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Migalhas de Vulnerabilidade

Reflexões sobre autonomia existencial, paternalismo e tutela dos vulneráveis.

Thamis Dalsenter
Tramita no Senado Federal, anteprojeto de lei que visa a atualização do Código Civil para melhor ajustá-lo às demandas da sociedade com as inúmeras mudanças ocorridas desde a sua promulgação. Os costumes, as interações sociais, o desenvolvimento das tecnologias de informação, inclusive, com o uso de inteligência artificial, somados aos direitos incorporados à ordem jurídica foram a justificativa apontada para a proposta. Mas o anteprojeto não observou os ditames da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência - CDPD, ratificada pelo estado brasileiro com o status de norma constitucional (CF/88, art.5º, §3º), sobretudo, quanto à viragem no âmbito da capacidade jurídica e a necessária instituição do sistema de apoios e salvaguardas, previstos no artigo 12, itens 2 e 3. Para dirimir dúvidas, o Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD, art.34 e segs.), instituído pela Organização das Nações Unidas para interpretar e acompanhar a implementação da Convenção, editou a Observação Geral nº1, de 2014, comentando o polêmico artigo 12.1 Esclareceu que a capacidade legal corresponde à capacidade jurídica, na dupla dimensão: capacidade de fato (ou de exercício) e capacidade de direito (ou de gozo), ressaltando que a capacidade mental não pode ser confundida com a capacidade jurídica, tampouco poderá restringi-la. Trecho in verbis: 13. La capacidad jurídica y la capacidad mental son conceptos distintos. La capacidad jurídica es la capacidad de ser titular de derechos y obligaciones (capacidad legal) y de ejercer esos derechos y obligaciones (legitimación para actuar). Es la clave para acceder a una participación verdadera en la sociedad. La capacidad mental se refiere a la aptitud de una persona para adoptar decisiones, que naturalmente varía de una persona a otra y puede ser diferente para una persona determinada en función de muchos factores, entre ellos factores ambientales y sociales. En instrumentos jurídicos tales como la Declaración Universal de Derechos Humanos (art. 6), el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (art. 16) y la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer (art. 15) no se especifica la distinción entre capacidad mental y capacidad jurídica. El artículo 12 de la Convención sobre los derechos de las personas con discapacidad, en cambio, deja en claro que el "desequilibrio mental" y otras denominaciones discriminatorias no son razones legítimas para denegar la capacidad jurídica (ni la capacidad legal ni la legitimación para actuar). En virtud del artículo 12 de la Convención, los déficits en la capacidad mental, ya sean supuestos o reales, no deben utilizarse como justificación para negar la capacidad jurídica.  14. La capacidad jurídica es un derecho inherente reconocido a todas las personas, incluidas las personas con discapacidad. Como se senaló anteriormente, tiene dos facetas. La primera es la capacidad legal de ser titular de derechos y de ser reconocido como persona jurídica ante la ley. Ello puede incluir, por ejemplo, el hecho de tener una partida de nacimiento, de poder buscar asistencia médica, de estar inscrito en el registro electoral o de poder solicitar un pasaporte. La segunda es la legitimación para actuar con respecto a esos derechos y el reconocimiento de esas acciones por la ley. Este es el componente que frecuentemente se deniega o reduce en el caso de las personas con discapacidad. Por ejemplo, las leyes pueden permitir que las personas con discapacidad posean bienes, pero no siempre respetan las medidas que adopten para comprarlos o venderlos. La capacidad jurídica significa que todas las personas, incluidas las personas con discapacidad, tienen la capacidad legal y la legitimación para actuar simplemente en virtud de su condición de ser humano. Por consiguiente, para que se cumpla el derecho a la capacidad juri'dica deben reconocerse las dos facetas de esta; esas dos facetas no pueden separarse. (grifo intencional).2  Mais recentemente, a Observação Geral nº6, do mesmo Comitê, classificou como discriminação a derrogação ou desconsideração da capacidade jurídica da pessoa com deficiência.3 Seguindo a Convenção, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) reconheceu a capacidade jurídica dessas pessoas nos artigos 6º. e 84, revogando os artigos 3º. e 4º., do Código Civil, no que se referiam à deficiência, direta ou indiretamente, como fator incapacitante (art.114, LBI). Infelizmente, manteve o sistema de substituição de vontade, consubstanciado na curatela (art.84, §1º, LBI), figura historicamente presente na legislação brasileira. Embora a LBI (art.116) haja incluído o art.1.783-A e parágrafos, no Código Civil, para instituir a tomada de decisão apoiada, o instrumento não logrou a eficácia social desejada e a curatela continuou sendo escorreitamente aplicada. Enquanto o caput do art.84, da LBI assegurou a capacidade jurídica à pessoa com deficiência, o parágrafo primeiro previu a possibilidade da sua submissão à curatela, nos termos da lei. No Código Civil (art.1.767 e incisos), a curatela é uma medida substitutiva de vontade que pode ser fixada em face daqueles que, por causa transitória ou permanente, não pode exprimir sua vontade; e dos ébrios habituais, viciados em tóxico ou pródigos. Quando submetida à curatela, a pessoa com deficiência é capitulada no art.4º., inciso III, do Código Civil, como aquela que não pode exprimir sua vontade, e consequentemente, lançada à condição de relativamente incapaz. O Código de Processo Civil manteve o termo "interdição" (art.767) para nominar a ação que institui a curatela. A partir da combinação do art.84, §1º., da LBI; com o art.4º., III e art.1.767, inciso I, do Código Civil, até a jurisprudência brasileira passou considerar a pessoa sob curatela como relativamente incapaz (Recurso Especial nº 1.927.423/SP). Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona4 observaram essa inconsistência da LBI nesse aspecto que, segundo eles, abriu uma "brecha" para a inconstitucionalidade. Na edição da mesma obra, publicada em 2023, os autores afirmaram que as pessoas com deficiência devem ser consideradas civilmente capazes.5 Não sem razão, o Relatório do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência sobre as medidas adotadas pelo Estado Brasileiro, havia identificado a curatela como um ponto negativo da nossa legislação, recomendando a devida alteração.6 Até hoje essa recomendação não foi atendida e, na falta de uma medida de apoio mais intenso, a curatela continuou sendo aplicada às pessoas com deficiência mais grave, estendendo os seus efeitos até sobre às situações jurídicas existenciais. Nesse momento presente, considerando o anteprojeto encomendado pelo Senado, caberia a correção das inconsistências e lacunas da legislação para otimizar e adequar o ordenamento jurídico ao texto da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Modificou a redação dos artigos 3º. e 4º., do Código Civil, tocante ao rol das pessoas absoluta e relativamente incapazes, ao tempo em que admitiu a incidência da curatela sobre todas elas (art.1.767), medida que não pode ser confundida como apoio, haja vista a mitigação da capacidade jurídica. No rol das pessoas absolutamente incapazes (art.3º), ao lado das pessoas com idade inferior a 16 anos, incluiu aquelas que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em cara'ter tempora'rio ou permanente. Infelizmente as pessoas com deficiência sob curatela já têm sido lançadas nessa condição, dada a redação atual do art.4º. inciso III, do CC. Se for aprovado o dispositivo do anteprojeto como está, as pessoas maiores com deficiência que não puderem firmar tomada de decisão apoiada serão levadas à condição de absoluta incapacidade, solução incompatível com a dignidade da pessoa adulta, segundo o estado da arte dos direitos humanos.7 Aliás, quais são os meios aceitáveis para que a pessoa possa expressar a sua vontade? Conquanto a acessibilidade seja um direito fundamental (Recurso Especial Nº 1.912.548 - SP), as medidas de acessibilidade ou os recursos de tecnologia assistiva não são/tem sido disponibilizadas às pessoas com alguma limitação para expressar a vontade. Pessoas com deficiência auditiva que não são oralizadas ou com dificuldade na fala tem sido privadas da sua capacidade jurídica.8 Relativamente à modificação proposta para o art. 4º., o inciso II diz que serão considerados relativamente incapazes, "aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por reduc¸a~o de discernimento, que na~o constitua deficie^ncia, enquanto perdurar esse estado;" Na tentativa de afastar o enquadramento da pessoa com deficiência nessa condição, o parágrafo único reitera: "As pessoas com deficie^ncia mental ou intelectual, maiores de 18 (dezoito) anos, te^m assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condic¸o~es com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e a`s salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, o disposto nos arts. 1.767 a 1.783 deste Código." Por lei, como se vê, a pessoa com deficiência não poderá ser considerada relativamente incapaz.  Adicionalmente, o art. 4o-A reafirma que "a deficie^ncia fi'sica ou psi'quica da pessoa, por si so', na~o afeta sua capacidade civil.9"  Observa-se nesse dispositivo, a impropriedade técnica de compreender a deficiência como uma limitação intrínseca à pessoa, quando a CDPD e a LBI, amparadas no modelo social de abordagem, identificaram a deficiência como um fenômeno social10.  Nos termos do art.2º., da LBI, a deficiência é o resultado da interação entre as limitações da pessoa e as barreiras do meio. A solução do anteprojeto parece boa quanto ao art. 4º.-A, ressalvada a percepção subjacente quanto ao conceito de deficiência. Problemática é a insuficiência do sistema de apoio com a possibilidade de submissão da pessoa com deficiência grave à curatela (art.1.767, CC; art.767 CPC), o que resultará na sua incapacidade civil absoluta. Já era atentatório à CDPD, sua qualificação como relativamente incapaz. Haverá risco de lesão aos princípios da igualdade e da não-discriminação, em desalinho com a Observação Geral nº6/2018, do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que ressalta o dever dos Estados signatários em atender o disposto nos artigos 5º e 12 com a reforma de sua legislação para a correção do tratamento discriminatório. Decisão recente do Supremo Tribunal Federal (RE nº 918.315/DF) afirmou a subsistência da capacidade jurídica da pessoa submetida à curatela, quando julgou procedente a ADI dos art.18, § 7º, da lei 769/2018, do Distrito Federal. A construção argumentativa estampada na decisão não está integralmente alinhada aos ditames convencionais, mas isso pode se explicar em virtude da ausência do instrumental específico para oferecer um apoio mais intenso à pessoa com déficit na capacidade mental. Embora devamos estar atentos à tradição, não devemos nos blindar às soluções inovadoras que são mais aptas a concretizar novos direitos humanos e, no caso, a inclusão de pessoas historicamente marcadas pelo déficit de cidadania. Na expressão de Anthpony Giddens,11 a tradição só deve ser preservada na medida em que puder atravessar o crivo da racionalidade no espaço discursivo e oferecer respostas adequadas e plausíveis aos desafios do presente e do porvir. O atual estado da arte da filosofia dos direitos humanos aponta para a correlação inexorável entre dignidade, autonomia e capacidade jurídica, política albergada pela Convenção que o Brasil já ratificou com status de norma constitucional. Caminhar em sentido contrário será incorrer em inconstitucionalidade. Reafirma-se que a solução da CDPD não implica desproteção da pessoa, mas desafia os Estados ao novo, mediante a estruturação de mecanismos de apoios e salvaguardas que possam assegurar às pessoas com deficiência o exercício da capacidade jurídica a salvo de abusos. A LBI não implementou um sistema de apoio e salvaguarda adequado, uma vez que previu apenas a tomada de decisão apoiada para casos de deficiência leve em moderada, sendo omissa quanto aos instrumentos para casos de deficiência psíquica e intelectual grave. Apostou na figura da curatela, alvo de severa crítica pelo Relatório do Comitê da ONU, de 2015.12 Nas recomendações desse relatório, havia a orientação para a revisão da legislação a fim de suprimir as medidas substitutivas de vontade. Passados quase dez anos, na oportunidade de revisão do Código Civil, o anteprojeto não cotejou as recomendações daquele relatório e manteve a curatela quando poderia ter desenvolvido um instrumento de apoio intenso à pessoa com deficiência intelectual ou psíquica grave. Na linha da CDPD, os modelos substitutivos de vontade devem ser suprimidos para que se possa adotar o sistema de apoio à tomada de decisões, cuja premissa é a capacidade jurídica universal dos adultos, sem qualquer discriminação. Conforme a Observação Geral 06/2018: 49. A fin de asegurar la coherencia entre los artículos 5 y 12 de la Convención, los Estados partes deben: a) Reformar la legislación vigente para prohibir la denegación discriminatoria de la capacidad jurídica, fundamentada en modelos basados en la condición, funcionales o basados en los resultados. Cuando proceda, sustituir esos modelos con otros de apoyo para la adopción de decisiones, teniendo en cuenta la capacidad jurídica universal de los adultos, sin discriminación de ningún tipo;"13 A Colômbia, Peru e Costa Rica atualizaram as respectivas legislações e podem oferecer pistas para o estado brasileiro que nesse momento se empenha na reforma do seu Código. __________ 1 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponivel aqui. Acesso em 01/04/2024. 2 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponivel aqui. Acesso em 01/04/2024. 3 NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general núm. 6 (2018) sobre la igualdad y la no discriminación. Disponível aqui. Acesso em: 24/04/2024. 4 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2020, p.143 s.s. 5 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte geral. São Paulo: Saraiva, 25ª. Edição, 2023, p.174. 6 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Observações finais sobre o relatório inicial do Brasil*. Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Disponível aqui. Acesso em 24/04/2024. 7 ROIG, Rafael Asís. Sobre discapacidad y derechos. Madrid: Editorial Dykinson, S.L., 2013, p.104. 8 Decisão do TJSP classificou como relativamente incapaz, um idoso de 89 anos com base no relatório do estudo social que em trechos específicos dizia: "A visita domiciliar permitiu constatar que o interditando desenvolve limitada interação com meio familiar e social não conseguindo expressar com clareza e perfeita consciência as suas vontades ou preferências diante da dificuldade de ouvir. (...)Do ponto de vista cognitivo, sugere lucidez quanto aos fatos e situações do cotidiano, mas na~o consegue se expressar dentro do contexto daquilo que lhe é perguntado. (TJ-SP - AI: 22934821820228260000 Capão Bonito, Relator: José Carlos Ferreira Alves, Data de Julgamento: 11/05/2023, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/05/2023). 9 Em face de tudo o que se disse, nenhum dos critérios utilizados historicamente para abordar a deficiência no regime das incapacidades - quais sejam, a abordagem do status (status approach), a abordagem do resultado da escolha (outcome approach) e a abordagem funcional (functional approach) -, poderá ser aplicado sem ofensa frontal à Convenção.24 Pelo primeiro critério, o próprio estado da deficiência seria o critério incapacitante. A simples ocorrência de uma deficiência específica (notadamente aquela de ordem psíquica e intelectual) seria suficiente para privar a pessoa da capacidade jurídica, independentemente das suas capacidades concretas e reais. Pelo segundo critério, enfocam-se os resultados das escolhas realizadas pela pessoa para aferir a sua capacidade. Nessa medida, aquele que faz escolhas desassisadas e irrazoáveis, segundo o juízo social de uma determinada época, poderá sofrer uma modulação na sua capacidade. Recentemente, um jovem goiano de 25 anos recusou o tratamento de hemodiálise, essencial à sua saúde, e foi, por essa razão, submetido à curatela, mesmo quando o laudo pericial não concluiu por um déficit cognitivo na realização daquela escolha.25 O último critério observa a funcionalidade do sujeito, ou seja, a sua capacidade natural de, por si próprio, compreender, discernir, decidir, raciocinar, avaliando a conveniência e os efeitos das suas decisões. Ao seguir esse critério, o sujeito será considerado capaz. (MENEZES, Joyceane Bezerra de. A capacidade jurídica pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a insuficiência dos critérios do status, do resultado da conduta e da funcionalidade. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/2024. 10 "Estos presupuestos generan importantes consecuencias, entre las que se destacan las repercusiones en las políticas a ser adoptadas sobre las cuestiones que involucren a la discapacidad. Así, si se considera que las causas que originan la discapacidad son sociales, las soluciones no deben apuntarse individualmente a la persona afectada, sino más bien que deben encontrarse dirigidas hacia la sociedad. De este modo, el modelo anterior se centra en la rehabilitación o normalización de las personas con discapacidad, mientras que el modelo bajo análisis aboga por la rehabilitación o normalización de una sociedad, pensada y disenada para hacer frente a las necesidades de todas las personas." (PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Grupo Editorial CINCA: Madrid, 2008, p.104). 11 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modenização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p.129. 12 CRPD/C/BRA/Q/1/Add.1. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad 14º. Período de Sesiones/17 de agosto a 4 de septiembre de 2015. Lista de cuestiones relativa al informe inicial del Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/2024. 13 "47. O direito à capacidade jurídica é um direito mínimo, ou seja, é necessário para o gozo de quase todos os demais direitos contemplados na Convenção, incluindo o direito à igualdade e à não discriminação. Os artigos 5 e 12 estão intrinsecamente relacionados, já que a igualdade perante a lei deve incluir o gozo da capacidade jurídica de todas as pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais. A discriminação por meio da negação da capacidade jurídica pode adotar diferentes formas, como nos sistemas baseados na condição, os sistemas funcionais e os sistemas baseados nos resultados. A negação da tomada de decisões com base na deficiência por meio de qualquer desses sistemas é discriminatória14. 48. Uma diferença fundamental entre a obrigação de fazer ajustes razoáveis conforme o artigo 5 da Convenção e o apoio que deve ser fornecido às pessoas com deficiência no exercício de sua capacidade jurídica conforme o artigo 12, parágrafo 3, é que a obrigação estabelecida neste artigo 12, parágrafo 3, não tem limite. O fato de que o apoio para o exercício da capacidade possa impor uma carga desproporcional ou indevida não limita a obrigação de fornecê-lo. 49. A fim de assegurar a coerência entre os artigos 5 e 12 da Convenção, os Estados partes devem: a) Reformar a legislação vigente para proibir a negação discriminatória da capacidade jurídica, fundamentada em modelos baseados na condição, funcionais ou baseados nos resultados. Quando apropriado, substituir esses modelos por outros de apoio para a tomada de decisões, levando em consideração a capacidade jurídica universal dos adultos, sem discriminação de qualquer tipo." (tradução livre). Disponível aqui. Acesso em 01/04/2024.
No dia 23 de janeiro de 2024 o Oscar anunciou a lista dos indicados à premiação. E um ponto que chama a atenção se relaciona com o Filme da Barbie, que foi um grande sucesso de bilheteria do ano de 2023 que chegou a arrecadar mais de 1,446 bilhão de dólares. O filme conseguiu emplacar 10 (dez) indicações no Oscar, sendo uma delas a de Melhor Filme, mas a não indicação em duas categorias específicas vieram a causar uma estranheza, sendo elas a de Melhor Diretor e Melhor Atriz. Sendo a diretora do filme Greta Gerwig e a atriz Margot Robbie ignoradas pela academia que elege os indicados. Nota-se que o ator que interpretou o Ken no filme (Ryan Gosling) foi indicado na categoria de Melhor Ator Coadjuvante. O que acaba por comover uma reflexão social e jurídica acerca da invisibilização de gênero e as consequências que isso acarreta para toda uma sociedade. "O mundo patriarcal necessita da glória masculina sobre os outros para viver e necessita da dominação e da ocultação histórica das mulheres para se manter em pé"1 Fato é que o patriarcado naturalizado vem sempre no sentido de querer colocar as mulheres como obedientes, submissas e silenciosas2. E tal influência se enraíza em todos os níveis e aspectos da sociedade, não estando nenhuma mulher "isenta" de sofrer com este movimento. O debate em pauta se relaciona em muitos aspectos com os pactos narcísicos e branquitude, que são tidos como acordos silenciosos, não verbalizados ou formalizados, mas que mantém em situação de privilégio e poder, ou seja, que estrutura a relação de dominação que pode se constituir através de classe, gênero, raça e etnia e de identidade de gênero, dentre outras3. Esses pactos acabam por proporcionar uma situação de manutenção dos homens brancos, heterossexuais e cisgênero no poder e também em evidência na sociedade. E que se conecta intrinsecamente com o patriarcado, misoginia e machismo, pontos que foram enfrentados pelo Filme Barbie, justamente no sentido de acolher as críticas que está boneca e personagem recebe em razão de seus padrões estéticos e valores majoritariamente difundidos. Mesmo que a diretora e a atriz sejam brancas, não usufruem dos privilégios da branquitude de forma tão plena assim, pois conforme a autora Cida Bento esclarece: [...] nem todas as pessoas definidas como brancas tiram proveito da branquitude do mesmo modo, pois ela varia segundo gênero, sexualidade, classe, religião, idade, nacionalidade, que precisam ser levadas em conta na análise etnográfica.4 Outro acontecimento envolvendo premiações e o Filme Barbie foi no Globo de Ouro deste ano (07/01/24), momento em que o mestre de cerimônias Jo Koy reduziu e sexualizou toda a obra cinematográfica em foco, falando que: "Barbie foi baseado em uma boneca de plástico com seios grandes". Apesar do esforço das cineastas de trazer outros elementos para as telas. O que reforça o discurso misógino e machista enraizado na cultura global, o que mais uma vez se encontra como uma barreira para um tratamento igualitário, efetivação e promoção de direitos das mulheres. O patriarcado tenta por todas as formas invisibilizar, reduzir e sexualizar o corpo feminino, o trabalho feminino, o esforço deste grupo no geral. Não se quer aqui "radicalizar" a crítica, mas trazer para a reflexão a dificuldade da implementação de uma nova visão e tratamento acerca da mulher. Uma das dificuldades de debater temas como esse, se dá exatamente por um movimento de esvaziamento da pauta. Observe-se, por exemolo, a resiginificação do termo "feminista" para "feminazi" que atualmente é compreendido como algo negativo, atribuindo à pessoa que se define como feminsita alguém abjeta5. A não indicação ao Oscar só reforça as seguintes reflexões: A quem a ocultação das mulheres pode servir? Por que a luta feminista deve ser ignorada?  Ao enaltecer o Ken e não a Barbie, e as polêmicas em torno do enredo de seu filme, o Oscar ilustra com todas as cores como patriarcado age. Nota-se que isso está acontecendo em uma das premiações mais renomadas do mundo, imagine o que ocorre nas ruas e no dia a dia das mulheres de todo mundo, e principalmente daquelas que possuem mais do que um marcador de vulnerabilidade, como por exemplo mulheres perifericas, negras, transsexuais, atípicas etc. Não se vive em um mundo igualitário e o patriarcado reforça a manutenção desse estado de desigualdade de gênero. A luta social e jurídica deve se voltar não ao homem, mas a essa forma de pensar e agir que enaltece o masculino e o branco. Para finalizar, coloca-se em foco a canção I'm Just Ken interpretada pelo ator Ryan Gosling para o filme Barbie, que venceu o prêmio de melhor canção original no 29º Critics Choice Awards e que em certo momento de sua letra vem a dizer: 'Cause I'm just Ken Anywhere else I'd be a ten Is it my destiny to live and die a life of blonde fragility?6.  Ser apenas o Ken no mundo real significa ser superior a Barbie, uma inversão do que ocorre na Barbieland, lugar que as Barbies dominam e exercem as principais funções de uma sociedade. Ser apenas o Ken em nossa sociedade significa ter privilégios, ter mais visibilidade, probabilidade e chances de sucesso profissional. Referências BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. __________ 1 DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 31. 2 DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 29. 3 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 120. 4 BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 66. 5 DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 70. 6 Tradução livre: "Porque sou apenas o Ken. Em qualquer outro lugar, eu seria um dez. Será que meu destino é viver e morrer em uma vida de fragilidade loira?".
Era Dia dos Pais quando, em 2023, foi ao ar uma reportagem feita com a atriz Larissa Manoela Taques Elias dos Santos. Naquele domingo, ela expôs conflitos intensos com os genitores, que, ao administrarem o patrimônio acumulado pela filha durante uma infância e uma adolescência dedicadas à atividade profissional, parecem ter abusado das prerrogativas derivadas da autoridade parental. A atriz narra que os seus representantes detinham controle absoluto dos rendimentos derivados de sua precoce carreira artística. Restava-lhe, em verdade, apenas uma escassa mesada mensal para gastos pessoais. É verdade que o art. 1.689 do Código Civil de 2002 prevê que aos pais compete, no exercício do poder familiar, administrar os bens dos filhos menores, e mesmo deles usufruir. Mas este poder previsto em diploma normativo deve ser funcionalizado a partir do melhor interesse da criança e do adolescente. Tanto tal aspecto se confirma que o Superior Tribunal de Justiça, em 2018, viabilizou a pretensão de prestação de contas de um filho em face da própria genitora, a qual havia se responsabilizado por gerir pensão por morte do genitor do adolescente durante a menoridade civil. O processo, embora em segredo de justiça, foi noticiado pela sítio eletrônico do tribunal e abordou a conversão insuficiente, pela ré, de valores em produtos e serviços capazes de assegurar a dignidade do jovem. Segundo a compreensão da Corte, o indício de mau uso das prerrogativas de administração patrimonial dos bens da prole autoriza este encaminhamento. Como se percebe, a lógica de substituição da autonomia dos filhos pelas escolhas parentais parte de uma questionável hierarquização que prestigia a perspectiva adulta e, frequentemente, desprotege os sujeitos a quem o ordenamento jurídico declara dedicar atenção privilegiada. Ilustrativamente, Larissa Manoela exteriorizou que: "só queria entender então esse negócio. Como estava essa questão financeira, que nunca me era apresentada, que eu não sabia o que eu recebia ou o que estava sendo pago". De fato, a exclusão de quem é considerada absoluta ou relativamente incapaz para os atos da vida civil de qualquer processo decisório autoriza que o abuso parental se revele - e os aspectos patrimoniais nem configuram os mais preocupantes efeitos deste acontecimento. As cifras milionárias que acompanham o caso são mais um ingrediente, unido a um rosto comum a toda uma geração de expectadores brasileiros, para que a mídia invista neste conflito familiar como exitosa receita para comover um extenso público. Por exemplo, menos solidariedade entre a sociedade civil despertam os processos decisórios tensos envolvendo a capacidade civil de crianças e adolescentes transexuais que desejam algum grau de modificação corporal ou jurídica para compatibilizarem a expressão de seu gênero a estes demais aspectos. E, do ponto de vista do próprio trabalho infantil, a realidade brasileira não é de contratos análogos aos de Larissa Manoela. Atualmente, o Código Civil Brasileiro é insuficiente para solucionar a pretensão de ampliação de participação infantojuvenil em discussões que lhes digam respeito. Embora o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146 de 2015) tenha comprovado que é possível repensar os limites clássicos da incapacidade civil para melhor adequar os paradoxos entre autonomia e proteção de vulneráveis, para a infância e para a adolescência, houve pouco progresso legal desde a primeira codificação nacional, em 1916. De maneira a explicitar uma nova forma de se conceber a relação envolvendo a autoridade parental e a autonomia dos filhos o Código Civil da Argentina (lei 26.994/2014) inaugura a autonomia progressiva dos adolescentes em seu artigo 26. Em linhas gerais, permite-se que os filhos exerçam com certa liberdade atos que envolvam seus direitos, bem como que sejam ouvidos em todos os processos judiciais que lhes digam respeito. Podem, inclusive, participar ativamente na tomada de decisões que os envolvam. Entendeu-se que, de forma progressiva, conforme o desenvolvimento psicofísico, o filho adquire uma maior consciência que reflete nos atos e nas decisões que permeiam a sua vida. Por exemplo, o Código Civil da Argentina prevê que os adolescentes entre 13 (treze) e 16 (dezesseis) anos de idade determinem os tratamentos a que se submetem, desde que não sejam invasivos e que não comprometam o seu estado de saúde ou lhes tragam a algum risco à vida e à integridade física. Quando se tratar de tratamentos invasivos o adolescente deve dar o seu consentimento assistido pelos pais. E quando o adolescente completar 16 (dezesseis) anos será considerado adulto para as decisões que se vinculem ao cuidado do próprio corpo. Conceber a autonomia progressiva é de fato acolher a nova realidade que se impõe, é superar o estático conceito de capacidade civil que se baseia em faixas etárias, em que em um momento não se pode nada - menoridade - e em outro pode-se tudo - maioridade. Enquanto o Brasil seguir no entendimento de que o menor de 16 anos de idade é absolutamente incapaz, coaduna-se com práticas parentais despóticas e que em muitos casos não prioriza o melhor interesse das crianças e adolescentes, sejam em questões patrimoniais - como é o caso da Larissa Manoela - ou existenciais. Dizer que uma pessoa é capaz ou incapaz é reduzir a sua existência e o seu desenvolvimento, pois a cada dia, a cada semana, a cada mês e a cada ano existe um crescimento, um aprendizado, uma compreensão do mundo e de si mesmo. Logo, a autonomia não é estática. É progressiva. A escuta da criança ou do adolescente envolvendo aspectos patrimoniais e existenciais de sua vida deve ser um Direito vetor não apenas das demandas judiciais, mas em instâncias administrativas, familiares, educativas, etc. O Direito brasileiro deve implementar mecanismos que estimulem uma maior autonomia infanto-juvenil e não apenas a punição por práticas parentais desviantes do standard normativo. As discussões recentes sobre a revisão do Código Civil de 2002 podem ser proveitosas para a incorporação de soluções mais contemporâneas sobre estes recém-qualificados sujeitos de direito em nosso ordenamento jurídico.
No crepúsculo de 2022, por meio de sanção tácita, a lei 14.510, de 27 de dezembro, foi promulgada com o objetivo de autorizar e disciplinar a prática da telessaúde no Brasil. O alvissareiro cenário pavimentado durante a pandemia da Covid-19 de expansão e popularização das práticas médicas à distância parece amornar diante da novel lei que, após diversas emendas e modificações no curso do seu processo legislativo, mais parece uma colcha de retalhos do que um estatuto sistemático e abrangente a respeito da telessaúde. O parco diálogo com a sociedade civil colaborou com a feição analógica de uma lei que pretendia impulsionar os serviços de assistência médica à distância, e que tanto poderia colaborar, caso bem disciplinada, para o acesso à saúde dos pacientes por meio das novas tecnologias, até mesmo com viés inclusivo, como, por exemplo, das pessoas com deficiência física, cuja locomoção é quase sempre uma barreira para uma atenção integral à saúde. Como se observa, a lei foi mais tímida do que se esperava e descortina inquietantes reflexões sobre o alcance de suas disposições, em meticuloso trabalho de aplicação coordenada e harmônica com outras leis, em especial aquelas expressamente mencionadas no texto legal. A lei 14.510/20221 é derivada do Projeto de Lei nº 1.998, apresentado em 17 de abril de 2020,2 cuja tramitação iniciou-se no Senado e, depois, seguiu para a Câmara dos Deputados, em sua origem fruto ainda das repercussões iniciais da pandemia da Covid-19 e com feição de estatuto autônomo para disciplinar o tema. Posteriormente, com os substitutivos, a redação foi alterada para, em sua estrutura, retificar a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, a chamada Lei do Sistema Único de Saúde, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional, como também para revogar a lei 13.989, de 15 de abril de 2020, que dispôs sobre o uso da telemedicina durante a pandemia causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). A lei 8.080/1990 dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assim como sobre a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Com a alteração, a referida Lei passa a ter um título específico sobre telessaúde (Título III-A), com a introdução dos artigos 26-A até 26-H. Diversas são as inquietações despertadas pela lei recentemente promulgada, a começar pelo próprio termo escolhido, que foi modificado no curso da sua tramitação legislativa. Desse modo, cabe, de início, realçar que a telessaúde e a telemedicina são espécies do gênero telemática.3 Esta resulta da telecomunicação unida à informática que, na área da saúde, se caracteriza pela aplicação conjunta desses dois meios às atividades sanitárias, ultrapassando as barreiras das distâncias geográficas, com o objetivo de promoção, prevenção e cura de doenças no âmbito individual ou coletivo, o que permite o intercâmbio entre profissionais de saúde e com seus pacientes. A partir de tais considerações, depreende-se que a telessaúde é mais abrangente do que a telemedicina, pois engloba todas as ações de serviços de saúde à distância, voltadas à coletividade, no que tange às políticas de saúde pública e à disseminação do conhecimento, além de abranger a educação e a coleta de dados de determinados grupos e populações isoladas pela distância, bem como o aprimoramento de profissionais de saúde que podem ficar em contato com técnicas, diagnósticos e tratamentos inovadores para um melhor direcionamento na integral assistência à saúde do paciente. A telessaúde foi definida pela lei 14.510/2022 como "modalidade de prestação de serviços de saúde a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, que envolve, entre outros, a transmissão segura de dados e informações de saúde, por meio de textos, de sons, de imagens ou outras formas adequadas" (art. 26-B). Por sua vez, a telemedicina abarca toda a prática médica à distância voltada para o tratamento e diagnóstico de pacientes individualizados (identificados ou identificáveis). A definição da telemedicina pode ser extraída da Resolução nº 2.314/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM)4 como "o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde" (art. 1º) e pode ser realizada por modalidades como: (i) a teleconsulta; (ii) a teleinterconsulta; (iii) o telediagnóstico; (iv) a telecirurgia; (v) o telemonitoramento ou televigilância; (vi) a  teletriagem; e, (vii) a teleconsultoria. Vale realçar que a Lei da Telessaúde, além das modificações na Lei do SUS, modifica ainda a lei 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, o que demonstra sua configuração esparsa e não sistemática. A Lei da Telessaúde também revoga a lei 13.989, de 15 de abril de 2020, que dispunha sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), embora, a rigor, sua revogação tácita já tivesse ocorrido em razão da Portaria do Ministério da Saúde (Portaria GM/MS nº 913, de 22 de abril de 2022), que declarou o encerramento do estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), causada pela pandemia da Covid-19 no Brasil. Apesar de a lei 14.510/2022 alterar a Lei do SUS, a prática da telessaúde já existia no Brasil e integrava a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil.5 Seu objetivo era de expandir e melhorar a rede de serviços de saúde, sobretudo a Atenção Primária à Saúde (APS), bem como sua interação com os demais níveis de atenção, fortalecendo as Redes de Atenção à Saúde (RAS) do SUS, regulada pela Portaria GM/MS nº 1.348, de 2 de junho de 2022.6 O Departamento de Saúde Digital do Ministério da Saúde7 já tinha estabelecido, por meio da Portaria GM/MS nº 3.632/2020, as Diretrizes para a Telessaúde no Brasil no âmbito do SUS, tais como: (i) a transposição de barreiras socioeconômicas, culturais e, sobretudo, geográficas para que os serviços e as informações em saúde chegassem a toda a população; (ii) a maior satisfação do usuário e a maior qualidade do cuidado e menor custo para o SUS; (iii) a observância aos princípios básicos de qualidade dos cuidados de saúde: de forma segura, oportuna, efetiva, eficiente, equitativa e centrada no paciente; (iv) a redução de filas de espera; (v) a redução de tempo para atendimentos ou diagnósticos especializados; e (vi) que se evitassem os deslocamentos desnecessários de pacientes e profissionais de saúde.8 Cabe ressaltar, entretanto, que a telessaúde não se restringirá ao âmbito público de saúde, em que pese a Lei ter alterado, mais especificamente, a Lei do SUS, é de se concluir que a tal modalidade também é autorizada no sistema privado de saúde, sob pena de permitir uma restrição que equivaleria a desarrazoado prejuízo aos pacientes, o que afronta o direito à saúde e sua diretriz constitucional de universalização do acesso. Depreende-se da própria lei sua aplicação no campo da saúde suplementar, o que, inclusive, já ocorre há décadas no Brasil, e por diversos profissionais de saúde, como médicos, psicólogos, nutricionistas, farmacêuticos e enfermeiros,9 que, por causa das restrições, devem observar as normas próprias de cada âmbito de atuação, público ou privado, incluindo as normas de cunho deontológico de cada conselho federal profissional (art. 26-D, da lei 8.080/90). A definição de telessaúde pela lei não estabelece limites (art. 26-B, da Lei nº 8.080/90), ao contrário, abrange todo o território nacional e será exercida em favor de todos os brasileiros, sendo um de seus princípios a universalização do acesso de ações e serviços de saúde, o que está em consonância com os ditames constitucionais (art. 196, da CF; e art. 26-A, inciso VII, da lei 8.080/90). O artigo 26-A da lei 8.080/90 define os princípios que devem ser observados na telessaúde, sendo que, a rigor, nem todos se enquadram tecnicamente como normas dessa natureza, a partir da clássica distinção entre princípio e regra. Há, como se infere, muitos direitos ali assegurados, que, por sua vez, se assentam em princípios de envergadura constitucional. Em primeiro lugar, reforça a autonomia do profissional de saúde (art. 5º, XIII, da CF), inclusive na primeira consulta (art. 26-A, inciso I, c/c art. 26-C da lei 8.080/90; art. 4º, da resolução nº 2.314/2022 do CFM), em consonância com a liberdade de ofício e a formação e as prescrições éticas que conformam a atuação médica. Tal preocupação também é encontrada nas disposições que asseguram o princípio da digna valorização do profissional e da estrita observância às atribuições legais de cada profissão (incisos IV e VIII). A partir da lógica dialógica e democrática que caracteriza as relações entre médicos e pacientes, tais princípios devem ser interpretados de forma a respeitar a autonomia dos pacientes, sob pena de indevida revivescência do modelo de paternalismo médico, que não mais encontra guarida na assistência presencial, quiçá deverá prevalecer no âmbito virtual. Pelo contrário, os riscos intrínsecos nessa modalidade de prestação dos serviços, tais como a violação dos dados pessoais e da vida privada, exigem um fortalecimento da proteção do paciente, em respeito à sua integridade psicofísica e dignidade. Por isso, a obtenção do consentimento livre e informado ou de seu representante legal10 para utilização da modalidade de telessaúde para seu atendimento (art. 26-G, inciso I, da lei 8.080/90) é fundamental e assegura a primazia da vontade do paciente, em vez de permitir o anacrônico protagonismo médico. O princípio do consentimento informado confere, inclusive, o direito de recusar a utilização da forma remota e decidir pelo atendimento presencial, que lhe deve ser assegurado. Nessa linha, emerge como consequência natural do respeito à vontade do paciente o direito à assistência segura e com qualidade e proteção e confidencialidade dos seus dados pessoais (incisos V e VI), o que atrai leitura conjugada e coordenada com a Lei. nº 13.709/2018 - a chamada Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD). A constitucionalidade da Lei de Telessaúde é tributária de sua conformidade com os princípios de proteção integral da pessoa humana, no qual o paciente é considerado protagonista da tomada de decisões e seu consentimento é máxima da sua existência como sujeito moral. Convém destacar, diante do rol principiológico, que o princípio da justiça respalda a promoção da universalização do acesso dos brasileiros às ações e aos serviços de saúde, em compreensão que se aproxima da sua versão bioética, na qual a distribuição dos recursos na área médica deve ser realizada de forma justa e equitativa, buscando a igualdade de condições na assistência e tratamento, em nítida feição distributiva do sentido de justiça. Naturalmente, a Lei da Telessaúde não pode se distanciar dos corolários do direito fundamental à saúde, esculpidos no art. 196, bem como dos objetivos da República de justiça e solidariedades sociais, não discriminação e igualdade substancial. A intrínseca vulnerabilidade do paciente, em especial no terreno virtual, impõe a responsabilidade digital (inciso IX) e do profissional de saúde (art. 26-G, inciso I, parte final, da lei 8.080/90), uma vez que tal modalidade de assistência, como já afirmado, descortina novos riscos e danos que devem ser evitados e, caso constatados, integralmente reparados, de acordo com o regime de responsabilidade atinente a cada especialidade e segundo as prescrições éticas que moldarão o modelo de culpa normativa de cada área profissional. Na contramão da boa técnica legislativa, a Lei de Telessaúde é genérica e não disciplina todas as questões que dela se desdobram, embora faça expressa menção à aplicação das normas já existentes e que asseguram direitos e regulam institutos afins. Nessa direção, a interpretação da lei deve considerar os preceitos do Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014), do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990), da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018), da Lei do Ato Médico (lei 12.842/2013), da Lei do Prontuário Eletrônico (lei 13.787/2018),11 entre outras que dispensam citação expressa como o Código Civil vigente. A matéria permanece, em razão das suas miudezas e especificidades técnicas, sendo objeto de regulação por normas expedidas pelos órgãos competentes, tais como o Ministério da Saúde, os Conselhos de fiscalização do exercício profissional, e outros órgãos reguladores competentes (arts. 26-E e 26-D, da lei 8.080/90), que, a partir da promulgação da nova Lei, devem se submeter às orientações gerais estampadas no marco legal. Cabe destacar que é dispensada a inscrição secundária ou complementar do profissional de saúde em outra jurisdição para o exercício da modalidade de telessaúde, em conformidade com o artigo 26-H, da lei 8.080/90, que se encontra em consonância com os arts. 10, § 4º, e 17, § 1º, da resolução nº 2.314/2022 do CFM. Já o art. 3º da lei 14.510/2022 determina que é obrigatório o registro das empresas intermediadoras de serviços médicos de telemedicina, além de um diretor técnico médico dessas empresas no Conselho Regional de Medicina dos Estados em que estão sediadas (art. 17, Resolução nº 2.314/2022 do CFM). Os infratores incidirão no disposto no art. 10, caput, inciso II da lei 6.437, de 20 de agosto de 1977, que se refere às infrações à legislação sanitária federal. Em sua versão preambular, o Projeto de Lei não continha nenhuma menção específica à tutela das pessoas com deficiência, em que pese a valiosa utilidade dessa modalidade de assistência a essa vulnerável população. Por isso, ainda que pontual, a alteração provocada com o acréscimo do inciso V ao art. 19 da lei 13.146/2015 revela a preocupação com o direito à saúde das pessoas com deficiência, bem como a necessária interlocução entre telessaúde e as demandas desse grupo, eis que atinge diretamente a qualidade e o acesso. A acessibilidade à saúde é uma das preocupações afirmadas no preâmbulo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), internalizada no ordenamento nacional com status de emenda constitucional, por meio do Decreto nº 6.949/2009, que, em especial, em seu art. 25, assegura que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência, cabendo aos Estados partes propiciarem o acesso a serviços de saúde, oferecendo programas e atenção à saúde da mesma variedade, qualidade e padrão, inclusive o diagnóstico e intervenção precoces. Ressalta-se que a CDPD determina que os serviços de saúde às pessoas com deficiência devem ser propiciados o mais próximo possível de suas comunidades, o que, por si só, já revela a importância da telessaúde num país de dimensões continentais, bem como exige que os profissionais de saúde dispensem a mesma qualidade ofertada às demais pessoas. Com a modificação legislativa, é atribuição do SUS aprimorar o atendimento neonatal, com a oferta de ações e serviços de prevenção de danos cerebrais e sequelas neurológicas em recém-nascidos, inclusive por telessaúde. Essa previsão está em conformidade com o conceito e abrangência do direito de saúde assegurado na Constituição Federal (arts. 196 e 197), na própria Lei do SUS (arts. 6º, X, 7º, XI) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 7º, 8º, 10 e 14). Uma espécie entre as modalidades de telessaúde é o telemonitoramento, que pode se revelar extremamente salutar no caso de pessoa com deficiências. Inclusive, já existe um sistema de monitoramento desenvolvido pela Microsoft Azure para controle de recém-nascidos com alto risco de lesão neurológica, a fim de antecipar diagnóstico, evitar sequela, paralisia cerebral, cegueira, surdez. O sistema consiste em uma central que transmite dados em tempo real. Esses dados ficam armazenados em nuvem e com a inteligência do ambiente possibilita otimizar custos, bem como guardar dados com o uso de machine learning, que viabiliza a medicina preditiva por meio de algoritmos de tratamento e constitui uma medida benéfica para a saúde.12 Além disso, pessoas com deficiência física ou com dificuldade de locomoção serão beneficiadas pela telessaúde, que oportunizará, ainda, contatos com médicos especialistas de outras localidades. Nesse cenário, observa-se que o potencial inclusivo da telessaúde e da telemedicina são significativos e permitem a acessibilidade aos serviços de saúde não somente para superar as barreiras físicas, mas também comunicacionais e tecnológicas. A nova lei que regula a telessaúde no Brasil não é infensa às críticas, eis que perdeu a oportunidade de tratar da questão de forma sistemática, abrangente, disciplinando problemas já vivenciados com o uso de novas tecnologias na seara da saúde digital. Por outro lado, a lei 14.510/22 encerra, definitivamente, com as dúvidas em relação à legalidade da prestação de serviços de saúde à distância, até mesmo em razão das restrições que os conselhos profissionais impõem e que foram, por motivos excepcionais, flexibilizadas durante a pandemia da Covid-19. A telessaúde configura, com a edição da Lei, modalidade regular de prestação de serviços de saúde, tanto é que prevê no art. 26-F, da lei 8.080/90, que qualquer ato normativo que pretenda restringir a prestação de serviço de telessaúde deverá demonstrar a imprescindibilidade da medida para que evite danos à saúde dos pacientes. Supera-se, desse modo, a visão de excepcionalidade que permeava a telessaúde para a salutar compreensão de seu formato como modalidade regular e permanente de prestação dos serviços de saúde a todos os pacientes, desde que observadas as disposições legais. Espera-se que, com a regulação da telessaúde, haja o implemento de políticas públicas que visem a ampliação e a especialização do atendimento da população de forma segura, com consequente redução dos custos e maior facilidade na triagem de casos, possibilitando o desenvolvimento de tecnologias nacionais de ponta, inclusive com o uso de inteligência artificial. Tal cenário converge positivamente com a superação das barreiras geográficas e socioeconômicas, além de propiciar um maior acesso aos cuidados de saúde de forma igualitária, universal, com qualidade e eficácia. Concretiza-se, com isso, a redução das desigualdades regionais e sociais no Brasil, que há tempos flagela a população brasileira com a desigual distribuição dos escassos recursos de saúde, cuja concentração de profissionais nas regiões Sudeste e Sul sempre impediram o acesso à saúde integral e de qualidade, de forma igualitária, em todas as regiões do país. Cumpre-se, em leitura constitucional da Lei de Telessaúde, um dos objetivos da República, democratizando o acesso à saúde e efetivando um dos direitos fundamentais mais básicos. __________ 1 Parte das reflexões aqui expressas a respeito da telessaúde encontram-se desenvolvidas em PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. A Telemedicina Inteligente no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Lex Medicinae, ano 19, n.º 38, jul./dez., 2022, p. 73-92. 2 Na justificativa do Projeto de Lei apresentado, encontram-se os seguintes argumentos: "[...] o atendimento virtual cria ou aumenta o acesso a opiniões de diversos profissionais e possibilita eventuais intervenções corretivas em fases iniciais de doença ou descompensação clínica, evitando que quadros se agravem antes de conseguirem usufruir de atendimento especializado. Ademais, a telemedicina cria a possibilidade de oferecer suporte técnico de médicos especialistas a médicos com menos experiência ou de outras especialidades. A telemedicina também pode ser utilizada como ferramenta de treinamento para cuidadores e familiares de pessoas idosas ou acamadas. [...] Para além dos serviços médicos propriamente ditos, a telemedicina ainda pode proporcionar ao país um investimento em novas estruturas atendimento remoto e o desenvolvimento de tecnologia nacional. A geração de empregos e a movimentação da economia resultantes da liberação da telemedicina não podem ser desprezadas, particularmente quando as perspectivas de queda na geração de riquezas no Brasil são palpáveis". Disponível aqui: 19 jan. 2021. 3 Cf., entre outros, SCHAEFER, Fernanda. Proteção de dados de saúde na sociedade de informação: a busca pelo equilíbrio entre privacidade e interesse social. Curitiba: Juruá, 2010, p. 82-83; PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. O uso da internet na prestação de serviços médicos. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor. (Org.). Direito digital: direito privado e internet. 2 ed. São Paulo: FOCO, 2019, p. 392-432. 4 Cf. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. A Telemedicina Inteligente e a nova Resolução nº 2.314/2022 do CFM. Coluna de Direito Civil da Editora Fórum - Conhecimento jurídico, Jardim Atlântico - BH/MG, p. 1-5, 25 jul. 2022. 5 Disponível aqui. Acesso em 25 jan. 2023. 6 Disponível aqui. Acesso em: 07 jan. 2023. 7 Disponível aqui. Acesso em: 07 jan. 2023. 8 Disponível aqui. Acesso em: 07 jan. 2023. 9 A Resolução nº 218/97 do Ministério da Saúde reconhece como profissional de saúde de nível superior as seguintes categorias: assistentes sociais, biólogos, profissionais de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Disponível aqui. Acesso em 04 jan. 2023. 10 Art. 6º, § 5º, item 16, da resolução 2.314/2022 do CFM. 11 Art. 26-G, inciso II, da lei 8.080/90. 12 Disponível aqui. Acesso em: 07 jan. 2023.
O nome é um dos elementos externos que permitem a individualização e a construção da identidade, e configura, portanto, um atributo essencial da personalidade humana. Nesta medida, a tutela do nome à luz do princípio da dignidade da pessoa humana deve refletir o seu livre desenvolvimento, que necessariamente perpassa pela existência de um prenome que individualize dignamente o seu titular1. Os tribunais pátrios dedicam cada vez mais atenção ao direito ao nome como manifestação da personalidade, se preocupando com a análise pormenorizada dos casos concretos submetidos ao crivo judicial, o que, no entanto, tende a diminuir com as recentes alterações legislativas, em especial com a promulgação da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, que alterou a Lei de Registro Público. Por força da modificação operada pela novel lei, depreende-se que o princípio da imutabilidade não mais prospera no direito brasileiro, que autorizou a alteração do prenome de forma imotivada e sem necessidade de autorização judicial, embora a limite em única possibilidade, o que revela ainda que a segurança jurídica é um valor a ser perseguido na tutela do nome. As recentes alterações legislativas e os precedentes judiciais revelam a ampliação da esfera de autodeterminação individual em relação ao direito ao nome, em nítido movimento que prestigia a proteção integral da pessoa em prol de um suposto interesse público de identificação social. É incontroverso que a já referida lei 14.382/2022 modificou de forma substancial a tutela do nome da pessoa humana e, a partir da nova redação do art. 56, permite que a pessoa, após atingida a maioridade civil, requeira pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial. Cuida-se de inovação que exige cautela em sua análise, eis que autoriza a alteração de prenome de forma imotivada, ou seja, sem comprovação que seja seu prenome de uso ou conhecido socialmente. Ao que parece, o legislador ao reconhecer no art. 55 o direito ao nome, atributo da personalidade vinculado à dignidade, optou pelo modelo da liberdade da pessoa em alterar o seu prenome caso por motivos pessoais não aprecie seu nome, independentemente de ser um nome vexatório ou incompatível com sua identidade social projetada. No entanto, o legislador limitou a alteração imotivada de prenome a uma única vez, sendo as demais e a própria desconstituição dependente de submissão ao Poder Judiciário. Além disso, o art. 57, por sua vez, foi igualmente alterado para permitir a alteração posterior de sobrenomes perante o oficial de registro civil, independentemente de autorização judicial, a ser averbada nos assentos de nascimento e casamento, nas seguintes hipóteses: (i) inclusão de sobrenomes familiares; (ii) inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento; (iii) exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas; (iv) inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. Se, por um lado, as modificações legislativas são voltadas a promover a liberdade do indivíduo na escolha de seu nome, em movimento que prestigia a extrajudicialização, por outro, a mudança desmotivada se afasta da configuração do nome como elemento estável da personalidade humana. Embora a identidade seja fluida, ou seja, "não se congela no tempo, renova-se, renasce com o interagir social, na busca da realização do projeto pessoal de vida"2, a mesma deve ser externada objetivamente de modo a permitir a segura individualização da pessoa, sobretudo se se referir aos aspectos estáveis da identidade, isto é, aos fatores de identificação das pessoas. Nessa linha, cabe observar, ainda, a inexistência de prejuízos para terceiros como requisito para alteração do prenome, de maneira a evitar possíveis fraudes e fornecer a tão almejada segurança ao tráfego jurídico3. Nesse cenário, permanece a preocupação com a legitimidade da vontade externada em alterar o prenome, de modo a evitar prejuízos para terceiros, como fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação. O disposto no art. 56, § 4º da LRP evidencia a necessidade de atender a tutela do direito ao nome de forma condizente com o direito à identidade pessoal, de modo a cumprir sua função precípua de individualização da pessoa na esfera íntima, familiar e social, bem como a segurança nas relações jurídicas. As modificações acima apontadas, necessariamente, desaguam na análise do direito da pessoa transexual à alteração do prenome e do gênero, cujos debates acirrados foram travados em período anterior ao da promulgação da Lei n. 14.382/2022. No Brasil, a cirurgia de transgenitalização4, cujo procedimento atualmente obedece aos critérios apontados na resolução 2.265/20195, do Conselho Federal de Medicina, trouxe profundas reflexões no tocante à possibilidade de retificação do registro civil dos transexuais. Nas últimas décadas, assistiu-se desde a criminalização da realização da cirurgia de readequação sexual, na qual se considerava a prática médica como delito de lesão corporal, forçando a muitos brasileiros a irem para o exterior realizar o procedimento, até a plena legalidade da mudança de sexo e, a consequente, possibilidade de alteração do nome no registro civil. O caso da modelo Roberta Close se destacou no cenário jurídico nacional, ascendendo um debate então adormecido no país. Registrado como Luís Roberto no assento civil, Roberta Close, nome escolhido após a realização da cirurgia de mudança de sexo na Inglaterra, em 1989, obteve autorização da Justiça brasileira em primeira instância, em 1992, para a alteração registral. Contudo, a sentença foi reformada em sede recursal pelo Tribunal fluminense. Somente em 2005, finalmente, a modelo teve reconhecido seu direito à mudança do assento de registro6. O valioso precedente não eliminou o conservadorismo de diversos magistrados pelo país afora. O Superior Tribunal de Justiça, em decisão altamente criticável e na contramão do entendimento adotado pelas instâncias inferiores, se posicionou a favor da averbação da mudança de sexo no registro civil, determinando que se fizesse referência ao sexo morfológico do pleiteante no assento como "decorrente de decisão judicial, pela sua condição de transexual submetido a cirurgia de modificação do sexo"7. Este julgado reflete o demasiado apego a valores como a segurança jurídica e boa-fé de terceiros em detrimento do princípio da dignidade humana, valor fundante da República brasileira.8 As barreiras impostas à retificação do registro civil dos transexuais diminuíram cada vez mais, discutindo-se, inclusive, sobre a necessidade de realização da cirurgia de transgenitalização. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu que é perfeitamente possível a alteração antes da cirurgia, com base no direito à identidade pessoal e no princípio da dignidade humana. No julgado restou firmado que "a distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade pessoal"9. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também manifestou entendimento favorável à retificação de registro civil para modificação do prenome nome e do sexo de pessoa transexual não submetida à cirurgia de transgenitalização por decisão pessoal baseada na dificuldade da sua realização e os riscos inerentes do procedimento. A partir de interpretação constitucional do art. 58 da Lei de Registro Público, entendeu-se que "não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como ser humano"10. Nessa direção, o direito à alteração do nome merece tutela na medida em que atende à identidade pessoal objetivamente externada pelo requerente. Nessa linha não há óbice para o deferimento do pedido independentemente da realização da cirurgia ou mesmo do processo transexualizador11. Enquanto se discute a questão, as instâncias executivas têm admitido que transexuais e travestis adotem o chamado nome social em atos e procedimentos da Administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional. O nome social é aquele pelo qual as pessoas se identificam e são identificadas socialmente. No Estado do Rio de Janeiro, o Decreto 43.065/2011 dispõe sobre o uso do nome social. Apesar de configurar medida paliativa, o nome social demonstrou ser importante instrumento de assegurar que pessoas transexuais pudessem se identificar socialmente sem sofrer constrangimento e humilhação em diversas situações e acabou se difundido em diversas Universidades brasileiras e Instituições de relevância social, como a Ordem dos Advogados do Brasil.12-13 Anderson Schreiber lecionava, ainda sob a égide da redação anterior, que a alteração do nome de transexuais "insere-se, a toda evidência, no âmbito de aplicação do art. 55, parágrafo único, da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), que autoriza a alteração do nome que expõe o sujeito ao ridículo". Defendia, neste sentido, que "não há sequer a necessidade de recorrer aos princípios constitucionais, extraindo-se claramente da legislação infraconstitucional a possibilidade de alteração do nome que submeta a pessoa a constrangimento"14. O fundamento, portanto, autorizador da mudança do nome se assenta na vedação à discriminação e constrangimento do portador do nome não compatível com a identidade externada pela pessoa. À luz do princípio da dignidade da pessoa humana, advoga Luiz Edson Fachin que não parece adequado "tornar a cirurgia condição sine qua non para a mudança de nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito. Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao corpo agredido". Assim, defender a possibilidade de alteração de registro civil mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização é garantir e promover a dignidade da pessoa transexual, eis que "configura-se como infração ao direito ao próprio corpo que se exija da pessoa transexual a cirurgia de redesignação sexual, para que só então tenha direito à mudança de nome e sexo em seu registro civil".15 Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça, em importante guinada de sua posição anterior, passou a entender que os transexuais têm direito à alteração do registro civil independentemente da realização de cirurgia de adequação sexual, "que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico", fundamentando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como nos direitos à identidade, à não discriminação e à felicidade16. Tal orientação restou definitivamente consolidada com a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, na qual, por maioria, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil.17 Cristaliza-se, portanto, a compreensão de que a identidade de gênero é um elemento constitutivo da dignidade humana e que se submete à redoma da liberdade e da vida privada, de maneira a limitar a interferência estatal na esfera mais íntima dos indivíduos. Desse modo, ao reconhecer a eficácia horizontal dos direitos constitucionais nas relações privadas e a interpretação conforme a convenção, o STF afirma que o direito ao nome, como essencial atributo da personalidade, independente de cirurgia de transgenitalização para alteração18. Assim, a imposição de requisitos como a submissão à intervenção cirúrgica ou a sujeição ao processo transexualizador são dispensáveis para fins de alteração do nome no registro civil, tendo em vista que o que realmente importa é a expressão da identidade pessoal objetivamente exteriorizada. Não é um discurso médico ou um ato de disposição do próprio corpo que legitima a mudança do nome, mas sim a autodeterminação existencial projetada no meio social. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando o bom desempenho dos órgãos prestadores de serviço notariais e de registro, no uso de suas atribuições, resolveu editar o Provimento 73, de 28 de junho de 2018, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais. Tal normativa, a rigor, uniformiza no território nacional o procedimento extrajudicial de modificação do prenome e do gênero de pessoas transexuais, evitando regulamentações estaduais díspares e incompatíveis com a decisão do Corte Constitucional. Nesse sentido, nos termos do seu art. 2º, "toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida". Em acerto, o CNJ prestigia a "identidade percebida", ou seja, a forma como o sujeito se projeta na sociedade, de modo a evitar eventuais obstáculos e exigências descabidas do Registro Civil, o que contrariaria o conteúdo da decisum do STF. Inclusive, o mencionado Provimento autoriza que a alteração abranja a inclusão ou a exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência, o que revela a preocupação com a não-discriminação, bem como com a efetiva promoção da identidade pessoal da pessoa transgênero (art. 2º, § 1º). Por outro lado, proíbe a alteração dos sobrenomes e a confusão com a identidade de prenome com outros membros da família (art. 2º, § 2º). A averbação do prenome, do gênero ou de ambos deve ser realizada diretamente no ofício do RCNP onde o assento de nascimento foi lavrado (art. 3º). Decerto, o Provimento é meritório em promover a liberdade existencial da pessoa transexual, uma vez que impõe que o "procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos" (art. 4º), independentemente de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou do próprio processo transexualizador, bem como de eventual atestado médico. A preocupação com a segurança jurídica é realçada com a obrigatoriedade de "identificar a pessoa requerente mediante coleta, em termo próprio, conforme modelo constante do anexo deste provimento, de sua qualificação e assinatura, além de conferir os documentos pessoais originais" (art. 4º, § 2º), além de indicar extenso rol de documentação obrigatória e facultativa. Cabe ao requerente, ainda, declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida ou, ao optar pela via administrativa, comprovar o arquivamento do feito judicial anteriormente proposto. O Provimento é enfático ao assegurar a natureza sigilosa do procedimento, uma vez que atinente a informação de índole existencial, logo, resguardado pela intimidade e vida privada, sem prejuízo de considerá-lo dado sensível, que implica em discriminação e estigma social. Desse modo, nos termos do art. 5º, a informação a respeito da alteração de prenome e gênero não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral. Em eventual suspeita de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto ao desejo real da pessoa requerente, cabe ao registrador, de forma fundamentada, se recusar a realizar o procedimento e encaminhar o pedido ao juiz corregedor permanente. Conforme dicção do art. 8º, uma vez finalizado o procedimento de alteração no assento, cabe ao ofício do RCPN, às expensas da pessoa requerente, comunicar o ato oficialmente aos órgãos expedidores do RG, ICN, CPF e passaporte, bem como ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Nos demais registros, o próprio interessado deve providenciar a alteração da sua identificação. No entanto, na contramão dos fundamentos da decisão do STF, o Provimento n. 73/2018, impõe como exigência para a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro dos descendentes da pessoa transexual da sua anuência quando relativamente incapazes ou maiores, ou do outro genitor, se menores de 16 anos. Cuida-se de regra sintomática, uma vez que desrespeita a identidade de gênero da pessoa transexual e invisibiliza sua atual projeção existencial no âmbito registral. Ao submeter a averbação do registro de seus filhos à anuência deles ou do pai ou da mãe reforça a ideia de apagamento da identidade da pessoa transexual, além de permitir documentos com informações não mais fidedignas. A bem da verdade, revela norma discriminatória e atentatória à dignidade humana, bem como a não averbação em nada mudará o fato do ascendente ser pessoa transexual e já ter alterado seu prenome e gênero em seu assento registral. Nem seria cabível suscitar o melhor interesse de crianças e adolescentes, uma vez que não é o fato de o pai ou a mãe ser transexual que violaria tal princípio, mas sim um exercício irresponsável da parentalidade. A eventual discriminação e preconceito sociais que o filho venha a sofrer não é de responsabilidade do pai ou mãe transexual, mas sim um grave sintoma de uma sociedade flagelada pelo estigma e exclusão. Mais grave é a necessidade de anuência do cônjuge para a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento. Como manter uma certidão de casamento com informações que não mais são verdadeiras e incompatíveis com a identidade de um dos cônjuges? Eventual inconformismo do cônjuge com a alteração do prenome e gênero de seu consorte apenas autoriza, no plano jurídico, a via do divórcio por insuportabilidade da vida em comum, embora constitua direito potestativo, podendo ser exercido de forma imotivada. Não há fundamentos razoáveis para tal sujeição da identidade à anuência de outra pessoa, ainda que filho ou cônjuge. A identidade de gênero é constitutiva da existência da pessoa em sua intrínseca dignidade e não se submete ao aval alheio para sua concretização19. Apesar do Provimento permitir o suprimento judicial para as hipóteses de discordância ou recusa na averbação da certidão de nascimento do descendente ou de casamento, por si só submeter o caso ao Poder Judiciário já se distancia da mínima intervenção estatal nas relações familiares, eis que nenhum argumento seria suficiente para proibir a averbação, em nítido descompasso com a promoção da identidade existencial da pessoa transexual. Com a promulgação da lei 14.382/2022, a diretriz da imutabilidade do nome cedeu seu protagonismo para o princípio da liberdade da escolha do prenome, ainda que extrajudicialmente limitada a uma vez, após atingir a maioridade civil. Com isso, não apenas os transgêneros têm direito fundamental à alteração de seu prenome e de seu gênero, mas todas as pessoas, uma vez que a identidade pessoal é o elemento balizador. Por isso, é suficiente a manifestação de vontade do indivíduo, que poderá exercer tanto pela via administrativa, nos casos previstos em lei, ou por meio de ação judicial. Mesmo diante da novel lei, o provimento 73/2018 do CNJ permanece útil e aplicável, uma vez que disciplina especificamente a alteração não apenas do prenome, mas igualmente do gênero de pessoas transexuais, bem como se preocupa com o sigilo do procedimento e a vedação de qualquer menção do termo "transexual". Desse modo, ainda que a todos seja atualmente autorizado a alteração imotivada do prenome, aos transexuais ainda cabe disciplina que não tolere a discriminação e promove materialmente a igualdade, em razão das especificidades e da ausência de lei específica sobre o tema. O atual cenário normativo brasileiro impulsiona e desafia uma liberdade cada vez maior na alteração do prenome e gênero das pessoas transexuais, inclusive nos registros de casamento e de nascimento dos filhos, sob pena de revelar situação discriminatória, que não deve ser tolerada em nosso sistema constitucional. Nessa linha, o provimento 73/2018 do CNJ revela importante iniciativa em prol da concretização do direito à alteração do prenome e do gênero de pessoas transexuais, cujo desiderato de uniformizar no país o procedimento cartorário é louvável, em prestígio à decisão do STF sobre a matéria. No entanto, a exigência de anuência dos filhos ou do cônjuge para a averbação nas respectivas certidões de nascimento e casamento ainda revela apego a uma suposta segurança jurídica, que não prestigia, em nome da dignidade humana, a identidade de gênero e o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas transexuais, o que descortina sua inconstitucionalidade diante dos princípios albergados na Lei Maior. ___________ 1 Seja consentido remeter a ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 52, p. 203-243, 2012; e, ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A disciplina jurídica do nome da pessoa humana à luz do direito à identidade pessoal. RJLB - Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 3, p. 1141-1205, 2017. 2 CHOERI, Raul. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 165. 3 "Art. 56. [...] § 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação. (Incluído pela lei 14.382, de 2022)". 4 V. CHOERI, Raul. O conceito de identidade e a redesignação sexual. Rio de Janeiro, Renovar, 2004; e,  BARBOZA, Heloisa Helena. Transexualidade: a questão jurídica do reconhecimento de uma nova identidade. In: Advir (ASDUERJ), v. 28, 2012, p. 54-66. 5 Em substituição às antigas Resoluções ns. 1.955/10, 1.652/02 e 1.482/97, todas do CFM, que versavam sobre o tema. A vigente Resolução dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. 6 O caso é comentado por SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 201-202. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  Recurso Especial n. 678.933, Terceira Turma, Relatoria: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 22 mar. 2007. 8 Em comentário crítico ao mencionado julgado remete-se a Thamis Ávila Dalsenter. Transexualidade: A (in)visibilidade pelo Judiciário: comentários ao REsp 678.933. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 8, n. 31, Rio de Janeiro, 2007, pp. 187-206. 9 BRASIL. Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70022504849, Oitava Câmara Cível, Relatoria; Desembargador Rui Portanova, julg. 16 abr. 2009. 10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208, 17ª Câmara Cível, Relatoria: Des. Edson Aguiar de Vasconcelos, julg. 21 mar. 2014. 11 Sobre o processo transexualizador seja consentido remeter ao trabalho de Heloisa Helena Barboza. Procedimentos para redesignação sexual: um processo bioeticamente inadequado. Rio de Janeiro: s.n., 2010. Disponível aqui. Acesso em 20 jul. 2012. 12 A Resolução n. 7, de 07 de junho de 2016, permite que advogados travestis e transexuais usem o nome social no registro da ordem, bem como na publicidade profissional que promover ou nos cartões e material de escritório de que se utilizar. 13 Enquanto o Poder Legislativo permanece inerte, o Governo Federal publicou o Decreto n. 8.727, de 28 de abril de 2016, dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, determinando que os órgãos e as entidades devam adotá-los de com requerimento, de forma a evitar o uso de expressões pejorativas e discriminatórias. 14 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 200-201. 15 FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 1, jul./set., 2014, p. 54-55. 16 Em razão de segredo de justiça, o número do processo não foi divulgado. As informações extraídas foram publicadas no sítio eletrônico da Corte em 09 de maio de 2017 e se encontram disponíveis aqui. Acesso em 24 maio 2017. 17 STF, ADI nº 4.275, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, julg. 01 mar. 2018. 18 V. STF, RE nº. 670.422, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 15 ago. 2018. 19 "Art. 8º. [...] 2º A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, bem como da de ambos os pais. 3º A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge. 4º Havendo discordância dos pais ou do cônjuge quanto à averbação mencionada nos parágrafos anteriores, o consentimento deverá ser suprido judicialmente".
Ultimamente temos visto com frequência a exibição dos filhos e/ou de situações particulares da vida privada das famílias nas redes sociais, seja sob o pretexto de denúncia, pedido de ajuda ou mesmo em formato de enquete, "jogando" para os amigos virtuais ou seguidores a oportunidade de opinarem sobre que caminho um dos integrantes daquele núcleo familiar deve tomar. Ocorre que a permissão de acesso à vida privada ou a opção de exposição não atinge apenas aquele que a divulga, mas todo o núcleo, incluindo crianças e adolescentes, afetando a privacidade e intimidade de todos os envolvidos. Podendo causar consequências danosas à vida daqueles integrantes expostos na rede. O caso mais recente e que vem causando alvoroço nas mídias sociais envolve a atriz Luana Piovani e o surfista Pedro Scooby, pais de 3 (três) filhos: Dom e os gêmeos Bem e Liz. Importante esclarecer que o presente artigo tem por objetivo instigar a reflexão sobre a exposição excessiva, sob a perspectiva invisibilizada do melhor interesse da criança em casos como esse. Tendo como pano de fundo as normas e princípios regentes do Direito das Famílias e das Sucessões. Frisa-se que, independente da relação que se estabelece entre os pais os deveres para com os filhos se mantém. Esta Autoridade Parental entendida como um poder-dever, precisa ser exercida por ambos os genitores, não importando o modelo de guarda estabelecido ou da regulamentação da convivência, quiçá o quanto alimentar pago, conforme preceituado pela Constituição Federal de 1988, Código Civil de 2002 e Estatuto da Criança e Adolescente de 1990. Nesse sentido, Joyceane Bezerra de Menezes e Maria Celina Bodin de Moraes (2015, p. 528) preceituam que [...] cabe à autoridade parental acompanhar o menor no paulatino processo de construção da personalidade, reconhecendo-lhes as possibilidades de protagonizar sua própria história. Como indivíduos em formação, sua personalidade ainda está em desenvolvimento e seu direito geral de liberdade não é pleno. Gozam de uma liberdade assistida, eventualmente vigiada, que vai se expandindo na proporção do seu amadurecimento.1 Ocorre que divergências quanto a criação e educação dos filhos muitas vezes escancaradas nas redes sociais ganham muito mais visibilidade e alcance quando os genitores são figuras conhecidas, que reúnem milhões de seguidores, ampliando a pulverização das informações potencializada pelos sites e perfis de bisbilhotices, os números de clicks aumentam de forma significativa e a exposição dos filhos também. Os acontecimentos mais recentes entre aquele par-parental voltam-se inicialmente às questões de comunicação e tomada de decisão acerca do uso de aparelho celular e acesso à internet pelos filhos, bem como o monitoramento deste uso e consumo. Sendo este conflito familiar compartilhado em rede, onde cada um dos genitores detém um ponto de vista e apresentam uma nítida dificuldade de comunicação envolvendo a vida dos filhos. Prosseguindo com o conflito ainda não superado, Luana Piovani por intermédio de um reels postado no Instagram (02/01/2023) falou sobre vários aspectos da paternidade exercida pelo pai Pedro Scooby, desde pagamento parcial dos alimentos, indicação de irresponsabilidade até possível tentativa de alteração de guarda e residência dos filhos. Fazendo um contraponto Pedro Sccoby não se quedou silente, optou por se manifestar em sua rede social (03/01/2023) trazendo prints da conversa que teve com a mãe dos seus três primeiros filhos por whatsapp, acerca do pagamento dos alimentos e de novo acordo envolvendo a residência das crianças. Vale ressaltar em relação a mudança de residência fixa mencionada pelo genitor em seu instagram, onde escreve: "Eu não pedi a guarda das crianças, eu pedi para que eles passassem o ano de 2023 no Brasil, com a possibilidade da mãe estar com eles sempre que quiser [...]". Nota-se que a convivência familiar é elemento cardeal no desenvolvimento dos filhos, principalmente na infância e precisa ser devidamente regulamentada [3]. Não se falando mais no Brasil de convivência/ visitas livres, os dias, os horários e a forma que esta interação se dá tanto de forma física como virtual precisa ser delineada a fim de se evitar o distanciamento parental. Referidas condutas e comportamentos de ambos veem a refletir a realidade de muitos pais e mães: dificuldade de comunicação, pagamento de pensão alimentícia, sentimento de posse em relação aos filhos e ainda, ausência de consenso no que tange a criação, educação e monitoramento destes, o que faz com que os seguidores se identifiquem com aqueles famosos e passem a achar de forma absolutamente equivocada, que trata-se de um exemplo a ser seguido e replicado, ou ainda, que se faz necessário tomar partido e a partir daí levantar bandeiras. Ocorre que lamentavelmente a bandeira com as posturas adotadas não coadunam com a proteção integral da criança e não visam o seu melhor interesse. Os aspectos jurídicos envolvendo o compartilhamento da vida familiar Para se ter noção do alcance é necessário pontuar que o vídeo postado por Luana Piovani já teve mais de 5,7 milhões de visualizações, 659 mil curtidas e 2.239 comentários. Naquela oportunidade através do reels declarou: "[...] porém se ele entrar aqui ele acaba conseguindo tirar as crianças por esse papo que estamos tendo aqui na internet, por eu expor os meus filhos. [...]". Da própria declaração da mãe verifica-se que ela reconhece, tanto que verbaliza que está expondo a vida dos filhos e que pode vir a ser prejudicada por esta conduta. Fazendo uso da mais nova expressão utilizada nas redes, não "querendo passar pano" para ninguém, cumpre ponderar que o genitor também não poupou os filhos e incorreu no mesmo comportamento, ou seja, ambos submeteram os filhos à potencialidade das redes de eternizar todas aquelas informações. Informações estas que estão diretamente ligadas à vida e intimidade dos filhos menores de idade. A doutrina nomeia estes atos de compartilhamento excessivo da vida dos filhos, seja por fotos, vídeos, informações, dados etc, como oversharenting. Fenômeno este que cresce a cada dia na sociedade da informação, onde compartilhar é sinônimo de viver e ser. Pode-se entender que o oversharenting como uma conduta excessiva em rede, prejudicial aos filhos que tem como autor os próprios pais. Atentando-se que o que deve ser observado não é apenas a quantidade ou alcance, mas sim o conteúdo do que é compartilhado em rede e suas potencialidades danosas de ordem material ou moral às crianças e adolescentes, que precisam ter seus direitos respeitados, quais sejam, o direito à imagem, à privacidade e ao respeito2. Afinal, os pais não possuem um poder irrestrito e ilimitado em relação aos filhos, a autoridade parental é limitada pelo princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Logo, Luana Piovani e Pedro Sccoby deveriam ter maior cautela e respeito à vida privada dos filhos ao compartilhar informações acerca das divergências e conflitos familiares que os assolam. É preciso compreender que nem tudo precisa e deve ser compartilhado nas redes, ainda mais quando se relaciona a vida dos filhos menores de idade. É difícil compreender as novas nuances da autoridade parental nesta era digital, por isso a cautela e prudência devem ser as palavras de ordem para ações dos genitores na internet. Afinal, não há como prever o alcance e o impacto que estes compartilhamentos podem vir a causar no desenvolvimento da personalidade dos filhos. O dever alimentar e as medidas judiciais cabíveis para regulamentação, execução e revisão dos valores Por trás de toda a exposição praticada por ambos os genitores há a questão que se apresenta como pano de fundo ou talvez a verdadeira mola propulsora para o uso do tribunal da internet; trata-se da ausência de consenso quanto à verba alimentar. Não raro acordos verbais são realizados e seu descumprimento gera revolta e impotência frente a impossibilidade de execução do devedor. Isto porque só é possível a execução após consubstanciado um título, no caso, a sentença. Da mesma forma, desentendimentos afloram a partir da ação de revisão de alimentos, seja porque a oferta é considerada diminuta ou insuficiente para a manutenção dos mesmos padrões de vida, seja porque a redução da possibilidade alegada não é compatível com a realidade ou com a vida divulgada em redes sociais; não à toa a teoria da aparência vem sendo cada vez mais utilizada e aceita pelos tribunais em casos que versam sobre alimentos. Fato é que ambos os genitores deverão contribuir na proporção de seus recursos para a manutenção dos filhos, portanto, o dever alimentar é de ambos, na medida das suas possibilidades. Ocorre que a não regulamentação da verba alimentar seja através de acordos com a devida homologação judicial ou da promoção de Ação de Alimentos costumam causar ruídos, falhas de comunicação e tensionar ainda mais as relações familiares já prejudicadas. E ainda, importante elucidar que quando judicializadas, as demandas que versam sobre alimentos filiação e guarda tramitam em segredo de justiça, na forma do art. 189, II do Código de Processo Civil, tendo o legislador se preocupado em conferir privacidade há questões familiares tão íntimas e sensíveis, por vezes verdadeiras mazelas de um determinado núcleo familiar. De forma conclusiva entende-se que, agindo aquele que expõe a vida e os processos na internet em total contramão com a intenção legislativa, na verdade extrapola seu direito de liberdade de expressão, na medida em que invade a esfera da privacidade e intimidade dos filhos atuando em verdadeiro abuso da autoridade parental. Em nome dos filhos compartilham como se fossem alcançar um bem maior mas o que causam é verdadeiro prejuízo, cometem ato ilícito quando da exposição e constrangimento que provocam. Seja qual for a motivação que levou à exposição na internet, esta não parece a opção mais adequada e nem a ser seguida visto que não confere proteção aos vulneráveis.O Direito detém ferramentas eficazes para o tratamento desses conflitos, seja em relação a guarda, convivência, residência e alimentos. Expor a milhões de pessoas a vida de crianças e adolescentes nunca deve ser o melhor caminho a se tomar. A proteção das crianças e adolescentes deve se sobrepor aos interesses particulares e muitas vezes vingativos de seus genitores.
Introdução O cuidado é parte integrante da vida, uma característica própria da humanidade, desde a mais antiga história do mundo. O cuidado humano surge com a própria vida tendo por finalidade preservá-la, fortalecê-la e aperfeiçoá-la. Inicia como um meio de sobrevivência e também como expressão de interesse e afeto (WALDOW, 1992). Na perspectiva de compreender o que é cuidado, encontramos diversos significados complexos trabalhados por diferentes concepções teóricas. Assim a palavra "cuidado" remete a ideia de fazer algo, de realizar uma ação, assumindo a conotação de atenção, simpatia, preocupação com alguém ou alguma coisa e a ideia de amor, carinho e dedicação. Na perspectiva foucaultiana, o cuidado é substituído pelo cuidado de si, discutido por ele no início dos anos de 1980, quando o filósofo discute a produção de subjetividade a partir da relação do sujeito consigo mesmo, abordando por meio do conhecimento socrático-platônico da arte da existência. A temática do cuidado de si aparece nas obras de Foucault no período denominado como Foucault tardio ou último pensamento, especialmente ao escrever a história da sexualidade em seu terceiro volume - A História da Sexualidade III - o cuidado de si. Para tanto, também aborda aspetos da subjetividade trabalhados na Hermenêutica do Sujeito. No curso ministrado no College de France, e que foi posteriormente editado na obra Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault afirma que era necessário estudar no pensamento antigo, mais especificamente grego e romano, o conceito de cuidado de si, a fim de se entender melhor as relações de sujeito e verdade. Foucault reporta que um dos estatutos do sujeito era o sujeito do cuidado de si, que se tratava de uma prática da liberdade que implica a criação e invenção de si mesmo como sujeito. Logo, a partir do conhecimento de si, as pessoas poderiam realizar dietas, exercícios, sexo, banhos, sem a necessidade de recorrer a especialistas, já que a pessoa mais indicada para esse cuidado é o próprio sujeito. O cuidado de si implica a relação de si consigo, um trabalho incansável de construção de si mesmo (FOUCAULT, 1994). O conceito do cuidado de si (denominado de epiméleia heautou) é, para Foucault, rico e complexo e pode ser definido sinteticamente como o ocupar-se de si mesmo, preocupar-se consigo. Para este pensador, ele, o cuidado de si, não cessou de constituir um princípio fundamental característico na filosofia ao longo de quase toda a cultura grega, helenistica e romana (FOUCAULT, 2011). Ademais, os trabalhos que um sujeito realiza vinculados ao cuidado de si aparecem como uma fórmula com a qual resistir aos embates e processos de (des)subjetivação por parte do Estado através das biopolíticas (BUB et al., 2006). Nesse contexto, o presente estudo objetiva refletir sobre a importância do cuidado de si e da resistência a des(subjetivação) para o cuidado com o outro, na perspectiva de Michel Foucault. Para tanto, realizamos a análise de alguns temas presentes no terceiro volume da História da Sexualidade - O Cuidado de Si (FOUCAULT, 1985), assim como de outros textos que tratam da temática, como a Hermenêutica do sujeito e ainda de livros e artigos de outros pensadores para melhor compreender a relação do cuidado de si com o cuidado do outro, abarcando também os aspectos da biopolítica para o cuidado de si e do outro. O cuidado de si para Foucault O cuidado de si para Michel Foucault é uma via alternativa para rever o modelo de sujeito e sociedade desenvolvidos e praticados na modernidade, uma vez que o cuidado de si é a atitude que o sujeito estabelece consigo mesmo no propósito de alcançar a verdade acerca de sua própria natureza. Exige um exercício ético e espiritual, no qual o indivíduo preocupa-se consigo por meio de práticas de si, envolvendo aprendizado e reflexão em direção ao próprio interior, autodeciframento, exame, exercício sobre si mesmo, transformação de si, autocontrole. Para tanto, é necessário que haja o retorno a si, ou a saída de um estado subjetivo de descuido de si, uma seja, uma mudança ou transformação da subjetividade. Em seu livro "A Hermenêutica do Sujeito", Foucault (2004), coloca que o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência. O termo grego para cuidado de si, epimeleia heautou, envolve a ideia de cuidar de si mesmo, ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo mesmo. A noção de epimeleia heautou foi se ampliando e tomando diversos caminhos e significações partindo da filosofia grega, passando pelo helenismo e chegando até a espiritualidade cristã (GRABOIS, 2011). Para discorrer sobre tais as transformações do conceito de cuidado de si na tradição ocidental, Foucault investiga três momentos: o socrático-platônico, a idade de ouro nos séculos I e II d.C. e na passagem aos séculos IV e V d.C. Tal transformação influenciou claramente as culturas posteriores. O cuidado de si tornou-se um verdadeiro fenômeno cultural como princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que queria obedecer ao princípio da racionalidade. Assim, o objetivo de Foucault ao discutir o cuidado de si em diferentes momentos históricos era de destacar as relações subjetividade/verdade de uma maneira mais geral, colocando-as na dimensão histórica e, sobretudo, mostrar que, com a evolução, o cuidado de si tornou-se um verdadeiro fenômeno cultural como princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que queria obedecer ao princípio da racionalidade moral. O momento socrático-platônico é considerado como o momento do surgimento do cuidado de si na reflexão filosófica. Neste período o cuidar de si é uma atividade política, na qual é necessário ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo, conhecer-se para conseguir cuidar do outro, governar cidades. Destacam-se as ideias de Sócrates, Platão e Hipócrates. No que se refere às práticas de cuidado de si, apontam-se diversas técnicas que são destinadas aos jovens e que requerem concentração, tais como as de meditação, de memorização do passado, de exame de consciência, do retiro, de resistência às tentações, de respiração e de preparação para o sonho (FOUCAULT, 2006). Além disso, ressaltam-se práticas relacionadas com a dieta (FOUCAULT, 1984). Posterior ao momento socrático-platônico, Foucault discute a idade de ouro para o cuidado de si, a qual abrange os séculos I e II d.C, havendo transformações no cuidado de si neste período, uma vez que o objetivo a ser alcançado passa a ser a finalidade em si mesmo e não a cidade, como no período anterior. E a forma principal passa a estar relacionada a uma prática de si e não mais ao conhecimento de si (FOUCAULT, 2006). O cuidado de si é considerado então, uma obrigação permanente que deve durar a vida toda, não tendo uma idade para ela iniciar na vida da pessoa, não sendo considerado nunca muito cedo nem muito tarde para ter cuidados com a própria alma (FOUCALTU, 2010). No momento cristão, III e IV d. C., o cuidado de si está relacionado à renúncia de si e não ao retorno a si, como na Antiguidade greco-romana. Nesse período se propõe o sacrifício, a renúncia a si em função de uma palavra dita por outro. O sujeito passa a ser guiado por meio da confissão cristã (FOUCAULT, 2012). Portanto, a moralidade cristã baseia-se na renúncia a si como forma de salvação. O indivíduo moderno constituído pela norma e pela disciplina, não tem no seu processo de constituição uma relação consigo mesmo, pois as regras impedem que tal relação ocorra. Sendo assim, o cuidado de si, sob a ótica do cristianismo, volta-se unicamente para o cuidado do outro, perdendo-se a autonomia do sujeito. Ao verificarmos as noções de cuidado de si e sua interligação com momentos históricos, identificamos as principais características do cuidado de si, como cuidar da própria alma, aprender a viver, ter a possibilidade e o dever de ocupar-se de si; uma verdadeira prática social. O cuidado de si aparece intrinsecamente ligado a um serviço de alma que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas; uma prática, ao mesmo tempo pessoal e social onde o conhecimento de si ocupa evidentemente um lugar considerável. O que podemos ressaltar então, com relação a noção do cuidado de si, é que o mesmo consiste em uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo. Cuidar de si implica que se converta o olhar do exterior, dos outros, do mundo, dentre outros aspectos para si mesmo. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. (FOUCAULT, 2010, p. 11-12). O cuidado de si como eixo norteador para o cuidado dos outros Uma análise superficial sobre o "cuidado de si" induz a interpretá-lo com uma visão egoísta e individualista do homem voltada para a ocupação egocêntrica sobre si (FOUCAULT, 2006). Contudo, com um aprofundamento da leitura foucaultiana é possível compreender que para este filósofo o cuidado de si é um arcabouço imprescindível para o cuidado dos outros (FOUCAULT, 2008), especialmente por considerar que os sujeitos se inter-relacionam. Esta visão mais ampla refere-se ao momento socrático-platônico em que o cuidado aos outros era excitado, especialmente por Sócrates. Sobre este momento, a noção de cuidado de si referiu-se ao termo "ocupar-se consigo mesmo", que segundo Foucault indica uma relação "singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona (...)" (FOUCAULT, 2010, p. 50). Assim, esta relação interpessoal e recíproca entre o "eu" e o "outro" está pautada na noção que ele mesmo denominou de governamentalidade (FOUCAULT, 2008), no sentido moral e não estatal, pois a maneira pela qual nos conduzimos é um domínio constitutivo desta noção e está intimamente atrelada ao modo como governamos os outros (FOUCAULT, 2004). Portanto, a governamentalidade diz respeito ao modo como nos conduzimos e conduzimos os outros. Desse mesmo modo, também não pode ser concebida a ideia de passividade e conformismo, pois o cuidado de si é um "princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de inquietude permanente" (FOUCAULT, 2006, p. 11). Assim, para exercer tal governamentalidade é necessário ser ativo sem anular a liberdade daquele que é conduzido, pois esse "outro" também apresenta uma maneira própria de governar a si mesmo e pode apresentar como reação uma resistência ao poder pelo modo de governar pré-existente, o que produz um novo ponto de partida. Esta é uma dimensão política do cuidado de si, manifestada pelo poder e resistência de maneira cíclica (CANDIOTTO, 2010). Como governar bem é inicialmente agir sobre si mesmo (CANDIOTTO, 2010), somente quem cuida adequadamente de si, encontra-se em condições de cuidar e relacionar-se com os outros. Na governamentalidade a preocupação com a ética, ou com a prática da liberdade, ocorre por meio da "ocupação de si" como base de aperfeiçoamento pessoal que é essencial para não ser escravo de si nem dos outros (FOUCAULT, 2010). Esta é a dimensão ética do cuidado de si, que implica em um jogo do eu para consigo, onde o sujeito trava uma luta interna entre consentir aos seus desejos e a sua limitação pelas práticas de liberdade (FOUCAULT, 2004b). Diante do exposto, nota-se que o cuidado dos outros, segundo uma visão foucaultiana, é possível por imersão primária ao cuidado de si. Muchail interpreta que para Foucault o cuidado de si alcança as mais diversas formas de relacionamento, podendo "expande-se aos círculos de amizades [...], de parentesco, de profissão, quer em forma individualizadas (aconselhamentos, confidências), quer institucionalizadas e coletivas [...] (2011, p. 76). Portanto, o cuidado de si é imprescindível para a constituição da subjetivação do sujeito em constante interação com o outro. _____  1 FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito (Resumo dos Cursos do Collège de France/1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Foucault M. O uso dos prazeres. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1994. 2 A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In.: Ditos & Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2004. 3 História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 4 Microfísica do Poder. 22ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
A atividade de pesquisa clínica1 em seres humanos ganha cada vez mais destaque no cenário geopolítico global com a covid-19. Principalmente nesse momento, quando as diversas mutações2 resultam em variantes do coronavírus que são uma verdadeira incógnita quanto ao seu potencial patogênico, o que acabam por promover a busca incessante de combate, seja por meio da prevenção ou, até mesmo, o tratamento da covid-19. Com isso, acelerar o processo de desenvolvimento é necessário, pois o fator tempo é determinante para a obtenção de um medicamento que possa ser seguro e eficaz para controle ou cura da doença, ainda mais nesse momento pandêmico. Atualmente há cerca de 7.551 estudos científicos no mundo todo voltados para a covid-19, sendo que, destes, foram concluídos e terminados somente 2.346 estudos,3 que contemplam diversas linhas de pesquisa, inclusive o desenvolvimento de novos biomedicamentos (vacinas),4 medicamentos, dispositivos médicos e outros produtos que possam ser utilizados no combate ao coronavírus e, consequentemente, à covid-19. Há também um total de 4.249 estudos intervencionais, ou seja, aqueles de investigação clínica em seres humanos, porém, apenas 184 foram terminados, conforme a U.S National Library of Medicine.5 Se considerarmos que os estudos clínicos que envolvem as três fases somam, no mínimo 15006 pessoas por estudo, temos, então, um total de 7.807.500 pessoas espalhadas no mundo, que estão envolvidas em estudos somente no que se refere àqueles relacionados à covid-19. Esses estudos clínicos visam atestar a eficácia e a segurança dos futuros medicamentos, por meio de diversos testes que envolvem cada uma de suas fases, tais como os testes definidos pela farmacologia clínica, na fase I; os testes que relacionam dose-resposta para a fase II e os estudos pivotais da fase III, nos quais está o maior número de participantes. A pesquisa clínica é essencial para o progresso científico, e produz reflexos diretos e indiretos na saúde pública. No entanto, pouco se conhece acerca de seu processo, suas fases,7 sua forma de aprovação,8 regulação,9 agentes envolvidos e os instrumentos jurídicos utilizados para dar viabilidade e conferir licitude ao estudo. Não restam dúvidas de que o contexto pandêmico que se vivencia desperta o interesse nos ensaios clínicos. Isso se dá não só pela busca de uma solução para a pandemia e o controle de seu potencial devastador, mas também pela importância de proteger os participantes de pesquisa, que tanto contribuem para a coletividade. No Brasil, hoje, há, em média, 198.286 participantes dos estudos experimentais/intervencionais relacionados apenas ao coronavírus e/ou à covid-19 aprovados pela Conep - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, conforme Boletim Ética em Pesquisa, Relatório Semanal 88/22,10 o que demonstra o aumento substancial dos estudos, impulsionado somente pela covid-19. Apesar de todo o avanço na seara da tutela dos participantes de pesquisa, ainda hoje, em pleno século XXI, são noticiados escândalos que giram em torno das pesquisas e tratamentos médicos, sem respeito e à autodeterminação quanto aos cuidados de saúde. Diversas notícias no Brasil têm relatado "estudos" em pesquisa clínica, que, além de não atender ao rigor científico quanto aos testes realizados, também não observa a necessidade de solicitar o devido consentimento dos participantes quanto à realização de todos os testes aos quais serão submetidos, inclusive utilizando medicamentos já comprovadamente sem eficácia para o tratamento da covid-19.11 12 É importante ressaltar que somente os estudos com aprovação prévia dos órgãos competentes e a observância das normas éticas e jurídicas em pesquisa possuem respaldo na comunidade científica, pois, do contrário, afrontaria de forma brutal a autonomia existencial do participante da pesquisa, principalmente porque eles se submetem a diversos riscos, evidenciando, assim, a fragilidade desse sistema e vulnerabilidade do participante, o que requer uma necessidade de uma regulação e fiscalização mais eficaz do setor. A história nos mostrou a luta e o preço pago para garantir a autonomia do participante de pesquisa em razão das diversas atrocidades já cometidas em estudos clínicos.13 Cita-se, a título de exemplo, o conhecido caso ocorrido em Tuskegee, nos Estados Unidos e bem retratado no filme da produtora Home Box Office, dirigido por Joseph Sargent, lançado em fevereiro de 1997 e intitulado "Cobaias". A pesquisa foi feita na época da epidemia da sífilis e no período de 1932 a 1971, em cerca de 600 homens negros, a maioria pobre e com pouca instrução, sendo cerca de 400 deles portadores de sífilis e 200 sem a doença. Os participantes não foram informados de que faziam parte de um projeto de pesquisa, assim como não lhes foi revelado que eram portadores da sífilis. Apesar de a penicilina, descoberta em 1928, já se encontrar disponível para a população civil desde a década de 1940, os 400 doentes não foram medicados. Em contrapartida, os participantes recebiam, gratuitamente, transporte para o hospital, almoços e cuidados médicos para qualquer doença (exceto a sífilis), além da promessa de pagamento de funeral após autópsia. Foi apenas em 1972 que vieram a público as irregularidades cometidas na pesquisa, cujos estudos foram encerrados em 1973,14 com a publicação do resultado. Essa barbárie, entre outras, resultou na edição de normas internacionais, guias de boas práticas15 e foram cunhados princípios bioéticos, todos voltados para a proteção do participante de pesquisa, com destaque para o relatório de Belmont, em 1978, que teve como principais idealizadores Tom L. Beauchaump e James Childress, consagrando o surgimento da bioética principialista, com os princípios da autonomia, da beneficência, da justiça e, posteriormente, da não maleficência. Para além dos aspectos técnico-científicos da pesquisa, dos avanços biotecnológicos e da importância da ciência médica para o processo investigacional, existe todo um aparato bioético principialista e de outras linhas da Bioética16 para legitimar o ato, mas que, por si só, não são suficientes. Impõe-se a incidência de normas jurídicas que darão os contornos da legalidade constitucional, além de uma eficiente vigilância dos órgãos responsáveis pela aprovação dos estudos. Isso tanto na situação existencial, em respeito à dignidade do participante de pesquisa, o livre desenvolvimento de sua personalidade, quanto na patrimonial, com os vínculos obrigacionais e responsabilidade dos agentes envolvidos na pesquisa clínica, tais como os patrocinadores, nacionais ou estrangeiros, que financiam o estudo, ou as Organizações Representativas de Pesquisa Clínica, contratadas pelo patrocinador para exercer suas funções; os pesquisadores, médicos; e as instituições de pesquisas, hospitais, clínicas públicas ou privadas. Cabe ao operador do direito atentar para essa atividade de pesquisa, sempre em busca  da proteção dos direitos humanos fundamentais dos participantes de pesquisa, sem se afastar da análise estrutural das relações jurídicas que se desenvolvem durante a pesquisa e que invocam a aplicação dos institutos de direito civil na esfera contratual, securitária, de propriedade intelectual, responsabilidade civil e segurança do participante, e que, em muitos casos, atraem a aplicação de ferramentas do Direito Internacional Privado17 em razão das pesquisas multinacionais e multicêntricas, com forte atuação de patrocinadores estrangeiros, em geral, grandes indústrias farmacêuticas. Ganha relevo dois principais instrumentos utilizados na atividade de pesquisa: o termo de consentimento livre e esclarecido e o contrato de pesquisa, embora existam outros documentos presentes no protocolo de pesquisa que também são importantes, tais como o termo de sigilo e confidencialidade e o contrato de seguro. O termo de consentimento livre e esclarecido, assinado pelo participante de pesquisa, é definido pela Resolução 466/12 do CNS18 e deve conter informações sobre os riscos e benefícios da pesquisa bem definidos para os participantes, além de esclarecê-los sobre seus direitos, como o direito à assistência à saúde, o ressarcimento de despesas, a indenização pelos danos sofridos em razão da pesquisa e o direito de recusar-se a participar do estudo ou de retirar-se em qualquer fase sem penalização alguma. Do ponto de vista do seu enquadramento jurídico, a despeito de quem defenda tratar-se de um contrato, a melhor interpretação é a de que o consentimento é uma autorização concedida pelo participante da pesquisa para que o pesquisador realize estudos científicos com a administração de drogas em seu corpo, um negócio jurídico unilateral, fruto de uma declaração de vontade sem vícios, que dispensa outra manifestação. O consentimento reflete a confiança do participante no processo de investigação, um verdadeiro elo entre o ele e o pesquisador, ainda que o participante não celebre contrato direto com o patrocinador e com a instituição em que ocorre a pesquisa. Cabe ressaltar que esse fato não afasta a relação jurídica entre as partes envolvidas, pois os agentes atraem sua responsabilidade civil, caso os participantes sofram danos patrimoniais e/ou extrapatrimoniais em decorrência do estudo clínico.19 Além do termo de consentimento, destaca-se o contrato celebrado entre patrocinador, pesquisador e instituição de pesquisa, que se qualifica como contrato civil atípico (art. 425 do CC/02), multifacetado, com pluralidade de objeto e diversidade de obrigações que deve observar os princípios contratuais, a função social, a boa-fé (arts. 421 e 422 do CC/02) e o equilíbrio contratual. Aplicam-se, portanto, as normas gerais do negócio jurídico e dos contratos do Código Civil. O contrato de pesquisa prevê cláusulas que versarão sobre o cumprimento do protocolo de pesquisa que é aprovado pelo CEP/CONEP, juntamente com o termo de consentimento livre e esclarecido, que muitas vezes traduz um contrato de adesão. As cláusulas comuns em contrato de pesquisa são as que versam sobre: os serviços que serão prestados pelos pesquisadores e instituições de pesquisa; a forma de condução do ensaio clínico; a observância da fórmula em estudo e suprimentos do estudo; a conformidade regulatória da pesquisa; o respeito aos participantes do experimento; a obtenção do consentimento livre e esclarecido; a elaboração de fichas clínicas; o registro dos dados do estudo, de eventos adversos e desvio do protocolo; a remuneração dos contratados e o dever de confidencialidade, sigilo, proteção dos dados de pesquisa e dos dados pessoais e sensíveis aos quais as partes terão acesso,20 transferência e privacidade de dados; propriedade intelectual; publicação e publicidade; indenização em caso de danos causados; notificação de eventos adversos; contratação de seguro; inspeções, auditorias, monitoramento e manutenção de registros; prazo de vigência; rescisão, suspensão; combate ao suborno e corrupção; cláusula penal; disposição geral; legislação pertinente, forma de resolução de conflitos etc. Deve-se atentar para as cláusulas de responsabilidade e seguro por envolver diretamente os interesses dos participantes de pesquisa, ainda que não participem diretamente da relação contratual. É importante um olhar atento em razão de suas particularidades e complexidades, que podem restringir direitos das partes mais fracas da relação, principalmente, quando o patrocinador é estrangeiro, afetando os interesses dos pesquisadores e centros de pesquisas, para os quais a interpretação deve ser mais favorável pela incidência do disposto no art. 424 do CC/02. Todos esses instrumentos devem se pautar, em primeiro lugar, em uma pesquisa clínica lícita, que se legitima observando os princípios bioéticos e jurídicos, sem violar os direitos humanos fundamentais dos participantes, com destaque para a salvaguarda da sua dignidade, da integridade psicofísica e a reparação integral do dano. Para aqueles que atuam no Biodireito constantemente se evidenciam novos caminhos a trilhar e enigmas a desvendar quanto às fases da pesquisa clínica e os instrumentos jurídicos eficazes que podem ser utilizados diante da regulação vigente para trazer mais segurança e proteção aos agentes envolvidos. Urge, portanto, uma análise sistemática por meio de um processo hermenêutico calcado em um estudo interdisciplinar e um aprofundamento em outras temáticas ainda obscuras, complexas e técnicas para a doutrina civilística. _____ 1 As pesquisas clínicas também são chamadas de ensaios clínicos, estudos clínicos ou pesquisas biomédicas, termos que serão utilizados indistintamente. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 RDC 55/10 (Dispõe sobre o registro de produtos biológicos novos e produtos biológicos e dá outras providências.) Art. 2º XXIV - vacinas: são medicamentos imunobiológicos que contêm uma ou mais substâncias antigênicas que, quando inoculadas, são capazes de induzir imunidade específica ativa, a fim de proteger contra, reduzir a severidade ou combater a(s) doença(s) causada(s) pelo agente que originou o(s) antígeno(s); 5 Disponível aqui.  6 FILHO MASSUD, João. Medicina Farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016. 7 Nos termos do art. 6º, XXII, da Resolução RDC 9/15 da ANVISA: "Ensaio clínico - pesquisa conduzida em seres humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia." A Resolução 252/97 do CNS dispõe sobre as quatro fases da pesquisa no item II.2. 8 Desde 1996, com a Resolução 196 do CNS, foi instituído no Brasil o sistema CEP/CONEP, pelo que antes de se iniciar a pesquisa clínica em seres humanos é necessária a aprovação do CEP - Comitê de Ética em Pesquisa, geralmente instalado nas instituições em que ocorrem as pesquisas. Em alguns casos, também deverá haver o aval da CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e da ANVISA, que emite parecer de ordem técnica. 9 Está em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto 7.082/17, que "Dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos". 10 Disponível aqui.  11 Conhecido como caso Prevent Senior diversas denúncias foram feitas contra a operadora de saúde e entre elas a que envolve testes com hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com Covid-19 sem o devido consentimento. O caso está sendo apurado pela CPI da Covid no Senado, pelo MP/SP e na Câmara Municipal de São Paulo, CPI Prevent Senior. A respeito do assunto as reportagens: Disponíveis aqui: 1 2 3 4. 12 Em Manaus, no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu, foi noticiado tratamento realizado com cloroquina nebulizada em pacientes internados com Covid-19, como um experimento clandestino e sem autorização legal. Disponível aqui.  13 Destaca-se a elaboração do Código de Nuremberg, em 1947, a Declaração de Helsinque, cuja primeira versão foi em 1964, e a última em 2013. 14 Cf. JONSEN, Albert R. The birth of Bioethics. 1. ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998. 15 Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos, do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS/OMS) e Guia de Boa Prática Clínica - Manual Tripartido Harmonizado pela Conferência Internacional de Harmonização (ICH), da Conferência Internacional sobre Harmonização dos Requisitos Técnicos para Registro de Fármacos para uso humano - CIART, Boas Práticas Clínicas, Documentos da Américas, da Organização Pan-Americana da Saúde, 2005. 16 A título de exemplo, a bioética do cuidado, a bioética feminista, a bioética da teologia, etc. 17 DALLARI, Analluza Bolivar. Contrato de pesquisa clínica: aspectos práticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. 18 Resolução 466/12 do CNS: "II.5 - consentimento livre e esclarecido - anuência do participante da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar". 19 A responsabilidade civil dos agentes envolvidos no ensaio clínico: patrocinador, pesquisador, instituição de pesquisa é objetiva e solidária, com aplicação dos arts. 927, parágrafo único, e 942, ambos do CC/02. A respeito do tema: PEREIRA, Paula Moura Francesconi Lemos. A responsabilidade civil nos ensaios clínicos. 1. ed. São Paulo: Foco, 2019. 20 Cabe destacar a importância de observar a Lei Geral de Proteção de Dados, lei 13.709/18, em sede de pesquisa clínica.
Em 15 de junho de 2021, foi publicada a nova Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.294, de 27 de maio de 2021, que dispõe sobre normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida no Brasil. No entanto, aguarda-se por lei específica sobre o assunto há mais de três décadas, já que o Congresso Nacional por questões diversas não delibera sobre a matéria. Normas pontuais e esparsas, atualmente, tangenciam o complexo e delicado tema, a exemplo dos incisos que tratam da presunção de paternidade nos casos de utilização das técnicas reprodução assistida no Código Civil (art. 1.597, inciso III, IV e V), do uso de embriões humanos crioconservados excedentários obtidos a partir da fertilização in vitro para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias na Lei de Biossegurança (art. 5º, da Lei 11.105/05) e do provimento 63/17 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata entre outros temas sobre o "registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida." O silêncio legislativo, além de provocar insegurança jurídica em terreno sensível que envolve o direito ao planejamento familiar, a autonomia reprodutiva, o uso de material genético e a crioconservação de embrião humano, permitiu a hipertrofia do Conselho Federal de Medicina na regulamentação da temática. Desde 1992, convive-se com normas deontológicas editadas pelo referido Conselho e que, embora sem força de lei em sentido estrito, participam da tópica interpretativa e são utilizadas em diversas decisões judiciais à mingua de lei específica sobre o tema. Após a Resolução 1.358/1992, pioneira e que permaneceu em vigência por quase duas décadas, desde 2010 assiste-se a edição de sucessivas resoluções sobre o assunto,1 o que demonstra a urgência e a velocidade com que tais técnicas necessitam de constante atualização diante da evolução não somente dos procedimentos em si, mas igualmente e com aumento do interesse da própria sociedade e da ampliação dos arranjos familiares e da fundamentalidade do direito à parentalidade. A edição de mais uma resolução - a quinta em 11 anos - descortina a precariedade de somente normas deontológicas regularem tal assunto, bem como revela a necessidade de discutir, uma vez mais, os limites da atuação do Conselho Federal de Medicina (CFM) e a constitucionalidade das normas de natureza ética como indispensável imperativo dos direitos fundamentais em jogo. Se, por um lado, é louvável o esforço do Conselho profissional de constantemente atualizar suas prescrições sobre o tema, visando balizar as atuações dos médicos de forma segura e dentro de parâmetros eticamente aceitáveis, em outro giro, ressente-se de um debate amplo deliberativo sobre a disciplina da matéria em seus mais diferentes efeitos, o que afastaria o atual déficit democrático e resguardaria os múltiplos interesses existentes. Mas em que exatamente essa norma interfere na atuação dos profissionais de saúde envolvidos na área da reprodução humana - médicos, geneticistas, biólogos, biomédicos, embriologistas - , na atividade desenvolvida nas clínicas e laboratórios especializados e para os operadores do direito? A resposta a essa indagação perpassa pela análise dialógica multidisciplinar entre diversos ramos do saber, entre eles, a Medicina, a Biomedicina, a Biologia, a Sociologia. Além disso, faz-se necessário definir a natureza jurídica da norma e suas implicações. Isto porque a temática além de depender dos avanços biotecnológicos para o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, interfere nos direitos humanos fundamentais, no livre desenvolvimento da personalidade, no direito à liberdade reprodutiva e ao planejamento familiar, que pode encontrar limites de ordem técnica face as vicissitudes do corpo humano, mas também ético-legais que são impostos à intervenção na vida humana, desde o que se considera início da vida, seu desenvolvimento, até seu fim. A atividade reprodutiva, a despeito da sua contribuição para efetivar o planejamento familiar diante dos problemas advindos por razões de saúde, como a infertilidade, ou outras, como pelo planejamento parental tardio, ou em decorrência de determinadas formas de constituição de entidades familiares que impedem a procriação natural (casais homoafetivos, transgêneros, famílias monoparentais), interfere de forma exponencial na vida humana, desde sua inicial potencialidade com a manipulação dos gametas, formação do embrião, a possibilidade de diagnósticos que viabilizam ajustes genéticos, seleção de sexo e caraterísticas fenotípicas, até sua implantação no útero materno ou materno substitutivo - gestação por substituição - ou, quiçá um dia em útero artificial, e que poderá resultar no nascimento de uma criança. Todos essas situações não fogem à incidência da norma jurídica que evidencia a aplicação de toda a regulação referente aos direitos envolvidos, e a identificação dos bens jurídicos merecedores de tutela, com reflexo também no campo da filiação e do direito sucessório. É louvável e necessário que o CFM, autarquia federal a quem a Constituição Federal (art. 5º, XIII) e a legislação infraconstitucional (Lei 3.268/57, regulada pelo decreto 44.045/58 e lei 12.842/13) atribuem o poder regulamentar, estabeleça normas para orientar a atividade médica e os profissionais a ele vinculados na seara reprodutiva, com diretrizes e preceitos de cunho deontológico, cuja inobservância acarretará em sanção ético-disciplinar, observado o devido processo legal (Decreto 44.045/58 e Resolução 2145/16 do CFM). No entanto, apesar da força normativa das resoluções do CFM, com ampla aplicação até mesmo pelos Tribunais inferiores e Superiores, essas não excluem a aplicação das normas jurídicas com toda sua coercibilidade impositiva, e que pode, inclusive, afastar a resolução em razão de sua inconstitucionalidade. Tal tarefa de compatibilização das prescrições deontológicas à luz da legalidade constitucional já vem sendo realizada pelos tribunais, haja vista as decisões que afastaram a aplicação da norma contida nas resoluções anteriores para permitir o exercício do planejamento familiar tardio com a participação de mulheres em técnicas de reprodução assistida acima dos cinquenta anos.2 As resoluções do CFM não escapam da filtragem constitucional e não estão à margem dos valores democraticamente eleitos pelo constituinte, sobretudo em razão do déficit democrático já acima apontado. O vácuo normativo no Brasil pela falta de lei específica sobre a reprodução humana não pode implicar na aplicação exclusiva das resoluções do CFM pelos operadores do direito, ao revés, estas apenas servem como mais um elemento no processo hermenêutico construtivo das novas situações jurídicas de cunho existencial que se desenvolvem no âmbito da reprodução e que pode se definir como fatos biojurídicos. O ponto nodal é verificar em toda a normativa deontológica acerca da reprodução assistida até onde ela viola os direitos humanos fundamentais, à liberdade reprodutiva e protege a vida humana em todas as suas fases até mesmo para resguardar as gerações futuras, o que se faz não apenas nas partes alteradas pela nova Resolução 2.294/21, mas também naquilo que ela manteve das resoluções anteriores, que buscam o aperfeiçoamento desde sua primeira edição em 1992. A Resolução 2294/21 trouxe como principais mudanças, entre outras pontuais: (i) alteração do limite da idade e número de embriões a serem implantados na mulher e em casos de embriões euploides ao diagnóstico genético (item I.7);  (ii) retirada da expressão "em que não exista infertilidade" na gestação compartilhada em uniões homoafetivas femininas (item II.3); (iii)  possibilidade de doação de gametas para parentes até 4º grau, desde que não incorra em consanguinidade (item IV.2);3 (iv) aumento da idade limite para mulher doar gameta (37 anos) e diminuição para o homem (45 anos) (item IV.3); (v) responsabilidade pela seleção dos doadores passa a ser exclusiva dos usuários quando da utilização de bancos de gametas ou embriões (item IV.10); (vi) na eventualidade de embriões formados de doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões de uma única origem para a segurança da prole e rastreabilidade (item IV. 11); (vii) o número de embriões gerados em laboratório não poderá exceder o número de 8 (oito) (item V.2); (viii) supressão da obrigatoriedade de prever a destinação de embriões em caso de doenças graves (item V.3); (ix) o descarte de embriões após três anos ou mais dependerá de autorização judicial (itens V. 4 e 5); (x) no caso de diagnóstico genético embrionário, no laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias de cromossomos sexuais (item VII.1)4; (xi) no caso de gestação de substituição a cedente temporária do útero deve ter ao menos um filho vivo (item VII.1); e, (xii) a vedação da intermediação da clínica de reprodução na escolha da cedente na gestação de substituição (item VII.2). As referidas alterações, no que diz respeito à análise do ponto de vista jurídico, fruto de uma interpretação à luz dos princípios e valores constitucionais suscitam questões nebulosas e que geram intrincadas e polêmicas situações. Entre elas, destacam-se a exigência de um filho vivo para as cedentes temporárias de útero, a limitação de embriões humanos gerados em laboratório e a necessidade de autorização judicial para fins de descarte de embriões humanos. Em primeiro lugar, desde a primeira resolução impôs-se a gratuidade da gestação de substituição, de maneira a evitar a mercantilização do corpo da mulher, e a limitação aos parentes até o quarto grau colateral das mulheres e, posteriormente, igualmente dos homens, salvo casos excepcionais que são submetidos às comissões éticas dos conselhos regionais, o que é compatível com a solidariedade familiar e a proteção das mulheres que doam temporariamente seu úteros, além de evitar conflitos positivos de maternidade. Por isso, causa desconforto a nova exigência no sentido de considerar que mulheres sem filhos não podem ceder útero, pois estas teriam maior chance de não entregarem a futura criança após o nascimento, criando conflitos positivos de projetos parentais. Não pode ser outra a justificativa e sentido atribuído à tal imposição. De índole moral e com forte carga de preconceito, tal prescrição atenta contra a autonomia corporal de mulheres capazes e discrimina aquelas que não desejam ter filhos. Qual a razão para somente permitir que mulheres com filhos vivos possam ceder temporariamente seu útero para outras mulheres, geralmente da mesma família? Além de discriminatória, tal regra não encontra guarida no texto constitucional. Pelo contrário, viola direitos fundamentais e desconsidera a autonomia das mulheres, que podem optar pela gestação de substituição, em ato altruístico e solidário, mas que definitivamente não desejam, ao menos, por enquanto, exercer a maternidade. Confundir maternidade com autonomia corporal e liberdade para gestar no lugar de outra pessoa é um equívoco injustificável. Cabe frisar que a limitação de oito de embriões a ser gerado em laboratório é outra alteração que acaba por interferir no direito fundamental à procriação e ao planejamento familiar, limitando a chance de sucesso no tratamento, além de aumentar seu custo. Se, por um lado, compreende-se a preocupação com a "superpopulação" de embriões humanos crioconservados, por outro, limita, sem justificativa razoável, a autonomia reprodutiva dos participantes da reprodução assistida. Outro ponto que chama a atenção na atual resolução é a necessidade de autorização judicial para o descarte de embriões humanos crioconservados5. A rigor, nos termos do art. 5º da Lei de Biossegurança e do próprio teor da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, de relatoria do então Ministro Carlos Ayres Brito, o mero descarte não seria possível à luz do nosso ordenamento, sendo apenas cabível como destinação aos embriões supranumerários a doação a outros casais ou pessoas e o uso para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. A Resolução anterior já tinha surpreendido ao prever a possibilidade de descarte do que se denominou embriões abandonados após três anos. De fato, a questão não é de fácil solução. Por um lado, impor o ônus às clínicas e hospitais de manutenção ad infinitum desses embriões em crioconservação é demasiado e oneroso; por outro lado, o descarte de embriões envolve dilemas éticos sobre a sua própria natureza, além do direito dos titulares do material genético reivindicarem no futuro o embrião crioconservado, o que ganharia tons dramáticos se fosse a única possibilidade de concretizar o projeto parental com material genético biologicamente vinculado. O CFM percebeu que tal regra poderia gerar infindáveis discussões judiciais com a responsabilização da clínica ou hospital que descartou, ainda que previsto na Resolução ou no contrato entabulado entre as partes e termo de consentimento outorgado. A solução encontrada, no entanto, ainda não é a ideal. A obrigatoriedade de autorização judicial descortina várias dúvidas, a saber qual seria o juízo competente, a necessidade de atuação do Ministério Público, bem como quais seriam os parâmetros legais para a análise do juiz. Como se vê, muitos são os problemas levantados por tal norma e a judicialização nem sempre é o melhor caminho. Talvez uma comissão ética independente formada por profissionais de diferentes áreas e com competência para fiscalizar o descarte fosse melhor do que o recurso ao Poder Judiciário. Logo, os intérpretes do direito têm uma importante tarefa de frear a autorregulação dos conselhos profissionais no que ultrapassa sua competência, já que cabe ao legislador regular (art. 22, I da CF), e enquanto isso não ocorre de forma específica e direta, aplica-se de forma sistemática dentro da unicidade e completude do ordenamento jurídico, os princípios constitucionais e as fontes normativas vigentes, como o Código Civil, a Lei de Biossegurança, entre outras, que disciplinam pontualmente a matéria. Os profissionais da saúde e as clínicas de reprodução deverão observar as normas éticas, adaptar seus instrumentos, como o termo de consentimento livre e esclarecido, e esclarecer os pacientes acerca dos novos limites e restrições, o que não afasta solicitar esclarecimentos aos conselhos em caso de dúvidas. A trajetória de forte atuação do CFM na regulamentação das técnicas de reprodução assistida é peculiar de um país carente de intervenção legislativa e de um amplo e democrático debate sobre os usos e os limites de tal recurso já consolidado no cotidiano e que é a única via para o acesso ao projeto parental biologicamente vinculado, sobretudo, no caso de casais heterodiscordantes e pessoas solteiras. A par disso, novas relações familiares e, por conseguinte, as repercussões no âmbito sucessório são descortinadas e clamam por uma regulamentação que, além dos aspectos éticos voltados à atuação do médicos, envolva e pondere todos os interesses, de modo a promover os valores constitucionais. Sob tal ótica, com a edição de mais uma resolução é renovado o papel dos intérpretes na árdua tarefa de harmonizar as prescrições deontológicas a partir da legalidade constitucional, em especial a dignidade das pessoas envolvidas e das futuras crianças a nascerem. Uma atividade imprescindível, mas que revela no quadrante atual insegurança jurídica e déficit democrático desarrazoados. ___________ 1 As alterações das resoluções que disciplinam as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida vêm ocorrendo desde 1992, na seguinte ordem: Resolução CFM nºs 1.358/1992; 1.957/2010; 2013/2013; 2.121/2015; 2.168/2017; 2.283/2020 e 2.294/2021. 2 "A flexibilização da rigidez objetiva e genérica da Resolução CFM 2.103/13 tem por escopo possibilitar ao casal agravado a realização de acompanhamento médico especializado e a submissão a técnica de fertilização in vitro mediante ovo-doação, conforme sugestão médica. Tal medida não esvazia a competência fiscalizatória que compete, por força de lei, aos agravantes e ao CFM. Embora se deva afastar, in casu, a restrição etária para a reprodução assistida, a fiscalização das conclusões médicas decorrentes da avaliação clínica, da utilização da técnica e dos efeitos daí decorrentes - em relação à gestante e ao feto, se efetivamente concebido - permanecem na seara de atuação dos agravantes". (TRF 1ª Região, Agravo de Instrumento N. 0055717-41.2014.4.01.0000/MG, Rel. Des. Maria do Carmo, Cardoso, julg. 09 dez. 2014). V., ainda, o verbete do enunciado nº 41 aprovado na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, realizada em 15 de maio de 2014: "O estabelecimento da idade máxima de 50 anos, para que mulheres possam submeter-se ao tratamento e à gestação por reprodução assistida, afronta o direito constitucional à liberdade de planejamento familiar." 3 A exposição de motivos da Resolução 2.294/21 do CFM atribui a alteração à existência de decisões judiciais no sentido de liberação de doação de gametas para parentes até 4º grau, valendo citar o seguinte julgado: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - DOAÇÃO DE ÓVULOS ENTRE IRMÃS - RESOLUÇÃO/CFM Nº 2.121/2.015 - REGRA DO ANONIMATO - INAPLICABILIDADE. 1.  A garantia de sigilo, prevista na Resolução 2.121/2.015, do Conselho Federal de Medicina, objetiva proteger o doador e evitar-lhe futuras consequências pessoais, familiares ou jurídicas. 2. Não há vedação legal ao levantamento da regra do anonimato na doação de óvulos e, no presente feito, ambas as autoras, na qualidade de doadora e receptora, concordam com o afastamento de tal proteção. 3. Deve prevalecer, portanto, a solução que melhor dê cumprimento ao princípio da liberdade de planejamento familiar (artigo 226 da Constituição Federal). Precedentes deste Egrégio Tribunal. 4. É de rigor a manutenção da r. sentença que deferiu a fertilização e afastou a aplicação de punição aos médicos envolvidos no procedimento. 5. Apelações desprovidas". TRF - 3ª Região, Apelação Cível nº 5000378-07.2018.4.03.6114, 6ª Turma, Rel. Des. Fábio Prieto, Rel. Juiz Federal Convocado Leila Paiva Morrison, julg. 21 fev. 2020, publ. 02 mar. 2020. 4 O fundamento do CFM para essa restrição é evitar sexagem social. 5 Questão relevante já enfrentada pelo Judiciário foi a implantação de embrião post mortem: STJ, REsp nº 1918421/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Marcos Buzzi, julg. 08 jun. 2021.
As reiteradas notícias de práticas adversas às vivências da população LGBTQIAP+ vem se proliferando nos últimos anos, notadamente após o advento da pandemia provocada pela Covid-19. O último "viral" ocorreu por conta do lançamento de publicidade comemorativa ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+, comemorado no dia 28 de junho, denominada "Como explicar?", que mostra crianças filhas de genitores com sexualidade heterodiscordante relatando o próprio olhar infantil a respeito da sua experiência. Todas indicam, de conformidade com a linguagem que lhes é peculiar, a naturalização sobre a orientação dos genitores e como, de fato, se desenvolvem em um ambiente de respeito à diversidade. A divulgação da campanha foi suficiente para que a hashtag #burguerkinglixo alcançasse os trendings topics no twitter. A exteriorização da seletividade pode ser identificada pelas mais variadas maneiras1, entretanto, além do último episódio, irrompem exemplos da discussão sobre as questões envolvendo as vivências da população LGBTQIAP+, como nos exemplos mais recentes: a tramitação do PL 504/20, na Assembleia Legislativa no Estado de São Paulo, que visava proibir "a publicidade, através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado"2;  divulgação de notícia de cortes das cenas de sexo gay no programa "De férias com o Ex - Brasil", transmitido pela emissora MTV, com exclusão das cenas de sexo e outras carícias havidas entre os participantes Rafael Vieira e Jarlles Góis e que resultou na representação de ativistas para tomada de providências junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo3, considerando o tratamento discrepante conferido pela atração veiculada pelo canal ao casal com orientação homoafetiva, que teve as cenas com maior intimidade cortadas do episódio sem que o correspectivo tratamento tenha sido empregado nas exibições heterossexuais; indícios de conteúdo homofóbico na fala da apresentadora Patrícia Abravanel, ao afirmar que "LGDBTYH (sic) têm de ser compreensivos" com pessoas que não tenham alguma "compreensão" com a orientação sexual desse grupo; para finalizar, invoca-se a (última) manifestação do Presidente da República, Jair Bolsonaro (já condenado judicialmente ao pagamento de danos extrapatrimonais coletivos em virtude de declarações homofóbicas proferidas em ambiente televisivo4), que, ao comentar o desenrolar da CPI da Covid, fez referências ao Senador Randolfe Rodrigues como "saltitante", em sentido inequivocamente depreciativo. Todas as condutas exemplificativamente relatadas revelam múltiplas violações ao ordenamento jurídico, especialmente após a posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos, em especial o realizado no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, julgada em conjunto com o Mandando de Injunção (MI) 4733, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, que enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo, estabelecendo a existência do tipo penal com fundamento no reconhecimento de uma forma contemporânea de racismo social. A visibilidade das minorias como corolário da representatividade e a exclusão de personagens homossexuais e transexuais das publicidades e produções audiovisuais, de um modo geral, é tema cujo enfrentamento deve ser feito em conjunto com a própria dinâmica do desenvolvimento da sociedade, em que a abertura para a pluralidade vai avançando na medida em que a busca pela igualdade se revela crescente nos espaços públicos e privados. A seletividade na restrição da veiculação das vivências da comunidade LGBTQIAP+ mostra-se em descompasso com a legalidade constitucional, em especial os valores existenciais prevalentes, passível de gerar danos extrapatrimoniais coletivos. Interessante, pois, a investigação de quais interesses merecedores de tutela se revelam prioritários e, nessa medida, qual o papel a ser desempenhado pelo direito dos danos na concretização da proteção da cláusula geral de tutela da pessoa humana, que ocupa o topo do projeto constitucional e não admite a ponderação da própria dignidade. A dignidade é o fiel da balança, o todo imponderável e deverá prevalecer no final do processo de ponderação de valores. Nessa esteira, não se admite ponderação sobre o direito "fundamental" de ser si mesmo. A prática de condutas que resultem em "discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", tipificadas como crime de racismo, nos termos previstos na lei 7.716/89, provocou intenso debate voltado à tutela dos direitos humanos fundamentais da comunidade LGBTQIAP+ com a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento, com produção de efeitos vinculantes, da ADO 26 e do MI n. 4733. Em relação à ADO 26, deflagrada pelo Partido Popular Socialista (PPS), cujo móvel consistiu em "obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) as ofensas (individuais e coletivas), os homicídios, as agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima" e o reconhecimento da homofobia e transfobia como integrantes do conceito ontológico-constitucional de racismo gerou repercussão na sociedade e na comunidade jurídica e questionamentos, também, no âmbito do direito penal, essencialmente em torno do princípio constitucional da reserva legal. De realce, cabe investigar as consequências no âmbito do direito privado da referida decisão, mormente em razão da observância obrigatória do entendimento firmado no julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal por todas as demais Cortes do país, pela Administração Pública e, ainda, pelos particulares (o que inclui, à toda evidência, todos os veículos de comunicação e integrantes da sociedade em geral), por força da já (velha) conhecida eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas. A causa de pedir delineada na ADO 26 apresentou a violação dos direitos fundamentais das minorias LGBTQIAP+ em virtude da omissão ou inércia do Congresso Nacional, que historicamente não permite o avanço dos projetos de lei que criminalizam as condutas que caracterizam ofensas e discriminações, das mais variadas ordens, com fundamento na orientação sexual e/ou identidade de gênero da vítima (ou vítimas), tanto no âmbito na seara individual como no coletivo. O dispositivo reconheceu o estado de mora constitucional do Congresso Nacional "na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT", conferindo interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia, independentemente da forma de manifestação, nos tipos penais previstos na lei 7.716/89, até que seja produzida legislação autônoma sobre o tema, considerando que tais condutas discriminatórias caracterizam espécie do gênero racismo. Com o advento da Constituição de 1988, que inaugura uma nova ordem constitucional e insere a pessoa humana no topo da tábua axiológica eleita pelo legislador constituinte, razões de ordem sociológica e religiosa incrustadas na sociedade e refletidas na normalização das violações devem merecer coibição densa e eficaz, como fruto do compromisso do Brasil com a promoção de direitos humanos fundamentais. Entre a realidade e a norma sempre houve intenso abismo, no que fora identificado pela Corte Suprema, que destacou o exercício da atividade contramajoritária do Poder Judiciário na concretização dos direitos humanos fundamentais5, como, aliás, restou consignado como uma das premissas tomadas no julgamento conjunto deliberado pelo Superior Tribunal de Justiça da ADPF n. 132-RJ e da ADIN n. 4277-DF a respeito da união estável entre pessoas do mesmo sexo, que conferiu interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do Código Civil vigente.6 O reconhecimento do racismo a partir de uma leitura contemporânea em razão do conceito político-social é tese que já havia sido encampada pela própria Suprema Corte por ocasião da resolução do caso Ellwager (Habeas Corpus n. 82424/RJ), em que se discutia a prática de racismo envolvendo antissemitismo. Além do enfrentamento a partir dos dispositivos constitucionais diretamente atingidos (em especial a cláusula geral prevista no artigo 1º, III e os artigos 5º, XLI e XLII da CRFB/88), o Supremo Tribunal Federal asseverou, de forma direta e inequívoca, que a prática de condutas homotransfóbicas também vulneram o compromisso assumido pelo Brasil em pactos internacionais de Direitos Humanos de que é signatário, desrespeitando a normativa supralegal, seguindo a majoritária jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O tratamento protetivo conferido pelo legislador constituinte originário aos integrantes da comunidade LGBTQIAP+, segundo o julgamento vinculante produzido no âmbito do Supremo Tribunal Federal, parte do imperativo de tutela de pessoas que são sistematicamente vitimadas em virtude de serem exatamente quem são, no livre exercício da orientação sexual e da identidade de gênero que é integrante do núcleo intangível de promoção da pessoa humana. Dessa forma, o tratamento discriminatório com fundamento na orientação sexual e/ou identidade de gênero devem receber resposta proporcionalmente adequada do ordenamento, visando a completa eliminação e coibição de condutas discriminatórias atentatórias de direitos e liberdades fundamentais. Na vida de relação, tais discriminações ofendem extenso catálogo de direitos fundamentais de índole existenciais, como, por exemplo: o direito à autodeterminação sexual, que é inerente à condição humana, na medida em que a sexualidade é dimensão fundamental da experiência existencial da pessoa humana; os direitos à identidade pessoal, à igualdade e à pluralidade, além do inalienável direito de ser livre e exercitar as experiências e vivências heterodiscordantes sem qualquer ingerência ou ataque por parte de maioria que se oriente de forma contrária. A dimensão formal e material da democracia assegura a liberdade de ser e orientar-se segundo a autonomia privada, de caráter inalienável e personalíssimo de cada ser humano e insindicável de todas as outras pessoas no mundo, sejam de ordem pública ou privada. Na semana em que se comemora o Dia Internacional do Orgulho Gay, também conhecido como acima dito Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+, relembra-se que o referido julgamento na Corte Suprema do país identificou, através da necessária neutralidade axiológica do Estado, o reconhecimento de mecanismos legais que, de fato, assegurem o efetivo exercício de todos os direitos fundamentais titularizado pelas pessoas integrantes dessa comunidade para além da retórica. A alteridade e o respeito às diferenças integram o pluralismo, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e que contempla a noção de respeito à diversidade dos distintos grupos sociais. No caso de pessoas com orientação homossexual e/ou identidade de gênero heterodiscordante todos os direitos fundamentais entrelaçam-se, de forma indivisível, de modo a compor a própria dignidade de cada pessoa humana. As recorrentes (e graves) violações praticadas contra pessoas em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero, depois do julgamento ocorrido na Suprema Corte, ainda perduram, proliferam e contam com especial componente em função dos efeitos naturalmente negativos decorrentes do isolamento imposto pela pandemia Covid-19. Perquirir o alcance dos danos injustos é atividade necessária para o fortalecimento da rede de proteção tecida no texto constitucional, na medida em que a proteção das minorias confere legitimação material ao Estado Democrático de Direito. A sociedade brasileira, mesmo após a criminalização da homofobia pela mais alta Corte do país, que enviou inequívoca mensagem de combate à intolerância através de potente mecanismo de consecução de direitos fundamentais através do reconhecimento do enquadramento penal das condutas de homofobia e transfobia como espécies de racismo social ainda caminha a passos lentos na jornada pela naturalização das vivências erótico-afetivas da população LGBTQIAP+. A fixação de danos morais coletivos nos processos objetivos de constitucionalidade e nas demandas individuais e coletivas desnuda seu papel político, mas é preciso ir mais além. O direito humano fundamental de ser quem é, de ver e ser visto importa no rechaço de todo comportamento, seja oriundo de ente público ou privado, que caracterize qualquer tipo de exclusão e tais condutas são capazes de induzir a resposta penal do Estado e, também, remédios no campo da responsabilidade civil no âmbito individual e, sobretudo, coletivo. Existir (rectius: resistir) como homossexual ultrapassa as experiências sexuais e não se revela exclusivamente na atração afetivo-erótica por pessoas do mesmo sexo. É uma vivência marcada pela corporalidade e identidade oprimida e estigmatizada que molda as percepções de mundo e a personalidade de cada indivíduo heterodiscordante. É a opressão do silêncio, da diferença e da violência de não se permitir existir enquanto homossexual em razão do preconceito arraigado e presente em diversas formas escamoteadas ou veladas, que cotidianamente impede que gays e lésbicas famosos, políticos ou em altos cargos em empresas assumam sua orientação sexual sob pena de represálias, maledicências ou mesmo segregação. Por isso, visibilidade e representatividade são essenciais para o livre e pleno desenvolvimento da personalidade das pessoas homossexuais, eis que visualizam no exemplo do outro que seu agir não é errado, que viver de acordo com sua orientação sexual não é pecado e nem um ato de transgressão. São pessoas igualmente dotadas de dignidade e cujas competências e vozes merecem ser igualmente ouvidas no debate público sem medos ou preconceitos. O silêncio e a ocultação da homossexualidade aprofundam a opressão e perpetuam as violências em suas mais variadas formas, que, no Brasil, sempre se encontram em níveis alarmantes. O discurso velado de aceitação, mas que não permite a visibilidade da corporalidade e da identidade homossexual gera o apagamento da existência. As célebres expressões "os gays não podem beijar em público", "não pode ter beijo gay na televisão", "eu não tenho nada contra, mas também não precisa ser tão gay", "não quero que meus filhos vejam carícias entre gays", "eu aceito os gays, mas não é normal beijos e afetos entre dois homens ou duas mulheres", entre tantas outras frases, reproduzem uma violência estrutural que oprime e, aos poucos, torna incolor e sem vida as identidades heterodiscordantes. Viver sem representatividade é resistir num mundo onde não se tem espelho e nem exemplo. É navegar sozinho e sob a mácula do estigma e da exclusão. Tais marcas são, muitas vezes, indeléveis e cada pessoa homossexual carrega consigo em escala diferente os efeitos da estrutura de opressão e indiferença. Por isso, sob as lentes da vulnerabilidade e da interseccionalidade, os mecanismos de combate à discriminação devem ser efetivos por força de mandamento constitucional e os instrumentos hoje disponíveis no ordenamento devem ser massivamente utilizados de modo a atenuar tal situação de invisibilidade, que oprime e reforça as chagas da violência em nosso país. A responsabilidade civil em âmbito coletivo pode não ser o remédio mais adequado para tutelar de forma ampla a antidiscriminação à grupos historicamente vulneráveis e estigmatizados, mas definitivamente os danos morais coletivos se apresentam como importante instrumento de reparação às violações recorrentes que visam a apagar suas identidades e negar-lhes sua digna condição humana. ___________ 1 Sobre o retrato teledramatúrgico da homossexualidade e a crescente inserção de personagens, v. PERET, Luiz Eduardo Neves. De "O Rebu" a "América": 31 anos de homossexualidade em telenovelas da Rede Globo (1974-2005). In: Revista Contemporânea, ed. 5, v. 3, n. 2, jul./dez., 2005. Disponível em: https://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_05/contemporanea_n05_04_eduardo.pdf. Acesso em 28 out. 2020. 2 Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000331594. Acesso em 25 mai. 2021. 3 Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/colunas/fefito/2020/07/20/ministerio-publico-recebe-denuncia-contra-corte-de-sexo-gay-na-mtv.htm?cmpid=copiaecola. Acesso 28 out. 2020. 4 Justiça mantém condenação de Bolsonaro por declarações homofóbicas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mai-09/justica-mantem-condenacao-bolsonaro-declaracoes-homofobicas. Acesso em 10 mai. 2021. 5 Destaca-se trecho do Recurso Especial 1.183.378 - RS, de Relatoria de Luis Felipe Salomão, a respeito do papel contramajoritário das Cortes na proteção dos vulneráveis: "[...] Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo 'democraticamente' decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias". 6 Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.183.378-SP, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, eis que não há vedação expressa a que se habilitem. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, editou a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.
O papel da mulher no ambiente familiar tem sido objeto de reflexão que se verticalizou na pandemia. As desigualdades receberam um foco substancial, embora o tema não seja novo. Esse texto visa a fazer algumas reflexões sobre o tema, a partir de alguns recortes para se analisar a desigualdade de gênero. As marcas da violência psíquica e patrimonial contra a mulher no contexto da vida familiar A violência psicológica alcança um número alarmante de mulheres constituído, entretanto, uma das formas que mais permanece encoberta em espesso véu de invisibilidade1. Muitas são as razões existentes para o descompasso entre o alto índice de ocorrência dessa prática, nos lares brasileiros, e o baixo número de denúncias feitas às autoridades competentes. Uma das razões desse silêncio velado pode ser facilmente  identificada a partir do próprio conceito de violência psicológica descrito no artigo 7º, inciso II da Lei 11.380 de 2006, como "qualquer conduta, que lhe cause dano emocional e diminuição da auto estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação"2;          Logo, se constata que a pessoa vítima de violência psicológica vai perdendo, gradativamente sua capacidade de autodeterminação facilitando, desse modo, sua subjugação ao agressor, contribuindo para o aludido silêncio. A violência psicológica não deixa marcas visíveis, como hematomas ou equimoses, que podem ser facilmente vistas e detectadas, porém seus efeitos são mais nefastos, pois traduzem-se, não raras vezes, na fragmentação da própria subjetividade da vítima, levando-a ao adoecimento psicológico3. Todas essas questões contribuem para a demora das vítimas na busca de auxílio4, fazendo com que muitas delas somente o façam após sofrerem a violência física, ocasião em que passam a temer pela própria vida. Outra forma de violência que também vem chamando a atenção, não apenas em demandas que tramitam nos juizados da violência contra as mulheres, mas também nas varas de família, é a violência patrimonial. Fruto de cultura familiar pautada num longínquo patriarcado cujas bases alicerçam muitas famílias brasileiras, atingindo especialmente àquelas famílias estigmatizadas pela exclusão socioeconômica e déficit educacional, dificultando sua condução às conquistas já alcançadas nas questões de gênero. Por essa razão, em muitos casos, a violência patrimonial não é enxergada como violência, nem mesmo pela própria vítima,  em razão dos resquícios insistentes de um patriarcado remoto, que permanece arraigado no inconsciente coletivo de algumas regiões fazendo com que, costumeiramente, a administração do patrimônio do casal permaneça sob a condução exclusivamente masculina. A violência patrimonial está prevista no inciso IV do art. 7ª da Lei Maria da Penha, traduzindo-se em todo ato que prive a mulher da gestão não apenas de seus bens particulares, como também, do patrimônio conjugal. Nota-se uma tendência ao recrudescimento dessa prática no momento das rupturas da conjugalidade, o que provocou no legislador pátrio de algumas medidas para acautelar a vítima dessas práticas. Um dos exemplos dessa política legislativa é a medida protetiva descrita no inciso II do artigo 24 da Lei 11.380, de 2006, que possibilita a proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade comum, salvo por expressa autorização judicial. Esse tipo de violência não ocorre, contudo, apenas sobre bens materiais, mas também no caso, por exemplo, de omissão de prestar alimentos5, tema que será abordado em tópico adiante. É importante chamar a atenção para necessidade de políticas públicas educacionais para que essas mulheres tenham uma maior compreensão de seus direitos fundamentais para que possam os exercer com mais consciência. A igualdade de gênero ainda permanece como mito na realidade de muitas famílias brasileiras e pode ser vista em várias perspectivas como na cultura da guarda materna e na questão alimentar, temas que serão abordados nos tópicos seguintes. A cultura da guarda materna e os desafios para a efetivação da igualdade parental Vem crescendo sobremaneira o número de divórcios com filhos menores de idade. Dados informam que a pandemia aumentou ainda esses números, em razão do confinamento que aguçou as diferenças existentes. Em 2018, o IBGE informou em suas estatísticas que, no caso de divórcios, embora haja um crescimento dos casos de guarda compartilhada, a mulher continua sendo a responsável prevalente pelos cuidados cotidianos com as crianças. Pesquisa realizada no site do Superior Tribunal de Justiça com o verbete "guarda compartilhada" até o ano de 2019 encontrou 42 acórdãos; depois da lei 13.058/2014 foram 25 decisões, sendo que 17 trataram diretamente sobre o tema da guarda.6 Desses, 11 negaram a guarda compartilhada, ou seja, apenas 6 acórdãos conferiu a guarda compartilhada aos pais. Embora essa pesquisa tenha o enfoque em questões eminentemente jurídicas, ela confirma os dados do IBGE: o compartilhamento da guarda ainda não é uma realidade em nosso país. Os cuidados diretos das crianças e com o ambiente doméstico de forma geral ainda estão sob a responsabilidade da mãe, o que acaba desvelando um desequilíbrio no exercício da autoridade parental. Esse cenário gera três realidades: a mãe mais onerada, o pai descomprometido com a criação dos filhos e, não se pode deixar de apontar, um ambiente mais propício para o surgimento de alienação parental. A tradicional divisão sexual do trabalho e funções familiares já foi, há muito superada, quando foi necessário e desejoso (para sua realização pessoal) que a mulher compartilhasse com o homem o sustento do lar; no entanto, não foi com a mesma intensidade que a mulher saiu de casa para o mundo que o homem entrou ativamente para o ambiente doméstico, compartilhando funções. Em alguns casos, o trabalho feminino acabou aumentando, com a jornada dentro e fora de casa. Embora o ordenamento tenha instrumentos para buscar uma maior participação dos pais na vida dos filhos, acabam sendo questionados os meios disponíveis para se convocar que o pai assuma a parte que lhe cabe na criação dos filhos, tais como a fixação de multa, a condenação ao pagamento de indenização por abandono moral, etc. O que se faz realmente necessário é uma mudança na cultura doméstica que abranja toda a realidade social, de modo que ambos possam efetivamente compartilhar os deveres e os afetos dos filhos de maneira equilibrada, eliminando possibilidades de práticas alienadoras. No âmbito jurídico, também se faz necessária a transformação da cultura que supere a insegurança materna no momento do divórcio e a irresponsabilidade paterna, de modo que as tarefas possam ser divididas de forma mais equilibrada entre os pais e que as crianças tenham oportunidade de conviver com ambos, segundo o seu melhor interesse. Para tanto, é essencial que se construa um plano personalizado de guarda, no qual os pais tenham clareza quanto ao papel de cada um, em que se supere a visão da autoridade parental como direito, para que ela seja assumida como dever e compromisso parental. Um problema que se soma à ausência de divisão equitativa das responsabilidades com a parentalidade, dada a cultura da guarda unilateral materna, que ainda ocorre na esfera fática, embora o direito tenha materializado a guarda compartilhada como modelo padrão, é a visão do judiciário no que tange aos alimentos. Além da sobrecarga do trabalho doméstico, atividade esta não reconhecida como laborativa, a mulher ainda precisa enfrentar as dificuldades estruturais no mercado de trabalho. O Fórum Econômico mundial prevê que a tão esperada igualdade entre homens e mulheres só será alcançada em 2095. As mulheres têm menos oportunidades e menor remuneração, para além da jornada doméstica que ainda lhe é imposta. Esta cultura patriarcal ainda gera para a mulher a decisão de se afastar do mercado de trabalho ou investir menos em sua carreira profissional, para ter maior dedicação à casa e aos filhos, decisão esta que se torna um grande problema quando da ruptura conjugal.  Alimentos As decisões judiciais que tratam de alimentos estabelecem critérios de fixação de percentuais que não correspondem à realidade de vida do brasileiro e essa é uma conta simples: a população brasileira vive, em sua maioria, com poucos recursos e atualmente 25% da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza (com renda de até R$ 420,00), o que significa dizer que a grande maioria das pessoas reverte cem por cento de suas rendas para a manutenção doméstica. Quando ocorre uma ruptura conjugal, a discussão que permeia a ação de alimentos é de percentuais que levam em consideração o número de pessoas alimentandas para definição de critérios de fixação. Os percentuais mais comuns chegam até 30% da renda do alimentante o que implica, por óbvio numa brusca mudança de padrão para todas as partes envolvidas. Mas se imaginarmos que com a mencionada ruptura, um homem arcará com o percentual de 30% de seus rendimentos para a esposa e filhos (situação típica levada ao judiciário), aquela renda, que antes era de 100% para os componentes de uma casa, se transforma em uma divisão extremamente desigual e cruel. Além disso, a mulher ainda precisa lidar com a pressão de retomada de suas atividades profissionais para poder fazer frente às suas despesas e de eventual prole. A jurisprudência firmou entendimento de que a mulher jovem e saudável não faz jus a alimentos com o divórcio ou dissolução da união estável, recomendando que esta pensão fixada seja, no máximo transitória. O posicionamento é coerente, no entanto, para uma sociedade que oferece condições para a inserção desta mulher no mercado de trabalho. Contudo, esta retomada da atividade profissional enfrentará, além das dificuldades já conhecidas para as mulheres no mercado de trabalho, a realidade feminina que assume também as tarefas domésticas quase que exclusivamente, diante de uma ruptura. As decisões chegam a ser discriminatórias, jogando as mulheres no lugar comum da pessoa que "não quis" desenvolver-se profissionalmente, quando em verdade, muitas vezes, esta foi uma imposição ao longo da conjugalidade. Estabelecer para a mulher um pensionamento transitório de acordo com o real padrão de vida familiar é mais do que um direito, é um dever para lhe oportunizar o alcance mais rápido e digno de sua autonomia e sustento. Considerações finais Conforme analisado, a paternidade responsável, pautada no afeto e na solidariedade parental, ainda é um desafio para a efetivação da igualdade substancial nas relações familiares. A figura do homem provedor e chefe de família, sem a responsabilidade primeira sobre as tarefas domésticas e os cuidados com a prole - destinados, prioritariamente, à mulher - resiste nos costumes e pensamentos da sociedade atual, apesar da consagração da igualdade parental no plano normativo. A cultura da guarda materna, ainda não superada apesar da consagração formal da guarda compartilhada como regra no Brasil, está longe de ser um "privilégio" concedido às mulheres. E mesmo nos reduzidos casos de compartilhamento de guarda estabelecidos pelo Judiciário brasileiro, a fixação do lar de referência materno, com a imputação à mulher quanto aos cuidados diretos da prole, reforçam a sobrecarga feminina de trabalho informal e potencializam os desafios para a autonomia feminina.7 O cenário se torna ainda mais preocupante em face dos números alarmantes de violência doméstica e familiar contra mulheres por parte de companheiros ou ex-companheiros, que, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, representou 88,8% dos casos de feminicídio registrados no país, apesar dos instrumentos de proteção já consagrados.8 As mais variadas formas de violência de gênero ocorridas nas relações familiares, encobertas pela naturalização dos papéis de autoridade e domínio dos homens, também constituem obstáculos para o respeito e proteção da dignidade humana das mulheres na família, além de potencializar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes, alvos ainda mais propícios de violações nesse contexto. A discussão aqui proposta está, portanto, indissociável dos papéis desiguais de gênero que, frutos de um sistema jurídico patriarcal que vigorou por séculos no Brasil, vêm sendo perpetuados ao longo de gerações, subjugando não apenas mulheres, mas também crianças e adolescentes. E apesar dos inegáveis avanços legislativos para o respeito e proteção das pessoas vulneráveis, notadamente com o reconhecimento formal da igualdade e a superação normativa do modelo único de família patriarcal, o debate jurídico carece descer à concretude das relações familiares, observando a realidade fática para, assim, alcançar os meios adequados para a efetivação da igualdade substancial. ____________ 1 DataSenado. Disponível em: clique aqui. Acesso em 24 de junho de 2020. 2 Lei 11.380/2006; Disponível em clique aqui. Acesso em 30 de setembro de 2020. 3 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 37. 4 MELLO, Adriana Ramos de. PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.86. 5 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 5. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 100. 6 Duas delas abordaram mais questões processuais. 7 Segundo o IBGE, em 2019, enquanto as mulheres despendem 18,5 horas por semana com tarefas domésticas, os homens dedicam apenas 10,3 horas. Disponível em: clique aqui. Acesso em 22 de outubro de 2020. 8 Disponível em: clique aqui. Acesso em 22 de outubro de 2020.
As pesquisas desenvolvidas para produzir uma vacina contra o coronavírus têm se multiplicado no mundo: diariamente, são divulgados avanços na Rússia, na China, nos EUA. No dia 22 de abril de 2020, foi noticiado que a Universidade de Oxford, no Reino Unido, em parceria com a empresa italiana de biotecnologia Advent-IRBM e com financiamento dos EUA, acrescentou para a segunda fase da pesquisa, entre os mais de 10.000 voluntários participantes de ensaios cínicos de vacina contra o coronavírus, crianças e idosos1. A pesquisa clínica visa à resposta imunológica da vacina e para abranger maior número de pessoas de diferentes idades prevê para fase 2 a participação de crianças entre 5 e 12 anos e grupo de pessoas entre 56 e 69 anos2. "Os voluntários serão divididos em dois grupos e receberão uma ou duas doses da candidata a vacina ChAdOx1 ou de outra já autorizada, e os pesquisadores vão comparar o índice de infecção em cada um"3. Na primeira fase, iniciada em abril deste ano, e ainda em andamento, os voluntários são pessoas saudáveis, entre 18 e 55 anos. E a terceira fase do estudo envolve milhares de pessoas acima de 18 anos para determinar a segurança, a eficácia e a imunogenicidade da vacina ChAdOx1 nCoV-19 não replicante, com parceria internacional com os EUA, África do Sul, incluindo o Brasil4, que teve o pedido formulado pela empresa Astrazeneca do Brasil Ltda. aprovado pela ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária5 para início dos testes, e posteriormente pela CONEP- Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP. A referida pesquisa foi suspensa no início de setembro do corrente ano pela ANVISA em virtude de evento adverso grave observado em um voluntário do Reino Unido (mielite transversa)6-7 mas em 12 de setembro a própria agência autorizou o retorno dos estudos por concluir juntamente com os pesquisadores, o Comitê Independente de Segurança do estudo clínico e da empresa patrocinadora do estudo, a AstraZeneca que a relação benefício/risco se mantém favorável. Esse tema traz a reflexão acerca de como se processam os estudos clínicos no Brasil, os riscos envolvidos e aos quais os participantes estão submetidos, principalmente quando se trata de pessoas vulneradas - crianças e adolescentes. Seria, portanto, possível que essas pessoas participem de pesquisa à luz da legalidade constitucional? No Brasil, de acordo com o último Boletim de Ética em Pesquisa da CONEP- Comissão Nacional de Ética em Pesquisa8, datado de 08/09/20209, constam aprovadas e em andamentos pesquisas envolvendo crianças no âmbito comportamental, características clínicas, cuidados, entre outros, mas não testes com medicamentos ou vacinas. As pesquisas em seres humanos não são reguladas por lei no Brasil, muito embora esteja em tramitação o Projeto de Lei 7.082/2017, que dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos, com pedido de urgência pelo deputado Hiran Gonçalves em março de 202010. Apesar do vácuo normativo, aplica-se um emaranhado de normas de naturezas diversas para regular os ensaios clínicos, incluindo as de cunho deontológico, regulatório-normativo, normas internacionais de boas práticas, princípios bioéticos e as normas jurídicas11, em que se incluem para a análise em questão o disposto na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A matéria traz à reflexão a possibilidade de submeter crianças à pesquisas clínicas em razão dos riscos incomensuráveis a que estão sujeitas, principalmente quando se trata de ensaios clínicos não terapêuticos12, em que as crianças não estariam acometidas da doença a qual se pretende encontrar a cura. A preocupação é tutelar a criança, haja vista sua potencial vulnerabilidade, muito embora não pairem dúvidas quanto à necessidade do desenvolvimento de vacinas e do progresso científico, até mesmo porque o objetivo é imunizar as crianças que apresentam toda uma especificidade quanto aos efeitos imunológicos. As crianças não são pequenos adultos, mas seres em desenvolvimento, o que justifica tratamento próprio e a proteção especial que receberam do ordenamento jurídico. No plano internacional, a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (CDHB) prevê que, em regra, a formação substitutiva de vontade de uma pessoa para consentir apenas ocorre quando a intervenção lhe acarrete benefício direto (artigo 6º, n 1e 2, CDHB). No entanto, há exceção ao se tratar de ensaios e investigação clínica (art. 17º, CDHB) e de colheita de órgãos (art. 20º CDHB). A Convenção de Oviedo, em seu artigo 17, admite a investigação em menores desde que o risco seja mínimo. O Regulamento da União Europeia de nº 536/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014, relativo aos ensaios clínicos de medicamentos para uso humano e que revoga a Diretiva 2001/20/CE admite ensaios não terapêuticos em crianças para melhorar a terapêutica existente, observados os requisitos (artigo 32). A Declaração de Helsinque, revisada em 2013, estabelece no item 20 que só se admite pesquisa médica envolvendo população ou comunidade vulnerável quando houver necessidade de saúde, prioridade e probabilidade de beneficiá-la com os resultados da pesquisa. Igualmente, quando o sujeito for legalmente incompetente, pode haver a pesquisa que se dará mediante consentimento do representante legal autorizado. No entanto, a regra é que lhe traga benefício, salvo se promover a saúde da população representada pelo potencial sujeito, e desde que a pesquisa não possa ser realizada com pessoas legalmente competentes e implique em riscos e encargos mínimos (item 28, 29) No Brasil, a participação de crianças em pesquisa clínica não está regulada de forma clara, nem aborda todas as questões jurídicas envolvidas como o tipo de ensaio clínico; quem teria poderes para decidir, principalmente quanto há divergências entre os pais, entre outros fatores. A alínea "j", III.2, da Resolução nº 466/2012 do CNS prevê a possibilidade da pesquisa com crianças para fins terapêuticos, aplicando-se também o disposto no Regulamento do Sistema Único de Saúde, Capítulo VII, Seção I, Subseção I, artigo 703 I, além do art. 101, parágrafo  primeiro do Código de Ética Médica. A Resolução nº 251/97 do CNS referente aos ensaios clínicos não prevê apenas a possibilidade de submissão de sujeitos sadios à pesquisa no item IV.2, pelo que poderia abranger a participação em qualquer tipo de ensaio clínico, inclusive, os não terapêuticos (item IV.1, e o Regulamento do Sistema Único de Saúde, Capítulo VII, Seção I, Subseção I, artigo 746). Não há portanto, nada que vede expressamente a participação da criança em ensaio clínico, até porque é necessária a pesquisa, o desenvolvimento de medicamentos, vacinas, para cura de doenças. Todavia, as pesquisas envolvendo crianças devem ocorrer observando todos os preceitos éticos e jurídicos, baseados principalmente na proteção de seus direitos fundamentais - tais como a vida, a saúde, a dignidade, a liberdade -, cabendo à família, ao Estado e à sociedade em geral assegurar esses direitos, levando sempre em consideração o melhor interesse da pessoa menor de idade (art. 227 da CF e o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA). Além disso, é indispensável que se observe sua vontade quando possível participar do processo decisório, por meio do assentimento que se soma ao consentimento livre e esclarecido dado pelos pais (art. 15 do Código Civil, art. 21 do ECA), com o devido esclarecimento pelo pesquisador sobre a pesquisa, tanto para o representante legal, como para o menor, neste caso observada a sua linguagem. A pesquisa deve representar o mínimo de riscos para as crianças participantes, além de não obter benefício financeiro13. O Código de Ética Médica é expresso quanto à necessidade de assentimento livre e esclarecido do menor para sua participação em pesquisa, observando sua capacidade de compreensão (artigo 101, § primeiro). Da mesma forma, a Resolução nº 466/2012 do CNS (II.2, IV.6, alínea "a") e Resolução nº 251/97 do CNS (IV.1, alínea "q") são expressas quanto à necessidade de informar à criança e ao adolescente no limite de sua compreensão, e a manifestação do próprio sujeito, ainda que com capacidade reduzida. A Resolução nº 41/1995, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA aprova, em sua íntegra, o texto da Sociedade Brasileira de Pediatria, relativo aos Direitos da Criança e do Adolescente hospitalizados, que no item 12 dispõe: "Direito a não ser objeto de ensaio clínico, provas diagnósticas e terapêuticas, sem o consentimento informado de seus pais ou responsáveis e o seu próprio, quando tiver discernimento para tal". De acordo com o posicionamento atual dos profissionais de saúde, as crianças não são consideradas grupo de risco para contrair a COVID-19, os sintomas verificados são mais leves, muito embora ainda não se saiba as reais consequências da doença para a população infantil14. Se o acompanhamento da pesquisa ocorrer de forma bem próxima, para se contornar as situações adversas que possam eventualmente ocorrer, é possível se admitir a participação de crianças em ensaios terapêuticos que lhe sejam diretamente aproveitados, razão pela qual deve ser requisito que as crianças tenham sido previamente infectadas pelo coronavirus para que possam participar das pesquisas na fase II. Ressalva importante se faz em relação à reinfecção. Se for constatado que aqueles que já contraíram a COVID-19 podem ser novamente infectados, não é o caso de submeter a população vulnerável e protegida prioritariamente a esse risco. E, em relação a crianças saudáveis, que não tenham sido infectadas pelo vírus, não se entende possível que elas participem de pesquisas que as exponham a esse perigo, exatamente por serem alvo de proteção especial pelo ordenamento jurídico. Proteger as crianças não significa, portanto, excluí-las do processo de investigação clínica, mas evitar malefícios e efeitos adversos. É preciso equilibrar e conciliar os princípios da solidariedade, do melhor interesse da população infanto-juvenil, do progresso científico, ponderando os riscos para as crianças e proteção à sua integridade física e psíquica. *Ana Carolina Brochado Teixeira é doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. **Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora do Instituto de Direito da PUC-Rio.  __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 23 maio 2020. A notícia também pode ser vista na página da própria universidade. Acesso em 25 maio 2020. 2 Na página da universidade citada na nota anterior, anunciam que para participar da pesquisa é necessário ter boa saúde e estar nas faixas etárias previstas. No entanto, não há uma referência a qual fase da pesquisa esses requisitos se referem. Essa observação se deve ao fato de que, já na fase II, as pesquisas geralmente contemplam indivíduos infectados com a doença objeto da pesquisa. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Acesso em: 13 set. 2020. 5 Disponível aqui. Acesso em 13 set. 2020. 6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui. Aceso em 13 set. 2020. 8 No Brasil a aprovação dos protocolos de pesquisa em seres humanos observa o sistema da plataforma CEP/CONEP. 9 Disponível aqui.  Acesso em 13set. 2020. 10 Disponível aqui. 11 A respeito do tema: PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Responsabilidade civil nos ensaios clínicos. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. 12 A investigação clínica pode ser tanto terapêutica como pura. A primeira, com finalidade diagnóstica, tem como objetivo a profilaxia ou tratamento do próprio sujeito, e, por isso, o pesquisador propõe a terapêutica que acha mais adequada para o paciente visando a melhoria de sua saúde, buscando benefício para o participante de forma direta, com imediato interesse do paciente, observados os procedimentos éticos e legais. A segunda, também chamada de não terapêutica, prescinde de imediatos fins terapêuticos e consiste na pesquisa realizada em pessoas doentes ou saudáveis com o objetivo de obter conhecimento, resultados científicos generalizáveis que não implicam em benefício direto, imediato para elas próprias, mas que suportam os encargos sem benefícios, fundada em diversas razões, dentre elas, a filantrópica ou financeira. 13 PEREIRA, Paula Moura F. Lemos ; TERRA, Alina Miranda Valverde. Considerações acerca do estatuto jurídico do corpo humano. Revista dos Tribunais (São Paulo. Impresso), v. 952, p. 37-58, 2015. 14 "Os estudos até agora levantam algumas hipóteses para explicar a situação peculiar das crianças: os sistemas de imunidade celular e humoral das crianças são menos desenvolvidos, sem capacidade de resposta inflamatória exacerbada; os receptores ACE2 são imaturos, dificultando a invasão celular pelo vírus; uso de vacinação BCG e talvez infecções prévias pelo vírus sincicial respiratório. Mais estudos ainda são necessários para explicar porque as crianças são menos susceptíveis à agressividade do coronavírus". Disponível aqui. Acesso 26 maio 2020.
Texto de autoria de Dorival Fagundes A pandemia de COVID-19 explicitou, com expressiva veemência, as insuficiências do modelo neoliberal (ALAMES, 2020; NUNES, 2020), que fragilizou os sistemas de saúde e proteção social apresentando-se como um "fato político novo" (SANTOS, 2020) nas tensas e intensas relações entre o setor público e o privado1. A despeito destas relações, a necessidade de controle da pandemia alterou prioridades de gasto público e reestabeleceu parâmetros regulatórios, sem que tenha havido materializações efetivas no sentido de aperfeiçoamento do SUS. Talvez o Sistema Único de Saúde esteja enfrentando a maior crise desde o início da década de 1990 (SOUZA et al, 2019), dado o contexto do país desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016 (BASTOS, 2017), e agora ainda agravado pela trágica "governança sem governo (central)" do atual governo federal, que reúne um autoritarismo neoliberal e uma negação da ciência (ORTEGA & ORCINI, 2020), resultando em uma mistura explosiva e mortal, como apontam os dados de mortalidade no país, atualmente na faixa de 37,8 a cada 100 mil habitantes, com mais de dois milhões de casos e um total superior a oitenta mil mortos (BRASIL, 2020). Quando se observa, por exemplo, a questão da oferta dos leitos de UTI, percebe-se que de dezembro de 2019 a abril de 2020, o país passou de 46.045 leitos para 60.265, um aumento significativo de 14.220 leitos, ou 30,88 em termos percentuais. Todavia, deste aumento apenas 3.104 são leitos SUS (21,82%) e o restante, 11.116 foram instalados pelo setor privado, representando 78,18% do total incrementado. Até dezembro de 2019, a diferença numérica entre os leitos de UTI era de 53 em favor do SUS (JUNIOR & CABRAL, 2020). Assim, em que pese a desestabilização no ethos neoliberal e o aumento da percepção da importância do SUS para o país, aliado a uma legitimação pública do sistema universal, que é fruto das importantes lutas sanitárias das décadas de 1970 e 1980 (BRASIL, 2006; CORDEIRO, 2004; PAIM, 2007), isso não implica dizer que o SUS será valorizado; nem promove automaticamente o fortalecimento do padrão sanitarista-publicista, que ainda encontra um longo caminho a ser desbravado nos territórios subjetivos e institucionais nas três esferas de poder. O "norte" para tal padrão aponta no sentido de promover e qualificar uma consciência sanitária (BERLINGUER, 1978), isto é, uma consciência da saúde enquanto um direito "de todos e dever do Estado" e as muitas implicações que daí decorrem. Os sistemas públicos de saúde ainda ganham importância nesta pandemia pelo fato de inexistir planos estratégicos de enfretamento previamente delimitados e construídos para serem agora aplicados. Apesar da existência de epidemias e pandemias na história da humanidade e de um sistema de vigilância de doenças, agravos e eventos de importância em saúde pública no país, tudo é muito novo e precisa ser direcionado com cautela, bem como os Estados precisam dispor de recursos para fomentar pesquisas voltadas ao melhor conhecimento do vírus e tratamento da COVID-19, sem se preocupar com retornos econômicos "obrigatórios", pois o que está em jogo é a vida humana, mais importante bem jurídico tutelado em nosso ordenamento. As reais possibilidades de instituição do SUS chocam-se com o padrão operativo mercantil, de forma que há, no mínimo, um duplo macro desafio nacional: (i) ampliação do acesso aos serviços de saúde de modo a cumprir os objetivos constitucionais da seguridade e da justiça social (MARTINS, 2013); e (ii) regulação efetiva do setor privado, a fim de submetê-lo ao controle público-democrático do SUS. Urgente é a defesa de uma "práxis regulatória publicista" (OCKÉ-REIS, 2006), pois só esta é capaz de atender aos princípios constitucionais da equidade, universalidade e integralidade (PAIM, 1997) e de realizar a "política econômica constitucional" expressa na Magna Carta (GRAU, 1997), cuja finalidade-mor é a dignidade humana. Um terceiro fator importante que explicita a centralidade da saúde pública, do Estado e consequentemente do SUS, sem o qual não há superação da "Coronacrise" (MELLO, 2020), reside nas externalidades geradas pelo evento pandêmico, isto é, o acirramento das crises econômicas (QIU & CHEN & SHI, 2020), sociais (NICOLA et al, 2020), políticas (NUNES, 2020), climáticas (JUNI et al, 2020), especialmente nos países "em desenvolvimento" (BONG et al, 2020), pois elas não serão superadas sem que haja fortes intervenções estatais nestes setores para, por exemplo, estimular a indústria nacional (BERCOVICI, 2020) e criar caminhos mais sólidos para a formação de um pacto federativo que venha a superar os desequilíbrios regionais de modo democrático, com participação da comunidade (SANTOS, 2020). A resiliência para a crise não se encontra no mercado (frágil) e nem na saúde privatizada, mas no "fortalecimento de um sistema público e universal" (como o SUS), sustentado nos pressupostos da saúde como "bem comum" e com "participação social", como ferramenta democrática essencial para seus delineamentos, implantação e execução (NUNES, 2020). Considerando os estudos dos historiadores da FIOCRUZ, especificamente da Casa de Oswaldo Cruz, que há décadas promovem um trabalho muito interessante de manutenção da memória política sanitária, talvez tenhamos três grandes momentos de centralidade da saúde pública no país. O primeiro deles ocorreu na Primeira República com a participação intensiva dos sanitaristas na formação do Estado nacional, disputando "caminhos para o saneamento", dado que as políticas sanitárias "tiveram um papel importante no incremento substancial da penetração do Estado na sociedade e no território" brasileiros (HOCHMAN, 1998); e a segunda com as lutas dos movimentos sanitários das décadas de 70-80 cuja culminância foi a institucionalização do SUS, essa ousadia periférica justamente no momento em que o neoliberalismo aterrissava no país (ANDERSON, 1995; GROS, 2004; NEY & GONÇALVES, 2020). O terceiro grande momento é justamente o que agora vivemos, os tempos pandêmicos de COVID-19. O SUS é um patrimônio do povo brasileiro, conquista social de muitos que nos antecederam e que dia a dia vai sendo formado e transformado, tanto pelas políticas, quanto pela gestão e mesmo pelas ações e serviços promovidos pelos heroicos trabalhadores da saúde; e mesmo estando presente em todo o território nacional ainda não conseguiu formar uma base estável de apoio (SANTOS, 2020), o que seguramente envolve alguns fatores relevantes como a grande mídia, que se esforça para veicular notícias negativas contra o sistema; a precária relação com o trabalhismo (SANTOS, 2014, 2018b, 2018c) e mesmo com os partidos políticos, mas que não serão abordados no curto espaço dessa coluna. Nem mesmo contribui para este fortalecimento o número expressivo de usuários diretos e exclusivos (que só usam o sistema público), que está na faixa de 75% a 80% do conjunto demográfico nacional (DUARTE & EBLE & GARCIA, 2018; STOPA et al., 2017). Tratando-se de um país de mentalidade escravocrata e racista (SOUZA & MEDEIROS & MENDONÇA, 2020), sexista (LOYOLA, 2020), cujos índices de desigualdade e de concentração de renda assustam até mesmo os mais conformados (PERES & SANTOS, 2020; SOUZA, 2016; DWECK & SILVEIRA & ROSSI, 2018; PNUD, 2019), e que está inserido como economia dependente, periférica e subdesenvolvida no sistema-mundo (BRAUDEL, 1996; ARRIGHI, 1999), torna-se muito difícil sustentar um projeto de saúde universal-igualitário deste porte para uma população majoritariamente negra, empobrecida, espoliada em seus recursos, subalternizada em suas condutas e apartadas do cuidado, pois são essas populações que constituem a maioria dos usuários diretos do SUS. Nestes termos, poderiam eles ter acesso a um sistema bem financiado, que não estivesse diariamente sob o ataque de outros que não o suportam, ainda que igualmente sejam usuários indiretos? Poderiam eles ter o direito de viver? Não coincidentemente são os mais vulneráveis e atingidos pela pandemia (GOES & RAMOS & FERREIRA, 2020), dados igualmente os determinantes sociais da saúde (BUSS & PELLEGRINI FILHO, 2007; FLEURY-TEIXEIRA, 2009; GARBOIS & SODRÉ & DALBELLO-ARAÚJO, 2017) incidentes nestes sofríveis contextos de vida aos quais estão inseridos. As pandemias do racismo e do machismo estão aí, há séculos, ceifando vidas, aniquilando esperanças, promovendo massacres e dores pungentes, ainda que sob formas variadas ao longo da história. Nós sabemos que os corpos mais suscetíveis à morte ainda têm gênero, raça, classe e território bem definidos (SOUZA, 2020), e a pandemia de COVID-19 explicitou essas marcas. Enfim, as alianças formadas em torno do neoliberalismo (e seus flertes com os autoritarismos) negam o direito à vida e são insuficientes para lidarem com a pandemia, como está demonstrado na realidade - basta que se tenham olhos de ver. Por isso, é fundamental refletir sobre o sistema, pensando os seus entraves, bem como formulando programas de expansão e consolidação do sistema universal, valendo-se da "pedagogia cívica" promovida pela pandemia, a fim de fomentar o sanitarismo e a consciência sanitária (ambos despertos para as opressões de gênero, raça, classe, etnia) para os cidadãos de modo geral, para além dos profissionais e militantes da saúde. Ou seja, trata-se de inscrever a saúde pública no núcleo da construção da cidadania e identidade políticas da população brasileira (MARSHALL, 1967; SANTOS, 2018a), para que o sistema alcance um grau de maturidade em sua base de apoio (GUIMARÃES & SANTOS, 2019), assim como o corpo social avance no sentido de perceber o SUS como elemento central para a formação do Brasil contemporâneo e mesmo para a manutenção da saúde da população e do bem-estar nacional, que envolve o reconhecimento da sua magnânima importância, sobretudo em tempos pandêmicos. Ai de nós se não tivéssemos o SUS! ____________ 1 As relações público-privadas vão muito além dos seguros de saúde e das discussões sobre ressarcimento ao SUS toda vez que um usuário é atendido em hospital público. Abarcam, por exemplo, e sem levar a exaustão: atendimento pelo SUS do que não é coberto pela saúde suplementar, aquisição de planos privados para servidores públicos, renúncia fiscal, isenções tributárias das filantrópicas e cooperativas, cotidiano dos profissionais de saúde duplamente filiados (SCHEFFER & BAHIA, 2005). ____________ ALAMES. Asociación Latinoamericana de Medicina Social y Salud Colectiva. Alames against the pandemic covid-19. 1 abr. 2020. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2020. ANDERSON, P. Balanço do Neoliberalismo. In SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9-23. BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. 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Texto de autoria de Bruna Alves Freitas Vidal e Lilibeth de Azevedo Como nascem os projetos? Já pararam para pensar? Uns precisam de nove meses de gestação ou até mais; outros nascem em avalanche, de forma abrupta; outros são arquivados e desarquivados. O fato é que não importa o tempo que levem, sempre será necessário um impulso, uma ação para que o projeto seja efetivado. Pois então, com o primeiro projeto do OAPAR-Observatório da Alienação Parental não foi diferente. Composto por 25 profissionais da área do Direito e da Psicologia, imbuídos no mesmo propósito, em um cenário absolutamente atípico de isolamento social, surgiu inicialmente a ideia do aprofundamento no estudo sobre o fenômeno da alienação parental "AP" e, logo em seguida, a produção de uma cartilha voltada principalmente para leigos sobre o tema. O OAPAR teve sua origem a partir da primeira turma do curso de extensão em alienação parental oferecido no Brasil pelo Instituto de Direito da PUC-Rio e ministrado pela psicóloga e perita judicial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Glicia Brazil. A mola propulsora para a produção da cartilha foi a vontade uníssona do grupo de informar e propagar conhecimento sobre um tema que o OAPAR considera extremamente relevante para a sociedade, para as famílias e em especial para a proteção integral de crianças e adolescentes. Da percepção na dificuldade no manejo com a lei de alienação parental por profissionais do direito, passando pelo desconhecimento e inaptidão para reconhecer e tratar o fenômeno pelos psicólogos, chegando aos leigos que ora pensam que AP não passa de "picuinha" entre ex-casal ora pensam que a lei discrimina mulheres e aumenta a vulnerabilidade de crianças e adolescentes ao acobertar abusos sexuais. Assim, foi percebido que era absolutamente necessário, um dever social, informar, elucidar, apresentar o tema através de uma linguagem mais simples e acessível de forma a alcançar o maior número de pessoas e obter com isso maior amplitude na disseminação de informação. Foi traçando esse caminho que uma equipe multidisciplinar muito focada optou por contribuir com conteúdo jurídico e psicológico para tratar sobre o tema. A cartilha foi esquematizada em seis capítulos, com intuito de explicar de forma clara e didática o fenômeno da AP, questão de saúde pública e ainda desconhecida por muitos. A verdade é que são poucos os casos que realmente chegam ao Judiciário, ficando muitos deles conhecidos apenas nas escolas, nos Conselhos Tutelares, núcleos de assistência social, consultórios de psicologia, psicanálise e psiquiatria. Essa preocupação em esclarecer e informar as famílias, o Poder Judiciário, os profissionais da área da saúde e a sociedade foi devidamente justificada no primeiro capítulo da cartilha. O segundo capítulo, como referido acima, teve como enfoque derrubar os mitos que rondam a lei 12.318/2010, como, por exemplo, de que seria uma lei "pedófila" ou "misógina". Muitos são os discursos que defendem que os juízes, com base na lei 12.318/2010, invertem a guarda física para o genitor "pedófilo" após ser comprovado por um perito técnico a falsa acusação de abuso sexual. Ou, ainda, que somente mulheres são punidas pela lei nas ações judiciais. Foi esclarecido que qualquer pessoa pode praticar o ato da alienação parental, sem necessariamente ser a mãe que, geralmente, é quem detém a guarda física da criança ou do adolescente. Da mesma maneira, a cartilha deixa claro que as partes devem confiar na produção de laudos periciais, elaborados dentro da boa técnica, capazes de efetivamente averiguar se houve abuso sexual por parte de um genitor ou se aquela criança ou adolescente está sofrendo AP, ou ambas as possibilidades. De extrema importância foi alertar também para a compreensão, no terceiro capítulo, acerca da correta conceituação da alienação parental, que é um ato de violência psicológica praticado contra a criança ou adolescente, por meio do qual se faz verdadeira lavagem cerebral para que não seja possível ao (s) filho (s) amar o genitor alienado, criando-se uma aliança entre ele (s) e o genitor alienador. A prática de alienação parental é um verdadeiro abuso de ordem emocional e moral praticado contra quem não tem ainda qualquer maturidade para compreender essa violência, razão pela qual a cartilha buscou destacar frases corriqueiras, praticadas por quem tem a intenção de alienar como, por exemplo: "sua mãe não presta", "seu pai te deu banho?" e "mamãe não sobrevive sem você". Ocorre que muitas vezes não é fácil, muito menos simples, identificar um quadro de alienação parental, razão pela qual no capítulo quatro foram destacados cinco sinais que a criança ou adolescente podem apresentar, quais sejam, (i) rejeição ou recusa; (ii) dificuldade de entrosamento ou baixa interação; (iii) sentimento muito negativo com o lado alienado; (iv) criança "antena parabólica", (v) criança/adolescente "sintoma". Tais sinais abarcam diversos quadros psicoemocionais e comportamentais de crianças e adolescentes, que auxiliam aos cuidadores a suspeitar da ocorrência da prática dessa violência e efetivamente procurar ajuda. Sob o título "Como agir" o capítulo cinco da cartilha explicou que o tratamento da alienação parental se divide em três eixos: (i) o eixo da família, (ii) o eixo da saúde e, finalmente, (iii) o eixo da justiça. No eixo da família, foi destacada a necessidade da conscientização dos membros da família e também da importância de mudança de atitude do par parental, em especial no período pós separação, visando sempre o melhor interesse das crianças e dos adolescentes. Já no eixo saúde, foi justificada a necessidade do tratamento psicológico ou psicanalítico do par parental e das crianças e adolescentes, em especial no período acima citado, evitando que os filhos se tornem objetos de vingança ou disputa entre os pais. Finalmente, no eixo justiça, a cartilha buscou explicar qual o papel dos juízes, promotores, advogados, defensores públicos, peritos judiciais, assistentes técnicos e assistentes sociais dentro de uma ação judicial que venha a discutir guarda, convivência ou a prática de alienação parental. E, para concluir o capítulo, buscou-se explicar as medidas que o genitor alienador pode sofrer, a gradação prevista no artigo 2º da lei 12.318/2010, afastando a falsa premissa de que sempre ocorre uma inversão de guarda, como muitos acreditam, quando se prova a prática de AP. Isso porque a lei da alienação parental busca proteger a criança e o adolescente, jamais privilegiando interesses particulares dos genitores ou sua punição, a lei não separa, ela na verdade propicia a convivência saudável da criança com ambos os genitores, portanto, a lei une. A cartilha é concluída no capítulo seis, onde é alertado que fechar os olhos para a prática de alienação parental é o mesmo que negar a existência de abusos contra os frágeis, verdadeiramente vulneráveis, criança e adolescentes que, repita-se, não tem ainda a maturidade emocional necessária para impedir ou combater essa covarde violência, praticada por um autor que deveria amá-los em primeiro lugar, conservando sua integridade psicoemocional, de forma a contribuir para a criação de um cidadão saudável, equilibrado e seguro do amor de pai e mãe para o enfrentamento da vida adulta. *Bruna Alves Freitas Vidal é advogada, sócia do Escritório Prof. Caio Mario da Silva Pereira. Especialista em Direito de Família e Sucessões. Fundadora e coordenadora Geral do OAPAR - Observatório da Alienação Parental. **Lilibeth de Azevedo é advogada, sócia do Candido de Oliveira Advogados. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundadora e Tesoureira do OAPAR - Observatório da Alienação Parental.
Texto de autoria de Chiara Spadaccini de Teffé e Elora Raad Fernandes Imagine estar andando na rua, alguém tirar uma foto sua e, com essa imagem, ser capaz de visualizar uma série de informações sobre você, com base, principalmente, em sua atividade online. Isso incluiria, por exemplo, seus perfis nas mídias sociais, os locais onde frequenta e as pessoas que você conhece. Imagine ainda que, de forma constante, sua imagem seja captada e seus dados biométricos analisados por sistemas de vigilância e monitoramento instalados nas vias públicas. Tecnologias de reconhecimento facial assim desenhadas vêm sendo utilizadas por autoridades e agentes privados em nível global. No Brasil, esse cenário não é diferente e a tendência é que, após a pandemia de Covid-19, haja uma ampliação das ferramentas de controle e vigilância sobre a população. Mas quais são os efeitos de uma vigilância constante a partir da tecnologia de reconhecimento facial? De um lado, há promessas de maior segurança, em âmbito público e privado, e de acesso facilitado a produtos e serviços. De outro, com a intensa aplicação dessa tecnologia, passa-se a ser regularmente controlado, o que sem dúvidas traz diversos questionamentos em relação à proteção de direitos fundamentais, como a igualdade, intimidade e liberdade de expressão. Não são poucos os riscos gerados pelo reconhecimento facial, principalmente a partir do tratamento de dados sensíveis, sendo necessário discutir se e como deve ocorrer a utilização dessa ferramenta. A maior parte das tecnologias de reconhecimento facial trabalha, basicamente, por meio de dois passos: (I) registro (enrollment) e (II) correspondência ou reconhecimento (matching). Essas fases podem ser divididas em quatro passos: captura, desconstrução, armazenamento e comparação, a depender da finalidade para a qual a tecnologia será utilizada. O resultado da comparação é dado em porcentagem, isto é, na probabilidade de uma imagem mostrar a mesma pessoa presente em outra imagem contida na base de dados. Assim, os resultados são fornecidos pelo sistema respeitando uma ordem de "sobreposição" das características da imagem, podendo retornar diversas opções para o operador.1 A acurácia do sistema depende de uma série de fatores, como o ambiente, a idade, as diferentes emoções demonstradas, a luz do local, a distância da câmera e a orientação da cabeça2. Da mesma forma, caso a pessoa apresente modificações no corte de cabelo, use maquiagem ou utilize acessórios como lenços, máscaras ou óculos, o sistema pode ter dificuldades em realizar o reconhecimento. É possível também que haja semelhanças entre pessoas diferentes, especialmente se elas forem geneticamente relacionadas.3 No âmbito público, o reconhecimento facial tem sido utilizado principalmente para a segurança pública, controle de fronteiras, prevenção de fraudes e roubos de identidade, proteção da saúde pública (verificando o deslocamento de pessoas infectadas por Covid-19 e possíveis aglomerações em espaços públicos, por exemplo), na área da educação e no transporte público. Exemplo emblemático relacionado à segurança pública é o caso da Clearview AI, startup estadunidense que desenvolveu um aplicativo de reconhecimento facial com fotos extraídas de diversas mídias sociais e sites. A partir da imagem de uma pessoa, é possível identificar outras fotos suas, além de links de onde essas fotos aparecem. Esse aplicativo foi utilizado por agências policiais nos Estados Unidos e podia identificar ativistas em um protesto ou então pessoas consideradas suspeitas no metrô, revelando diversas informações, como nome, endereço, o que faziam e quem conheciam. O aplicativo também foi utilizado por empresas para fins de segurança privada. A partir dessas parcerias, a startup passou a ter informações privilegiadas, por exemplo, sobre quem estava sendo procurado ou considerado suspeito de algum ilícito. Outras companhias, como a Amazon, também já realizaram parcerias com agentes públicos para o uso de tecnologias de reconhecimento facial, o que demonstra a linha tênue existente entre interesses públicos e privados nessa seara4. Isso faz soar alarmes importantes sobre o poder que vem sendo concentrado nessas empresas, bem como acerca dos bancos de dados sensíveis desenvolvidos a partir do uso de ferramentas tecnológicas de vigilância. No Brasil, sistemas de reconhecimento facial já são aplicados desde pelo menos 2011, sendo sua utilização para fins de segurança largamente expandida em 2019, principalmente durante o carnaval, por meio de parcerias com agentes privados. Hoje, mais de 40 cidades no país adotam a tecnologia. Além de auxiliar a segurança, no âmbito privado o reconhecimento facial tem sido utilizado para diversos outros propósitos5. Através dele, é possível, por exemplo, identificar clientes, personalizar serviços a partir das reações dos usuários, prevenir fraudes, reconhecer indivíduos com condenações por furtos em lojas e controlar o acesso em dispositivos, instituições, residências e ambientes internos de empresas. Nesse âmbito, vale recordar, por exemplo, o caso do Metrô da Linha 4 de São Paulo, cuja concessionária coletava a reação de passageiros às publicidades exibidas através de câmeras instaladas nas telas das plataformas6; o caso da Hering, que desenvolveu uma loja conceito que utilizava a tecnologia de reconhecimento facial para monitorar a reação dos clientes às roupas; e o caso do Carrefour, que também desenvolveu uma loja conceito, na qual os clientes escolhiam entre o reconhecimento facial ou a leitura de um QR Code para realizar compras. Embora possa melhorar a experiência no varejo, tal aplicação tem gerado grandes quantidades de dados sensíveis sobre movimentos, preferências e associações de indivíduos, o que traz sérias consequências para a privacidade e a proteção dos dados dos consumidores. Além disso, pode gerar diversas violações relacionadas aos direitos de liberdade e igualdade.7 Será necessário refletir, por exemplo, acerca da existência de um direito ao anonimato nos espaços públicos. O mero fato de ser o local um espaço público, por si só, já permitiria a adoção pelo Estado de tecnologias de vigilância e controle? Com a ampliação do reconhecimento facial, o Estado poderá rastrear seus cidadãos, verificando que lugares eles frequentam, e manter bancos de dados específicos com informações de participantes em manifestações políticas ou de pessoas com opiniões contrárias ao governo. Isso impõe um necessário cuidado com a observância de certos fundamentos éticos e com a proteção da liberdade de expressão, uma vez que, sabendo que está sendo vigiada, a pessoa pode não se comportar da mesma maneira, sendo inclusive silenciada.8 A liberdade religiosa também pode ser ameaçada, nos casos em que elementos como o véu ou a burca prejudicarem o reconhecimento de pessoas e seu uso for, em seguida, limitado ou vedado. Adicionalmente, há questões graves relacionadas ao direito à igualdade. Em um futuro em que o reconhecimento facial seja naturalizado, por exemplo, os mais abastados poderão realizar cirurgias plásticas ou utilizar outros artifícios para escapar dessas tecnologias. E, mais grave ainda: já foram demonstradas diferenças de taxa de acurácia no reconhecimento de pessoas de diferentes raças, gêneros e idades,9 podendo o uso dessa tecnologia ensejar cenários de discriminação.10 Exemplo claro disso ocorreu recentemente, quando uma falha no sistema de reconhecimento facial fez com que um homem negro fosse preso por engano. Essas tecnologias têm feito, também, com que diversas pesquisas sejam realizadas buscando identificar criminalidade, homossexualidade e traços psicológicos através dos traços do rosto, fazendo-nos voltar a teorias lombrosianas, que pareciam já superadas. Por fim, há também a potencialidade de essa tecnologia reificar o corpo humano, que passa a ser um objeto "cujas dimensões são medidas, coletadas e usadas para fins que nem sempre são muito claros [...]. A pessoa é reduzida a apenas um algoritmo digital".11 Protestos generalizados em razão da violência policial e da preocupação de que sistemas de reconhecimento facial sejam falhos e perpetuem visões racistas vêm colocando a questão cada vez mais em voga. Na França e na Suécia, foi proibida a utilização de reconhecimento facial nas escolas; nos Estados Unidos, cidades como Berkeley, San Francisco, Oakland, Cambridge, Summerville e Boston baniram o uso de imagens coletadas por dispositivos de reconhecimento facial por autoridades públicas e o estado da Califórnia instituiu uma moratória de três anos para o uso de câmeras nos uniformes dos policiais. Nesse mesmo país, setenta organizações da sociedade civil coletaram 150 mil assinaturas contra o uso da tecnologia. Nessa direção, algumas empresas já anunciaram que estão evitando lançar esse tipo de tecnologia ou mesmo que cancelaram suas pesquisas no tema.12 O debate acerca da regulação da tecnologia é global. Contudo, há uma discordância essencial em como ela ocorrerá. Basicamente, há aqueles que defendem um uso limitado da tecnologia, a partir da identificação de atividades específicas nas quais ela poderia ser utilizada. Há também quem entenda pela suspensão do uso do reconhecimento até que sejam desenvolvidas normas e precisão adequada à ferramenta, em razão de ela não ser ainda suficientemente madura e confiável para ser utilizada de maneira segura e justa com populações vulneráveis.13 Outros especialistas afirmam, porém, que seu banimento seria necessário, uma vez que o vigilantismo opressivo seria intrínseco à própria tecnologia.14 Em relação aos dados sensíveis biométricos15 - que são tratados para o reconhecimento facial -, a LGPD é a principal referência no Brasil. Levando-se em conta a importância de conteúdos guardados em determinadas informações e a potencialidade de seu uso servir para fins discriminatórios contra o indivíduo, foi desenvolvida uma categoria especial de informações pessoais: os dados sensíveis (Art. 5º, II, da LGPD), que deverão ser protegidos de forma mais rígida e específica pela lei, havendo rol próprio de bases legais para seu tratamento (Art. 11). Vale lembrar que tratamentos de dados para fins de segurança pública não serão regidos integralmente pela LGPD (Art. 4º, III), hipótese essa comum para a aplicação de reconhecimento facial. Dispôs a lei que esse tratamento de dados será regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos na lei de dados. Assim como o Regulamento europeu de proteção de dados (GDPR), a Lei abriu exceção para algumas atividades estratégicas do Poder Público voltadas à proteção do Estado e dos cidadãos. Cabe, porém, trazer os seguintes questionamentos: Quais entidades públicas poderão requerer a aplicação do Art. 4º em suas atividades? Como poderia ser aplicada a mencionada exceção para respaldar tratamentos de dados advindos de reconhecimento facial realizado pelo Estado? Quais seriam os limites se a mencionada tecnologia fosse fruto - como geralmente ocorre - de uma parceria com agente privado? A existência de uma vigilância constante e a banalização do uso de tecnologias como a de reconhecimento facial podem trazer severos riscos aos direitos e garantias fundamentais. Como apontado, o reconhecimento facial, no estado da técnica em que se encontra, ainda é cercado de polêmicas, devendo sua utilização ser debatida de forma pública e ampla, levando-se em conta os valores constitucionais e considerações éticas. As manifestações políticas, a interação social, as liberdades básicas e o tratamento igualitário dos indivíduos restarão em xeque caso não sejam traçados parâmetros específicos para a utilização de tal tecnologia, além de salvaguardas à pessoa humana que levem em conta suas vulnerabilidades e características. Entende-se que, ainda que a LGPD traga normas gerais para a proteção de dados e da privacidade, determinadas tecnologias para serem devidamente implementadas (tanto pelo setor público quanto privado) demandam esforços suplementares. Nesse sentido, será necessário um debate multissetorial aprofundado, preferencialmente fomentado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, bem como o desenvolvimento de regulação que, ao mesmo tempo que promova a inovação, a tecnologia e novos modelos de negócio, também se atente ao princípio da dignidade da pessoa humana e sua posição de destaque no Estado brasileiro. *Chiara Spadaccini de Teffé é Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é professora de Direito Civil e de Direito e Tecnologia na faculdade de Direito do IBMEC. Leciona também em cursos de Pós-graduação do CEPED-UERJ, na Pós-graduação da PUC-Rio, na EMERJ, na Pós-graduação do Instituto New Law, no ITS Rio e na Pós-graduação em Advocacia Contratual e Responsabilidade Civil da EBRADI. Membro do conselho executivo da revista eletrônica civilistica.com. Coordenadora da Disciplina "Direito e Internet" da Pós-Graduação do Instituto New Law. Associada ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). Foi professora substituta de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio. Advogada e consultora em proteção de dados. **Elora Raad Fernandes é Doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e graduada em Direito pela mesma instituição, com período de intercâmbio acadêmico na Universidad de Salamanca (Espanha). Foi professora convidada da Pós-Graduação em Direito e Tecnologia do Instituto New Law, ministrando a disciplina "Proteção de Crianças e Adolescentes na Internet" e faz parte do corpo editorial da Revista de Estudos Empíricos em Direito. É, também, fellow do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). _______________ 1 FERGUSON, Andrew Guthrie. Facial Recognition and the Fourth Amendment. Minnesota Law Review, [s.l.], v. 105, p. 1-71, 2019. No prelo. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3473423. Acesso em: 01 jun. 2020, p. 6. 2 NAKAR, Sharon; GREENBAUM, Dov. Now You See Me: Now You Still Do: facial recognition technology and the growing lack of privacy: Facial Recognition Technology and the Growing Lack of Privacy. Boston University Journal Of Science & Technology Law, Boston, v. 23, n. 1, p. 88-123, 2017, p. 95. 3 JAIN, Anil K.; ROSS, Arun A.; NANDAKUMAR, Karthik. Introduction to Biometrics. New York: Springer, 2011, p. 98. 4 Destaca-se, porém, que a empresa recentemente anunciou uma pausa no uso de seu software de reconhecimento facial para uso policial (WEISE, Karen; SINGER, Natasha. Amazon pauses police use of its facial recognition software. The New York Times. [s.l.]. 10 jun. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/06/10/technology/amazon-facial-recognition-backlash.html. Acesso em: 12 jun. 2020). 5 "Trata-se de um dos mais prósperos e promissores negócios da economia contemporânea. A China, onde há 176 milhões de câmeras de segurança, detém 46% do faturamento em reconhecimento facial no mundo e tem a ambição de que o setor chegue a US$ 150 bilhões por ano em 2030. Além de seu emprego sistemático por autoridades policiais, a tecnologia é a base do sistema de pagamentos no varejo e dos empréstimos 'peer to peer', altamente difundidos no país. Nos Estados Unidos esse mercado cresce 20% ao ano desde 2016" (ABRAMOVAY, Ricardo. Movimento por banir uso de reconhecimento facial cresce no mundo. Folha de São Paulo. [s.l.] 14 dez. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/12/movimento-por-banir-uso-de-reconhecimento-facial-cresce-no-mundo.shtml. Acesso em: 10 jun. 2020). 6 Cf. TEOFILO, Davi; KURTZ, Lahis; PORTO JR, Odélio; VIEIRA, Victor Barbieri Rodrigues. Parecer do IRIS na Ação civil Pública IDEC vs. Via Quatro. Parecer sobre a atividade de detecção facial de usuários da Linha Quatro Amarela de metrô de São Paulo, objeto do processo nº 1090663-42.2018.8.26.0100 da 37ª Vara Cível do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo, ação interposta pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) contra a Concessionária da linha 4 do metrô de São Paulo S.A. (ViaQuatro). Setembro de 2019. Belo Horizonte: IRIS, 2019. Disponível em: https://irisbh.com.br/wp-content/uploads/2019/09/Acao-Civil-Publica-IDEC-vs.-ViaQuatro-Parecer-do-IRIS-1.pdf. Acesso em: 14 jun. 2020. 7 Os riscos advindos do uso da tecnologia de reconhecimento facial dependem de vários fatores como a finalidade para qual será utilizada, as bases de dados a que estará vinculada, se o match ocorrerá em tempo real ou posteriormente à captação da imagem etc. Para um aprofundamento destes riscos, principalmente no uso policial da tecnologia, cf. GARVIE, Clare; BEDOYA, Alvaro; FRANKLE, Jonathan. The perpetual line-up: unregulated police face recognition in America. [s.l.]: Georgetown Law - Center on Privacy And Technology, 2016. Disponível em: https://www.perpetuallineup.org. Acesso em: 12 jun. 2020. 8 De plano, percebe-se o quanto isso pode impactar a vida política dos cidadãos, mas, para além disso, "a entrada numa igreja, num bar, o cruzamento dos dados da entrada no bar com aquilo que o indivíduo consumiu (e que foi pago também por reconhecimento facial), a ida a um psiquiatra, a um ginecologista, em suma toda a movimentação referente à vida privada e à própria intimidade das pessoas ganha uma dimensão pública que, ao longo do tempo, acaba por interferir em seus comportamentos, já que elas sabem que estão sob observação" (ABRAMOVAY, Ricardo. Movimento por banir uso de reconhecimento facial cresce no mundo, cit., n.p.). 9 KLAR, Brendan F.; BURGE, Mark J.; KLONTZ, Joshua C.; BRUEGGE, Richard W. Vorder; JAIN, Anil K. Face Recognition Performance: role of demographic information. IEEE Transactions On Information Forensics And Security, [s.l.], v. 7, n. 6, p. 1789-1801, dez. 2012. Disponível em: https://assets.documentcloud.org/documents/2850196/Face-Recognition-Performance-Role-of-Demographic.pdf. Acesso em: 09 maio 2020. 10 Nesse sentido, os vieses ocorrem, principalmente, pelo fato de que esses sistemas de reconhecimento facial são inicialmente desenhados por populações homogêneas de homens brancos (FERGUSON, Andrew Guthrie. Facial Recognition and the Fourth Amendment, cit., p. 42). Um exemplo interessante é um teste realizado pela Associação para as Liberdades Civis dos EUA (ACLU, na sigla em inglês). A associação realizou um "teste com um programa de reconhecimento facial utilizado pela Amazon chamado 'Rekognition'. Entre deputados e senadores, o sistema 'identificou' 28 representantes como criminosos. A ferramenta relacionou as imagens dos políticos a fotos em bancos de dados de pessoas presas. Além do erro no reconhecimento, a associação indicou um funcionamento discriminatório no caso de pessoas negras. Cerca de 40% dos políticos falsamente identificados como criminosos pertenciam a esse segmento, embora ele represente apenas 20% dos membros do Congresso, cujas fotos foram submetidas ao teste" (VALENTE, Jonas. Erros em sistema de reconhecimento facial geram polêmica nos EUA. Agência Brasil. Brasília. 28 jul. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-07/erros-em-sistema-de-reconhecimento-facial-geram-polemica-nos-eua. Acesso em: 04 jun. 2020). 11 NAKAR, Sharon; GREENBAUM, Dov. Now You See Me: Now You Still Do, cit., p. 119. 12 No caso da IBM, ela afirmou que não irá mais oferecer, desenvolver ou pesquisar a tecnologia de reconhecimento facial, vez que se opõe a seu uso para "mass surveillance, racial profiling, violations of basic human rights and freedoms, or any purpose which is not consistent with our values and Principles of Trust and Transparency" (PETERS, Jay. IBM will no longer offer, develop, or research facial recognition technology. The Verge. [s.l.]. 8 jun. 2020. Disponível em: https://www.theverge.com/2020/6/8/21284683/ibm-no-longer-general-purpose-facial-recognition-analysis-software. Acesso em: 10 jun. 2020, n.p.). Em seguida, a Microsoft se uniu a outros gigantes tecnológicos (como a Amazon) ao anunciar que proibirá a polícia de usar suas ferramentas de reconhecimento facial, devido à ausência de regulamentação governamental. Segundo notícia, o presidente da Microsoft, Brad Smith, teria afirmado que: "Não venderemos tecnologia de reconhecimento facial aos departamentos de polícia dos Estados Unidos até que tenhamos uma lei nacional, baseada nos direitos humanos, que regerá esta tecnologia". (MICROSOFT se une aos rivais e veta uso de reconhecimento facial à polícia. Uol. Washington. 12 jun. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/afp/2020/06/12/microsoft-se-une-aos-rivais-e-veta-uso-de-reconhecimento-facial-a-policia.htm. Acesso em: 14 jun. 2020). 13 Nesse sentido, vale recordar recente posicionamento da ACM U.S. Technology Policy Committee, publicado em de 30 de junho de 2020 - ACM U.S. TECHNOLOGY POLICY COMMITTEE. Statement on principles and prerequisites for the development, evaluation and use of unbiased facial recognition technologies. Washington: Acm U.s. Technology Policy Committee, 2020. Disponível em: https://www.acm.org/binaries/content/assets/public-policy/ustpc-facial-recognition-tech-statement.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020. 14 No Brasil, a discussão tem caminhado para a necessidade de um uso "equilibrado" da tecnologia e já há três projetos de lei relativos ao tema em tramitação no Congresso Nacional. Cf. FRANCISCO, Pedro Augusto P.; HUREL, Louise Marie; RIELLI, Mariana Marques. Regulação do reconhecimento facial no setor público: avaliação de experiências internacionais. [s.l.]: Instituto Igarapé + Data Privacy Brasil Research, 2020. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2020/06/2020-06-09-Regulação-do-reconhecimento-facial-no-setor-público.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020. 15 A biometria é a ciência de se estabelecer a identidade de alguém, a partir da medição e análise de seus atributos fisiológicos ou comportamentais mensuráveis. No primeiro caso, são exemplos: a impressão digital, o reconhecimento da íris, a identificação por retina, a definição dos traços do rosto, a arcada dentária, a geometria da mão e a altura da pessoa. No segundo, a forma como a pessoa digita, como anda, gestos característicos, voz e dinâmica da assinatura (velocidade do movimento da caneta, acelerações, pressão exercida e inclinação). Dados biométricos oferecem meios de identificar e autenticar indivíduos de maneira confiável e rápida, com base em um conjunto de dados reconhecíveis e verificáveis, que são únicos e específicos sobre seus titulares. O corpo torna-se a senha, meio único e exclusivo de individualização da pessoa.
Texto de autoria de Manoel Messias Peixinho, Marco Antonio de Mattos, Natalia Costa Polastri Lima e Carolina Altoe Velasco INTRODUÇÃO O presente artigo será dedicado a uma breve análise do instrumento da telemedicina previsto no ordenamento jurídico para fins excepcionais e temporários no atual cenário pandêmico. Ressalta-se que o trabalho tem caráter informativo e não pretende ser exaustivo, mas busca uma breve reflexão acerca da necessidade de adaptação social em tempos de Covid-19, inclusive no âmbito da medicina. Para tanto, será abordado, sucintamente, o contexto social e político da pandemia e os principais aspectos do uso da telemedicina previstos nos atos normativos editados. O CENÁRIO PANDÊMICO E A NECESSIDADE DE ADAPTAÇÃO JURÍDICO-SOCIAL O presente cenário regido pela pandemia da Covid-19 ocasionou mudanças substanciais na sociedade em diversos ângulos. Vivencia-se uma verdadeira revolução científica, jurídica, tecnológica e social. Muitas das alterações experimentadas, acredita-se, não serão apenas temporárias, mas produzirão reflexos permanentes no mundo pós-pandêmico. Dessa forma, o contexto sócio-político atual reafirma a teoria desenvolvida há muito por Ulrich Beck (2011)1, a qual prevê que o mundo se encontra inserido em uma "modernidade tardia". Referida modernidade teorizada por Beck, mais conhecida como pós-modernidade, destaca a produção e distribuição de riscos e gera, assim, uma "sociedade de risco". O mundo estaria vivendo uma autoameaça, e a modernização seria tema e, ao mesmo tempo, problema2, daí a razão de o teórico a chamar de "reflexiva". Os riscos abordados por Beck englobariam efeitos negativos tanto na natureza quanto na dignidade humana, com ameaça à saúde. A globalização é fruto da modernidade e da evolução tecnológica. No entanto, além dos benefícios advindos desse processo de integração mundial, percebe-se também a produção de resultados negativos, como ocorreu com a célere disseminação da Covid-19, o que gerou um cenário de pandemia mundial em rápida velocidade. Ademais, os riscos produzidos com a modernização atingem não só uma classe específica, mas a todos, como se vê no atual contexto mundial de coronavírus. Reafirma-se, assim, o que Beck previu anos atrás: "Com a ampliação dos riscos da modernização - com ameaça à natureza, à saúde, à alimentação etc. - relativizam-se as diferenças e fronteiras sociais"3. Contudo, apesar de "problema", a modernização também é "tema"; e, assim, os avanços tecnológicos têm sido instrumentos indispensáveis para a adaptação jurídico-social necessária no atual cenário para a continuidade do funcionamento da máquina estatal e do fluxo natural da sociedade, inclusive, e principalmente, no âmbito da medicina. No Brasil, em 2017, as doenças crônico-degenerativas - por exemplo, angina do peito, hipertensão arterial, diabetes mellitus - representaram 60% dos óbitos, segundo dados extraídos do DATASUS4. Nesse país com dimensões continentais, que já carece de oferta de serviços de saúde e de profissionais generalistas e especialistas em áreas mais remotas, será um enorme desafio enfrentar essa crise sanitária. Para se ter uma ideia, o Brasil apresenta uma proporção de médicos por mil habitantes menor que os países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico5, ou seja, 2,1/mil versus 3,4/mil, em média. Soma-se a isso uma distribuição desigual de serviços de saúde, predominando nos centros urbanos das regiões Sul e Sudeste6. Em alguns estados brasileiros do Norte e Nordeste, a razão é inferior a 1. Diante de tantas dificuldades em ambos os sistemas público e privado, a telemedicina se tornou uma ferramenta de grande valia para facilitar o acesso universal à saúde desde a prevenção, passando pela reabilitação das doenças, até a promoção da saúde, indo muito além da assistência específica à pandemia da Covid-19. ASPECTOS GERAIS DA TELEMEDICINA (OPAS) A Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) e a OMS definiram a telemedicina como: A prestação de serviços de saúde remotos na promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação pelos profissionais de saúde que utilizam as tecnologias de informação e comunicação, que lhes permitem trocar dados, com o objetivo de facilitar o acesso e a oportunidade na prestação de serviços à população que tem limitações de fornecimento, e acesso a serviços, ou ambos, em sua área geográfica7. Deve-se diferenciar a telemedicina da telessaúde. Esta abrange uma "ampla gama de tecnologias e serviços para fornecer assistência ao paciente e melhorar o sistema de atendimento à saúde como um todo"8. A telemedicina, por sua vez, "é um subconjunto de telessaúde que se refere apenas à prestação de serviços de saúde e educação à distância através do uso da tecnologia de telecomunicações"9. Nesse sentido, a telemedicina "envolve o uso de comunicações eletrônicas e software para fornecer serviços clínicos a pacientes sem uma visita pessoal", sendo com frequência "usada para visitas de acompanhamento, gerenciamento de condições crônicas, gerenciamento de medicamentos, consulta de especialistas e uma série de outros serviços clínicos que podem ser fornecidos remotamente por meio de conexões seguras de vídeo e áudio10. Ou seja, embora a telemedicina se refira especificamente a serviços clínicos remotos, a telessaúde pode se referir a serviços não clínicos remotos, como treinamento de fornecedores, reuniões administrativas e educação médica continuada, além de serviços clínicos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a telessaúde inclui "vigilância, promoção da saúde e funções de saúde pública"11-12. (Tradução livre) Vale registrar que a telemedicina tem avançado nestes tempos de coronavírus e provocado uma revolução na medicina. Nessa esteira, Mueller observa que: Em questão de dias, uma revolução na telemedicina chegou às portas dos médicos da atenção básica na Europa e nos Estados Unidos. As visitas virtuais, a princípio por uma questão de segurança, são agora uma peça central dos planos dos médicos de família para tratar as doenças cotidianas e os problemas não detectados que eles alertam que podem acabar custando vidas adicionais se as pessoas não receberem atendimento imediato13-14. (Tradução livre) Em razão desses benefícios, em 15 de abril de 2020, foi publicada a Lei nº 13.989, a qual "dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)". A edição da lei supracitada justifica-se pela necessidade, no atual contexto, de regulação de temas específicos para o enfrentamento da crise gerada pela Covid-19. Dessa forma, em atendimento à competência legislativa concorrente em matéria de proteção e defesa da saúde, prevista no art. 24, XII, da CRFB/1988, a União estabeleceu as normas gerais acerca do uso da telemedicina, em conformidade com o art. 24, § 1º, da CRFB. Ressalta-se, contudo, que, "como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o 'equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional' (CF/88, art. 23, parágrafo único)"15. Conforme Maldonado, Marques e Cruz, a telemedicina pode ser definida, em sentido amplo, como "uso das tecnologias de informação e comunicação na saúde, viabilizando a oferta de serviços ligados aos cuidados com a saúde (ampliação da atenção e da cobertura), especialmente nos casos em que a distância é um fator crítico"16, como no caso da exigência de distanciamento social para contenção da Covid-19. O art. 196 da Constituição federal prevê que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Ocorre que acesso e equidade são alguns dos principais problemas com os quais sistemas universais de saúde se deparam17, como no caso do SUS no Brasil. Assim, o acesso universal e igualitário das ações e serviços de saúde representa um objetivo ousado com desafios a serem alcançados. A telemedicina, nesse aspecto, coloca-se como um instrumento relevante no enfrentamento de tais desafios. Algumas considerações merecem ser feitas. Primeiramente, destaca-se que o conceito legal de telemedicina, previsto no art. 3º da lei 13.989/20, pode ser definido como "o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção da saúde", em conformidade com o que o Conselho Federal de Medicina, na Resolução CFM nº 1.643/2002, já havia definido e disciplinado a prestação de serviços através da telemedicina, sendo conceituada como o "exercício da Medicina por meio da utilização de metodologias interativas de comunicação áudio-visual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde" (art. 1º). A telemedicina está autorizada a ser usada tanto pelas redes privadas quanto pelo SUS, conforme se depreende do art. 5º da lei 13.989/20 e do art. 2º da Portaria 467/20 do Ministério da Saúde. Acresça-se que a autorização em lei nacional para o uso da telemedicina restringe-se ao período em que durar a crise ocasionada pelo coronavírus, conforme o art. 1º da lei 13.989/20, lei de natureza, portanto, transitória. No mesmo sentido, o Conselho Federal de Medicina reconheceu a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina em termos ampliados ao da Resolução nº 1.643/2002 do CFM em caráter excepcional e, também, somente enquanto durar o cenário de enfrentamento da pandemia da Covid-19, conforme Ofício CFM nº 1756/2020. O que se observa é que, enquanto anteriormente configurava um instrumento sem previsão em lei nacional e com viés subsidiário ou até excepcional, neste momento de necessário distanciamento social, é regulado como um dos principais meios de exercício da medicina de forma ética. É importante ressaltar que o art. 37 do Código de Ética Médica veda ao médico "prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento". Porém, o parágrafo único do artigo referenciado abre uma exceção, qual seja, que "o atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina". Além dos serviços de telemedicina já anteriormente citados, encontram-se ofertados por empresas privadas a teletriagem e a telecirurgia. Ou seja, por meio de ato administrativo, poderá o CFM regulamentar o atendimento à distância nas suas várias modalidades nos casos em que seja inviabilizado o atendimento presencial. MÉTODOS DE USO A telemedicina avançou consideravelmente no mundo devido às suas potencialidades na ampliação do acesso aos serviços de saúde, na melhoraria da qualidade da atenção e no menor custo18. Nos países desenvolvidos, é utilizada como alternativa ao atendimento presencial, em ambos os sistemas público e privado, enquanto que, em países em desenvolvimento, fundamenta-se no acesso ao sistema de saúde. O Ministério da Saúde, através da Portaria nº 467/20, dispôs sobre as ações de telemedicina, e indicou os métodos que podem ser adotados na interação à distância. Assim, conforme art. 2º, as ações podem contemplar: atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, de monitoramento e de diagnóstico. O Conselho Federal de Medicina, no Ofício CFM nº 1756/2020 - COJUR, detalhou as modalidades de telemedicina admitidas no atual cenário, quais sejam: (1) teleorientação; (2) telemonitoramento; e (3) teleinterconsulta. A teleorientação é composta de orientação e encaminhamento à distância de pacientes em isolamento pelos profissionais de saúde. O telemonitoramento significa o ato para monitoramento à distância no que se refere aos parâmetros de saúde e/ou doença e deve ser realizado sob orientação e supervisão médica. Por fim, a teleinterconsulta somente é aplicada para troca de informações e opiniões entre médicos, com objetivo de auxílio diagnóstico ou terapêutico. O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, na Resolução CREMERJ nº 305/2020, adotou as mesmas modalidades, contudo, com acréscimo da teleconsulta. O art. 2º da referida resolução traz as seguintes definições: Art. 2º A telemedicina é composta pelas seguintes modalidades de atendimento médico: a) Teleorientação - avaliação remota do quadro clínico do paciente, para definição e direcionamento do paciente ao tipo adequado de assistência que necessita; b) Telemonitoramento - ato realizado sob orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença; c) Teleinterconsulta - troca de informações (clínicas, laboratoriais e de imagens) e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico; e d) Teleconsulta - a troca de informações (clínicas, laboratoriais e de imagens) com possibilidade de prescrição e atestado médico. Salienta-se que os médicos poderão, ainda, emitir receitas médicas e atestados através de meios eletrônicos, conforme dispõe o art. 5º da Portaria nº 467/20 do Ministério da Saúde, desde que atendidos os requisitos previstos no art. 6º. Tal possibilidade é reafirmada no âmbito do estado do Rio de Janeiro na Resolução CREMERJ nº 305/2020, conforme os arts. 6º, parágrafo único, e 7º19. REQUISITOS Os diversos diplomas e atos normativos que regulam a telemedicina preveem inúmeros requisitos para o seu exercício. Em caráter preliminar, exige-se que "os serviços prestados através de telemedicina tenham a infraestrutura tecnológica apropriada, pertinentes e obedecer às normas técnicas do CFM pertinentes à guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional", segundo o art. 2º da Resolução CFM nº 1.643/2002, além do devido registro da pessoa jurídica ou pessoa física no respectivo Conselho Regional de Medicina (art. 5º). De acordo com as orientações da OMS20, deve ser incluída, no planejamento da telemedicina, a disponibilidade de infraestrutura mínima de telecomunicação, a capacitação e treinamento dos profissionais envolvidos, e a inclusão na Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos, que é condição para a incorporação no rol de procedimentos de cobertura da ANS. Destaca-se que a preservação da integridade, da segurança e do sigilo das informações também é ressaltada na Portaria nº 467/20 do Ministério da Saúde, em seu art. 2º, parágrafo único, bem como na Resolução nº 305/2020 do CREMERJ, que prevê a garantia do sigilo do médico e do paciente (art. 1º, caput, e §2º). O art. 4º da lei 13.989/20, que estabelece normas gerais acerca do tema, prevê que o médico deve informar ao paciente todas as limitações que são inerentes ao uso da telemedicina, principalmente em razão da impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta. Sobre o tema, o CREMERJ frisa que "a Telemedicina é uma alternativa e caso o paciente ou o médico percebam a necessidade da avaliação presencial, esta deve ser sugerida e/ou oferecida" (art. 8º, §1º, Resolução nº 305/2020). Em adição, o art. 5º da Lei nº 13.989/20 obriga a observância dos padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, com destaque para a "contraprestação financeira pelo serviço prestado, não cabendo ao poder público custear ou pagar por tais atividades quando não for exclusivamente serviço prestado ao Sistema Único de Saúde (SUS)". É interessante, nesse aspecto, mencionar que o CREMERJ vai além e prevê que "caso o paciente não aceite a cobrança dos honorários médicos através da Telemedicina, deve recorrer à consulta presencial ambulatorial ou hospitalar" (art. 8º, §2º, Resolução nº 305/2020). A Portaria nº 467/20 do Ministério da Saúde prevê diversos outros requisitos, entre os quais evidencia-se a necessidade de registro do atendimento em prontuário clínico, nos termos do art. 4º. O CREMERJ, por sua vez, também enfatizou que o médico tem obrigação de registrar o atendimento, seja em prontuário físico, seja eletrônico, e lhe ofereceu a possibilidade de anexar prints de tela e/ou e-mails impressos, além de gravações de áudios (art. 1º, §1º, Resolução nº 305/2020). Por fim, o CREMERJ, na resolução supramencionada, ao regular o instrumento no âmbito do estado do Rio de Janeiro, estabeleceu alguns requisitos específicos a determinadas modalidades de telemedicina. Referidos requisitos estão previstos nos arts. 3º a 5º e, entre estes, avulta-se que, na modalidade teleconsulta, exige-se que o paciente já tenha sido atendido pelo médico, ou seja, veda-se a realização da primeira consulta de forma remota (art. 5º, Resolução nº 305/2020). CONCLUSÃO Conclui-se que o cenário pandêmico ora vivenciado expõe de forma nua e crua uma sociedade de risco, em que o processo de modernização se apresenta como tema e problema21. Tais riscos distribuem-se não como um critério de seleção de classes, mas atingem, igualmente, a ricos e pobres, brancos e negros, empresários e empregados. Assim chegou a Covid-19: como reflexo de um mundo modernamente globalizado, contaminando a todos, sem distinção de posição social, raça ou credo. Contudo, as soluções encontradas para adaptação jurídico-social ao atual contexto e enfrentamento da crise instaurada também se revelam, em grande parte, na modernização, a saber, na tecnologia. Soluções tecnológicas estão sendo pensadas nos mais diversos setores e, na medicina, o principal instrumento é, sem dúvidas, a telemedicina - antes subsidiária, agora essencial. *Manoel Messias Peixinho é professor de Direito Administrativo da PUC-RIO. Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional. Pós-doutor pela Universidade de Université de Paris Ouest-Nanterre la Défense. Presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Presidente do Instituto Carioca de Direito Administrativo. **Marco Antonio de Mattos é doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ex-Secretário de Saúde do Município do Rio de Janeiro. Fellow of the American College of Cardiology (FACC). ***Natalia Costa Polastri Lima é mestranda em Direito da Cidade na UERJ. Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais, Teoria e História do Direito (UERJ). Membro da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDARJ). ****Carolina Altoe Velasco é professora de Direito da Universidade Cândido Mendes. Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio). Professora da Universidade Cândido Mendes. __________ 1 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011. 2 Ibid., p. 24. 3 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 43. 4 Dados publicados pela Organização Mundial de Saúde mostram que essas doenças são responsáveis por cerca de 70% da mortalidade mundial, e, em virtude do envelhecimento e adoecimento da população, essa taxa sofrerá um incremento considerável. Cf. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). World health statistics 2019: monitoring health for the SDGs, sustainable development goals. Geneva: World Health Organization, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.2020. 5 SCHEFFER, M. et al. Demografia médica no Brasil 2018. São Paulo: FMUSP, CFM, CREMESP, 2018, p. 286. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.2020. 6 BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos no Brasil: uma primeira aproximação. Coordenação de geografia, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.2020. 7 SBC. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Telemedicina na Cardiologia - 2019. Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC), vol. 113, nº 5, nov.2019, p. 1013. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.2020. 8 Tradução livre de: "[...] a broad range of technologies and services to provide patient care and improve the healthcare delivery system as a whole". 9 Tradução livre de: "[...] is a subset of telehealth that refers solely to the provision of health care services and education over a distance, through the use of telecommunications technology". 10 Tradução livre de: "[...] involves the use of electronic communications and software to provide clinical services to patients without an in-person visit. Telemedicine technology is frequently used for follow-up visits, management of chronic conditions, medication management, specialist consultation and a host of other clinical services that can be provided remotely via secure video and audio connections". 11 "While telemedicine refers specifically to remote clinical services, telehealth can refer to remote non-clinical services, such as provider training, administrative meetings, and continuing medical education, in addition to clinical services. According to the World Health Organization, telehealth includes, "Surveillance, health promotion and public health functions". 12 CRANFORD, Lauren. Telemedicine vs. telehealth: what's the difference? CHIRON: a medici company, 01.05.2020. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.20. 13 "In a matter of days, a revolution in telemedicine has arrived at the doorsteps of primary care doctors in Europe and the United States. The virtual visits, at first a matter of safety, are now a centerpiece of family doctors' plans to treat the everyday illnesses and undetected problems that they warn could end up costing additional lives if people do not receive prompt care". 14 MUELLER, Benjamin. Telemedicine Arrives in the U.K.: 10 Years of Change in One Week. The New York Times, Londres, 04.04.2020, atualizada em 07.04.2020. Disponível aqui. Acesso em 22.05.2020. 15 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte, a. 60, jan./mar., 2009, p. 40. Disponível aqui. Acesso em: 20.05.2020. 16 MALDONADO, Jose Manuel Santos de Varge; MARQUES, Alexandre Barbosa; CRUZ, Antonio. Telemedicina: desafios à sua difusão no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, 2016, p. S2. 17 Ibidem. 18 BASHSHUR, Rashid L. et al. Sustaining and realizing the promise of telemedicine. Telemed J. E. Health, 05.01.2013, 19 (5): 339-45. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.20. 19 "Parágrafo único [art. 6º]. A entrega de receitas comuns poderá ser feita por meio digital. Art. 7º Os médicos que possuírem certificado digital poderão emitir atestados, exames e receitas controladas assinadas digitalmente, encaminhando o documento diretamente ao paciente, se utilizando das soluções comercialmente disponíveis, baseado nas determinações da ANVISA. Parágrafo único. Os médicos que não possuírem certificação digital poderão realizar a emissão de receitas controladas através do site institucional do CREMERJ, sendo regulado por portaria própria." 20 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Guideline: recommendations on digital interventions for health system strengthening. Geneva, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 22.05.2020 21 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
Texto de autoria de Caitlin Mulholland Introdução A lei 13.709/18, também conhecida por LGPD, promoveu importante avanço legislativo no que diz respeito à promoção, defesa e proteção dos dados pessoais em nosso ordenamento jurídico. Não se pode afirmar, no entanto, que o ordenamento jurídico brasileiro era silente quanto à proteção de dados pessoais. Antes do advento da LGPD, havia inúmeras leis especiais e setoriais que tratavam do tema da proteção de dados pessoais. Nenhuma, contudo, propunha uma sistematização de natureza geral, principiológica e programática, que pudesse ser aplicada a todas as esferas - privada e pública - de forma a adotar uma única normativa federal sobre o tema. Com uma evidente e reconhecida inspiração no Regulamento Geral Europeu de Proteção de Dados, a LGPD busca, em poucas palavras, garantir a um só tempo o reconhecimento de direito fundamental à proteção dos dados pessoais e a regulação do tratamento destes dados pelos mais diversos agentes. São inúmeras as novidades trazidas pela LGPD, mas, dentre os conceitos oferecidos pela lei, um é de extrema relevância, considerando o seu caráter de interesse existencial fundamental, qual seja, o de dado pessoal sensível, em decorrência de seu potencial uso discriminatório pelos agentes de tratamento de dados. Conceito de dados pessoais sensíveis Uma das características evidentes da LGPD é a sua natureza principiológica e conceitual. A lei, em seu artigo 5º, propõe uma série de conceitos necessários para a compreensão dos termos nela usados. Apesar da existência de críticas acerca de previsões conceituais em lei - o que limitaria a função interpretativa pelos operadores do direito -, caminhou bem o legislador ao prever definições que, mais do que limitar, promovem o concreto âmbito de aplicação da lei. Ainda há espaço para interpretações, considerando que a lei traz uma série de conceitos indeterminados e cláusulas gerais que necessitarão de preenchimento por meio do trabalho do intérprete e pela função que será desempenhada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, na condição de órgão de regulação. Em relação ao conceito de dados pessoais sensíveis, estatuiu a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais que dado sensível é "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural" (art. 5º, II, da LGPD). Ressalte-se que esta definição não é, de forma alguma, taxativa ou exaustiva. Trata-se de conceito que enumera de maneira exemplificativa algumas das hipóteses em que serão identificados os dados pessoais que tenham natureza considerada sensível. Isto quer dizer que não somente o conteúdo dos dados previsto neste inciso merecerão a qualificação como dados sensíveis, podendo abarcar outras situações não previstas. Consideradas essas premissas, a doutrina conceitua dados sensíveis como "uma espécie de dados pessoais que compreendem uma tipologia diferente em razão de o seu conteúdo oferecer uma especial vulnerabilidade, discriminação" (Bioni, 2018, p. 84). De acordo com esse conceito, mais importante do que identificar a natureza própria ou conteúdo do dado, é constatar a potencialidade discriminatória no tratamento de dados pessoais. Isto é, a limitação para o tratamento de dados se concretizaria na proibição de seu uso de maneira a gerar uma discriminação, um uso abusivo e não igualitário de dados. Não só a natureza de um dado, estruturalmente considerado, deve ser avaliado para sua determinação como sensível, mas deve-se admitir que certos dados, ainda que não tenham a princípio essa natureza especial, venham a ser considerados como tal, a depender do uso que deles é feito no tratamento de dados. Faz-se necessária também a análise dos princípios aplicáveis ao tratamento de dados pessoais na LGPD para que se possa identificar o sentido que a lei pretende dar ao conceito de dado sensível. O artigo 6º, da LGPD, ao enumerar os princípios que deverão ser atendidos pelos agentes de tratamento de dados, destaca um, de suma importância para o estudo dos dados sensíveis, qual seja, o princípio da não discriminação, que se entende como a "impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios, ilícitos ou abusivos". Esta é a tônica da proteção dos dados sensíveis: permitir uma igualdade substancial no tratamento dos dados, vedando a discriminação e o abuso que dele podem surgir. O consentimento para o tratamento de dados pessoais sensíveis De início, a LGPD adota uma forte fundamentação no consentimento do titular de dados para admitir o tratamento dos dados pessoais. Significa dizer que será permitido o tratamento de dados pessoais em havendo manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada (art. 5º, XII, LGPD). Em complementação, a LGPD estabelece restrições importantes quando diante do tratamento de dados sensíveis, e em relação ao consentimento, estabelece a necessidade de que ele seja realizado de forma específica e destacada, para finalidades singulares também (artigo 11, I, LGPD). Assim, e de acordo com Rodotà, reconhece-se que o consentimento do titular de dados sensíveis deve ser qualificado, na medida em que estamos diante de um "contratante vulnerável", caracterizado justamente pela ausência de liberdade substancial no momento da determinação da vontade, e pela natureza do objeto do tratamento, quais sejam, interesses de natureza personalíssima (Rodotà, 2008, p. 90). Considera-se consentimento livre e esclarecido - para efeitos deste artigo, consentimento informado - a anuência, livre de vícios, do titular de dados, após acesso prévio, completo e detalhado sobre o tratamento dos dados, incluindo sua natureza, objetivos, métodos, duração, justificativa, finalidades, riscos e benefícios, assim como de sua liberdade total para recusar ou interromper o tratamento de dados em qualquer momento, tendo o controlador ou operador a obrigação de informar ao titular dos dados, em linguagem adequada, não técnica, para que ele a compreenda (Konder, 2003, 61). Portanto, em havendo o consentimento informado prévio do titular dos dados pessoais sensíveis, o seu tratamento estará autorizado. O consentimento deve ser também qualificado pela finalidade do tratamento, isto é, a aquiescência para o tratamento de dados deve ser delimitada pelo propósito para o qual os dados foram coletados, sob pena de abusividade ou ilicitude do tratamento a gerar eventual responsabilidade do agente de tratamento. Com base neste princípio da finalidade, Maria Celina Bodin de Moraes, em apresentação à obra de Stefano Rodotà, entende que o tratamento de dados e especialmente a sua coleta "não pode ser tomada como uma "rede jogada ao mar para pescar qualquer peixe". Ao contrário, as razões de coleta, principalmente quando se tratarem de "dados sensíveis", devem ser objetivas e limitadas" (Moraes, 2008, p. 9). A medida dessa objetividade e limitação será determinada justamente pela finalidade legítima do tratamento, que fica condicionada "à comunicação preventiva ao interessado sobre como serão usadas as informações coletadas; e para algumas categorias de dados especialmente sensíveis estabelece que a única finalidade admissível é o interesse da pessoa considerada" (Rodotà, 2008, p. 87). Por específico, deve-se entender que o consentimento é manifestado para um fim concreto. Em sentido contrário, a manifestação de vontade genérica e sem restrições de qualquer natureza autorizando o tratamento de dados é vedada expressamente por lei. Portanto, pode-se compreender que a característica da especificidade irá se concretizar por meio da delimitação do objeto ou da finalidade do tratamento dos dados sensíveis. Por exemplo, deve-se especificar que a coleta por uma seguradora de saúde de dados sobre doenças pré-existentes só estará legitimada se restrita a essas informações - doenças pré-existentes - estando excluídas de tratamento todas as demais informações sobre a situação de saúde do contratante. Em outras palavras, o tratamento de dados fica restrito aqueles que se referem a doenças pré-existentes, devendo o consentimento de forma expressa e específica indicar esse objetivo. De outro lado, o consentimento para o tratamento de dados pessoais sensíveis deve ser destacado, significando que para sua validade a manifestação de vontade, além de se referir a dados determinados - especificidade - deverá também vir em destaque no instrumento de declaração autorizativa para o tratamento de dados. Por fim, o princípio da finalidade do tratamento de dados impõe que somente será legítima a declaração de vontade que estiver ligada a um objetivo específico para seu tratamento. Mais uma vez, declarações genéricas para tratamento de dados pessoais sensíveis serão tidas como desprovidas de validade, na medida em que devem necessariamente se referir a uma concreta finalidade. Essa relação causal é condição necessária para a efetividade do consentimento. Inspiração de nossa LGPD, o GDPR, em seu Artigo 7º, 4, prevê também condições e qualificações aplicáveis ao consentimento. Prevê a norma referida que "ao avaliar se o consentimento é dado livremente, há que verificar com a máxima atenção se, designadamente, a execução de um contrato, inclusive a prestação de um serviço, está subordinada ao consentimento para o tratamento de dados pessoais que não é necessário para a execução desse contrato". O fundamento do consentimento qualificado para o tratamento de dados sensíveis se deve, sobremaneira, à natureza existencial e fundamental dos conteúdos a que se referem. Podemos tomar emprestado o conceito utilizado pelo biodireito para delimitar o que estaria compreendido como consentimento específico e destacado, para finalidades específicas. Essa correlação pode ser feita justamente porque a área do biodireito, por se referir a interesses de natureza existencial, em sua essência, necessita de um cuidado específico por parte do Direito para que viabilize a plena autonomia da pessoa que, em casos de tratamento de dados sensíveis, pode ser considerada concretamente como vulnerável. Contudo, um dos principais questionamentos que se realiza quanto ao consentimento é qual o tratamento adequado que ele deve seguir, considerando que tanto podemos olhar a proteção de dados do ponto de vista de uma proteção de interesses patrimoniais, quanto de interesses existenciais. Segundo Rodotà, contudo, "salvaguardas não deveriam ser baseadas em princípios que consideram o indivíduo somente ou principalmente como dono dos dados a seu respeito. O direito à proteção de dados tem a ver com a proteção da personalidade, não da propriedade. Isto significa que certas categorias de dados, especialmente os de natureza médica e genética, não podem ser utilizados para fins negociais" (Rofotà, 2007, 14). Em posição crítica quanto a uma posição central ou preferencial do consentimento para o tratamento de dados - sejam sensíveis ou não -, Bruno Bioni afirma que é questionável a "efetividade de um quadro normativo focado no poder de escolha dos indivíduos" (Bioni, 2018, p. 114). Ainda que se considere que o consentimento seja o protagonista para a abordagem regulatória da proteção de dados, a sua centralidade abre espaço para hipóteses concretas que independem do consentimento e que se encontram, de acordo com Bioni, numa posição de igualdade umas em relação às outras (Bioni, 2018, p. 115 e 116). Esta afirmação pode ser corroborada, inclusive, pela constatação de que tanto a hipótese de tratamento de dados sensíveis por meio do consentimento do titular, quanto aquelas que se referem às demais situações que independem desta manifestação de autonomia, previstas nos incisos I e II, do artigo 11, da LGPD, reconhece-se na técnica legislativa utilizada uma posição de igualdade entre estas hipóteses, e não a de prevalência do consentimento. No mesmo sentido, Danilo Doneda sustenta a existência de um verdadeiro "mito do consentimento" (Doneda, 2005, p. 121). Tanto assim, que a LGPD permite, por exemplo, que haja tratamento de dados sensíveis sem a necessidade de fornecimento de consentimento do titular de dados, quando for indispensável para o tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos (artigo 11, II, b, LGPD), além de outras hipóteses que se referem, em grande medida, a interesses públicos e a interesses do próprio titular de dados. Neste último caso, o consentimento do titular dos dados sensíveis, seja genérico, seja específico, ficaria dispensado em decorrência de uma ponderação de interesses realizada pela lei, aprioristicamente, que considera mais relevantes e preponderantes os interesses de natureza pública frente aos interesses do titular, ainda que estes tenham qualidade de Direito Fundamental. Como resultado, aos dois elementos caracterizadores do tratamento dos dados sensíveis, quais sejam, o seu conteúdo previsto na lei (art. 5º, II, LGPD) e a possibilidade de tratamento de dados não sensíveis revelador de situações de discriminação abusiva, soma-se a necessidade da qualificação adequada do consentimento do titular de dados, para aquelas hipóteses em que este é exigido. Sem uma adequada manifestação de vontade quanto ao tratamento desses dados de natureza personalíssima, possibilita-se o seu uso para finalidades que têm a potencialidade de violar o direito à igualdade. Conclusão Para Rodotà, é fundamental que haja uma tutela rigorosa dos dados sensíveis, pois esses transformaram-se em conteúdo essencial para a concretização do princípio da igualdade e da não discriminação. Mais ainda, a tutela de dados pessoais sensíveis permite a efetivação, a depender de sua natureza, do direito à saúde (dados genéticos ou sanitários), do direito à liberdade de expressão e de comunicação (dados sobre opiniões pessoais), do direito à liberdade religiosa e de associação (dados sobre convicção religiosa). Assim, para o autor italiano, "(.) a associação entre privacidade e liberdade torna-se cada vez mais forte" (Rodotà, 2008, 153). Considerando que se caminha cada vez mais e com maior intensidade para uma sociedade governada por dados, o ambiente social no qual se concretiza a ideia de privacidade informacional passa a ser qualificado pela proteção dos direitos da pessoa de manter o controle sobre seus dados, por meio de sua autodeterminação informativa (liberdade), visando a não discriminação (igualdade). Portanto, o problema da privacidade hoje é causado pelo conflito consequente da assimetria de poderes existente entre os titulares de dados e aqueles que realizam o tratamento dos dados. Esta assimetria gera um desequilíbrio social que, por sua vez, leva à violação dos princípios da igualdade e da liberdade. Proteger de maneira rigorosa os dados pessoais sensíveis se torna, assim, instrumento para a efetivação dos direitos fundamentais. Referências bibliográficas BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais - A Função e os Limites do Consentimento. Forense, 10/2018. DONEDA, Danilo. Da privacidade à protecao de dados. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2005. KONDER, C. N.. O consentimento no Biodireito: Os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 15, p. 41-71, 2003. MORAES, Maria Celina Bodin de. Apresentação. In: RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar,2008. MULHOLLAND, Caitlin. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais: uma análise à luz da lei geral de proteção de dados (Lei 13.709/18). Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 19, 2018. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje, Rio de Janeiro,Renovar, 2008. *Caitlin Mulholland é professora associada do Departamento de Direito da PUC-Rio e coordenadora do Grupo de Pesquisa DROIT - Direito e Tecnologia. É organizadora da obra "A LGPD e o novo marco normativo no Brasil", publicado pela Arquipélago Editorial. __________ Este texto, com algumas alterações, foi originalmente publicado na Revista da AASP, número 144, novembro de 2019, pp. 47-53.
Texto de autoria de Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida "A morte é um problema dos vivos", afirma Norbert Elias1. Um problema ainda mais tormentoso e desafiador em razão da pandemia do coronavírus, novo agente descoberto em 31 de dezembro de 2019, após casos registrados na província de Wuhan, na China, e que rapidamente se espalhou pelo mundo. O momento atual apresenta um aspecto incomum da morte, em sua atuação cotidiana: o surgimento abrupto de um número assustador de óbitos, em curto prazo, em razão da pandemia provocada pelo denominado novo coronavírus, causador da Covid-19, doença que assola a humanidade desde fins de 2019. Mas, para além da quantidade, a morte decorrente dessa doença se reveste de um aspecto novo, quando se considera a família e amigos dos que falecem: a invisibilidade do morto. Em razão da fácil contaminação por um vírus novo e desconhecido, para o qual não há, ainda, medicação específica ou vacina, a pessoa contaminada deve entrar em quarentena e, em caso de agravamento, ser hospitalizada em regime de isolamento e não raro, encaminhada para o CTI (Centro de Terapia Intensiva), do qual nem todos retornam. Desse modo, o doente ao ser hospitalizado se afasta dos familiares, que não mais podem vê-lo ou tocá-lo2. Como se constata, a interrupção do contato com o doente que vem a falecer, embora indispensável para preservação da saúde de todos, sejam familiares, responsáveis, profissionais da saúde e da sociedade em geral, impede não só o acompanhamento, mais próximo, do processo de morte, como também a realização de cerimônias fúnebres culturalmente adotadas até o sepultamento ou cremação do falecido. Não há, em síntese, a despedida daquele que parte, do modo usual no Brasil. A morte torna-se, portanto, invisível. A morte, em geral, é um tabu em tempo de normalidade civilizatória, um tema evitado, se não rejeitado pela maioria das pessoas. Há quem acredite que a simples menção ao assunto já a atrai. Cada comunidade tem seus rituais, que observam uma série de ritos para permitir que a transição entre o viver e o morrer ocorra da forma correta, de acordo com as tradições e costumes de cada região. Além disso, os ritos funerários amenizam a dor e o sofrimento dos familiares, a partir de um processo de luto individual indispensável para a percepção da trajetória da vida do falecido e de novos rumos a serem tomados por aqueles que perdem seus entes queridos. À morte atribui-se uma eficácia ritual que revela seu poder temível e negativo. José Carlos Rodrigues observa que "o morto, como as coisas insólitas, anormais ou ambíguas, constitui um ser impuro cujo contato representa perigo para o mundo das normas"3. Em tempos de pandemia, como a vivenciada em razão do novo coronavírus, a morte apresenta uma face desconhecida, talvez mais temível, que é o distanciamento daquele que vai "partir", uma lacuna entre o vivo e o morto, que jamais será preenchida. A ausência dos rituais que marcam o início do luto impossibilita a externalização da dor e do sofrimento, segundo os ritos e crenças individuais e coletivos. Os rituais da morte são modificados ou suspensos, alterando, quando não suprimindo, a resposta das pessoas e da sociedade à morte. Apesar da certeza da finitude como um destino comum da humanidade, a experiência da morte é específica e variável de acordo com cada comunidade. Norbert Elias observa que o problema não é a morte, mas o seu conhecimento que atinge os seres humanos4. O medo da morte é amenizado, para muitos, pela "fantasia coletiva de uma vida eterna em outro lugar"5. Medo e dor permeiam a transitoriedade da vida. O medo não é uma novidade para a humanidade, que o conheceu desde o seu princípio. "É por isso que ser humano significa também experimentar o medo"6. A maior das ameaças é o fim, abrupto e terminal, e a morte constitui o arquétipo desse fim. O medo nos lembra diariamente da transitoriedade humana e que estamos, ao mesmo tempo, "atrelados ao tempo e limitados pelo tempo"7. A morte é rechaçada silenciosamente na vida cotidiana, embora esteja "presente em todos os momentos, nas mitologias, no ritual, no inconsciente". A tentativa de dar invisibilidade à morte é derrotada pelo fascínio que ela exerce sobre as pessoas e, por isso, torna-se "ambicionada mercadoria jornalística". Nos veículos de comunicação de massa, como os jornais, e no cinema a morte é incansavelmente reverberada, "vendendo para cada um de nós um sentimento que está reprimido na profundidade de cada alma"8. Em tempos de pandemia, a temível morte é desnudada, torna-se mais próxima. A ameaça do fim torna-se concreta, real e palpável. O poder negativo da morte é potencializado pelo medo das pessoas e pelas notícias sobre o número de óbitos provocados pela Covid-19, atualizado diariamente em todos os veículos de comunicação. Fato é que a exaltação da morte, em tempos de pandemia, é reforçada, enquanto sua "silenciosa dissimulação na vida cotidiana" se dissipa com o aumento do número de mortes provocados pela nova doença. A morte já não é mais tão banida das conversas, obscurecida por metáforas e "escondida das crianças"9. É preciso compreender que a "pessoa' não termina com a morte que atinge seu corpo biológico, quer para efeitos jurídicos, quer para efeitos culturais. A memória da trajetória de vida permanece e repercute na construção da subjetividade dos membros da comunidade. De fato, a "morte não pode ser esquecida com facilidade"10. A pandemia assusta à medida em que os processos de morte e de luto são transformados. Cenários hipotéticos e excepcionais tornam-se comuns e diários. A possibilidade de sepultamento sem o registro do óbito, a cremação para fins de interesse da saúde pública, as restrições aos velórios e enterros, são questões importantes, que se somam à solidão dos pacientes terminais da Covid-19 e à impossibilidade da despedida antes do fim da vida, situação das mais delicadas nessa pandemia. Embora muitas vezes invisível e repugnante, a morte é uma vicissitude inerente à vida e seu processo integra a própria condição humana. Em "As intermitências da Morte", José Saramago demonstra que a imortalidade pode se tornar um problema e o que ambíguo sentimento de repulsa e fascínio diante da morte é inerente ao ser humano. Na situação ficcional criada pelo genial autor, a "falta de falecimentos logo se revela um problema, e não só para as agências funerárias. Os hospitais ficam lotados de pacientes agonizantes impedidos de 'passar desta para melhor'. E os idosos avançam na decrepitude sem esperança de descanso (nem para eles, nem para as suas famílias)"11. A morte em tempos pandêmicos, surgidos de forma abrupta, é inesperada e, acima de tudo, gera o medo profundo de se morrer solitariamente entubado, na frieza de um CTI. O drama da finitude da vida se torna repentinamente exposto, atingindo todos a um só tempo, fato que põe em xeque os modos de viver e agrava os dilemas da existência. A solidão da morte não é, contudo, uma exclusividade dos períodos de pandemia. Como se sabe, na contemporaneidade, o processo da morte foi altamente medicalizado. No passado, era comum as pessoas morrerem em casa rodeadas por seus familiares. Um discurso mais racional e higiênico da morte impõe que os pacientes internados tenham pouco, como regra nenhum, contato com os familiares. Nesse sentido, já se observou que "nunca antes as pessoas morreram tão silenciosas e higienicamente como hoje nessas sociedades, e nunca em condições tão propícias à solidão"12. O que a Covid-19 descortina é mais do que uma situação criada pela racionalidade médica. Trata-se em verdade de um dilema, visto que, no caso, o isolamento forçado de pacientes graves e em risco de vida serve para salvar outras pessoas, ainda que a um custo altíssimo para os moribundos e os familiares. Na verdade, a pandemia torna importante, mais do que nunca, se debater a "desmitologização" da morte, o que requer uma "consciência muito mais clara de que a espécie humana é uma comunidade de mortais e de que as pessoas necessitadas só podem esperar ajuda de outras pessoas"13. Este é o momento de abrir um franco diálogo sobre as mortes, suas condições e consequências, em lugar de tornar o tema silencioso e esquecido. A morte pandêmica deixa de ser uma questão particular, familiar, e se torna coletiva, isto é, um problema social. Todavia, como alerta Norbert Elias, o "problema social da morte é especialmente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos"14. A pandemia da Covid-19 atinge todos, vulnerados ou não, o que exige uma postura solidária e de alteridade. Contudo, na verdade, cada sociedade apresenta uma resposta à morte a partir das contingências históricas, o que descortina os valores centrais de sua estrutura social. Cabe lembrar, por outro lado, que a morte é um processo, assim como o nascimento, "uma sequência de ocorrências, das quais uma é escolhida para caracterizar o termo inicial da produção ou cessação de efeitos jurídicos"15. Compreender a morte como um momento estático para fins jurídicos reduz o fenômeno e impede uma análise de todas as consequências que tal fato produz, o que adquire maior relevância em tempos de pandemia com índices de mortes significativos. Por isso, "não é só uma questão do fim efetivo da vida, do atestado de óbito e do caixão"16. Uma visão da morte como processo descortina a necessidade de proteção dos momentos anteriores ao fim da vida, bem como do respeito à fase de luto dos viventes. Isso permite visualizar que "muitas vezes a partida começa muito antes"17. O Código Civil estabelece a morte como o fim da existência da pessoa natural, conforme o art. 6º. Em outros termos, a morte extingue a personalidade, a qualidade de pessoa reconhecida aos seres humanos que nascem com vida, e que têm, como tal, aptidão para titularizar direitos e contrair obrigações. Não há na Lei Civil requisitos para se caracterizar, de modo geral, a morte18. Compete aos médicos atestar a morte e preencher a Declaração de Óbito, conforme requisitos regulamentares19. De acordo com o art. 9º, I, do Código Civil, c/c art. 77 a 88, da lei 6.015/1973, os óbitos devem ser registrados no Registro Civil de Pessoas Naturais competente. A certidão extraída desse registro é prova bastante da morte, para todos os fins. Além disso, nos termos do citado art. 77, nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico. A severidade dos efeitos da pandemia de Covid-19 no Brasil acabou por mobilizar o legislador diante das situações de exceção, especialmente no que diz respeito aos óbitos. Talvez tenha sido lembrado o cenário mefistofélico de colapso dos serviços funerários, presenciado durante a epidemia de gripe espanhola. No Rio de Janeiro, registros históricos revelam que "pouco a pouco, as ruas da cidade se transformaram em um mar de insepultos, pela falta de coveiros para enterrar os corpos e de caixões onde sepultá-los"20. Em 06 de fevereiro de 2020, portanto, poucos dias depois da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional pela OMS, que data de 30 de janeiro de 2020, foi promulgada a lei 13.979, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, estabelecendo em seu art. 3º, inciso V, a possibilidade das autoridades públicas, no âmbito de suas competências, adotarem como medida a exumação, a necropsia, a cremação e o manejo de cadáveres. Em 28 de abril de 2020 foi assinada, pelo Corregedor Nacional de Justiça e pelo Ministro da Saúde, a Portaria Conjunta n. 2, para estabelecer procedimentos excepcionais para sepultamento de corpos durante a situação de pandemia do Coronavírus, com a utilização da Declaração de Óbito emitida pelas unidades notificadores de óbito, na hipótese de ausência de familiares, de pessoa não identificada, de ausência de pessoas conhecidas do obituado e em razão de exigência de saúde pública. Esta Portaria revogou a Portaria Conjunta nº 1, de mesma origem, datada de 30 março de 2020, que tratava da mesma matéria, com alterações que merecem destaque. O confronto de ambas as Portarias revela, já na ementa da Portaria Conjunta n. 2, um pouco mais de clareza quanto aos casos em que é possível o sepultamento com a utilização da Declaração de Óbito, emitida pelas unidades notificadoras de óbito: (a) ausência de familiares; (b) pessoa não identificada; (c) ausência de pessoas conhecidas do obituado; e (d) exigência de saúde pública. Contudo, de acordo com art. 1º21, da Portaria Conjunta n. 2, na hipótese de ausência de familiares ou pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, está autorizado o encaminhamento dos corpos à coordenação cemiterial do município, para o sepultamento, com a prévia lavratura do registro civil de óbito e quando não for possível, apenas com a declaração de óbito (DO) devidamente preenchida. Vale dizer: o óbito será registrado e o sepultamento poderá ser feito ainda que ausentes familiares ou conhecidos do obituado ou por exigência sanitária. Embora não haja referência à pessoa não identificada no caput do art. 1º, da Portaria em exame, cabe lembrar que é possível o registro do óbito em tal caso, nos termos do art. 81, da lei 6.015/1973, a partir de elementos identificadores, indicados no próprio artigo22 e nos §§ 2º, 3º e 5º, do art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2. Constata-se, portanto, que o sepultamento - apenas com a declaração de óbito devidamente preenchida, conforme art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2, está autorizado "quando não for possível" o prévio registro do óbito, o que possivelmente se dará mormente por razões dos cuidados de biossegurança e manutenção da saúde pública, ou, em hipóteses mais restritas, por falta de condições materiais para sua realização, como por exemplo, falta de pessoal para tomar as providências necessárias ao registro, ausência de meio eletrônico, inexistência ou distanciamento excessivo do Cartório. Observe-se que o prazo, para lavratura dos registros civis de óbito dos casos de que trata a Portaria Conjunta n. 2, foi dilatado e esses podem ser realizados em até sessenta dias após a data do óbito, a teor de seu art. 2º. Possível concluir, diante de tais disposições, que a regra geral, contida na Lei n. 6.015/1973, de exigência do prévio registro do óbito para sepultamento, foi mantida, mas por exceção, nas hipóteses acima ventiladas, poderá ser feito o sepultamento apenas com a declaração de óbito devidamente preenchida. Alteração de grande importância diz respeito à proibição de cremação dos restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares. Os restos mortais em tais casos devem ser sepultados para possibilitar exumação para eventual posterior confirmação de identidade, conforme § 7º23, do art. 1º, da Portaria Conjunta n. 2. Assegurou-se, desse modo, o legítimo direito dos familiares do falecido de providenciarem a inumação. Observa-se, contudo, que o § 2º do art. 77 da lei 6.015/1973 permite a cremação de cadáver no interesse da saúde pública se o atestado de óbito houver sido firmado por dois médicos e um médico legista. O dispositivo não restringiu tal hipótese aos cadáveres identificados ou não. A Portaria Conjunta n. 2 parece ter proibido a cremação de corpos não identificados durante a pandemia da Covid-19 para permitir futura inumação para fins de identificação. Sem dúvida, a Covid-19 atinge, indistintamente, todas as camadas sociais. Certamente, no entanto, a ocorrência de óbito será mais complexa, se não cruel, para as populações mais carentes, quando se considera a notória precariedade do atendimento médico-hospitalar no Brasil, mesmo em condições normais e mesmo os serviços funerários. Os efeitos das mortes ocorridas durante a pandemia afetam, portanto, mais fortemente as famílias mais vulneráveis, especialmente quando se considera a sobreposição das identidades sociais, baseadas na cor, no gênero, nas escolhas de gênero e nas diferenças, muitas vezes abissais, das condições socioeconômicas existentes na sociedade brasileira24. Essas interseccionalidades agravam o impacto sofrido pelas famílias, que têm diminuído, quando não restringido, o acesso ao tratamento necessário para a Covid-19, a hospitais, e - principalmente - a informações sobre seus doentes, que entram nos hospitais e, não raro, nunca mais são vistos, uma vez que, ocorrendo seu falecimento, os familiares, ressalvada a pessoa que houver feito a identificação do corpo, retirarão do hospital uma urna lacrada25. No mundo todo, há esforços em andamento para o adequado gerenciamento e contingenciamento dos serviços funerários para evitar o seu colapso. Ainda assim, algumas cenas são consternadoras mundo afora. Em especial, a situação do Equador é desoladora na América do Sul. Com o colapso dos sistemas de saúde e funerário, cadáveres demoram a ser recolhidos, o que tem levado os familiares a abandonarem os corpos em vias públicas. Uma força-tarefa composta pelo exército e policiais militares foi criada para recolher os corpos abandonados por todo país. Após o acúmulo de corpos de vítimas do coronavírus pelas ruas da cidade equatoriana de Guayaquil, epicentro da pandemia no país, há notícias de corpos sendo queimados nos cemitérios e, segundo autoridades municipais, "não há espaço nem para vivos, nem para mortos" nos hospitais e cemitérios da cidade. Há relatos de familiares que não conseguem localizar os parentes que estavam internados e morreram26. No estado norte-americano de Nova Iorque, em razão do elevadíssimo número de mortes, decidiu-se cavar valas comuns para sepultamento em massa das vítimas da Covid-19 em Hart Island, no distrito do Bronx, um lugar tradicionalmente usado na cidade de Nova Iorque para sepultar aqueles cujas famílias não podem arcar com um funeral ou um jazigo27. No Brasil, a situação inspira cuidados com a curva de crescimento da epidemia e o número já significativo de mortes. No maior cemitério da América Latina - cemitério da Vila Formosa - , localizado na zona leste da cidade de São Paulo, no início de abril uma imagem estampou o The Washington Post com a abertura de dezenas de covas28. Em Manaus, os serviços funerários já apresentam sinais de colapso e cenas desoladoras com enterros noturnos, caixões empilhados e covas em vala comum separados apenas por uma tábua29. A preocupação sobre um colapso funerário já mobilizou até as Forças Armadas, que enviaram ofícios a algumas prefeituras do Estado Rio de Janeiro com a solicitação do número de sepulturas disponíveis para traçar um plano emergencial nas localidades que apontarem déficits30. Constata-se, portanto, que em diversas capitais brasileiras o sistema funerário já apresenta sinais de colapso e um tratamento indigno às famílias e vilipendioso aos cadáveres. Diante desse quadro, de todo indispensável pensar em formas seguras de amenizar a solidão dos pacientes terminais por meios eletrônicos, e, principalmente, permitir, ainda que minimamente, rituais por familiares sempre que possível e com a segurança necessária. O respeito aos mortos e aos seus familiares impõe tais medidas de alento e cuidado com os familiares em período tão difícil de pandemia. Um alerta fundamental é impedir que os moribundos - portanto, ainda vivos - se sintam excluídos do mundo dos viventes31. É preciso ter afeição recíproca até o fim da vida. Pensar em formas de amenizar a dor e a solidão dos pacientes internados por causa da Covid-19. São simbólicas as cenas de despedidas dos familiares por meio de celulares ou outro meio virtual. Se a presença física se torna arriscada em razão da contaminação, meios eletrônicos permitem amenizar a agonia do fim. A necessidade de isolamento não deve silenciar inexoravelmente o fim da vida dessas vítimas, sem que se tente atenuar sua solidão. Emocionante história circulou na internet, envolvendo Dona Maria Silva, de 90 anos. Seu filho foi vítima de complicações pela Covid-19 e ela não se conformou por não ter velado e sepultado o corpo. No entanto, a funerária atendeu seu pedido de mudar o percurso do carro funerário, que levava o caixão até o cemitério, e passou em frente de sua casa, para que a mãe de despedisse do filho pela última vez, mesmo que à distância32. É imperioso, ao menos, respeitar as milhares de perdas, ter empatia com a dor e sofrimento dos familiares e amigos. As mortes causadas por uma pandemia dessa magnitude não são apenas números para fins estatísticos, mas histórias de vida abreviadas e desperdiçadas. A morte não se resume ao fim da personalidade de um indivíduo, uma vez que transborda sua existência e alcança o grupo social em que conviveu. Assim sendo, a "sociedade tem de se apropriar desse processo natural porque, se os indivíduos morrem, ela [a morte], pelo contrário, sobrevive"33. É preciso compreender, mesmo em tempos que escapam à normalidade do cotidiano, que o "que se teme da morte é exatamente o que ela tem de morte e o que nela se cultua é o amor à vida"34. Em tempos de pandemia se apropriar do processo da morte é extremamente difícil, mas necessário para oferecer um tratamento digno e humano aos pacientes terminais da Covid-19, além de conforto e respeito pelo luto dos familiares e demais entes queridos. A neutralidade emocional, o desprezo e especialmente a repugnância diante dos mortos pela Covid-19 ou dos pacientes em estágio terminal evidenciam, de forma contundente, não como a sociedade reage e responde aos mortos, mas como trata os vivos. *Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil e Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Especialista em Ética e Bioética pelo IFF/FIOCRUZ. **Vitor Almeida é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Professor do Instituto de Direito da PUC- Rio. __________ 1 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 10. 2 Em caso de óbito, as regras sanitárias do Ministério da Saúde sobre "Manejo dos corpos no contexto do novo coronavírus (COVID-19)" determinam a embalagem do corpo em três camadas e sua acomodação em urna a ser lacrada antes da entrega aos familiares ou responsáveis. Após lacrada, a urna não deverá ser aberta, em razão da possibilidade de contaminação. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Manejo de corpos no contexto do novo coronavírus - COVID-19. Versão 1, Brasília, 2020. Disponível aqui. Acesso em 15 maio de 2020. 3 RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 7. ed., rev., Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006, p. 52. 4 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 11. 5 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 44. 6 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 143-144. (grifo no original) 7 Id. Ibid., p. 144. (grifo no original) 8 RODRIGUES, José Carlos. Op. cit., p. 52. 9 Id. Ibid., p. 52. 10 Id. Ibid., p. 54. 11 SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo Companhia das Letras, 2005. Trecho retirado da orelha do livro. 12 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 98. 13 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 98. 14 Id. Ibid., p. 9. 15 BARBOZA, Heloisa Helena. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena (orgs.). Vida, Morte e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 33. 16 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 8. 17 Id. Ibid., p. 8. 18 A lei 9.434/1997 (Lei de Transplantes) estabelece o critério da morte encefálica para fins de transplante post mortem em seu art. 3º. 19 Resolução CFM nº 1.779/2005 regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito. Vide, ainda, arts. 83 e 84 do Código de Ética Médica (Res. CFM n. 2.217/2018). 20 GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. In: História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 12, n. 1, p. 101-42, jan./abr. 2005, p. 104. 21 "Art. 1º Autorizar as unidades notificadoras de óbito, na hipótese de ausência de familiares ou pessoas conhecidas do obituado ou em razão de exigência de saúde pública, a encaminhar à coordenação cemiterial do município, para o sepultamento, os corpos com a prévia lavratura do registro civil de óbito e quando não for possível, apenas com a declaração de óbito (DO) devidamente preenchida". 22 "Art. 81. Sendo o finado desconhecido, o assento deverá conter declaração de estatura ou medida, se for possível, cor, sinais aparentes, idade presumida, vestuário e qualquer outra indicação que possa auxiliar de futuro o seu reconhecimento; e, no caso de ter sido encontrado morto, serão mencionados esta circunstância e o lugar em que se achava e o da necropsia, se tiver havido". 23 "Art. 1º. [...] §7º Os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não tiverem seus corpos reclamados por familiares, não deverão ser levados a cremação, mas sepultados, o que possibilitará exumação para eventual posterior confirmação de identidade". 24 A questão do agravamento severo da vulnerabilidade em razão da pandemia, é bem esclarecida por Boaventura de Sousa Santos, em sua obra "A cruel pedagogia do vírus", em que saliente que "qualquer quarentena é discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população". Por isso, alguns grupos "padecem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela". SANTOS, Boaventura de Souza. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020, n. p. Disponível aqui. Acesso em 05 maio 2020. 25 O Ministério da Saúde, em seu Manual Para Manejo dos Corpos - COVID-19, preocupou-se com o apoio à família, estabelecendo ser "necessário fornecer explicações adequadas aos familiares/responsáveis sobre os cuidados com o corpo do ente falecido", mas recomendando, de modo destacado, que "a comunicação do óbito seja realizada aos familiares, amigos e responsáveis, preferencialmente, por equipes da atenção psicossocial e/ou assistência social", o que "inclui o auxílio para a comunicação sobre os procedimentos referentes à despedida do ente". BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Manejo de corpos no contexto do novo coronavírus - COVID-19. Versão 1, Brasília, 2020, p. 5. Disponível aqui. Acesso em 15 maio de 2020. 26 Disponível aqui. Acesso em 30 abr. 2020. 27 Disponível aqui. Acesso em 16 maio 2020. 28 Disponível aqui. Acesso em 10 maio 2020. 29 Disponível aqui. Acesso em 17 maio de 2020. 30 Disponível aqui. Acesso em 05 maio de 2020. 31 ELIAS, Norbert. Op. cit., p. 76. 32 Disponível em: . Acesso em 18 abr. 2020. 33 RODRIGUES, José Carlos. Op. cit., p. 61. 34 Id. Ibid., p. 62.
Texto de autoria de Paula Moura Francesconi e Vitor Almeida Em tempos de vertiginosa escalada das estatísticas de contaminados e mortos pela Covid-19, o princípio da solidariedade social, de envergadura constitucional, assume a desafiadora função de reforçar a proteção dos vulneráveis, em especial, das pessoas do chamado grupo de risco, bem como de afastar ações discriminatórias das medidas sanitárias em prejuízo de determinados grupos ou pessoas sob o pretexto de abstrata prevalência das normas de saúde pública em prol da coletividade. Nesse sentido, indispensável refletir sobre o julgamento da ADI 5.543 no Supremo Tribunal Federal que declarou inconstitucionais as normas regulamentares do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que proibiam a doação de sangue por homens homossexuais que tivessem praticado relação sexual com mais de um parceiro nos últimos 12 (doze) meses. Fundamental percorrer os fundamentos e efeitos da decisão em momento tão singular e suas repercussões sobre as medidas sanitárias discriminatórias que emergem em tempos de pandemia da Covid-19. O delicado momento vivenciado evidencia a escassez de leitos de UTI e enfermarias, de respiradores e de profissionais da saúde e descortina um sistema de saúde já precarizado em nosso país, e demonstra sinais de estrangulamento em diversas capitais. A necessidade de distanciamento social, de isolamento domiciliar e de condutas de higiene são as principais medidas de combate ao novo coronavírus, na tentativa de suavizar o crescimento dos números de infectados - o chamado "achatamento da curva". No entanto, a significativa fração de casos não documentados, mas infecciosos, é uma característica epidemiológica crítica que exige uma postura cívica fundamental de evitar a circulação social e, desse modo, proteger os mais vulneráveis à crise respiratória emergente e à letalidade, como um dever de solidariedade social. O momento acentua as desigualdades sociais e, por conseguinte, necessidades vitais urgentes, tais como alimentação e produtos de higienização, são demandas prioritárias num país com altas taxas de desemprego, trabalho informal e comércio fechado por medidas de enfrentamento ao coronavírus. Diante de tal situação, grande número de hemocentros pelo país registra estoques baixos devido à pandemia de Covid-19, o que tem mobilizado campanhas de incentivo à doação de sangue1, uma vez que diversos pacientes ainda precisam de transfusão de sangue para salvar suas vidas. A solidariedade não se restringe às medidas em prol do combate ao novo coronavírus, mas igualmente permanece em relação aos demais pacientes internados, notadamente aos que necessitam da transfusão para sua sobrevivência. No entanto, ainda vigorava no Brasil norma regulamentar que vedava a doação de sangue por homens gays ou que tiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses. Mesmo em período de pandemia, o Ministério da Saúde informou que manteria as restrições à doação de sangue por gays, apesar dos baixos estoques nos hemocentros de diversas capitais brasileiras2. Segundo dados da ONG All Out, estima-se que "até 19 milhões de litros de sangue são desperdiçados todo ano com a restrição a homens gays e bissexuais no Brasil. O número leva em consideração as quatro doações permitidas por ano com 10,5 milhões de homens bis e gays, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)"3. "Não quero mais mentir", disse Paulo Damasceno, 32 anos, ao se recordar de ter mentido para conseguir doar sangue para salvar a vida do pai de uma amiga em 2017. O gestor comercial estava dentro dos requisitos exigidos pelo Ministério da Saúde, pois não mantinha relações sexuais há um ano após término do seu relacionamento. No entanto, com medo de ser impedido de doar, o que já havia acontecido cinco anos antes, resolveu não arriscar e não declarou sua homossexualidade. "Não quero ter que mentir de novo durante a pandemia. Isso seria negar a mim mesmo. Ou aceitam meu sangue como eu sou, ou eu não doo"4. O desejo de Paulo revela que o estigma e a discriminação marcam profundamente a biografia de uma pessoa, mesmo quando realiza atos altruístas e generosos. Nem sempre a solidariedade e a alteridade são recíprocas. Em meio à pandemia do novo coronavírus, deu-se início a pesquisas clínicas no Brasil5 e no Mundo6 com plasma sanguíneo de pessoas que já contraíram a Covid-19. A pesquisa é baseada na transferência passiva de imunidade para quem está com a doença, a fim de alcançar a cura7. No entanto, homens gays que contraíram o coronavírus, mas que foram curados, já tentaram doar sangue como voluntários para pesquisa feita por meio de transfusão de plasma de indivíduos convalescentes em pacientes com doença aguda grave e foram impedidos em razão de sua orientação sexual. Esse foi o depoimento do fotógrafo André Ligeiro, 32 anos, que tentou doar seu plasma para colaborar com a pesquisa clínica que está sendo realizada no Hospital Sírio Libanês, mas que, após preencher todo o cadastro, quando indagaram acerca da sua orientação sexual e ter respondido que era casado há três anos com um homem foi banido da lista. A informação que recebeu foi de que faz parte da população em que se verifica a maior incidência do vírus HIV, causador da AIDS, e que existe a Portaria GM/MS nº 5/2017, que veda a participação de homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos 12 meses que precedem a doação do processo e que essa portaria está endossada pela resolução da Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA)8. Nesse cenário em que o preconceito persiste mesmo em tempos nos quais a solidariedade deveria ser priorizada, o Supremo Tribunal Federal concluiu, em 11 de maio de 2020, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.543, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB em face do art. 64, inciso IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e art. 25, inciso XXX, alínea "d", da Resolução RDC nº 34/2014 da Diretoria ANVISA, que proibiam a doação de sangue por homens que tenham tido relações sexuais com outros homens (HSG) (e/ou suas parceiras sexuais) nos últimos 12 (doze) meses. O Plenário da Corte declarou inconstitucionais, por maioria de votos, essas normas, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Alexandre de Moraes. O voto do Ministro Relator, Luiz Edson Fachin, foi proferido em 19 de outubro de 2017, sob o fundamento, em síntese, de que o estabelecimento de um grupo de risco com base em sua orientação sexual não é justificável à luz da Constituição, uma vez que os critérios para seleção de doadores de sangue devem favorecer a apuração de condutas de risco9. O histórico julgamento em momento de pandemia adquire significativo relevo no contexto de proliferação de medidas sanitárias em que a discriminação em face de grupos vulneráveis se torna ainda mais grave. Um dos legados deixados pela decisão do STF em declarar inconstitucionais normas regulamentares que excluem pessoas de doarem sangue exclusivamente em razão da orientação sexual reside na importância em afirmar que a opressão e a exclusão imposta por medidas sanitárias em face de minorias somente se justifica se efetivamente comprovado danos à saúde de outrem ou à coletividade e desde que não haja alternativas às restrições de direitos fundamentais. Indispensável afirmar que a decisão proferida em tempos pandêmicos não pode ser compreendida de forma utilitarista por causa dos baixos estoques de sangues nos hemocentros brasileiros10. Sob lentes constitucionais, o direito de dispor do próprio corpo por meio da doação de sangue somente encontra limites em princípios de igual índole constitucional, como a proteção da saúde de todos. É uma questão de afirmação de direitos humanos fundamentais e não deve ser enfeixado sob ótica consequencialista de custos e benefícios. Nessa senda, em síntese, sustentou-se na exordial da ADI n. 5.543 que a restrição existente à doação de sangue em relação aos homens que têm relação com outros homens é inconstitucional por violar os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); o direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput, CF); o objetivo fundamental de promover o bem de todos sem discriminação (art. 3º, IV, CF); e o princípio da proporcionalidade, considerando discriminatório o critério baseado em grupo de risco, na orientação sexual, pois acaba por restringir o exercício da cidadania. Na verdade, o que deve ser considerado para restrição à doação de sangue é o comportamento de risco, a prática de relações sexuais desprotegidas e não a inclusão em "grupos de riscos", o que pode atingir tanto os heterossexuais quanto os homossexuais. O caso teve sua repercussão geral reconhecida pelo Ministro Luiz Edson Fachin (art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/1999) com a participação de diversas organizações e institutos como amicus curiae e ganhou notoriedade em vários meios de comunicação, e, como visto, a decisão sobre a questão ganhou relevo com a diminuição dos estoques nos hemocentros em razão da pandemia da Covid-19 e a manutenção das restrições aos homens homossexuais. Isso demonstra sua importância para a sociedade e a necessidade de repensar a maneira como o sistema de doação de sangue estava sendo conduzido no Brasil, não só por colocar em xeque os direitos fundamentais dos homens homossexuais, como pela escassez de sangue nos bancos de sangue. A restrição à doação de sangue fundada em categorias de pessoas acaba por acirrar o estigma, o preconceito e a discriminação, que implicam na falta de um exame crítico, na marca infamante associada à indignidade, à segregação e à exclusão, além de refletir em toda a população com a diminuição de sangue nos bancos de sangue. Indispensável, nessa linha, repensar o sistema de doação de sangue no Brasil a partir dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social. No Brasil, a coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, nos termos do art. 199, § 4º, da Constituição Federal, são regulados, atualmente, pela lei 10.205/2001, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados, que compõe o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa lei é regulamentada pelo decreto 3.990/2001, além de outros atos normativos expedidos pelo Ministério da Saúde e órgãos de vigilância sanitária, como a ANVISA (art. 26 da lei 10.205/2001). Atualmente, a lei 7.649/1988, regulamentada pelo decreto 95.721/1998, prevê a obrigatoriedade do cadastramento dos doadores de sangue, bem como a realização de exames laboratoriais no sangue coletado, a fim de prevenir a propagação de doenças. A doação é um ato voluntário, anônimo e altruísta, sendo vedada a remuneração do doador, pois esta é proibida pela Constituição Federal (art. 199, § 4°) e outros atos normativos infraconstitucionais e regulamentares11. A Portaria 158/2016, do Ministério da Saúde, que regula os procedimentos hemoterápicos técnicos, e a Resolução RDC nº 34/2014, da Diretoria da ANVISA, que dispõe sobre as Boas Práticas no Ciclo do Sangue, determinam que o serviço de hemoterapia realize a avaliação dos parâmetros para seleção de doadores visando à proteção do doador e receptor e a disponibilidade com segurança e qualidade dos produtos biológicos originados do sangue para uso terapêutico (art. 6º, lei 9.782/99). Esses regulamentos utilizam no processo de coleta de sangue dois métodos de controle para evitar a contaminação, chamado de double check, que consiste na triagem clínico-epidemiológica dos candidatos, realizada por profissionais de saúde e laboratorial das amostras coletadas, havendo responsabilidade objetiva pelos serviços de hemoterapia por danos eventualmente causados. Os candidatos que apresentarem alguma situação de risco elencada nos próprios regulamentos (arts. 55 e 64 da Portaria MS nº 158/2016, e alíneas do art. 25, inciso XXX, da RDC 34/2014, ANVISA) são afastados da doação por inaptidão, a fim de garantir maior proteção dos receptores (art. 2°, VI, Decreto n° 3.990/2001). Caso haja a coleta do sangue, eis que atendidos os requisitos de seleção, haverá, antes, de ocorrer a disponibilização do material para transfusão, o exame do sangue coletado feito por laboratórios e que tem alta sensibilidade para detecção de infecções transmissíveis pelo sangue (arts. 3º e 4º da lei 7.649/1998, arts. 118 a 142 da Portaria MS 158/2016, art. 70 a 107, RDC 34/2014, ANVISA). O problema que se coloca para afastar algumas pessoas da doação de sangue, entre elas os homens homossexuais, é o período em que o organismo está infectado, mas não produz ainda anticorpos suficientes para serem detectados nos testes de triagem sorológica, o que é denominado de "janela imunológica". Os progressos científicos têm possibilitado maior conhecimento de vírus transmissíveis e, consequentemente, o desenvolvimento de técnicas preventivas e de meios de tratamentos mais eficazes, reduzindo índices de contágios e produzindo meios de detecção do vírus. Atualmente, já há exames mais eficazes para identificar as chamadas doenças sexualmente transmissíveis (DST's)12, que acarretam a diminuição da "janela imunológica", que já foi de 90 dias e hoje está em torno de 15 dias, que é o caso do teste de ácido nucleico (NAT). Indispensável averiguar a compatibilidade da ratio da norma que estabeleceu, entre várias situações, a proibição temporária dos homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais de doarem sangue, à luz da legalidade constitucional. Cabe frisar, por mais contraditório que seja, que as disposições gerais da Portaria MS nº 158/2016 (art. 2º, § 3º) proíbe qualquer tipo de preconceito, discriminação por orientação sexual, identidade de gênero quando da realização da triagem clínica dos candidatos à doação. Dentro desse contexto, o tratamento desigual dos homens homossexuais advém de um contexto histórico-cultural ligado à descoberta da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA - popularmente conhecida pela sigla em inglês AIDS) e o surgimento dos chamados "grupos de riscos". No início da década de 1980, os primeiros casos clínicos identificados de AIDS foram em homossexuais masculinos e, com o passar do tempo, em outros grupos populacionais, tais como: (i) hemofílicos; (ii) pessoas heterossexuais de naturalidade haitiana; (iii) usuários de heroína; e (iv) profissionais do sexo - o que originou à referência à doença dos H (H disease). O enquadramento de uma situação de risco na qual o doador pode se inserir não deve dizer respeito à sua orientação sexual, mas sim ao seu comportamento quando se relaciona sexualmente com outras pessoas sem a devida proteção. A preocupação das autoridades sanitárias deve ser em averiguar a integridade sanguínea e não a mera presunção preconceituosa de que um homossexual ou bissexual tem mais probabilidade de ter AIDS simplesmente em virtude de sua identidade sexual. As normas sanitárias, ao estabelecerem essa exclusão, se fundamentaram, além dos fatores históricos, em dados estatísticos que enquadram os homens homossexuais no grupo de risco, e nos princípios da precaução, da beneficência, da não maleficência, pelo que afastá-los acabaria por assegurar maior proteção aos receptores de sangue. Contudo, tal restrição estava calcada em fundamento estigmatizante e discriminatório em relação à orientação sexual, e não em critérios científicos razoáveis, o que de todo deve ser evitado por violar não só princípios de ordem constitucional, mas também os princípios bioéticos13 erroneamente interpretado pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA. Do ponto de vista da principiologia bioética, a proibição da doação sanguínea por pessoas homossexuais fere o princípio da autonomia, já que restringe a liberdade de doar, do exercício da autodeterminação do seu próprio corpo; o princípio da precaução, eis que este não implica necessariamente em proibir certas atividades ou condutas, mas em criar medidas acautelatórias que evitem a probabilidade de ocorrência de danos. E ao sopesar os riscos e benefícios pelos princípios da beneficência e não maleficência deve prevalecer a necessidade populacional na coleta e armazenamento de sangue, até porque a exclusão dos homossexuais cria uma ilusão de prevenção, devendo aplicar outros princípios bioéticos como o da justiça, que estabelece o dever ético de tratar as pessoas igualmente e o da proteção das minorias. O mais adequado, portanto, é não generalizar os potenciais doadores com base em sua identidade sexual ou de gênero, afastando-se da concepção de grupo de riscos para comportamentos de risco, haja vista que o que causa infecção do vírus HIV é a falta de métodos de prevenção, como o preservativo - medida mais eficaz e segura, bem como a adoção de outras medidas como a Profilaxia Pós Exposição (PEP) e a Profilaxia Pré Exposição (PrEP), utilizadas em grupos ou situações específicas, que podem ser combinadas com outros métodos. Desse modo, enfatiza-se que o comportamento de risco independe da orientação sexual14 e, portanto, cuida-se de critério não discriminatório. Logo, é a prática sexual individual desprotegida que determina a possibilidade de contrair o vírus e não sua orientação sexual, ligada à identidade pessoal do indivíduo, emanação direta de sua dignidade humana. Tal direito, de natureza personalíssima, promove a inclusão social e permite o respeito à diferença. Considerar o contrário é acentuar a estigmatização, o preconceito, e o desrespeito à liberdade individual e à vida privada. Os dados estatísticos não podem servir como critério exclusivo de regulação de direitos fundamentais, mas somente como fator de direcionamento de recursos públicos na implementação e consecução de políticas públicas. Não é proporcional restringir o exercício de direitos humanos fundamentais com base em dados matemáticos. Nos termos do voto do relator Ministro Luiz Edson Fachin15, "não pode o Direito incorrer em uma interpretação utilitarista, recaindo em um cálculo de custo e benefício que diferencia o Direito para as esferas da Política e da Economia". Desse modo, sentencia que "não cabe, pois, valer-se da violação de direitos fundamentais de grupos minoritários para maximizar os interesses de uma maioria, valendo-se, para tanto, de preconceito e discriminação". O Direito não deve se curvar às normalidades estatísticas afetivo-comportamentais, que excluem os homossexuais dos direitos fundamentais, relegando-os a um regime particular e excludente. Por isso, é fundamental, diante do espectro da legalidade constitucional, sopesar os princípios constitucionais e bioéticos que devem nortear o processo de seleção dos candidatos de doação de sangue, quais sejam, a dignidade da pessoa humana, como vetor central, a igualdade, a liberdade, a autonomia, a justiça, a solidariedade social, a precaução, a prevenção, a beneficência, a não maleficência e a inalienabilidade do corpo humano. Esses princípios devem guiar o processo de doação de sangue e orientar não só os que elaboram as normas reguladoras, mas todos os agentes envolvidos no processo de triagem e coleta de sangue. A doação de sangue consiste em ato altruísta, calcado na autonomia privada existencial, que confere à pessoa o direito de dispor de seu corpo em benefício de outrem. Mesmo que o ato possa afetar sua integridade física, não causa danos à saúde, observadas as orientações médicas, e tem amparo, portanto, no disposto no art. 13 do Código Civil. A diminuição pela retirada do sangue não é permanente, pois ele se renova e não afetaria as potencialidades físicas e psíquicas do doador. A doação de sangue deriva do imperativo de solidariedade, de forma a permitir que o corpo somente seja objeto de trocas fraternas. O ato observa o princípio constitucional da solidariedade social, o agir em prol do próximo imbuído de compaixão, sem qualquer benefício econômico, sendo, portanto, uma conduta exclusivamente altruísta. O princípio da solidariedade legitima, portanto, a doação de sangue, que permite o benefício de toda a coletividade. A liberdade de doar sangue, no entanto, sofreria restrição externa por parte do Poder Público, pois as normas sanitárias impediam, mesmo que de forma temporária, os homens que têm relações sexuais com outros homens de fazê-lo. Isso interferia no exercício dos direitos da personalidade, tanto no direito de livre disposição do próprio corpo quanto na liberdade de orientação sexual, o que violava sua identidade pessoal e impactava na escolha individual por meio de um ato discriminatório, um tratamento não igualitário, injustificado, enfim, inconstitucional. Nesta trajetória, o guardião da Constituição exerceu sua importante missão de efetivar o direito à igualdade e a não discriminação em razão da sexualidade, bem como o reconhecimento dos direitos ligados à vida afetiva e familiar, independentemente da orientação sexual, especialmente em um momento tão crítico vivenciado por causa da pandemia do novo coronavírus. Em definitivo, tais normas foram consideradas inconstitucionais justamente pela grave violação aos direitos fundamentais dos homossexuais com a restrição à doação de sangue por motivos discriminatórios e de estigma, em clara ofensa aos preceitos constitucionais. É indispensável que o ordenamento jurídico promova a igualdade substancial e a vedação à discriminação em razão do exercício da sexualidade humana, sobretudo, a heterodiscordante, eis que normas que desrespeitem a identidade de pessoas potenciais doadores de sangue com base na orientação sexual e não nas condutas sexuais de risco são atentatórias à dignidade e à liberdade individual. Tais normas revelavam um tratamento desigual e contrário à diversidade, o que destoa das premissas de um Estado laico e plural. Em ultrapassada hora, mas em momento simbólico, é tempo de afirmar, de uma vez por todas, que a "orientação sexual não contamina ninguém, condutas riscosas sim"16 e que a discriminação em face de determinados grupos sociais em razão da maior incidência de infecções deve ser de todo combatida pelo Direito, sobretudo quando restringe a autonomia existencial. A História oportunizou que a decisão da Corte Constitucional em declarar inconstitucional a restrição à doação de sangue por homens homossexuais fosse proferida em tempos desafiadores do novo coronavírus. Embora o reconhecimento do direito fundamental de disposição do próprio corpo para fins altruístas venha tardiamente, não se pode menosprezar a importância do momento da decisão e nem compreender que ela se deu em razão da necessidade de aumentar os estoques dos bancos de sangue em momentos de pandemia. Na legalidade constitucional, o princípio da não discriminação não tolera a violação de direitos fundamentais ligados à identidade existencial, sob pena de afronta à dignidade. Em tempos de escassez em razão da crise sanitária, não se deve desperdiçar os atos de solidariedade em nome de preconceitos arraigado. Mais do que nunca, em períodos de excepcionalidade, a coexistência fraternal nos desafia a proteger o direito do outro, especialmente dos vulneráveis, sobretudo quando em benefício de toda a coletividade. *Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira é doutora e mestre em Direito Civil pela UUERJ. Professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. **Vitor Almeida é doutor e mestre em Direito Civil UERJ. Professor do Instituto de Direito da PUC-Rio. __________ 1 O Instituto Nacional de Câncer (INCA) registra que, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, os pacientes continuam necessitando de transfusões de sangue e de plaquetas e esclarece que doar sangue não aumenta o risco de contaminação pelo coronavírus. Como medida para evitar a aglomeração, a doação pode ser agendada por meio de telefone. Recomenda-se a lavagem das mãos ao entrar e sair do Serviço de Hemoterapia, e são disponibilizados álcool em gel, água e sabão no local. Os locais de triagem, coleta e lanche são devidamente e constantemente limpos e higienizados. Além disso, as recomendações de manter a distância mínima de um metro para outras pessoas e evitar apertos de mão e abraços são imprescindíveis. Disponível aqui. Acesso em: 02 de maio 2020. Com o objetivo de aumentar os estoques dos bancos de sangue, noticia-se inclusive a coleta de sangue em condomínios edilícios. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2020. 2 Disponível aqui. Acesso em: 28 abr. 2020. 3 Disponível aqui. Acesso em 30 abr. 2020. A referida ONG já lançou dois abaixo assinados com os lemas: "Sangue limpo é sangue sem preconceito" e "Covid-19: Sou LGBT+ e meu sangue também pode ajudar". Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2020. 4 Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2020. 5 Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2020. 6 Disponível aqui. Acesso em: 20 maio 2020. 7 "Nesse contexto, o plasma ou o soro convalescente humano apresenta o potencial de ser uma opção para o tratamento da Covid-19, já que os ancorpos (imunoglobulinas) presentes no plasma convalescente são proteínas que poderiam ajudar a combater a infecção. O plasma convalescente é a parte líquida do sangue coletada de pacientes que se recuperaram de uma infecção e sua administração passiva é um meio que pode fornecer imunidade imediata a pessoas suscetíveis. No caso da Covid-19 trata-se de um produto que pode estar rapidamente acessível, à medida que exista um número suficiente de pessoas que se recuperaram da doença e que possam doar o plasma contendo imunoglobulinas que reajam contra o vírus SARS-CoV-22". NOTA TÉCNICA Nº 19/2020/SEI/GSTCO/DIRE1/ANVISA. Aspectos regulatórios do uso de plasma de doador convalescente para tratamento da Covid-19. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2020 8 Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2020. 9 As reflexões trazidas à baile já foram, em parte, objeto de pesquisa dos autores, cujo resultado seja consentido remeter a PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. Doação de sangue, orientação sexual e discriminação: uma análise da ação direta de inconstitucionalidade n. 5.543/DF. In: MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo (orgs.). Direito Civil, Constituição e unidade do sistema: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional - V Congresso do IBDCivil, Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 63-75. 10 Na Hungria, diante da crise do novo coronavírus foi proibida qualquer discriminação baseada no gênero ou orientação sexual dos doares de sangue. Já nos Estados Unidos a regra foi apenas flexibilizada. Disponível aqui. Acesso em 16 maio 2020. 11 Art. 14, III, da Lei n° 10.205/2011; art. 2°, III, do decreto 3.990/2001; art. 30, da Portaria MS 158/2016; e, art. 20, Resolução RDC 34/2014, ANVISA. 12 O Ministério da Saúde recomenda, atualmente, a adoção da terminologia Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) em substituição à expressão Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), porque destaca a possibilidade de uma pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem sinais e sintomas. Disponível aqui. Acesso em 03 maio 2020. 13 Cf. SOUZA JÚNIOR , Edison Vitório de; CRUZ, Diego Pires; CARICCHIO, Uanderson Silva Pirôpo et all. Proibição de doação sanguínea por pessoas homoafetivas: estudo bioético. In: Revista bioética (Impr.), v. 28, n. 1, 2020, p. 89-97. 14 Cabe mencionar que tal restrição também atinge mulheres transexuais e travestis, eis que são igualmente impedidas de doar sangue pela mesma regra destinada aos homens gays cisgênero. Em desrespeito à identidade de gênero, o Ministério da Saúde e a ANVISA encaram as mulheres transexuais e as travestis como homens que fazem sexo com homens, o que é confirmado pelo fato de constar no questionário de doação a pergunta se manteve relações sexuais com travestis nos últimos 12 meses. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) denuncia o apagamento dessa questão, na medida em que na mídia é noticiado somente o fato de homens gays sofrerem tal restrição. Disponível aqui. Acesso em: 03 maio 2020. 15 Disponível aqui. Acesso em: 31 maio 2018. 16 Disponível em: Acesso em: 31 maio 2018.
Texto de autoria de Ana Carolina Brochado Teixeira e Filipe Medon Quem nunca deu o celular para o filho para conseguir trabalhar? Que atire a primeira pedra o pai ou a mãe que não fez isso pelo menos uma vez durante a quarentena, num ato de desespero (ou de comodidade) com as multitarefas que acabaram surgindo, de uma hora pra outra, na quarentena. No entanto, entregar um celular nas mãos de uma criança é um gesto com inúmeras implicações para a privacidade, segurança e proteção do próprio filho. Em tempos de coleta massiva de dados pessoais, como exercer uma parentalidade responsável? Crianças conectadas na rede não são propriamente uma novidade da pandemia de Covid-191. Dados de pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil divulgada em 2017 apontam uma tendência no crescimento de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos na rede, sobretudo por meio de smartphones. Apesar do aumento, apenas 49% dos entrevistados relataram que os pais possuem "muito conhecimento" sobre suas atividades online2. Ou seja, a maior parte dos genitores ou responsáveis não acompanha suficientemente a interação dos menores com a Internet. Fato é que, se a quarentena não criou esse cenário, tem contribuído para intensificá-lo, pelas mais variadas razões. Com a suspensão das atividades escolares presenciais e de boa parte dos trabalhos, pais e filhos se viram obrigados a conviver 24h por dia, durante os sete dias da semana. Surge então um desafio: como preencher qualitativamente o tempo das crianças sem que isso afete, por exemplo, a produtividade de pais que estão trabalhando de casa em home office? É preciso ser muito criativo e ter muita disposição para acompanhar a energia de crianças confinadas há mais de um mês dentro de casa. Foi assim que muitos pais que vinham resistindo bravamente a deixar que seus filhos utilizassem smartphones e tablets passaram a entregá-los, sobretudo a crianças, numa tentativa desesperada de entretê-las enquanto tentam cumprir as demandas do trabalho, inclusive o doméstico. Além disso, muitas escolas também têm disponibilizado atividades ou aulas remotas para as crianças, que passam a acessar com maior frequência o computador. Surge, também, a saudade dos amiguinhos do colégio. Logo, alguns pais autorizaram a utilização de aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, a fim de permitir que as crianças interajam e, quem sabe, se distraiam em grupo, enquanto os pais tentam potencializar seu trabalho. Sem contar outros aplicativos que começam a entrar em cena, como é o caso do Instagram e do TikTok, que permitem a gravação de vídeos com filtros atrativos para as crianças. É difícil supervisionar. Mesmo as famílias mais abastadas, que tinham babás, se viram sozinhas de repente: é preciso encarar a parentalidade a toda prova e ainda concretizá-la de forma positiva. Se há pouco mais de 20 anos as crianças se distrairiam com brinquedos analógicos, desenhos e filmes na televisão, hoje o cenário é distinto: grande parte dos pequenos, enquanto pessoas humanas em desenvolvimento, realizam a própria personalidade por meio da inserção num mundo cada vez mais digital. Ter uma conta no TikTok pode ser mais que uma distração: mas uma possibilidade de interação e inserção social. Escapar dessa sociabilidade pode ser também uma forma de excluir a criança - a depender do seu grupo de relacionamento -, o que torna mais difícil para que pais digam, no alto de sua autoridade, a tão temida frase: "não é não", depois de explicar, convencer, dialogar. E uma vez conquistado esse espaço, voltar atrás e retirar das crianças os smartphones e tablets parece ser uma missão impossível. Como será após o fim da pandemia? As crianças conquistam suas próprias luas e, ingenuamente, bendizem a Covid-19: se não fosse o vírus, não estariam, tão cedo, com essa liberdade na Internet. Quando os pais se dão conta, os filhos estão colonizando as redes sociais, compartilhando vídeos, fotos e, mais silenciosamente, seus dados pessoais. Muitos, no entanto, não se dão conta da gravidade dessa exposição de dados pessoais e imagens das crianças nas redes e de uma atuação desacompanhada. Apesar de algumas plataformas, como YouTube e Netflix, oferecem modos de acesso exclusivos para menores, os riscos continuam sendo enormes. Quem não se recorda dos trágicos e criminosos desafios da Baleia Azul e da Momo, que incentivavam crianças e adolescentes a cometerem suicídio? As redes sociais também são um espaço predatório para pedofilia e outros crimes: quantos casos não ocorrem todos os anos de crianças que são levadas por pedófilos a encontros e, até mesmo, são induzidas a enviar fotos que podem envolver nudez? Isso sem mencionar o cyberbullying e criminosos que buscam obter detalhes da vida daquela família para atentarem contra a sua segurança. Se a rede é um espaço pouco seguro, certamente as crianças são o elo mais frágil e a porta de entrada mais ampla para criminosos virtuais, que facilmente se fazem passar por outras crianças e ganham, pouco a pouco, a confiança dos menores desacompanhados na rede. Não se esqueça, ademais, o tema da Internet of Toys, isso é, dos brinquedos inteligentes, que captam dados para interagir com as crianças. No que diz respeito aos dados pessoais, a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD,apesar de ainda não estar vigente, destaca já no caput do artigo 14, que o tratamento deverá ser realizado no melhor interesse da criança e do adolescente, ressaltando no parágrafo primeiro do mesmo artigo que este tratamento deverá ser efetivado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal da criança. A lei ainda foi omissa neste parágrafo quanto aos adolescentes, deixando dúvidas "se o consentimento manifestado diretamente pelo mesmo e sem assistência ou representação deveria ser considerado plenamente válido, como hipótese de capacidade especial, ou se simplesmente o legislador teria optado por não tratar do tema, por já existir legislação geral sobre a matéria no Código Civil"3. Controverte-se a doutrina nesse ponto acerca da total prescindibilidade da participação parental nessas hipóteses4. O que será feito dos dados coletados dos menores? Poderão estes alimentar bancos de dada imensos (big data), a serem utilizados no futuro? Quais os critérios para essa utilização? Outro risco apresentado pela doutrina está associado ao consumo5, já que muitos aplicativos infantis de celular acabam veiculando anúncios independentemente da idade do usuário, antes mesmo dos 12 anos, quando, em tese, as crianças começam a desenvolver suas defesas cognitivas, que as habilitam a compreender as intenções dos anunciantes de persuadi-las ao consumo6. Ignoram, assim, o disposto na Resolução nº. 163/2014 do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), "que determina ser considerado abusivo o direcionamento de publicidade à criança com intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço"7. Se, por um lado, as plataformas e redes sociais não podem se omitir e devem criar mecanismos mais contundentes de verificação da idade mínima para navegar, por outro lado, aos pais incumbe o exercício de uma parentalidade responsável, que não pode ser reduzida a uma barganha emocional que chegue ao ponto de "negociar" com o filho: "se ficar quieto e me deixar trabalhar, pode usar o celular". Dentre os deveres constitucionais de criação, assistência e, principalmente de educação (art. 229 CF), inclui-se também um dever de fiscalização e de vigilância dos pais, que "se traduz em controle dos atos dos filhos, para que eles possam, aos poucos, entender a necessidade de segurança e o comportamento necessário no ambiente virtual. Embora possa transparecer uma invasão da sua intimidade, entende-se ser papel dos pais o exercício dessa fiscalização, sob pena de, em última análise, deixar os filhos em abandono, em virtude do descumprimento do papel educacional dos pais"8. Direcionar os filhos, orientando-os na inserção com o ambiente digital revela a formação de uma autoridade parental "dialógica, pautada na orientação respeitosa, mas com a autoridade necessária"9. Não quer isso dizer, contudo, que os pais possam devassar completamente a privacidade dos filhos, pois a eles é conferido algum espaço de autonomia, em respeito à própria dignidade humana, enquanto pessoas em desenvolvimento. Há, sim, "o dever de, juntos, resolverem os impasses advindos da educação e das dificuldades enfrentadas pelos filhos, seja no ambiente virtual ou não. Isto é educar sem invadir, cuidar para emancipar"10. É assim que parte da doutrina tem aludido ao chamado "abandono digital", que, contraposto à "educação digital", revela-se na atitude de "pais que deixam o filho menor, ainda vulnerável aos perigos do ambiente virtual, navegar sozinho na Rede, independentemente de orientação e acompanhamento"11. Corre-se o risco até mesmo de as crianças desenvolverem síndromes psicológicas, associadas à intensa dependência dos aparelhos digitais. Como se pode notar, a tarefa da parentalidade num universo digital não é das mais simples, sobretudo em tempos de confinamento social. No entanto, é preciso recordar que a educação digital não tira férias nem fica de quarentena. Ser pai e mãe é um dever que não admite intervalos: deve ser exercido em tempo integral. Por certo, a quarentena traz consigo árduos desafios, que, por outro lado, permitem lançar luzes para o fenômeno da maior interação de crianças e adolescentes com o ambiente virtual. Resta aos pais aproveitarem essa oportunidade de contato tão intenso e real com os filhos para, dialogicamente e respeitando a autonomia dos menores, desempenhar a difícil - mas tão recompensadora - missão de educar. *Ana Carolina Brochado Teixeira é doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Especialista em Diritto Civile pela Università degli Studi di Camerino, Itália. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Advogada. *Filipe Medon é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Substituto de Direito Civil na UFRJ e de cursos de pós-graduação do Instituto New Law e CEPED-UERJ. Advogado e pesquisador. __________ 1 Para uma análise sobre o sharentingem tempos de quarentena, permita-se a referência a: MEDON, Filipe. Big Little Brother Brasil: pais quarentenados, filhos expostos e vigiados. In: Jota, 14 abr. 2020. Disponível em: Acesso em 14 abr. 2020. 2 CETIC. Núcleo de informação e coordenação do Ponto BR. Pesquisa sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil - TIC Kids online Brasil 2017. São Paulo: Comitê gestor da Internet no Brasil, 2018. Disponível em: . Acesso em 29 abr. 2020. 3 TEPEDINO, Gustavo; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Consentimento e proteção de dados pessoais na LGPD. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 312. 4 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 526. 5 Ver mais em: ALMEIDA, Claudia Pontes. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil: uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor e às leis protetivas da infância. Revista Luso, n. 23. Set. 2016. 6 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 514. 7 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 514. 8 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06. 9 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06. 10 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 06. 11 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; NERY, Maria Clara Moutinho. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes, 2020 (no prelo), p. 08.
Texto de autoria de Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida O novo coronavírus (covid-19) surgiu em Wuhan, China, no final de 2019, tendo se espalhado rapidamente para todas as províncias chinesas e hoje alcança mais de 180 países e territórios. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou como pandemia a enfermidade que já contaminou grande parte do mundo e continua a se alastrar. Esforços para conter o vírus estão em andamento, em especial o chamado distanciamento social, que tem forçado parcela da sociedade a se manter em casa. No entanto, dada as muitas incertezas quanto à transmissibilidade do vírus, a eficácia desses esforços ainda não é de todo conhecida. A fração de casos não documentados, mas infecciosos, é uma característica epidemiológica crítica que modula o potencial pandêmico de um vírus respiratório emergente. Essas infecções não documentadas geralmente apresentam sintomas leves, limitados ou inexistentes e, portanto, não são reconhecidas. Em consequência, a depender de sua contagiosidade e número, podem expor uma parcela muito maior da população ao vírus, principalmente as pessoas do chamado grupo de risco, integrado por pessoas idosas e de qualquer idade que sejam imunodeprimidas, cardiopatas, diabéticas, hipertensas, ou que tenham doenças pré-existentes crônicas respiratórias, nas quais as taxas de letalidade são bem maiores1. A velocidade de propagação do vírus é uma preocupação da comunidade médica diante de escassos recursos e insumos de saúde disponíveis e da estrutura hospitalar deficitária. As incertezas em relação ao novo coronavírus causam dúvidas na população e aumenta a vulnerabilidade dos integrantes do grupo de risco e das populações já vulneradas por razões sociais, como moradores de comunidades carentes, moradores de rua, pessoas idosas em asilos e presos. O isolamento domiciliar e a colocação de barreiras sanitárias em aeroportos, rodoviárias e locais com maior número de infectados têm sido as medidas adotadas para tentar achatar a curva de transmissão e permitir que os governos reforcem seus sistemas públicos de saúde para evitar o colapso do sistema. Busca-se, com isso, permitir que os serviços de saúde se estruturem dentro de suas possibilidades para atender a um maior número de pacientes, sobretudo aqueles que apresentem sintomas mais graves, como desconforto respiratório, e precisem de respiradores por emergência respiratória. Em razão do desconhecido potencial epidêmico do novo coronavírus, intervenção legislativa se faz necessária para restringir a liberdade individual em prol da solidariedade social, uma vez que o distanciamento, o isolamento e a quarentena são as ações de combate mais eficazes até o momento. Em 06 de fevereiro de 2020, foi promulgada a lei 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Por sua vez, a Portaria Interministerial 5, de 17 de março de 2020, dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na lei 13.979 e estabelece a responsabilização civil, administrativa e penal (art. 3º). Os limites ao intervencionismo e restrições à liberdade individual em prol da coletividade são controvertidos. Com efeito, a adesão voluntária às medidas de combate indicadas pelas autoridades competentes com base em informações seguras, claras e objetivas seria o ideal. No entanto, à luz da legalidade constitucional, o princípio da solidariedade social não permite limitações ao agir individual que não sejam calcadas em critérios científicos seguros e transparentes, bem como a adoção de medidas razoáveis e que visem a proteção dos vulneráveis, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana. Além disso, ações voltadas às práticas higienistas e discriminatórias são de todo proibidas no Direito brasileiro. Os efeitos sistêmicos do novo coronavírus e seus impactos na área econômica tendem a aprofundar ainda mais as desigualdades sociais no Brasil e desafiam a proteção dos vulneráveis. O desconhecimento em relação à doença da Covid-19 provoca ainda estigma e discriminação das pessoas contaminadas e dos membros do grupo de risco, o que evidencia a incompreensão da população diante dos acontecimentos. A crise sanitária descortina, portanto, a necessidade de enfrentamento epidemiológico de forma estratégica pelas autoridades de saúde e uma atuação do Estado no sentido de proteger as camadas mais vulneráveis da população, de modo a evitar medidas sanitárias discriminatórias ou estigmatizantes. Em breve mirada histórica, a pandemia de gripe espanhola em 1918 que assolou também o Brasil guarda algumas similaridades com o atual período de gripe pandêmica do novo coronavírus vivenciada em 2020. Estudos históricos registram que "enquanto, na Europa, a espanhola se disseminava, no Rio de Janeiro, capital da República, as notícias sobre o mal reinante eram ignoradas ou tratadas com descaso e em tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade, ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença"2. Nesse cenário, a população demonstrava medo e preocupação com as possíveis medidas sanitárias e imperou-se "a visão de que se fazia muito alarde por causa de uma doença corriqueira". Como a doença incidia mais sobre a população idosa ficou popularmente conhecida como uma simples gripe de "limpa-velhos"3. Alguns registros históricos da epidemia da gripe espanhola são importantes para a compreensão do caos que se instalou, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Em primeiro lugar, a postura de descaso das autoridades da administração sanitária que não formularam nenhuma estratégia de combate à moléstia, o que evidenciou a falência das estruturas sanitárias e de saúde e a revolta da população. Diante desse cenário, "pouco a pouco, as ruas da cidade se transformaram em um mar de insepultos, pela falta de coveiros para enterrar os corpos e de caixões onde sepultá-los". O autoritarismo das medidas de quarentena e isolamento incendiavam a sociedade que se voltava contra a excessiva restrição às liberdades civis e criava empecilhos de ordem política e econômica4. Por fim, a crise instaurada com a pandemia da "gripe espanhola" desencadeou a revalorização do conhecimento sanitário, como vital para o bem-estar social e o progresso da sociedade5. Em particular, esse cenário é revelador para fortalecer a necessidade de proteção das pessoas idosas, especialmente as atingidas pela pandemia. Segundo notícias amplamente divulgadas na mídia, na Itália, país mais afetado pela pandemia, o Departamento de Defesa Civil do Piemonte teria preparado um documento no qual recomendaria a negativa de atendimento para pacientes com mais de 80 anos ou que apresentassem más condições de saúde em unidades de terapia intensiva (UTIs)6. Itália, Espanha e França registram centenas de mortes de idosos em asilos. Em muitos casos, os corpos são descobertos dias depois do óbito por militares. Torna-se gravíssima a situação dos idosos em asilos em razão da rápida propagação do vírus e da maior taxa de letalidade entre eles7. Relatos de solidão de pessoas idosas por causa das medidas de isolamento social se proliferam e o distanciamento dos familiares agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade, ainda que vital para sua sobrevivência. No Rio de Janeiro, a Prefeitura tem oferecido quartos de hotéis para pessoas idosas saudáveis, mas que tiveram comorbidades no passado, que moram em comunidades com muita aglomeração. Os idosos recebem refeição no quarto com visita regulares de médicos e enfermeiros, mas sem acesso à rua e aos familiares8. Talvez em razão da distância da família a procura tem sido baixa e a Prefeitura já cogita a alocação involuntária de pessoas idosas, o que afrontaria a sua autonomia e independência. Diante desse cenário, constata-se que a pessoa idosa se encontra extremamente vulnerada, situação na qual o dever de cuidado e o direito prioritário à saúde, com base em seu melhor interesse, são fortemente desafiados em tempos de pandemia da Covid-19. Cabe lembrar que a Constituição da República de 1988 introduziu direitos específicos para essa parcela da população, definindo responsabilidades, entre pais e filhos, para a família, para o Estado e para a própria sociedade, conforme preconizado pelos arts. 229 e 230. No âmbito infraconstitucional, a lei 8.842/1994 estabeleceu a Política Nacional do Idoso9. Posteriormente, em 2003, foi promulgado o Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), que regula os direitos assegurados às pessoas idosas, estabelece prioridades nas políticas públicas e prevê mecanismos para o exercício da cidadania por essas pessoas. Buscando a proteção integral da pessoa idosa, abalizada doutrina tem proclamado o princípio da prioridade do idoso, que lhe assegura o atendimento em primeiro plano dos direitos fundamentais, dada a sua condição de vulnerabilidade existencial intrínseca. Tal orientação é extraída da cláusula geral de proteção da pessoa humana inscrita no texto constitucional, bem como da garantia de prioridade assegurada no art. 3º do Estatuto do Idoso. Reconhece-se, portanto, como "implícito no preceito constitucional o princípio do melhor interesse do idoso, como expressão da proteção integral que lhe é devida com absoluta prioridade"10. Em especial, o princípio do melhor interesse concretiza o direito personalíssimo ao envelhecimento, conforme consagrado no art. 8º do Estatuto do Idoso. Tal direito assegura, a rigor, o chamado "envelhecimento ativo", definido como "o processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas"11. Tal compreensão permite que seja assegurado às pessoas idosas o bem-estar físico, psíquico e social ao longo do curso da vida, com a garantia de plena participação social em igualdade de condições de liberdade e dignidade de acordo com suas necessidades, desejos e vontades, sem abandonar o cuidado, a segurança e a proteção vitais na fase do envelhecimento. Diante da intrínseca vulnerabilidade da pessoa idosa potencializada pelas contingências existenciais naturais do processo de senescência, o direito prioritário à saúde emerge como instrumento indispensável para a promoção da proteção integral e do melhor interesse à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Desse modo, há de se cumprir o disposto no art. 15 do Estatuto do Idoso, que assegura o direito à saúde de modo integral, incluindo, inclusive, atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos. Indispensável assegurar a efetividade do direito prioritário à saúde da pessoa idosa, de envergadura constitucional, decorrente do princípio do melhor interesse e do dever de cuidado e respeito à sua autonomia existencial, que devem ser realçados e promovidos, inclusive, em tempos de pandemia do novo coronavírus, na qual as taxas de letalidade atingem mais severamente a população idosa12, além de provocar solidão e aprofundar as suas vulnerabilidades. É, portanto, com base na proteção integral e prioritária, iluminada pelo princípio do melhor interesse, que emerge o dever de cuidado, especialmente nas situações limítrofes, o qual deve ser cumprido sem prejuízo da autonomia da pessoa idosa. Por força de mandamento constitucional, os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, e a família, portanto não apenas os filhos, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, garantindo-lhes o direito à vida. Esse dever constitucional (art. 229 e 230 da CR), que pode ser traduzido como o dever de cuidado13, seria letra morta ou mera recomendação, se não houvesse consequências decorrentes do seu não cumprimento. Uma das formas de se conferir eficácia a esse mandamento constitucional, que não é norma programática, se dá através da responsabilização civil das pessoas que não cumprirem as determinações contidas na Lei Maior. Nessa linha, os familiares, especialmente os filhos que não ajudarem ou ampararem os pais na velhice, carência ou enfermidade, podem ser responsabilizados civilmente. Com maior razão, devem ser responsabilizados se os deixarem ao abandono, fato lamentavelmente que não raro se verifica. O abandono já foi tratado pelo direito penal, ainda com vinculação a ideia de incapacidade (arts. 133 e 134, Código Penal), havendo aumento de pena se a vítima for idosa. No caso de ameaça ou violação dos direitos de pessoa idosa, o Estatuto do Idoso prevê seu encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade. Nada estabelece, contudo, sobre a forma de responsabilização dos responsáveis, o que indica a aplicação das normas gerais de responsabilidade civil. A proteção constitucional da pessoa idosa, que se orienta no sentido de sua emancipação, encontra no dever de cuidado e na responsabilidade civil instrumentos valiosos para sua efetividade. Igualmente as políticas públicas emergenciais devem nortear a atuação médica para se evitar que médicos tenham que fazer "escolhas de Sofia" ao eleger o paciente com maior probabilidade de sobreviver, bem como se afastar a "naturalização" do discurso de "limpa-velhos", como a história já revelou, sob pena de responsabilidade civil do médico ou do hospital a ser analisada em cada caso concreto. Medidas legais de completo isolamento da pessoa idosa devem ser de todo afastadas, sob pena de desamparo em momento já tão solitário. Impedir o convívio de avós com netos menores, quando os avós são as únicas pessoas aptas a fornecer-lhes o amparo e o cuidados necessários, não parece ser a medida mais efetiva em nome da dignidade humana. É preciso avaliar com cuidado e prudência medidas de afastamento da pessoa idosa do seu lar e dos cuidados com a família. Ao analisar a morte e o morrer, Norbert Elias registra que os moribundos se deparam com a completa solidão, porque os vivos temendo por si mesmos, são incapazes de demonstrar afeto14. Em tempos em que a morte já não é mais tão silenciosa, não parece razoável medidas de completa solidão da pessoa idosa quando ainda não há, pelo menos, indícios da contaminação pelo novo coronavírus. Afeto e cuidado também são armas valiosas em tempos de pandemia. É desafiador o futuro da proteção da pessoa humana em tempos de pandemia e de escassez de leitos e respiradores para todos os pacientes em estado grave em razão do ainda desconhecido potencial pandêmico do vírus e do precário e limitado sistema de saúde brasileiro público e suplementar. Mas há também a escassez de humanidade, na medida em que a falta de solidariedade social e o descompromisso com justiça intergeracional revelam uma sociedade mais preocupada com as demandas mercadológicas e econômicas do que com a crise de existência que vivemos. Permitir o desrespeito aos direitos das pessoas em grupo de risco, especialmente as pessoas idosas, afronta nosso projeto de solidarismo constitucional e coloca em xeque toda a construção recente de um Direito mais humano e solidário. Indispensável afirmar, mais uma vez e sempre, que a condição humana requer a proteção dos mais vulnerados na sociedade. No enfrentamento jurídico à pandemia do novo coronavírus cabe ao Direito impor uma tutela ainda mais enérgica em prol da proteção dos vulnerados de modo a afastar todas as medidas de desprezo aos membros do grupo de risco, em especial às pessoas idosas, sob pena de retorno à uma política de "limpa-velhos" não compatível com um ordenamento ancorado na dignidade da pessoa humana. *Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Especialista em Ética e Bioética pelo IFF/FIOCRUZ. **Vitor Almeida é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de pós-graduação em Direito da PPGD-UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da ITR/UFRRJ. Professor do Instituto de Direito da PUC-Rio. __________ 1 "A proporção de mortes por casos de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, é maior entre a população com mais de 70 anos de idade, segundo dados do Centro para a Prevenção e Combate a Doenças da China, país de origem do vírus e com mais casos registrados até agora (mais de 80 mil). Dados compilados pelo órgão até 11 de fevereiro apontam que 14,8% dos casos do novo coronavírus com chineses com mais de 80 anos resultaram em morte. Já 8% dos casos da covid-19 envolvendo a população na faixa dos 70 anos acabaram em falecimento". Acesso em 09 abr. 2020. 2 GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. In: História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 12, n. 1, p. 101-42, jan./abr. 2005, p. 104. 3 GOULART, Adriana da Costa. Op. cit., p. 105. 4 GOULART, Adriana da Costa. Op. cit., p. 106-108 e 110. 5 GOULART, Adriana da Costa. Op. cit., p. 135-136. 6 Disponível aqui. Acesso em 09 abr. 2020. 7 Disponível aqui. Acesso em 09 abr. 2020. 8 Disponível aqui. Acesso em 13 abr. 2020. 9 A Política Nacional do Idoso foi regulamentada inicialmente pelo Decreto n. 1.948/1996. Atualmente, o decreto 9.921, de 18 de julho de 2019, consolida atos normativos editados pelo poder executivo federal que dispõem sobre a temática da pessoa idosa e revogou o Decreto anterior. 10 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse da pessoa idosa: efetividade e desafios. In: BARLETTA, Fabiana Rodrigues; ALMEIDA, Vitor (Orgs.). A tutela jurídica da pessoa idosa: 15 anos do Estatuto do Idoso: melhor interesse, autonomia e vulnerabilidade e relações de consumo. Indaiatuba/SP: Editora Foco, p. 3-20, 2020, p. 20. 11 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Tradução Suzana Gontijo. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2005, p. 15. Acesso em 16 mai. 2007. 12 De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), "pessoas idosas e pessoas que apresentaram condições médicas delicadas anteriores ao contato com o vírus se mostraram mais propensas a desenvolver um quadro severo da doença, consequentemente, estando ambos sujeitos a uma maior taxa de letalidade. Em particular, as taxas de letalidade naqueles com 80 ou mais anos de idade são 13 vezes o valor daquela na faixa de 50 a 55 anos e 75 vezes àquelas na faixa de 10 a 19 anos de idade". NERI, Marcelo. Onde estão os idosos? Conhecimento contra o covid-19. FGV Social. Centro de Políticas Sociais. Acesso em 10 abr. 2020. 13 V. BARBOZA, Heloisa Heloisa. Perfil Jurídico do cuidado e da afetividade nas relações familiares. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (orgs.). Cuidado e Afetividade. Projeto Brasil/Portugal - 2016-2017. São Paulo: Atlas, 2016, p. 175-191. 14 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, passim.
Texto de autoria de Chiara Spadaccini de Teffé Diante do avanço da pandemia, o debate em torno de medidas que utilizam dados pessoais sensíveis e sistemas de vigilância para combater o vírus torna-se ainda mais importante. Até onde o interesse coletivo pode avançar sobre o individual? Tratamentos em massa de dados pessoais e aplicações de tecnologias de reconhecimento facial vêm sendo encarados como ferramentas necessárias para o combate ao covid-19. Todavia, a falta de transparência, informação e segurança no trato dessas informações preocupa diversos setores da sociedade. A busca estatal por institucionalizar sistemas de controle e ampliar a receptividade da população a medidas mais invasivas em sua intimidade também é ponto constantemente questionado. Qual será o impacto dessa vigilância estatal (e privada, levando-se em conta as diversas parcerias firmadas) a longo prazo? Quais mecanismos de rastreamento e coleta de dados serão aplicados e por quanto tempo? Quem terá acesso aos bancos de dados criados? Serão eles algum dia descartados? Quão estáveis e seguros são os sistemas de armazenamento e tratamento? O que se mostra justificável diante de um cenário de pandemia global e qual legado isso deixará para o tema da proteção de dados? Perguntas apresentadas globalmente, mas ainda sem respostas. Stefano Rodotà em "A Vida na Sociedade da Vigilância: a Privacidade Hoje" nos lembra que, em relação aos dados de saúde, "a proteção especial atribuída a estes dados não se justifica somente por se referirem a fatos íntimos, mas também, e às vezes sobretudo, pelo risco que seu conhecimento possa provocar discriminações"1. Não há dúvida de que o conhecimento, por parte de empregadores, companhias seguradoras ou planos de saúde, de informações sobre pessoas que foram infectadas poderá causar discriminações, além de prejudicar determinadas contratações. Dados de geolocalização, mesmo a princípio não sensíveis, podem ser facilmente manipulados para usos lesivos a seu titular e para verificação de informações íntimas. Em verdade, essencial para se determinar se um dado é sensível ou não é verificar o contexto de sua utilização, as relações que podem ser estabelecidas com as demais informações disponíveis e a potencialidade de seu tratamento servir como instrumento de estigmatização ou discriminação ilícita ou abusiva. Entretanto, mesmo levando em conta essas considerações, o que se apresenta no momento é um cenário de grandes danos à saúde da coletividade. O covid-19 ataca diretamente a dignidade da pessoa humana, afetando sua integridade psicofísica e liberdade. Além da patente necessidade de se conter o alastramento da doença e verificar pontos de contaminação, sabe-se que um indivíduo infectado coloca em risco diversos outros que com ele tenham estado. Diante disso, entende-se que existindo risco grave e real para a saúde pública mostra-se legítimo flexibilizar e publicar2 normas para que o Estado possa tanto monitorar locais públicos quanto cuidar de pessoas infectadas ou que estejam em elevado risco de contaminação, não podendo transcurar, porém, salvaguardas de proteção aos direitos e liberdades fundamentais e mecanismos de mitigação de danos, como a aplicação dos princípios para a proteção de dados, criptografia e, sempre que possível, a técnica da anonimização de informações pessoais. Nesse sentido, afirmou o  European Data Protection Board que as normas de proteção de dados não impedem as medidas tomadas na luta contra a pandemia de coronavírus. Todavia, sublinhou que, mesmo em momentos excepcionais, os agentes devem garantir a proteção dos dados pessoais que tratarem. Além disso, qualquer medida tomada deverá respeitar princípios gerais e não ser irreversível. Emergência é uma condição legal que pode legitimar restrições à liberdade, desde que elas sejam proporcionais e limitadas ao período em questão. Alguns exemplos - replicados em vários países - de aplicação de tecnologias de controle e vigilância para a contenção da doença são: aplicativos que usam sinais de Bluetooth entre celulares para verificar se possíveis portadores do coronavírus estão em contato próximo com outras pessoas (Cingapura); análises de transações com cartões de crédito, de dados de localização e conversas para rastrear casos confirmados e informar às pessoas se elas chegaram perto de um portador de coronavírus (Coréia do sul); na Índia, carimbos nas mãos de pessoas suspeitas de ter a doença e rastreamento a partir de seus celulares e dados pessoais, de forma a reforçar as quarentenas; diálogo entre governo e empresas de tecnologia sobre a possibilidade de usar dados de localização e movimentação dos smartphones (EUA); empresa de telecomunicações usando dados de localização geográfica do cartão SIM para se comunicar com as autoridades quando mais de vinte telefones forem detectados em uma área de cem metros quadrados (Suíça); uso massivo de reconhecimento facial para identificar quem está violando a quarentena (Rússia); e uso de drones para vigiar os cidadãos e impedir reuniões ao ar livre em locais na China. As relações de prevalência entre interesses privados e públicos não comportam determinação a priori e em caráter abstrato, devendo ser analisadas dentro do sistema constitucional e por meio de ponderações que envolvam direitos fundamentais e metas coletivas da sociedade. Há muito a tese da supremacia do interesse público sobre o individual vem sendo rediscutida3. Nessa ótica, defende-se que a preservação dos direitos individuais constitui porção do próprio interesse público, visto que são objetivos gerais da sociedade tanto viabilizar o funcionamento da Administração Pública quanto preservar e promover, extensamente, os direitos fundamentais dos particulares. A tutela do interesse público voltada à vida e saúde das pessoas pode legitimar o tratamento de dados nessa crise, mas os direitos à intimidade, igualdade e ao sigilo das comunicações e de dados permanecem fundamentais. O Código de Defesa do Consumidor estabelece como direitos básicos: a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, bem como sobre os riscos que apresentem; e a efetiva prevenção e reparação de danos individuais e coletivos. Além disso, vale recordar a Lei do Cadastro Positivo (lei 12.414/11), a Lei de Acesso à Informação (lei 12.527/11) e o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), que dispõe que ao usuário da internet são assegurados os direitos: à inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; à inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento ou nas hipóteses previstas em lei; e informações claras e completas sobre o tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que justifiquem sua coleta e não sejam vedadas pela legislação. Dos diplomas legais acima é possível extrair princípios essenciais para a proteção de dados pessoais, que são de observância obrigatória (mesmo) na conjuntura atual, quais sejam: a minimização dos dados, finalidade, transparência, informação, qualidade dos dados, não discriminação, adequação, prevenção e segurança. Não obstante o debate em torno da postergação da vacatio legis da Lei Geral de Proteção de Dados4, há disposições claras no sistema jurídico para a proteção da privacidade e dos dados pessoais e que são aplicáveis tanto ao ambiente privado quanto ao setor público. Adicionalmente, não é demais lembrar que a LGPD - mesmo se estivesse em vigor - ofereceria respaldo para o tratamento de dados (inclusive sensíveis) necessário, disposições específicas para o Poder Público atuar e normas acerca de sua não aplicação em hipóteses excepcionais, como no caso de segurança pública. Atrasar sua efetividade apenas traz opacidade e maior insegurança para a conjuntura atual, ainda que modulações possam ser desenvolvidas no que concerne às sanções e deveres ali dispostos. Entende-se também que ter uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados em pleno funcionamento no Brasil seria de grande relevância para a orientação de profissionais, empresas, cidadãos e governo, como vêm fazendo a Autoridade do Reino Unido (ICO) e diversas outras ao redor do mundo. Na presente conjuntura, os dados pessoais necessários para a tutela da saúde pública devem ser processados para finalidades legítimas, específicas, explícitas e informadas ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades. Os titulares dos dados devem receber informações transparentes sobre as atividades de tratamento que estão sendo realizadas, os objetivos de sua realização e principais características, incluindo o período de retenção dos dados coletados. Outra recomendação é que as informações fornecidas sejam facilmente acessíveis e que estejam em linguagem clara e compreensível para os mais variados públicos. Nesse cenário, soluções menos invasivas devem ser preferidas, mostrando-se também relevante adotar medidas de segurança (que retomem os valores da proteção de dados by design e by default) e políticas de confidencialidade que garantam que os dados não sejam divulgados a terceiros não autorizados, bem como documentar adequadamente as medidas implementadas e os processos de tomada de decisão. Os dados sensíveis necessitam mais do que nunca de uma tutela diferenciada e especial, de forma a se evitar que informações dessa natureza sejam vazadas, usadas indevidamente, comercializadas ou sirvam para embasar discriminações em relação ao titular5. Todavia, a mera proibição do tratamento de dados sensíveis mostra-se inviável, pois, em alguns momentos, o uso de tais dados será legítimo, além do que existem determinadas instituições cuja própria razão de ser estaria comprometida caso não pudessem obter informações dessa categoria. De toda forma, todo tratamento de dados sensíveis deverá ser pautado nos ditames já positivados e desenvolvidos no ordenamento brasileiro (incluindo-se, aqui, também trabalhos doutrinários e jurisprudência), pela relevância dos valores em questão, e legitimado apenas quando não servir para a realização de discriminações ilícitas ou abusivas. Mecanismos dotados de inteligência artificial e processamentos refinados de dados, com as devidas garantias estabelecidas aos direitos humanos, apresentam papel essencial para a proteção da pessoa e podem garantir maior segurança e previsibilidade de cenários, visando reduzir o risco de transmissão, controlar a epidemia e evitar a formação de novos focos. Um mapeamento inteligente de relações e contatos, atrelado a testagens em massa e medidas sanitárias e de higiene adequadas, pode permitir futuramente a flexibilização de algumas medidas restritivas de locomoção. Adicionalmente, sistemas inteligentes são úteis para, por exemplo, (a) estimar o número de leitos necessários nos hospitais, (b) avaliar a prioridade de pacientes em UTIs, (c) determinar a priorização de pacientes no uso de aparelhos de ventilação pulmonar, (d) dar suporte a decisões médicas, agregando velocidade e precisão, (e) executar tarefas específicas nos centros de saúde, por meio de robôs, e (f) realizar diagnósticos com base na análise de imagens. Em momentos excepcionais que exigem maior acesso e tratamento de dados, a fim de se proteger interesse maior, a disciplina da proteção de dados (nas dimensões individual e coletiva) não deve ser compreendida como empecilho ou despesa. É a partir dela que a utilização de informações pessoais poderá ter legitimidade e que limites e procedimentos específicos serão estabelecidos de acordo com a cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana. *Chiara Spadaccini de Teffé é doutoranda e mestre em Direito Civil pela UERJ. Atualmente, é professora de Direito Civil e Tecnologia no IBMEC. Leciona também em cursos do CEPED-UERJ, na pós-graduação da PUC-Rio em Direito da Saúde (Instituto de Direito), na EMERJ, no Instituto New Law, no ITS Rio e na Pós-graduação em Advocacia Contratual e Responsabilidade Civil da EBRADI. Membro do conselho executivo da revista eletrônica civilistica.com. Coordenadora da Disciplina "Direito e Internet" no Instituto New Law. Membro do Fórum permanente de mídia e liberdade de expressão da EMERJ. Associada ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). Foi professora substituta de Direito Civil na UFRJ e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio). Advogada e consultora em proteção de dados. __________ 1 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância - a privacidade hoje. Coord. Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.106. 2 Como, por exemplo, a lei 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Para o presente artigo, vale destacar disposições presentes nos artigos 3º e 6º: "Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos; (...)" "Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação. §1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária. §2º O Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais". 3 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.p.88. 4 Artigo concluído em 11 de abril de 2020. 5 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez as seguintes recomendações aos governos dos Estados-Membros: "Proteger el derecho a la privacidad y los datos personales de la población, especialmente de la información personal sensible de los pacientes y personas sometidas a exámenes durante la pandemia. Los Estados, prestadores de salud, empresas y otros actores económicos involucrados en los esfuerzos de contención y tratamiento de la pandemia, deberán obtener el consentimiento al recabar y compartir datos sensibles de tales personas. Solo deben almacenar los datos personales recabados durante la emergencia con el fin limitado de combatir la pandemia, sin compartirlos con fines comerciales o de otra naturaleza. Las personas afectadas y pacientes conservarán el derecho a cancelación de sus datos sensibles". RESOLUCIÓN NO. 1/2020 - PANDEMIA Y DERECHOS HUMANOS EN LAS AMÉRICAS (Adoptado por la CIDH el 10 de abril de 2020).
Texto de autoria de Isabella Z. Frajhof O novo coronavírus (COVID-19) tem nos desafiado individual e coletivamente. As medidas de polícia impostas pelo Estado a liberdades ora oscilam entre meras recomendações e imposições, e vão se moldando e modulando de acordo com a resposta do avanço do vírus. O atropelamento do coronavírus no continente europeu e na Ásia nos permitiu assistir quais foram as soluções mais eficientes na sua contenção e na redução da taxa de contágio. Como tem sido tendência, o Ocidente tem se mantido alerta às inovações tecnológicas vindas dos países asiáticos. E, embora motivado por um trágico evento, ao que parece, continuamos a querer trilhar esse mesmo caminho. A resposta desses países à pandemia tem apresentado uma fórmula eficiente, em especial, as adotadas pela Coréia do Sul e China. Uma das estratégias para monitorar a evolução do COVID-19 por aqueles países tem sido o uso da tecnologia1 como uma forte aliada do Estado para vigiar seus cidadãos2. O governo de ambos os países desenvolveram aplicativos que deveriam ser obrigatoriamente baixados por seus cidadãos, onde o aplicativo era responsável por notificar o usuário se o mesmo havia entrado em contato com pessoas com suspeita ou que haviam sido contagiadas pelo vírus. O objetivo era identificar essas pessoas e se certificar que elas se mantinham em isolamento social. Assim, enquanto procuramos as respostas das políticas adotadas no Oriente para conter os avanços do COVID-19, a fórmula escolhida por aqueles países - controle social e monitoramento individual - levanta um sinal amarelo sobre alguns valores que são caros por aqui: a proteção da privacidade e dos dados pessoais. Apesar dessas questões parecerem pouco relevantes no atual cenário, em que nos encontramos com um quadro de recessão econômica global já em curso3, a iminência do esgarçamento da saúde pública e a diminuição ou até mesmo a interrupção da entrada de renda de parte da população, garantir a proteção desses direitos neste cenário é uma forma de assegurar a manutenção da nossa própria liberdade. Nesse sentido, Danilo Doneda recentemente apontou para a importância das legislações de proteção de dados pessoais neste momento. Primeiro porque os dados pessoais são insumos para o estudo e elaboração de políticas públicas que vão ser executadas para conter e controlar o coronavírus4. Segundo, o marco normativo traz maior segurança jurídica aos agentes de tratamento que fazem uso de dados pessoais nesse momento emergencial, ao mesmo tempo que assegura proteção às pessoas que têm seus dados pessoais tratados. Trazendo o debate sobre o monitoramento do Estado no cenário do COVID-19 para o contexto brasileiro, recentemente, foi noticiado que a companhia de telefonia TIM, em parceria com Prefeitura do Rio de Janeiro, irá fornecer os dados de geolocalização de seus usuários para que o Município possa monitorar o deslocamento de pessoas e avaliar a efetividade das políticas públicas de reclusão social5. Apesar desse tipo de monitoramento não ser tão ofensivo e granular quanto o adotado nos países asiáticos (por lá são coletados dados sensíveis de saúde), ele é um alerta, e pode se constituir como uma ameaça a direitos fundamentais. Assim, embora a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira (lei 13.709/2018 - LGPD) ainda não esteja em vigor6, um exercício interessante é avaliar, à luz daquela normativa, qual seria a legitimidade do tratamento de dados pessoais nestes casos de monitoramento realizado pelo Estado. O tema, debatido recentemente por Caitlin Mulholland, instiga alguns cenários7. O artigo 7o da LGPD elenca dez bases legais que autorizam a realização do tratamento de dados pessoais de maneira legítima, onde esta pode ocorrer com o consentimento do titular de dados (inciso I) ou sem o seu consentimento, desde que a situação se enquadre em uma das hipóteses listadas pelos incisos. Assim, o inciso III do referido artigo admite que o tratamento de dados pessoais possa ocorrer sem o fornecimento do consentimento do titular de dados, quando o mesmo for realizado "pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres". Neste caso, o tratamento de dados está condicionado ao seu compartilhamento, seja com um ente público ou privado, bem como à existência de normas ou outros instrumentos que regulem a execução de política pública. Como inexiste um marco normativo sobre o assunto, cabe investigar se o eventual compartilhamento de dados estaria fundado em algum contrato, convênio ou instrumento congêneres para averiguar a adequação deste tratamento. Além desta hipótese, o uso de dados pessoais para realizar o monitoramento dos cidadãos poderia estar justificado pela hipótese prevista no inciso VII, do artigo 7o. Neste caso, o uso de informações pessoais pode ocorrer sem o consentimento do titular "para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro". No atual contexto do coronavírus, a medida adotada na maior parte dos países para conter a pandemia é o isolamento social dos seus cidadãos, restringindo ao máximo a circulação de pessoas nas cidades para evitar maior contágio do vírus. O uso dos dados pessoais para monitorar o fluxo dos cidadãos e evitar a propagação do vírus de fato atenderia a este interesse de proteger a integridade psicofísica do titular e de terceiros. Qualquer que seja a base legal que justifique o tratamento de dados pessoais, devem ser observados os princípios que regem essa atividade, listados no artigo 6o da LGPD. É nesse sentido que o Comitê Europeu de Proteção de Dados (EPDB, em inglês) se manifestou. O Comitê destacou, em especial, que o uso de dados de geolocalização pelo Estado deve observar o princípio da proporcionalidade, sendo priorizada a aplicação da técnica de anonimização desses dados8. Assim, no atual contexto do uso de dados pessoais para realizar a vigilância e controle dos titulares de dados, ganham especial relevância os princípios da: finalidade, adequação, necessidade, transparência e não discriminação. Isto implicará em informar aos cidadãos de que seus dados pessoais (por exemplo, no caso carioca, dados de geolocalização) estão sendo utilizados e compartilhados com o Estado para fins de controle e monitoramento (para a localização, ou, no caso da China e Coréia do Sul, acompanhamento da saúde), devendo ser coletados estritamente os dados necessários para atender à política pública pretendida e utilizados tão e somente para este fim, sendo vedado o tratamento ilícito ou abusivo. É importante ressaltar que a LGPD impõe que o tratamento de dados se encerre quando verificada que a sua finalidade foi alcançada (art. 15, inciso I), implicando na eliminação dos dados pessoais utilizados (artigo 16). Ou seja, com o fim do atual estado de emergência e calamidade pública, deverá cessar o uso e compartilhamento dos dados pessoais utilizados para fins de monitoramento, com a sua consequente exclusão. Uma tese que poderia ser ventilada para afastar a aplicação da LGPD em tempos de coronvírus, como destacado por Caitlin Mulholland9, seria sustentar a aplicação do artigo 4o e seus incisos. No entanto, tendo em vista que o tratamento nesta situação vai depender de eventual regulamentação por lei específica (4o, inciso III, § 1o), justificar a não aplicação da LGPD no atual cenário colocaria em xeque a legitimidade e licitude da atividade. No mais, apesar de parecer existir uma dicotomia entre o direito à privacidade e proteção de dados pessoais, e à segurança pública, a equação dos mesmos é possível. Este é, inclusive, um dos princípios do privacy by design, criados por Ann Cavoukian10, que prega a necessidade de identificar e alocar todos os interesses envolvidos em uma dada situação de conflito. A ideia é que seja apresentada uma solução ganha-ganha, em que não deve ser necessário escolher entre a segurança e a privacidade, mas adotar uma posição que observe, ao máximo, ambos os interesses. E isto é possível, como demonstrado acima. A LGPD não cria empecilhos para o tratamento de dados pessoais no atual contexto do coronavírus, ao contrário: a norma prevê fundamentos para que esta atividade possa ocorrer, ao mesmo tempo que impõe proteções que resguardam os titulares de dados. Desta forma, mesmo que a LGPD ainda não esteja em vigor, e por isso careça de eficácia, como ressaltou Doneda, o fato de já haver reconhecimento social de seus princípios e regras, e existirem previsões semelhantes em outras normas vigentes (como no Código de Defesa do Consumidor e na Constituição Federal), recomenda-se que a proteção de dados e a LGPD devam ser sim levadas em consideração no atual cenário. *Isabella Z. Frajhof é doutoranda e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional do programa de pós-graduação em Direito na PUC-Rio. É professora dos cursos de extensão na PUC-Rio, e pesquisadora do Legalite PUC-Rio. __________ 1 Apesar de já ter sido apontado que o diferencial na Coréia do Sul para conter o contágio tenha sido o grande número de testes realizados, também foi bastante ressaltado o uso de um aplicativo que controlava e monitorava seus cidadãos. 2 Disponível aqui. Acessado em 26/3/2020. 3 Conforme noticiado pela Reuters em 19/3/2020: "The global economy is already in a recession as the hit to economic activity from the coronavirus pandemic has become more widespread (.)" Disponível em aqui . Acessado em 21.03.2020. 4 DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais em tempos de coronavírus. Revista Jota, 25 de março de 2020. Disponível em: . Acessado em 26.03.2020. 5 Notícia disponível aqui. Acessado em 26/3/2020. 6 Em outubro de 2010 foi apresentado pelo deputado Carlos Bezerra (MDB/MT), o projeto de lei nº 5.762/2019 ("PL 5.762") que propõe prorrogar a entrada em vigor da LGPD para 15 de agosto de 2022. 7 Informações obtidas na aula online sobe "COVID-19, Privacidade e Proteção de Dados", na Escola Superior de Advocacia, no dia 23.03.2020. 8 Disponível aqui. Acessado em 26/3/2020. 9 Informação obtida na aula online sobe "COVID-19, Privacidade e Proteção de Dados", na Escola Superior de Advocacia, no dia 23/3/2020. 10 Um resumo destes princípios pode ser encontrado no seguinte documento elaborado pela IAPP sobre o tema.
Texto de autoria de Livia Teixeira Leal Em março de 2019, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ analisou curioso caso a respeito da possibilidade de destinação do corpo humano morto para congelamento e eventual ressuscitação no futuro, por meio de criogenia ou criopreservação. Na situação concreta examinada pela Corte, as filhas do falecido divergiam a respeito da destinação do corpo do pai. Enquanto a filha que havia convivido com o genitor por mais de trinta anos buscava mantê-lo submetido ao procedimento de criogenia nos Estados Unidos, sustentando ser esse o desejo manifestado em vida pelo pai, as irmãs pretendiam promover o sepultamento na forma tradicional no Brasil. O Colegiado, na inexistência de previsão legal a respeito da criogenia em seres humanos, recorreu à analogia, nos termos do art. 4º da LINDB, considerando que o ordenamento jurídico brasileiro, além de proteger as disposições de última vontade do indivíduo, prevê formas distintas de destinação do corpo humano após a morte, além do sepultamento, como a cremação (art. 77, § 2º, da lei 6.015/73), a doação de órgãos (lei 9.434/1997) e o direcionamento do corpo para fins científicos ou altruísticos (art. 14 do Código Civil). Pontuou, ainda, que não há formalidade específica para a manifestação de última vontade do indivíduo, revelando-se possível aferir essa vontade por outros meios de prova legalmente admitidos, e que, na falta de manifestação expressa do sujeito em vida, presume-se que sua vontade seja aquela manifestada por seus familiares mais próximos. O STJ considerou, por fim, que, pela longa convivência com o pai, a irmã que pretendia a manutenção do procedimento de criogenia era a que melhor poderia traduzir a vontade do genitor em relação a seus restos mortais e que, diante do transcurso de sete anos do falecimento do pai e do fato de o corpo já se encontrar submetido à técnica por período considerável, a situação jurídica já teria se consolidado no tempo1. O caso ressalta a relevância do desenvolvimento de instrumentos de tutela da autodeterminação corporal após a morte do sujeito, considerando as múltiplas projeções do corpo decorrentes do desenvolvimento tecnológico e a necessidade de proteção jurídica post mortem do corpo, que se reflete sob o aspecto temporal. Para além da investigação a respeito das possibilidades e limites para a disposição do próprio corpo humano, cabe perquirir a relação entre o corpo morto e a sua vinculação à pessoa falecida por meio da tutela post mortem de direitos da personalidade. A temática possui significativo relevo diante da importância do corpo como relevante aspecto da identidade pessoal da pessoa humana2 e da dificuldade de se estabelecer uma base teórica sólida a respeito dos fundamentos da tutela post mortem de direitos da personalidade3, que acaba por acarretar, em alguns casos, certa fragilização da proteção da vontade manifestada pelo indivíduo em vida em tais casos. Com efeito, se, para o direito brasileiro, há inegável correlação entre o fim da personalidade civil e a morte física ao estabelecer o art. 6º do Código Civil de 2002 que "[a] existência da pessoa natural termina com a morte", o término da personalidade não significa a cessação absoluta da tutela jurídica direcionada à proteção dos direitos dela decorrentes. Nesse sentido, o ordenamento jurídico pátrio conta com os parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 do Código Civil de 2002, que preveem os legitimados para pleitear a proteção post mortem dos direitos da personalidade do de cujus, e com as normas de proteção do cadáver, constantes nos arts. 211 e 212 do Código Penal, além daquelas direcionadas à regulação do transplante de órgãos, a exemplo do art. 4º da Lei nº 9.434/97, que dispõe sobre a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, e ao registro público de óbitos, nos termos dos arts. 77 a 88 da lei 6.015/73. De outro lado, apesar de o art. 14 do Código Civil reconhecer como válida a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte, o art. 4º da Lei nº 9.434/97 exige, para o transplante de órgãos de pessoa falecida, a autorização do cônjuge ou parente, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o 2º grau inclusive, o que pode acarretar possíveis divergências entre a vontade do doador e a de seus familiares, hipótese que evidencia a dificuldade prática de se preservar o desejo manifestado pelo sujeito em vida em alguns casos. Impõe-se, nesse cenário, como observa Gustavo Tepedino, a superação da análise puramente estrutural e setorial da personalidade, pela qual se busca a sua proteção em termos apenas negativos, no sentido de repelir eventuais violações - técnica esta derivada do direito de propriedade4, - para que se considere tanto seu viés subjetivo, que se traduz na capacidade para ser sujeito de direitos, como seu viés objetivo, enquanto bem juridicamente relevante, merecedor de tutela jurídica5. Nesse cenário, deve ser resguardada, sempre que possível, a vontade do titular a respeito do destino do seu corpo após a morte, como reflexo da sua autodeterminação corporal, consideradas as restrições legais, notadamente aquelas previstas pelo art. 13 do Código Civil, no que couber6. A respeito da questão, destaca-se o entendimento de Thamis Dalsenter, que observa que, "como qualquer outro ato de liberdade, a autonomia existencial pode sofrer limitações, no entanto elas só devem incidir excepcionalmente e apenas quando presentes requisitos que comprovem concretamente a necessidade de tal restrição. Por tal razão, a autonomia existencial só admite limites externos e não se volta à realização de interesses alheios aos do seu titular"7. Também importa salientar que o poder-dever de tutela de situações jurídicas extrapatrimoniais conferido aos familiares da pessoa não deve excluir a possibilidade de que terceiros busquem tal proteção8. Nota-se que o próprio rol de legitimados para a tutela de direitos da personalidade não passou incólume a críticas por parte da doutrina, na medida em que o legislador nomeia justamente os herdeiros para a defesa da personalidade da pessoa morta. Neste sentido, observa Anderson Schreiber que o Código deveria ter evitado tal associação indevida, na medida em que tais direitos não seriam "coisas" transmissíveis por herança, de modo que a iniciativa deveria ter sido reconhecida a "qualquer pessoa que tivesse 'interesse legítimo' em ver protegida, nas circunstâncias concretas, a personalidade do morto"9. Sob esse aspecto, impõe-se a preservação da vontade manifestada pela pessoa em vida quanto à destinação de seu corpo após a sua morte, ainda que, em algumas situações, essa vontade seja confrontada com o desejo dos familiares. No caso analisado pelo STJ, embora as irmãs pretendessem sepultar o corpo do falecido pai, prevaleceu o que a outra filha, que convivia de maneira mais próxima com o genitor, havia indicado como o desejo deste. Contudo, ainda que não fosse pleiteado por uma das filhas, tal direito deveria ser preservado como um interesse juridicamente tutelado, atrelado à autonomia existencial que se consubstancia na autodeterminação corporal, refletida também após a morte do sujeito. É preciso considerar, ainda, como ressaltado pelo STJ, que a manifestação de vontade não se restringe às formas testamentárias tradicionais, ou mesmo o codicilo, podendo ser também veiculada por outros meios idôneos, sobretudo ao se considerar o desenvolvimento tecnológico e a recorrente prática de diversos atos por meios eletrônicos. Em casos como o citado, o direito com frequência estará a um passo atrás, exigindo-se do intérprete um verdadeiro esforço interpretativo para reverter o descompasso entre a previsão legal e as demandas decorrentes de novas realidades, sobretudo quando os instrumentos já previstos pelo ordenamento jurídico forem insuficientes ou precisarem passar por um processo de releitura. Cabe, assim, considerando-se a promoção da pessoa humana como eixo norteador, resguardar a autodeterminação corporal do sujeito também sob um aspecto temporal, que se prolonga mesmo após a sua morte. Livia Teixeira Leal é doutoranda e mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada pela EMERJ. Professora da PUC-Rio, da EMERJ e da ESAP. Assessora no TJ/RJ. __________ 1 STJ, 3ª Turma, REsp 1.693.718/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 26.03.2019, DJe 04.04.2019. 2 "A concepção da identidade como um processo complexo e dinâmico, na forma acima, evidencia a sua realização no corpo, que pode ser entendido como expressão material da identidade de cada indivíduo, fiel tradutor de sua biografia". BARBOZA, Heloisa Helena. Disposição do próprio corpo em face da bioética: o caso dos transexuais. In: Débora Gozzo; Wilson Ricardo Ligiera. (Org.). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 133. 3 A doutrina apresenta fundamentos variados para a tutela post mortem de direitos da personalidade. Alguns autores defendem uma espécie de extensão desses direitos após a morte. Na visão de Diogo Leite de Campos, os herdeiros não defenderiam um interesse próprio, mas sim um interesse do falecido, de modo que a personalidade jurídica se prolongaria para depois da morte (CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, n. 67, 1991). Pela teoria clássica, contudo, que possui como parâmetro a relação jurídica intersubjetiva, ou seja, o vínculo entre dois ou mais sujeitos, os direitos da personalidade não seriam transmissíveis, extinguindo-se com a morte do titular. A tutela jurídica desses direitos após a morte do titular poderia, então, ser considerada a partir de óticas diversas, seja como um direito da família atingida pela violação aos direitos do parente morto, como um reflexo post mortem dos direitos da personalidade, como uma espécie de legitimação processual conferida aos familiares ou até mesmo sob uma concepção baseada no interesse público em impedir a violação de tais valores (A respeito do tema, ver: SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Honra e imagem do morto? Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 44, n. 175 jul./set. 2007). Pietro Perlingieri, reconhecendo que além da relação jurídica há situações anômalas que dispensam a intersubjetividade, nas quais o sujeito consistiria em elemento acidental, entende que haveria, no caso dos direitos da personalidade, um centro de interesses a ser tutelado mesmo após a morte do sujeito, enquanto tais interesses fossem relevantes socialmente (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115). Para Maria de Fátima Freire Sá e Bruno Torquato, a tutela post mortem dos direitos da personalidade estaria pautada na esfera de não-liberdade infringida por alguém, ou seja, ter-se-ia nesses casos o deferimento de uma legitimidade processual para a defesa de uma situação jurídica de dever, na qual se insere o morto, em razão do juízo de reprovabilidade objetivada normativamente (SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Honra e imagem do morto? Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 44, n. 175 jul./set. 2007, p. 122). 4 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. XXIII. 5 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 27. 6 Art. 13, CC/02. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. 7 CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A função da cláusula de bons costumes no Direito Civil e a teoria tríplice da autonomia privada existencial. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 14, p. 99-125, out./dez. 2017, p. 102. 8 Destaca Ana Luiza Nevares: "poder-se-ia imaginar casos excepcionais nos quais seria admitida a tutela da personalidade post mortem do falecido por pessoa diversa de seus parentes enumerados nos dispositivos já citados, quando restasse cabalmente configurado o seu interesse de agir diante do caso concreto, tudo em prol da ampla proteção da memória de uma pessoa, sendo tais hipóteses pertinentes principalmente quando o falecido não deixou sucessores, ou quando aqueles deixados já faleceram ou se encontram incapazes. Apesar de não existir propriamente uma obrigatoriedade de ação, há, por outro lado, um poder de controle quanto à tutela da personalidade da pessoa falecida, que poderá ser exercido pelos próprios titulares do poder-dever em relação à ação de seus pares". NEVARES, Ana Luiza Maia. A função promocional do testamento: tendências do Direito Sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 132. 9 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 156.
Texto de autoria de Aline de Miranda Valverde Terra e Paula Moura Francesconi de Lemos A pandemia do novo coronavírus aqueceu o debate em torno de tema ainda incipiente no Brasil, a telemedicina1, assim entendido, nos termos da resolução 1.643/2002 do CFM, o "exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde"2. Diversos procedimentos estão abarcados pelo conceito, muitos dos quais, no cenário atual de propagação alarmante do Covid-19, podem trazer enormes vantagens para todos os atores envolvidos: médicos, pacientes e gestores. A teleconsulta, consistente na transmissão, pelo paciente, de informações acerca de seu estado de saúde ao médico por qualquer meio de telecomunicação, e o telediagnóstico, que permite o diagnóstico por meios eletrônicos, mitigam enormemente os riscos de contágio, já que evitam o deslocamento do paciente até uma unidade de atendimento, expondo não só os demais pacientes bem como os já sobrecarregados profissionais de saúde, para esclarecer suas dúvidas e receber o encaminhamento mais condizente com os sintomas e queixas apresentados. A telepatologia, por sua vez, compreendida como o "exercício da especialidade médica em patologia mediado por tecnologias para o envio de dados e imagens com o propósito de emissão de relatório, como suporte às atividades anatomopatológicas desenvolvidas localmente"3, e a telerradiologia, relativa ao "exercício da Medicina, onde o fator crítico é a distância, utilizando as tecnologias de informação e de comunicação para o envio de dados e imagens radiológicas com o propósito de emissão de relatório, como suporte às atividades desenvolvidas localmente"4, viabilizam a rápida interação entre profissionais das diversas áreas envolvidas com a patologia, sem limitações de espaço ou tempo, a otimizar o atendimento e facilitar o diagnóstico precoce e preciso. Esses procedimentos promovem, evidentemente, a desospitalização e aprimoram o gerenciamento dos recursos, permitindo que os esforços se voltem para aqueles pacientes que, de fato, requerem tratamento ambulatorial ou hospitalar, o que se afigura particularmente relevante diante da realidade brasileira de escassez de recursos. Apesar das inegáveis vantagens oferecidas, o emprego da telemedicina se dá em contexto de indesejável insegurança jurídica tendo em vista a ausência de regramento detalhado que dê conta dos diversos aspectos envolvidos; há, apenas, a lacônica resolução 1.643/20025 e o Código de Ética Médica6, além de resoluções voltadas à regulamentação de procedimentos específicos, como a telerradiologia7 e, mais recentemente, a telepatologia8. Em dezembro de 2018, chegou-se a editar a resolução 2.2279, que admitia a teleconsulta, desde que já tivesse havido o pre'vio estabelecimento de relac¸a~o presencial entre me'dico e paciente (art. 4º, §1º), ressalvada a possibilidade de a relac¸a~o ser estabelecida de modo virtual para cobertura assistencial em a'reas geograficamente remotas (art. 4º, §3º). Por meio da teleconsulta, o médico poderia não apenas proceder ao diagnóstico, mas também prescrever o tratamento adequado, ficando obrigado a realizar os respectivos registros eletrônicos/digitais (art. 5º, VIII, IX, XI). A resolução 2.227/2018, todavia, foi revogada 2 meses após sua edição, em fevereiro de 201910. Ainda que o espectro regulamentar esteja longe de ser o adequado, é suficiente para que dele se possa extrair a legalidade do emprego da telemedicina, sobretudo em situações excepcionais como a que se vivencia. O art. 37 do Código de Ética Médica veda ao médico "prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa". Dispõe, ainda, o §1º que "o atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina". Da conjugação de ambos os dispositivos, duas conclusões se impõem. Em primeiro lugar, o §1º qualifica como lícito o exercício da telemedicina, e remete sua disciplina à regulamentação do CFM, que está consubstanciada justamente na resolução 1.643/2002. Nesse contexto, a Resolução determinou que os servic¸os prestados por meio da telemedicina "devera~o ter a infraestrutura tecnolo'gica apropriada, pertinentes e obedecer as normas te'cnicas do CFM pertinentes a` guarda, manuseio, transmissa~o de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional" (art. 2°), e definiu que "em caso de emergência, ou quando solicitado pelo me'dico responsa'vel, o me'dico que emitir o laudo a distância podera' prestar o devido suporte diagno'stico e terapêutico" (grifou-se) cabendo, contudo, ao me'dico assistente do paciente se responsabilizar profissionalmente pelo atendimento (art. 4°). Em definitvo, embora a resoluc¸a~o 1.643/2002 pouco diga a respeito da operacionalização da telemedicina no pai's, é essa a norma que regulamenta a atividade - não havendo que se falar, portanto, em ausência de regulamentação do §1º, art. 37 - e o faz em consonância com o que dispõe o Código de Ética Médica, o que remete à análise da segunda conclusão: posto a regra pareça ser a proibição de prescrição de tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, vale dizer, sem anamnese - o que pode ser até questionado, considerando-se a autonomia do profissional de saúde e a sua consequente responsabilidade pelos atos praticados -, fato é que, excepcionalmente, "em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo", ela será, indubitavelmente, admitida. De fato, experimenta-se situação de emergência em relação a pacientes possivelmente infectados pelo Covid-19. A lei 9.656/1998 oferece, em seu art. 35-C, conceito de emergência para fins de cobertura obrigatória dos planos e seguros privados de assistência à saúde, que pode servir de parâmetro para a interpretação da exceção prevista no caput do art. 37 do Código de Ética Médica bem como do art. 2º da resolução 1.643/2002. De acordo com o dispositivo, consideram-se de emergência os casos "que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente". Tendo em vista a pandemia ora instalada e a existência de inúmeros grupos de risco, entende-se que o conceito de emergência deve ser alargado, para abarcar não apenas as situações em que o próprio paciente se encontra em risco de vida ou de lesões irreparáveis, mas também aquelas em que haja suspeita de infecção pelo Covid-19, mesmo que o paciente não apresente complicações, já que a altíssima taxa de transmissibilidade o torna poderoso vetor da doença, e coloca em risco diversas pessoas no seu entorno. Nessa direção, a expressão emergência deve remeter tanto àquela individual, quanto à social, pelo que estão autorizados a consulta, o diagnóstico e a prescrição de tratamento por meios eletrônicos e digitais, a despeito da realização de anamnese, em pacientes possivelmente infectados. Em definitivo, em tempos de coronavírus, nenhuma possibilidade deve ser desperdiçada, desde que de acordo com a legalidade constitucional. E a telemedicina, inclusive nas modalidades de teleconsulta e telediagnóstico - dispensada, repita-se, a anamnese -, considerando-se o estado de emergência social, exsurge como arma poderosa, lícita e legítima, a oferecer a todos, médicos, pacientes e coletividade, maiores e melhores chances de êxito na guerra que se trava. Oxalá o misoneísmo não impeça a tecnologia de desempenhar todo o seu potencial nesta árdua batalha. Aline de Miranda Valverde Terra é professora da Faculdade de Direito da UERJ e da PUC-Rio. Professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Mestre e doutora em Direito Civil pela UERJ. Coordenadora Editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. So'cia fundadora do escrito'rio Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Juri'dica. Paula Moura Francesconi de Lemos é professora da PUC-Rio. Professora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Mestre e doutora em Direito Civil pela UERJ; pós-graduada em Advocacia pelo CEPED-UERJ, e pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Membro da Comissão da OAB/J de Direito Civil e de Órfãos e Sucessões. Coordenadora Adjunta de Direito Civil da ESA-RJ. Sócia do Escritório Francesconi & Lemos Advogados Associados. __________ 1 De acordo com Declaração de Tel Aviv sobre Responsabilidades e Normas Éticas na utilização da Telemedicina, a telemedicina é o "exercício da medicina à distância, cujas intervenções, diagnósticos, decisões de tratamentos e recomendações estão baseadas em dados, documentos e outra informação transmitida através de sistemas de telecomunicação" (Adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Tel Aviv, Israel, em outubro de 1999). Acesso em: 17 mar. 2020. 2 Resolução 1.643/2002 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 3 Resolução 2.264/2019 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 4 Resolução 2.104/2014 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 5 Resolução no 1.643/2002 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 6 Resolução 2.217/2018 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. Referida resolução foi alterada pelas resoluções 2.222/2018 e 2.226/2019. 7 Resolução 1.890/2009 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 8 Resolução 2.264/2019 do CFM. Acesso em: 17 mar. 2020. 9 O conteúdo da resolução 2.227/2018 do CFM está disponível. Acesso em: 17 mar. 2020. 10 As razões que levaram o CFM a revogar a resolução 2.227/2018. Acesso em: 17 mar. 2020.
Com enorme alegria iniciamos hoje a coluna Migalhas de Vulnerabilidade. A coluna tem como objetivo apresentar aos leitores considerações sobre os principais dilemas jurídicos que decorrem do exercício concreto da liberdade nas diversas áreas do direito, especialmente quando a autonomia é limitada pela necessidade de proteção dos vulneráveis. O primeiro texto da nossa coluna é dedicado à reflexão sobre os desafios jurídicos que surgem do combate ao novo coronavírus, COVID-19, notificado pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na província de Hubei, China. Atualmente1, 59 países confirmaram 87.137 casos. Há, no Brasil, apenas dois episódios confirmados até o momento, mas o número de casos suspeitos chega a 433 pacientes, todos monitorados pelas autoridades sanitárias brasileiras. Já no final do mês de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o coronavírus é uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Assim como os demais países afetados, a China, epicentro da epidemia, vem dedicando grandes esforços ao combate ao vírus, como se viu com a surpreendente construção de um novo hospital no prazo de 10 dias para receber e tratar pacientes infectados, além de casos suspeitos. Embora tenha recebido duras e pertinentes críticas pela sua atuação ineficiente no início da epidemia, o governo chinês parece ter superado esse quadro com a adoção de ferramentas de combate e prevenção do novo coronavírus, ressaltadas pelo seu alto grau de eficácia. A mais recente delas é o aplicativo "close contact detector", desenvolvido pelo Escritório Geral do Conselho de Estado, em parceria com a Comissão Nacional de Saúde e as empresas China Electronics Technology Group (CETG), para permitir que o usuário do aplicativo identifique se teve contato com alguém que foi infectado pelo vírus. O aplicativo utiliza a grande base de dados de saúde do governo chinês para localizar pacientes confirmados ou com suspeita de terem contraído o coronavírus COVID-9. A partir dessa localização, o aplicativo informa ao usuário se ele está ou esteve em contato próximo com pessoas que oferecem risco, indicando, por exemplo, se o usuário utilizou ônibus, trens ou aviões com pessoas diagnosticadas com o coronavírus. Em caso positivo, o aplicativo recomenda o afastamento do usuário, que é orientado a buscar os serviços de saúde imediatamente para a realização de exames aprofundados. Para a população local, o aplicativo pode trazer, ainda, a possibilidade de reduzir o pânico causado pela desinformação, divulgando dados mais realistas sobre a epidemia. Mesmo que no contexto chinês a noção de privacidade tenha viés mais coletivo do que no Brasil, a criação do aplicativo que toma por base os dados de saúde da população chinesa e que permite a localização de pessoas infectadas pelo coronavírus serve para ilustrar como os avanços da tecnologia na área de saúde podem representar graves ameaças à tutela da privacidade. O compartilhamento de dados de saúde sem o consentimento dos titulares dessas informações carrega enorme potencial para violações atuais e futuras. De fato, os dados pessoais relativos à saúde possuem grande valor para diferentes setores do mercado. Recentemente, as entidades de defesa do consumidor manifestaram-se diante da possibilidade da adoção de um health score no Brasil, que corresponde a uma pontuação baseada nos dados pessoais sensíveis dos pacientes para precificação dos serviços de saúde, que avalia o grau de risco de doença dos usuários. Nesse sentido, de acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC2 em notificação feita em 20193, empresas brasileiras estariam coletando e processando milhões de dados de seus pacientes para implementar um sistema de dados apto a gerar valor na cadeia de saúde. A coleta, feita da forma relatada pelo IDEC, é ilegítima, amplia a desigualdade e gera a exposição indevida de grupos vulneráveis à discriminação, além de violar, evidentemente, o direito à privacidade dos pacientes e a proteção de seus dados pessoais, razão pela qual o tratamento desses dados, da forma como realizado nessas duas situações, é proibido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD, com entrada em vigor prevista para o segundo semestre de 2020. É preciso ressaltar, ainda, que o direito à informação é fortemente lesionado quando o usuário não tem conhecimento sobre a manipulação e o destino de seus dados sensíveis - ideia esta consubstanciada no princípio da finalidade, que implica prévio conhecimento do titular de dados sobre os "propósitos legítimos, específicos, explícitos" do tratamento de seus dados (art. 6º, inciso I, LGPD). Para além do desrespeito à privacidade4 e à informação, a epidemia do novo coronavírus também pode ser cenário de grandes restrições à autonomia extrapatrimonial ou existencial não só dos pacientes diagnosticados e daqueles com suspeita, mas da população em geral. É preciso ter em mente, todavia, que muitas dessas restrições devem ser toleradas diante da necessidade de proteção de interesses socialmente relevantes, como é o caso da saúde da coletividade. Nesse particular, foi sancionada a lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus e prescreve três medidas de combate especialmente interessantes para o ramo do direito da saúde: o isolamento, a quarentena e o tratamento compulsório, todos previstos pelo art. 3 da lei. Destacamos a definição da primeira e da segunda medida. De acordo com o texto legal, considera-se isolamento "a separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus". Já a quarentena, como determina a referida legislação, compreende a "restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus". Com a imediata entrada em vigor da referida lei, em 06 de fevereiro de 2020, os casos suspeitos de contaminação pelo coronavírus deverão ser notificados e, a partir daí, poderão ser adotadas as medidas restritivas de autonomia já mencionadas. Serão isolados, portanto, os pacientes cuja contaminação for confirmada por exame apropriado, enquanto serão colocados em quarentena os pacientes com suspeitas ainda não confirmadas ou que tiveram contato com pacientes suspeitos ou com diagnóstico já confirmado para o novo coronavírus. Alguns desses instrumentos previstos pela Lei já foram utilizados no Brasil. A quarentena foi imposta ao primeiro paciente diagnosticado com o coronavírus em território brasileiro e o isolamento foi aplicado aos brasileiros que regressaram da China no início da epidemia - fato que, aliás, motivou a elaboração de legislação específica para regulamentar as demandas jurídicas oriundas do COVID-19. O tratamento médico compulsório também já ganhou destaque no noticiário nacional com a imposição de internação hospitalar para dois franceses vindos da Espanha, que apresentaram sintomas de gripe assim que chegaram a Paraty, no Rio de Janeiro. O casal foi colocado em imediato isolamento para a realização de exames. Diante da resistência do casal em permanecer no ambiente hospitalar, o caso foi levado ao Poder Judiciário pela prefeitura de Paraty, que obteve decisão favorável à continuidade da internação compulsória até os resultados dos exames descartarem a contaminação pelo COVID-19. Diante de tais situações, cabe indagar: essas medidas, severamente restritivas da liberdade individual, são legítimas? Na legalidade constitucional, o ponto de partida para qualquer investigação sobre a realização dos interesses existenciais é a liberdade para escolher os rumos da própria vida. Mas é preciso compreender também que há circunstâncias que podem relativizar os limites e os espaços de liberdade pessoal. A autonomia privada decorre diretamente do imperativo constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos da República, em seu art. 1, III . Como todo e qualquer direito no ordenamento pátrio, seu exercício não pode ser ilimitado ou absoluto. No contexto jurídico brasileiro, o princípio da liberdade, fundamento da autonomia privada, seja ela existencial ou patrimonial, encontra limites em outro princípio constitucional de grande importância, a solidariedade, também previsto pelo art. 3, I, da Constituição. Sobre a autonomia de cunho patrimonial, a solidariedade opera seus efeitos impondo aos titulares de situações subjetivas patrimoniais a realização de interesses socialmente relevantes nem sempre coincidentes com os interesses particulares dos proprietários e dos contratantes. Já na seara extrapatrimonial ou existencial, a solidariedade também produz efeitos, posto que nenhum campo do direito, seja público ou privado, pode ignorar a força desse imperativo constitucional. Mas se podemos afirmar com clareza que a autonomia extrapatrimonial está sujeita aos limites da solidariedade constitucional, encontramos dificuldades para apontar com a mesma segurança quais são as fronteiras dessa relação. Mesmo que intuitivamente, todos os brasileiros entendem a necessidade de se preservar a saúde da população diante das ameaças trazidas por epidemias, especialmente aquelas causadas por vírus novos, para os quais a população ainda não teve a oportunidade de desenvolver imunidade. Mas essas restrições gozam de legitimidade do ponto de vista jurídico? É preciso considerar que a liberdade poderá sofrer restrições sempre que o seu exercício implicar lesão à coletividade, como é o caso da livre circulação de pessoas diagnosticadas ou sob suspeita do coronavírus. Trata-se, com efeito, de um ato de liberdade com repercussões sociais, capaz de gerar consequências jurídicas que transcendem a esfera jurídica do seu titular e causam lesão ou risco real de lesão à sociedade. Nesses casos, a restrição se impõe como medida necessária para resguardar a integridade psicofísica de terceiros, mas não só. No caso do coronavírus, é preciso considerar que as descobertas recentes revelam a possibilidade de reinfecção pelo vírus, de modo que alguns pacientes já considerados curados se viram novamente diagnosticados, pelo que a restrição à circulação oferece benefícios também ao próprio paciente. Outras questões de igual importância se colocam em um panorama crítico de saúde, como é o caso da disseminação de fake news em tempos de expansão tecnológica. Desde o início da epidemia, a população é bombardeada com informações falsas sobre o surgimento do novo vírus e suas formas de prevenção. O agravamento dessa situação e os riscos que a população corre com a disseminação de informações não verídicas levou a empresa Amazon a proibir a venda de mais de um milhão de produtos que prometiam curas milagrosas ou proteção contra o coronavírus sem qualquer comprovação científica de sua eficácia. Para além do problema das informações falsas e da violação ao direito de informação dos consumidores, a proibição de venda desses produtos também teve o intuito de coibir a prática antisolidária e abusiva de aumento de preços diante da grave crise de saúde que se apresenta5, situação ainda mais dramática diante do quadro de pânico coletivo que leva a população, de forma equivocada, a estocar produtos como máscaras e álcool em gel já em falta no setor de saúde. A escassez de máscaras e produtos de proteção para manejo de pacientes nesse contexto de crise de saúde é causa de grande preocupação para as autoridades no Brasil. Diante dessa situação, o governo brasileiro cogita medidas para restringir as exportações desses produtos para empresas que participaram de licitação, mas desistiram de contribuir com o abastecimento interno, optando pela exportação do material. Além da limitação a exportações, o Ministério da Saúde indicou que não estão descartadas outras intervenções no setor, incluindo a possibilidade de apreensão do material diretamente nas fábricas que descumprirem a determinação de fornecimento para o mercado nacional. A lei 13.979 traz mecanismos para coibir essa prática que torna mais vulneráveis pacientes e profissionais de saúde. Com o intuito de resguardar esses segmentos diante da severa ameaça de desabastecimento de produtos que têm como finalidade o tratamento e o combate ao COVID-19, o art. 3, VII, prescreve a "requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa" como medida de enfrentamento da crise de saúde. Trata-se, com efeito, de intervenção dirigida às empresas com o propósito de reequilibrar o cenário de emergência e resguardar a coletividade, constituindo clara e apropriada incidência do princípio constitucional da solidariedade. Nesse mesmo sentido, tal medida também encontra legitimidade na noção de função social, que decorre da vinculação das empresas à diretriz constitucional que ampara a livre iniciativa em seu valor social, e não apenas individual. Especialmente em tempos de crise na saúde, o princípio da solidariedade reconfigura os limites da liberdade para resguardar a dignidade da pessoa humana, exigindo de pessoas físicas e jurídicas certo grau de sacrifício individual em prol da coletividade Finalmente, é necessário ressaltar que todas as restrições à liberdade individual devem ser guiadas pela razoabilidade e pela necessidade de proteção dos vulneráveis, jamais devem resultar do pânico coletivo fomentado pelo medo exacerbado e pela desinformação. __________ 1 Até o fechamento da coluna, em 2/3/2020. 2 Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. 3 A notificação feita pelo IDEC aconteceu em 2019, mencionando a empresa Dr. Consulta, em trecho que foi utilizado na primeira versão dessa coluna, em 05 de março de 2020. Após a publicação dessa coluna, a assessoria da empresa Dr. Consulta entrou em contato encaminhando nota de esclarecimento a respeito da sua política de coleta de dados. Segue a reprodução integral da nota enviada pela empresa: "O dr. consulta é uma rede de centros médicos que tem por missão e finalidade a gestão de saúde inteligente, que busca promover o acesso à saúde de qualidade à uma parcela da população que não é atendida pelos planos de saúde, tampouco pelo serviço público de saúde; O setor privado de assistência à saúde é altamente regulado no Brasil, existindo uma série de normas específicas a serem observadas, inclusive no que tange ao tratamento de dados pessoais. Desse modo, a gestão ética de dados está no DNA dos produtos e serviços oferecidos pelo dr. consulta, que atualmente adota os protocolos de proteção aos dados de seus usuários, inclusive, medidas para estar em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Esclarece-se, ainda, que os dados coletados e gerados pelo dr. consulta, são utilizados apenas para embasar e melhorar a eficiência dos diagnósticos médicos e o atendimento que é realizado em nossos centros médicos, tudo em conformidade com a regulamentação pertinente, e não são sob nenhuma hipótese compartilhados, comercializados ou mesmo usados para fins de ajuste de preço. O dr.consulta declara seu compromisso no sentido de que qualquer inovação em suas operações terá como norte o amplo respeito à proteção dos dados pessoais de seus usuários. Nesse sentido, a empresa está à disposição para contribuir com a construção de diretrizes aptas a concretizar políticas de privacidade e proteção de dados pessoais em benefício da sociedade no segmento de saúde". 4 A proteção da privacidade e de seus corolários no ordenamento jurídico brasileiro é expressamente prevista na Constituição Federal de 1988, em seu 5º, X[4], e no último artigo do rol de direitos da personalidade do Código Civil de 2002, o art. 21. 5 Informação obtida em BBC News.