorinvestmentpurposes. FATF - Financial Action Task Force. Guidance for a Risk-Based Approach to Virtual Assetsand Virtual Asset Service Providers. 2019. p. 13. - Disponivel aqui. 3 Disponivel aqui. 4 Art. 2º inciso II da Proposta de Resolução da Consulta Publica 109/2024 da CVM.  Proposta de regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais (PSAVs) 5 Art. 2º inciso XX da Proposta de Resolução da Consulta Publica 109/2024 da CVM. Proposta de regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais (PSAVs) 6 JAKOBI, F.; RIBEIRO, G. A regulação do mercado de capitais no Brasil: perspectivas e desafios. 2014, p. 99. 7 Conheça mais sobre o Howey Test: Dispoível aqui. 8 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Parecer de Orientação CVM 40, de 11 de outubro de 2022. Os CriptoAtivos e o Mercado de Valores Mobiliários. São Paulo, 2022, p. 09. 9  Disponível aqui. 10 Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Processo Administrativo CVM 19957.014289/2022-97. Disponível aqui. Acesso em: 15/11/2024 11 Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Parecer Técnico SSE 60/2023-CVM/SSE/GSEC-1. Processo Administrativo CVM 19957.014289/2022-97. Disponível aqui. Acesso em: 16/11/2024. 12 Disponivel aqui. 13 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Ofício-Circular no 4/2023/CVM/SSE, de 04 de abril de 2023. Caracterização dos "tokens de recebíveis" ou "tokens de renda fixa" como valores mobiliários. São Paulo, 2023, p. 2.
1. A figura do antecipatory breach no ordenamento jurídico brasileiro A figura da quebra antecipada do contrato nasce no direito inglês, berço da common law, tendo sido posteriormente importada para o direito norte americano. Este instituto, apesar de não positivado no Brasil, não é novo no ordenamento jurídico nacional. Segundo Judith Martins-Costa1, o inadimplemento antecipado não é um terceiro gênero de inadimplemento, mas sim espécie inserida dentro do inadimplemento definitivo. Afirma a eminente autora que, embora já presente na doutrina desde a década de 50, o primeiro caso que se tem notícia em que aplicado o conceito, ainda que não com esta nomenclatura, foi em 1983, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Naquele julgado2 o tribunal gaúcho entendeu pela rescisão de contratos em conta de participação firmados pelos subscritores de quotas, em razão da ausência de providências relativas a centro médico hospitalar na construção de um hospital, antes mesmo de encerrado o prazo contratual para tanto. A doutrina passou a conceber a ideia do inadimplemento antecipado quando desenvolvidos melhores estudos sobre o instituto da boa-fé e seus desdobramentos em critérios objetivos e subjetivos, conforme ressalta a autora. Desde então, passou-se a entender que a prática de atos ou declarações contrárias ao efetivo cumprimento do contrato violava o comportamento previsto na atuação em boa-fé. Desta forma, conclui a autora que, nos sistemas jurídicos em que admitida a figura do inadimplemento antecipado passou-se a exigir a presença de alguns requisitos obrigatórios para sua configuração. São eles: (i) inadimplemento caracterizado como grave violação do contrato, possibilitando a resolução por justa causa; (ii) a certeza de que o cumprimento não se dará no vencimento, e; (iii) uma conduta culposa pelo devedor, seja por declaração de que não irá cumprir a avença, seja por sua inércia nos atos prévios necessários ao cumprimento. O primeiro requisito diz respeito ao ato caracterizador do descumprimento em si. Isto é, o descumprimento contratual alardeado deve ser atinente a uma obrigação principal, e não acessória, ou secundária, cujo não cumprimento não afetaria o objeto principal do contrato. No que se refere à certeza de inadimplemento, esta não pode ser confundida com a alta probabilidade de incumprimento, pois, se assim o for, não está preenchido o segundo requisito necessário. Não pode haver dúvidas de que não será possível o cumprimento da avença na data aprazada. Quanto à conduta culposa do devedor, esta pode se dar pela confissão de que não cumprirá a avença, bem como por comportamento ou ausência de comportamento que  possa levar à conclusão de que os atos necessários ao adimplemento não serão atendidos. Nesta esteira, há recente discussão jurisprudencial acerca do enquadramento do instituto da quebra antecipada de contrato para as hipóteses em que o adquirente de unidade imobiliária com garantia de alienação fiduciária, isto é, o devedor fiduciante, pleiteia judicialmente a ruptura do contrato de alienação fiduciária em garantia e a devolução dos valores pagos, antes de sua constituição em mora. O tema tem sido trazido à tona em razão da ausência de previsão na lei 9.514/97 para casos em que o fiduciante, antes de inadimplir o pagamento da parcela, pleiteia a resolução do contrato. A lei 9.514/97 dispõe em seu art. 26, e seguintes, o passo a passo do procedimento extrajudicial a ser seguido para a execução da dívida garantida pela alienação fiduciária de bem imóvel. O cerne da controvérsia reside no caput do art. 26, o qual dispõe o seguinte - em recente nova redação: "vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituídos em mora o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante, será consolidada, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.." O STJ, ao julgar o tema 1.095, em outubro de 2022, fixou tese em reconhecimento à preponderância dos procedimentos de execução previstos na lei 9.514/97 sobre o Código de Defesa do Consumidor. Os debates travados entre os ministros no julgamento do caso, contudo, deixaram claro que a concordância quanto aos termos jurídicos e às expressões específicas utilizadas na delimitação da tese revelava a divergência que havia entre os julgadores em outra questão periférica. A íntegra do voto condutor do ministro relator, Marco Buzzi, e a declaração de voto vogal pela ministra Nancy Andrighi, demonstraram o desentendimento de ambos os magistrados quanto à questão relativa à quebra antecipada do contrato. Enquanto o Relator se apegou à literalidade da redação do artigo 26 antes mencionado, a Ministra Nancy suscitou a larga aceitação no nosso ordenamento jurídico da figura da quebra antecipada do contrato. A fim de ilustrar a divergência de entendimentos, vale transcrever o entendimento dos Ministros acerca do tema. Neste sentido, o voto do ministro relator: "Do mesmo modo, não há como prevalecer o ditame especial da lei 9.514/97 quando inexistir inadimplemento do devedor ou embora existente, não tenha o adquirente sido constituído em mora nos exatos termos do procedimento especial estabelecido nos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97. Isso porque, o regramento especial estabelece, como requisitos mínimos para a sua deflagração, dívida "vencida e não paga, no todo ou em parte" E constituição em mora do fiduciante. Na falta de qualquer desses requisitos, não se afigura aplicável o procedimento especial de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária pelo ditame da lei 9.514/97." Em contrapartida, o voto-vogal da Ministra Nancy Andrighi assim dispõe: "37. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, regra geral prevendo o mecanismo do vencimento antecipado do contrato. No entanto, a aplicação do instituto é admitida pela jurisprudência (REsp n. 309.626/RJ, 4ª turma, DJ de 20/8/01; REsp n. 1.792.003/SP, 3ª turma, DJe de 21/6/21) e pela doutrina, "em analogia com a modelagem da exceptio non adimpleti contractus e, de modo especial, da exceção de inseguridade (art. 477), uma ou outra devendo ser, conforme o caso, conectada com o princípio da boa-fé objetiva (art. 422)" (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo CC: do inadimplemento das obrigações. Vol. V. Tomo II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 244). (...) 39. Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. 40. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados." Para analisar o instituto do antecipatory breach sob a ótica dos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis, faz-se mister averiguar o seu conceito e prática no mercado, além dos precedentes nacionais para, enfim, entender os desdobramentos e efeitos não mapeados de uma distorção do instituto legal. Clique aqui par ler a íntegra da coluna. ________ 1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 682. 2 Contrato de participação, assegurando benefícios vinculados a construção de hospital, com compromisso de completa e gratuita assistência médico-hospitalar. O centro médico hospitalar de porto alegre ltda não tomou a mínima providência para construir o prometido hospital, e as promessas ficaram no plano das miragens; assim, ofende todos os princípios de comutatividade contratual pretender que os subscritores de quotas estejam adstritos a integralização de tais quotas, sob pena de protesto dos títulos. Procedência da ação de rescisão de contratos em conta de participação. (Apelação Cível, 582000378, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Athos Gusmão Carneiro, Julgado em: 08-02-1983).
Desde que a CN - Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ expediu os provimentos 172 e 175, ambos de 2024, que tratam da obrigatoriedade do uso da escritura pública para a instrumentalização de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis1, temos visto uma avalanche de argumentos tanto favoráveis quanto contrários a essa orientação. Nesse contexto, recentemente foi publicado um artigo da lavra dos renomados professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar no site Consultor Jurídico2, instigados por um artigo do igualmente culto André Abelha, no site Migalhas3, no qual defendem a interpretação do CN-CNJ quanto ao uso da escritura pública. Independentemente dos diversos argumentos que possam ser apresentados para se defender uma ou outra posição4, o que chama a atenção na argumentação do primeiro texto, e sobre o qual este artigo se debruça, é a sugestão de que o uso do instrumento particular em negócios de alienação fiduciária de bens imóveis estaria associado à informalidade e à insegurança jurídica.   Inicialmente, ressalvo a irrestrita concordância com os autores no sentido de que eventual economia financeira não deveria ser o mote principal a induzir alterações no direito positivo, sob pena de fragilizar a estabilidade das relações sociais, esta sim, o objetivo primordial do Direito. No entanto, os primeiros autores parecem incorrer em contradição ao discutir os custos relacionados ao uso do instrumento particular nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. Um exemplo disso é hipótese levantada de que os procedimentos de certificação e arquivamento dos instrumentos particulares poderiam, na prática, ser mais complexos e, portanto, mais onerosos do que a lavratura de uma escritura pública. Inclusive, tal argumento parece não fazer sentido já que a certificação e arquivamento são procedimentos intrínsecos à lavratura de escrituras públicas, ou seja, como parte do processo poderia ser mais custosa que o processo completo? Assim, ainda que se concorde com a premissa de que a eficiência econômica não deveria ser único motivo a induzir alterações legislativas, por coerência, a incidência ou não de emolumentos jamais deveria orientar alterações interpretativas da própria lei. Nesse ponto, portanto, não parece haver divergências. Baseando-se, então, em premissas desvinculadas de custos financeiros, o fato é que, apesar de a decisão do CN-CNJ ter origem na controvérsia gerada pela interpretação do art. 38 da lei 9.514/987 pela Corregedoria de Justiça de Minas Gerais (acompanhada por outras quatro corregedorias estaduais), as demais vinte e duas Corregedorias Estaduais de Justiça mantinham uma interpretação consolidada, permitindo o uso do instrumento particular, independentemente das partes envolvidas. Essa interpretação permitiu a celebração de milhares de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis por instrumento particular ao longo dos anos, sem que se tenha notícia de que essa prática tenha gerado controvérsias jurídicas relevantes. Neste aspecto, vale lembrar que, assim como a norma posta (fonte primaria), os usos e costumes são igualmente fontes de Direito, ainda que acessórias5, caracterizadas pela observância reiterada de certas regras (ou interpretação dessas regras, como neste caso), consolidadas pelo tempo e revestidas de autoridade. A simples observância do que de fato ocorreu nesses vinte e dois Estados, com o uso do instrumento particular por mais de duas décadas, fornece uma ideia valiosa sobre o que a prática nos ensina em termos de segurança jurídica. A afirmação dos autores, com a qual concordo plenamente, de que "a prática mostra que o vigente regime jurídico das alienações fiduciárias de imóveis tem garantido a um só passo o fomento do mercado imobiliário e a segurança jurídica dos seus agentes" e que "não faz sentido - menos ainda com base em ilações de ordem econômica - alterar um sistema que vem desempenhando eficazmente sua função", reforça a justamente a valorização do uso do instrumento particular, em vez da escritura pública nas Alienações Fiduciárias de bens imóveis.  A segurança jurídica não é um conceito abstrato, mas concreto.  A lei de Introdução às normas do direito brasileiro (Decreto-lei 4.657/42) em seu art. 20 estabelece que as decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial, com base em valores jurídicos abstratos, deverão considerar as consequências práticas da decisão. Atribuir ao uso do instrumento particular a pecha da insegurança jurídica tampouco condiz com o sistema jurídico vigente. A instrumentalização do negócio jurídico pode ocorrer de forma solene ou não.  Negócios jurídicos solenes são aqueles que devem obedecer à uma forma prescrita em lei para se aperfeiçoarem, enquanto os não solenes podem seguir uma forma livre6.  A regra vigente em nosso ordenamento jurídico é que os negócios jurídicos não dependem de forma especial como requisito de validade (art. 107 do CC); ou seja, a forma livre é a regra, e o formalismo, como exceção, depende de previsão expressa em lei.  Seguindo a regra prevista em nosso sistema, inúmeros negócios jurídicos são celebrados diariamente por instrumento particular, revestidos de plena validade e eficácia, sem que se cogite de insegurança jurídica. No âmbito das transações envolvendo ativos imobiliários, podemos citar contratos de locação, arrendamento, parceria, comodato, compra e venda, built to suit, entre outros. Associar o uso do instrumento particular à insegurança jurídica, como equivocadamente sugerem os autores, contraria o sistema jurídico brasileiro e, pior, a própria realidade da vida vivida.  Não se ignora que o art. 108 (antigo 134, II) do CC impõe a escritura pública como requisito de validade para negócios jurídicos que versem sobre constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Entretanto, o art. 108 é claro ao permitir exceções a essa regra, desde que previstas em lei. Ou seja, a norma é uma exceção que admite exceção.  Aqueles que defendem o uso do instrumento particular na alienação de imóveis, interpretam o art. 38 da lei 9514/97 como a exceção prevista no art. 108. Já os que entendem o contrário, não veem na redação do art. 38 tal permissivo. Independentemente da linha interpretativa adotada, não é razoável, à luz do sistema jurídico brasileiro, fazer qualquer ilação generalizada que associe o uso do instrumento particular na formalização de negócios jurídicos a uma suposta insegurança jurídica. Sob a perspectiva jurídica teórica, podem existir argumentos para aqueles que defendem o uso da escritura pública nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. No entanto, a segurança jurídica das partes envolvidas definitivamente não está entre esses argumentos. _______ 1 O instrumento particular seria privativo das entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), incluindo: I - as cooperativas de crédito; e II - as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou do Bacen relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, além de outras exceções previstas em lei (administradoras de Consórcio de Imóveis - art. 45 da lei 11.795/08; entidades integrantes do SFH, etc.). 2 Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: falácia da economia pela informalidade. 3 Disponível aqui.  4 Neste aspecto sugiro vivamente o acesso ao IbradimCast #77 - "Alienação Fiduciária por instrumento público ou particular: os Provimentos 172 e 175 do CNJ", em que rendo louvores à exposição tanto do querido e culto Alexandre Kassama, quanto do nobre e, não menos querido, mestre Melhim Challub. 5 "São consideradas fontes formais do direito a lei, a analogia, o costume e os princípios gerais de direito (arts. 4º da LINDB e 140 do CPC); e não formais a doutrina e a jurisprudência." CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 53). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 6 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 391). Editora Saraiva. Edição do Kindle.
Não obstante os profundos debates e atualizações experimentadas pela lei de alienação fiduciária de bens imóveis nos últimos anos - a lei  9.514/97, atual força motriz do crédito imobiliário que institui o regime de alienação fiduciária de imóveis - ainda há espaço para dúvidas e situações que impactam sobremaneira a etapa da retomada e leilões extrajudiciais de imóveis, em razão de lacunas no texto legal. A lei 9.514/97 gera questionamentos práticos quanto à responsabilidade pelo pagamento de débitos de IPTU e taxas condominiais (denominados aqui como "encargos do imóvel") de moradores em diversos casos, em alguns deles inclusive aguardando pronunciamento do STJ1. Abordaremos neste artigo, os possíveis endereçamentos da responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel na hipótese de arrematação de imóvel em primeira praça, sob  as perspectivas de advogada e leiloeiro especialistas no tema. A referida lei estabelece que o valor de primeira praça é o valor de avaliação do imóvel atribuído pelas partes à época da celebração do respectivo contrato e atualizado conforme critério contratual2. Porém, tanto a lei quanto a maioria dos contratos não fornecem maiores elementos quanto à responsabilidade pelo pagamento dos encargos dos imóveis se o arremate ocorrer em primeira praça:  seria a responsabilidade por tal pagamento do fiduciário, do fiduciante ou do arrematante? Por outro lado, a regra para a composição do cálculo do lance mínimo em segunda praça está expressamente prevista no art. 27, parágrafo 3º, da lei 9.514/143, a qual prevê a inclusão dos encargos do imóvel na composição do lance mínimo para o segundo leilão e, consequentemente, liquidados em decorrência da arrematação. A questão prática, objeto do presente artigo, surge especialmente quando o valor da primeira praça é inferior ao da segunda praça - evento não raro nos leilões da lei 9.514/97. A lei em comento, ao estabelecer expressamente que os encargos do imóvel estão incluídos apenas no valor de segunda praça, carecendo, portanto, de previsão expressa sobre quem seria o ator responsável pelo pagamento dos encargos do imóvel na primeira praça, sugere uma aparente lacuna legal com consequências nebulosas do lado prático. Vejamos as hipóteses de quem seria o responsável pelo pagamento dos encargos do imóvel em primeira praça: (i) Arrematante? Afinal, tratam-se de débitos propter rem e consequentemente, serão de responsabilidade do novo proprietário, por exemplo, à luz do art. 1.345 do CC4, devendo o edital, a pedido do fiduciário/comitente expressamente solicitar ao leiloeiro fazer constar a responsabilidade ao arrematante, a despeito de a lei 9.514/97 não dispor sobre o tema. Em relação a esta possibilidade, recentemente a 1ª Seção do STJ fixou a seguinte tese sob o rito dos recursos repetitivos (Resp 1.914.902), aplicável quando o arremate ocorre em hasta pública via processo judicial: "Diante do disposto no art. 130, parágrafo único do CTN, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação". Portanto, o STJ, ratificando o teor do art. 130, parágrafo único do CTN e o posicionamento de que a arrematação é forma de aquisição originária de propriedade, notadamente quanto aos débitos de IPTU e de condomínio, consolida segurança jurídica ao instituto ao desonerar o arrematante dos débitos de IPTU, ainda que o "edital" seja omisso ou que atribua ao arrematante tal responsabilidade. Por outro lado, há que se ponderar se a decisão do STJ alcançaria também os leilões extrajudiciais e, portanto, tornaria inválida disposição editalícia que atribua ao arrematante o pagamento do IPTU do imóvel, caso o valor do lanço não seja suficiente para suportá-lo. Em qualquer caso, a nosso ver, há que se considerar que, se o cerne do instituto da arrematação é se constituir de uma forma de aquisição originária de propriedade em relação aos encargos do imóvel, segundo a própria e vasta jurisprudência do STJ sobre o tema, é plausível que os efeitos desta decisão alcancem também os leilões extrajudiciais. Por outro lado, e apenas para ilustrar a complexidade do tema para o próprio Judiciário, e não obstante o entendimento do STJ, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo entende que a aquisição por meio de arrematação em leilão é considerada derivada, pois não se sobrepõe, por exemplo, a princípios registrais5. Outro aspecto que não pode ser negligenciado é o impacto comercial da atribuição da responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel, pois, a depender do valor do bem em primeira praça, o acréscimo destas dívidas ao arrematante pode significar a inviabilidade financeira da aquisição pelo mercado, ou seja, transferir débitos ao arrematante pode significar a inviabilidade da venda do bem. (ii) Sub-rogação no lanço: na linha do que decidiu recentemente o STJ, retro citado, teríamos o mesmo cenário na arrematação extrajudicial, ou seja, em princípio, o bem seria transferido livre desses débitos ao arrematante, conforme previsto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), e no art. 908, parágrafo primeiro, do CPC, aplicáveis às expropriações. A sub-rogação desses débitos no valor do lance poderia ocorrer automaticamente com a respectiva absorção dos valores pendentes de pagamento e o saldo do lanço, se restar algum, seria absorvido pela credora. Contudo, se o resultado arrecadado em 1ª praça for insuficiente para liquidar toda dívida dos encargos do imóvel, a fiduciária, ainda assim, estaria obrigada a outorgar a quitação ao fiduciante prevista no art. 26 e seguintes da lei 9.514/97, bem como transferir o imóvel arrematado via escritura de venda e compra? (iii) Devedor fiduciante: os contratos e a lei 9.514/97 preveem que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos do imóvel é do fiduciante, notadamente pelo senso de que os respectivos fatos geradores remontam ao período da posse, uso e gozo do imóvel. Frise-se, inclusive, que este tema também está em análise pelo STJ6. Pois bem, se em última instância recaírem sobre o arrematante ou fiduciária os pagamentos de encargos do imóvel em decorrência do inadimplemento do fiduciante, seria àqueles possível pleito de ressarcimento em face do fiduciante pelos montantes dos encargos do imóvel, ou tal possibilidade estaria apenas ao alcance do arrematante, pois a fiduciária esbarraria na quitação obrigatória e na vedação de cobrança de saldo, ao menos nos financiamentos residenciais, nos termos do art. 26-A, parágrafo 4o da lei 9.514/97? A nosso ver, não nos parece descabida interpretar que a quitação obrigatória acima mencionada não abrangeria - e nem poderia abranger - o dever contratual do fiduciante sobre os débitos propter rem, pois tal quitação, nos termos dos artigos da lei. 9.514/97 que a mencionam, são literais abrangendo apenas dívida, isto é, o saldo contratual do financiamento pertencente ao fiduciário. Assim, parece-nos que a quitação prevista na lei está limitada ao saldo contratual da operação de financiamento, excluídos os débitos propter rem desse escopo, a uma, por literalidade dos artigos que definem o objeto da quitação obrigatória, que é justamente a dívida, que não se confunde com os encargos do imóvel e segundo, porque a fiduciária não tem legitimidade para dar quitação por valores que ela própria não é a credora e, por isso, não lhe pertencem, afigurando-se a possibilidade do devido reembolso perante o fiduciante. Por tudo exposto, resta  evidente a lacuna legal, tornando-se imperativo uma revisão normativa ou um entendimento jurisprudencial mais assertivo  acerca da responsabilidade pelo pagamento dos encargos de um imóvel arrematado em primeira praça. A dúvida sobre quem deve assumir tais despesas pode não apenas fomentar litígios, mas também abalar a confiança no mercado imobiliário, especialmente no delicado cenário das alienações fiduciárias. Nesse contexto, é fundamental que os legisladores e o Poder Judiciário atuem de forma proativa para sanar essa lacuna jurídica. Uma possível solução seria alteração da lei 9.514/97 que regulamente de maneira clara e inequívoca a responsabilidade pelo pagamento dos encargos em casos de arrematação em primeira praça. Alternativamente, os tribunais superiores poderiam emitir uma súmula vinculante ou enunciado sobre o tema, proporcionando uma orientação uniforme para todos os juízos do país. Tais medidas não apenas trariam segurança jurídica para as partes envolvidas, mas também contribuiriam para a eficiência e celeridade dos processos de execução, reduzindo o volume de recursos e contestações relacionados a essa questão. Ademais, uma definição precisa sobre a responsabilidade pelos encargos do imóvel poderia estimular a participação de mais interessados nos leilões, potencialmente resultando em melhores ofertas e beneficiando tanto credores quanto devedores. ________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:(...) VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; 3 Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei.  (...) § 3º Para os fins do disposto neste artigo, entende-se por: I - dívida: o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data do leilão, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais;  II - despesas: a soma das importâncias correspondentes aos encargos e às custas de intimação e daquelas necessárias à realização do leilão público, compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro;  III - encargos do imóvel: os prêmios de seguro e os encargos legais, inclusive tributos e contribuições condominiais.  4 Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios. 5 APELAÇÃO CÍVEL 1006103-56.2023.8.26.0048, São Paulo, 1º de março de 2024, Relator FRANCISCO LOUREIRO, Corregedor Geral da Justiça 6 Disponível aqui.
Nem sempre os imóveis destinados às operações da empresa são, apenas, galpões, escritórios ou lojas; podem ser necessários, também, imóveis destinados à residência, como é o caso de apartamentos que são locados para que neles resida um diretor ou, por exemplo, para estabelecer por algum tempo um engenheiro que tocará obra distante de seu domicílio.  São situações a cada dia mais usuais e a lei das locações delas cuidou (art. 55, da lei 8.245/91), classificando tais locações como "não residenciais", ou seja, dando maior relevância ao contratante (a locatária empresa) e à destinação especialmente determinada do que à natureza do imóvel (residencial).  Inserir a locação dentre os ativos da empresa locatária tem como consequência prática gozar, essa relação contratual, das liberdades que a própria lei confere às locações não residenciais, amplitude cuja tendência é aumentar, mercê do saudável liberalismo que parece nortear a atual legislação e os melhores projetos de lei em trâmite.  Abram-se parênteses para anotar que a liberdade de contratar existe, e concretiza os princípios da autonomia da vontade e da livre iniciativa e, quanto às locações não residenciais mostrou Fabio Ulhôa Coelho que "a liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim, a competição empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de redução dos preços e aumento da qualidade de produtos" (COELHO, 2014)1, citação que se fez tradicional.  Interessaria em acréscimo, lembrar das modificações não formalizadas, porém operadas. Não é somente através de novos pactos escritos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais e que expressam além da liberdade de contratar o que lhes convier, a liberdade de contratar da maneira que lhes for conveniente, no caso, sem escrever. É a singela aplicação da teoria da confiança, derivada da boa-fé objetiva, legalmente obrigatória.  Pensa-se que tal seria aplicável se alteradas condições do ajuste locatício também no que tange ao aspecto ora em foco, até por aplicação do Código Civil, cujo artigo 421-A, faz presumir "paritários e simétricos" os "contratos civis e empresariais", certeza a ser lida diante do artigo 113, buscando-se quanto "II - corresponder aos usos, costumes e prática do mercado relativas ao tipo de negócio", "III - corresponder à boa fé", aferível bem além da férrea e quiçá enganada literalidade; "V - corresponder a qual seria a razoável negociação [...] inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes [...]".  Pois bem. Essa previsão - tratar-se, nessa hipótese, de locação não residencial - foi inovadora (nada existia a respeito na lei anterior), traduzindo (como quase a totalidade da lei de 1.991) o estágio maduro da interpretação jurisprudencial. O entendimento então mais atualizado dos tribunais foi para o texto da lei.  (...) a proteção concedida pela Lei 6.649/1979 à locação residencial teve em mira atender à necessidade social de moradias. Esta inexiste quando é pessoa jurídica que figura como locatária, mesmo que o prédio se destine à moradia de um diretor. É que, no caso, a moradia desse diretor se integra entre os elementos com que a empresa conta para sua atividade, que não é residencial. [...]2.  Como se vê, o artigo 55 estampou a compreensão judicial, coerente com a expressada pelos atores do setor e aplaudida pela doutrina, é o que se colhe na obra do sempre importante professor Gildo dos Santos: "[...] O que avulta, no caso, é o fato de a empresa, no seu interesse, oferecer moradia àqueles que são seus colaboradores (sócios, diretores, empregados), do que decorre, nitidamente, que não se trata de locação residencial propriamente dita. [...]" (SANTOS, 2009).3  O professor de sempre, Sylvio Capanema de Souza, seguiu a mesma linha dizendo que "A lista, entretanto, não é exaustiva, e sim exemplificativa. O que importa é que a pessoa jurídica tenha alugado o imóvel para servir de residência a alguém ligado às suas atividades ou objetivos, pagando o respectivo aluguel (SOUZA, 2012)4.  Mas, deve ser observada a posição contrária ao entendimento majoritário, do inesquecível Juiz Francisco Carlos Rocha de Barros:  Sempre marchamos com os que pensavam em sentido contrário, defendendo a natureza residencial dessa locação e argumentando: a) a destinação da locação é que importa, e não a personalidade jurídica do locatário; b) apesar dos objetivos sociais da empresa locatária, a utilização do imóvel sempre será para fim residencial; c) o déficit habitacional é que justifica proteção à locação residencial - ainda que a locatária seja pessoa jurídica, quem vai residir no imóvel será a pessoa física, justamente por causa desse déficit. Está presente um interesse empresarial sem dúvida, mas a locação atende a uma necessidade habitacional. Some-se, ainda, que seria absurdo chamar de não residencial uma locação que, pela natureza do imóvel, inadmitisse outra utilização que não fosse a residencial [...]5.  Na realidade, a natureza do prédio é preservada, mas o tratamento deste contrato de locação é determinado com especificidade pela Lei, exatamente para contemplar o desenvolvimento empresarial, não lhe impedir a consecução, nem tampouco afrontar a evidência de que aquele ativo está destinado para o uso previsto pela empresa, em favor de seu objeto.  Tal se afigura imune a dúvidas, a ponto de tais locações poderem embasar ação renovatória, exclusivas das locações de imóveis destinados ao comércio, à indústria e às sociedades civis com fins lucrativos (art. 51, "caput" e parágrafo 4º, da lei das locações) - jamais nos casos das locações residenciais. No relato da Ministra Nancy Andrighi,  "O cabimento da ação renovatória não está adstrito ao imóvel para onde converge a clientela, mas se irradia para todos os imóveis locados com o fim de promover o pleno desenvolvimento da atividade empresarial, porque, ao fim e ao cabo, contribuem para a manutenção ou crescimento da clientela"6.  Nada diferente do que ocorreria com qualquer bem: uma geladeira pode servir para a guarda de alimentos na casa de uma família, ou ter a mesma função direta no refeitório de uma fábrica. O mesmo objeto terá em cada situação um tratamento jurídico distinto: lá, até a proteção como bem de família; aqui, um ativo fixo sujeito a determinações da empresa, a amortizações, penhorável. Mais uma daquelas situações em que o "ser" cede, de certa forma, à "razão de ser".  Mais: é palpável que diversos contratos integrem o ativo empresarial, que não haverá de ser composto somente por prédios e máquinas: é o caso dos contratos de franquia, dos contratos de locação (em pontos comerciais privilegiados ou não), dos contratos de propaganda, de comodato etc. Todos eles estão voltados ao atingimento do fim empresarial, todos eles contribuem para a valorização (ou, conforme o caso, desvalorização) do estabelecimento e da empresa.  E é isso que decorre da compreensão atual do "estabelecimento comercial", definido pelo Código Civil da seguinte forma no art.1.142, destacando-se o seu didático parágrafo único: "Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária." § 1º O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual.". A coerência com a previsão da lei das locações é absoluta, como se vê.  Nessa lógica, colhe-se na doutrina de Tokars, retratando concepção torrencial, que:  Neste contexto, surgiu a conclusão doutrinária de que os contratos podem ser considerados como parte integrante do estabelecimento empresarial, desde que se mostrem necessários ao desenvolvimento da atividade, como ocorre, classicamente, com os contratos de franquia, de aluguel, de fornecimento ou de distribuição, entre tantos outros que podem ser mencionados. Como em determinados casos, em certas relações jurídicas a conexão econômica com o fundo de comércio (estabelecimento) é intrínseca, tais contratos seguem, forçadamente, o destino do estabelecimento comercial.7       Ou, na lição de Marcelo Andrade Féres:  "No estabelecimento, de fato, além de outros elementos, podem figurar as mercadorias, o mobiliário ou as instalações, o nome empresarial, as invenções, os modelos de utilidades, os desenhos industriais, as marcas, os imóveis, o ponto empresarial e os nomes de domínio. Dessa maneira, concorrem para a composição do estabelecimento bens corpóreos e incorpóreos, móveis e imóveis. Não há qualquer restrição prévia. Tudo depende da sorte da empresa a que se destinam os bens."8  Desde que pontuamos acerca do estabelecimento, cumprirá concluir lembrando que a sua alienação ou transferência importará "a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento" (artigo 1.148, do Código Civil), vale dizer, o conjunto de contratos o integra, é item do ativo empresarial. Sobre esse dispositivo, ensinou Marcus Elidius Michelli de Almeida:  A dúvida que poderia existir era se os contratos continuavam a valer após a realização do negócio envolvendo o estabelecimento. Agora não cabe mais margem a qualquer discussão, uma vez que a norma é expressa em determinar que a transferência do estabelecimento importa na sub-rogação por parte do adquirente aos contratos já existentes, desde que relativos à exploração do próprio estabelecimento e que não seja de caráter pessoal.9  Ou seja, o aspecto legal da locação integra-se a todo o sistema legal pertinente (exatamente como há de ser, sabe-se) e a lei garante a relevância do intento de uso (e do contratante) sobre a característica (residencial) direta ou física do bem, e assegura estar o direito do locatário decorrente desta determinada locação, integrado ao ativo empresarial.  Estamos, enfim, diante de uma daquelas situações em que o "ser" cede, em certa medida, à "razão de ser", nada de novo para os filósofos: "Uma espada nunca matou ninguém; é apenas uma ferramenta nas mãos do assassino", disse Sêneca (4 AEC/65 DEC) na Roma antiga.  Ou, para que não nos iludamos ao ver uma residência e possamos, portanto, e concretamente, enxergar um item do estabelecimento e da empresa (a realidade), vem a sempre romântica lembrança de que "O essencial é invisível aos olhos" (Antoine de Saint- Exupéry - 1.900/1.944). Também no mundo dos contratos... __________ 1 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - direito de empresa. 1.v. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90.  2 2º TACivSP - Ap. 247.217 - 7ª Câmara - Relator Boris Kauffmann, julg. 14.02.1989. 3 SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. 7ª ed. rev., ampl. e atual. com as alterações da Lei 12.112/2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 390. 4 SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8ª ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2.012, p. 240. 5 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1.997, p. 346. 6 STJ - 3ª Turma, RESP 1790074, relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 25/06/2.019, ementa. A ação objetivava um imóvel locado para a instalação de uma estação de rádio base ("antena"). 7 TOKARS, Fábio. Estabelecimento Empresarial. São Paulo: LTr, 2.006, p. 174. 8 Verbete "estabelecimento"; Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo IV (recurso eletrônico): direito comercial / coords. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018. 9 PRUX, Oscar Ivan; ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de; HENTZ, Luiz Antonio Soares. Comentários ao Código Civil Brasileiro. Volume X: da sociedade, do estabelecimento e dos institutos complementares. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 281.
A aquisição imobiliária, comumente, passa por diversas etapas negociais e envolve vários intermediários. Entre as várias possibilidades, é comum que uma pessoa, física ou jurídica, queria firmar um contrato forte, obrigando de forma irretratável a contraparte a vender o imóvel, porém com a faculdade de poder, posteriormente e de forma unilateral, confirmar se será ela quem adquirirá o bem, ou se será um terceiro por ela indicado. Esse terceiro pode ser uma pessoa jurídica ainda não constituída, um fundo de investimento, o adquirente ao qual o bem a ser reformado será destinado. O relevante é que, na hipótese narrada, a parte deseja ter a faculdade de decidir, posteriormente, quem ficará com o bem, sendo que, se vier a ser indicando um terceiro, ela não quer ter de arcar com custos tributários ou memos cartorários afetos à aquisição de direitos sobre o imóvel. Para tanto, o CC permite a clausulação da "reserva da pessoa a declarar". Preceitua o CC, em seu art. 467: "No momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as obrigações dele decorrentes". O dispositivo em comento institui a possibilidade de, ao ser firmado um contrato, ser previsto o direito de uma parte, no prazo determinado que for previsto no instrumento, designar outra pessoa para assumir a posição contratual. Esse direito, de eleição ou declaração futura do contratante final, é uma faculdade, a qual nasce de um negócio bilateral que, após constituído, concede ao titular uma posição de potestatividade. A declaração pode ou não ser feita, sem que o outro contratante original possa de qualquer modo se opor, dado que, para o posterior ato de eleição, sua vontade não será relevante. Em si, o ato de eleição, isto é, o ato de exercício do direito potestativo de escolha de parte contratante, é um ato unilateral, com efeito ex tunc, receptício e, quanto à causa, independente ou abstrato. Diz-se unilateral, porque adentra ao mundo jurídico pela vontade única da parte que detém o direito de nomear o terceiro. Tem efeito ex tunc, porque, uma vez eleito o terceiro, este assume o contrato como se houvesse a este aderido na data da contratação original, conforme expressamente previsto no art. 469 do CC ("Art. 469. A pessoa, nomeada de conformidade com os artigos antecedentes, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, a partir do momento em que este foi celebrado). Dada a retroação de efeitos, não existe qualquer transferência ou cessão de direitos entre a parte nomeante e a parte nomeada ao contrato (existe, isso sim, a "colocação" da parte no contrato). O ato é receptício, porque somente se aperfeiçoa, a colocação do contratante, quando a eleição é comunicada à contraparte. O ato é independente ou abstrato, porque, para o contrato em questão, é absolutamente irrelevante a causa da eleição; O motivo fático ou jurídico que leva uma pessoa a nomear outra não é elemento do ato de eleição. Isto não significa inexistir uma causa ou outro contrato subjacente para a eleição ocorrer, mas que, para o ordenamento civil, a causa da nomeação não é elemento principal ou acidental do negócio jurídico em que ingressará o indicado. Por outro lado, é evidente que o ato de eleição é "unilateral" e "potestativo" em relação ao contrato original e à contraparte deste. O eleito não se torna parte da relação negocial pelo simples fato da eleição, mas pela conjunção da eleição feita pelo outro e por sua aceitação. O ato de aceitação da eleição pelo terceiro não é disciplinado no CC, o que permite que a aceitação seja tácita (ex., após a indicação da eleição, o aderente solicita a entrega das chaves do apartamento adquirido, ou realiza o pagamento do preço devido). Como, na realidade negocial, a cláusula do contratante a declarar é aposta em instrumentos preliminares, a aceitação da eleição, pelo terceiro, no mais das vezes, será expressa quando for celebrado o contrato definitivo, ao qual se apresentará o eleito como parte original. Evidentemente, a eleição não gera qualquer transferência de direitos ou obrigações (decorrentes do contrato com pessoa a declarar) entre o nomeante e o nomeado, dado que não existe uma sucessão de direitos entre estes - repisando-se, o art. 467 do CC prevê a pessoa eleita "deve adquirir os direitos e assumir as obrigações (...) decorrentes (do próprio contrato)". O que há é uma relação contratual original e nova, formada diretamente entre a contraparte e o nomeado. Vale frisar, a cláusula da pessoa a declarar não desnatura o contrato. Segundo doutrina de Cario Mario: "O contrato já está formado. Nele fica, todavia, consignado que um dos contratantes reserva-se a faculdade de indicar a pessoa que adquirirá, em momento futuro, os direitos e assumirá as obrigações respectivas (electio amici). As partes contratantes estão definidas e identificadas. O que resta é vir a pessoa designada ocupar o lugar de sujeito da relação jurídica assim criada (CC, art. 467). (...) Desdobra-se, desta sorte, o contrato em duas fases. Numa primeira, o estipulante comparece em caráter provisório, permanecendo a avença entre um contratante certo, e outro, meramente indicado, porém dependente de aceitação. Numa segunda, o nomeado passa a ser o dominus negotii. (...) Segundo a dogmática italiana, que o Código adotou por modelo, o contrato por pessoa a indicar é um negócio jurídico válido, dotado de obrigatoriedade. Se o nomeado aceita na forma e nas condições estabelecidas nos arts. 468 e 469, adquire os direitos e assume as obrigações. Substitui, portanto, quem o designou na titularidade das relações jurídicas." (SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003, 206-A. Contrato com pessoa a declarar) Ao se adentrar na leitura do CC Italiano, fonte da disciplina nacional, observa-se que a literalidade da norma é elucidativa. O codex italiano disiplina a "Reserva de Nomeação de Contratante" em seus arts. 1.401 a 1.405. Ao que pertinente, assim é previsto: Art. 1401. (Riserva di nomina del contraente). Nel  momento  della  conclusione  del  contratto  una  parte puo 'riservarsi la facolta' di nominare  successivamente  la  persona  che deve acquistare i  diritti  e  assumere  gli  obblighi  nascenti  dal contratto stesso. Conforme consta do citado art. 1.401, a pessoa nomeada adquire as obrigações "nascentes do próprio contrato". Em seguida, o diploma estabelece a retroação de efeitos (igualmente ao feito pelo codex nacional, em seu art 469): Art. 1404. (Effetti della dichiarazione di nomina). Quando la dichiarazione di nomina e' stata  validamente  fatta,  la persona nominata acquista i diritti e assume gli  obblighi  derivanti dal contratto con effetto dal momento in cui questo fu stipulato. Porque o contratante declarado adquire direitos e assume obrigações do próprio contrato com efeito no momento em que o contrato foi estipulado, não é tecnicamente possível se falar em cessão de contrato. A pessoa que indicou desaparece da relação e esta é tido como existente, desde o início, apenas entre a contraparte e a pessoa eleita. Por isso, após a indicação e aceitação da pessoa a declarar, eventual anulabilidade arguível pela parte que reservara o direito de declarar restará afastada. Do dito, já se observa que em nada se iguala a eleição do contratante à cessão de contrato. A cessão é um negócio jurídico próprio, que em não elimina a relação contratual existente entre as partes originais. Na cessão, existe a transferência de direitos e obrigações de uma parte de dado contrato a um terceiro, que não fazia parte do contrato original. Essa parte não é "colocada" no contrato como contratante original. Daí que os vícios de consentimento do cedente no contrato original poderão tornar ineficaz a cessão sequente, o que não se dá de forma correspondente no contrato que passa a existir entre o eleito e a contraparte. A cessão tem efeitos ex nunc, sem retroação alguma. De forma técnica e sistêmica, o legislador italiano disciplinou, logo após o instituto do "Reserva de Nomeação de Contratante", a chamada "Cessão de Contrato", em seus arts. 1.406 a 1.410, para dispor que, neste instituto, existe propriamente uma cessão de direitos e obrigações, dependente de um novo acordo entre as partes e sem eficácia retroativa: Art. 1406. (Nozione). Ciascuna  parte  puo'  sostituire  a  se'  un  terzo  nei  rapporti derivanti da un contratto con prestazioni  corrispettive,  se  queste non sono state ancora eseguite, purche' l'altra parte vi consenta. O CC brasileiro não prevê, em caráter geral, a cessão de polo contratual. Segundo doutrina, "cessão de contrato é o negócio jurídico que tem por objetivo a transferência por uma das partes (cedente) a um terceiro (cessionário), com a anuência da outra parte (cedido), da posição contratual" (Cabral, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987). A jurisprudência determina que, na falta de maior regramento, aplicam-se, à cessão de contrato, onde couber, os dispositivos da cessão de crédito (art. 286 a art. 298) e da assunção de dívidas (art. 299 a 303). O requisito da anuência é uma característica prevista no direito comparado e empossado pela doutrina e jurisprudência em geral; aqui, porém, advoga-se não ser ela regra absoluta, dado que, na hipótese em que o cedido não guarde mais qualquer pretensão, não fará sentido a exigência dela. Nesse sentido, a recente lei 14.711/23, introduziu no CC a disciplina do "agente de garantia", sendo que, no §3º do art. 853-A é previsto que a substituição deste agente é feita de forma unilateral pela parte credora da garantia, sem necessidade de qualquer anuência do devedor e do garantidor. Nesse ponto, ao que mais útil, ao entender deste autor, pode-se definir que cessão de contrato é o negócio jurídico bilateral, pelo qual uma parte cede a um terceiro os direitos e obrigações decorrentes de um contrato, cuja eficácia (da cessão) dependerá da anuência da contraparte, na hipótese em que esta tenha pretensão exercível em relação à parte cedente. Retomando ao ponto central deste artigo, ao passo que o ato de eleição da pessoa contratante não acarreta transmissão de diretos ou obrigações do contrato, mas a formação de um novo contrato entre duas partes, na cessão contratual o que ocorre é justamente a transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa a outra, ou seja, coexistem o contrato original e o contrato de cessão. Na seara imobiliária, a legislação esparsa prevê a cessão de contratos imobiliários (ex., art. 26 da lei 6.766/79; art. 32, a, da lei 4.591/64), não havendo uma linha de texto legal que altere o pensamento sistêmico de que a natureza jurídica da cessão de direitos (ou de contrato) é de negócio jurídico bilateral (ou trilateral, quando necessária a anuência do cedido) e autônomo em relação ao crédito ou contrato cedido; a cessão não retroage, valendo a partir de quando realizada. Da inexistência de fato gerador tributário no ato de eleição do contratante (na compra e venda de imóveis) A distinção entre "ato unilateral de eleição" e "contrato de cessão", retro observada, é fundamental para se analisar a incidência tributária nos negócios imobiliários em que haja pessoa a declarar. Assim prevê a CF/88: Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre: (...) II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; Deste ponto em diante, não se tratará da análise do fato gerador tributário da transmissão de direitos reais ou da cessão de direitos aquisitos de direitos reais. Isto é, ao se pensar, exemplificativamente, numa compra e venda de imóvel, não se analisará o tributo incidente em decorrência da compra e venda em si. O objeto de análise é o ato de eleição do contratante. Ou seja, se há um compromisso de compra e venda (e considere-se que este esteja registrado na matrícula do imóvel), no momento em que é exercido o direito de nomeação do terceiro, existe transferência de direito real ou cessão de direito aquisitivo sobre imóveis? E, havendo transferência ou cessão de direito, seria este passível de tributação? Com base tão apenas no já exposto, já se para na primeira pergunta, que se responde, evidentemente, de forma negativa. Como visto, o ato de eleição é unilateral e somente tem o efeito de criar um novo e original contrato entre a parte declarara e a contraparte. Não existe qualquer cessão de direitos entre o nomeante e o nomeado referentes ao compromisso de compra e venda. Não é demais lembrar que os conceitos de transmissão e cessão, afetos ao direito tributário, são necessariamente os definidos no direito civil. De modo sucinto, tem-se que, na CF/88, em seu art. 146, é determinado que "Cabe à lei complementar: (...) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes". A referida lei federal com status de norma complementar é o CTN que, em seu art. 100, determina: "A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela CF/88, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias". Em outros termos, uma vez que, no âmbito civil, já resta definido que o ato de eleição não envolve cessão de direito algum, resolvida está a questão tributária posta: Não há transmissão de direito real ou cessão de direito aquisitivo no ato de eleição, logo, não há, neste momento, fato gerador tributário. No mais, não existe no CTN qualquer referência a possibilidade de tributação em razão de um ato de designação de parte contratante. Também não se conhece nenhuma lei municipal que dê amparo a outro pensamento. Sem pretender analisar cada legislação local, tendo como referência a legislação municipal do município de SP, resta evidente inexistir quaisquer dos elementos que permitiriam a configuração do fato gerador. A lei municipal 11.154/91, em seu art. 2º, lista o rol de negócios jurídicos aptos a ensejar a incidência tributária; Todos, demandam transmissão de direito real ou cessão de diretivo aquisitivo. O art. 6º define quem são os contribuintes, os quais são invariavelmente quem adquire ou cede direito real ou de aquisição de imóvel. E o art. 7º define que a base de cálculo é o valor venal do bem. Ora, ao se pensar na escolha do terceiro contratante, não há transmissão ou cessão de direito (pois há novo contrato), não há transmitente ou adquirente de direito real ou aquisitivo (pois somente se indica quem irá contratar com outrem) e não há valor venal algum no ato da indicação (dada sua abstração). Em avanço, vale mencionar. Embora o tema seja pouco explorado na doutrina e na jurisprudência nacionais, relevante julgado, na Itália, também definiu, mutatis mutantis, que não se observa cabível o imposto na compra e venda em decorrência do ato de eleição da parte contratante: Intitolazione: Elusione fiscale - Imposta di registro - Preliminare di compravendita immobiliare per persona da nominare - Promissario acquirente società immobiliare - Al definitivo designato acquirente il legale rappresentante della società in proprio - Successiva vendita da questi a terzi con restituzione alla società della caparra dalla stessa versata- Indizi di elusività - Insufficienza (Collegati Giurisprudenza - Sentenza del 05/06/15 65 - Comm. Trib. II grado di Bolzano Sezione/Collegio 2. Evidentemente que fraudes e abusos podem ocorrer de modo a desnaturalizar a nomeação de terceiro. Contudo, toda norma é passível de violação e não é isso que desnaturará a norma em si. A reserva do terceiro a declarar é instituto de gigante aplicabilidade prática e enseja maior inteligência aos negócios jurídicos. Finalmente, é de se frisar, o instituto em comento permite que, embora no compromisso de compra e venda conste determinada pessoa como promitente adquirente, por ocasião da escritura definitiva outra apareça como compradora, sem que se avente em qualquer cessão. Em mesma sorte, uma promessa de compra e venda registrada em nome de determinada pessoa poderá ser sucedida por uma escritura de compra e venda definitiva em nome de outrem, sem necessidade de qualquer instrumento de cessão ou averbação correspondente. Em situações como tal, é dever do oficial imobiliário, se instado a registrar uma promessa de compra e venda com cláusula de contratante a declarar, que faça constar, no mesmo assento registral, que o promitente adquirente poderá eleger, dentro do prazo estipulado, terceiro para assumir a posição contratual desde sua origem. ________ CABRAL, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987; SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, t. XXIII, São Paulo-SP, Revista do Tribunais, 2012, p. 494 e ss.; ROSENVALD, Nelson, in Código Civil comentado, doutrina e jurisprudência, coor. Cezar Peluso, 17ª ed., Santana de Parnaíba-SP, Manole, 2023, art. 467 e ss.
I. Introdução. II. Passado e presente. III. Efeito borboleta. IV. Propostas preliminares. Medida 1: Minutas-padrão nos memoriais de incorporação e loteamento Medida 2: Minutas universais editadas pelo CNJ. Medida 3: Arquivamento e certificação notarial de documentos. Quadro Geral. V. Conclusão. "Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder" Dilma Roussef, 2014 A frase acima geralmente é invocada como galhofa, mas a utilizo por considerá-la sob medida para tratar de uma questão bastante séria. Este texto é um convite à reflexão de advogados, notários, registradores, magistrados, empreendedores e consumidores, ou de quem simplesmente se interessa pelo assunto. Talvez seja uma provocação ridícula. Mesmo ridícula, se ela instigar alguma ideia sua, depois convertida em ação, cada palavra terá valido a pena. O trem está passando; não o deixemos partir. William Ury, mundialmente reconhecido no campo da negociação e mediação de disputas, gravou com Simon Sinek uma hipnotizante conversa na qual, entre frases inspiradoras, disse que "o mundo precisa de mais conflitos"1. Embora possa soar estranha, a expressão é apenas uma forma de dizer, com outras palavras, que sempre podemos fazer limonadas; um jeito atual de invocar os antigos chineses, que já enxergavam oportunidade na crise. Todo conflito, quando bem direcionado, pode desencadear verdadeiras transformações. Sim, a discordância pode ser amiga da evolução, se adotarmos a visão positiva do conflito2, e se aproveitarmos "a energia do atrito causado pela divergência de interesses, ideias e visões de mundo para construir novas realidades, novos relacionamentos, em patamares mais produtivos"3. Agora que apresentei o espírito deste artigo, estamos prontos para começar. I. Introdução A alienação fiduciária de bem imóvel ("AF"), surgida em 1997, foi um verdadeiro propulsor do mercado imobiliário brasileiro nos últimos 30 anos. Inicialmente pensada para o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), ela conquistou o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), suplantou a hipoteca, e passou a ser a garantia eleita em quase todos os financiamentos imobiliarios: A compra e venda com alienação fiduciária possui um regime jurídico próprio, bastante diferente da promessa, e genial em muitos aspectos, inclusive de funding. Não por outra razão, ela entrou no cardápio de incorporadores imobiliários, loteadores e investidores. A AF vai além dos financiamentos e empreendimentos imobiliários. Praticamente todo contrato que envolve a alienação de um imóvel pode utilizar essa garantia. Mais do que isso, a AF está à disposição de cooperativas de crédito, administradoras de consórcios imobiliários e de outros credores que desejam utilizá-la para garantir o pagamento de uma dívida, própria ou de terceiro, certa ou estimada, inclusive cláusulas penais. Estamos diante de um mundo inteiro de possibilidades e negócios típicos e atípicos, divididos em três grandes grupos, assim dispostos para nos ajudar a entender melhor o que está por vir: Na mesma medida em que o uso da AF se popularizava, uma discussão foi crescendo, por anos silenciosa, até ganhar, recentemente, as manchetes jurídicas de todo o Brasil. A resposta é controvertida, mas a pergunta é bem simples: Os contratos do Grupo 3, ao empregarem a AF como garantia, podem ser celebrados por instrumento particular, ou a escritura pública é essencial à sua validade? Os Grupos 1 e 2 assistem de camarote. Quanto a eles não há dúvida relevante, e seus contratos podem utilizar a forma particular, adotando a escritura se quiserem. Por isso, foquemos no Grupo 3. Tenha em mente: meu objetivo não é defender posições, e sim fazer com que mais gente compreenda o tanto que está em jogo nessa disputa, e se há algo a fazer para superá-la. Este texto contém três medidas. Se forem descartáveis, que ao menos, a partir delas, algum leitor criativo e perspicaz possa ter sua própria epifania, boa o bastante para transformar-se em soluções não-binárias, que aprimorem nosso sistema extrajudicial em benefício de todos os seus atores e usuários. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 SINEK, Simon. A Bit of Optimism: Resolving conflict with William Ury. Podcast disponível aqui. Acesso em 15.09.2024. 2 LONGO, Samantha Mendes. Direito Empresarial e Cidadania: A Responsabilidade da Empresa na Pacificação dos Conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2022, p. 26. 3 GRAHAM, Pauline (org.). Mary Parker Follett: Profeta do gerenciamento. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997, p. 298.
Introdução  As terras devolutas correspondem a um dos mais intricados problemas do Direito Imobiliário brasileiro. Suas causas são antigas e remontam à formação histórica do país, ainda no século XV. As consequências, por sua vez, são graves e sentidas ainda no século XXI, colocando em risco a segurança jurídica de produtores rurais e do agronegócio em geral, principal setor da economia nacional.  A questão se coloca quando o particular pretende regularizar sua área, caso não disponha de título de terra regular, embora a ocupe há muitos anos, ou se o Poder Público postular o cancelamento de títulos regulares, sob a alegação de que se trata de terras públicas.  As diretrizes normativas para julgar os casos são colidentes. De um lado, deve o julgador atentar para a garantia da propriedade e da segurança jurídica - o que o levaria a tutelar os direitos do proprietário ou possuidor de terras, em face da pretensão do Poder Público de não reconhecer, ou mesmo tomar suas áreas. Por outro, porém, não poderá descurar da tutela do patrimônio público ou do interesse social sobre imóveis devolutos, dado que sua destinação deve ser "compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária" (art. 188, Constituição Federal).  Neste artigo, inicialmente, expõe-se os principais problemas relacionadas às terras devolutas, com foco na formação fundiária do país e na omissão do Poder Público em cumprir a Lei de Terras. Em vista da complexidade de tais conflitos, e da dificuldade em generalizar soluções, propõe-se a adoção de boas práticas para solucioná-los, com vistas a contornar as principais dificuldades surgidas em casos com este objeto litigioso. Confira aqui a íntegra da coluna.
Introdução  O título do artigo tem por objetivo chamar a atenção, até porque o leitor mais atento logo percebe o erro técnico. Para que possamos voltar aos trilhos e de modo a evitar maiores equívocos, deve ser esclarecido que os direitos potestativos e as pretensões que decorrem do aparecimento de vícios construtivos estão (ou deveriam estar) sujeitos aos prazos decadenciais ou prescricionais estabelecidos em Lei. Não há imprescritibilidade em tal matéria.  Contudo, tal como será verificado, a jurisprudência, ao longo dos anos e a partir de interpretações ao Código Civil e ao Código de Defesa do Consumidor, optou por aplicar prazos alongados, além de fixar o início da contagem do prazo em momento muito posterior ao efetivo aparecimento do vício, tornando as opções conferidas aos lesados em medidas que podem ser propostas praticamente a qualquer tempo.  Além disso, também é objetivo do presente artigo demonstrar que, a respeito da matéria em análise, o atual ordenamento jurídico brasileiro não é claro e não atende ao princípio da operabilidade, resultando em jurisprudência confusa e pouco sólida. Todos esses elementos reduzem a segurança jurídica necessária para qualquer indústria, inclusive a da construção civil.  Para avançarmos, necessário analisar o ordenamento jurídico brasileiro no tocante ao tratamento conferido aos vícios construtivos, bem como o entendimento jurisprudencial e doutrinário mais atual. Confira aqui para a ver a íntegra da coluna.