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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Palavras iniciais Os meses entre novembro e fevereiro são marcados por fortes chuvas região Sudeste do Brasil que, atrelado com a intervenção humana no meio ambiente, favorece a ocorrência de acidentes naturais como enchentes, transbordamentos de rios, desabamentos de prédios.1 Esse período coincide com as festas de final de ano, férias e recessos, fatores esses que favorecem a procura por viagens que possibilitam maior interação com a natureza. Desse modo, as pessoas se aventuram em regiões de matas, rios, trilhas e cachoeiras, assim como as empresas e os agentes de turismo se esforçam para atender à demanda dos consumidores, sem atentar para os riscos de danos. É nesse cenário que surge o problema dos danos, dos riscos das atividades e da necessidade de forte atuação, com medidas de prevenção e de precaução, a fim de evitar a ocorrência de tragédias como a de Capitólio/MG. Os cânions de Capitólio e sua formação. Capitólio é uma cidade de 8.693 habitantes, situada no sudoeste de Minas Gerais, a 280 km de Belo Horizonte. A construção da usina de Furnas naquela região, entre as décadas de 1950 e 1960, exigiu a transposição do rio Piumhi, que desaguava no rio Grande, para o rio São Francisco, bem como a construção de um dique para evitar que as águas da represa inundassem a cidade. A formação do Lago de Furnas, que por sua magnitude foi apelidado como "o mar de Minas", ocasionou muitos prejuízos socioambientais, mas fez surgir novas paisagens que impulsionaram as atividades turísticas.2 Entre as principais atrações estão os cânions de Capitólio e suas lindas cachoeiras, que podem ser vistos a partir de um mirante ou visitados em passeios de barcos e lanchas, com possibilidade de realização de mergulho sob as cachoeiras.3 O que ocorreu no Capitólio? No dia 8 de janeiro de 2022, ocorreu o desabamento de um enorme bloco de rocha da encosta do cânion de Capitólio, que veio a atingir embarcações de turismo que se encontravam próximas a uma das cachoeiras, arremessando os barcos e seus ocupantes a vários metros de distância, com notícia de 10 pessoas mortas e dezenas de feridas.4 Que tipo de dano é esse? A tragédia de Capitólio se assemelha àquela ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, RS, em janeiro/2013, bem como aos derramamentos de rejeitos de minério que aconteceram em Mariana e Brumadinho, MG, em novembro/2013 e janeiro/2019. Isso porque são episódios que escapam à normalidade dos danos ordinários que acontecem no dia a dia das pessoas, são episódios multicausais e que se relacionam com atividades necessárias ao nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas. Analisando a evolução do fenômeno danoso ao longo da modernidade, percebemos que no início havia apenas o dano culposo, causado por imprudência, negligência ou imperícia do agente, que serviu de base para a formulação da teoria da culpa. Posteriormente, surgiu o dano sem culpa, causado por alguma atividade a cargo de determinada pessoa, o qual serviu de fundamento para a teoria do risco do risco individual. Hodiernamente, há também o dano-acidente ou dano-atividade, inerente às atividades desempenhadas por entidades desindividualizadas, o qual serve de fundamento para a teoria do risco coletivo.  A tragédia de Capitólio, embora à primeira vista possa sugerir a modalidade culposa, parece reunir as principais características do dano-acidente, que está relacionado com atividades inerentes e indissociáveis do nosso modo de vida, que é multicausal e que produz consequências catastróficas sobre as vítimas diretas e sobre a coletividade.5 O que poderia ser feito para evitar tragédias como essa? Imediatamente após o desabamento do paredão de pedra no cânion de Capitólio, o prefeito anunciou o fechamento do acesso ao Lago de Furnas, como medida emergencial, no que foi acompanhado pelos prefeitos das cidades vizinhas, após visitas técnicas de representantes da Defesa Civil.6 Também os peritos da Polícia Civil e da Polícia Federal visitaram o local e abriram investigações para apurar as causas do acidente.7 Tais providências são semelhantes àquelas adotadas em relação ao incêndio na Boate Kiss e aos derramamentos de rejeitos de minério em Mariana e Brumadinho. Depois de ocorridos esses episódios, as autoridades se apressaram em aprovar leis mais rígidas sobre autorização de funcionamento de casas noturnas e sobre o funcionamento das barragens de minério.8 É evidente o descompasso temporal entre o acidente e a adoção dessas medidas, as quais não têm nenhum efeito útil sobre o fato ocorrido. Melhor seria adotar medidas de prevenção e de precaução para evitar a ocorrência do dano, em especial o mapeamento e identificação das áreas consideradas de risco, um plano emergencial para situações de desastre, além da regulação e fiscalização das atividades exploradas no local. De quem é a responsabilidade civil pela tragédia de Capitólio? A ocorrência de um evento danoso dessa magnitude desencadeia uma série de consequências jurídicas de natureza civil, penal e administrativa. É evidente que os barqueiros devem responder criminalmente, de acordo com a culpabilidade de cada um, a ser apurada em processos próprios, assim como as empresas e agências de turismo podem sofrer sanções administrativas em razão do ocorrido. No que toca à responsabilidade civil, incumbe aos causadores diretos dos danos o dever de reparar, com base na culpa, no caso dos barqueiros; e com base no risco individual, com relação às empresas e agências de turismo. No entanto, é possível entrever a possibilidade de responsabilização civil do Estado por falha nos deveres de prevenção e precaução, melhor dizendo, por falha no dever de gerenciar os riscos da atividade. De acordo com o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, compete à União planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas. Na esteira desse dispositivo, a lei 12.608/12 dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil, a cargo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, com o objetivo de monitorar os riscos de acidentes, adotar ações preventivas e prestar socorro às vítimas de catástrofes.9 É certo que, por força do princípio da livre inciativa privada, o exercício das atividades empresariais, como regra, independe de autorização governamental, mas a lei pode impor restrições, consoantes ao grau de risco que ofereçam à população, ao meio ambiente e à sociedade (CF/88, art. 170, parágrafo único).10 No entanto, essa disposição deve ser interpretada em consonância com outros mandamentos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança e a um meio ambiente saudável (CF/88, arts. 5º, 6º, 7º e 225). Desse modo, apesar das recentes modificações legislativas que atribuem maior ênfase à liberdade econômica do que a valores como a segurança das pessoas e da coletividade,11 incumbe ao Estado os deveres de legislação, regulação e fiscalização das atividades empresariais, em virtude do disposto nos arts. 21, XVIII, e 174 da Constituição. No caso da tragédia de Capitólio, não é possível estabelecer a responsabilidade civil direta do Estado, uma vez que os danos foram causados por agentes estranhos às atividades estatais.12 No entanto, é preciso considerar o dever estatal de regulamentar as atividades privadas, mediante avaliação dos riscos, impondo restrições ao seu desempenho e fiscalizando o estrito cumprimento das recomendações e das normas técnicas. Na ausência ou insuficiência de regulamentação e de fiscalização das atividades particulares pelo poder público, é de cogitar-se sobre a responsabilidade civil do Estado quanto à reparação dos danos sofridos pelas vítimas.13 Palavras finais Em síntese, catástrofes como essa ocorrida em Capitólio são multicausais porque combinam as forças da natureza com a exposição das pessoas a situações de risco e a insuficiência de regulação e fiscalização das atividades privadas pelo poder público. Diante de um fato dessas proporções resta a sensação de insuficiência do sistema de tratamento de danos, uma vez que os danos poderiam ser evitados se fossem adotadas medidas de prevenção e de precaução. Do fato ocorrido em Capitólio emergem consequências jurídicas de ordem civil, criminal e administrativa em relação aos agentes e empresas de turismo que são os causadores diretos dos danos. Não se pode perder de vista, porém, que a eventual omissão ou ineficiência quanto aos deveres de regulação e fiscalização das atividades privadas pode posicionar o Estado na linha de causalidade do dano, configurando a sua responsabilidade civil. _____ 1 A esse respeito, confira-se: MINUZZI, Rosandro Boligon. Climatologia do comportamento do período chuvoso da região sudeste do Brasil. Revista Brasileira de Metodologia, 22(3) Dez. 2007. Confira-se também: DEMANGE, Lia Helena Monteiro de Lima. Desastres, responsabilidade civil e áreas de preservação permanente: paradoxo do progresso nômade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 34-41. 2 Disponpivel aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 A respeito dessa modalidade de dano, consulte-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15/16; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme, Curitiba/Porto: Juruá, 2018, p. 223-230; CAVET, C. A. resenha à obra "Responsabilidade Civil por Dano Enorme": de autoria de Romualdo Baptista dos Santos (2018). Revista IBERC, v. 3, n. 3, p. 149-155, 10 dez. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Lei da Boate Kiss (lei 13.425, de 30 de março de 2017), Lei das Barragens (lei 14.066, de 30 de setembro de 2020, que altera a lei 12.334, de 20 de setembro de 2010) e Fundação Renova, instituída por Termo de Ajustamento de Conduta envolvendo diversas instituições públicas e privadas (disponível aqui). 9 A respeito da formulação Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, consulte-se: CARVALHO, Délton Winter de. As mudanças climáticas e a formação do direito dos desastres. Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 18 - n. 3 - p. 397-415 / set-dez 2013. Sobre os sistemas de proteção e defesa civil na Europa e nos Estados Unidos, confira-se: DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A governança dos desastres ambientais no direito comparado norte-americano e europeu. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 303-319. 10 Ver também o art. 3º, I, da lei 13.874/19 e o art. 4º da lei 11.598/07, incluído pela lei 12.874/19. 11 Lei 12.874/19 (denominada "Declaração de Direitos da Liberdade Econômica") e lei 14.195/21, frutos da conversão das MP 881/19 e 1.040/21, respectivamente. 12 De acordo com o art. 37, § 6º, da Constituição, o Estado responde pelos danos causados por seus agentes. 13 Na França, por decisão do Conselho de Estado proferida em março de 2004, foi reconhecida a responsabilidade do Estado por descumprimento dos deveres de prevenção e precaução em relação aos trabalhadores vítimas de poeira de amianto (VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais, p. 123).
Lasciate ogni speranza voi ch'entrate (Deixai qualquer esperança, vós que entrais). O conhecido verso que se encontra na porta de entrada para o Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, obra prima de Dante Alighieri, é de ser lembrado quando se trata de responsabilidade civil.  À primeira vista parece haver exagero nesta menção, visto ser o tema de há muito legislado e debatido pela doutrina e jurisprudência. Contudo, talvez só agora, no curso do século XXI, seja possível se vislumbrar melhor a dimensão, a dinamicidade, complexidade, enfim a dificuldade da matéria que já alcança contornos inimagináveis, as quais desafiam de modo constante, se não permanente, tudo que já se construiu e/ou assentou sobre a questão. Este último termo é bastante adequado quando se trata de responsabilização civil, que requer exame e suscita discussão, não raro diante de situações cotidianas. As Migalhas de Responsabilidade Civil publicadas pelo IBERC durante o ano de 2021 são prova cabal do grau de amplitude e diversidade temática compreendido no âmbito da responsabilização civil. Uma incursão, ainda que breve, no que foi escrito naquele período revela a multiplicidade das questões existentes e a riqueza dos debates já postos, e permite identificar os diferentes caminhos que estão sendo trilhados e os que já se anunciam. Registre-se, de início, que o ano de 2021 foi marcado, mais do que o anterior, pela pandemia de Covid-19, fato que por si só constitui um cenário de riscos e instabilidades, quando não de paralisação total ou parcial, de todas as relações sociais. A estagnação não foi absoluta graças à verdadeira "transferência" de múltiplas atividades para a internet, como se a sociedade tivesse se "transferido" para a internet, dando curso a uma intensa vida virtual, a qual certamente não retornará, pelo menos em parte, à modalidade presencial. Dezenas de Migalhas foram escritas nesse período, dentre as quais algumas serão destacadas em razão dos temas abordados, por balizarem os tortuosos e intrincados rumos da questão da responsabilidade civil. É indispensável lembrar que as regras básicas, de caráter geral, sobre responsabilidade civil se encontram no Código Civil, que tem origem em um projeto aprovado em meados do século XX, por conseguinte elaborado por e para uma sociedade bastante distinta da existente no século XXI. Não obstante o processo de atualização a que o citado projeto foi submetido e de o Código ter sido promulgado quando já vigente a Constituição da República de 1988, os fatos atropelaram o Direito. A estonteante velocidade dos avanços tecnológicos e médico-científicos, aliados às alterações das relações sociais daí resultantes, acabam por tornar o regime de responsabilização constante do Código Civil insuficiente para solucionar os problemas que se apresentam. Nesse sentido, observe-se que o franco acolhimento da possibilidade de reparação do dano exclusivamente moral pelo Código Civil de 2002 (art. 186 c/c 927), na esteira do preconizado pela Constituição da República (art. 5?, V), teve ares de novidade à época. Desde então se desenrolam debates especialmente sobre a liquidação desse tipo de dano.1 O próprio debate sobre o conceito de dano moral, que parecia superado, se renova especialmente em decorrência dos diversificados meios de comunicação via internet, que tem alcance mundial em poucos minutos, se não segundos. Mais complexa se torna em tais casos a quantificação dos danos. Além das situações danosas virtuais, as aceleradas conquistas da ciência médica, especialmente as propiciadas pela tecnologia, se por um lado salvam e prolongam a vida humana em casos jamais pensados, por outro geram intrincadas situações jurídicas. Servem de exemplo as interferências em processos de nascer e morrer, durante séculos tidos como naturais, bem como a alteração de características biológicas determinantes da vinculação sexo/gênero. As técnicas de reprodução assistida, os transplantes e os procedimentos para a denominada "mudança de sexo", que se tornaram práticas cotidianas, em sua quase totalidade são carentes de regulamentação legal adequada. Assim sendo, a responsabilização pelos danos decorrentes de tais procedimentos médicos se submetem, em regra, à normativa civil a qual, não raro, não contempla de modo satisfatório sua reparação, ou melhor, sua composição, visto serem irreparáveis em muitos casos. Não bastasse a omissão legislativa, que de todo dificulta o tratamento jurídico da matéria, constata-se que muitas das citadas situações jurídicas apresentam natureza dúplice,2 na medida em que envolvem, há um só tempo, interesses pessoais e patrimoniais. Observe-se que os procedimentos citados implicam forte interferência no corpo humano, a exigir o consentimento do paciente, muitas vezes tratada em meio à pactuação de honorários. O surgimento de embriões excedentários, fruto da técnica de fertilização in vitro, ensejou contratos de "guarda" de embriões humanos, cuja natureza jurídica está longe de ser pacificada. O descuido na guarda desses embriões, do qual resulte sua morte, é um dano moral ou configura, especialmente para os que os equiparam a pessoa, uma lesão equiparável a um homicídio culposo? Nessa linha as indagações se acumulam e atingem as pesquisas que envolvem seres humanos, as quais somente podem ser realizadas se houver o consentimento livre e esclarecido dos participantes, que é uma autorização dada ao pesquisador responsável para que possa aplicar uma terapia não consagrada pela classe médica. No caso da pesquisa de novos fármacos se incluem as vacinas, que grande polêmica suscitam em tempos de pandemia. Quem deve responder pelos danos causados pelo uso experimental da vacina contra a Covid-19? O Estado ou os fabricantes da vacina? Quem responde pela prescrição off label3 de medicamentos contra a Covid-19? O Estado que determina seu uso e os distribui ou o médico que os prescreve? Esses danos relativos à COVID-19 são individuais ou coletivos? Algumas situações jurídicas familiares têm ensejado discussões quanto à configuração ou não de um dano passível de ressarcimento, das quais são bons exemplos o descumprimento dos deveres conjugais e do pais com os filhos. Tais controvérsias, que não são novas, se somam às várias outras que persistem e/ou se renovam ao longo dos anos. As novidades no que tange à responsabilização civil se encontram nas interrelações da internet com a inteligência artificial e a robótica, das quais resultam artefatos que se integram de modo quase imperceptível ao dia a dia, geralmente em caráter permanente. Embora não sejam em princípio perigosos, esses artefatos podem causar danos patrimoniais ou extrapatrimoniais. Observe-se, contudo, que o tradicional fato da coisa, sobre o qual muito já se discutiu, ganha novos contornos, visto que além de interagirem com os humanos, algumas máquinas têm certa margem da autonomia, como se verifica com a tecnologia machine learning, vinculada à inteligência artificial, que possibilita os sistemas "aprenderem" com dados a tomar certas decisões com um mínimo de intervenção humana.4 Temas como mudança climática, doação de gametas humanos, violação dos deveres conjugais, termo de consentimento e responsabilidade médica, liberdade de expressão, classificação de riscos na inteligência artificial e na robótica, prática de stalking, Estado e danos sociais, adoção, cirurgias robóticas e assédio moral digital, dentre outros de igual importância, que foram tratados pelas Migalhas demonstram bem as múltiplas faces da responsabilidade civil. Parece evidente que as regras existentes, pelos motivos acima expostos, exigirão constante esforço interpretativo da doutrina e dos tribunais para atender tamanha diversidade de questões que não apenas abalam diversos entendimentos assentados, como envolvem situações jurídica inéditas, em especial no que respeita à "relação" homem-máquina. Algumas constatações podem ser feitas no limiar da segunda década do século XXI em relação à reparação de danos, a saber: a) paralelamente às situações desconhecidas no mundo jurídico, há permanência de antigos debates, ainda que sob nova roupagem; b) a superação da tradicional distinção entre situações jurídicas patrimoniais e existenciais perde sua rigidez, com importantes repercussões em todo o campo obrigacional; c) a franca emergência jurídica de situações não novas, como as técnicas de reprodução assistida, presentes no Brasil dede a década de 1980; d) a célere incorporação à sociedade dos avanços tecnológicos, ao ponto de ser criada uma "vida digital". Deve-se considerar que todos esses acontecimentos têm como pano de fundo o complexo fenômeno da globalização, que caracteriza as sociedades contemporâneas e apresenta contradições e questionamentos de diferentes ordens. Como esclarece Fermin Roland Schramm, há nessas circunstâncias novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", mais integrado e mais diferenciado, e em rápida transformação e crescente complexidade. Neste contexto de novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", há a consagração de novos valores que provocam tensões tanto conceituais como factuais próprias de um mundo globalizado e interconectado.5 Indispensável é ressaltar que diante da verificação de valores peculiares à globalização e do avassalador crescimento da tecnologia, mais do que nunca, é preciso que se cumpram os princípios constitucionais voltados para a proteção da pessoa humana, especialmente quando se trata de responsabilização civil. *Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil e Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. __________ 1 Sobre o assunto ver TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, p. 339-342. 2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídica dúplices: continuando o debate, controvérsias sobre a nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In Contratos, Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. Coordenação: Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues. Foco: São Paulo, 2019. 3 Medicação off label é indicação do profissional assistente que diverge do que consta na bula. Ver aqui. Acesso: 13/12/2021. 4 LUDERMIR, Teresa Bernarda. Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina: estado atual e tendências. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Estudos Avançados, v.35, n.101, 2021. Disponível aqui. Acesso: 02.12.2021. 5 SCHRAMM, Fermin Roland. ¿Existe el deber ciudadano de participar en la investigación? In: Medwave, año XII, nº 5, Junio, 2012, passim. Disponível aqui. Acesso em: 02.12.2021.
Este artigo tem por objetivo trazer uma breve análise da possível responsabilidade civil dos influenciadores digitais em um contexto publicitário. Na sociedade contemporânea, a publicidade é um instrumento de formação do consentimento do consumidor. Com a massificação das relações negociais e a divulgação de produtos e serviços por meio de sofisticadas técnicas persuasivas, há necessidade de um maior controle jurídico da publicidade1. O CDC, ao tratar da publicidade, prevê alguns princípios, estabelece uma regra diferenciada para distribuição do ônus da prova e traz os conceitos de publicidade enganosa e de publicidade abusiva. Dentre os princípios estabelecidos pelo Código, o primeiro deles é a vinculação do fornecedor àquilo que foi veiculado (art. 30). Como prática comercial, a publicidade é dotada de um caráter pré-contratual. Se o contrato de consumo vier a ser celebrado, o fornecedor, via de regra. fica obrigado aos termos do que foi estabelecido no anúncio publicitário. Outro princípio importante para a controle jurídico da publicidade é a previsão contida no artigo 36 do CDC, que descreve a necessidade de identificação da publicidade. Com base na boa-fé objetiva, o consumidor deve, ao receber a mensagem, identificar imediatamente que aquela comunicação está voltada para a aquisição de um produto ou serviço. Busca-se o controle da publicidade velada ou oculta. Ainda no âmbito protetivo do Código, há uma regra da distribuição do ônus da prova no contexto publicitário. O artigo 38 do CDC atribui o ônus da prova da veracidade da informação ou da comunicação publicitária e a correção destas ao fornecedor. De acordo com a redação do dispositivo, é possível constatar que cabe ao consumidor tão somente o ônus da afirmação de que a informação ou a comunicação publicitária são inverídicas ou incorretas, para que recaia sobre o fornecedor o ônus da comprovação em sentido contrário àquilo que foi informado pelo consumidor. O CDC utiliza conceitos distintos para a publicidade enganosa e a abusiva. A primeira emprega o critério da falsidade ou do vício do consentimento do erro sobre o objeto previsto no CC (artigo 139, III). O fornecedor utiliza-se de ardil capaz de induzir o consumidor a acreditar nas características de determinado produto ou serviço. A publicidade abusiva atenta contra os valores éticos da sociedade e revela comportamentos que induzem o consumidor à possível prática de atos contrários às suas saúde e segurança. Ambas são reconhecidas como publicidade ilícita. Além do âmbito jurídico de controle, há um sistema de autorregulamentação da publicidade. Há uma disciplina privada da publicidade por meio do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e do Código Brasileiro de Regulamentação Publicitária2. Desta forma, é possível afirmar que vigora um sistema misto de controle da publicidade, em que se conjuga autorregulamentação e participação da Administração e do Poder Judiciário. Neste contexto de publicidade e de técnicas persuasivas para o incremento do consumo, surgem os influenciadores digitais. Segundo Marcos Inácio Severo de Almeida, Ricardo Limongi França Coelho, Celso Gonçalves Camilo-Junior e Rafaella Martins Feitosa de Godoy "influenciadores digitais são formadores de opinião virtuais que representam uma alternativa para empresas que confiam na comunidade reunida em torno desses perfis como público-alvo da divulgação".3Em clássico escrito, Paulo Jorge Scartezzini Guimarães tratou da publicidade e da responsabilidade civil das celebridades que dela participam4. Embora celebridades e influenciadores digitais, essencialmente, possam ser sujeitos distintos, ou seja, uma celebridade pode não ser influenciador digital, há um inegável ponto de contato entre eles: a finalidade de aproximar o consumidor do produto ou serviço veiculado.  Há um propósito específico na utilização deste intermediador, qual seja, atuar na formação do convencimento do consumidor, para que a sua tomada de decisão seja direcionada para a aquisição de determinado produto ou serviço. De acordo com Caio César do Nascimento Barbosa, Michael César Silva e Priscila Ladeira Alves de Brito5 [...]Ante as inovações da era digital, surge figura similar às celebridades, os chamados influenciadores digitais (digital influencers), indivíduos que via de regra saíram do anonimato e por meio de determinados atributos, tais como, carisma, criatividade e credibilidade, em áreas específicas, conquistaram milhares de seguidores em redes sociais, tornando-se, pelas novas gerações, modelos a serem seguidos.  A utilização desta técnica para incremento de consumo pode gerar um desvio na racionalidade do consumidor, com a construção de vieses (desvios cognitivos), seja por meio de um viés de adesão (decidir de uma determinada forma porque outras pessoas assim o fazem), ou por meio de um viés de confirmação (tomar uma decisão na crença de que o produto ou serviço é atestado por aquele intermediador). Com base em toda esta proporção assumida pelos influenciadores digitais, surge a discussão em torno da sua responsabilização civil. No caso, a responsabilidade civil pode ser discutida à luz do controle jurídico existente sobre a publicidade, bem como sobre a existência de um fato ou vício do produto ou serviço. Inicialmente, é importante destacar que o influenciador digital é considerado fornecedor por equiparação, o que permite o seu enquadramento em uma relação jurídica de consumo.  Segundo Leonardo Roscoe Bessa: "O CDC, ao lado do conceito genérico de fornecedor (caput, art. 3º), indica e detalha, em outras passagens, atividades que estão sujeitas ao CDC"6. Para o autor, todos aqueles que participam do contexto publicitário, direta ou indiretamente, são considerados fornecedores equiparados. A responsabilidade civil decorrente de um fato do produto ou do serviço dispensa a comprovação do elemento culpa. É importante abordar o conceito criado pela doutrina de acidente de consumo, que está voltado para a proteção da incolumidade físico- -psíquica do consumidor. Trata-se da tutela da saúde e da segurança do consumidor, cujos defeitos de concepção, produção ou informação atuam em desconformidade com a legítima expectativa. As hipóteses de vícios do produto ou do serviço estão previstas, respectivamente, nos artigos 18 e 20 do CDC. Os vícios podem ser de qualidade ou de quantidade. Os primeiros encontram-se em desconformidade com a informação prestada e, na segunda espécie, há diversidade do peso ou da medida. Nos vícios de qualidade, há disparidade do produto ou do serviço quanto ao que foi ofertada e a legítima expectativa do consumidor, a redução do valor daquele ou a informação prestada não se mostrou clara e adequada. Em relação ao contexto publicitário, caso haja uma publicidade ilícita, seja porque se trata de publicidade enganosa ou abusiva, ou mesmo uma publicidade velada ou oculta, há a prática de um ato ilícito, violador da boa-fé objetiva. No caso, basta a veiculação da publicidade sem identificação, enganosa ou abusiva, sem a necessidade da demonstração do dolo, para que se possa aferir a existência da responsabilidade civil do influenciador digital. Contudo, quando a responsabilidade civil é tratada na perspectiva de um fato ou vício do produto ou serviço, a discussão assume contornos mais específicos. Em relação ao fato do produto, o CDC estabelece uma responsabilidade diferenciada para o comerciante (art. 13). No que diz respeito ao fato do serviço, há a responsabilidade subjetiva para o profissional liberal (art. 14, §4º). Além do mais, o defeito pode ter como origem a falta de informação ou o próprio defeito em si. Neste contexto, chega-se a sustentar a inexistência de responsabilidade daquele que veicula a publicidade7, ou até mesmo a responsabilidade subjetiva no caso de fato de serviço, pois o influenciador digital pode ser um profissional liberal. Quanto ao vício do produto ou serviço, o CDC não traz diferenciação em relação às espécies de fornecedores, o que possibilitaria o enquadramento da responsabilidade objetiva. Assim, quando existe uma disparidade entre aquilo que é ofertado e aquilo que é entregue, há um maior consenso sobre a possível responsabilização civil, em decorrência de os influenciadores digitais promoverem o produto ou serviço e influenciarem o consumidor na tomada de decisão, o que atrairia a ideia do risco-proveito. Diante de tudo o que foi exposto, conclui-se que o influenciador digital pode ser enquadrado como fornecedor por equiparação e a ela ser aplicado o CDC. No contexto da publicidade ilícita, a responsabilidade civil decorre da prática de ato contrário à lei e a sua obrigação de indenizar pode atingir o âmbito individual e/ou coletivo. No caso de a responsabilidade civil ser tratada à luz do fato do produto ou do serviço, a discussão sobre a responsabilidade civil assume aspectos mais específicos e propõe-se a análise casuística da situação.   ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem Lidera sua Opinião? Influência dos Formadores de Opinião Digitais no Engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: ANPAD, 2018, v. 22, n. 1. BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 SILVA, Michael Silva; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Disponível aqui. Acesso em 11 dez 2021. ______________ 1 BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 2 CONSELHO NACIONALDE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR). Código. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.conar.org.br/codigo/codigo.php. Acesso em: 11 dez 2021. 3 ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem Lidera sua Opinião? Influência dos Formadores de Opinião Digitais no Engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: ANPAD, 2018, v. 22, n. 1, p. 16. 4 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 161. 5 BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. Também deve ser analisada a publicação de Michael César Silva, Caio César do Nascimento Barbosa e Glayder Daywerth Pereira Guimarães "A reponsabilidade civil dos influenciadores digitais na 'era das lives'. Disponível aqui. Acesso em 11 dez 2021. 6 BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Org).  Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.1025). 7 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.221.  
I. Introdução A responsabilidade civil do profissional médico está centrada em causas tão complexas que a tornam diferenciada em relação ao regime geral previsto no Código Civil. A medicina é ciência inexata. O ato médico, de fato, está sempre sujeito a infortúnios decorrentes da própria natureza humana e a atuação do profissional médico não basta para o sucesso do tratamento dispensado. Nessa senda, o médico é o agente protagonista do sistema de saúde. É o profissional tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para o resguardo da saúde do ser humano, mediante o exercício de atos privativos ou não da medicina. As propostas do presente trabalho resumem-se a apontar alguns fatores da atividade médica que qualificam o regime da responsabilidade civil do profissional como especial, analisar o regime da relação jurídica estabelecida e definir um sistema de distribuição do ônus da prova nas demandas ajuizadas. II. Regime especial da responsabilidade civil médica A medicina está sujeita a múltiplos fatores, endógenos e exógenos, que podem impedir o fim a que se destina. Em decorrência de seu notável componente aleatório, raramente pode ser garantido ao paciente um determinado resultado pela prática médica despendida. Toda a atividade desenvolvida pelo médico, das mais simples à mais complexas, por mais precisa e exata que seja, está a depender das reações do paciente. É impossível, na prática, a garantia de resultados precisos e determinados. Aliada a esta peculiar característica da ciência médica e que também tem influência no regime jurídico da responsabilidade civil do profissional médico, qualificando-o como especial, urge constatar que a conduta geradora do dano, necessariamente, deve decorrer da deficiente atuação técnica do profissional, segundo as regras comuns da ciência médica, no seu atual estado de evolução. Trata-se da infração da denominada leges artis: regra de medição de conduta do médico, tendo como parâmetro de valoração a correção ou não do procedimento adotado em conformidade comparativa com a atuação médica adequada e exigida de um mesmo profissional em casos semelhantes. A relação médico e paciente é de confiança. O paciente deposita no médico a esperança de aliviar ou fazer cessar seu sofrimento, refletindo toda a expectativa no seu atuar, mesmo que nada ou pouco saiba sobre seu passado e sua formação. O médico tem como objetivo central diagnosticar o mal e dispensar o tratamento adequado para o bem estar do paciente. Logo, ainda que não exista declaração de vontade como manifestação expressa de consentimento, a relação estabelecida entre o médico e o paciente é preponderantemente contratual. A prestação principal do médico é a de realizar o tratamento adequado para a enfermidade do paciente e também cumprir com os demais deveres colaterais decorrentes de sua atividade profissional, entre os quais, aqueles previstos nas regras éticas dos órgãos de classe. Ao paciente, é incumbida a prestação principal de honrar os honorários e de cooperar nas informações adequadas e no cumprimento das determinações prescritas pelo profissional. Por tudo, o campo da responsabilidade civil do médico exige a ponderação de fatores peculiares e próprios que o qualificam como especial, tornando a imputação mais complexa em comparação ao regime comum e geral da responsabilidade civil. Isso reflete nos pressupostos do regime especial da responsabilidade civil do médico. III. Responsabilidade civil do médico No campo médico, a responsabilidade civil é aquela em que se imputa ao profissional médico a obrigação de reparar o dano (patrimonial ou extrapatrimonial) causado ilícita e culposamente em desfavor do paciente, por má atuação técnica (erro, falha de tratamento etc) ou desrespeito aos preceitos éticos vigentes no campo da medicina, tendo sempre em consideração o atual estágio de conhecimento das regras específicas da profissão. E assim sendo, diante da necessidade de analisar efetivamente a conduta do profissional médico a responsabilidade civil médica é eminentemente subjetiva (art. 951 do CC) pois imprescindível o juízo de valor sobre o comportamento exigido do profissional médico no caso concreto, para aferição do elemento culpa. Para a caracterização do dever de indenizar não basta a presença do ato médico. É imprescindível que esse ato seja ilícito. A ilicitude, objetivamente considerada, surge consubstanciada na prática de atos pelo profissional médico que se afastam das normas ou regras técnicas reconhecidas, regulamentadas e fiscalizadas pelos órgãos de classe, levando-se em consideração que a atividade médica está sempre condicionada pela informação científica disponível no momento da sua ocorrência, pelas recomendações dos órgãos disciplinares e pelo princípio ético geral da prudência.  A medida para a apuração da linha tênue entre a atuação lícita e ilícita do profissional da medicina está necessariamente na avaliação abstrata da conduta do médico em razão do conjunto geral de regras da ciência médica, levando-se em consideração todas as características e circunstâncias especiais do caso concreto analisado. Na proporção em que a conduta concreta do profissional esteja em conformidade com as regras gerais da ciência médica, nos moldes apresentados mediante um juízo abstrato de valor, afasta-se o reconhecimento de qualquer ilegalidade do ato praticado. Do contrário, distanciando-se a conduta do médico daquilo que seria exigido pelas regras da ciência nas mesmas situações de tempo, modo e condição, configurada estará a ilegalidade do ato realizado. Também comete ato de ilegalidade com a violação de qualquer norma legal, regulamentar ou estatutária que regule a relação profissional mantida com o paciente (infrações a deveres acessórios). A culpa, em termos genéricos, é o juízo de censura do ordenamento jurídico que recai sobre a conduta ilícita do agente. Com a presença da culpa, o ato ilícito praticado, produtor de um resultado danoso, é imputado ao agente. Em termos específicos, a culpa é a violação ou inobservância do dever objetivo de cuidado exigido pela natureza do ato médico praticado, apto a produzir um resultado danoso não querido e nem previsto, entretanto, previsível, sendo que poderia, com sua atenção, ter sido evitado. O comportamento praticado pelo médico será considerado culposo quando este agir, no caso concreto, com dolo ou culpa (em sentido estrito). Para a aferição do ato culposo o ordenamento jurídico exige a realização, em abstrato, de uma avaliação do comportamento realizado, tendo como critério comparativo de padrão o comportamento do bom profissional da medicina, nas mesmas circunstâncias pessoais e nas mesmas condições de tempo e de lugar do caso concreto avaliado. Não é tarefa fácil definir e provar o comportamento culposo do profissional médico em relação às regras da profissão, sendo quase obrigatório que a instrução processual, para a formação da convicção do magistrado, valha-se do auxílio de uma perícia. O último pressuposto necessário para a configuração da responsabilidade civil é o nexo de causalidade (art. 403 do CC) que deve existir entre o prévio comportamento ilícito e culposo e o consequente resultado danoso. Entre as várias condições que contribuíram de qualquer forma para a produção do resultado dano, é importante destacar aquela que deve ser considerada como causa, pois imprescindível para tal desiderato. Parte da doutrina adota a teoria da causalidade adequada1. Só existirá responsabilidade se o fato, por sua própria natureza, for próprio ou apto a produzir aquele determinado dano, tendo como crivo o curso natural das coisas, de forma genérica e mediante uma equação de probabilidade, examinada em abstrato (tal fato teria acarretado tal consequência em quaisquer condições de normalidade). De outro lado, pela teoria do dano direto e imediato, na subteoria da necessariedade da causa2 é considerada causa para a produção do resultado o antecedente fático que, no plano concreto e diante das circunstâncias apresentadas, mantém relação direta e imediata com o dano produzido, num vínculo de necessariedade, por não existir outra condição que explique melhor o dano. Por ser a responsabilidade por culpa médica um regime especial de reparação dos danos, pela complexidade do direito material litigioso, existe também, como consequência inevitável, um reflexo desta dificuldade no campo processual, designadamente durante a fase da instrução probatória e especialmente na distribuição do ônus da prova. IV. A questão do ônus da prova na responsabilidade civil do médico. As regras sobre o ônus da prova estão dirigidas tanto para as partes (ônus da prova subjetivo) quanto para o juiz (ônus da prova objetivo). Enquanto regra de conduta para as partes, o ônus probatório impõe a faculdade de que as partes dispõem de provar os pressupostos fáticos que invocam como fundamento de suas respectivas pretensões e defesas. É dizer, de outra forma, quem deve fazer a prova do fato controvertido alegado em juízo para não sofrer o risco de um resultado desfavorável em caso de não formação da convicção do julgador como consequência da prova frustrada ou não realizada. É o aspecto subjetivo do ônus da prova. Direito processual ligado à atividade probatória das partes. O ônus probatório como regra de julgamento para o juiz revela-se como solução para o deslinde da lide nas hipótese exclusiva em que o julgador, transcorrida toda a instrução probatória realizada, não se convencer sobre a veracidade dos fatos alegados pelas partes, ante a ausência de produção de provas sobre determinado fato relevante e controvertido ou por sua obscuridade ou insuficiência, impondo-se ao juiz o dever de solucionar a lide segundo uma regra de julgamento pré-determinada (será sucumbente quem tinha o ônus subjetivo e não cumpriu adequadamente o encargo). A regra da distribuição do ônus da prova é, em geral, estática (art. 373, caput do CPC). Impõe-se às partes obediência ao comando legal, sob pena de sofrer as consequências desfavoráveis que surgem pela falta ou insuficiência de prova para o julgamento da demanda, em especial, o não acolhimento pelo juízo da pretensão deduzida. Ocorre que, por força de disposição legal, essa regra geral da distribuição do ônus probatório pode ser modificada. É a chamada e conhecida inversão do ônus da prova (flexibilização do ônus subjetivo), que ocorre quando não recai sobre a parte tradicionalmente onerada com a prova do fato o ônus de demonstrar a verdade, mas, sim, sobre a contraparte, que então terá a incumbência de provar o fato contrário. A inversão do ônus da prova, enquanto regra de conduta para as partes (ônus subjetivo), necessariamente impõe uma presunção legal. Invertido o ônus da prova, presume-se provado o fato que sustenta o pressuposto fático favorável à parte beneficiada pela inversão. Logo, a parte que, em tese (pela regra geral), tinha o ônus da prova, fica desonerada, dispensada deste encargo. De outro lado, a parte que, pela regra geral, não tinha qualquer ônus probatório em relação a esse pressuposto, agora tem o encargo exclusivo de provar o fato contrário. A legitimidade para inversão do ônus da prova demanda base legal. Não é uma medida aleatória do juízo. O Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, VIII) dispõe, como medida de proteção, a tutela geral da inversão como direito básico do consumidor, presentes os requisitos legais da verossilhança da alegação ou hipossuficiência técnico-econômica. Da mesma forma é a dicção do Código de Processo Civil (art. 373, § 1º) que diante das peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade do autor em cumprir o encargo probatório e, contrariamente, a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelo réu, impõe que o juiz poderá inverter (flexibilizar) o ônus subjetivo da prova.Em ambos os casos, trata-se de regra de procedimento para as partes e deve ser definida antes da instrução processual. Nesse quadro, o paciente lesado, autor da ação indenizatória, com a inversão do ônus fica excluído do encargo de provar a culpa do médico no caso concreto, ou seja, presume-se que o médico agiu com culpa para a produção do dano objeto de indenização, nada contribuindo, nesse sentido, para a formação da convicção do julgador. De outro lado, o encargo probatório da contraprova é exclusivo do profissional médico. Cabe a ele demonstrar, durante a instrução, que não agiu com culpa para a produção do resultado danoso ou que o evento lesivo teve como causa um fator estranho à sua conduta profissional. Havendo, ou não, a inversão do ônus da prova no caso concreto, nos termos acima expostos, uma das partes (a desincumbida do encargo) assumirá provavelmente uma atividade passiva e inerte em termos probatórios, já que o encargo de provar os requisitos legais necessários para o dever de indenizar será de incumbência exclusiva do autor paciente (quando não inverte) ou do réu médico (quando inverte). Propõe-se, no entanto, que nas demandas de responsabilidade civil médica haja, necessariamente, um esforço probatório recíproco entre as partes litigantes para o esclarecimento da verdade real e formação da convicção do julgador, fundamentado no princípio da solidariedade e cooperação processual. Para tanto, a inspiração é a teoria da carga probatória dinâmica de Jorge Walter Peyrano4. Por essa teoria, a flexibilização ou dinamização do ônus da prova ocorre como regra de julgamento, indicativa de como deve decidir o julgador quando não encontre os substratos probatórios sobre os quais deve basear sua decisão, permitindo o julgamento do mérito e evitando o non liquet. Nas situações excepcionais em que o magistrado atua sem a formação efetiva da convicção constitui-se em uma pauta de valoração do julgador, atribuindo, em desfavor da parte que tinha as melhores condições fáticas, profissionais, técnicos e econômicas, o encargo de suportar a eventual falta ou insuficiência probatória, desacolhendo sua pretensão. Apoiado sobre todo o conjunto probatório realizado pelas partes durante o curso da instrução processual, e  apenas se permanecer presente o estado de dúvida sobre a veracidade dos fatos controvertidos apresentados, o magistrado prolata sua decisão em desfavor da parte que estava em melhores condições para a realização da prova e, mesmo assim, não foi capaz de demonstrar satisfatoriamente a veracidade dos fatos afirmados em juízo. Portanto, a solução apresentada independe da posição processual das partes e da natureza dos fatos alegados. Também não guarda nenhuma relação com a inversão ou alteração do ônus subjetivo da prova, impondo a colaboração efetiva do autor e do réu na instrução processual e na busca da verdade material possível. E esse ponto é fulcral para sua compreensão. A adoção da teoria não significa que a parte autora da demanda indenizatória esteja isenta do encargo de produzir prova sobre a culpa do médico ou nexo de causalidade, ou seja, não lhe confere a vantagem de alegar os fatos que consubstanciam sua pretensão e esperar comodamente que a parte devedora (o profissional médico ou hospital) comprove o fato contrário, por força de eventual inversão do ônus subjetivo. A teoria da carga probatória dinâmica impõe a efetiva contribuição das partes para a busca da verdade real, exigindo um comportamento probatório ativo de ambas, sob pena de sofrer os efeitos da falta ou insuficiência da prova, com a sucumbência da pretensão. Para sua operacionalização prática é imprescindível que o órgão julgador, necessariamente antes do início da fase probatória, advirta as partes sobre a possibilidade de aplicação da teoria da dinamização da carga probatória. no caso concreto, para evitar qualquer surpresa na sentença. Implicitamente, ainda, tem o condão de convocar as partes para adotarem uma conduta processual cooperativa, leal, baseada na boa-fé processual e na busca da verdade real processualmente atingível para o caso concreto, tornando a esfera ambiental do processo a mais propícia possível para um julgamento justo ou equânime. A manifestação judicial de advertência da possibilidade de aplicação da teoria não tem o poder de antever, de forma definitiva, qual das partes está em melhores condições de realizar a prova. É fato que essa conclusão somente será possível após a instrução processual e somente será necessária diante do não convencimento do magistrado sobre a verdade dos fatos controvertidos. Por isso, durante a advertência, nenhum juízo de valor pelo órgão julgador deve ser realizado sobre a capacidade probatória das partes. É realizada de forma simples e genérica. De outro lado, após a realização de toda a instrução processual e colhida toda a prova produzida em juízo pelas partes litigantes, persistindo a dúvida sobre a veracidade dos fatos relevantes controvertidos e não formada a convicção do julgador para a prolação da sentença, a efetiva aplicabilidade da teoria da carga probatória dinâmica tem a natureza jurídica de regra de julgamento. E assim sendo, é na sentença que o julgador deverá efetivar sua aplicabilidade no caso concreto, valendo-se de seus termos para adjudicar os efeitos negativos da falta ou deficiência da prova em desfavor da parte que estava em melhores condições para a sua realização, não acolhendo sua pretensão deduzida em juízo. O juízo sobre qual das partes dispunha das melhores condições é justificado na fundamentação da sentença e amparado nas regras das máximas de experiência do caso concreto (art. 375 do CPC). Logo, a teoria da carga probatória dinâmica, nos termos adotado, é uma regra de valoração dos efeitos da falta ou deficiência da prova que tem o condão de forçar, durante o curso da instrução processual, comportamento probatório ativo, solidário e cooperativo entre as partes, de modo que se potencializa a oportunidade de formação do convencimento do juízo sobre as matérias fáticas controvertidos, já que a instrução é centrada em duas bases probatórias distintas. A realizada pelo autor paciente (quanto ao fato constitutivo) e a realizada pelo réu profissional médico (quanto ao fato desconstitutivo). Formada a convicção, a teoria não será operacionalizada justamente porque as provas produzidas foram suficientes. Não formada, aplica-se como regra de julgamento, sucumbindo aquela parte que tinha as melhores condições e não realizou a instrução adequadamente. A efetiva formação ou não do convencimento do magistrado sobre os pressupostos fáticos controvertidos vai depender da qualidade das provas produzidas e do nível de suficiência probatória (standard) exigidos para o caso concreto. Isso, no entanto, é matéria para análise em outra oportunidade. ________ 1. No sentido da adoção da teoria da causalidade adequada no sistema brasileiro: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Atlas, 2010, pp. 50-53; NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 600. 2. No sentido da adoção da teoria do dano direto e imediato, subteoria da causalidade necessária: RIZZARDO, Arnaldo.  Responsabilidade Civil - Responsabilidade médica. Capítulo XXVII. 1ª ed. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, pp. 75-78; e CRUZ, Gisela Sampaio da Cruz. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005, p. 110. 3. A doutrina da carga probatória dinâmica foi lançada pelo autor através do artigo: Lineamentos de las cargas probatorias "dinâmicas", que foi republicado na obra coletiva Cargas probatorias dinâmicas, Diretor JORGE WATER PEYRANO e Coordenadora INÉS LÉPORI WHITE, 1ª edição, Santa Fé, Editora Rubinzal-Culzoni, 2008, pp. 13-18.    
Vivemos na era dos riscos e incertezas, do dinamismo constante e célere da sociedade e, consequentemente, da multiplicidade de danos a que estamos expostos. Nesse contexto contemporâneo, diante de um panorama holístico, de um lado apresenta-se o instituto da responsabilidade civil que, em linhas gerais, consiste no dever de reparar os danos injustos suportados eventualmente por uma vítima, em virtude da transgressão de uma norma jurídica de natureza civil pré-estabelecida, seja ela uma regra ou um princípio. Lado outro, insurge-se o contrato de seguro que tem como objeto a garantia do interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados, nos termos do art. 757 CC. Dentre as modalidades securitárias, destaca-se o seguro de responsabilidade civil cuja finalidade precípua é a garantia de proteção patrimonial do segurado contra risco de imputação de responsabilidade civil decorrente de má prática em sua atuação profissional. Ademais, com base no princípio da função social do contrato em sua eficácia externa, não se pode descurar que o seguro de responsabilidade civil profissional garante, ainda, o efetivo recebimento pela vítima, na qualidade de terceiro à relação contratual, da indenização a que faz jus como reparação pelos danos injustamente sofridos e causados pelo profissional segurado. Culturalmente, era baixa a incidência dessa modalidade de seguro no Brasil, mas diante do recrudescimento dos riscos e, consequentemente, dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais deles advindos no exercício das atividades profissionais, torna-se premente e cada vez maior a contratação desse seguro.  De fato, com base nos dados estatísticos apresentados pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), houve um crescimento de mais de 200% de 2015 a 2021. O seguro de responsabilidade civil profissional individual, conhecido pela sigla E&O (erros e omissões), tem uma previsão normativa no Brasil basicamente restrita ao art. 787 CC, segundo o qual "no seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro". O contrato de seguro de RCP representa, pois, uma obrigação de garantia e consiste na tutela do interesse do segurado em proteger seu patrimônio e não de mero ressarcimento, sendo o terceiro, vítima do dano, a principal personagem, eis que, em tese, todos os prejuízos a ela causados devem ser reparados ou compensados via indenização securitária. Sua maior incidência ocorre nas contratações por profissionais da saúde, sobretudo pelos médicos, devido à crescente judicialização da saúde, a deterioração da relação médico paciente, bem como a proliferação de riscos e danos verificados nas intervenções médicas. A premissa sobre a qual se baseia o instituto da responsabilidade civil é a transferência de danos da vítima ao causador desses danos. E o seguro de responsabilidade civil é um instrumento eficaz de transferência de riscos, pois o que se busca não é um culpado ao qual os danos serão transferidos, mas um responsável, no caso a seguradora. Importante ressaltar que a seguradora assume a garantia de pagamento à vítima do dano cometido pelo segurado, este sim, obrigado a indenizá-la conforme os nexos de imputação que lhe são atribuídos por lei. Tais nexos de imputação da responsabilidade civil decorrem da teoria subjetiva ou objetiva, ambas abrangidas pelas coberturas do seguro de RCP, a depender da atividade profissional exercida pelo segurado. Na teoria objetiva da responsabilidade civil enquadram-se as pessoas que estão obrigadas a indenizar os danos causados em virtude de lei ou do risco da atividade que desenvolvem, nos termos do parágrafo único do art. 927 CC. Atividades cuja potencialidade lesiva é fonte de numerosos danos e, consequentemente, motivo suficiente para a contratualização de RCP. Os profissionais liberais, por sua vez, enquadram-se na teoria subjetiva da responsabilidade civil, eis que respondem subjetivamente pelos danos eventualmente causados a terceiros conforme dispõe o art. 14§ 4o CDC. Neste contexto, insere-se o seguro de responsabilidade civil médica, por meio do qual o médico tem o interesse legítimo de proteção ao seu patrimônio em caso de responsabilização civil por danos causados aos pacientes, decorrentes de ato ilícito culposo ou por abuso de direito (arts. 186 e 187 CC, respectivamente) cometidos no âmbito da sua atuação profissional, mantendo-se indene seu patrimônio. Diante da necessidade provocada pela atual realidade social na qual os danos se multiplicam e se espraiam, foram desenvolvidas novas técnicas de contratação, com possibilidades mais amplas de coberturas securitárias. Nessa conjuntura, destacam-se os novos comandos normativos que redefinem o marco regulatório do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, em especial, a Circular número 637 da SUSEP, que dispõe especificamente sobre tal modalidade securitária, e que entrou em vigor no dia 01 de setembro de 2021. Nos termos do art. 4º da referida Circular, a cobertura do seguro abrange os riscos decorrentes da responsabilização civil vinculada à prestação de serviços profissionais, objeto da atividade do segurado. Dentre as mudanças, merece especial atenção as alterações promovidas às regras de contratação do seguro de RCP, quais sejam: - contratação do seguro à base de ocorrências (occurrence basis), quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência e o segurado apresente o pedido de indenização durante tal vigência. - contratação do seguro à base de reclamações (claims made basis), quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência e o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante eventual prazo adicional, conforme previsão no contrato.   - contratação do seguro à base de reclamações (claims made basis) com notificação, quando fato danoso tenha ocorrido durante o período de vigência ou durante o período de retroatividade ou, como segunda hipótese, quando o segurado tenha notificado fatos ou circunstâncias ocorridas durante a vigência da apólice e o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante eventual prazo adicional, conforme previsão no contrato ou, ainda, durante os prazos prescricionais, conforme previsão no contrato.   Portanto, a garantia da indenização condiciona-se à observância das disposições contratuais, sobretudo, das datas de ocorrência dos fatos danosos, da apresentação das reclamações pelos terceiros e de apresentação das notificações pelo segurado, a depender da modalidade de contratação. Uma outra novidade regulatória diz respeito à amplitude de possibilidades de sinistro pois, além da obrigação de indenizar imposta por decisão judicial ou proveniente de acordos celebrados entre o segurado e o terceiro lesado, há previsão de que tal obrigação decorra de decisões emanadas de juízo arbitral, consoante previsão constante no art. 3º da supracitada Circular 637. Entre as coberturas dispostas importa observar, a princípio, que todos os possíveis riscos devem estar expressa e previamente consignados na apólice, pois sem previsão pormenorizada não há cobertura. Ademais, à seguradora restará a obrigação de pagar ao terceiro vítima do dano a indenização até o limite máximo estipulado na apólice, conforme o valor da franquia, inclusive.  A cobertura securitária, como já dito, abrange, de um modo geral, a responsabilidade civil subjetiva e objetiva, contratual e extracontratual, danos patrimoniais e extrapatrimoniais, os atos dos auxiliares, os custos para defesa do advogado e os valores de acordos eventualmente celebrados. No caso de seguro de responsabilidade civil médica, a especialidade deve estar muito bem definida, pois impacta diretamente no valor do prêmio e, consequentemente, no valor da cobertura. Atualmente, as especialidades médicas de maiores riscos e, portanto, mais judicializadas são as que envolvem cirurgia cardiovascular, neurocirurgia, ginecologia com obstetrícia, oftalmologia com cirurgia, cirurgia pediátrica e cirurgia de cabeça e pescoço. Ressalte-se que na fase pré-contratual o princípio da boa-fé objetiva revela-se fundamental e deve ser efetivado pela boa-fé subjetiva das partes contratantes, de forma indissociável, ao prestarem-se mutuamente as informações de forma fidedigna. Nesta fase, a assistência jurídica pelo advogado também é medida imprescindível para o perfeito adimplemento e plena satisfação dos interesses de ambas as partes, pois nem todas as perdas possivelmente ocasionadas por uma demanda judicial são abrangidas. O princípio contratual da boa-fé objetiva, lastreado na eticidade enquanto pilar do Direito Civil-Constitucional, encontra-se previsto também no art. 765 CC de cuja intelecção extrai-se a menção à expressão "mais estrita boa-fé" de ambas as partes, impingindo ao contrato de seguro uma exigência ainda maior sobre o dever de transparência dos contratantes. No que se refere às exclusões de coberturas presentes nas apólices, comumente se verificam os atos dolosos do segurado, até porque o que se visa a garantir é um interesse legítimo, portanto, lícito; atos praticados sem licença ou habilitação e culpa grave do segurado. Importa ressaltar que eventual valor objeto de condenação que sobejar o limite máximo de cobertura deverá ser suportado pelo profissional tomador do seguro. De um modo geral, estes são os dispositivos que fazem parte da arquitetura legal regulamentadora do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Contudo, não devem ser considerados como mero repositório de regras estanques, eis que devem ser interpretados de forma casuística e sistêmica em relação às demais normas jurídicas integrativas do ordenamento jurídico. Enfim, o atual cenário de socialização dos riscos reclama e impõe a contratualização do seguro de responsabilidade civil profissional (E&O) como um importante e eficaz instrumento de proteção patrimonial do profissional e uma garantia de reparação a`s vítimas de danos como forma de realização da função compensatória da responsabilidade civil. _______________ Disponível aqui. Disponível aqui. Disponível aqui. GOLDBERG, ILAN. O contrato de seguro D&O. 1ª. Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. JUNQUEIRA, T. Aplicação da teoria da perda de uma chance no âmbito do seguro E&O de advogados. Revista IBERC, v. 5, n. 1, p. 13-28, 30 nov. 2021. NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. 1 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.    
I - Contextualizando o tema Brasil, século XXI, ano 21. Vivemos em um país periférico e ainda distante de cumprir as promessas da modernidade. Nesse ambiente, as informações circulam em quantidade e velocidade jamais experimentadas, o que não significa qualidade, obviamente. A amplificação de opiniões proporcionada pelo mundo virtual descortinou a pós-verdade e trouxe consigo a falta de compromisso com os fatos objetivos: fake News e bullshits duelam com a liberdade de expressão promovendo muitas indagações: propagar mentiras é liberdade de expressão? Qual a relação e a tensão entre liberdade de expressão e bullshits? No texto a seguir, sem pretensão alguma de esgotar o objeto, jogaremos luzes sobre um tema ainda pouco trabalhado no Brasil, isto é, existe um direito de falar besteiras de forma irresponsável?  II- Significado e alcance da liberdade de expressão Calorosos debates acerca da liberdade de expressão estão na agenda das democracias ao redor do mundo, notadamente pelo retorno de ideologias radicais que ganharam notoriedade no breve século XX, para usar uma feliz expressão de Eric Hobsbawm1. Há quem afirma que a liberdade de expressão não deve tão-somente proteger a difusão de argumentos simpáticos e comuns a todos, mas também aqueles com as quais nós não concordamos. Nesse sentido, o remédio contra as más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não da censura. Do outro lado, há os que pensam de forma diversa e sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais de convivência social, como o da dignidade humana2. Ronald Dworkin formula duas justificações para a liberdade de expressão: uma instrumental e outra constitutiva. A primeira sustenta que a mais ampla liberdade de expressão permite a melhor escolha política, protegendo o povo contra a tirania e inibindo a corrupção. Já a constitutiva, por seu turno, apoia-se na ideia de que o Estado deve tratar seus cidadãos como agentes morais individuais e responsáveis, que devem poder ter acesso a qualquer tipo de informação ou de opinião, para, assim, tomar suas decisões. Nesse sentido diz o autor que "o Estado insulta seus cidadãos e nega a eles a sua responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas"3. Portanto, a liberdade de expressão é direito preferencial no Estado constitucional, oxigenando a democracia e constituindo subjetividades dos sujeitos constitucionais.  III- Existe um direito de falar besteira ou bullshits? Bullshits são manifestações absurdas e insensatas para a maioria das pessoas. A intenção do bullshiter é convencer o seu público sobre a veracidade das irracionalidades que dissemina. Dessa forma, o que determina o potencial avassalador de uma dessas inverdades é o grau de atenção a ela dado, o que se relaciona com a forma com que o locutor é encarado socialmente. Outra singularidade das bullshits é a de que elas podem ser demasiadamente danosas se veiculadas com a intenção subjacente de fazer ecoar um discurso político. Nesse caso, elas não são apenas estapafúrdias, mas, pelo contrário, possuem um objetivo claro: chamar atenção, engajar, angariar seguidores, obter votos, etc4. As bullshits, em regra, não estão protegidas pela liberdade de expressão, tendo em vista dois elementos principais: (i) o disseminador de bullshits (bullshiter) pouco se importa com a verdade dos fatos e tem a intenção de persuadir o seu público5; (ii) as bullshits são tão absurdas e disparatas para seus ouvintes que, rapidamente, chamam atenção. A título de exemplo, pouco interessaria uma reportagem produzida por renomados físicos explicando que a gravidade existe, pois é um fenômeno científico conhecido e aceito. Em contrapartida, maior seria a relevância de uma reportagem que hipoteticamente comprovasse que a teoria da gravidade é uma falácia. Desse modo, o que define a abrangência de uma bullshit é o grau de absurdidade por ela veiculado6. Nas últimas semanas, o presidente Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais uma live, na qual fazia relação entre as vacinas contra a Covid-19 e o desenvolvimento de Aids. Nos parece claro exemplo de bullshit. O vídeo foi retirado do ar pelo Facebook e pelo Instagram, que alegaram que suas políticas não admitem afirmações de que as vacinas contra a Covid-19 podem causar mortes ou danos graves às pessoas. Contudo, mesmo com a tentativa da mídia e dos especialistas em provar a veracidade dos fatos - ou seja, de que as vacinas contra a Covid-19 não causam Aids -, é inegável a relevância que o presidente possui em determinada parcela da sociedade. A problemática que se coloca, então, é a da abrangência da bullshit propagada por Bolsonaro e se ela tem e qual seria seu potencial devastador. V- A zona cinzenta entre liberdade de expressão, responsabilidade civil e bullshits São considerados agentes públicos "todas as pessoas que integram os Poderes da República, os servidores administrativos, os agentes sem vínculo formal de trabalho, os colaboradores etc. - em resumo, todos aqueles que, de alguma forma, se encontram juridicamente vinculados ao Estado."7 O atual Presidente argumenta que as bullshits por ele propagadas encontram-se no espectro de sua liberdade de expressão, como se esta fosse mais que preferencial, quase absoluta. Bullshits podem causar danos efetivos a terceiros, principalmente em se tratando de discursos proferidos por figuras públicas de alcance nacional, é razoável concluir que deve ocorrer a responsabilização desses agentes públicos. Nesse ínterim, em matéria de RC, é necessário considerar que o que recebe hoje a denominação de "RC do Estado" e "RC do agente público" é resultado de uma evolução que no marco inicial tipificava apenas a responsabilidade pessoal do agente. No século XX a RC do Estado caminhou para um cenário de maior ampliação, com vistas a fornecer maiores garantias aos indivíduos que viessem a sofrer quaisquer tipos de danos causados pela Administração Pública. Foi nesse contexto que houve um fortalecimento do instituto da RC - principalmente no que tange à consolidação da responsabilidade civil objetiva - , o que pôde ser observado na adoção da chamada teoria do risco administrativo. Essa teoria - fortemente influenciada por tal movimento de valorização da pessoa humana - introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a RC objetiva do Estado, isto é, independente de culpa, como forma de responsabilizar as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos em caso de danos a terceiros8. Destarte, é possível afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro passou a trazer tanto na CF/88, quanto no CC de 2002, a lógica da teoria do risco administrativo com o fito de promover a valorização da pessoa humana por meio de uma responsabilização objetiva da Administração Pública. Em outras palavras, além da responsabilidade objetiva do Estado, foi inaugurada, no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade subjetiva do agente público por danos causados a terceiros. Em ambas as hipóteses, é imperioso que estejam presentes, simultaneamente, todos os elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade civil: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade (somados à culpa lato sensu do agente, nos casos de responsabilidade subjetiva do agente público). Ao analisar a responsabilização desses agentes de maneira ampla, tem-se que, de suas condutas no exercício do cargo, emprego ou função, decorre RC, penal e administrativa9. Em se tratando, especificamente, de agentes políticos, também ocorre a aplicação da chamada responsabilidade política. Analisando-se especificamente a RC dos agentes públicos, aplica-se o disposto no artigo 186 do Código Civil de 2002: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." Em outras palavras, para ocorrer a responsabilização dos agentes públicos no caso das bullshits, por exemplo, é imprescindível que haja, enquanto pressupostos inafastáveis da RC, comprovação de que há nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano, bem como a culpa lato sensu desse agente. No entanto, uma das principais dificuldades dessa zona cinzenta se encontra no momento em que se tenta estabelecer tal nexo de causalidade, o que traz o questionamento: como comprovar que aquela determinada conduta do agente público promoveu, efetivamente, a ocorrência do dano? No caso da propagação de bullshits, é necessário demonstrar que aquele determinado pronunciamento do agente público foi responsável por causar um dano efetivo a terceiros, estabelecendo, assim, um nexo entre a conduta lesiva, culposa e o dano causado ao indivíduo. Trazendo essa questão para o caso concreto, como a polêmica live do Presidente, havendo o ato ilícito, o dano e a conduta culposa, como comprovar o nexo de causalidade entre esses elementos? Em outras palavras, até que ponto a contaminação da população decorre da conduta ilícita desse agente público? De fato, é aqui que se encontra a parte mais complexa da RC do agente público em caso de bullshits. Pela dificuldade em se estabelecer uma cadeia causal, muitas vezes o resultado é a não responsabilização desses agentes, não somente na esfera cível, como também nas esferas administrativa, penal e, até mesmo, política, podendo causar danos irreparáveis a um grande número de pessoas. Ainda, é fundamental comentar a respeito do direito de regresso por parte da Administração Pública em relação aos agentes públicos que cometem ato ilícito em caso de culpa e dolo. No texto constitucional e no Código Civil é trazida não somente a responsabilidade objetiva do Estado, como também a possibilidade de direito de regresso deste em relação ao agente público causador do dano. Entretanto, a legitimidade do agente público para compor o polo passivo da ação indenizatória também já foi tema controvertido, cujo entendimento foi pacificado pelo STF por meio do RE 1.027.633/SP. Em muitos casos, o cidadão, ao ajuizar ação indenizatória, colocava o Estado e o agente público responsável pela ocorrência do dano no polo passivo da demanda. Contudo, foi firmado pelo STF o entendimento de que "A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Em outras palavras, o procedimento adequado destinado a esse tipo de situação não admite a colocação do agente público no polo passivo da demanda. Tão somente o Estado, por meio de ação de regresso, deve alegar culpa ou dolo por parte desse agente. A tese firmada encontra guarida na previsão do artigo 37, §6º da CF. Por fim, vale lembrar que as imunidades conferidas ao Presidente da República pela Constituição (Art.86), acabam por se transformar em irresponsabilidades, não por outro motivo que a doutrina e a jurisprudência brasileiras adotaram por muito tempo o termo "irresponsabilidade relativa", escancarando o desvio de um instituto cujo propósito era garantir uma boa governança. As imunidades protegem o cargo e a instituição, não a pessoa. Deste modo, as irresponsabilidades verbais do Presidente Bolsonaro estão sujeitas a subsunção nas cláusulas genéricas do art.85, da CF, em conjunto com a lei 1079/50, e o art.52, também da CF/88, podendo, em nossa opinião, resultar no impedimento do mandato para o qual foi eleito (impeachment) por propagações de bullshits que tenham como resultado a violação aos direitos à saúde, á vida e à dignidade da pessoa humana.   Conclusão Cientes da dificuldade e do pouco tratamento jurídico do tema, concluímos que as bullshits possuem considerável efeito negativo na sociedade e não encontram proteção nas abordagens instrumental e constitutiva da liberdade de expressão. Se utilizadas em contexto de risco à saúde pública para distorcer informações cientificamente comprovadas, causando danos efetivos às pessoas, nos parece hipótese clara de responsabilidade civil do agente público aqui tratado, que parece lançar mão de forma abusiva das imunidades materiais, contando com a cumplicidade do Poder Legislativo que não tem por tradição dar andamento ao processo de impedimento previsto na Constituição. *Bruno Stigert é professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFJF. Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência da UFJF. Mestre em Direito Público pela UERJ e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF. Associado IBERC. **Julia Oliveira Pêssoa é graduanda em Direito pela UFJF. Bolsista da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência. ***Marina Coimbra de Azevedo Quelhas é graduanda em Direito pela UFJF e monitora da disciplina Teoria da Responsabilidade Civil e voluntária no NEAPID, sob orientação dos associados do IBERC Raquel Bellini e Sérgio Negri. __________ 1 O "breve século XX" começa em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, sinalizando declínio da civilização capitalista, liberal e burguesa, ancorada no progresso técnico e científico, certos do chamado eurocentrismo. O século XX terminaria em 1991, com a queda do socialismo real no Leste Europeu e a consagração do capitalismo. Inaugura-se um novo século que surfa na onda da globalização. 2 STIGERT, Bruno. Dicionário de Filosofia política. Coord. BARRETO, Vicente de Paulo. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2010, págs. 314 a 317. 3 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Havard University Press, 1996. 4 Sobre o tema do recrutamento de extremistas, vale a leitura do texto de Rachel E. Hoffman (Determining Who is Vulnerable to Radicalization and Recruitment). Segundo ela, os indivíduos vulneráveis ao extremismo não são necessariamente ignorantes ou ingênuos. São pessoas motivas por redes sociais (família, amigos ou comunidade global) e que se sentem isoladas no interior da sociedade em que vivem. Anseiam por propósito e empolgação. São sujeitos atravessando conflitos de identidades, buscando reputação ou satisfazer uma compulsão por ação. Muitos são escolarizados, porém subutilizados, nutrindo uma falsa noção de segregados por seu status social. Sentem-se maltratados por seus pares e pelo governo. 5 MARMELSTEIN, George. O negacionismo pandêmico mata. Jota - Opinião e Análise. 22 mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em 04 nov. 2021. Para suas reflexões, Marmelstein usa FRANKFURT, Harry G. Sobre Falar Merda. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2005. 6 CNN BRASIL. Facebook e Instagram excluem live em que Bolsonaro relaciona vacina contra Covid à Aids. 25 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 03 nov. 2021. 7 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil - 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.300 8 CF/88, Art. 37, §6º: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Foi nesse mesmo sentido que se deu a redação do artigo 43 do Código Civil de 2002: "Art. 43: As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo". 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo - 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 
Estamos presenciando um movimento sui generis no desenvolvimento científico. Parece que, repentinamente, todos os ramos do conhecimento, tornados estranhos uns aos outros pela especialização extremada, começaram a ressentir-se do isolamento em que se encontravam, passando a buscar mais e mais suas bases comuns. A necessidade crescente de estudos interdisciplinares, capazes de analisar a realidade de ângulos diversos e complementares passou a aguçar a conscientização de que uma série de princípios são validamente aplicáveis às várias ciências. Exemplo eloquente deste movimento de desvendar fundamentos comuns a quaisquer áreas de conhecimento é a chamada Teoria dos Sistemas Dinâmicos. Vinda da matemática aplicada, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos é um paradigma inovador e influente em muitas áreas de estudo, incluindo mais recentemente as ciências sociais. Um sistema dinâmico é um conjunto de elementos interligados que constituem um todo maior que a sua mera soma. Estes elementos nem sempre são harmônicos entre si. Para solucionar as tensões internas, os sistemas desenvolvem circuitos de influência mútua (feed-back loops) que neutralizam as incompatibilidades intra-sistêmicas, eventualmente gerando novos conflitos ou instabilidades. De acordo com a esta teoria, os sistemas adaptam-se, mudam e evoluem no tempo numa volatilidade constantemente renovada, apesar de sempre resistirem a mudanças.  Estamos imersos em sistemas, somos sistemas. Segundo Donatella Meadows, "Uma escola é um sistema. Assim como uma cidade, e uma fábrica, e uma corporação, e a economia nacional. Um animal é um sistema. Uma árvore é um sistema, e uma floresta é um sistema maior que abrange subsistemas de árvores e animais. A Terra é um sistema. Assim como o sistema solar, assim como uma galáxia." Segundo Gregoire Nicolis e Ilya Prigogine, as instabilidades e flutuações são responsáveis pela incrível variedade e riqueza das formas e das estruturas que vemos na natureza que nos rodeia. Novas estruturas, conceitos e ideias, distintos daqueles padrões de periodicidade e estabilidade próprios às ciências clássicas, são necesários a explorar a complexidade e instabilidade dos sistemas físicos, biológios e também sociais. Estas dinâmicas contraditórias de constante instabilidade e auto-organização também regem os sistemas jurídicos. Para Orlan Lee, é preferível adotar uma concepção do direito como um sistema aberto e suscetível à analise lógica. As regras não são  elementos absolutos mas se interrelacionam com outros elementos do sistema e até com outros sistemas visando alcançar o propósito maior do sistema jurídico em si, qual seja, o de contribuir nos processos decisórios que viabilizam o convívio social regido pela auto-organização. É preciso que a argumentação jurídica evite respostas fixas e rígidas e busque aquelas coerentes com o sistema jurídico que não se subsume às regras legais, mas também abriga outros elementos como os princípios gerais e a equidade. A responsabilidade civil também é um sistema integrado por impulsos discordantes, espontâneo, aberto, complexo, sinergético, voltado a assegurar estabilidade social.  A este também se aplicam a lógica e os paradigmas propostos pela Teoria dos Sistemas Dinâmicos. Vale dizer, a responsabilidade civil é muito mais que um conjunto de elementos e teorias estáticas. Apesar de muitas vezes ser descrita como um sistema, raramente ela é examinada como tal. A maioria das teorias busca explicar a legislação, a estrutura e as funções da responsabilidade civil, mas não suas dinâmicas internas. Alan Calnan, debruçando-se sobre os "torts" do common law sustenta serem eles uma estrutura de alocação dos prejuízos derivados de um encontro social em que alguém sofre danos. Eles servem para articular a coerência do sistema onde coexistem posições adversariais. Desse ponto de vista o sistema do tort é mais que a legislação de regência, é um perpétuo processo para coordenar e reconciliar conflitos em diferentes níveis, marcado por prévios aportes teóricos, doutrinas e práticas, que se ajustam para absorver novos influxos que redirecionam a adequada alocação de prejuízos. A responsabilidade civil também opera como um sistema complexo e holístico, como uma rede elementos, coerentemente organizados e interligados a outros sistemas visando alcançar um objetivo, que, basicamente é perpetuar sua própria existência. Os elementos do sistema, se considerados isoladamente podem chocar-se entre si ou com os objetivos do sistema. Como são suas partes integrantes, o sistema precisa adaptar-se ou reinventar-se para manter-se. Isso explica a volatilidade dos sistemas que constantemente estão a organizar as suas desordens intrínsecas, com base em princípios universais como complementaridade dos opostos. Segundo Alan Calnan, o tort, e analogamente, a nosso ver, a responsabilidade civil, não é somente uma construção jurídica, mas um sistema natural complexo, interligado e coordenado com outros sistemas, voltado a assegurar o bem-estar humano em sociedade. O sistema conecta-se com outros que lhe são perimetrias e relacionados aos poderes públicos que limitam o sistema de tort. O poder executivo impõe comandos e punições, o legislativo cria normas e convenções relacionadas ao tort e o judiciário interpreta e operacionaliza os princípios que asseguram o funcionamento do sistema. Do ponto de vista interno, o sistema de tort não é monolítico, mas abriga três subsistemas: no centro um sistema de resolução de conflitos ao qual os particulares acorrem para resolver suas disputas; ele é envolto por um sistema judiciário mais amplo que baseia-se em normas e precedentes para regular o caso concreto e traçar parâmetros para futuros casos semelhantes; este sistema público, por sua vez está inserido em um sistema sociocultural de valores, que informa e limita as camadas inferiores. Para entender como o sistema opera, é preciso examinar cada uma destas instâncias. Danos resultam de um infortunado encontro entre particulares, causando incômodo a ambos porque surgem interesses contrários, egoístas e conflitantes. Estas partes buscam o auxílio de advogados. Estes terceiros, por sua vez, passam a conduzir as ações das partes e escalam a questão a nível estatal, no poder judiciário. Este exerce duas funções, a de fornecer as regras básicas para disputa e a de prover premissas legais para orientar a resolução do conflito. O estado não aplica estas regras dogmaticamente, mas empodera os juízes para sintetizar, interpretar e adequar ditos preceitos ao caso concreto. Tudo é contido e coordenado por um ritual restaurativo: quando é feita a narrativa do caso diante do julgador, há uma abertura para o aspecto emocinal, enraizado nos valores sociais. Esta permeabilidade aos aspectos morais da narrativa faz com que muitas vezes haja uma acomodação sistemática pelo temperamento dos argumentos jurídicos por valores sociais. O sistema de resolução de conflitos entre particulares na responsabilidade civil também influencia o sistema estatal de criação do direito porque recebe os sinais das patologias sociais. Os julgadores devem aplicar as regras e precedentes necessários à solução do problema eventualmente coordenando-os com julgados anteriores que lhe são contrários para modular o sistema em si. Assim o sistema de criação de regras e o de resolução de conflitos se retroalimentam reciprocamente de forma a ligá-los aos valores culturais que os circundam. A dinâmica descrita acima não é peculiar ao sistema de responsabilidade civil, mas também se observa em outros campos do direito. O que distingue o sistema de responsabilidade civil dos demais são suas regras, teorias e princípios que definem as situações em que se pode alocar a responsabilidade por danos em esfera jurídica distinta daquela em que ele se operou. As regras de responsabilidade civil, que visam recompensar comportamentos benéficos e punir ou reprimir condutas que causem danos a outrem, são inspiradas em valores de cooperação, cuidado, lealdade e integridade. Para proteger e assegurar a liberdade as normas criam estes elementos antagônicos, mas interconectados e coexistentes, que asseguram as liberdades mútuas. Ocorre que quando surgem confrontos entre as partes, o julgador precisa reconciliar direitos e deveres sopesando-os e coordenando-os. A natureza adversarial da responsabilidade civil não expõe sua verdadeira identidade. Porque a responsabilidade por danos pode ser imputada a outrem com base em diferentes teorias que se distinguem com base no nexo de imputação por dolo, por culpa ou por comandos normativos que estabelecem casos de responsabilidade objetiva, doutrinadores, advogados e julgadores consideram que estas teorias a definem. Todavia, conforme Alan Calnam, os torts, e, novamente por analogia, a responsabilidade civil, se fundam em verdades mais profundas. Cada uma das formas de responsabilização se conecta com um componente distinto da moralidade humana. Malfeitos intencionais são instantaneamente reprovados, com fulcro nos valores fundamentais da humanidade que rechaçam atitudes que firam, ofendam, logrem ou degradem o outro. Atos negligentes são diferentes porque não intentam lesar ou ferir a autonomia e dignidade dos outros, por isso podem ensejar reações menos gravosas. Isto contempla um senso binário de moralidade, pois, como a mera negligência não induz uma resposta intuitiva negativa, atribui-se uma discricionariedade maior ao julgador para definir suas consequências. Com base em standarts sociais de razoabilidade ele promove a harmonia do sistema reforçando seu aspecto solidário. Por fim, a razão de ser da responsabilização objetiva não é tão óbvia ou uniforme. Nem sempre ela recai sobre o autor da conduta e nem sempre deriva de uma conduta reprovável. Às vezes surge apenas para regular um desequilíbrio de forças, como nas relações consumeristas. Em geral, a responsabilidade objetiva se funda em razões políticas que investigam as fissuras do sistema e submetem-nas a um escrutínio diverso daquele que moralmente sustenta as demais formas de atribuição de responsabilidade, criando novos padrões para a solução de conflitos. O problema que se coloca é que, geralmente, estas três bases de imputação foram transformadas em uma trilogia classificatória estanque que encerra a explicação do sistema cível de responsabilização na análise de seus próprios elementos, roubando-lhe as bases que o conectam com a sociedade e as pessoas que a compõem. São vistas como categorias rígidas e estáveis, ignorando as sinergias que podem abalá-las e ensejar mudanças. Como a responsabilidade civil é um sistema de sistemas, seus contornos são indefinidos. As formas de responsabilidade baseadas nos diversos nexos de imputação são partes operantes de um mesmo sistema cujo objetivo, segundo Calnan, não é a justiça corretiva, a justiça distributiva, a geração de precedentes ou a eficiência econômica. É antes a dinâmica de coordenação de conflitos pessoais, políticos, legais, sociais e até morais que lhe são subjacentes no decorrer do tempo, implicando a altercação de padrões de atividade quando for necessário reconciliá-los para garantir manutenção da integridade do sistema. Não há conclusão para estas reflexões. O objetivo foi lançar luzes à premente demanda por um olhar interdisciplinar e sistêmico para a responsabilidade civil, inegrando-a à percepção que vem graçando nas ciências físicas, biológicas e sociais, de que nada se explica somente por teorias abstratas e atomistas fulcradas na análise isolada de elementos intrínsecos. Neste afã, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos é uma lente de grande valia porque parte de premissas como a complexidade, abertura e conservação dos sistemas para reconhecer padrões de interação e mudança que obedecem a regras universais como, por exemplo, é preciso complexificar para simplificar; pequenas alterações podem acarretar grandes mudanças na estrutura e na dinâmica dos sistemas, para o bem ou para o mal; sistemas complexos tendem a mover-se em direção à coerência e integração; e intervenções em sistemas complexos quase sempre resultam em consequências não previstas e indesejadas. Em ambientes acadêmicos e profissionais, entender e abordar as questões a partir de uma perspectiva sistêmica é uma habilidade essencial. Quiçá este pequeno escrito possa instigar melhores resultados na necessária empreita de evoluir na autêntica análise sistêmica do direito, em especial da responsabilidade civil. De novo resoamos Alan Calnan que leciona que apesar de as disposições legais poderem ser únicas e diversificadas, continuam a ser um produto previsível da dinâmica do sistema. As regras escalam de níveis mais baixos para níveis mais altos, deixando a sua impressão em cada camada do sistema, em seus subsistemas e em sistemas periféricos, informando-os e alterando-os ao mesmo tempo em que o próprio sistema é informado e alterado. Assim como as nossas leis homeostáticas moldam as nossas instituições jurídicas, as nossas instituições jurídicas afetam os nossos valores culturais, as nossas normas sociais e até o que ele chama de nosso instinto biológico de legalidade. ___________ Referências Bibliográficas: Calnan, Alan (2019). Tort as Systems. Southern California Interdisciplinary Law Journal, Vol. 28. Calnan, Alan (2020). Holistic Tort Theory. Southern California Law Review, Vol. 49. Coleman, P. T. (2021). The way out: How to overcome toxic polarization. New York: Columbia University Press. Coleman, P. T., Redding, N., & Fisher, J. (2017). Understanding Intractable Conflict. In A. Schneider & C. Honeyman (Eds.), The Negotiator's Desk Reference. Chicago: American Bar Association Books. Lee, Orlan Systems Dynamics in the Law: A Comparative Approach to Certainty in the Common Law and Reviewability of Past Decisions (2004). Oxford University Comparative Law Forum 5 at ouclf.law.ox.ac.uk  Meadows, Donella. Thinking in Systems - A Primer (2008). London: Earthscan. Nicolis, G & Prigogine, I. Exploring Complexity (1989). New York: Freeman.       
O Tribunal de Contas da União (TCU) é o órgão de controle externo do governo federal, auxiliar do Congresso Nacional na sua competência constitucional de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país e que, principalmente a partir do novo desenho institucional traçado na Constituição Federal de 1988, busca contribuir com o aperfeiçoamento da Administração Pública em benefício da sociedade. Dentro dessas competências delineadas pelo artigo 71 da Constituição, o TCU configura-se como o ente federal responsável pela fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos e entidades públicas do país quanto à legalidade, legitimidade e economicidade. Considerando essas missões e parâmetros de controle, a Constituição definiu amplo rol de competências ao Tribunal de Contas, incluindo, por exemplo, a apreciação das contas anuais do presidente da República a partir de parecer prévio (CF 71, I); realizar inspeções e auditorias por iniciativa própria ou por solicitação do Congresso Nacional (CF 71, IV), fiscalizar a aplicação de recursos da União repassados aos outros entes federativos (CF 71, VI) e apurar denúncias e representações sobre irregularidades ou ilegalidades na aplicação de recursos federais (CF 74, §2º). Porém, para o que é importante para este espaço, há de se ressaltar a competência de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos (CF 71, II). Para essa missão constitucional, o Tribunal de Contas da União assume sua condição de ente quase judicante para verificar a legalidade, regularidade e economicidade dos atos dos gestores ou responsáveis pela guarda e emprego dos recursos públicos. Em outras palavras, trata-se da apuração da responsabilidade civil dos gestores públicos e equiparados que tenham causado dano ao Erário Federal. Para tanto, o Tribunal de Contas da União utiliza procedimento administrativo próprio, a Tomada de Contas Especial. Trata-se de processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar a responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal, com apuração de fatos, quantificação do dano, identificação dos responsáveis e para a obtenção do respectivo ressarcimento (art. 2º, caput, da IN/TCU 71/2012). Fica claro pela própria definição normativa do TCU, portanto, que a Tomada de Contas Especial é procedimento administrativo que visa a apurar os elementos da Responsabilidade Civil relativa a danos sofridos pelo Erário. Reforçando essa definição, tem-se excerto do Acórdão nº 2367/2015-Plenário, de relator do Min. Benjamin Zymler, que aponta que "No processo de Tomada de Contas Especial os elementos exigidos para a caracterização da responsabilidade civil subjetiva se referem à existência de conduta culposa ou dolosa do agente, de dano ao erário e de nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Existindo tais pressupostos, há o dever de indenizar". E aqui é importante ressalvar que se trata de competência de apuração de responsabilidade civil exclusivamente contra a administração pública, já que, em regra, o Tribunal de Contas da União não trata de questões de direito privado. Isso se deve muito a uma visão do TCU como um "guardião" do interesse público. Assim, por exemplo, o próprio Tribunal de Contas reconhece não haver competência para sua atuação em certas representações em licitações quando a correção da ilicitude não resultaria em benefício ao Erário e também em denúncias contra nova interpretação de normativos que restringiu a concessão de gratificações, em que se reconheceu que não haveria dano ao Erário, mas apenas aos interesses privados individuais de cada servidor com o direito restringido. Igualmente, ressalva-se que não se trata de apuração de responsabilidade civil do Estado, mas sim de jurisdição administrativa sobre gestores públicos e terceiros que guardam relação com a Administração Pública. Assim, trata-se de uma via de mão única, em que não se responsabilizará o Estado. De todo modo, não se pode descuidar que uma atenta atuação dos Tribunais de Contas, por representações e auditorias, vem muito a acrescentar em posterior responsabilização do Estado, a partir de compartilhamento dos resultados obtidos com demais órgãos de controle, como o Ministério Público e as advocacias públicas, ou mesmo com particulares lesados pelo Estado, como foi o que ocorreu, por exemplo, com a Petrobras no caso da Lava Jato1. A partir da breve exposição da competência constitucional do Tribunal de Contas e de seu procedimento para apuração de responsabilidade civil contra o Estado, passa-se a discorrer sobre determinados temas abordados recentemente pelo Tribunal de Contas da União. O primeiro é o fato de o Tribunal de Contas da União não reconhecer competência para "tomar contas" pelo mero descumprimento contratual. Assim, a tomada de contas pelo TCU se dá apenas a partir da ocorrência de dano por descumprimento extracontratual. Faz isso por entender que os órgãos da Administração devem possuir estrutura e mecanismos contratuais próprios para responsabilizar contratados pelos danos que incorreram a partir da inobservância de contratos administrativos. Mas, daí, advém uma questão acessória: qual seria o "parâmetro de controle" adequado para se apurar essa responsabilidade civil extracontratual? O Tribunal de Contas somente poderia responsabilizar os gestores públicos e equiparados por danos causados em infringência à lei ou também por descumprimento de normas infralegais? É o Tribunal de Contas competente para apurar responsabilidade civil extracontratual a partir de violação de princípios da Administração Pública, ainda que não haja um descumprimento direto de norma legal? Ainda, seria cabível a responsabilização daquele que deixou de seguir recomendações e boas práticas acolhidas pelo Tribunal como parâmetro de controle? Essas são algumas questões que permanecem sem resposta firma da jurisprudência do TCU, por exemplo. Também há interesse em verificar como o Tribunal de Contas da União trata de questões relativas aos elementos da Responsabilidade Civil. Aqui, quanto a culpa do agente, houve recente alteração legal que impacta a atividade do TCU em matéria de tomadas de contas especiais. Trata-se da inclusão do artigo 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina pressupostos à responsabilidade pessoal dos agentes públicos2. Diz o mencionado artigo 28 que "O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas sem caso de dolo ou erro grosseiro". Daí vem a dúvida: o que constituiria o erro grosseiro? Seria o erro grosseiro equivalente à culpa grave? Para equacionar essa e outras questões é que se publicou o Decreto nº 9.830/2019, regulamentador da "nova" LINDB. Lá, é expresso que "Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia". Ou seja, a culpa que possibilita a responsabilidade civil dos gestores públicos ou equiparados é uma culpa qualificada, grave e inescusável, distinguindo-se dos parâmetros comuns de responsabilização amparados pelo Código Civil. Todavia, a esse requisito de responsabilização do erro grosseiro, da culpa grave e inescusável, se contrapõem posicionamentos do Tribunal de Contas da União de culpa presumida, que se aproxima até de responsabilidade objetiva. Trata-se, por exemplo, do dever de prestar contas, cuja inobservância leva a, além do ressarcimento referente às contas não prestadas, à inelegibilidade do gestor que faltou com o dever. Também, em sentido similar, o fato de dispositivo ainda vigente do decreto-lei 200/67 dispor que, quanto à prestação de contas, o ônus da prova cabe ao gestor público, e não ao ente que apura a responsabilidade civil. Exemplificativamente, tem-se o Acórdão 2750/2020-Plenário, de relatoria do Min. Benjamin Zymler, o qual dispôs que "A culpa dos gestores por atos irregulares que causem prejuízo ao erário é legalmente presumida, ainda que não se configure ação ou omissão dolosa, admitida prova em contrário, a cargo do gestor". Quanto ao nexo de causalidade, é importante indicar recente posicionamento do Plenário do TCU quanto à definição da teoria da causalidade adotada. Apesar de, em algumas circunstância, o Tribunal entender pela aplicação da teoria da causalidade adequada, parece ter prosperado a adoção da teoria do dano direto e imediato (teoria da interrupção do nexo causal), segundo qual "nos casos em que o dano decorre de um conjunto de causas, não se podendo apontar uma única causa para a sua ocorrência, deve-se, para estabelecer o nexo causal, verificar se a conduta possui relação direta e imediata com o dano bem como se ela foi decisiva e necessária para sua ocorrência" (Acórdão nº 9671/2020-2ª Câmara, bastante representativo da discussão). Por fim, apresenta-se duas questões de interesse referentes ao dano, especificamente quanto à certeza dele. A primeira é a possibilidade normativa de o Tribunal de Contas, quando quantificar o dano, fazê-lo por verificação ou por estimativa (IN TCU nº 71/2012, art. 8º). A quantificação por verificação é aquela que se realiza quando é possível quantificar com exatidão o real valor devido. Por sua vez, a quantificação por estimativa é aquela que, por meios confiáveis, apura-se quantia que seguramente não excederia o real valor devido. A quantificação por estimativa é ponto controverso, até pela dificuldade em se comprovar que o valor apurado não excederia o real valor devido, e que vem sendo utilizado como metodologia de cálculo de dano em casos de cartel, principalmente nas apurações derivadas a Lava Jato3. A segunda questão trata de discussão prontamente afastada pelo Plenário do TCU sobre a possibilidade de reparação de "dano moral da Administração Pública". Aqui, o Tribunal entendeu que não seria competente para tal apuração e que, igualmente, não teria os instrumentos adequados para a apuração desse eventual dano moral. Encerrada a exposição, aproveita-se para indicar que o abordado acima trata-se muito mais de um mapeamento de pontos de interesse e de interseção no estudo da Responsabilidade Civil e da atividade dos Tribunais de Contas o que um estudo sobre cada uma dessas questões. Por se tratar de campo amplo, fica o convite para o seu desbravamento. *Gilberto M. Calasans Gomes é mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Especialista pela FESMPDFT. Bacharel em Direito pela UnB. Sócio de Piquet, Magaldi e Guedes Advogados. __________ 1 Efeito nos EUA de decisões do TCU preocupa Petrobras, diz ministro. 2 Alteração na LINDB e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. 3 TCU inova e muda metodologia de cálculo de dano em casos de cartel.
Introdução O presente texto, longe de esgotar tema tão rico que é a ação civil ex delicto, está dividido da seguinte forma: 1) anotações iniciais sobre a legislação que rege o tema, e; 2) diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto. Dentro dos diálogos multidisciplinares, serão abordadas as seguintes questões: a) Prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível, e; b) a duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. I. Anotações iniciais sobre a legislação que rege o tema Analisemos, inicialmente, as disposições legais existentes no Código de Processo Penal. De acordo com o art. 63, do Código de Processo Penal, transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo preleciona que, transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV, do caput do art. 387 do CPP, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.               Dando sequência, enquanto o art. 64, do CPP disciplina que, sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil, destacando o respectivo parágrafo único que, intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela. A leitura dos arts. 65 e 66, do CPP, nos permite conclusões preliminares interessantes sobre o tema. Enquanto o art. 65 dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, o disposto no art. 66, do mesmo código faz uma importante ressalva no sentido de que, não obstante a prolação de sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato. Em linha com o que foi dito nos artigos de lei anteriormente citados, o art. 67, do CPP, dispõe que não impedirão igualmente a propositura da ação civil o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação, a decisão que julgar extinta a punibilidade ou a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime. Encerrando a análise legislativa (e inicial) do CPP, o art. 68 estabelece que, quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2º, do CPP), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público. Além de dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro, importante para fins de situar o leitor no tempo e espaço envolvendo o tema destacar, no que tange o Código Civil Brasileiro, que os fundamentos dessa pretensão, chamada de ação de reparação civil ex delicto, encontram-se no Código Civil, mais especificamente, nos arts. 186 e 927, do Código Civil1. II. Diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto a) Prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível ?Ao julgar o Recurso Especial 1.802.170/SP, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que a prescrição da ação penal não afasta o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória por meio de ação civil ex delicto. O referido recurso especial, não provido pelo STJ, questionava acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o qual decidiu ser possível a tramitação de ação civil com pedido de indenização por danos morais e materiais causados a uma vítima de lesão corporal grave, mesmo tendo sido reconhecida a prescrição no juízo criminal. Segundo consta dos autos, a vítima sofreu agressões físicas em 2004. Em 2010, o agredido ajuizou a ação civil ex delicto contra seus agressores. Em 2014, porém, após sentença penal condenatória por lesão corporal grave, a pena dos réus foi extinta em virtude da chamada prescrição da pretensão punitiva retroativa. Antes de dar prosseguimento ao exame do acórdão, importante explicar no que consiste referida modalidade de prescrição. A prescrição da pretensão punitiva retroativa levará em conta a pena em concreto, assim como a prescrição da pretensão punitiva superveniente. A análise da ocorrência (ou não) da prescrição, neste caso, ocorre a partir do trânsito em julgado para a acusação, devendo o julgador olhar para trás, ou seja, a prescrição retroativa deverá se voltar a partir da data da publicação da sentença ou acórdão condenatório até a data do recebimento da denúncia ou queixa. Se, entre a data do recebimento da denúncia e a data da publicação da sentença ou acórdão condenatório, tiver passado lapso temporal superior ao prazo prescricional previsto para a pena fixada, nos moldes dos índices existentes no art. 109, do Código Penal Brasileiro, então terá ocorrido a prescrição da pretensão punitiva retroativa. Voltando ao exame do precedente julgado pelo STJ, os supostos agressores alegaram que a ação indenizatória apenas poderia ter sido ajuizada se houvesse condenação criminal transitada em julgado, ou seja, argumentaram que o trânsito em julgado da condenação criminal configuraria pressuposto para o ajuizamento da demanda cível. Além disso, os recorrentes sustentaram que a pretensão de reparação por danos morais estaria prescrita. Ainda que o Direito, em abstrato, seja considerado uno, o legislador pode fazer, como o faz no direito brasileiro, distinções relacionadas às mais diversas áreas existentes, em especial, no que deve ser considerado, respectivamente, ato ilícito e eventuais prazos para as persecuções processuais deles derivados. O grande problema não está neste ponto e sim em fragmentar os fatos da vida social, dando ensejo, não raras vezes, à sensação de injustiça por parte dos réus que se veem diante de mais de uma contenda judicial para resolver problemas relacionados a um fato único de suas vidas. Dando sequência ao exame do que foi decidido pelo STJ, o recurso especial então interposto não foi provido, tendo prevalecido o fundamento apresentado pela Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, no sentido de que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". De acordo com a relatora, a independência relativa existente entre as áreas penal e cível legitimariam a conclusão de que, quem pretende pedir ressarcimento por danos sofridos com a prática de um delito pode escolher ajuizar ação cível de indenização ou aguardar o desfecho da ação penal, para, então, liquidar ou executar o título judicial eventualmente constituído pela sentença penal condenatória transitada em julgado. O raciocínio acima permitiu, ainda, a conclusão de que a pretensão da ação civil ex delicto "se vincula à ocorrência de um fato delituoso que causou danos, ainda que tal fato e sua autoria não tenham sido definitivamente apurados no juízo criminal". Fazendo uma análise conjunta entre o Código Penal Brasileiro de 1940 e o Código Civil Brasileiro de 2002, a Ministra Nancy Andrighi destacou que o segundo diploma, mais especificamente em seu art. 200, dispõe que, quando a ação civil se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva. Nesse sentido, embora a ação de conhecimento possa ser ajuizada a partir do momento em que nasce a pretensão do ofendido, o prazo de prescrição da pretensão reparatória se suspende enquanto o mesmo fato começa a ser apurado na esfera criminal. Daí em diante, o ofendido passa a ter também a opção de liquidar ou executar eventual sentença penal condenatória. Ao negar provimento ao recurso especial, por unanimidade, a turma observou que a pretensão da vítima da agressão não era de liquidação ou execução da sentença penal transitada em julgado, consistindo tal na reparação dos danos que lhe foram causados pelos agressores, valendo-se, para ajuizar a ação civil ex delicto, apenas do fato de terem sido condenados em primeira instância. b) a duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Na segunda parte do texto será examinado o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Reclamação nº 41.557/SP. Na referida reclamação, a Corte Constitucional Brasileira analisou a legitimidade do deferimento de petição inicial e de medida cautelar em sede de ação civil pública, que encontra lastro no mesmo acervo fático-probatório de processo penal trancado por ilicitude de provas e demonstração de negativa de autoria. Para responder a essa questão, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes destacou quatro questões a serem respondidas, a saber: a) É legítimo o cotejo de panoramas fático-probatórios de procedimentos distintos para fins de verificação de afronta à autoridade de decisão do Supremo em sede de reclamação? b) O acervo fático-probatório utilizado como substrato empírico para fundamentar o deferimento da petição inicial e da cautelar na ação civil pública 5008470-45.2020.4.03.6100 (ação civil de improbidade administrativa) se identifica com o material que ancorou o processo penal trancado pelo STF no HC 158.319/SP? c) A demonstração de negativa de autoria foi uma das razões determinantes para o trancamento do processo penal pelo STF? d) Em que medida o bis in idem - aqui compreendido como a duplicação do mesmo panorama fático-probatório como substrato empírico fundante em esferas sancionadoras distintas - é vedado na relação que se coloca entre direito penal e direito administrativo sancionador? Em relação ao primeiro questionamento, após destacar a função do instituto da reclamação constitucional, a qual serve para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal, garantindo a autoridade de suas decisões, bem como o desenvolvimento histórico ocorrido desde a sua implementação até os dias atuais, foi explicado que deve ser aferido, a título de filtro, a existência de liame temático material entre as decisões reclamada e precedente, respectivamente. No caso julgado, o liame temático foi demonstrado a partir das seguintes constatações: 1) ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema penal, e; 2) Diante da existência de dois procedimentos distintos, respondidos pelo mesmo sujeito e aparentemente sobre os mesmos fatos, em que o primeiro procedimento é arquivado pelo Supremo - no caso do processo trancado -, é legítimo o escrutínio da Corte, em sede de reclamação, acerca da viabilidade2 do trâmite do segundo procedimento. Respondendo positivamente ao segundo questionamento, o STF concluiu que existe não só identidade do acervo fático-probatório referido nos procedimentos, mas também "franca duplicação da narrativa, por vezes utilizando as mesmas palavras". Em relação ao terceiro tópico, o Supremo Tribunal Federal, revisitando o caso paradigma, consistente no HC nº 158.319/SP, writ o qual determinou a investigação criminal sobre os mesmos fatos, concluiu que, para além de dúvidas razoáveis naquela ocasião, o inquérito foi arquivado diante da realização de um juízo definitivo do STF quanto à não autoria ou participação por parte do então reclamante de qualquer conduta típica. No tocante ao quarto questionamento, desde 1902, em  Das Verwaltungsstrafrecht, escrito por Goldschmidt, a doutrina como um todo debate a diferenciação formal e material entre o ilícito penal e o ilícito administrativo. Preliminarmente quanto a questão, foram destacados os dois pontos importantes no que diz respeito à limitação do jus puniendi estatal, a saber: (1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador. Sobre a coexistência (e interação) das searas administrativa e penal, desde o caso Oztürk, em 1984, julgado perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), é possível verificar a utilização de um conceito amplo de direito penal, que reconhece o direito administrativo sancionador como um "autêntico subsistema" da ordem jurídico-penal. Diante dessa correlação, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam (e ainda bem) para o âmbito do direito administrativo sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, 2012. p. 128). No bojo desse diálogo interdisciplinar, constituindo balizas hermenêuticas, as garantias que seriam transpostas para o direito administrativo sancionador, de acordo com a referida doutrina, seriam a legalidade, a proporcionalidade, a presunção de inocência e o ne bis in idem. Não apenas esses standards hermenêuticos, mas também os princípios constitucionais que regem o sistema penal como a proporcionalidade, a subsidiariedade e a necessidade devem ser levados em conta. Não apenas a partir do aludido precedente do TEDH, mas a própria Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em seu art. 4º, permite a conclusão de que a ideia da dupla punição ofende garantias individuais já consolidadas no âmbito internacional3. Nesse sentido, a independência de instâncias esculpida no art. 37, §4º, da CF/88 deve ser interpretada de forma a ser compatibilizada com tais balizas hermenêuticas, in casu, com o ne bis in idem. A consequência disso é que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito penal não pode ser revista no âmbito do subsistema do direito administrativo sancionador. Todavia, a construção reversa da equação não é verdadeira, já que a compreensão acerca de fatos fixada definitivamente pelo Poder Judiciário no espaço do subsistema do direito administrativo sancionador pode e deve ser revista pelo subsistema do direito penal - este é ponto da independência mitigada. A própria legislação infraconstitucional (art. 935, do Código Civil de 2002) estabelece a mitigação dessa autonomia envolvendo as searas cível e penal. Sobre a correlação especifica entre as esferas penal e cível, Pacelli (2017, p. 200) destaca que "uma vez reconhecido na decisão absolutória (...) a prova de não ter o réu praticado a infração, parece-nos irrecusável que a instância civil haverá de se submeter ao referido conteúdo decisório, impedindo-se qualquer tentativa de responsabilização civil pelo fato". Nota-se que o julgado analisado, concordando por maioria com o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, concluiu acertadamente que "se a fixação de uma tese de negativa de autoria impede a ação civil de indenização, mais ainda obstaculiza a ação civil de improbidade". Vejam que, à luz do que foi defendido pela pesquisadora Helena Lobo da Costa (2013), enxergar a independência entre as instâncias (penal, administrativa e cível) configura equívoco metodológico, cujos efeitos práticos são graves. Conclusões Longe, repita-se, de esgotar tema instigante como a ação civil ex delicto, o percurso seguido até aqui, consistente no exame da legislação que rege a matéria e nos diálogos multidisciplinares envolvendo a ação civil ex delicto, com destaque para a prescrição da pretensão punitiva na ação penal e o seu reflexo no andamento de ação indenizatória no juízo cível, bem como na duplicidade punitiva à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, permitiu duas conclusões. A primeira conclusão possível, relativa ao Recurso Especial 1.802.170/SP, foi no sentido de que a prescrição da ação penal não afasta o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória por meio de ação civil ex delicto, julgado no qual a independência das instâncias prevaleceu. A segunda conclusão, em relação à Reclamação 41.557/SP, foi a de que a fixação de uma tese de negativa de autoria impede tanto a ação civil de indenização como a ação civil de improbidade, devendo a independência das instâncias ser relativizada, não apenas a partir de uma leitura internacional do tema, mas sobretudo, com base em uma leitura constitucional do tema.  *Víctor Minervino Quintiere é Doutorando em Direito pelo IDP. Advogado criminalista. Sócio do escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados. Professor de Direito Penal do programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de Brasília-UniCEUB. ____________  1 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 2 Viabilidade, aqui, representando a existência comprovada de fatos novos, que apontem para um acervo probatório independente com relação ao primeiro procedimento. 3 Sobre o tema, vide: SILVEIRA, Paulo Burnier. O deito administrativo sancionador e princípio non bis in idem na União Europeia, 2014; VENTORUZZO, M. Abusi di mercato, sanzioni Consob e diritti umani: il caso Grande Stevens e altri c. Italia, 2014. ____________  BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 16.nov.2021 BRASIL. Código de Processo Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 16.nov.2021. BRASIL. STJ. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.802.170/SP. Min. Relatora: Nancy Andrigi. Publicação no DJe em: 26/02/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=resp+1.802.170&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO. Acesso em: 18.nov.2021. BRASIL. STF. Reclamação Constitucional nº 41.557/SP. Segunda Turma. Min. Relator: Gilmar Ferreira Mendes. Julgado na sessão virtual de 4/12/2020 à 14/12/2020. Publicação no DJe em: 10/03/2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5934358. Acesso em: 18.nov.2021. LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013. OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. Editora Lumen Juris. p. 128. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 2017. Editora Atlas. p. 200.
quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Réquiem para os vícios ocultos

No campo das trocas econômicas, a qualidade do bem que se adquire é tema central. O direito contratual, buscando formalizar e proporcionar segurança aos negócios, toma em consideração ferramentas diversas para regular esse tema. De modo simples e intuitivo, cabe aos contratantes negociarem e ajustarem a qualidade do bem que transacionam. Nos contratos escritos, é de se esperar que as partes estipulem cláusulas a este respeito, para assegurar que o bem terá as qualidades e utilidades esperadas. Se houver descumprimento, cabe ao credor resolver o contrato ou exigir cumprimento específico. Nas trocas cotidianas, em que o comprador pode avaliar o produto, isto é feito com avaliação das características externas e experimentação. Na busca de produtos de boa qualidade, o comprador escolhe as frutas no mercado. Há, entretanto, estratégias econômicas mais sofisticadas a embasar este simples ato de escolha, com a construção de símbolos de qualidade, que se expressam por marcas, denominações de origem controlada, adoção de normas técnico-profissionais, dentre outros. Isto é bastante perceptível, por exemplo, na compra de produtos orgânicos, pois, quanto a eles, sua qualidade mais relevante - a de estar livre de agrotóxicos - não pode ser constatada visivelmente. Por isso, a produção desses produtos segue normas técnicas e ordinariamente é assinalada por símbolos próprios. Quando não há negociação expressa da qualidade, as soluções que os ordenamentos jurídicos podem apresentar para este dilema variam entre dois extremos: o caveat emptor e o caveat venditor. Historicamente, a venda surgiu sobre a premissa do caveat emptor, vale dizer, cabia ao comprador precaver-se quanto à qualidade do produto. Isso porque tratava-se de contrato em que o alienante cumpria sua obrigação ao entregar coisa certa, que, sob exame do comprador, tem sua qualidade testada. Aceito o produto, a obrigação do vendedor estava extinta, salvo prova de dolo. Tratava-se, naturalmente, de uma regulação jurídica primitiva, que não poderia dar conta de maior complexidade. Há certos tipos de bens cuja qualidade só se conhece com o uso ou longo tempo após a contratação1. Nessas situações, o tema da qualidade é muito mais delicado, porque ela só pode ser aferida quando a contratação já está há muito terminada e quando o uso recorrente já desgasta a coisa. Sem regular o problema dos bens de experiência, o direito romano clássico evoluiu. O mais tradicional remédio para este tema surge por obra dos pretores comerciais, para regular a compra de escravos e animais2. Em seus editos, os pretores permitiam que, após a venda e constatação da qualidade do produto pelos compradores, pudesse haver o desfazimento do contrato de compra caso fossem constatados vícios ocultos ou, alternativamente, para que pudesse haver abatimento no preço. A responsabilidade por vícios ocultos, diferentemente do que ocorria no regime contratual básico, não exige culpa ou dolo do vendedor. O regime dos vícios ocultos foi aprimorado ao longo dos séculos para especificar no que consistem e em que prazo devem ser descobertos. De todo o modo, o que temos é uma dicotomia entre a responsabilidade por inadimplemento (que hoje, na responsabilidade contratual se dá ordinariamente com culpa presumida) e o regime de garantia por vícios da coisa, que se dá independentemente da culpa. Caso a qualidade tenha sido negociada e descumprida, cabe ao credor exigir o cumprimento específico da obrigação ou, por outro lado, resolver o contrato e haver perdas e danos. Como sua opção não está sujeita a prazo, as duas opções podem ser exercidas no prazo prescricional de 10 (dez) anos. Caso a falta de qualidade se conforme na hipótese de um vício oculto, aplica-se o art. 445, do Código Civil. Vale dizer, o adquirente pode optar por dois remédios (i) desfazer ou redibir o negócio; ou (ii) obter abatimento do preço. De todo modo, sua opção deve ser exercida no prazo de 30 dias se a coisa for móvel, e de 1 ano se for imóvel. E, "quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis" (art. 445, §1º, CC). Feitas essas observações e no intuito de refinar o quadro teórico até aqui apresentado, é importante observar que os vícios do produto são tradicionalmente considerados problemas intrínsecos às coisas, que, com ela se manifestam. No campo da edificação, temos exemplificativamente as paredes que vêm a ruir, total o parcialmente, a piscina que infiltra, dentre outros. Vale dizer, portanto, que o tema da qualidade estava cercado pela negociação expressa das partes e pelo regime dos vícios intrínsecos. Entretanto, há problemas de qualidade relacionados não à coisa em si, mas ao que dela esperamos. Nesse campo, temos o encanamento de água que apresenta baixa pressão, o esgotamento que não permite rápida vazão, o revestimento de paredes que rapidamente não resiste as intempéries. Havia alguma dificuldade de enquadrar essas situações como vícios da coisa, porque são coisas hígidas, porém de baixa qualidade. A baixa qualidade é problema que ordinariamente resolve-se por normas técnicas e por regulação. Entretanto, nem todos os bens comercializados estão sob produção regulamentada. Para superar esse problema, no direito brasileiro, a partir de 2002, acrescentou-se um terceiro regime ao tema das qualidades. Diz-se que, não por força da vontade nem das garantias por vício oculto, mas daquilo que se considera boa-fé objetiva, ou seja, a legítima expectativa, certos bens devem gozar de qualidade razoável ou legitimamente esperada, conforme aquilo que o juiz perceba existir no meio social. Como se percebe, portanto, em cada situação concreta, as partes podem litigar sobre a qualidade em fundamentos estritamente contratuais, do que foi negociado efetivamente, com base no conceito de vício oculto ou com base na noção de boa-fé objetiva. Com isso, percebe-se aqui a concorrência de diversas situações que ensejam dificuldades de enquadramento legal, mas que, a depender da solução, redundam em soluções práticas drasticamente diferentes. As partes precisam saber se estão diante de um contrato de compra e venda, precisam saber se se aplica o regime do Código Civil ou do Código de Defesa do Consumidor e, definido isto, precisamos enquadrar a situação como problema de inadimplemento, vício oculto ou de conformidade com a boa-fé objetiva. Estando claro que existem diversos enquadramentos jurídicos possíveis para a falta de qualidade dos bens comercializados, é necessário avançar um pouco mais nesta análise e, então, destacar que há certa indeterminação nessas categorias, de modo que as partes, com alguma facilidade, podem razoavelmente escolher sobre qual fundamento haverão de litigar. Isso porque a diferença entre uma bem que contém vícios intrínsecos evidentemente não atende à legítima expectativa do adquirente. Se é assim, naturalmente irão escolher o caminho que lhe pareça mais favorável ou, ao menos, menos penoso. Nesta escolha, a questão do prazo exerce um papel crucial. Como o inadimplemento contratual e a boa-fé objetiva permitem o ajuizamento de ações indenizatórias em 10 anos, a existência desses amplos prazos representa um incentivo para que o adquirente se valha desta opção, escapando dos curtos prazos decadenciais que marcam as ações atreladas aos vícios redibitórios. Vale dizer, com certa facilidade de enquadrar um problema qualquer como vício oculto ou como violação da qualidade legitimamente esperada, o adquirente optará pelo último caminho. As partes adquirentes utilizam o incentivo legal para as pretensões indenizatórias em seu favor. Vale dizer, quando ajuízam suas ações, enquadram os problemas de qualidade essencialmente como inadimplemento ou de violação à boa-fé objetiva. A jurisprudência valoriza esta solução, ao deixar o prazo decadencial adstrito à redibição, e não ao direito protestativo de escolha. Com isso, mais e mais, o prazo decadencial para reclamar cai em desuso e perde sua razão de ser. Isso revela-se em qualquer pesquisa de jurisprudência sobre o tema, onde é difícil encontrar precedentes que tenham efetivamente barrado o litígio com base nos curtos prazos decadenciais próprios da decadência por vício oculto. O que isso significa em termos práticos? É difícil de precisar, mas de modo geral, pode-se imaginar que adquirentes mais hábeis na tarefa de litigar judicialmente vençam seus litígios contra vendedores sem igual preparo argumentativo. Por outro lado, é de se imaginar que os adquirentes mais débeis estejam mais vulneráveis e que justamente a eles sejam aplicados os prazos mais rigorosos dos vícios ocultos. Apenas uma pesquisa empírica poderia responder precisamente esta dúvida. De todo modo, é significativo de que o regime de vícios ocultos venha, aos poucos, sendo abandonado em diversos campos para que todos os temas de qualidade sejam tratados como mero inadimplemento. Deixa-se a teoria da garantia em direção à teoria da conformidade. ____________ 1 Veja nosso aprofundamento sobre o tema em CORREIA, Atalá. Limitação das indenizações por extravio de bagagens no transporte aéreo internacional: uma abordagem sob a perspectiva da Análise Econômica do Direito. Revista IBERC, v. 4, n. 2, p. 1-17, 26 jul. 2021. 2 Um exame mais pormenorizado deste tema pode ser visto em CORREIA, Atalá. Prescrição e decadência: entre passado e futuro. 2020. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/T.2.2020.tde-29042021-200829, p. 365. Acesso em: 2021-08-17. ____________ *Atalá Correia é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. É professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), onde co-coordena o Grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI. Atualmente é Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo. É Presidente da Seção Estadual do Distrito Federal da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Site pessoal: https://atalacorreia.academia.edu/
terça-feira, 16 de novembro de 2021

Reparação não pecuniária do dano coletivo

No último dia 20 de outubro a página na internet do Superior Tribunal de Justiça noticiou que a Primeira Seção do tribunal deliberara admitir mais uma questão a ser resolvida sob o rito dos recursos repetitivos (art. 1.036 e ss., do Código de Processo Civil)1. A questão, cadastrada sob o número 1.104 do rol de temas do Superior Tribunal de Justiça, consiste em definir a possibilidade de imposição de tutela inibitória, bem como de responsabilização civil por danos materiais e morais coletivos causados pelo tráfego com excesso de peso em rodovias. Sem dúvida trata-se de controvérsia com enorme repercussão, prática e jurídica. O transporte rodoviário no Brasil, afinal, representa o principal modal para a circulação de cargas e passageiros, envolvendo, apenas para o transporte de cargas, mais de dois milhões e duzentos mil veículos autorizados, entre veículos de empresas ou cooperativas e de motoristas autônomos, segundo dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte, e somente nas estradas federais em 2019 foram registrados mais de cinquenta e cinco mil acidentes de trânsito com vítimas, o que evidencia a gravidade do assunto2. De pronto, acredita-se que, ao julgar o tema 1.104, o Superior Tribunal de Justiça deverá reafirmar a identificação de dano coletivo em razão do reiterado tráfego de caminhões com excesso de peso3. Os precedentes existentes indicam que o Superior Tribunal de Justiça entende que o transporte de carga em desacordo com as normas que regem o serviço implica mais do que a violação da legislação de trânsito, importando danos ao patrimônio público e privado, bem como à vida e à segurança4. Deste modo, compreende que não existiria empecilho legítimo à imposição, em paralelo às sanções administrativas preconizadas pela legislação de trânsito, da responsabilidade pelo dano coletivo, que reconhece ser de ordem material e moral (denominação que se adotará para compreender os danos extrapatrimoniais ou não patrimoniais)5. O que se propõe neste momento é a reflexão acerca da reparação não pecuniária no âmbito do dano coletivo. E, mais especificamente, procurar-se-á encorajar os intérpretes a aprofundarem o uso dessa modalidade de reparação. Isto porque, nos casos de reparação do dano coletivo de ordem moral a jurisprudência6 identifica a necessidade de observar as denominadas funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil. Para concretização da função punitiva da responsabilidade civil costuma-se recorrer à imposição de uma condenação agravada em valor se comparada ao dano suportado pelo prejudicado. Este valor adicionado pode ser direcionado ao próprio prejudicado ou a algum fundo7. Em um dos precedentes específicos sobre o transporte de carga em excesso, o Ministro Herman Benjamin afirmou: Embora não seja esse o ponto central do presente litígio, nem ao leigo passará despercebido que se esvai de qualquer sentido ou valor prático, mas também moral, jurídico e político, a pena incapaz de desestimular a infração e dela retirar toda a possibilidade de lucratividade ou benefício. De igual jeito ocorre com a sanção que, de tão irrisória, passa a fazer parte do custo normal do negócio, transformando a ilegalidade em prática rotineira e hábito empresarial em vez de desvio extravagante a disparar opróbio individual e reprovação social. Nessa linha de raciocínio, o nanismo e a leniência da pena, incluindo-se a judicial, que inviabilizem ou dilapidem a sua natureza e ratio de garantia da ordem jurídica, debocham do Estado de Direito, pervertem e desacreditam seu alicerce central, o festejado império da lei8.  Atacar o efeito patrimonial que beneficia o infrator por meio da exacerbação da condenação pecuniária é também, se percebe, uma manifestação da preocupação com a função preventiva (dissuasória) da responsabilidade civil. No entanto, para qualquer destes fins, o que mais se vê é a tentativa de encontrar critérios para a fixação da reparação dos danos não patrimoniais9. Ou seja, a uma situação complexa por si só - arbitrar a reparação adequada - o nosso sistema permitiu acoplar mais um fator complicador - fazer com que a indenização opere punitiva e preventivamente. Um problema deste modelo, com efeito, é que com a multiplicidade de critérios disponíveis e a ampla liberdade conferida ao magistrado, o arbitramento é um trabalho árduo e sujeito a muita discrepância. A autonomia do dano coletivo exige, ademais, que, sob o aspecto de dano-evento, seja distinto das diversas lesões individuais correlatas. Tampouco, portanto, sob o aspecto do dano-prejuízo dever-se-á aspirar uma relação de proporcionalidade estrita. O dano coletivo não é equivalente à soma dos danos individuais10, tornando ainda mais complexo o seu arbitramento. Por outro lado, evidente que a imposição de uma sanção pecuniária vultosa significa um grande ônus para o apenado. Entretanto, não se tem conhecimento da eficácia real deste elemento dissuasório sequer sobre um determinado agente, muito menos sobre o conjunto de agentes do mercado. Ainda mais quando o arbitramento é realizado sem recorrer a evidências concretas e específicas e, principalmente, sem o apoio de modelos financeiros, atuariais e/ou estatísticos para análise do efeito dissuasório da sanção pecuniária. Efeitos de prevenção geral ou especial, por fim, são importantes, mas não devem esgotar o conteúdo da função preventiva. Pois bem, sucede que o ordenamento jurídico brasileiro não exige que a reparação do dano seja promovida mediante indenização pecuniária, admitindo-se a reparação não pecuniária, natural ou específica11. O art. 927, do Código Civil, impõe o dever de reparar, mas não trata expressamente da forma de reparação, legitimando a adoção da forma mais adequada ao caso concreto12. Ao tratar da indenização, o art. 947, do Código Civil, disciplina que se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor em moeda corrente. No que diz respeito ao dano coletivo, pode-se agregar o disposto nos artigos 1º, 3º e 11 da LACP, para concluir que a imposição de obrigações de fazer ou não fazer podem ser meios para operar a reparação do dano, tanto patrimonial quanto não patrimonial. No Código de Processo Civil, por sua vez, o art. 499 expressamente assevera que somente haverá conversão em perdas e danos (indenização pecuniária) se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Apesar de inserida na legislação processual, trata-se de norma de conteúdo nitidamente material e pertinente à responsabilidade civil, guardando grande sintonia com o citado art. 947, do Código Civil. Acredita-se, portanto, que a noção de resultado prático equivalente se encontra abrangida pela de reparação natural, ao mesmo tempo que a revitaliza! O direito processual civil parece ter compreendido melhor o modelo de direito civil exigido contemporaneamente, se propondo a assegurar a maior efetividade possível aos deveres e obrigações impostos pelo direito material. O direito processual civil não é autônomo, contudo, não se podendo imaginar tutela, provisória ou definitiva, independente da relação material. A tutela inibitória, a imposição de obrigações, de fazer ou não fazer, ou a busca pelo resultado prático equivalente, são efeitos, ou concretizações, da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, inclusive em sua função preventiva in concreto, sendo essa a resposta mais adequada à questão do fundamento para a outorga de tutela antecedente ao dano, rectius, ao prejuízo13. Vê-se que a relação entre o direito civil e o processual civil não precisa ser de exclusão, antes devendo ser de coordenação14. Perceber e aproveitar o alcance dos remédios processuais disponíveis para a concretização da função preventiva é extremamente importante. Nesta ordem de ideias, a imposição de obrigação de não fazer coincidente com a proibição da circulação de veículo com excesso de carga prevista na legislação de trânsito se revela uma medida insatisfatória, que poderia ser conjugada a outras consequências, como a imposição de obrigações de fazer, tais como a de ampliação ou renovação da frota, ou de restrição a usufruir de benefícios fiscais ou creditícios, dentre outras. A reparação não pecuniária deve ser a mais adequada possível e são numerosas as formas que pode assumir. Se tomarmos o exemplo francês, veremos ser admissíveis a restituição ou restauração do bem, a demolição de construções, o encerramento forçado de atividade, a substituição da vontade do responsável para obriga-lo a contratar, dentre outras15. A ampla gama de soluções concretas possíveis que se descortina mediante a admissão de uma reparação orientada pelo critério da satisfação do prejudicado torna mais nítido do que nunca que a compensação pecuniária deve ser uma solução residual ou complementar nas hipóteses de dano moral16. O nosso sistema, enfim, dispõe de alternativa melhor para a concretização da função preventiva, qual seja, a adoção de reparações não pecuniárias específicas para a situação de dano concretamente enfrentada, e é importante utilizá-las. *Fábio Jun Capucho é Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e associado ao IBERC ___________ 1 STJ: Responsabilidade por danos pelo tráfego com excesso de peso em rodovias 2 Confederação Nacional dos Transportes. Anuário CNT do Transporte: estatísticas consolidadas. Brasília, 2020, p. 13/14, In: Anuário CNT do Transporte 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo no Agravo de Instrumento contra despacho denegatório de Recurso Especial 1.580.705/MG {...} É cabível a ação civil pública para obter pronunciamento judicial voltado à imposição de obrigação de não fazer e pagamento de indenização por danos morais coletivos por empresa que persiste com a prática de fazer com que seus veículos circulem com excesso de peso, ainda mais após considerável número de autuações administravas no Código Brasileiro de Trânsito{...} rel. Min. Mauro Campbell Marques, Julgamento 03/03/2020, DJE 06/03/2020 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC {...} Ao lado das implicações patrimoniais stricto sensu (danosidade a bens públicos e privados), o direito ao trânsito seguro manifesta primordial e urgente questão de vida, saúde e bem-estar coletivos, três dos pilares estruturais do Direito Brasileiro {...} rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo Interno no Recurso Especial 1.783.304/DF {...} viii) a vedação ao sobrepeso decorre da necessidade de proteção ao patrimônio e à segurança, sendo esse o fundamento das presunções quanto ao dano e ao nexo causal; ix) o dano decorrente da conduta é tanto moral quanto material, competindo às instâncias ordinárias a fixação do patamar; x) são cabíveis astreintes para inibir a reiteração da conduta; {...} rel. Min. Og Fernandes, Julgamento 02/03/2021, DJE 15/03/2021 6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso especial 1.737.412/SE {...} No dano moral coletivo, a função punitiva - sancionamento exemplar ao ofensor - é, aliada ao caráter preventivo - de inibição da reiteração da prática ilícita - e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade {...} rel. Min. Nancy Andrighi, Julgamento 05/02/2019, DJE 08/02/2019 7 Conforme previsão do art. 13, da Lei 7347/85 (Lei que disciplina a ação civil pública - LACP) 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC, rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019 9 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 282/284 10 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 116 11 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros (p. 35). Edição do Kindle 12 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limite das formas não pecuniárias de reparação. 2018. Universidade Federal da Bahia, Salvador, p. 154 13 Em sentido diverso da opinião de Marinoni (2019-06-16T22:58:59). Tutela Inibitória e Tutela de Remoção do Ilícito . Edição do Kindle. 14 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 4ª ed. rev., atual. e amp. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 96/97 15 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil: les effets de la responsabilite. 2ª ed., Paris: LGDJ, 2001, p. 57/84 16 DANTAS BISNETO, 2018, p. 119
Embora exista vasta gama de normas protetivas ao meio ambiente no sistema legal e constitucional brasileiro, ainda carecemos de uma sistematização coerente, o que compromete o desenvolvimento de políticas públicas ambientais concretas. Soluções tópicas e descoordenadas são, ainda, a realidade. A racionalidade jurídica, em matéria ambiental, deve ser construída essencialmente pela via mais democrática, que é a legislativa, e de forma participativa, para o desenvolvimento de políticas públicas coerentes, guiadas por uma racionalidade clara e predefinida. A inserção dos seguros nesse cenário não é diferente. Embora tenha ocorrido a instituição do recurso aos seguros como mecanismo de proteção ambiental, a realidade é que tal se dá, até o momento, de forma imprecisa, sem prévio planejamento, definição de escopos, compreensão ou coordenação. Neste texto são propostas algumas bases de reflexão para um caminho de sistematização e confluência de interesses. Instrumentos econômicos de proteção ambiental decorrem de políticas públicas ambientais e objetivam a indução de comportamentos em favor das diretrizes e dos objetivos dessa política. Os mecanismos de indução de comportamento são promovidos por medidas governamentais de estímulo negativo ou positivo: pela indução a um não fazer, ou a uma mudança de comportamento, por um lado e, por outro, por um sistema de recompensas, como premiação ou remuneração para comportamentos tidos como em conformidade com as diretrizes da política governamental (incluindo a conformidade máxima e progressiva como princípio da prevenção). O posicionamento do seguro ambiental como instrumento econômico pode ser realizado por dois critérios: o critério "incentivo" e o critério "mecanismo de mercado". Por instrumentos de "incentivo", entendem-se os vinculados à indução de comportamentos e a um sistema de recompensas. Já pelo critério "mecanismos de mercado", pelo só fato de atividade seguradora, no Brasil, ser essencialmente desenvolvida pela iniciativa privada. Assim, os seguros ambientais - sejam obrigatórios ou facultativos - têm potencial de induzir a uma mudança de comportamento de quem opere atividades causadoras de impacto e riscos ao meio ambiente. O acesso à melhor tecnologia disponível de proteção ambiental e gestão de riscos ambientais (instrumentos do princípio de prevenção) é fator fundamental para a precificação dos seguros e para a própria aceitação de um risco pelo segurador (POISON, p. 52). Como podemos qualificar uma cláusula que determina o custo do seguro, o prêmio e suas revisões ou parâmetros de revisão com base em determinadas variáveis? O prêmio, como sabemos, é essencial nessa equação risco vs. prêmio e, como tal, é o reflexo do custo e valor da assunção de risco, mas isso não é estático nem imutável ao longo da vida do seguro, de modo que o prêmio altera-se, assim como a própria relação de seguro pode ser modificada, ou até mesmo extinta ou resolvida (VEIGA COPO, p. 310-311). A necessidade de contratar um seguro impõe ao responsável pela atividade econômica uma mudança comportamental e operacional. Ainda que possa parecer que este incentivo não decorra dos seguros, na realidade o é, visto como a mudança comportamental e operacional deve ocorrer desde o iter contratual. Noções como agravamento de risco e não cobertura para atos dolosos motivam essa assertiva. Ademais, ajustes e melhorias comportamentais e operacionais influenciarão na renovação dos seguros, inclusive no preço (prêmio) de renovação. Ademais, seguradores exigem que potenciais segurados assumam ações de redução de risco antes de estarem dispostos a fornecer coberturas. É necessário levar em consideração que assegurar uma atividade econômica também permite, ou mesmo pressupõe, possibilitar o próprio exercício dessa atividade. Isso acontece ao reduzir os riscos do empreendedor e, por conseguinte, outorgar uma maior segurança jurídica e financeira àquele que empreende em determinada atividade de risco (BELENGUER, p. 272), especialmente se considerados empreendimentos de menor porte e capacidade financeira (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 12-13). Deste modo, os seguros ambientais aparecem como instrumentos econômicos alternativos aos tradicionais mecanismos vinculados ao sistema de comando e controle (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 13). Parece-nos que os seguros podem ter alguma utilidade para a proteção ambiental, sob a perspectiva de prevenção e precaução de danos, por imporem deveres de cuidado ao segurado, bem como pela utilidade para contenção de sinistro. Seguros não são um incentivo ao descuido, pois como adverte Machado, "a instituição de um 'seguro-poluição não pode deixar de lado a concomitante preocupação com medidas de prevenção da poluição" (MACHADO, p. 345).  A acessibilidade a um sistema de seguros e às suas vantagens dependem de mudanças de comportamento e padrões. O grau de vulnerabilidade e de resiliência são critérios importantes para a projeção de riscos pelos seguros, com afetação na aceitação de um risco, pelo segurador, e na precificação. Desse modo, a lógica operacional dos seguros induz à construção de soluções com menor vulnerabilidade e maior capacidade de resiliência, na medida em que reduz a magnitude e as consequências dos riscos. Em outro sentido, seguros ligam-se aos princípios da prevenção e da precaução na medida em que constituam garantias de indenizações e sirvam à prevenção de riscos, pois a companhia de seguros pode se tornar um verdadeiro auditor em questões ambientais e a compra de seguros é uma ferramenta útil para a gestão ambiental. Isto é assim, quando apenas as instalações que optaram pela prevenção são seguradas. Não apenas dentro dos limites exigidos pelos regulamentos atuais, mas também no pressuposto das medidas máximas possíveis a serem instaladas e aplicadas na atividade em questão (POISON, p. 52-53). A decisão de contratar seguros ambientais decorre da análise de custo-benefício (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 15). Optar por incluir seguros nos custos de produção não é algo que necessariamente impacte financeiramente uma operação empresarial, pois os custos associados aos prêmios de seguros serão externalizados com a transferência à coletividade (BERGKAMP, p. 275). Ademais, sob uma perspectiva macro, de uma política comum e geral pela contratação de seguros ambientais, sequer haverá impacto concorrencial em relação aos preços, pois será um custo assimilado por todo um setor, e que, ao mesmo tempo, tende a trazer vantagens para toda a cadeia produtiva e de consumo - empresarial, consumidor e socioambiental. Conforme afirma Machado, "todo um coeficiente de uma estratégia politicamente oportuna como instrumento de aquisição de consenso e eficácia administrativa, considerando-se que uma rápida e larga indenização da generalidade dos prejuízos enfraquece a solicitação coletiva de inovação e controle sobre as instalações mesmas, com objetivo de reduzir-se a potencialidade de dano da empresa" (MACHADO, p. 346). Outra questão atrelada à decisão de contratar seguros ambientais, embora seja essa aplicável aos seguros de responsabilidade civil em geral, é a do risco de responsabilização, isto é, o maior ou menor risco de ser demandado pelas vítimas. O incremento da consciência e a efetiva busca por direitos e por reparação de danos influenciará na compreensão, pelos geradores de risco, da necessidade de contratação de seguros de responsabilidade civil, pois "haverá, consequentemente, maior procura pelos seguros, justamente visando a garantia patrimonial frente às possíveis reclamações de indenizações" (POLIDO, p. 60). Acrescentamos a essa tomada de consciência de busca de direitos a necessidade de uma guinada de comportamento do próprio Judiciário, a ser, quando provocado, mais contundente nas medidas e condenações que aplicar. A propósito do tema, afirma Machado que "a existência de um organismo que vá garantir o pagamento da reparação do dano poderá influir beneficamente no espírito dos juízes, livrando-os da preocupação sobre a possibilidade de o poluidor fazer frente às despesas imediatas de indenização" (MACHADO, p. 345). Essa afirmativa e essa conclusão, no entanto, não são absolutas: a existência de mecanismos de garantia são reconfortantes, afinal, seguros prestam garantia e segurança, contudo, via de regra, essa garantia é prestada ao segurado e à manutenção do seu próprio patrimônio. Os seguros são sempre secundários em relação à responsabilidade e ao dever de reparar/indenizar. Alguém será responsável, pois outrem pode ter contra ele uma pretensão decorrente de um direito violado, e o estabelecimento de responsabilidades se dá neste cenário. A responsabilidade não se impõe pelo fato de alguém ter ou não o seguro (BERGKAMP, p. 276). Reitere-se que a relação securitária se dá apenas entre segurador e segurado. Não se pode dissociar o interesse por seguros ambientais do forte movimento de conscientização que vem ocorrendo no mundo empresarial sobre as questões ambientais. É possível associar esse movimento à atenção cada vez maior ao princípio da sustentabilidade, atualmente no centro das reflexões empresarias, incentivadas pelos valores ESG. Na medida em que seja definida uma posição para os seguros como instrumento econômico, e que se entenda a necessidade de estruturação de uma política orquestrada de garantias de reparação de danos, é apropriado tratar da potencialidade de alinhamento a uma preocupação e uma tendência de maior solidariedade em matéria de reparação de danos. Facchini Neto, discorrendo sobre as tendências desse âmbito, aponta um movimento de superação das vias estritas e individualistas da responsabilidade civil [relação vítima(s) - autor(es) do dano], para um modelo socializante dos custos de reparação (socialização da responsabilidade e dos riscos individuais). A superação da responsabilidade objetiva, ainda centrada em parâmetros individuais, ruma a um modelo que transcenda o indivíduo e socialize as perdas. Segundo afirma o referido jurista, "não se trata, portanto, de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo" (FACCHINI NETO, p. 182). A propósito sustenta Schreiber que "a ideia de solidariedade vem, assim, se imiscuindo nas bases teóricas da responsabilidade civil e na própria filosofia que a sustenta. Há, cada vez mais, solidariedade na culpa (todos somos culpados pelos danos) e solidariedade na causa (todos causamos danos), e o passo necessariamente seguinte é o de que haja solidariedade na reparação (todos devemos reparar os danos)" (SCHREIBER, p. 225). Acentua-se, portanto, o movimento constante de busca por solidarizar danos e perdas, tanto no sistema geral de responsabilidade civil, quanto em questões propriamente ambientais, entendimento este que encontra eco na lição de Machado, quando afirma que "na progressão de toda a economia industrial pela forma de concentração monopolística de capital, o papel decisivo compete, de fato, a fatores que privilegiam a teoria da responsabilidade objetiva associada a esquemas de seguros" (MACHADO, p. 346). ______________  BELENGUER, David Aviñó. Prevención y reparación de los daños civiles por contaminación industrial. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015. BERGKAMP, Lucas. Environmental risk spreading and insurance. Review of European Community and International Environmental Law (RECIEL). Oxford: Blackwell, v. 12, n. 3, 2003. FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004. POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015. POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015. SARAIVA NETO, Pery; DINNEBIER, Flávia França. Sustentabilidade como princípio constitucional: sua estrutura e as implicações na Ordem Econômica. Revista de Direito Ambiental - RDA. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 85, 2017, p. 63-86. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2015. VEIGA COPO, Abel B. El riesgo en el contrato de seguro: ensayo dogmático sobre el riesgo. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015. YIN, Haitao; PFAFF, Alex; KUNREUTHER, Howard. Can environmental insurance succeed wher other strategies fail? The case of underground storage tanks. Risk Analysis: Society for Risk Analysis, v. 31, n. 1, 2011. ______________  *Pery Saraiva Neto é doutor em Direito (PUCRS), com estágio doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito (UFSC). Especialista em Direito Ambiental pela FUNJAB/UFSC. Advogado, consultor e parecerista, com experiência em Direito Ambiental e Direito dos Seguros, envolvendo atuação contenciosa e consultiva. Sócio do escritório Trajano Neto & Paciornik Advogados. 
Nos últimos dois anos, temos observado um movimento contínuo de transformação pelo qual passa o mercado de seguros brasileiro. Essa transformação revela um processo de modernização, simplificação e flexibilização do ambiente regulatório e, consequentemente, do contrato de seguro, em contraposição a um cenário passado marcado pela padronização, excessiva regulação e autonomia contratual limitada. Estamos diante de um Novo Marco Regulatório de Seguros. Nesse contexto, os seguros de responsabilidade civil ocupam posição de destaque. Segundo dados oficiais da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), os seguros de responsabilidade civil cresceram, entre 2015 e 2020, 175%, contabilizando R$2,6 bilhões de prêmio em 20201. No ano de 2021, dados até agosto já demonstram um crescimento de 35,4%, o que se traduz em prêmio acumulado no período de R$2,11 bilhões2. Esses dados, por si só, revelam a importância deste tipo de seguro como instrumento de mitigação dos mais variados riscos presentes nas atividades empresariais e que possuem potencial de causar danos a terceiros. Este é justamente o objetivo dos seguros de responsabilidade civil: indenizar as vítimas por danos causados pelo segurado em razão da prática de um ato ilícito culposo. Mas não é só. O crescimento dos seguros de responsabilidade civil também nos mostra que os riscos relacionados à responsabilização civil se intensificaram e que a função deste tipo de seguro continua sendo crucial na atualidade. Afinal, seu escopo é garantir não apenas proteção financeira ao patrimônio dos segurados, mas também ao terceiro, assegurando que o dano será efetivamente reparado e liquidado por meio da indenização securitária. De fato, além de vivermos em uma sociedade altamente litigiosa, os danos se agravaram e multiplicaram, de tal modo que o instituto da responsabilidade civil na modernidade está essencialmente voltado à proteção das vítimas e à reparação integral dos danos. Nesse sentido, são exemplos clássicos de riscos que podem ser mitigados pelo seguro os acidentes de trabalho, produtos defeituosos colocados no mercado e seu recall, poluição ambiental súbita e danos causados por profissionais liberais no exercício de sua atividade. Mais recentemente, podemos citar ainda os efeitos da pandemia, os riscos associados às novas tecnologias e até mesmo questões relacionadas à diversidade e governança ambiental, social e corporativa (ESG) como exemplos de fatores de exposição que podem impactar os seguros de responsabilidade civil, como D&O e Riscos Cibernéticos. De acordo com o relatório "Financial Services - Risk Trends", recentemente publicado pela Allianz Global Corporate & Specialty3, há expectativa de crescimento de demandas relacionadas ao Covid-19 contra diretores e administradores de empresas, tanto por negligência na adoção de medidas de proteção à saúde, como por falhas na implementação de controles de risco adequados às mudanças envolvendo o trabalho remoto ou à prestação de serviços online. Ainda segundo o mesmo relatório, o retorno ao trabalho presencial também pode gerar exposição com relação à responsabilidade civil por infecção, políticas internas de vacinação e questões relacionadas à privacidade de informações de saúde dos empregados. Relativamente ao crescente e cada vez mais presente risco de ataques cibernéticos, o relatório informa que além dos riscos de segurança associados ao trabalho remoto, o exponencial aumento nas transações digitais e armazenamento de informação eletrônica coloca as empresas em posição de vulnerabilidade e exposição perante terceiros. Os custos são incalculáveis, podendo envolver tanto as medidas de contenção do incidente cibernético, o pagamento de multas, lucros cessantes, custos de defesa e indenizações a terceiros que tiveram dados vazados, como também aqueles de natureza imaterial relacionados à imagem da empresa. Além disso, as políticas de segurança cibernética, quando deficientes, podem gerar exposição de responsabilização do próprio corpo diretivo das empresas. Segundo o relatório "Directors and Officers (D&O) Insurance Insights 2021", também publicado pela Allianz Global Corporate & Specialty4, o risco de ações coletivas de investidores que sofreram perdas em razão de falhas na adoção de políticas de governança apropriadas à proteção contra riscos cibernéticos não deve ser desconsiderado. Finalmente, já são vistas demandas coletivas, especialmente nos Estados Unidos da América, em que se discute a falta de diversidade entre os diretores e administradores de empresas sob o fundamento de violação de seus deveres fiduciários. Há, também, expectativa de que sejam notificadas reclamações envolvendo ESG por falhas de gestão e adoção de políticas de governança contrárias à mitigação de riscos climáticos e ambientais5. Neste cenário de crescente exposição a riscos de responsabilização civil, o Novo Marco Regulatório de Seguros será determinante para o desenvolvimento deste tipo de seguro, na medida em que permite e facilita a criação de novos produtos e coberturas, garante maior liberdade de negociação e contratação das apólices, além de gerar um ambiente mais inovador e competitivo. São essencialmente três normas que trazem essa evolução: a Resolução 407/21 do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e as Circulares 621/21 e 637/21 da SUSEP. As duas primeiras são responsáveis por segregar a regulação aplicável aos seguros de danos massificados e aos de grandes riscos, criando regras específicas dadas as particularidades dos riscos e dos segurados envolvidos na contratação. Já a última é norma aplicável aos seguros de responsabilidade civil. Especificamente quanto aos chamados "seguros de grandes riscos", destaca-se a possibilidade de que as condições contratuais da apólice sejam livremente negociadas entre segurados e seguradoras, observados princípios como os da boa-fé e transparência e objetividade das informações, além de alguns elementos mínimos que devem constar nas condições contratuais. Isso significa que as partes assumem posição de igualdade e o contrato de seguro deixa de estar fundado em apólices padronizadas, incentivando-se a plena liberdade de pactuação. Nessa linha, os seguros de responsabilidade civil podem ser caracterizados como de grandes riscos. Para tanto, é necessário o cumprimento de ao menos um dos seguintes requisitos: (i) que o limite máximo de garantia (LMG) da apólice seja superior a R$ 15 milhões; (ii) o segurado possua ativos totais superiores a R$ 27 milhões no exercício imediatamente anterior à contratação; ou (iii) o faturamento bruto anual do segurado no exercício imediatamente anterior seja maior que R$ 57 milhões. Dessa forma, observados os requisitos da norma, os seguros de responsabilidade civil, tais como os de Responsabilidade Civil Geral, Responsabilidade Civil de Diretores e Administradores (D&O), Responsabilidade Civil Profissional (E&O), Responsabilidade Civil Ambiental e Riscos Cibernéticos, poderão ser inseridos no novo modelo de contratação. Isso pode gerar às seguradoras maior liberdade na oferta de produtos e novas coberturas, com maiores vantagens competitivas que deixam de estar restritas ao preço do prêmio. Aos segurados, isso pode proporcionar coberturas mais adequadas ao risco de seu modelo de negócio, além de contratos mais simples e de fácil compreensão e, possivelmente, preços mais competitivos. As regras da nova norma já estão em vigor e podem ser aplicadas às apólices renovadas ou emitidas a partir de 1º/4/21. Contudo, a despeito de já vigente, o novo cenário regulatório introduz uma mudança paradigmática na forma de contratação do seguro que exige adaptação dos diversos players envolvidos, incluindo seguradoras, resseguradoras, corretores de seguros e os próprios segurados. O processo de amadurecimento é natural e esperado, mas não se deve, ao mesmo tempo, perder de vista o dinamismo necessário à implementação prática das novas regras que certamente beneficiarão todos os envolvidos e contribuirão para o desenvolvimento e modernização do mercado de seguros brasileiro. Por fim, na mesma linha de flexibilização e simplificação do contrato de seguro, a Circular 637/21, em vigor desde 1º/9/21, estabeleceu alterações relevantes na regulamentação específica dos seguros de responsabilidade civil. Como novidades, a norma autoriza a cobertura não apenas para os danos a terceiros cuja obrigatoriedade de reparação tenha sido reconhecida por decisão judicial ou arbitral, como também para aqueles decretados por decisão administrativa do Poder Público. O trânsito em julgado da decisão deixa de ser um requisito ao pagamento da indenização, conferindo maior especialização e celeridade ao procedimento de regulação de sinistro. No mais, além da possibilidade de contratação de seguro de responsabilidade civil à base de ocorrência ou à base de reclamações (com ou sem notificações), previu-se uma nova modalidade de seguro à base de reclamações: com primeira manifestação ou descoberta6, que está essencialmente associada aos seguros de riscos ambientais. Ainda com relação aos seguros à base de reclamações, a Circular eliminou os conceitos de prazo complementar e prazo suplementar, bem como seus prazos obrigatórios mínimos para apresentação da reclamação do terceiro após o fim de vigência da apólice, criando, em seu lugar, o "prazo adicional", cujo período de tempo pode ser livremente negociado. Assim, o atual cenário é altamente positivo e promissor a um crescimento ainda mais expressivo dos seguros de responsabilidade civil, tanto diante dos mais variados riscos que se apresentam na atualidade, como da possibilidade de criação de produtos e coberturas inovadoras, além de clausulados mais simples e arrojados. A experiência internacional dos mercados mais desenvolvidos é, sem dúvida, uma importante fonte a contribuir para o processo. A adaptação ao novo contexto é necessária e altamente almejada. Camila Affonso Prado é Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Associada-Titular do IBERC. Advogada da área de Seguros e Resseguros do Demarest Advogados. ______________ 1 Disponível em: http://novosite.susep.gov.br/noticias/susep-avanca-na-simplificacao-dos-seguros-de-responsabilidades-com-nova-norma/. 2 Dados apurados até agosto/2021, conforme relatório Síntese Mensal publicado pela SUSEP em outubro/2021 e disponível em: http://novosite.susep.gov.br/wp-content/uploads/2021/10/Sintese-Mensal-Agosto-2021.pdf. 3 Disponível em: https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-financial-services-risk-trends.pdf. 4 https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-DandO-insurance-trends-2021.pdf. 5 https://www.agcs.allianz.com/content/dam/onemarketing/agcs/agcs/reports/agcs-DandO-insurance-trends-2021.pdf. 6 Estas modalidades são definidas pelo artigo 2º da Circular nº 637/2021, que, especificamente em relação à novidade, prevê: "Art. 2º Para fins desta Circular, são adotadas as seguintes definições: (...). IV - seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claims made basis) com primeira manifestação ou descoberta: tipo de contratação em que a indenização a terceiros obedece aos seguintes requisitos: a) os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade; e b) o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido na apólice; ou c) o segurado apresente o aviso à sociedade seguradora do sinistro por ele descoberto ou manifestado pela primeira vez durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido na apólice.  
Recentemente foi divulgado, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o relatório Justiça em números de 20211, com base nos dados de 2020, importante fonte de dados estatísticos da realidade judicial brasileira. Este tipo de pesquisa permite, por exemplo, que sejam adotados mecanismos orçamentários e ajuda a avaliar os pontos sensíveis de política legislativa e judiciária. Em um brevíssimo resumo de suas conclusões pode-se destacar que, nos Judiciários estaduais, preponderam casos envolvendo temáticas de Direito Privado (relativos ao cotidiano de cada um de nós, com mais de 10,5% do total) associados a processos de conhecimento (visando a declaração do direito, com 23,25% do total). Acrescente-se, ainda, segundo os dados do próprio relatório, que a Justiça estadual é responsável por 64,7% das unidades totais do Poder Judiciário, sendo a principal porta de acesso ao cidadão para exercício de seus direitos. Tais casos, contudo, têm fugido, em geral, à competência dos Juizados Especiais (com apenas 12,7% do total de casos submetidos à estrutura estadual), ou seja, eles podem ser considerados mais complexos; envolver temáticas com valores acima dos 40 salários-mínimos ou, ainda, tratar de temas mais sensíveis (família, direitos de personalidade, etc.). Estes números, frise-se, representam a atual demanda associada à litigiosidade e não se referem aos casos resolvidos de forma alternativa à judicial. Assim, por exemplo, o enorme esforço legislativo para adoção de soluções não judiciais para casos que vão de inventários à alteração de registros civis acabam não expressos nesta estatística, mas podem ser constatados na análise comparada ano após ano. Por outro lado, a pesquisa indica o percentual médio de 7,3% para os casos conciliados pela atual estrutura judicial estadual, ou seja, judicializados, mas resolvidos por transação (redução em relação aos números anteriores de mais de 9%). Até este ponto, então, podemos concluir que os casos judiciais de 2020 são eminentemente relativos a temas privados e mais complexos, tendo um ambiente menos propenso ao consenso. Outro dado importante é que estes novos casos têm se concentrado, eminentemente, em temática contratual/obrigacional (8,28% do total). O que isto quer dizer? São casos que envolvem controvérsias sobre a formação, interpretação e execução de contratos e pedidos indenizatórios (incluindo descumprimento contratual). Estes dados chamam a atenção especialmente porque se concentram em áreas que são, por excelência, compatíveis com posturas de soluções consensuais de conflitos e instrumentos de prevenção e compliance. Saliente-se, contudo, que o relatório não individualiza temas como a natureza dos contratos (empresariais, civis ou de consumo) ou eventuais violações às normas da Lei Geral de Proteção de Dados, que poderiam permitir uma conclusão mais aprofundada. O que se pode, contudo, concluir de forma geral é que cada vez mais é relevante a adoção de medidas preventivas ao conflito, especialmente em temas que podem ser objeto desta estratégia. Tal postura parte, muitas vezes, da conscientização e alteração de postura pessoal e/ou de cultura corporativa. Daí porque não só o acesso à judicialização é importante, mas também à informação. Não é à toa, portanto, o reforço legislativo constante no princípio da boa-fé objetiva: veja, por exemplo, a reforma do CDC para tratar o tema do superendividamento2, seja nas alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica3 no Código Civil. Assim, por exemplo, todos sabemos que demandas judiciais demandam tempo e investimento. O relatório indica que, para o processo de conhecimento ajuizado no Poder Judiciário estadual, a média de tramitação é de 3 anos e 8 meses em primeiro grau, eventualmente acrescido de mais 1 ano e 11 meses em segundo grau. Se for necessária a execução da decisão, a média é, ainda, acrescida de 6 anos e 11 meses. Totaliza-se, assim, uma média de 12 anos e 6 meses. Isso se, de fato, o eventual crédito for satisfeito. Claramente, portanto, o custo a ser considerado não é apenas aquele financeiro, expresso nas custas judiciais a serem pagas. Ao lado do tempo, precisa-se ter em mente o quanto custa promover e manter uma demanda judicial. Tal análise deve englobar não apenas o quanto custa manter um departamento jurídico e/ou contratar de advogados, mas também o tempo e esforço produtivo desviado para reuniões, documentação, provas e audiências. Associe-se nesta análise, o desgaste de imagem/marca, das relações com fornecedores/consumidores e da cadeia de distribuição. Algumas vezes estes valores não são, contudo, percebidos, já que o total de encargos é subsidiado pelos mecanismos de assistência judiciária. Este último aspecto também deve ser destacado: o quanto a sociedade brasileira desembolsa para manter tal estrutura - por meio dos impostos que todos pagamos (em 2020, totalizando despesas de mais de R$ 57,6 bilhões apenas para o Judiciário estadual)  - para resolver questões que poderiam ser solucionadas com cuidados básicos. É neste contexto, portanto, que passa a ser importante adoção de verdadeira cultura de prevenção em matéria contratual. Afinal, se  contrato é uma tentativa de prever o futuro, os custos e riscos decorrentes da litigiosidade precisam ser conhecidos, avaliados e, eventualmente, tratados. Assim, se o consumidor precisa ser informado - ampla, correta e claramente - dos encargos e consequências do descumprimento é, justamente, para que avalie se pode arcar com eles e o quanto pesará não cumprir um contrato. O conhecimento do custo (não apenas direto) e a avaliação do desgaste das possivelmente longas demandas judiciais devem motivar o investimento em mapeamento e análise de riscos e na implementação de medidas de adequação às normas vigentes. Além disso, a preparação para recepção de demandas - evitando sua judicialização - por meio de efetivos sistemas de ouvidoria/acolhimento e a valorização do processo de negociação e, eventualmente, mediação podem ser importantes ferramentas de contenção da litigiosidade. Contudo, apesar de tudo isso parecer razoavelmente conhecido, é bastante interessante analisar como esta cultura vem sendo apresentada para os futuros operadores do Direito. E para isso, já em viés conclusivo, basta a análise da resolução 2/2021 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação que altera a resolução n° 5/2018 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito. Embora seja 'priorizada a interdisciplinaridade e a articulação de saberes' e constar como disciplina obrigatória as 'formas consensuais de solução de conflitos' pouco ou nenhum espaço é destinado às ferramentas de Gestão e avaliação de riscos (nem mesmo como disciplinas recomendadas) e, por consequência, de prevenção. Aliás, sabe-se que os diferentes Programas dos Cursos de Direito são baseados nesta Resolução e dela pouco fogem. Por outro lado, hoje inúmeras formas de incentivar (e simular) este tipo de cuidado dentro das próprias disciplinas obrigatórias, mas não necessariamente como "solução de conflitos". Os Moots já existentes podem representar importante exemplo neste sentido. Entende-se que tudo isso passa por uma importante reavaliação da postura pessoal, de comportamento corporativo em que a conscientização (muito baseada na alteridade) e o treinamento/educação são absolutamente relevantes. Por fim, também a cultura da litigiosidade precisa ser percebida como socialmente danosa. Tudo isso passa, portanto, pela Educação (em todos os níveis). *Frederico E.Z. Glitz é advogado com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias (Reggio-Calabria). Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Internacional Privado e Contratual. Componente da lista de árbitros da Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná (CAMFIEP) e da Câmara de Mediação e Arbitragem do Brasil (CAMEDIARB). Presidente da Comissão de Educação da OAB/PR.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Vide lei 14.181/2021, disponível aqui. 3 Vide lei 13.874/2019, disponível aqui.
Os meios de divulgação do mundo jurídico noticiaram amplamente um julgamento no qual o Superior Tribunal de Justiça, numa situação considerada excepcional, majorou valor de indenização por danos morais fixado nas instâncias inferiores. Num caso bastante sensível (em 2007, um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta), o Superior fixou o quantum indenizatório, antes estabelecido em R$ 60.000,00, em R$ 300.000,00 (R$ 150.000,00 para esposa e R$ 150.000,00 para a filha da vítima). O subscritor desde já registra (i) que concorda com a decisão de mérito - o aumento do valor indenizatório - pelas peculiaridades do caso e diante do conteúdo da decisão reformada; e, especialmente, (ii) o seu absoluto respeito a todos os envolvidos no caso, cuja dor e sofrimento são evidentes. A íntegra do acórdão do STJ não foi ainda publicada, mas o iter processual merece reflexão, com o único objetivo de colaboração para a melhoria da ciência do direito aplicada à prática forense. O caso foi cheio de idas e vindas e chama a atenção. O 1º Grau havia fixado os danos morais em R$ 120.000,00 para cada uma das autoras da ação, além de outas condenações (danos materiais e pensionamento aos familiares da vítima). O tribunal estadual diminuiu esse valor, condenando o réu a pagar R$ 30.000,00 para cada uma delas. Com a decisão do Superior, a indenização total, no que interessa a estas reflexões (o valor do dano moral), diminuiu de R$ 240.000,00 para R$ 60.000,00 e depois aumentou para R$ 300.000,00. No 1º Grau, o Juízo fixou a indenização em R$ 120.000,00 levando em conta "a gravidade do dano, a sua repercussão, as condições sociais e econômicas do ofendido e do ofensor, o grau de culpa e a notoriedade do lesado, além de constituir-se em um caráter punitivo, para que o seu ofensor não mais pratique o mesmo ato lesivo, sem, contudo, dar ensejo ao enriquecimento ilícito da vítima". O Tribunal anulou a sentença por defeito de fundamentação: o Juízo anterior não teria apreciado a alegação - ou tese - de culpa concorrente (o comportamento da vítima teria tido influência no ato ilícito, o que deveria repercutir na condenação de responsabilidade civil). Foi proferida nova sentença na qual o Juízo afirmou que "ademais, havendo ou não havendo traição, tal fato por si só, não confere o direito de se ceifar a vida de outrem ou muito menos serve como cláusula excludente de ilicitude". O valor indenizatório foi mantido (R$ 240.000,00 para as duas autoras, em iguais proporções). As autoras recorreram para fazer incluir na condenação uma indenização para despesas com tratamento psicológico (é dizer: não impugnaram o valor da indenização pelo dano moral, demonstrando estarem satisfeitas com o valor). O réu apelou, insistindo na sua tese e pedindo a diminuição da indenização moral. O Tribunal acolheu a tese do réu da ação, e, por conta de "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima" reduziu o valor da indenização para R$ 30.000,00 para cada uma das autoras. As autoras (esposa e filha da vítima) passaram a disputar com o réu o valor da indenização e o caso aportou no STJ por Recursos Especiais de ambas as partes (os Especiais não foram admitidos, mas o STJ converteu os Agravos respectivos). As autoras pretendiam alterar o termo final do pensionamento e aumentar o valor da indenização; o réu pretendia diminuir ainda mais a indenização por danos morais. O julgamento dos recursos foi monocrático. O Recurso Especial das autoras recebeu parcial provimento: foi alterado o acórdão estadual para fixar novo termo final da pensão devida à filha da vítima, mas, no que toca ao quantum indenizatório do dano moral, o Especial foi desprovido porque, entre outros fundamentos, a Súmula nº 7 impediria a análise da tese da culpa concorrente. A decisão consignou: Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária O Recurso Especial do réu foi desprovido, também com fundamento na Súmula n. 7 do STJ. A decisão, coerentemente, repetiu as palavras do julgamento que negara provimento ao Especial das autoras: Portanto, constata-se que a matéria referente ao valor dos danos morais foi apreciada mediante acurada análise das provas carreadas aos autos, levando-se em consideração, inclusive, a culpa concorrente da vítima, e observando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que a prática do homicídio é ato gravíssimo que causa profunda dor e sofrimento nos familiares da vítima. Assim, não havendo justificativa para a intervenção desta Corte Superior, mostra-se imperiosa a incidência da Súmula 7/STJ, já que para infirmar as conclusões do Tribunal estadual seria imprescindível o reexame de provas, o que é inadmissível nesta instância extraordinária. As autoras agravaram, alegando não serem aplicáveis os óbices sumulares que, pela decisão, impediriam a revisão do quantum. Elas pediram o restabelecimento do valor  da indenização fixado no 1º Grau (R$ 120.000,00 para cada uma) ou, ao menos, metade desse valor (R$ 60.000,00 para cada uma). O réu interpôs dois agravos: em um, invocando a Súmula nº 7 para impedir o conhecimento do Especial das autoras, atacou a parte do decisum que alterara o termo final do pensionamento; em outro, atacou a decisão que desproveu seu pleito de maior diminuição no valor da indenização. Os três agravos foram afetados para julgamento pelo colegiado. A turma, em julgamento acontecido em 26/10/2021 decidiu alterar o valor da indenização. Segundo notícia do Migalhas, no julgamento o relator ministro Marco Bellize registrou a gravidade do caso e majorou os danos morais para R$ 120.000,00 e a ministra Nancy Andrighi sugeriu subir o valor para R$ 150.000,00, pela gravidade do caso. O julgamento se deu por unanimidade: RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. 7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência. 8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30.000,00 (trinta mil reais) viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso. A íntegra do acórdão não foi disponibilizada, mas o julgamento envolve alguns pontos sensíveis e importantes, tanto do ponto de vista da prestação jurisdicional como da reflexão doutrinária. Permito-me indicar alguns (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da Súmula nº 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação. Tudo isso é importante para a reflexão teórica, tudo isso é importante para a efetividade do Direito, tudo isso é importante para a atuação do advogado na condução do caso. Com a publicação da íntegra do acórdão, os temas serão aprofundados na Parte II. *Eroulths Cortiano Júnior é pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Advogado em Curitiba/PR.
Introdução O reconhecimento da autonomia na constituição das relações parentais, sejam biológicas ou sociofetivas, efetiva a democratização das relações paterno-filiais. Nesse sentido, emerge o fato de que a liberdade para se formar uma família socioafetiva, por adoção, multiparentalidade, por responsabilidade civil por abandono afetivo e alimentos em caso de destituição do poder familiar de filha adotiva. Por três votos a dois, deliberou-se que houve dano por atos praticados pelos pais adotivos que culminaram exemplo, traz consigo a responsabilidade no cumprimento dos direitos-deveres advindos do poder familiar. Indaga-se se há consequência jurídica ao se desconstituir o vínculo de filiação em família socioafetiva, através de análise do Recurso Especial nº 1.698.728 - MS, julgado em 04/05/2021, na reinserção de filha adotada ao acolhimento institucional. À liberdade de se constituir a filiação socioafetiva impõem-se deveres de responsabilidade parental cujo descumprimento gera consequência jurídica. Dano moral por abandono de filho adotivo. Síntese do relatório no REsp nº 1.698.728 - MS No acórdão supracitado, o relator, voto vencido, manifestou no relatório que: - A criança foi adotada aos nove anos de idade; - Os pais adotivos a agrediam física e psicologicamente; - Os pais procuraram o Ministério Público buscando medidas protetivas em seu favor, tendo afirmado que estava apresentando comportamentos antissociais e havia, até, fugido do colégio onde estudava; - O Ministério Público Estadual ajuizou medida protetiva em seu favor na qual pediu a intervenção judicial para o acompanhamento temporário da família por equipe técnica e órgãos oficiais, e a realização de estudo psicossocial na residência familiar; - O estudo psicológico constatou que os pais desejavam entregá-la para uma instituição de acolhimento e que eles não tinham interesse em resolver o conflito familiar; - A menor confidenciou para a equipe técnica ter medo da sua genitora porque ela a agredia com frequência; - A equipe técnica constatou indícios de transtornos nas suas áreas cognitiva, comportamental, emocional e física, o que acarretou a recomendação institucional para o fim de garantir sua plena integridade, tendo a Justiça acolhido a recomendação e determinado o seu acolhimento institucional, além da perda do poder familiar. Em primeira instância, pugnou-se pela condenação dos pais por dano moral, bem como ao pagamento de pensão alimentícia. O recurso de apelação deliberou pelo não pagamento de pensão de alimentos em razão de perda do poder familiar e pela não configuração de dano moral. Em recurso especial, proferiu o relator voto de que não se comprovou maus tratos pelos pais adotivos, houve divergência na condução da criação da filha, que tinha comportamento difícil, e serem os pais idosos. Não se comprovou o ato ilícito, portanto não há dano moral a ser reparado. Para tanto seria indispensável o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência que não pode ser levada a efeito em recurso especial, em virtude do óbice da Súmula nº 7 do STJ.  Restabeleceu a sentença, conferindo alimentos à menor. Em razão se de tratar de matéria inédita, solicitou a ministra Nancy Andrighi, vista. Destacou a ministra, em seu voto que as particularidades da referida adoção devem ser consideradas, e que é fato que a adotiva manifestou não interesse em ter a adolescente morando com consigo, após menos de cinco anos da adoção. Reconheceu o dano moral pelos seguintes motivos: - A adoção é ato irrevogável, - A partir dos mesmos elementos fático-probatórios, é possível inferir conclusão distinta, no sentido de que, cientes da impossibilidade jurídica de revogar a adoção da filha que não atendeu às expectativas nela depositadas, os recorridos provocaram artificialmente a destituição do poder familiar, de modo a devolver a filha adotiva que não servia aos seus propósitos e aos seus desígnios. -  Essa perspectiva egocêntrica de família, formada a partir da ideia de que somente será valioso aquele que sai exatamente aos seus e que não considera as diferenças de personalidade e as idiossincrasias da pessoa humana, é ainda mais lesiva quando se constata que, na hipótese, havia um conhecido passado de abandono, de abrigamento e de profundas mazelas que não poderia jamais ser desconsiderado; -  Embora realmente tenha havido falha estatal ao deferir à adoção de criança em condições tão especiais, não se pode eximir os pais adotivos de uma parcela dessa responsabilidade; - É crível e presumível concluir pela existência de grave abalo e de trauma psíquico em uma criança de 09 anos que, após anos de acolhimento institucional, é recebida em um lar em que espera permanecer e que, a partir de problemas que são cotidianamente enfrentados por todas as famílias do universo - talvez exponencialmente maiores em razão de sua vida pregressa, vê os seus pais agindo para devolvê-la ao albergamento aos 14 anos. Deveres parentais e reponsabilidade. Hans Jonas, ao escrever acerca do princípio da responsabilidade em que toma por objeto a natureza e as repercussões tecnológicas sobre ela, atenta para a necessidade de uma ética da responsabilidade. Segundo o autor, "cada escolha imediata exige conhecer as consequências remotas, [...]". As colocações do autor servem de reflexão para a necessidade de uma efetiva ética de responsabilidade em diversos âmbitos da existência. A responsabilidade se revela quanto ao outro, à sociedade em geral, e é essencial à sobrevivência humana. É no seio de uma família que ela primariamente se apresenta, é a partir da corresponsabilidade entre os familiares, e, especificamente, dos pais em relação aos filhos, que se pode imaginar uma responsabilidade entre seres humanos. É o que preleciona Hans Jonas, para, inclusive, atentar sobre a possibilidade de uma ética de responsabilidade através da responsabilidade primária do natural dever para com os filhos. A ideia de responsabilidade nasce da relação unilateral resultante da procriação e não da relação mútua entre adultos independentes. A origem da previdência e do altruísmo nos seres racionais, por muito sociais que sejam, não poderia ser compreendida sem a relação familiar. "Temos aqui o arquétipo de toda a ação responsável, implantado em boa parte da humanidade. [...]" A relação familiar e o conteúdo da responsabilidade entre pais e filhos são paradigma para a sociedade. Isto é, "os pais são responsáveis totalmente, o que é mais do que uma obrigação de solidariedade. A sua responsabilidade resulta de serem fonte de existência." A responsabilidade dos pais para com os filhos advém dos deveres inerentes ao poder familiar. Há uma responsabilidade para com a criação e educação dos filhos, para com a convivência familiar, e responsabilidade para com as consequências do descumprimento dos deveres parentais, sejam alimentares ou existenciais. Efetividade do dever jurídico de sustento, guarda e educação dos filhos Parentesco e filiação podem se constituir validamente de formas diversas, plurais, a gerar tratamento idêntico pelo ordenamento jurídico, em que não distingue a origem da filiação, seja biológica, socioafetiva. Nesse sentido, os deveres oriundos do poder familiar devem ser cumpridos, em respeito à autonomia e solidariedade na condução da criação dos filhos.       Esse dever, de conteúdo solidarista, importa em manifestação do legislador sobre as relações que julga deverem ser aplicadas e respeitadas como modelo de família que se deseja ver efetivada em nossa sociedade. Neste aspecto, constata-se a necessária adequação da interpretação dos artigos 1566 IV, 1631, 1634, do CC de 2002 face aos princípios da liberdade e da solidariedade, ponderáveis no caso em concreto, com base nos valores reinantes em nossa sociedade atual, visto que, as condutas nele consignadas requerem ser interpretadas conforme valores e os modelos de família vigorantes.  Como os artigos importam em dever, exige-se, logicamente, a observância desse dever jurídico. Esses artigos, ao tratarem dos deveres para com os filhos, de sustento, guarda e educação, reafirmam o comando constitucional a exigir que se ofereça à criança e ao adolescente proteção privilegiada. Depreende-se que se desdobram como centro de interesse de tutela os deveres e responsabilidade dos pais e os direitos dos filhos a uma adequada educação. O respeito à autoridade dos pais é essencial nas relações familiares, que se norteia pela afetividade e pela solidariedade. E exatamente por consubstanciar-se em relação interpessoal, existencial, que a troca será sempre um atributo intrínseco ao núcleo familiar. Nesta troca, entretanto, há que preponderar o amparo dos pais aos filhos menores, e o exercício da autoridade dos pais deve ter por critério norteador a garantia do bem-estar dos filhos. Relativiza-se o conteúdo da autoridade, que deixa de ser absoluta, no sentido de refletir um poder autônomo do pai como elemento do poder familiar no qual o legislador não interfere, para transformar-se em um poder-dever, cujo poder está, agora, no direito de exercer o poder familiar, ou seja, através da proteção e preservação dos interesses dos filhos face à sociedade.     Os arts. 1566, inciso IV, 1634, I e II requerem ser interpretados com base nos postulados constitucionais, especificamente devem analisados tendo-se por ponderação os princípios da liberdade, da responsabilidade, da solidariedade e da integridade física e psíquica. A eficácia do dever dos pais para com os filhos se apresenta naturalmente através das relações familiares, em um aspecto sociológico. Logicamente que há circunstâncias na qual um ou ambos os genitores não cumprem com o comando constitucional e infraconstitucional, expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil, de proteção, respeito, afeto, amparo material e moral, a exigir que se faça cumprir a sanção imposta à quebra de dever jurídico. A sanção imposta pelo ordenamento jurídico está na suspensão ou perda do poder familiar.  Consequências jurídicas do descumprimento de deveres parentais A sanção é um mecanismo de efetividade do conteúdo normativo que, ameaçado de violação ou já descumprido, gerou consequência jurídica, a atingir a esfera de liberdade, de dignidade de alguém, podendo ter sido atingido bem jurídico patrimonial ou extrapatrimonial. A sanção, como resposta à violação, deve ser efetiva, posto intentar reparar um ato contrário ao ordenamento jurídico, seus princípios e valores. O desamparo dos pais quanto aos deveres de guarda, criação e educação deve gerar, como consequência jurídica específica, a perda ou suspensão do poder familiar, conforme estatui o Código Civil. O que se deve analisar é se, neste caso, a sanção prevista foi suficiente para reparar o dano e imputar consequência reparatória a todos os envolvidos no fato.           Na infringência de dever jurídico imposto aos pais, há que se constatar que se rompeu hierarquicamente com o postulado constitucional de ampla proteção à dignidade da criança e ao adolescente. Ora, almeja-se, sempre, a concretude do ordenamento e a coerente efetividade das normas; para tanto, há que se proceder a uma interpretação das normas e verificar, para o caso de sua violação, se a reparação se relaciona com a sua efetividade. Ou seja, em analogia tem-se como exemplo o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/1990), que intenta proteger o consumidor face a um contrato com cláusula abusiva. A reparação para a quebra de princípios norteadores da teoria do contrato, e que melhor atente à efetividade da relação contratual, é a atribuição de nulidade para a cláusula abusiva. Neste caso, o consumidor foi amparado pelo ordenamento jurídico e quanto ao fornecedor, não há prejuízo a ser sanado. O fim imediato foi o de dar equilíbrio à relação contratual, consagrando-se a efetividade do Direito para a situação em concreto. Havendo, no entanto, dano injusto para o consumidor em decorrência do contrato, é cabível a reparação civil devida através da obrigação de indenizar. Não há conflito ou dupla punibilidade para a situação, posto que se atendem, com a nulidade e com o dever de indenizar, interesses diversos, ainda que relacionados a uma mesma situação jurídica. O que se deve garantir, sempre, é a efetividade do Direito, através da proteção àquele que sofreu um dano injusto. A liberdade de planejamento familiar não é destituída do direito ao status de filho, dos deveres parentais. Aliado ao fato de que a convivência é um dever jurídico, cujo abandono pode gerar dano moral, há, também, o abandono pela inadequada criação dos filhos, a gerar responsabilidade por dano quanto ao desenvolvimento psíquico e social dos filhos.  Conclusão A convivência entre pais e filhos é essencial à identidade do filho. Em havendo desrespeito ao postulado constitucional que atribui absoluta prioridade à dignidade da criança e do adolescente, há que se aplicar o instituto do dano moral posto que se trate de direito fundamental de qualquer ser humano em ser reparado em caso de violação de direitos existenciais. E, no caso de relações paterno-filiais não há que se falar em dupla punição, isto porque a reparação civil por dano moral não se reduz a uma punição, mas sim à sanção jurídica aplicável nas situações jurídicas de dano à dignidade humana. Trata-se de interesses que se interligam, mas que podem perfeitamente coexistir em virtude do dano, sua autoria, e a efetividade da reparação em relação à vítima.  Haverá dano moral quando se constatar ofensa à dignidade da pessoa humana e, nas relações paterno-filiais, acredita-se que é perfeitamente possível sofrer a criança um dano injusto pelo fato do descumprimento dos deveres atribuídos aos pais, isto porque se comprometeu a integridade física ou psíquica do filho, posto que a convivência sadia com os pais seja essencial à formação do filho. *Kelly Cristine Baião Sampaio possui doutorado e mestrado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Civil da Universidade Federal de Juiz de Fora.                Referências JHERING, Von.  A Finalidade do Direito. Tomo II. Campinas: Bookseller, 2002, p. 141. JONAS, Hans. O Princípio da Responsabilidade, retirado em 12/07/2007, p.8.
Em julho deste ano entrou em vigor a lei 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Trata-se de lei que tem como alvo aperfeiçoar o mercado, reforçando a cultura do pagamento das dívidas, por meio da educação para um consumo consciente de todos os envolvidos no mercado de crédito.  Entre as principais alterações trazidas pela nova lei, três merecem destaque.  Em primeiro lugar, houve a criação de novos princípios que devem nortear as políticas de proteção e defesa do consumidor, presentes no art. 4º do CDC, ligados ao fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores e à prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. São princípios que reforçam a função social da proteção do consumidor e a boa-fé objetiva, como padrão de comportamento ético nos contratos de crédito. Em segundo lugar, destaca-se a criação de novos direitos básicos do consumidor, ligados à garantia de práticas de crédito responsável e preservação do mínimo existencial, por meio da revisão e repactuação de dívidas.  Estabeleceu-se, ainda, um conceito de superendividamento, caracterizado pela "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial" (art. 54-A). Por fim, a lei estabeleceu  um complexo de regras procedimentais, regulando um conjunto de atos que se desenvolve em duas fases. A primeira é relativa a um processo de repactuação de dívidas, na qual é feita uma tentativa de conciliação global e em bloco, com a presença de todos os credores e a proposta pelo devedor de um plano de pagamento de, no máximo, 5 anos, preservados o mínimo existencial e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas (art. 104-A). Nesta fase é possível a renegociação administrativa, cuja competência é concorrente em relação a todos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Art. 104-C). Já na segunda fase, prevista no art. 104-B, não obtida a conciliação, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, por meio de um plano judicial compulsório, realizando a citação de todos os credores, cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado na fase conciliatória. No que diz respeito à responsabilidade civil, é possível afirmar-se, com segurança, que Lei garantiu a possibilidade de responsabilização do fornecedor de crédito pelos prejuízos ocasionados em razão de descumprimento das determinações nela contidas, principalmente como mecanismo de prevenção da situação de superendividamento.   O dever de informação nos contratos de crédito, já regulamentado no ar. 52 do CDC, ganhou contornos mais específicos, visando a facilitar o acesso e a compreensão do consumidor aos detalhes envolvidos na contratação. A par das informações técnicas do contrato, a Lei cuidou de limitar a publicidade do crédito, expressamente proibido "indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor" ou publicidade que venha a "ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo".   A Lei vedou, de igual modo, "condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais" (Art. 54-C) Ainda sobre a informação como arma de prevenção contra as armadilhas previstas nos contratos de crédito, a Lei condicionou o dever de informar e esclarecer as características e consequências do crédito contratado, à observância das características pessoais do tomador, notadamente sua idade. A diminuição de determinadas aptidões físicas ou intelectuais com o avanço da idade impõe uma redobrada fiscalização dos deveres de lealdade e colaboração impostos ao fornecedor de crédito, sob pena de ser responsabilizado pelas perdas e danos, patrimoniais e morais causados ao consumidor (Art. 54-D, parágrafo único). Não por outro motivo, a lei estabeleceu um "ilícito de assédio" nas relações creditícias. Ficou expressamente vedada a prática (conduta) de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, inclusive à distância, por meio eletrônico ou por telefone, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio".   Segundo Claudia Lima Marques, o assédio é uma prática abusiva que atinge principalmente os consumidores hipervulneraveis, caracterizando-se pela coerção ou influência indevida de profissional, que explorando emoções, medos, confiança do consumidor em situação de vulnerabilidade agravada, impede sua decisão racional na contratação de consumo1. A prática do assédio caracteriza-se tanto na esfera contratual, quanto à margem dela, havendo abuso da boa-fé do consumidor ou de sua situação de inferioridade econômica, expondo ainda mais a sua fragilidade. A caracterização do assédio encontra fundamento na imprescindibilidade imposta por nosso texto constitucional de tutela à pessoa humana e a sua dignidade. É de Pietro Perlingieri a afirmação de que "uma vez considerada a personalidade humana como um interesse juridicamente protegido e relevante para o ordenamento, a responsabilidade civil se estende também a todas as violações dos comportamentos subjetivos nos quais se pode realizar a pessoa."2 Dessa forma, todas as condutas ilíticas que venham a atingir a personalidade humana, considerando seus atributos mais caros, como a vida, a liberdade ou mesmo a sua integridade psicofísica, serão passiveis de causar dano a ser reparado, como no caso do assédio de consumo. E mais, a apreciação das condições pessoais da vítima do assédio e a avaliação de fatores individuais concretos devem ser considerados no momento da quantificação do dano. Com relação aos contratos de crédito, tipicamente massificados e de adesão, devem ser consideradas as condições peculiares dos contratantes, preservando a personalização do contrato. Busca-se, assim, proteger a posição do sujeito contratante, em especial o idoso, contra condutas de assédio que degradem sua posição contratual relativa, em termos de agravamento de vulnerabilidade, como, aliás, é próprio da teleologia do microssistema de proteção e defesa do consumidor. Apoiando-nos nas considerações de de Arthur Basan,3 é possível afirmar que a proteção contra os danos advindos do assédio tem fundamento na frustração do direito do consumidor exercer a liberdade e a autodeterminação no âmbito do mercado de consumo. Entendemos, assim, que o dano resultante dessa conduta é de natureza extrapatrimonial, em relação ao consumidor e possui, ainda, uma dimensão transindividual, pois, em escala agregada, protege a hidizez do próprio mercado de consumo. É, potanto, de interesse social a proteção do consumidor contra essa prática. A lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismos de aperfeiçoamento do mercado de crédito, com o objetivo de prevenir o superendividamento e responsabilizar os fornecedores pelo descumprimento de suas normas, apresenta-se como um importante passo na direção da proteção do sujeito vulnerável contra as armadilhas do mercado. A efetiva implementação da Lei depende, agora, da sua aplicação pelos tribunais, colocando-a em movimento e dando sua concretude fática, aperfeiçoando a defesa do consumidor, tendo em vista o norte constitucional de construção de uma sociedade justa, livre e solidária. *Marília de Ávila e Silva Sampaio é doutora pela Uniceub. Professora do programa de mestrado profissional do IDP e juíza de Direito do TJDFT. **Roberto Freitas Filho é doutor pela USP e professor dos programas de mestrado e doutorado do IDP/Brasília. Desembargador no TJDFT. __________ 1 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor:  o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. E-book. 2 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro. Renovar. 2008. 3 BASAN, Arthur Pinheiro. Do idoso sossegado ao aposentado telefonista. A responsabilidade civil pelo assédio do telemarketing de crédito. Revista IBERC. V. 4, n. 3 (2021), pp53-66.
A série Upload foi lançada pela Amazon Prime em 2020 e retrata sociedade futura em que alguns seres humanos poderiam optar por dar continuidade à sua vida em um ambiente virtual post mortem por meio do upload de sua consciência em ambiente de realidade aumentada. Entre os diversos questionamentos trazidos pela série (alerta de spoiler!), destacam-se: o acesso a esses serviços, uma vez que há enormes diferenças entre os pacotes de dados oferecidos por diversas empresas; o consentimento (ou a ausência dele) dado em condições extremis para a autorização de carregamento; quem pode manter interação com o falecido; e as consequências de eventual inadimplemento contratual. E é sobre esse último aspecto que esse breve ensaio irá se concentrar. Você pode estar pensando por que deveria ler um artigo que versa sobre transmissão de consciência e extensão de vida virtual após a morte se essas tecnologias nem existem ainda. E é verdade, tecnologias de transferência de consciência realmente ainda não foram patenteadas, mas tecnologias que emulam a pessoa morta estão em desenvolvimento, algumas já foram patenteadas e, em breve, pretendem chegar ao mercado; outras já estão aí disponíveis. Empresas como a Microsoft estão desenvolvendo softwares de inteligência artificial (IA) que, baseados em dados pessoais do morto coletados a partir de redes sociais, imagens, textos escritos, etc., permitem que familiares e amigos conversem com o falecido por meio de chatbots conversacionais1 que simulam a personalidade do morto. A patente não é nova (data de 2017), mas sua aprovação só ocorreu em 20202 e prevê não apenas a interação por texto, mas também por voz e imagem. No começo de agosto de 2021 o Mercado Livre em parceria com a Soundthinkers surpreendeu em campanha publicitária que utilizou técnicas de reconstrução digital de imagem e da voz do já falecido pai do jogador Zico, para surpreendê-lo em homenagem3. A técnica que aplica sistema de síntese neural não é novidade em si, já havia sido utilizada em duas oportunidades em filmes da franquia Star Wars e até em fins ilícitos como os deepfakes. Em 22 de setembro de 2021 noticiou-se que a Plataforma Projetc December, criada por Jason Rohrer em setembro de 2020 e mantida pela OpenAI, permitia que qualquer pessoa criasse seu chatbot utilizando um avançado sistema de inteligência artificial (GPT-3). A plataforma tinha como proposta permitir que seus usuários adaptassem chatbots para as suas realidades, não fazendo qualquer ressalva sobre o uso para emular pessoas já falecidas. Por isso, o escritor chamado Joshua, aproveitando a lacuna contratual, resolveu utilizar a tecnologia para simular conversas com sua falecida noiva, o que estaria lhe auxiliando a superar o trauma de sua morte e a processar o luto. Quando a história foi noticiada a empresa OpenAI exigiu que o programador inserisse restrições no sistema para que esse tipo de situação não voltasse a ocorrer4. Outro tipo de tecnologia já disponível no mercado é aquela que permite que fotos sejam transformadas em vídeos de alguns segundos (10 a 20 segundos). Esse serviço é oferecido pela Deep Nostalgia (hospedada na plataforma de genealogia MyHeritage e em outros aplicativos), lançado e fevereiro de 2021, que também utiliza inteligência artificial para dar vida a fotos. O programa utiliza vídeos pré-gravados de movimentos da face humana e, após melhorar a qualidade do documento, aplica-os sobre a imagem disponibilizada pelo usuário5. Em 2019 se falava de 'ressuscitar grandes nomes da música' internacional para apresentação em shows6. Coloca-se, no entanto, como um desafio para o Direito uma vez que as novas imagens são inéditas, ou seja, não foram originalmente produzidas ou autorizadas pelo retratado. Pior. Obrigações contratuais e créditos (de diferentes naturezas) estariam sendo criados por alguém e para aqueles que até pouco tempo eram meros titulares (sucessórios, muitas vezes) de direitos já existentes. O próprio acervo patrimonial do de cujus poderia estar sendo inflado não por fruto de trabalhos pretéritos, mas futuros. No entanto, para além dos momentos nostálgicos e do auxílio com o luto, é necessário refletir sobre os direitos do morto. Há tempos já se sabe que os direitos de personalidade se estendem para depois da morte de seu titular, mas, com essas tecnologias, para além de se discutir autodeterminação corporal7 após a morte e direitos relacionados à herança digital, dá-se um passo além, é preciso tutelar a identidade pessoal e os valores existenciais do morto. Com a morte, extingue-se a personalidade jurídica, mas não se aniquila por completo direitos do falecido, em especial aqueles que se referem à sua personalidade. Estende-se para além da existência física a tutela do nome, imagem, honra, vida privada, etc., protegendo-se, de forma perene, sua dignidade. Por isso, tutelar identidade pessoal e valores existenciais em face dessas tecnologias que visam emular a pessoa é tão imprescindível quanto tutelar a própria pessoa ainda em vida. O bem jurídico aqui tutelado são os aspectos da personalidade do falecido, preservando-se a sua memória, os seus desejos, os seus valores, a sua forma de conduta. Trata-se de verdadeiro direito de autodeterminar seu legado e como será lembrado. O Código Civil estabelece ampla e controversa legitimidade nos arts. 12 e 20, parágrafo único, CC, para que cônjuge ou parentes de até quarto grau em linha reta ou colateral exerçam a defesa dos direitos de personalidade post mortem. "A tutela da personalidade do homem no direito brasileiro dá-se mediante um sistema misto. Realiza-se através da cláusula geral protetora da personalidade, tendo o legislador recepcionado a categoria do direito geral de personalidade ao lado de direito especiais de personalidade tipificados na Constituição e em lei"8. No entanto, a lei não pensou que essas mesmas pessoas poderiam um dia servir-se das memórias do morto para recriá-lo e, se permitida a analogia, reobrigá-lo. Diante das tecnologias antes apresentadas é preciso pensar em freios e talvez o primeiro e mais simples seja a necessidade de consentimento do falecido para a perpetuação de sua via post mortem. A utilização da imagem e eventualmente as possibilidades de nova contratação sobre aqueles traços de memória e mídia não seria reificar a pessoa? Qual o nível de determinação esperado? O silêncio em disposição de última vontade seria entendido como permissão? Parafraseando a famosa atriz Greta Garbo, não se poderia exigir "ser deixado só"? Haveria um direito de afirmar que a morte é definitiva ou a tecnologia poderia decretar a morte da morte? Sem essa autorização expressa, seja porque ele mesmo contratou o serviço, seja porque em outros documentos autorizou que terceiros o fizessem, não se pode falar em legitimidade do uso de direitos de personalidade post mortem. Não há, um direito de propriedade dos herdeiros sobre direitos de personalidade do morto e, por consequência, sobre seus frutos ou exploração de prestações futuras. A defesa da memória do falecido é condição de preservação de seus valores existenciais. Mas, vamos focar na nossa proposta inicial. Pensando que o morto deixou expressa autorização para o uso de tecnologias que o recriam após a morte, é devemos discutir os eventuais reflexos do inadimplemento contratual seja por parte do prestador de serviço, seja pela pessoa encarregada de gerenciar o serviço após a morte do titular. Como deverá ser determinada a responsabilidade civil contratual pelo desaparecimento da pessoa ad eternum? Tal análise poderia, aliás, perpassar vários níveis. Retomemos a primeira temporada da referida série (alerta de spoiler!) para retratar alguns: (i) ao deixar de arcar com os custos de perpetuação da consciência de seu falecido namorado, o personagem passa a sofrer diversas limitações de carregamento de dados. Já de partida temos uma consequência não patrimonial para eventual inadimplemento contratual: deixar de existir (até o próximo pagamento). O Direito Privado contemporâneo tem, como se sabe, limitado as hipóteses de pressão ao adimplemento circunscrevendo-as ao patrimônio (vide, por exemplo, o art. 789 do CPC e art. 391 do CC). (ii) Na série, o hóspede do pós-vida é consumidor utente, beneficiário de contrato entabulado por sua então namorada (e talvez parte de uma estratégia de prisão emocional). Como alguém poderia dispor sobre os direitos de personalidade de outrem? Ele poderia vir a ter sua experiência de consciência limitada pelo eventual inadimplemento da devedora? (iii) Como seria tratado o eventual inadimplemento das prestações mensais de manutenção da consciência ativa? Seria obrigação preservá-la independente de pagamento (favor debitoris) ou, ao invés de mera mora, haveria resolução a permitir a extinção do contrato (e da consciência)? Qual o limite, portanto, do interesse creditício? (iv) No seriado, o personagem principal consome bens e serviços digitais. Algo nada longe de uma realidade que já experimentamos com o non fungible tokens (NFT) e adereços, cenários, expansões e equipamentos nos jogos de realidade aumentada. Como endereçar este consumo? Como tratar seus vícios de serviço, defeitos e auferir consentimento. É possível que alguém com consciência ativada em realidade aumentada seja considerado capaz e possa validamente consentir? (v) Como medir as cláusulas penais e as cláusulas de limitação de responsabilidade? O defeito do serviço que apague a consciência é hipótese de perda de uma chance? (vi) Considerando a existência consciente em um pós-vida, qual seria o regime jurídico deste negócio para fins até mesmo de interpretação de execução e identificação dos deveres decorrentes do standard esperado? As realidades complexas e dinâmicas trazidas pelas novas tecnologias desafiam o Direito e, agora, desafiam também a morte. Não é possível pensar sobre essas novas inquietações a partir de velhas teorias sobre direitos de personalidade e tampouco da responsabilidade civil. É preciso dar um passo além, agora com os olhos de quem é tentado por tecnologias que prometem a imortalidade.  *Fernanda Schaefer possui pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do curso de pós-graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MPPR. **Frederico Glitz é advogado. Pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias (Reggio-Calabria). Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Internacional Privado e Contratual. Componente da lista de árbitros da Câmara de Arbitragem e Mediação da Federação das Indústrias do Paraná (CAMFIEP) e da Câmara de Mediação e Arbitragem do Brasil (CAMEDIARB). Presidente da Comissão de Educação da OAB/PR. __________ 1 Vide: KLEINA, Nilton. Patente da Microsoft prevê criar chatbot até de quem já morreu. In: Tecmundo, 4 de jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 2 Acesse a íntegra da patente aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 3 Vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. In: Migalhas, 19 de ago. 21. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 4 Vide em: IstoÉ Dinheiro, 22 de et. 2021. Homem cria chatbot para falar com noiva morta e empresa encerra Plataforma. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 5 Vide em: TOUEG, Gabriel. IA ressuscita quem já morreu e rende enxurradas de memes na internet. In: UOL, 4 de mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 6 Vide: ANDRION, Roseli. Hologramas 'ressuscitam' grandes nomes da música mundial em 2019. In Olhar Digital, 18 de julho de 2019. Disponível aqui. Acesso em 14 de out. 2021. 7 Sobre autodeterminação corporal vide DALSENTER, Thamis. Criogenia e tutela post mortem da autodeterminação corporal. In: Migalhas, 2 de abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em 4 de out. 2021. 8 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 182-183.
Introdução A mitigação de danos invoca uma ideia à primeira vista simples, que pode ser tripartida: Diante de um evento danoso, espera-se que da parte prejudicada que atue para mitigar os prejuízos dele decorrentes (1). Se o fizer, poderá cobrar ser indenizada por danos inevitáveis e despesas razoáveis do esforço de mitigação (2). Se não o fizer, não poderá cobrar os danos evitáveis, que deixam de ser indenizáveis (3). A simplicidade, contudo, é meramente aparente. Seja por encontrar fundamentos e disciplina distintos em cada ordenamento, seja por sua aplicação prática suscitar inúmeros dilemas, a mitigação apresenta uma série de desafios ao intérprete e ao operador do direito. Mitigação de danos pelo mundo e pelo Brasil Ainda que sob roupagens distintas - a mitigação está presente em diversos ordenamentos mundo afora. É figura de destaque nos países da tradição do Common Law, mas também se fala de mitigação em países da tradição Romano-Germânica, embora com tratamentos diferentes. No Common Law, a matéria é comumente referida como duty to mitigate, embora de dever não se trate. É tratada como um dos métodos de limitação da indenização, junto com Remoteness e Contributory Negligence. Em França, a mitigação foi tratada sob o prisma da causalidade e do venire contra factum proprium. Contudo, em 2003, a Corte de Cassação reverteu dois julgados em que as instâncias inferiores aplicaram a mitigação de danos para reduzir a indenização devida ao credor. A Corte considerou que, não havendo regra expressa, não caberia penalizar o credor que não age para limitar seus próprios danos, causando um retrocesso, especialmente na esfera extracontratual. Na Alemanha, a mitigação recebe o tratamento equivalente ao da corresponsabilidade do lesado (BGB, §254, 2), estabelecendo que "isso também se aplica se a culpa do lesado se limita a ter deixado de chamar a atenção do devedor para o risco de danos extraordinariamente elevado, que o devedor não conhecia nem deveria conhecer, ou deixar de evitar ou reduzir o dano." Na Itália, conforme art. 1.227, (2), do Codice Civile, "O ressarcimento não é devido pelos danos que o credor poderia ter evitado usando a diligência ordinária."1 A mitigação também foi incorporada ao Direito Internacional, como demonstra o exemplo mais conhecido, qual seja, o art. 77 da Convenção de Viena Sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Bens2. Além disso, há diversas iniciativas de soft law que consagram a mitigação de danos, tais como o art. 9:505 dos Princípios Europeus do Direito dos Contratos ("PECL")3. No Brasil, o interesse para o estudo da mitigação de danos foi gerado pelo artigo seminal de Vera Jacob Fradera, de 2004, na qual indagava se "Pode o credor ser instado a mitigar o próprio prejuízo?", intuindo que a resposta é positiva, com fundamento na boa-fé objetiva., mas suscitando a discussão do tema. Assim, na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a autora propôs aquilo que viria a ser o enunciado 1694. Seguiu-se rápido desenvolvimento doutrinário, especialmente voltado a examinar se e como o direito brasileiro teria acolhido a mitigação de danos. O esforço é mesmo natural. O silêncio da legislação obriga intérpretes impõe cuidado redobrado na missão de identificar o fundamento da mitigação de danos e a sua função (ou natureza jurídica) sem prejuízo da integridade do sistema jurídico e de seus cânones constitucionais. Grassaram, então, diversas propostas de fundamento. Desde a o abuso do direito, passando pela figura parcelar do venire contra pactum propium, até soluções ligadas à causalidade. Nestas, enxerga-se o dano evitável como dano indireto, fruto do rompimento (parcial ou total) do nexo causal, dado o descumprimento, pelo credor, da exigência (ônus, encargo ou incumbência) de atuar com ordinária diligência e minorar os danos decorrentes do descumprimento alheio. A despeito da miríade de fundamentos propostos, doutrina e jurisprudência brasileiras lograram atingir relativo consenso quanto ao acolhimento da mitigação de danos pelo ordenamento jurídico. Esse atingimento pode ser identificado como o fim da primeira fase do instituto da mitigação de danos no direito brasileiro, a sua infância. Para onde ir? A mitigação na prática Atingido esse estágio evolutivo, pode-se propor que o estudo da mitigação de danos no Brasil entra em sua segunda fase, a adolescência do instituto, cujo propósito deve residir em estabelecer parâmetros mais seguros para os agentes econômicos e os operadores do direito a respeito da aplicação prática da mitigação de danos. Imagine-se que uma parte é vitimada pelo inadimplemento imputável à contraparte, vindo a sofrer danos patrimoniais. O que dela se espera? Que atue com razoabilidade visando a mitigar os seus danos. Mas o que é ou não razoável varia à luz das circunstâncias específicas, das características e da situação concreta de cada parte etc, gerando uma série de questionamentos e dilemas, como sói ocorrer na aplicação de comandos dotados de indeterminação. Parte da doutrina critica o uso da razoabilidade para aferir a legitimidade da conduta do credor, sugerindo que a conduta do lesado que falha em mitigar seu próprio dano rompe o nexo de causalidade e, por isso, o critério de imputação seria o da culpa. Essa posição não anula a dificuldade enfrentada, que decorre da aplicação prática dos conceitos teóricos da doutrina da mitigação. Seja o critério de imputação o da razoabilidade, seja o da causalidade, a dificuldade deve ser enfrentada. Havendo algum grau de indeterminação no enunciado de um comando jurídico, haverá sempre três espaços perceptíveis de atuação para o operador do direito: uma zona de certeza negativa, que reúne os casos em que claramente o conceito não é atendido (1); uma zona de certeza positiva, em que claramente o conceito é atendido (2); uma zona de penumbra, que reúne os casos limítrofes, passíveis de gerar as maiores polêmicas (3). Fazendo uma aproximação para o caso da mitigação e danos, há situações em que uma dada medida certamente não é razoável e, por isso, não se poderia esperar do credor que assim agisse, ainda que para mitigar os próprios danos. Portanto, nesse cenário, o credor que não adota essa medida faz jus à integralidade do dano que tiver sofrido. Essa é a zona de certeza negativa. Por outro lado, há situações em que a medida certamente é razoável. Estamos, aí, na zona de certeza positiva. Sendo a medida plenamente razoável, o credor que não a adota deixa de fazer jus à indenização do dano evitável. Não se pode esperar do proprietário de uma casa em chamas que arrisque a vida para tentar conter o incêndio, mas sim que ligue para os bombeiros imediatamente. Mas, ao lado dessas duas zonas de certeza, existe uma zona de intermediária, na qual definir se uma dada medida é ou não razoável constitui um verdadeiro desafio para o operador do direito. Evidentemente, trata-se de metáfora para que se possa compreender que nem todo caso é simples e binário. Ainda assim, são casos difíceis de serem decididos, pelos elementos concretos que apresentam e, não raro, pela existência de interesses conflitantes a serem ponderados, de modo a se verificar qual é aquele que deve prevalecer e ser tutelado. Evidentemente, existe um campo fértil para polêmicas em tema de mitigação de danos. Por isso, superada a infância da matéria, isto é, estabelecido que o direito brasileiro recepcionou e incorporou o preceito da mitigação de danos pelo credor, inaugurou-se a fase da adolescência. Nela, doutrina e jurisprudência devem atentar ao estabelecimento de limites claros sobre o alcance da mitigação, preocupando-se em estabelecer com rigor o que é e o que não é esperado de cada parte, separando a expectativa legítima, que deve ser tutelada, do mero abuso da posição da pessoa devedora que apenas deseja limitar a extensão do dano a que pode ser condenada. É fundamental que a doutrina e a jurisprudência evitem o uso da mitigação de danos como uma panaceia contra todos os males que assolam a parte devedora. Esse fenômeno já acometeu outros institutos de vocação igualmente salutar, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Para tanto, o primeiro passo é ter em mente quais são os interesses que devem ser sopesados ao avaliar a conduta da parte lesado para determinar a extensão da indenização devida pela parte lesante. De fato, em geral, a mitigação alinha os interesses das partes envolvidas. A exigência de mitigação cria um incentivo econômico para que a parte lesada atue de modo eficiente na contenção dos danos decorrentes do inadimplemento. Mas e quando esses interesses conflitam? Situação interessante é o da mitigação proposta pela própria parte em mora. Imagine-se que uma parte se obriga a entregar pás eólicas no prazo de 1 ano. Após a celebração do contrato, essa parte notifica a credora informando que, em razão da variação do preço dos insumos, exige o aumento o preço contratado, do quê a compradora discorda. Para resolver o impasse, a vendedora oferece um preço 30% maior do que o contratado, ainda assim, menor do que o segundo melhor preço de mercado, mas exige da contraparte quitação total. Sob a ótica do interesse jurídico da vendedora, a aceitação da oferta é medida legítima, pois é a que menos aumenta o preço da operação. Sob a ótica do interesse jurídico da compradora, a oferta é legitimamente recusável. Afinal, exige a renúncia a direitos, transferindo à compradora o risco do aumento do preço e dos danos decorrentes da demora na definição da questão (1). Além disso, dá à vendedora o poder de impor a renegociação do contrato, desde que o seu preço seja menor que o da concorrência (2). Conclusão À guisa de conclusão deste despretensioso escrito, impende ter presente que os estudos brasileiros em torno da doutrina da mitigação de danos superaram a fase inicial, de infância da matéria, na qual se destacou a importância de estabelecer, com segurança, que o ordenamento brasileiro acolheu a noção de mitigação de danos pelo credor. Fê-lo com sucesso, dado grassar relativo consenso a esse respeito. Inaugura-se, então, uma segunda fase dos estudos da matéria, a sua adolescência. Nela, espera-se da doutrina e da jurisprudência a construção diretrizes claras a respeito do alcance prático da mitigação de danos e suas consequências. Em especial, que sejam traçados parâmetros identificáveis pelos agentes econômicos a fim de lhes outorgar maior segurança para balizar decisões que, não raro, são tomadas em situação de pressão e urgência, como é típico em situações de mitigação de dano. Em especial, afigura-se fundamental combater com rigor as tentativas de desvirtuar o instituto e transformá-lo em mais uma ferramenta para permitir que devedores deixem de responder por aquilo que lhes seja imputável. *Rafael V. Gagliardi é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Associado ao IBERC e Fellow do CIArb. Advogado e árbitro. Sócio de Demarest Advogados. __________ 1 "2. Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza." 2 "A parte que invocar o inadimplemento do contrato deverá tomar as medidas que forem razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento, incluídos os lucros cessantes. Caso não adote estas medidas, a outra parte poderá pedir redução na indenização das perdas e danos, no montante da perda que deveria ter sido mitigada." 3 "Article 9:505 - Reduction of loss: (1) The non-performing party is not liable for loss suffered by the aggrieved party to the extent that the aggrieved party could have reduced the loss by taking reasonable steps. (2) The aggrieved party is entitled to recover any expenses reasonably incurred in at tempting to reduce the loss." 4 "Art. 422: o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo."
quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Responsabilidade civil e adoção

Quando o tema deste ensaio me foi proposto, iniciei uma reflexão que julgo bastante necessária: o que acontece quando genitores biológicos não desejam mais cuidar de seus filhos? O que ocorre quando por condições financeiras, psicológicas, psiquiátricas, neurológicas, ou até mesmo por experimentarem um desamor profundo, uma falta de vínculo, ou qualquer coisa que o valha, pais e mães não queiram participar do desenvolvimento de seus filhos e desejem lançar mão de sua criação? É interessante que o mito da mãe amorosa, daquela que é capaz de tudo para ter os filhos consigo, tomou-me de assalto. Entretanto, como dito no início da frase, trata-se de um mito, de uma representação do ideal. Infelizmente, a fila de crianças esperando por um lar adotivo cresce a cada dia. Voltando à minha reflexão inicial, os genitores que desejam não mais ter seus filhos em sua companhia não podem, por óbvio, abandoná-los à própria sorte, já que tal fato é tipificado como crime (o abandono de incapaz no artigo 133 do Código Penal e o abandono de recém-nascido no dispositivo seguinte, artigo 134 do referido Diploma Legal). Possivelmente, os pais biológicos conversarão com parentes próximos, verificando a possibilidade de que tais familiares venham a assumir o que entendem como um fardo. Talvez entreguem os filhos a vizinhos e conhecidos, ignorando as consequências jurídicas de tal comportamento, fomentando aquilo que se convencionou chamar de "adoção à brasileira". Por fim, devidamente orientados, buscarão o Estado, que tem o dever de acolher tais pessoas, conforme previsto nos artigos 13, §1º e 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõem sobre a "entrega legal", também apontada como "entrega consciente" dos menores à Justiça da Infância e da Juventude. Há até quem diga que essa entrega é um verdadeiro ato de amor, daquele que de forma consciente entende que a criança estará melhor se levada aos cuidados do Estado. Infira-se, que ao receber a criança/adolescente, o Poder Judiciário ainda tentará alocá-la na família extensa, buscando a família substituta de forma excepcional. Pois bem. Esses genitores, que buscam a entrega do filho ao Poder Judiciário, não estão sujeitos a qualquer punição. Não terão que pagar aos filhos verba alimentar e não terão que indenizá-los, já que perderão o poder familiar.   Verdade seja dita, nestes casos de entrega consciente/voluntária/legal, a criança muitas vezes é vista como um erro. É duro, eu sei, e muito me custa falar isso. Mas é a realidade para muitos. Veja que meu objetivo não é exercer julgamento ético ou moral sobre as atitudes desses genitores. Quero compreender, no âmbito da responsabilidade civil, por que razão tratamos a interrupção do processo de adoção como ilícito civil e somos tão condescendentes com os pais biológicos? O ponto, talvez, seja justamente o elemento volitivo. Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um processo rígido de inscrição e avaliação do candidato a adotante. Não se poderia esperar menos, já que o Estado é responsável por aquela pessoa, que será entregue à uma família substituta. Depois da inscrição na Vara da Infância e da Juventude, os interessados passarão por estudo psicossocial, que tem como condão avaliar se eles têm condições de exercer a maternidade/paternidade responsável. Destaque-se que o artigo 43 do ECA deixa claro que a adoção será deferida se apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. Como bem ressaltam Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann: "Os motivos legítimos são aqueles que se identificam com a finalidade protetiva da adoção, aqueles ligados ao exercício da paternidade real e dedicados ao desenvolvimento do filho. A criança ou o adolescente não são meios para atender aos desejos e às expectativas individuais, mas sim parte de um plano maior: a formação pessoal e cidadã do adotando. Isso só será possível se os postulantes se descolarem de suas expectativas e adotarem a criança real, aquela que tem sua própria história, suas próprias características e seus próprios desejos.  Feita essa avaliação, os postulantes são inscritos em um programa de preparação para a adoção (...). Cumpridas essas  etapas, o procedimento é encaminhado ao Ministério Público, que analisará a regularidade formal dos autos, podendo ou não requisitar novas diligências e apresentar seu parecer final, o qual será examinado pelo magistrado (art. 197-D da lei 8.069/1990). A decisão judicial de deferimento é o que permite a inscrição dos interessados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)."1 O postulante à adoção, portanto, manifesta não só o seu desejo de adotar, como também se submete a criterioso estudo que culminará em sua inscrição no SNA. Durante esse processo, por razões óbvias, o postulante poderá a qualquer momento manifestar a sua desistência. Quando o sistema entende que há uma compatibilidade entre o menor disponível para adoção e o postulante, este último é convidado a conhecer a criança ou o adolescente, dando início ao estágio de convivência. O ECA prevê que o postulante poderá recusar dar início ao estágio de convivência. Entretanto, se fizer isso por três vezes será submetido a nova avaliação. Entende-se que não há qualquer possibilidade de responsabilização do postulante à adoção neste estágio. Esse é efetivamente o momento de recusar a aproximação ou de desistir de dar continuidade no processo. Inobstante, em estágios mais avançados do processo, não há como negar a responsabilidade do postulante, já que depois de iniciada a convivência da criança/adolescente com o adotante, não há mais momento propício para a interrupção do processo, já que aquela pessoa em formação já dispensou todas as suas esperanças naquela nova estrutura familiar. Conforme opina Epaminondas Costa, o estágio de convivência não é um direito instituído em favor dos adotantes, de tal forma a legitimar "devoluções" injustificadas de adotandos. "O estágio de convivência, previsto no art. 46 do ECA, não pode servir de justificativa legítima para a causação, voluntária ou negligente, de prejuízo emocional ou psicológico a criança ou adolescente entregue para fins de adoção, especialmente diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da prioridade absoluta em relação à proteção integral à infância e à juventude."2 Esse também é o entendimento de Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann, com o qual compactuo: "Dentro da ótica de proteção integral que embasa todo o Direito da Infância e da adolescência, o estágio de convivência deve ser compreendido como uma garantia para a criança ou para o adolescente. Ele não é um período de teste com um direito a arrependimento, é um efetivo compromisso com obrigações éticas e jurídicas com o adotando assumidas perante o Poder Judiciário. (...) Como mencionado, em regra, o estágio de convivência acaba com um relatório que trará subsídios para o magistrado decidir sobre a adoção. Entretanto, ele pode findar-se com a desistência da adoção por parte dos postulantes. Tal desistência pode ter sérios reflexos na vida da criança e/ou adolescente, aquela pessoa mais vulnerável e quem o Direito nacional deve proteger com absoluta prioridade."3 Entender a desistência durante o estágio de convivência como abuso de direito abre as portas para a reparação civil, mas deve suscitar muita reflexão. Trata-se de uma situação em que o "cobertor será sempre curto". Explico. Primeiro, a responsabilização pode gerar um afastamento dos possíveis candidatos à adoção, mas se ela não existir, os menores ficarão vulneráveis à desistências injustificadas e vazias. De outro giro, a responsabilização pode fomentar a insistência na manutenção de vínculos entre indivíduos que não estão certos do processo, formando famílias disfuncionais (o que julgo difícil, já que será feito um relatório psicossocial ao final do estágio de convivência, e que pode concluir pela impossibilidade de formação de laços familiares, com a sugestão de retorno da criança ao acolhimento). Outro ponto que merece ser avaliado: e se houvesse uma indenização previamente definida, ou seja, uma previsão legal de compensação financeira caso o estágio de convivência não desse certo, oferecendo-se uma prévia uma proteção financeira ao menor adotando? À primeira vista parece ser uma solução boa e viável, até que se imagina que alguns postulantes poderiam ver a situação como um escape para todo o processo de adoção, empenhando-se menos do que deveriam para fazer essa situação tão peculiar que é a formação de uma nova família a partir de laços não-sanguíneos, dar certo. A verdade é que não há nada mais complexo do que atribuir responsabilidade civil a violações de direitos de personalidade ocorridas no campo do Direito das Famílias. Cada situação deve ser avaliada pelo Poder Judiciário, levando-se sempre em consideração o melhor interesse da criança e do adolescente, destinatários de especial proteção do Estado. Por fim, volto-me para a esdrúxula previsão do artigo 197-E, §5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que contempla a possibilidade da devolução da criança adotada depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. Já me manifestei pela inconstitucionalidade do dispositivo, em face do artigo 227, § 6°, da Constituição Federal de 88, vez que com o trânsito em julgado da sentença, a adoção se torna irrevogável e o adotado passa a ser filho, estendendo-se a ele todos os efeitos legais da filiação, com todos os direitos e qualificações. Permitir a "devolução" seria conferir ao filho adotivo uma condição inferior àquela atribuída ao filho biológico.4 Por essa razão, defendo que, exatamente como ocorre com o filho biológico, o filho adotivo terá o direito de ser colocado na família extensa, devendo o Estado buscar parentes dos pais adotivos para verificar a viabilidade da criança ser mantida naquele seio familiar, exatamente como faria se a criança não pudesse ficar com os pais biológicos. Se, infelizmente, a criança não encontrar guarida na família extensa, enfrentará a cruel realidade de voltar ao âmbito do cuidado estatal. No início deste ensaio, refleti sobre a possibilidade da entrega consciente. Pais biológicos que entregam seus filhos ao Estado, por não poderem/desejarem participar de sua criação. Demonstrei que o ato se coaduna com a lei, e que os genitores não sofrem punições ou são responsabilizados por voluntariamente entregarem sua prole ao Poder Judiciário. Por que os pais adotivos não podem se valer da mesma regra? Como já dito, na adoção há um elemento volitivo que não se verifica na paternidade/maternidade biológica. O desejo manifesto de ingressar no Sistema Nacional de Adoção, de participar de todas as etapas do processo de adoção, de aceitar o estágio de convivência, de dar continuidade buscando a sentença que constitui o vínculo familiar, torna a "devolução" para o Estado, um ato de abuso de direito, que deve ser rechaçado por meio dos institutos da responsabilidade civil. "Devolver" significa "coisificar", o que corresponde a evidente violação dos direitos de personalidade daquele sujeito de direitos. E ainda que a compensação pecuniária possa não parecer a solução mais adequada, neste momento, ela é a única que se apresenta. *Fernanda Orsi Baltrunas Doretto é graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (curso concluído em 1998). Advogada desde 1999. Sócia de Ghenis Viana, Teixeira Gobatto e Baltrunas Doretto Sociedade de Advogados. Possui Mestrado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2002), com a dissertação intitulada "Direito à Imagem" e Doutorado em Direito Civil, também pela Universidade de São Paulo (2008), com a tese "Dano Moral Coletivo". Atualmente é professora dos Cursos de Direito das seguintes instituições: Universidade Paulista (UNIP) e Universidade São Judas Tadeu, bem como é professora convidada da pós graduação da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro do IBDFAM, do IBERC, da AIDDP e Co-Diretora da Revista Brasileira de Direito Civil. __________ 1 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann. Responsabilidade civil nos casos de desistência de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 128. 2 Estágio de convivência, "Devolução" imotivada em processo de adoção de criança e adolescente e reparação por dano moral e/ou material. Disponível aqui. Acesso em 19/02/2021. 3 VIEIRA, Marcelo de Mello e Marina Carneiro Matos Sillmann, 2021, pp. 129 e 130. 4 DORETTO, Fernanda Orsi Baltrunas. Responsabilidade civil nos processos de adoção in Responsabilidade Civil e Direito de Família: o direito de danos na parentalidade e conjugalidade. Coordenação de Ana Carolina Brochado Teixeira, Nelson Rosenvald e Renata Vilela Muteldo. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021, p. 78.
As ações de reparação por danos concorrenciais - popularmente denominadas "ARDCs" por doutrinadores e militantes na área concorrencial - têm sido alvo de bastante atenção e inúmeros debates recentes no Brasil em razão da expectativa quanto ao private enforcement concorrencial no país - i.e., a persecução privada de ilícitos concorrenciais sob o prisma da reparação de danos, alheia ao enforcement do Estado. Tal expectativa estaria relacionada à ideia de que a reparação privada de danos concorrenciais poderia ser capaz de operar como instrumento dissuasório adicional da prática de infrações à ordem econômica, ao lado das repressões administrativa e criminal, normatizadas, especial e respectivamente, na lei 12.529/2011 ("Lei Antitruste Brasileira") e na lei 8.137/1990. A despeito de destacarem a - possível - função complementar das ARDCs ao public enforcement concorrencial, os debates a respeito delas não parecem preocupar-se - com o devido cuidado - em analisá-las sob a perspectiva das funções tradicionalmente atribuídas a ações indenizatórias. Ou seja, as discussões a respeito das ARDCs no Brasil não parecem estudar sua(s) exata(s) função(ões) sob o prisma da responsabilidade civil, ficando restritas apenas à sua - eventual - função no âmbito da política antitruste brasileira. Nesse contexto, o presente artigo visará lançar breves reflexões sobre as ARDCs vis-à-vis as funções reparatória, precaucional e, inclusive, a sancionadora da responsabilidade civil, bem como respectivas implicações. Para tanto, é importante tecer breves considerações a respeito de cada uma das três referidas funções da responsabilidade civil. Nesse sentido, entende-se que a função reparatória corresponde àquela precipuamente atribuída à responsabilidade civil - i.e., de restabelecimento do equilíbrio econômico-jurídico eliminado em decorrência de um dano, transferindo os ônus materiais impostos pelo respectivo prejuízo ao seu causador. Por sua vez, a função precaucional tem como propósito coibir atividades potencialmente danosas, que exigem medidas antecipadas de diligência a serem tomadas por aquele que desenvolve atividade de risco. Finalmente, a função sancionadora corresponde à aplicação de uma pena civil ao ofensor.1 Sob a perspectiva de tais funções da reparação civil - qualquer que seja sua causa - é que deveria se propor a análise da capacidade dissuasória das ARDCs, sendo importante pontuar que o princípio da prevenção é inerente à atual concepção de responsabilidade civil. Sendo assim, (i) a função reparatória basear-se-ia na prevenção de danos; (ii) a função precaucional, na prevenção de riscos; e (iii) a função sancionadora, na prevenção de ilícitos.2 Considerando tais vertentes da responsabilidade civil no âmbito das ARDCs, e não apenas o eventual potencial dissuasório destas últimas em adição ao public enforcement do Direito Concorrencial, conclusões e desafios se materializam, conforme explorado a seguir. Primeiramente, é evidente que eventuais danos materiais decorrentes de uma conduta anticompetitiva poderiam, em tese, ser reparados por meio de uma ação indenizatória se comprovados nexo de causalidade e dano, além do próprio ato ilícito. Com isso, consubstanciar-se-ia a função reparatória das ARDCs. Não obstante, é imprescindível ressaltar que a prova de tais danos é indispensável para que a reparação seja deferível e mensurável, devendo aplicar-se a regra geral das ações que têm por objeto a reparação de prejuízos materiais, em conformidade com o art. 373 do Código de Processo Civil ("CPC") sobre atribuição do ônus da prova. Diante disso e do comando do art. 944 do Código Civil, segundo o qual a indenização se mede pela extensão do dano, o prejuízo material no âmbito de uma ARDC não traz qualquer particularidade ou distinção digna de nota, pois, por absoluta falta de amparo legal, não se admite a sua presunção, além de não ser possível afigurá-lo como consequência automática da eventual prática de ilícito concorrencial - situação em que a eventual indenização, inclusive, seria capaz de originar uma situação de desequilíbrio inter partes. Por conseguinte, ausente qualquer inovação - por absoluta falta de fundamento jurídico para tanto - no caráter reparatório das ARDCs, as possíveis controvérsias e desafios envolvendo a tal espécie de ações residiriam em torno das funções preventiva e sancionadora da responsabilidade civil. Isso porque a intenção de atribuir-se uma eficácia dissuasória a tal modalidade de ações indenizatórias não seria uma questão trivial, considerando, especialmente: a ausência de legislação específica sobre o tema - a despeito dos esforços recentes em tal sentido -;3 o estágio ainda muito prematuro da respectiva jurisprudência; e, principalmente, as diversas medidas de caráter dissuasório, além da reparação dos danos materiais, que um agente econômico infrator pode suportar. Considerando a potencialidade ofensiva de infrações à ordem econômica à coletividade, especialmente, de cartéis hardcore - tradicionalmente, entendidos como ilícitos per se pela autoridade antitruste brasileira -, e tendo em vista que o Direito Concorrencial visa tutelar um direito difuso, seria possível defender, por exemplo, a reparação, via uma ARDC, por danos sociais, os quais podem ser entendidos como as "lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral - principalmente a respeito da segurança - quanto por diminuição de sua qualidade de vida."4 Outra hipótese de reparação pelos danos decorrentes de um cartel seria a controvertida indenização por danos morais coletivos.5 Nesse sentido, ressalta-se que o dano moral coletivo vem sendo aplicado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em relação à lesão que afeta, por sua gravidade e repercussão, valores sociais primordiais. A partir desse conceito bastante aberto adotado pela referida Corte, observa-se que poderia ser sustentado que a prática de cartel também poderia ensejar a reparação de um dano moral coletivo, considerando a tutela de valores sociais como bens de titularidade coletiva - na presente hipótese, a ordem econômica. O conceito e sua aplicação, porém, não são pacíficos na doutrina, posto que, para alguns, a titularidade dos direitos subjetivos tutelados na reparação pelo prejuízo imaterial seria da coletividade, enquanto, para outros, não há possibilidade de uma lesão extrapatrimonial afetar uma comunidade abstratamente considerada, maquiando-se o instituto da responsabilidade civil para que seja aplicada, na verdade, uma pena civil.6 Este ponto é extremamente relevante se considerado o efeito dissuasório que se pretende atribuir às ARDCs, dissuasão que, por sinal, estaria relacionada às funções precaucional e punitiva da responsabilidade civil. Isso porque a aplicação de uma sanção exige uma previsão legal específica, sob pena de se violar o princípio constitucional da legalidade, já que punições exigem lei anterior que as defina. No caso de condutas anticompetitivas, especialmente do cartel, não há previsão legal que permita aplicar uma pena civil, a qual estaria caracterizada na hipótese de o valor fixado a título de condenação exceder a extensão dos danos efetivamente aferidos. Há que se destacar, sobre essa questão, o PL 11.275/2018 (originado do Projeto de Lei do Senado 283/2016), o qual prevê a possibilidade de exigir a restituição em dobro pelos danos materiais decorrentes do cartel e pretende alterar, assim, o art. 47 da lei 12.529/2011. Algumas ponderações críticas são necessárias sobre tal proposta legislativa, já que a função ressarcitória tem como propósito o reequilíbrio econômico afetado pelo dano, e não exatamente um propósito sancionador, de tal sorte que o dispositivo alterado poderia impor algumas incoerências sistêmicas, se consideradas as funções da responsabilidade civil e sua aplicação. Poder-se-ia até mesmo ponderar sobre as vedações ao enriquecimento sem causa, que tanto preocupam os julgadores ao fixarem o quantum indenizatório, até porque o ressarcimento material é medido de acordo com a extensão do prejuízo. Outro ponto bastante sensível sobre a eficácia das funções precaucional e punitiva das ARDCs está relacionado à existência de sanções paralelas aplicadas às condutas anticompetitivas, especialmente a cartéis, em âmbitos administrativo e penal. A existência de punições reiteradas poderia se agravar caso o ressarcimento pelos prejuízos materiais decorrentes da infração ocorrerem em dobro, especialmente considerando que os consumidores podem ajuizar individualmente suas ações indenizatórias. Assim, cumular-se-iam (i) a sanção administrativa, aplicada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, (ii) a punição criminal, a pedido do Ministério Público, e (iii) as sanções civis - seja por meio da tradicional função pedagógica da responsabilidade civil, seja por meio da fixação de uma pena civil específica em detrimento do agente econômico -, que se concretizariam por meio de ações para reparação dos danos coletivos ou individuais. Ainda que o cartel possa ser entendido como uma das mais graves infrações à ordem econômica, o risco de impor um regime de overdeterrence a infrações de tal natureza não deveria ser entronizado no ordenamento jurídico brasileiro sem maiores ponderações e preocupações. Especificamente no caso das ARDCs, cuja popularização pode ser relevante ao private enforcement, a proporcionalidade das sanções também deve ser resguardada e promovida. Com efeito, já há instrumentos jurídicos associados à responsabilidade civil que permitem a concretização de suas funções punitiva e precaucional, como ações coletivas por danos morais ou por danos sociais, que seguem rito previsto na lei 9.327/1996, bem como outras normas, especialmente em matéria civil, como os próprios art. 47 da Lei nº 12.529/2011 e os arts. 186 e 927 previstos no Código Civil, os quais, além de aplicáveis para a reparação dos danos materiais decorrentes de infrações à ordem econômica, estruturam o sistema de reponsabilidade civil, que deve manter-se coeso e equilibrado, independentemente da natureza do dano a ser indenizado, prevenido ou punido. *Luiz Fernando Santos Lippi Coimbra é sócio de Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Contratos pela Escola Paulista de Direito. **Beatriz de Figueiredo Coppola é advogada em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Bacharela em Direito e Mestranda em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Largo de São Franciso. Licence en Droit de l'Université Jean Moulin - Lyon III.   ***André Santos Ferraz é advogado em Caminati Bueno Advogados (São Paulo/SP). Mestrando em Direito na Universidade de Brasília - UnB. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Bacharel em Ciências Econômicas pela UnB e em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - Uniceub. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 2 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil: A reparação e a pena civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33. 3 Cita-se, por exemplo, o Projeto de Lei do Senado nº 283/2016, autuado como Projeto de Lei nº 11.275/2018 na Câmara dos Deputados. 4 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma Nova Categoria de Dano na Responsabilidade Civil: O dano social. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 19, 2004, p. 216. 5 FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Responsabilidade Civil por Danos Concorrenciais: A indenização em dobro e a não solidariedade dos infratores previstas no PLS 283/2016. Revista de Defesa da Concorrência, v. 7(1), pp. 131-159, 2019. 6 ROSENVALD, Nelson. O Dano Moral Coletivo como uma Pena Civil. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coords.). Dano moral coletivo. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 117-119.
As interfaces entre Direito e Medicina são muitas e bastante conhecidas. Particularmente no que toca ao Direito Privado e ao enfrentamento da responsabilidade do médico por danos suportados pelo paciente, é comum que os olhares se voltem para o erro médico, para o regime de responsabilidade e o ônus da prova a ele referente e para o alcance do dever de reparar ou compensar prejuízos. Mais recentemente, pelo avanço da telemedicina e pela tragédia global suscitada pela Pandemia do Novo Corona-vírus, também se tem discutido a respeito da responsabilidade do profissional médico pela guarda de dados pessoais dos pacientes e pela prescrição de tratamentos ineficazes à COVID-19. A problemática do consentimento do paciente é transversal a todos os assuntos listados, mas nem sempre recebe semelhante atenção. Isso se deve, ao menos em alguma medida, à tradição sacerdotal da medicina - partilhada pela advocacia -, e à reputação de quase panaceia conquistada pelo conhecido termo de consentimento livre e esclarecido, especialmente para casos de procedimentos invasivos, desconfortáveis ou demasiadamente complexos. O perfil da relação médico-paciente mudou, contudo. E a singela solução do termo padronizado de consentimento, como todas as soluções simples para problemas complexos, padece do mal de Mencken1. Vale dizer: é conhecida, elegante e plausível, mas errada. Ou, quando menos, insuficiente. Desde o prisma da ética médica, a fragilidade da conversão da coleta do consentimento do paciente em um simples documento médico (não raro um formulário em que os dados do paciente são preenchidos de modo manual) é extraível da Recomendação CFM 01/2016. Do parecer que a acompanha consta que "as informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer". Só assim é que o paciente poderia decidir e comunicar sua decisão de modo coerente e justificado, segundo seus valores, projetos, crenças e experiências. A soma de informações verbais dadas ao paciente e anotadas em seu prontuário a um termo padrão de consentimento livre e esclarecido, então e à primeira vista, não é prova robusta de cumprimento do dever de informar. Isso mesmo que, substancialmente, informação satisfatória tenha sido prestada. Afinal, como explicitado pela Recomendação do CFM, "o consentimento é um processo, e não um ato isolado". Como tal, "incorpora a participação ativa do paciente nas tomadas de decisão". Dita insuficiência é reforçada, ainda, pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao tema, exarado quando do julgamento do Recurso Especial 1.540.580. Na ocasião, o STJ anotou que "o dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico. (...) Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado"2. A propósito do ônus da prova acerca da entrega das informações ao paciente e da coleta de seu consentimento, a decisão da Corte foi bastante assertiva: "o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital". Diante deste pano de fundo, é saudável à classe médica dedicar atenção especial ao conteúdo e à forma da manifestação escrita de consentimento livre e esclarecido do paciente, bem assim à disposição no prontuário das informações trocadas em consulta. A um, para reforçar as linhas de defesa em face de eventual pedido de reparação ou compensação por danos decorrentes da prática médica. A dois, para mitigar o risco de responsabilidade a partir de alegação de não cumprimento (ou cumprimento imperfeito) do dever de informação, independentemente do sucesso ou insucesso do tratamento. O tema, que é muito discutido no âmbito das relações contratuais em geral sob o título responsabilidade pelo inadimplemento da boa-fé3, começa a ganhar corpo na jurisprudência também em relação à prática médica. Além da indicada decisão do STJ, há casos crescentes de condenação mantida por Tribunais de Justiça com fundamento tão-só no incumprimento ou no cumprimento imperfeito do dever de informação adequada, a despeito do afastamento de alegações do paciente acerca da culpa do profissional. Por tudo isso, seja em relação aos mais recorrentes temas da responsabilidade civil médica, seja em face de questões ainda emergentes, é fundamental o planejamento e a estruturação de meios robustos de prova acerca do suficientemente cumprimento do dever de informar e da correspondente manifestação de consentimento do paciente. Assim, apesar da variabilidade inerente ao Direito, pode-se, com estribo nas balizas deitadas pela Recomendação 01/2016 do CFM e pelas decisões pertinentes dos Tribunais brasileiros, incrementar a segurança da prática médica pela prevenção de possíveis reveses evitáveis. *André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Estudos em Direito Contratual. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. __________ 1 MENCKEN, Henry Louis. Prejudices. Second series. Londres: Jonathan Cape, 1921, p. 158. 2 STJ, REsp 1.540.580/DF, 4ª T., Rel.: Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), Rel. para o acórdão: Min. Luis Feliz Salomão, J. 02/08/2018, DJe 04/09/2018. 3 V. EHRHARDT JUNIOR, M. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
Com a popularização do e-commerce surgiram os marketplaces e, muito semelhantes a estes, as subcredenciadoras, popularmente conhecidas como facilitadores de pagamentos. Na cadeia negocial online fornece-se serviços e soluções em pagamentos, provendo à diversos empreendimentos toda a logística de compensação e liquidação de pagamentos, com baixo custo e especialmente de maneira desburocratizada e simplificada. As subcredenciadoras, mesmo que vedadas de atuar como instituições bancárias, expandiram suas operações e passaram a intermediar também transações transfronteiriças entre empresas e o consumidor final brasileiro, modalidade denominada business-to-consumer (B2C). Nas negociações transfronteiriças, por vezes, esses estabelecimentos comerciais não são institucionalizados no Brasil, todavia, encontram na intermediação operada pelas facilitadoras de pagamentos uma "porta de entrada" para a comercialização de produtos e serviços aos consumidores brasileiros. Há grande celeuma em torno da tutela jurídica consumerista, especificamente no que pertine aos limites da responsabilidade civil, frente à um possível dano experimentado por consumidor integrante da relação negocial composta por ele, pelo empreendimento estrangeiro e o subcredenciador, ao adquirir produto viciado. O subcredenciador poderia ser chamado à responsabilidade, na condição de fornecedor? As facilitadoras, assim como os marketplaces, ainda posicionam-se juridicamente controversas na medida em que a doutrina brasileira ainda não esgotou a temática, e a atual construção jurisprudencial se dá em torno de dois nichos econômicos, as empresas de marketplace e as sharing economy, a exemplo de decisões que envolvem o Mercado Livre e a Uber do Brasil. Os instrumentos de pagamentos eletrônicos foram de suma importância para o desenvolvimento e ascensão dessa modalidade de comércio porquanto este demandou uma forma distinta de transacionar, superando  o meio convencional por dinheiro impresso, o que consectáriamente, sendo hoje imprescindivel e não mais uma mera alternativa. Dentro do sistema de arranjos de pagamentos, as subadquirentes - ou subcredenciadoras - emergiram como um elo de conexão que atuam credenciando os estabelecimentos comerciais para o recebimento de pagamentos via cartão a serem feitas pelo consumidor final, sendo uma solução para os pequenos e médios empreendimentos, sejam físicos ou e-commerce, pois fornecem, a baixo custo, o sistema e a logística de liquidação e compensação de pagamentos. Esse cenário propiciou a interconexão entre os mais diversos nichos da atividade econômica e consumidor final, predispondo à amplitude e variação das composições das relações jurídicas, tendo propiciado o entabulamento de negócios transfronteiriças. Cumpre definir o que é um instrumento de pagamento, ao que dispõe a lei 12.865/2013 acerca da definição jurídica do supramencionado termo, o qual consiste em: "dispositivo ou conjunto de procedimentos acordado entre o usuário final e seu prestador de serviço de pagamento utilizado para iniciar uma transação de pagamento". Os facilitadores de pagamentos (subcredenciadoras ou subadquirentes) possuem papel fulcral na cadeia negocial online visto que integram os arranjos de pagamentos, e em observância aos preceitos normativos estipulados no Brasil, cumpre elucidar o sistema em que funcionam suas as atividades nos negócios jurídicos business-to-consumer (B2C), denominado arranjos de pagamentos. Um arranjo de pagamento funciona como uma plataforma que viabiliza e intermedia o processamento das transações entre consumidores e vendedores - business-to-consumer (B2C), propiciando a interação entre ambos com vistas à efetivação de uma troca. A rigor, o B2C se consubstandia na "transação que envolva a comercialização de produtos, a prestação de serviços ou o licenciamento de propriedade intelectual a consumidores em geral realizadas por meio de troca eletrônica de dados". (BRANCHER, 2017). O sistema de arranjos de pagamentos se estrutura de modo a ser composto por vários integrantes, dentre eles os instituidores dos arranjos de pagamentos, os credenciadores, subcredenciadores, emissores de cartão, estabelecimentos comerciais e os consumidores. Importante destacar que as subcredenciadoras são instituições de pagamentos (IPs), todavia, não financeiras. É relevante, também, pontuar também que os serviços de pagamento são prestados não só por IPs, mas também por instituições financeiras, especialmente bancos, financeiras e cooperativas de crédito. As subcredenciadoras desempenham, portanto, a atividade econômica de intermediação de forma onerosa visto que há cobranças de taxas pelos serviços, podendo ocorrer em mais de uma modalidade, tanto recaindo sobre o consumidor, quanto sobre o estabelecimento comercial, ou de ambos. Cita-se, como exemplo de facilitadores de pagamentos estabelecidos em território nacional, as empresas PayPal do Brasil, Mercado Pago e o PagSeguro. Embora tênue, há distinção entre facilitadoras de pagamentos e os marketplaces. Um Marketplace funciona como uma espécie de vitrine virtual que propicia a oferta de diversos produtos e serviços por empresas, pequenos comerciantes, e até mesmo de pessoas naturais, aos consumidores finais, sendo essa vitrine virtual uma plataforma gerenciada por uma empresa. O marketplace, propriamente dito, não necessariamente presta serviços de intermediação de pagamentos, entretanto, pode também o prestar posto que alguns custodiam os valores das transações efetuadas por meio de suas plataformas, portanto, atuando enquanto liquidantes dos pagamentos, restando possível que tais empresas operem nos moldes de um subcredenciador. A rigor, a repercussão jurídica nesse cenário repousa na obrigatoriedade dos marketplaces atuantes como subcredenciadoras a se sujeitarem à regulamentação pertinente ao mercado de adquirência. Convém ressaltar que há marketplaces que não atuam diretamente no fluxo de liquidação de pagamentos, todavia, o fato de perpassar qualquer fluxo financeiro, ainda que referente à repasses de valores à terceiros por parte da empresa, já enseja a sujeição aos atos normativos atinente aos arranjos. Assim, temos duas modalidades de marketplace: i) aqueles que não possuem qualquer meio de intermediação dos pagamentos, não custodiando, portanto, os valores transacionados por meio de sua plataforma, como por exemplo o OLX; e ii) aqueles que atuam como liquidantes dos valores referentes às transações realizadas na plataforma, havendo, portanto, um fluxo financeiro porquanto recebem os valores em sua integralidade, retiram sua comissão e repassam aos usuários-vendedores da plataforma, a exemplo do Mercado Livre e da B2W Digital. A distinção entre subcredenciador e marketplace é bastante tênue considerando que, havendo fluxo de pagamento, opera-se nos moldes de um facilitador. A regulamentação conferida aos arranjos não se destinava precipuamente aos marketplaces, entretanto, em razão do modelo de negócio que exercem, atuantes na intermediação de pagamentos, foram diretamente afetados por força da normatização exarada pela autarquia competente (Banco Central do Brasil) cujo impõe deveres, dentre eles, o de obrigatoriedade de participação na liquidação centralizada. De outro viés, uma vez que o papel das subcredenciadoras é precipuamente o de intermediação, e em cotejo com o instituto da corretagem - convencional prática de mediação - e sua natureza jurídica contratual, se demonstra plausível o enquadramento da atividade desenvolvida pelas facilitadoras enquanto uma corretagem em âmbito eletrônico ("corretagem eletrônica")? Os contratos de corretagem são regulados pelo novel Código Civil no art. 722 e seguintes, onde a lei o define como "o contrato pelo qual uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas". Empregando tal lógica à atividade de facilitador de pagamentos, estes atuam enquanto intermediador da transação entre comprador e vendedor a título oneroso, cobrando uma taxa pelos serviços prestados ao contratante-vendedor. Esse serviço consiste especialmente no fornecimento de soluções em pagamentos, inclusive na modalidade online, possibilitando a transação financeira entre as partes interessadas em negociar, fator fundamental para o êxito do negócio jurídico. Vale ressaltar que geralmente essa remuneração é devida pela parte vendedora ao subcredenciador tão somente quando houver a conclusão da transação e do negócio jurídico pretendido. A obrigação oriunda do contrato de corretagem é de resultado, consoante infere-se do art. 725 do Código Civil ao estabelecer que "a remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em virtude de arrependimento das partes", portanto, o comissário somente fará jus à comissão se a aproximação entre o comitente (contratante) e o terceiro interessado findar na efetivação do negócio jurídico. Na relação jurídica com as subcredenciadoras é possível que a comissão seja a cargo do comprador, porém não é comum. Geralmente o que se vislumbra é que tal encargo, devido em função da prestação do serviço de intermediação, recai precipuamente sobre o vendedor, que figura nesse contrato de corretagem ajustado com o facilitador de pagamentos, na posição de comitente (contratante). No âmbito das subcredenciadoras, o contrato de corretagem celebrado entre o corretor-intermediador (facilitador de pagamento) e o comitente (contratante-vendedor) não produz os seus efeitos se não houver a conclusão do contrato principal, a aquisição do produto ou serviço por parte do terceiro aproximado, uma vez que a corretagem é obrigação de resultado, sendo devida a remuneração em caso de efetivação da transação, portanto, em caso de êxito da venda. Os facilitadores de pagamentos atuam enquanto intermediadores da negociação e, no caso dos marketplaces, atuam especialmente na qualidade de ofertantes dos produtos e serviços à proporção que disponibilizam espaço próprio para a veiculação de ofertas de vendedores. Isto posto, é manifesto certo grau de similitude entre o instituto contratual da corretagem e a atividade desempenhada pelos facilitadores de pagamentos. A princípio, a intermediação no âmbito do e-commerce aparenta ser espécie de corretagem eletrônica, abrangendo, se não todos, quase todos os atributos da convencional corretagem disciplinada no Código Civil. Há também de se considerar a tutela jurídica da atividade, sob a ordem jusconsumerista. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) definiu os conceitos de consumidor e fornecedor em seus arts. 2º e 3º. Na seara da definição jurídica de consumidor, tornaram-se conhecidas duas teorias distintas, a corrente maximalista (objetiva) e a corrente finalista (subjetivista). A corrente finalista (subjetiva) é centrada na destinação final fática e econômica do consumidor, portanto, a aquisição de produtos e serviços por profissional, com vistas a atender sua atividade lucrativa, não se caracteriza como consumo final, mas como consumo intermediário. Na corrente maximalista (objetiva), não se considera que as normas consumeristas sejam orientadas de modo a proteger somente o consumidor não profissional posto que se sustenta que o CDC seria um código do consumo e que, portanto, institui normas e princípios para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir ambos os papéis, ora de fornecedor, ora de consumidor. A teoria finalista aprofundada, adotando como balizador o critério da vulnerabilidade, emergiu como recurso às excepcionais situações em que se vislumbra expresso desequilíbrio entre as partes. São, pois, características intrínsecas e expressivas do sujeito consumidor: posição de destinatário fático e econômico, aquisição para uso pessoal/próprio, não profissionalidade e vulnerabilidade em sentido amplo. (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 94). Acerca do conceito de fornecedor, a definição é tão ampla, que bem assinala Nelson Rosenvald ao aduzir que o conceito é "amplo o bastante para compreender todos que disponibilizam produtos ou serviços com habitualidade, mediante remuneração". (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 684). No que tange à caracterização de fornecimento de produtos, necessário se faz verificar duas condições: i) atividade tipicamente profissional; e ii) habitualidade. Tais critérios visam afastar a incidência do CDC em face das relações negociais entre dois consumidores não profissionais, especialmente porque o microssistema cria deveres para os fornecedores. A definição é mais concisa na medida em que não especifica quanto à necessidade do fornecedor ser um profissional, subentendendo-se que basta o desenvolvimento habitual ou repetitivo da atividade. (MARQUES, 2016, p. 420). Logo, fornecedor sé todos aquele que participa da cadeia de oferta de produtos e serviços, sendo irrelevante se a relação é direta ou indireta, contratual ou extracontratual perante o consumidor. Da cooperação entre fornecedores advém a cadeia de fornecimento, que se caracteriza como a "organização do modo de produção e distribuição, do modo de fornecimento de serviços complexos, envolvendo grande número de atores que unem esforços e atividades para uma finalidade comum, qual seja a de poder oferecer no mercado de produtos e serviços para os consumidores". (MARQUES, 2016, p. 430). A visualização dessa cadeia de fornecimento pelo ordenamento jurídico pátrio repercutiu no surgimento da responsabilização solidária dos sujeitos-fornecedores. Desse fenômeno de pluralidade passiva na relação consumerista decorreu o que Cláudia Marques nomeia de conexidade dos contratos. (MARQUES, 2016, p. 432). A conexidade é resultante dos vínculos contratuais que criam a cadeia de pessoas jurídicas diferentes e independentes, mas que se unem com a finalidade de "fornecimento", geralmente denominados "redes de contratos". Conexidade é, pois, o método de comercialização. Na perspectiva das relações negociais transfronteiriças, cumpre enfatizar que, por vezes, o consumidor não encontra opção, senão contratar junto à facilitadora de pagamento. As empresas-fornecedoras impõem que, para que o consumidor tenha acesso ao produto ou serviço, o pagamento tenha que ser efetuado por intermediadores "credenciados", noutras palavras, por intermédio do facilitador de pagamento referenciado e aceito para operacionalizar junto à empresa o pagamento. Quanto ao papel da facilitadora, esta intermedia toda a transação no sentido de confirmar - junto a empresa - o efetivo cumprimento do pagamento pelo consumidor - a ser repassado, dando o aval para que, por fim, seja entregue o produto por parte da empresa ao consumidor. Ainda que a atividade econômica dos facilitadores de pagamentos seja precipuamente regulada pelo direito econômico/financeiro por meio de leis, pareceres técnicos, circulares e demais mecanismos de regulamentação jurídicos, como já exposto, não há como se esquivar da incidência do Código do Consumidor sobre as relações negociais business-to-consumer, inclusive as intermediadas pelos facilitadores de pagamentos na modalidade de corretagem eletrônica. Logo, considerando que o conceito de fornecedor é amplo e aberto - não se consubstanciando em um rol taxativo - não se vislumbra óbice concreto à responsabilização dos facilitadores de pagamentos enquanto fornecedor no mercado de consumo. Caso um determinado desacordo comercial tenha que ser judicializado, por vezes alcançar a empresa-fornecedora do produto se demonstra como uma dificuldade extremada ao consumidor, o que dificulta a efetivação da tutela jurisdicional consumerista. Os facilitadores são pessoas jurídicas que desempenham uma atividade lucrativa e que possuem capacidade econômica suficiente para suporta os danos decorrentes desta, cientes de que a sua atuação empresarial no mercado implica riscos cuja responsabilidade não deve comportar relativização excessiva sob pena de mitigação da tutela consumerista, o que leva a crer que parece razoável a hipótese de responsabilização objetiva das subcredenciadoras, fundada na teoria do risco, nos casos em que, excepcionalmente, for manifesta a impossibilidade de ressarcimento ao lesado por eventual prejuízo sofrido. Se demonstra plausível o chamamento à responsabilização dos facilitadores de pagamentos fundado nos conceitos doutrinários, portanto, no seu enquadramento enquanto fornecedor, e em observância ao entendimento que vem sendo ratificado pela jurisprudência pátria. Quanto ao enquadramento da atividade de subcredenciamento enquanto contrato de corretagem, demonstrou-se grande semelhança entre as características de ambas. Em razão da grande similitude contratual, pressupõe-se que a atividade de intermediação seja uma espécie de prestação de serviço de corretagem eletrônica, mas sujeita à normativa do microssistema do Código de Defesa do Consumidor (CDC) uma vez que se consubstancia em serviço ofertado por fornecedor ao consumidor final. Ademais, a responsabilização objetiva encontra guarida também na teoria do risco do negócio ou da atividade empresarial. Mesmo que diante de hipóteses de excludente de responsabilidade, cabíveis inclusive no âmbito da intermediação de pagamentos, o operador do direito deve sempre observar os pilares em que está alicerçado o CDC, bem como seu objetivo fundamental, sob pena de velada mitigação da tutela protetiva e reparatória consumerista. *Danilo Porfirio de Castro Vieira é graduado em Direito pela UNESP, mestrado em Direito UNESP, doutorado em Ciências Sociais pela UNESP e pós-doutorado em Filosofia, Ciências e Letras pela USP. Professor titular de Relações Internacionais e Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e professor de Direito no IDP. Sócio advogado do Chaves, Porfírio, Vieira Advogados. **Brunna Antunes Montenegro é pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial pela Damásio Educacional. Graduada em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), advogada. Referências BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues. Comércio eletrônico. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 06 junho 2020. BRASIL. Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013. Dispõe sobre os arranjos de pagamento e as instituições de pagamento integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). Portal da Legislação. Brasília, 10 out. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2020. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 3 v. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
A restituição de ganhos ilícitos tem ocupado importante debate no âmbito do IBERC. Entre aqueles que se debruçam sobre este desafiador objetivo, e aceitam a possibilidade de se pleitear a remoção dos ganhos ilícitos realizados pelo ofensor, destacam-se duas correntes, que correspondem, respectivamente, ao refinamento imposto à responsabilidade civil no sistema da common law e ao enriquecimento sem causa no ordenamento jurídico alemão. Uma compreende que há uma limitação funcional da responsabilidade civil, dedicada exclusivamente à função reparatória. Diante da redação do art. 944 do Código Civil que limitaria a indenização à extensão do dano, a remoção ou a restituição de ganhos ilícitos se daria através do enriquecimento sem causa, pelo enriquecimento por intromissão, enriquecimento por intervenção ou lucro da intervenção e que encontraria fundamento no art. 884 do CC1. Nesse sentido, destacam-se, entre outros, os trabalhos de Sérgio Savi, Rodrigo da Guia Silva, Renato Franco e Maria Cândida do Amaral Kroetz. A segunda corrente, capitaneada por Nelson Rosenvald2 e à qual nos filiamos3, aloca a remoção e a restituição de ganhos ilícitos no bojo da responsabilidade civil. Para tanto duas premissas devem ser assumidas: a responsabilidade civil é multifuncional e atuará com diferentes remédios de acordo com os efeitos derivados do ilícito4, assumindo, assim, funções diversas da reparatória; o enquadramento dogmático que justifica a atuação da responsabilidade civil se vale da natureza do evento causal subjacente à obrigação para definir a classificação da própria obrigação, pelo que a responsabilidade civil será o instrumento adequado a conferir a tutela a todas as obrigações provenientes de um ilícito, seja uma obrigação de indenizar ou uma obrigação de restituir. Essa classificação das obrigações observa a clássica divisio das derivada do direito romano, base estrutural do direito dos sistemas de civil law, utilizada por Peter Birks5 para justificar a autonomia do enriquecimento sem causa no sistema de common law inglês. O trabalho de Peter Birks permite observar que quando o acréscimo patrimonial realizado pelo obrigado à restituição decorrer de um ilícito é a responsabilidade civil que atuará para remover esse ganho ilícito, dando concreção ao princípio assim enunciado: commodum ex iniuria sua nemo habere debet ou no person shall profit from his or her wrong, ou seja, nenhuma pessoa deve lucrar a partir do ilícito. O ordenamento jurídico brasileiro traz argumentos de natureza normativa que nos levam a concluir pela aplicação dos remédios restitutórios em face de ilícitos pela responsabilidade civil. Um exemplo é o art. 210 da LPI, que prevê a possibilidade de aplicação dos remédios restitutórios na remoção de ganhos ilícitos. Mesmo caminho foi adotado no direito italiano no art. 125 ao Codice di Proprietà Industriale, que em seu item 3 prevê a possibilidade do disgorgement of profits.6 Assim, a tutela restitutória do ilícito através da responsabilidade civil ganhou acolhida naquele ordenamento jurídico. A priori, ainda que o embate no campo teórico possa parecer pouco produtivo para a prática, a diferenciação traz consequências consideráveis. A primeira quanto ao fator de imputação e a segunda quanto ao prazo prescricional aplicável à pretensão, posto que, enquanto na responsabilidade civil contratual o prazo é decenal a pretensão de restituição do enriquecimento sem causa tem prazo trienal. Tomamos, assim, o disposto no art. 1.017 do CC7 que regula a responsabilidade civil do administrador das sociedades empresariais. A sociedade comercial, tal qual disciplinada no Código Civil, é figura de natureza eminentemente contratual, posto derivar de um acordo de vontades ou, ao menos, da manifestação de vontade de uma pessoa, que visa organizar recursos e realizar uma atividade direcionada ao implemento de um objetivo econômico8. A relação intrassocial, portanto, é contratual. A administração da sociedade é um órgão societário cujas atribuições são exercidas por um ou mais sócios, ou por terceiro por eles nomeados, que, segundo o CC, tem a atribuição de presentar (conforme a clássica lição de Pontes de Miranda) a sociedade, ou seja, agir de modo presente em seu nome. Trata-se, na acepção do dilema da agência, de uma pessoa (agente) apta a tomar decisões e promover iniciativas em nome e com impactos para a empresa (principal). Isto é, quando o administrador, enquanto órgão da sociedade empresarial, pratica um ato, este ato ingressa no sistema jurídico como ato da própria pessoa jurídica e não como ato da pessoa do administrador. Em sua atuação, dado a natureza contratual do vínculo que une a sociedade, o administrador deve observar a boa-fé objetiva e seus deveres laterais, dentre os quais destacam-se os de lealdade e probidade que orientam o administrador a sempre empregar os bens e recursos da sociedade em benefício desta e não de si mesmo. O desvio nessa conduta, consistente na realização dos atos de desvio patrimonial previstos no art. 1.017 do CC, configuram o ilícito aí tipificado. Não pela busca de imputação na culpa, mas pela própria violação da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, isto é, espécie de inadimplemento independentemente de culpa9. Inclusive, os princípios da probidade e confiança, plenamente aplicáveis à atuação do administrador, têm natureza de ordem pública, pelo que basta a violação destes para que se caracterize a responsabilidade10. Por essas razões, compreendemos que a responsabilidade civil no caso ostenta natureza contratual e é objetiva. Não necessariamente existirá um dano à sociedade. Caso, por exemplo, o administrador utilize um imóvel da sociedade para seu benefício até que aquele seja locado. Não houve diminuição do patrimônio da sociedade, tampouco foi frustrado algum lucro, contudo, houve uma transferência de valor para o administrador, que indevidamente rompeu com a lealdade ao utilizar o bem em benefício próprio. Nesse caso não atuaria o remédio reparatório pela ausência de dano indenizável. A sociedade lesada não seria titular de nenhuma pretensão reparatória, senão apenas intitulada no direito de destituir o administrador e eventualmente excluí-lo da sociedade, se sócio. É aí que atua a função restitutória da responsabilidade civil, ofertando ao lesado o remédio restituório na modalidade da reversão dessa transferência de valor, o que Nelson Rosenvald denominou indenização restitutória. Nessa hipótese, pela abertura semântica conferida pelo art. 1.017 do CC, em exceção à limitação da indenização à extensão do dano, caberia condenar o ofensor ao pagamento de um valor correspondente à transferência indevida, que não se trata de compensação. É o que o common law define como give back, remédio que se convencionou denominar restitutionary damages. Agora, imagine-se que o administrador tome para si uma quantia do caixa da empresa e com esse valor adquira valores mobiliários em seu próprio nome. Nesse caso há um dano, uma diminuição patrimonial da sociedade. Suponha-se que essas ações valorizem e o ofensor colha um ganho a partir desse dinheiro ilicitamente obtido. Ora, como diz o brocardo inglês, "tort must not pay". Permitir ao administrador inadimplente que permaneça com os resultados obtidos a partir de seu ilícito é uma falha do sistema jurídico que o deixaria se beneficiar de sua torpeza. Nesta situação outro remédio restitutório deve agir, a remoção dos ganhos ilícitos, novamente autorizado pela abertura concedida pelo art. 1.017 do CC. Referido remédio, classificado como um give up, é voltado a obrigar o ofensor a abrir mão dos ganhos provenientes do ilícito, o que no common law se denominou disgorgement of profits. Assim, além de compensar o dano que provocou, ficaria obrigado o administrador a entregar à sociedade os lucros que realizou. Este argumento sistemático reforça a posição de que o ordenamento jurídico brasileiro, pelas características já citadas, abarca a aplicação dos remédios restitutórios pela responsabilidade civil e não pelo enriquecimento sem causa. Para outros casos que não possuem a mesma abertura semântica do art. 1.017 do CC caberia por vez promover as adequações ao art. 944 do Código Civil para sacramentar a inclusão dos remédios restitutórios no sistema de responsabilidade civil brasileiro, promovendo a tutela integral da pessoa que é o fundamento primeiro da responsabilidade civil. *Vitor Ottoboni Pavan é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professor convidado de Direito Civil das pós-graduações da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de Responsabilidade Civil da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisador do Grupo de Pesquisa "Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional - Virada de Copérnico" (PPGF/UFPR). __________ 1 Nesse sentido o texto de Leandro Reinaldo da Cunha publicado nessa coluna: "Nesse contexto surge a discussão acerca do lucro da intervenção, entendido como sendo a hipótese em que o sujeito obtém uma vantagem patrimonial face à utilização de bem de outrem, sem que possua a devida autorização para a exploração do referido bem. Seria, portanto, uma situação fática na qual se aplicariam as consequências decorrente do enriquecimento sem causa (art. 844 do CC)." 2 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 257-268. 3 PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020 4 Nesse sentido também Flaviana Rampazzo Soares e Ísis Boll de Araújo Soares, em interessantíssimo texto de reflexão a partir dos efeitos da pandemia, apontaram a necessidade de a responsabilidade civil agregar à sua clássica função reparatória outras que sejam adequadas a atender as demandas complexas da sociedade em seu estágio de desenvolvimento contemporâneo. 5 Para uma análise mais aprofundada do tema confira BIRKS, Peter. Unjust enrichment. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. E-book. 6 Codice di Propietà Industriale. Art. 125. "1. Il risarcimento dovuto al danneggiato e' liquidato secondo le disposizioni degli articoli 1223, 1226 e 1227 del codice civile, tenuto conto di tutti gli aspetti pertinenti, quali le conseguenze economiche negative, compreso il mancato guadagno, del titolare del diritto leso, i benefici realizzati dall'autore della violazione e, nei casi appropriati, elementi diversi da quelli economici, come il danno morale arrecato al titolare del diritto dalla violazione. 2. La sentenza che provvede sul risarcimento dei danni puo' farne la liquidazione in una somma globale stabilita in base agli atti della causa e alle presunzioni che ne derivano. In questo caso il lucro cessante e' comunque determinato in un importo non inferiore a quello dei canoni che l'autore della violazione avrebbe dovuto pagare, qualora avesse ottenuto una licenza dal titolare del diritto leso. 3. In ogni caso il titolare del diritto leso puo' chiedere la restituzione degli utili realizzati dall'autore della violazione, in alternativa al risarcimento del lucro cessante o nella misura in cui essi eccedono tale risarcimento". 7 O caput do referido dispositivo legal prevê que "O administrador que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá". 8 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Sociedades: teoria geral das sociedades. As sociedades em espécie do Código Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2014. (Direito comercial; v. 2), p. 41. 9 Neste sentido o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil CJF/STJ. 10 Conforme Enunciado 363 da IV Jornada de Direito Civil CJF/STJ.
Por proêmio, como é cediço, com espeque no iter evolutivo da responsabilidade civil, o risco passou a ser uma opção e não um destino inelutável como outrora, engendrando relevantes repercussões na seara da responsabilidade objetiva do transportador, designadamente no que concerne à dinamização da função preventiva, atrelada à figura do prognóstico retrospectivo e do constante aperfeiçoamento do estado da técnica na ampla miríade de modalidades de transportes existentes. Nesse contexto, deve-se analisar a denominada obrigação de proteção, que se autonomizou e cujo amplo espectro de situações possibilitará o exame das excludentes do transportador sob novos paradigmas. A evolução doutrinária e jurisprudencial trouxe novas perspectivas sobre o tema, na medida em que, conforme preconizam Geneviève Viney e Patrice Jourdain, houve mudança da ordem pública de direção para a ordem pública de proteção1. Com efeito, com a proeminência do papel central exercido pela pessoa humana, a força normativa constitucional correlata, designadamente após a 2ª Guerra Mundial, e a consequente expansão do direito geral de personalidade, emergiu nova valoração para fins de reparação, o que permitiu divisar maior densidade dos princípios sociais nas denominadas relações jurídicas existenciais, quando cotejadas com as interempresariais ou de lucro, com as repercussões correlatas nos negócios jurídicos contratuais de transporte. Deveras, não se olvida que o contrato de transporte traz ínsita em seu bojo a denominada obrigação de segurança, sob o manto da incolumidade físico-psíquica do passageiro e da custódia da carga transportada, até o local do destino contratado. No entanto, sob os influxos expansivos da obrigação de proteção, no contrato de transporte de pessoas, ao contrário do que se observa naquele destinado às coisas, resta inconcusso tratamento diferenciado, forte nas premissas de proeminência e de papel fundamental da pessoa humana como centro de interesses. Tal cenário transcende o dualismo clássico entre as denominadas obrigações de meio e resultado, evidenciando tratamento uniforme nas searas contratual e extracontratual, com obrigação de proteção autonomizada - o que ensejou repercussões na análise das excludentes do caso fortuito e da força maior. Com destaque para a objetivação da responsabilidade do transportador e a dinamização da função preventiva - sobretudo à luz da premissa de que o risco não é um destino, mas uma opção -, jungida à autonomização da obrigação de proteção, tem-se a análise da obrigação como processo e relação jurídica complexa. A responsabilidade civil projeta deveres anexos e laterais derivados da cláusula geral de boa-fé, que independem da inexecução involuntária da obrigação de deslocamento pactuada ínsita ao transporte e impõem efetiva releitura das excludentes clássicas do caso fortuito e força maior. Tal entendimento é robustecido pela inequívoca evolução do estado da técnica, sendo necessária a análise dos requisitos caracterizadores da força maior extrínseca - exterioridade, inevitabilidade, irresistibilidade e impossibilidade. A imprevisibilidade insere-se como índice de eficácia e de modulação da inevitabilidade, sob perspectiva estrutural e funcional, como standards que se amoldarão à luz do estado da arte da propalada evolução. Assim se poderá aferir o caráter controlável do evento, o que evidencia a existência de novos paradigmas no direito contemporâneo. Impõe-se, mesmo à luz da prova da força maior extrínseca, a consecução dos deveres laterais de assistência e informação, à míngua da impossibilidade do deslocamento, sem prejuízo do dever de advertência por parte do organizador da viagem quando evidenciada probabilidade substancial de eclosão de evento bélico ou risco à segurança e incolumidade do viajante consumidor2. Outra temática que, paradoxalmente, denota atualidade coaduna-se com o advento de novas epidemias, malgrado o notável desenvolvimento da ciência, sobretudo ao lograr êxito em debelar patologias, vírus e bactérias de extrema gravidade e contágio galopante ao longo da História. Trata-se de tema que aflora em grande magnitude, normalmente tendo gênese em mutação genética que, originalmente sendo apenas transmissível entre animais, engendra, em dado momento, sua transmissão entre pessoas, o que ocorreu com a SARS em 2002-2003 e a Covid-19, emergindo, então, amplo matiz de problemáticas. Conquanto o sequenciamento genético tenha apresentado celeridade inaudita no estado da arte da ciência, verdade é que, tratando-se de novas doenças, que desenvolvem síndromes respiratórias, a descoberta científica de vacina e sua implementação eficaz não foi imediata. Muito embora a globalização e a massificação na utilização dos transportes e a célere mobilidade dos viajantes na denominada aldeia global evidenciem enormes vantagens no âmbito econômico e no das comunicações, expõem, por outro lado, o flanco da vulnerabilidade, de modo que o contágio se espraiou em nível mundial com celeridade galopante. Os efeitos, no âmbito dos transportes, foram inconcussos, provocando o cancelamento de voos, cruzeiros marítimos, transportes terrestres em larga escala, a imposição de quarentena a viajantes, o retorno de cidadãos que se encontravam em outros países e, por via de consequência, problemáticas acerca da responsabilidade dos transportadores e organizadores de viagens e excursões. Desvela-se, assim, ampla miríade de situações, que atingiram e têm atingido os transportes em seus diversos modais. Quid juris, então? Em relação aos cancelamentos derivados da epidemia, em se tratando de contrato de transporte de coisas, via de regra as cláusulas contratuais preveem a referida ocorrência no rol dos eventos que poderão caracterizar circunstâncias extraordinárias, aptas a eximir a consecução do transporte, aliadas às provas dos elementos da força maior extrínseca. Tal situação resta facilitada sobremaneira, com os atos de autoridade, fixadores do cancelamento do transporte e da utilização do local de destino por parte do transportador3. No que concerne ao transporte de pessoas, prepondera o arquétipo da obrigação de proteção, de modo que a proeminência da cláusula geral de boa-fé e os deveres laterais correlatos imporão ao transportador e ao organizador de viagem amplas informações, assistência, advertência e proteção. Os deveres abrangem, e.g., na hipótese de eclosão da epidemia durante a viagem, o retorno ao país de origem, sem custos ao usuário consumidor. Por seu turno, à luz da figura do duty to mitigate the loss, muito embora reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, tratando-se de epidemia altamente contagiosa, este deverá colaborar com as autoridades e o transportador, fazendo jus à assistência e à hospedagem em padrões de razoabilidade. Afigura-se, em regra, inexigível indenização derivada do cancelamento imposto por autoridade pública e que teve por salvaguarda a incolumidade dos demais passageiros. Deveras, uma vez comprovado o caráter extrínseco ao círculo de atividade de risco do transporte, a inevitabilidade, a irresistibilidade e a impossibilidade de controle, malgrado a adoção das devidas precauções, a prestação de deslocamento restará inviabilizada e inexigível. O cancelamento poderá inserir-se no rol da denominada força maior extrínseca ou das circunstâncias extraordinárias, aptas a legitimá-lo, subsistindo os deveres laterais e a obrigação de proteção, que poderão comportar indenização, per se, caso inadimplidos. Em suma, faz-se mister a análise tópica dos requisitos da força maior extrínseca adrede descritos, em cotejo com a situação fática vinda a lume e que propicia sua funcionalização, sendo inconcebível uma concepção apriorística de força maior, já que a mera abstração, dando gênese a um raciocínio a contrario sensu, sem a análise in concreto, poderá ensejar erronias de monta, sobretudo à luz da intrincada complexidade que promana da causalidade múltipla. Com efeito, a qualidade de força maior não se encontra vinculada ao evento. Ao revés, nenhum fato se encontra previamente excluído da referida categoria, sendo o mais correto admitir que a força maior, em verdade, é uma circunstância de fato revestida de uma qualificação jurídica. Conforme preconiza, com acuidade, ANTONMATTEI4, as qualificações caso fortuito ou força maior são tão somente etiquetas sobre as quais se afigura necessário inscrever: sem garantia e objeto de verificação. A razoabilidade e a natureza categorial do transporte efetuado serão ulterior elemento relevante para análise do hermeneuta, premissa que se reputa fundamental diante dos riscos de fragmentação advindos do novo kairós (momento decisivo na sucessão do tempo) da pós-modernidade e era do conhecimento, no plexo dos novos desafios para o século XXI, de modo a fomentar a criação de grupos de casos, para o incremento da segurança jurídica e de providências preventivas ínsitas ao mister de risco do transportador, inclusive com a formação de fundos contributivos para eventos catastróficos em escala mundial, sem descurar do dever proativo de colaboração por parte do credor, com o escopo de mitigar os danos. Malgrado evidenciado o inconcusso estágio de desenvolvimento da técnica, com visão restritiva crescente da excludente da força maior extrínseca, inexiste risco zero no porvir da humanidade, de modo que não se antevê o crepúsculo da excludente, mas necessidade protetiva mais intensa no âmbito das relações jurídicas existenciais, sem prejuízo do imponível incremento da função preventiva. Com efeito, observa-se o surgimento de novos riscos, e.g., patologias, epidemias resultantes de mutações genéticas, mudanças climáticas, como a realidade fática desnuda, pois, muito embora possamos gerir o risco e mitigar suas consequências, não há como eliminá-lo do devir humano. Desse modo, a proeminência do escopo protetivo à pessoa humana reverbera na seara contratual, impondo-se efetiva clivagem em relação ao transporte de coisas, em que a obrigação de custódia, conquanto relevante, poderá adequar-se à teoria da assunção dos riscos e à autorregulamentação prévia de interesses, dinamizando a circulação econômica das riquezas, na medida em que a autonomia privada e os custos de transação denotarão maior proeminência, elementos ínsitos aos negócios jurídicos contratuais interempresariais e de lucro. No referido âmbito categorial, impor-se-á, em regra, adstrição às cláusulas pactuadas, na esfera da autorregulamentação prévia de interesses, da probabilidade prospectiva e dos mecanismos de prevenção, com eventual cobertura de seguro autônomo ou complementar. Por outro lado, poderão surgir circunstâncias extraordinárias, incontroláveis, inevitáveis e irresistíveis, de modo a impossibilitar o adimplemento da obrigação. No entanto, em situações desse jaez, o intérprete será mais rigoroso na verificação da assunção prévia dos riscos, sentido no qual, aliás, vem se firmando a tendência dos contratos internacionais de transporte de mercadorias, com influência inconcussa da common law. Observe-se, porém, que, no sistema brasileiro, referidas regras coadunam-se, segundo a análise realizada, com os contratos interempresariais ou de lucro, mas não com os contratos existenciais, aos quais subjazem relações não paritárias, que imprescindem de regras protetivas direcionadas à parte vulnerável, de modo que os contratos de transporte de pessoas, em seus múltiplos modais, inserem-se no denominado arquétipo contratual existencial. Trata-se de dicotomia útil e operacional, especialmente quanto à fixação de pontos fulcrais distintivos entre as categorias de contratos de transporte, devendo-se, no entanto, ressalvar o seu caráter não exaustivo diante da complexidade da realidade contratual contemporânea5. Marco Fábio Morsello é professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP (FDUSP). Doutor e livre docente em Direito Civil pela FDUSP. Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau no TJ/SP. Membro Associado Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 Cf. VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. In: GHESTIN, Jacques (dir.). Traité de droit civil, cit., v. 2: Les conditions de la responsabilité, p. 395. 2 Nesse sentido, MIRANDA, José Miguel de Sá. O contrato de viagem organizada. Coimbra: Almedina, 2000. p. 213; BRÜNING, Mirja. Probleme des Reisevertrags und Reiseversicherungsrechts: Frist des §651g BGB, Kündigung wegen Höheren Gewalt gemäß § 651j BGB, unerwartete schwere Erkrankung und gerichtliche Zuständigkeit. Hamburg: Dr. Kovac, 2008. p. 136 e 144, elucidando, sem prejuízo da relevância informativa de órgãos governamentais acerca dos riscos de guerra, que se impõe, outrossim, mencionado dever ao organizador, na seara do denominado Hinweispflicht (dever de advertência), sobretudo à luz de probabilidade substancial de conflito bélico. 3 Nesse sentido, BRUNNER, Christoph. Force majeure and hardship under general contract principles, cit., p. 206, destacando, via de regra, a inserção dos seguintes eventos: Acts of God; catástrofes e desastres naturais, como inundações, terremotos, maremotos, incêndios, secas e epidemias; desastres industriais ou causados por obra humana; guerras, ataques terroristas, roubos, explosão ou destruição de máquinas por terceiros (tortious acts); greves gerais e prolongadas nos meios de transporte ou setores de eletricidade; intervenções governamentais, como embargos, boicotes, restrições à importação ou exportação e restrições cambiais. 4 ANTONMATTEI, Paul Henri. Contribution a` l'e'tude de la force majeure. Paris: LGDJ, 1992 (Bibliothèque de Droit Privé, t. 220), p. 11. 5 Para aprofundamento do tema, consultar: MORSELLO, Marco Fábio. Novos paradigmas do caso fortuito e da força maior à luz dos contratos de transporte. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
Na véspera do feriado de 07 de setembro de 2021, surpreendeu a muitos a Medida Provisória que alterava o Marco Civil da Internet nos artigos 5º, inclui a Seção II ao Segundo Capítulo (Dos direitos e garantias dos usuários) sobre os "direitos e das garantias dos usuários de redes sociais" e um Capítulo IV-A, que tratava de sanções. Além disso, também alterava a lei de direitos autorais (lei 9.610/98), revogava os artigos 12 e 11, § 2º do MCI e trazia um prazo de trinta dias para adequação das políticas e termos de uso pelos provedores (art. 3º). Em suma, praticamente criou um "Novo Marco Civil da Internet". Rapidamente noticiaram-se muitas ações diretas de inconstitucionalidade1, um parecer da OAB pela inconstitucionalidade,2 e não tardou para que a doutrina jurídica se pronunciasse sobre o texto normativo3. Dias depois, o Senado devolveu a MP4 quase que concomitantemente a uma liminar do STF que suspendeu seus efeitos,5 com pareceres da PGR.6 A Medida Provisória, então, restou natimorta. Mas, a discussão está longe do fim, seja porque a ofensiva à moderação de conteúdo pelas redes sociais é considerada como uma tendência no mundo,7 seja porque o texto já foi ressuscitado em Projeto de lei no Brasil.8 No artigo 5º, a MP inseria os incisos IX e X, conceituando rede social e moderação em redes sociais9 e, de maneira transversa, uma vez que excluia do conceito de rede social as aplicações de mensagens privadas, como WhatsApp e congêneres, bem como as que tem por "principal finalidade o comércio de bens e serviços",10 aludindo em tese a Mercado Livre, OLX e outros. Mas o "coração" do texto normativo estava nos sobreditos direitos enunciados pelos artigos 8º-A a 8º-D. Isto porque, tentando resumi-los, a lei procurava criar requisitos normativos, verdadeiras "travas" para a retirada unilateral de conteúdo por parte das redes sociais no exercício das "ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais.", ou seja, da moderação de conteúdo. Dentre os direitos básicos dos usuários, a Medida Provisória previa (artigo 8-Aº. Incisos I a VII) o restabelecimento de conta, do perfil ou do conteúdo no mesmo estado em que se encontrava, na hipótese de moderação indevida pelo provedor de redes sociais (inciso IV), bem como a não exclusão, cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e funcionalidades da conta ou do perfil, exceto por justa causa (inciso V). É necessário ler o texto e o seu contexto. A MP parecia ser uma reação à conduta das principais redes sociais nos últimos tempos, que têm adaptado suas políticas e termos para agirem de forma mais proativa contra conteúdos que dia após dia vêm ganhando consenso como ilícitos, com destaque para a desinformação (mormente política e sanitária) e discursos considerados como de ódio, com ameaças até mesmo a altas autoridades, como, Deputados, Senadores, Governadores e até Ministros do STF. Os provedores de aplicação exercem o poder de polícia que lhes é conferido pelas condições gerais de contratação, como sempre ocorreu, desde o início do uso da Internet para fins comerciais. A reação faz lembrar inclusive a inócua ordem executiva do ex-presidente Donald Trump11 para alterar a Seção 530 do U.S. Code, que instituiu originalmente o princípio do "notice and takedown" e é até hoje o que vige no que concerne à regra da responsabilidade por conteúdos inseridos por terceiros na Internet: o provedor somente será responsabilizado se, notificado da ilicitude do conteúdo (ainda que extrajudicialmente), não o retira em tempo razoável. Hoje, após ter sua conta suspensa nas principais redes sociais (Twitter, Facebook e Youtube) como resposta das empresas ao episódio de invasão do Capitólio no início de 2021, Trump demanda contra as big techs mantenedoras (Twitter, Facebook e Google) alegando, em resumo, censura.12 Voltando à MP brasileira, as ADIs levantam, por exemplo, inconstitucionalidades formais, como ausência de relevância e urgência (art. 62, caput, CRFB), vedação de MP sobre direitos políticos e processo Civil (art. 62, §1º, alíneas "a" e "b") e, no mérito, destaca-se a suposta violação à livre iniciativa dos provedores (arts. 1º, IV e 170), subvertendo-se a lógica do art. 19 do Marco Civil, que instituiu a regra da não imputação provedor por conteúdo inserido por terceiros, em suma, tornando necessária a notificação judicial com o local específico o conteúdo a ser retirado de modo a, segundo a lei, prestigiar a liberdade de expressão. Seria, então, vedado também o retrocesso nesse sentido pois, tornando responsável o provedor pelo conteúdo - e, agora, a apresentar inclusive justa causa (art. 8º-C, §1º, MCI na nova redação) - abrir-se-ia porta à "censura privada" do provedor. Dois pontos merecem ser levantados. Primeiro, que o artigo 19 a que se alude como foco de uma possível vedação ao retrocesso tem sua constitucionalidade questionada com repercussão geral (Tema 987, STF).13 Segundo, que a lei traz a responsabilidade pela não retirada de um conteúdo ilícito da Internet, imunizando o provedor até que o juiz determine para privilegiar (supostamente) a liberdade de expressão de quem posta, mas há -  e sempre houve - uma lacuna normativa sobre a responsabilidade do provedor quando indevida e unilateralmente bloqueia, suspende ou retira conteúdo das redes sociais. Portanto, a MP em tese restringia um ponto central do Marco Civil, que, pela sua natureza principiológica, deixa ao arbítrio do provedor decidir o que deve bloquear ao mesmo passo que não o responsabilizado se o conteúdo ilícito não for retirado, já que depende de decisão judicial. Uma "dupla irresponsabilidade", portanto. A serpente deixa aqui seus ovos, numa analogia com o famoso filme de Ingmar Bergman (1977). Reforce-se, nesse ponto, que não é de hoje que se questiona este poder privado das "plataformas", que alteram unilateralmente seus termos de uso e decidem com base em uma interpretação unicamente sua (amparados em suas, "boards", colegiados recentemente criados para dar um ar de democraticidade na decisão de retirar conteúdo) o que deve ou não ficar online, ou ser rotulado e distribuído para este ou aquele usuário de acordo com suas preferências. Ao longo de décadas de popularização dessas aplicações, temas de relevância social passaram a pautar e serem pautados pelas redes sociais, que são elemento inexorável da esfera pública em todo o mundo. Paralelamente, crescem exponencialmente os conteúdos tóxicos nas redes sociais, como discursos de ódio, desinformação e ataques a pessoas e instituições em massa por meio das redes. Como se trata de um ambiente em que a "plataforma" não se responsabiliza a priori em privilégio à "liberdade de expressão", todos se sentem "livres" a postar o que querem até que um juiz determine a exclusão do conteúdo... ou a rede social decida que viola suas próprias regras sem se responsabilizar por isso. E, obviamente, a "plataforma" lucra independentemente da veracidade ou ilicitude do conteúdo. Como comunicação é algo relevante, a Constituição de 1.988 não deixou ao poder privado pura e simplesmente a comunicação social, trazendo regras nos arts. 240 a 244. Disposições que vão desde a limitação a certas composições societárias até mesmo a outorga de concessões ou permissões para empresas de radiodifusão, por exemplo. Entretanto, como explica Tim Wu em sua obra Impérios da Comunicação, a história dos conglomerados de mídia passa por momentos de maior ou menor regulação ao longo da história.14 E as redes sociais, episódio mais recente, foram engendradas em um ambiente de competição de mercado, regido em última análise pela livre inciativa, e, portanto, a lógica é diversa da que rege a televisão ou o rádio, por exemplo. Logo, enquanto as mídias tradicionais informam baseadas em uma série de regras, a Internet é mercado puro. Então, o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão na Internet não teria o mesmo formato, finalidade e alma da liberdade de informação jornalística (art. 220, § 1º, CRFB), que somente deveria atender aos mesmos princípios do art. 221, conforme salienta o art. 222, §3º, CRFB. Neste emaranhado se encontram os problemas da desinformação - popularmente chamado de fake news­- e dos conteúdos tóxicos. Sem se responsabilizar por nada, os provedores têm de lidar nos últimos anos com um aumento sensível de ódio, desinformação política e sanitária a serviço de interesses escusos. Em tese, não há nada de ilícito em seu tio-avô postar aquele meme absurdo no Face, ou seu vizinho esbravejar que acredita na eficácia de determinado remédio contra a Covid-19. Agora, quando há práticas estruturadas, com financiamento público e privado que induzem em massa a difusão destes conteúdos, beirando as raias da segurança nacional (hoje crimes contra o Estado democrático de Direito) ou de crimes contra a ordem sanitária, a coisa é mais preocupante. Voltando à MP do Marco Civil, as ADIs propostas levantam vários dispositivos constitucionais que redundam sobre a liberdade de expressão e por via de consequência a vedação à censura. Conforme também leciona Tim Wu, a propósito, países de viés autoritários perceberam que, nas redes sociais, é impossível impedir que opositores falem. Entretanto, manipulando o ambiente informacional a favor do regime, é possível dificultar que sejam ouvidos a ponto de induzir uma "verdade oficial" que lhe seja sempre favorável. Trata-se do que o autor chama de "censura reversa", que ocorre em três passos: a. agressões pontuais a opositores; b. inflar artificialmente certo ponto de vista, fazendo parecer que a maioria das pessoas pensa daquela maneira (astroturfing) e; c. dominando por completo a esfera pública ao manipular as plataformas de comunicação a seu favor.15 Ao trazer em lei um rol sobre o que se considera "justa causa" para a retirada de determinado conteúdo e atribuir ao Executivo a possibilidade de sancionar (até mesmo com suspensão ou bloqueio de atividades) pela "moderação indevida" de conteúdo, a Medida Provisória abre portas à "censura reversa" no Brasil, consolidando definitivamente seu terceiro passo. Mas, diz nosso art. 220, § 2º, da Constituição: Art. 220... omissis.., § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Portanto, se transformada em lei, a atual versão do Marco Civil deixa em aberto a (este ou qualquer outro grupo ocupante) do Executivo a possibilidade de impedir que "notícias" favoráveis a si - produzidas e induzidas por bots, trolls, e "gabinetes" comunicacionais - sejam retiradas, bem como promover este ou aquele tratamento para determinada doença ou até mesmo induzir a desobediência civil quanto a políticas sanitárias de vacinação... por exemplo. Desta maneira, a Medida Provisória nasceu inconstitucional, do ponto de vista material, mas isso não significa que o ponto crítico do Marco Civil da Internet, centralizado na inconstitucionalidade do seu artigo 19, possa ser esquecido ou deixado de lado.  Parece que o governo acaba de dar munição aos defensores de uma liberdade de expressão irrestrita, que buscam legitimidade em face dos excessos do Poder Executivo, o que ultrapassaria a discussão da Medida Provisória, para alcançar os limites da responsabilidade do provedor de aplicações. Este é o principal foco do problema. A questão que fica, é que se a livre inciativa seria o princípio constitucional que garantiria por si só o direito à liberdade de expressão, - o que será de nós se, hipoteticamente, as "plataformas" resolvessem não questionar a "verdade oficial" do regime e passassem a seguir sua cartilha, retirando o que lhes é inconveniente e promovendo o que lhes é pertinente? Dias depois da polêmica ganhar novamente corpo no Brasil, o Wall Street Journal revelou o "Facebook files",16 no qual foram revelados documentos internos sobre o possível conhecimento, pelo alto escalão da Rede Social Instagram, de que a "plataforma" era nocivas a adolescentes mulheres. Sabia e nada fez nem faz. Mais ainda, o mesmo veículo expôs que o provedor tinha uma espécie de "área VIP"  da liberdade de expressão, o XCheck, em que se permitia (ou permite) a determinadas "personalidades" da rede social não seguirem as regras da plataforma.17 Então há direitos fundamentais mais fundamentais para um do que para outros? Até quando vamos passar esse "cheque em branco" para a livre iniciativa como "garante" da liberdade de expressão? Embora a Medida Provisória - agora Projeto de Lei -em si tenha sido um acinte à democracia e à liberdade de expressão, é importante adotar uma posição razoável e moderada, para que as críticas se limitem ao seu conteúdo, sendo urgente repensarmos em que medida o art. 19 do Marco Civil como está hoje seria a solução para a proteção da liberdade de expressão na Internet brasileira.                   *Guilherme Magalhães Martins é procurador de Justiça no Estado do RJ. Professor associado de Direito Civil na Faculdade Nacional de Direito - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense. **João Victor Rozatti Longhi é defensor público do Estado do Paraná. Professor Substituto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Professor visitante do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). __________ 1 JOTA - Portal Jurídico..STF: já são seis os partidos com ação contra MP que muda Marco Civil da Internet. PSB, Solidariedade, PSDB, PT, Partido Novo e PDT pedem anulação da Medida Provisória editada por Bolsonaro. CARNEIRO, Luiz Orlando. BRASÍLIA - 08/09/2021 18:36. Acesso em 08 set. 2021. 2 CONJUR - Revista Consultor Jurídico. Fim Da Livre Iniciativa. Para OAB, MP que limita remoção de conteúdo nas redes é inconstitucional. 9 de setembro de 2021, 11h19. Acesso em 09 set. 2021. 3 SARLET, Ingo Wolfgang. DIREITOS FUNDAMENTAIS: Direitos fundamentais, fake news e democracia: notas acerca da MP 1.068. 13 de setembro de 2021, 9h01 in Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 19 set. 2021. JOTA - Portal Jurídico. PAIVA, Letícia. Passe Livre Para Fake News : MP de Bolsonaro que dificulta remoção de posts é criticada por especialistas e redes. Texto de Bolsonaro lista motivos que justificariam exclusão de publicações. Remoção de desinformação precisaria de aval judicial. Acesso em 07 set. 2021. SOUZA, Carlos Affonso de. Análise: Inconstitucional, MP de Bolsonaro cria 'Ministério da Mentira'. Disponível aqui. Acesso em 07 set. 2021; VIEIRA, Rodrigo. Moderação de conteúdo na internet brasileira: em defesa do Marco Civil. 9 de setembro de 2021, 13h40. Acesso em: 10 set. 2021. 4 AGÊNCIA SENADO. Pacheco devolve MP que dificultava retirada de conteúdo da internet. 14/09/2021, 20h44. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 5 CONJUR. Reista Consultor Jurídico. Rosa Weber suspende MP que limita remoção de conteúdo em redes sociais. 14 de setembro de 2021, 20h41. Por Sérgio Rodas. Acesso em 19 set. 2021. 6 BRASIL. Procuradoria Geral da República. PGR opina pela suspensão de MP que altera Marco Civil da Internet até apreciação definitiva pelo Supremo. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 7 TIME. Brazil's Restrictive New Social Media Rules Could Be an Omen For the Future of the Internet Disponível aqui.  Acesso em: 10 set. 2021. 8 Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021. 9 IX - rede social - aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações, veiculados por textos ou arquivos de imagens, sonoros ou audiovisuais, em uma única plataforma, por meio de contas conectadas ou acessíveis de forma articulada, permitida a conexão entre usuários, e que seja provida por pessoa jurídica que exerça atividade com fins econômicos e de forma organizada, mediante a oferta de serviços ao público brasileiro com, no mínimo, dez milhões de usuários registrados no País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 1.068, de 2021). X - moderação em redes sociais - ações dos provedores de redes sociais de exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário e ações de cancelamento ou suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades de conta ou perfil de usuário de redes sociais. (Incluído pela Medida Provisória nº 1.068, de 2021). 10 Parágrafo único. "Não se incluem na definição de que trata o inciso IX do caput as aplicações de internet que se destinam à troca de mensagens instantâneas e às chamadas de voz, assim como aquelas que tenham como principal finalidade a viabilização do comércio de bens ou serviços." (NR) 11 BBC News. Trump signs executive order targeting Twitter after fact-checking row. 29 May 2020. Disponível aqui. Acesso em: 07 set. 2021. 12 LANGE, Jason; WOLFE, Jan. Trump sues Facebook, Twitter and Google, claiming censorship. Disponível aqui. Acesso em: 07 set. 2021. 13 Tema nº 987 do STF - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. 14 Cf. WU, Tim. Impérios da comunicação. Do telefone à internet, da AT&T ao Google. Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. Passim. 15 Cf. WU, Tim. Is the first amendment obsolete? BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geoffrey R. The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019. O artigo de Tim Wu também pode ser encontrado gratuitamente aqui. Acesso em 19 set. 2021. Para maiores aprofundamentos no tema, V. o nosso ALVES, Fernando de Brito; MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Ataques em massa na internet como censura e o método da censura reversa. Acesso em: 09 set. 2021. 16 WALL STREET JOURNAL. The facebook files :A Wall Street Journal investigation. Disponível aqui. Acesso em 19 set. 2021. 17 Um dos beneficiados, inclusive, teria sido o jogador Neymar, já que o Facebook permitiu o post de um "nude" daquela que o acusara de estupro. Cf. THE GUARDIAN. Dan Milmo Global technology editor. Mon 13 Sep 2021 20.50 BST. Facebook: some high-profile users 'allowed to break platform's rules': XCheck system 'whitelists' well-known users who are given special treatment, says Wall Street Journal report. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2021.
11 de setembro e pandemia de covid-19: duas perspectivas A inspiração inicial para este artigo veio de um filme. Trata-se de "Worth" ("Quanto vale?" [2020]), dirigido por Sara Corangelo e estrelado por Michael Keaton, Amy Ryan e Stanley Tucci. A película, baseada em fatos reais, narra a história de um advogado, Kenneth Feinberg, que recebeu do Congresso Americano (em caráter pro bono, saliente-se) a difícil tarefa de servir como "administrador especial" de um fundo criado para compensar extrajudicialmente as vítimas dos eventos terroristas de 11 de setembro de 2001 (o September 11th Victim Compensation Fund), que, aliás, acabaram de completar 20 anos.  O Fundo, instituído a partir de ato do Congresso (o Air Transportation Safety and System Stabilization Act) e alimentado com recursos dos contribuintes, tinha, para além do propósito de oferecer compensação rápida às vítimas, sem os riscos, custos e a demora de um processo judicial, o objetivo confessado de estabilizar os setores de aviação civil e seguros, "ameaçados" por demandas multimilionárias de responsabilidade civil que potencialmente seriam movidas pelos mais de 6 mil feridos e pelos familiares dos quase 3 mil mortos. Justamente por isso a aceitação do valor oferecido por essa via implicava renúncia ao direito de pleitear judicialmente qualquer verba indenizatória com fundamento nos mesmos fatos. O Air Transportation Safety and System Stabilization Act praticamente não estabelecia critérios para o pagamento das indenizações, conferindo ao administrador especial nomeado "carta branca" para fixar os parâmetros. Kenneth Feinberg e sua equipe dedicaram-se, então, a elaborar uma fórmula - inicialmente muito criticada, porque considerada insensível e cega às particularidades de cada caso - visando justamente a responder à pergunta que serve de título a este artigo: quanto vale uma vida? Ao fim e ao cabo, especialmente após se constatar que nem todos os casos "cabiam na fórmula", demandando adaptações individuais, o plano alcançou seus principais objetivos, tendo obtido a adesão de 97% dos potenciais litigantes, com o pagamento, extrajudicialmente, de mais de US$ 7 bilhões em indenizações (média de US$ 1,8 milhão por solicitante).1 Recentemente, os debates acerca do valor de uma vida ressurgiram com grande força no contexto da pandemia de covid-19, mas sob perspectiva diversa. Interessava agora definir, para orientação de políticas públicas, o montante que a sociedade estaria disposta a "pagar" para salvar vidas, em termos de redução da atividade econômica e dos empregos, mediante medidas de confinamento e afins. O debate em torno do valor da vida humana, com essa conotação de ferramenta para tomada de decisões públicas, não é novo. Thomas Schelling, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2005, foi o responsável por introduzir o conceito de "value of a statistical life" (VSL) em um ensaio de 1968.2 Para o autor, o VSL poderia ser definido a partir de indicadores como o montante que as pessoas estão dispostas a pagar por medidas de segurança que reduzem riscos (airbags e sistemas mais eficientes de frenagem, por exemplo) ou o valor extra exigido por trabalhadores para se sujeitarem a exercer funções perigosas. Posteriormente, Richard Thaler, outro ganhador do Nobel de Economia (2017), "apimentaria" a discussão acerca do VSL a partir da constatação - central para a nova escola da Economia Comportamental - de que seres humanos, ao contrário do que antes se assumia como dogma na teoria econômica Clássica, não são 100% racionais, sendo suas escolhas orientadas muitas vezes por elementos subjetivos e culturais.3 Um exemplo nesse sentido aparece logo no início de seu estudo, quando o autor confronta as respostas dadas por um grupo de entrevistados a duas perguntas: "Quanto você pagaria para eliminar uma doença que contraiu e que possui uma taxa de mortalidade de 1 em 100 mil?" e "Quanto seria necessário pagar para você aceitar fazer algo que o colocaria em uma chance de morrer de 1 em 100 mil?". Ora, sob perspectiva puramente matemática, não existe distinção entre as duas hipóteses e as respostas deveriam ser idênticas, todavia os resultados evidenciaram, paradoxalmente, uma irracionalidade quase uniforme entre os entrevistados: as pessoas tendem a pôr preço mais alto para aceitar a criação de uma probabilidade de mortalidade (2ª pergunta) do que para eliminá-la (1ª pergunta), sendo mais frequente, neste último caso, que "paguem para ver". Outras irracionalidades viriam à tona em estudos posteriores, derivadas de fatores como idade, escolaridade, origem, falta de informação adequada e aversão/propensão ao risco. O VSL constitui importante ferramenta na tomada de decisões públicas em setores como meio ambiente, transporte e saúde, funcionando como "teste" para a eficiência de medidas governamentais: considerando, por exemplo, que o VSL, atualmente, nos Estados Unidos, gira em torno de US$ 10 milhões, uma política que seja capaz de salvar a vida de uma pessoa a custo inferior a esta quantia seria economicamente justificável no referido país.4   Naturalmente, o VSL oscila de país para país, visto que diferentes os montantes que, conforme o nível de desenvolvimento, as pessoas estão dispostas a pagar por novas medidas de segurança ou, ao reverso, os valores exigidos pelos trabalhadores para exercer atividades perigosas. No Brasil, consoante recente estudo, o VSL corresponderia a R$ 3,294 milhões (pouco mais de US$ 627 mil, de acordo com o câmbio de 14/09/2021).5 Essas são duas formas de abordar a questão do valor da vida. A primeira, aplicada no Fundo criado para compensar as vítimas do 11 de setembro, mais próxima do universo dos juristas, trata a morte do familiar como dano a ser ressarcido - uma aplicação do que Aristóteles chamava de justiça corretiva, destinada a restabelecer o equilíbrio rompido pelo evento danoso. A segunda, representada no "value of a statistical life" (VSL), mais afeta ao mundo dos economistas e empregada para fundamentar decisões governamentais, atribui valor uniforme à vida, prévio à ocorrência de qualquer dano, com base em quanto estaríamos dispostos a pagar, como consumidores ou trabalhadores, para eliminar ou não enfrentar determinado risco - esta uma manifestação do que Aristóteles chamava de justiça distributiva, preocupada em definir como o Estado deve alocar seus recursos em atenção ao bem-comum.6 O valor de uma vida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Pretende-se, agora, na segunda parte do artigo, aproximar-se do valor atribuído à vida humana no contexto nacional, conforme a primeira linha de pensamento acima exposta (a de justiça corretiva, voltada a remediar a perda da vida mediante indenização). Algumas explicações quanto à metodologia são necessárias. Primeiro, optou-se por restringir a pesquisa a julgados do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), mercê de seu papel de uniformização da interpretação da lei federal. Segundo, limitou-se o estudo às condenações por dano moral, na medida em que as indenizações por danos materiais, em caso de morte, não refletem o valor da vida perdida em si, mas a renda que o falecido deixou de gerar para seus dependentes, elemento variável e que não interessa aos fins desta investigação. Terceiro, serão examinadas condenações por dano moral em dois grupos de casos bem definidos: (i) morte de genitor(a) do autor da ação; (ii) morte de filho(a) do autor da demanda. Quarto, foram selecionados apenas julgamentos posteriores a 2012, de forma a minimizar distorções decorrentes da inflação. Quinto, foram descartados julgados em que reconhecida culpa concorrente da vítima ou nos quais o dano indenizado fosse a perda da chance de sobrevida. Pois bem. O STJ tem asseverado reiteradamente que a revisão dos valores fixados a título de indenização por danos extrapatrimoniais só é possível, em sede de recurso especial, quando manifestamente irrisória ou exorbitante a quantia fixada pelo tribunal inferior. Fora dessas hipóteses, a revisão das indenizações encontraria óbice na Súmula 7 da mesma Corte. Em sendo assim, a jurisprudência do STJ com relação ao montante das indenizações por danos morais pode ser dividida em dois tipos de julgados: (i) aqueles nos quais o Tribunal não modifica a indenização estabelecida pelas cortes inferiores, porque ela não é insignificante nem grosseiramente excessiva, os quais constituem a maioria; (ii) aqueles nos quais a indenização é modificada, por ser considerada insignificante ou grosseiramente excessiva, os quais são relativamente raros. O primeiro grupo revela os limites inferior e superior para as indenizações, e, portanto, uma faixa de valores entre esses limites considerada "aceitável" pelo STJ. O segundo grupo, por outro lado, permite conhecer os reais parâmetros desta Corte quando ela decide estabelecer nova indenização, em substituição à anterior, dando ideia de qual seria, na sua visão, o valor mais adequado para cada tipo de lesão (e não mais apenas um espectro de indenizações "não reformáveis"). Vejamos os resultados.7 (a) Morte de genitor(a) do autor da ação: Com relação a esse tipo de ofensa, foram analisados 35 julgamentos. Em 29 deles, o STJ manteve as indenizações fixadas pelas cortes inferiores, porque não as considerou insignificantes nem grosseiramente excessivas, invocando a Súmula 7 já referida. Tais indenizações oscilaram entre R$ 16.285,00 e R$ 500.000,00 para cada filho-demandante, por genitor falecido.8 Em 5 casos, a Corte majorou o valor da indenização em favor de cada filho nos seguintes termos: de R$ 15.000,00 para R$ 130.000,00 (REsp 1160261/MG); de R$ 10.000,00 para R$ 200.000,00 (REsp 1837195/RJ); de R$ 50.000,00 para R$ 200.000,00 (AREsp 1001643/RJ); de R$ 60.000,00 para R$ 200.000,00 (AREsp 1355500/MA); de R$ 41.500,00 para R$ 300.000,00 (AREsp 68041/SP). No REsp 1711214/MT, por outro lado, a Corte reduziu a indenização de R$ 522.500,00 para R$ 261.250,00.9 (b) Morte de filho(a) do autor da demanda: Neste tópico, foram analisados 69 julgamentos. Em 55, o STJ manteve as indenizações fixadas pelas cortes inferiores, porque não as considerou insignificantes nem grosseiramente excessivas, invocando, para tanto, a Súmula 7. Tais indenizações variaram de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 para cada genitor-demandante, por filho perdido.10 Em 3 decisões, o STJ reduziu as indenizações, sob o fundamento de que eram grosseiramente excessivas: de R$ 500.000,00 para R$ 300.000,00 (REsp 1749965/SP); de R$ 1.182.000,00 para R$ 394.000,00 (REsp 1197284/AM); de R$ 545.000,00 para R$ 500.000,00 (REsp 1842852/SP).11 Nas outras 11, o tribunal majorou as indenizações, por considerá-las insignificantes: de R$ 10.000,00 para R$ 50.000,00 (REsp 1835492/AC); de R$ 30.000,00 para R$ 60.000,00 (AREsp 812782/PR); de R$ 39.400,00 para R$ 75.000,00 (REsp 1034652/MG); de R$ 40.000,00 para R$ 80.000,00 (REsp 1745695/RS); de R$ 30.000,00 para R$ 95.400,00 (AgInt no AgInt no REsp 1712285/TO); de R$ 75.000,00 para R$ 100.000,00 (AgRg no AREsp 725306/DF); de R$ 30.000,00 para R$ 100.000,00 (AgInt no AREsp 1708564/MS); de R$ 10.000,00 para R$ 118.200,00 (REsp 1320715/SP); de R$ 19.700,00 para R$ 236.400,00 (REsp 1044527/MG); de R$ 46.500,00 para R$ 315.200,00 (REsp 1279173/SP); de R$ 83.000,00 para R$ 315.200,00 (REsp 1201244/RJ).12 Conclusões Alguma variabilidade no valor de condenações por dano moral, mesmo quando se parte de tipos bem definidos de dano-evento (como são os de morte de genitor e de filho), é sempre esperada. Afinal, se as funções da indenização por dano moral são três - compensar, punir e dissuadir - múltiplos fatores devem ser sopesados em seu arbitramento, relacionados tanto à extensão do mal causado à vítima (v.g., intensidade do sofrimento, duração do dano, proximidade com o falecido), como também ao ofensor e à conduta (v.g., grau de culpabilidade, capacidade econômica do agente, reincidência na prática), a justificar desvios para cima ou para baixo em relação a um padrão hipotético "médio" de violação ao direito da personalidade. Por isso mesmo qualquer tentativa de "tarifamento" legal ou jurisprudencial nessa matéria está fadada ao insucesso (da mesma forma que fracassou a fórmula única inicialmente aplicada no September 11th Victim Compensation Fund). Todavia, mesmo com a ressalva de que variações são esperadas (ou, mais do que isso, são desejáveis, ante as distintas necessidades de compensar, punir e prevenir), desperta preocupação a elevada oscilação apurada no estudo acima. Basta dizer que a razão entre a maior e a menor indenização foi de 30,7:1 no primeiro grupo (R$ 500.000,00 e R$ 16.285,00) e de 16,66:1 no segundo grupo (R$ 500.000,00 e R$ 30.000,00). A variabilidade no arbitramento cai significativamente quando se consideram apenas os julgados nos quais o STJ decidiu estabelecer nova indenização em substituição à anterior. Aqui, a ratio entre o maior e o menor valor reduz-se para 2,3:1 no primeiro grupo (R$ 300.000,00 e R$ 130.000,00) e 10:1 no segundo (R$ 500.000,00 e R$ 50.000,00). Outro ponto que merece atenção é a dimensão da "zona de não intervenção" (isto é, da faixa na qual o STJ não reconhece nem insignificância, nem excesso, nos valores fixados em 2ª instância): de R$ 16.285,00 a R$ 500.000,00 no primeiro grupo; de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 no segundo. Tal fator, somado ao fato de que as modificações promovidas pelo STJ são relativamente raras (17,14% e 20,28% dos casos que chegaram ao tribunal superior nos dois grupos), evidencia que os Tribunais de Justiça dos Estados e os Tribunais Regionais Federais têm papel predominante na fixação dos danos extrapatrimoniais. Por fim, em atenção à pergunta central deste artigo, cumpre calcular, com base na média dos resultados, o "valor de uma vida" (resumido, aqui, à sua dimensão extrapatrimonial, como justificado alhures). Para as ofensas do 1º grupo - morte de genitor(a) - a média das condenações por dano moral, considerados os 35 julgamentos examinados, foi de R$ 112.190,63. Esse valor desce para R$ 90.876,62 quando contabilizados apenas os 29 julgamentos que integram a "zona de não intervenção", nos quais invocada a Súmula 7, mas sobe para R$ 215.208,33 quando considerados somente os valores fixados diretamente pelo STJ nos 6 casos em que este Tribunal decidiu substituir a condenação anterior. Já para as ofensas do 2º grupo - morte de filho(a) - a média das condenações por dano moral, considerados os 69 julgamentos examinados, foi de R$ 125.004,34. Esse valor reduz-se para R$ 107.016,36 quando contabilizados apenas os 55 julgamentos que integram a "zona de não intervenção", nos quais invocada a Súmula 7, mas se eleva para R$ 195.671,42 quando consideradas somente as 14 indenizações fixadas diretamente pelo STJ. Em arremate, deixo minha impressão pessoal: para além de os valores, mesmo os fixados diretamente pelo STJ, serem modestos demais para bem cumprir as funções de compensar, punir e dissuadir, quando se está em debate a perda de uma vida (reflexo talvez do cuidado exagerado que existe entre nós em impedir o enriquecimento sem causa dos demandantes), afigura-se preocupante, sob o prisma da previsibilidade, a manutenção de "zona de não intervenção" tão dilatada (de R$ 16.285,00 a R$ 500.000,00 no primeiro grupo; de R$ 30.000,00 a R$ 400.000,00 no segundo), cujos extremos distanciam-se sobremaneira dos valores que o próprio STJ arbitra quando modifica as condenações. *Ricardo Dal Pizzol é doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University (Alabama, USA [2015]). Mestre em Direito Civil pela USP (2016). Professor do curso de pós-graduação "lato sensu" da Escola Paulista da Magistratura. Juiz de Direito no Estado de São Paulo. __________ 1 Viscusi, William Kip. Pricing lives: Guideposts for a safer society. Princeton: Princeton University Press, 2018, p. 197. 2 Schelling, Thomas C. The life you save may be your own. In: Problems in Public Expenditure Analysis. Washington: Brookings, 1968, p. 127-162. 3 Thaler, Richard; Rosen, Sherwin. The value of saving a life: evidence from the labor market. In: Household Production and Consumption. New York: Columbia University Press, 1976, p. 265-302. 4 Kniesner, Thomas J.; Viscusi, William Kip. The value of a statistical life. Disponível aqui. Acesso em 13/09/2021. 5 Pereira, Rafael Mesquita; Almeida, Alexandre Nunes de; Oliveira, Cristiano Aguiar de. O valor estatístico de uma vida: estimativas para o Brasil. Estudos Econômicos (São Paulo) [online]. 2020, v. 50, n. 2, p. 227-259. Disponível aqui. Acesso em 14/09/2021. 6 Aristóteles. Ética a Nicômaco, trad. António de Castro Caeiro, São Paulo: Atlas, 2009, p. 107-110. 7 Para estudos quantitativos semelhantes, envolvendo outras violações a direitos da personalidade (v.g., inscrição indevida nos órgãos de proteção ao crédito, ofensas à integridade física), ver nosso: Dal Pizzol, Ricardo. Responsabilidade Civil: Funções Punitiva e Preventiva. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 198-204. 8 Ver: R$ 16.285,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 136114/MA, Rel. Ministro Massami Uyeda, DJe 04/12/2012); R$ 16.666,66 (S.T.J., AgInt no REsp 1641540/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, DJe 29/05/2017); R$ 25.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 957826/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 02/02/2017); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 178255/SE, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 24/04/2013); R$ 30.000,00 (S.T.J., EDcl no REsp 1770437/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 14/05/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1356800/MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 01/03/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1419899/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 24/09/2012); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1554466/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 22/08/2016); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1570428/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 01/09/2020); R$ 54.545,45 (S.T.J., AgInt no AgInt no AREsp 1688401/SE, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/02/2021); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 494692/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 25/06/2014); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 789450/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 05/02/2016); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1447299/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 21/06/2016); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1471604/RS, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, DJe 29/09/2017); R$ 75.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 494692/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 25/06/2014); R$ 75.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1368938/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 07/06/2013); R$ 78.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1585156/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 09/12/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 755535/CE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 01/04/2016); R$ 83.000,00 (S.T.J., AgRg nos EDcl no AREsp 123842/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 31/08/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg nos EDcl no AREsp 25258/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 26/02/2013); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 240252/RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 06/12/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1378016/MS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 22/08/2012); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1574806/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 592690/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 05/08/2015); R$ 117.125,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1449794/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 20/08/2019); R$ 144.800,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 600372/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 27/11/2014); R$ 150.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1320405/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/08/2018); R$ 200.000,00 (S.T.J., RCD no REsp 1575303/MT, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 12/04/2016); R$ 500.000,00 (S.T.J., AREsp 1120174/PA, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/09/2019). 9 S.T.J., REsp 1160261/MG, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 26/09/2014; S.T.J., AREsp 68041/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 26/06/2012; S.T.J., REsp 1837195/RJ, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, DJe 29/10/2020; S.T.J., AREsp 1001643/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 01/08/2017; S.T.J., AREsp 1355500/MA, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/09/2019; S.T.J., REsp 1711214/MT, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 02/10/2018. 10 Ver: R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1316945/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18/12/2020); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1255705/PB, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 26/03/2019); R$ 30.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1104684/PI, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 14/11/2017); R$ 35.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1.426.828/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 22/11/2012); R$ 40.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1366621/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 30/09/2019); R$ 45.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 346483/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 06/12/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 388401/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 06/03/2014); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 167040/RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 03/05/2013); R$ 50.000,00 (S.T.J., AREsp 598512/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 18/12/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1527136/AC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 26/10/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1576912/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 20/05/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1606177/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 01/04/2020); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1485252/MA, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 27/11/2019); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1785645/AC, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 14/06/2019); R$ 50.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1531467/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 10/10/2016); R$ 51.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1272900/AL, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 09/03/2012); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgRg no REsp 1462833/TO, Rel. Ministro Nancy Andrighi, DJe 01/09/2014); R$ 60.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1694191/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 18/05/2018); R$ 62.500,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1825777/AM, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 27/11/2020); R$ 70.000,00 (S.T.J., AgRg no Ag 1.317.861/MS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 09/12/2014); R$ 70.000,00 - (S.T.J., AgInt no AREsp 1823455/PE, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 25/06/2021); R$ 70.000,00 - (S.T.J., AgInt nos EDcl no AREsp 1553769/MS, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 02/04/2020); R$ 76.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 201.092/MS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 09/10/2012); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1871795/CE, Rel. Ministro Sérgio Kukina, DJe 18/12/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1626688/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 03/09/2020); R$ 80.000,00 (S.T.J., AgInt nos EDcl no REsp 1143470/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 18/11/2019); R$ 88.000,00 (S.T.J., REsp 1346320/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 05/09/2016); R$ 95.400,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1809179/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 02/06/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1685425/AM, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 20/09/2019); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1823206/RJ, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 30/06/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1876694/AM, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 15/03/2021); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1723499/MS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 18/12/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1679394/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 18/12/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AREsp 1635896/PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 09/06/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 933896/PR, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 16/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1646171/RS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 20/06/2017); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1609146/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 08/06/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1398627/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 04/03/2020); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 777278/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 04/02/2016); R$ 100.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1393922/SC, Rel. Ministra Assusete Magalhães, DJe 26/03/2019); R$ 110.000,00 (S.T.J., REsp 1292144/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/10/2013);  R$ 120.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1679314/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21/09/2020); R$ 125.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1494733/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 25/03/2020); R$ 150.000,00 (S.T.J., AgRg no AREsp 258.541/PE, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 10/09/2013);  R$ 150.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1824156/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 23/03/2021); R$ 180.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1410023/SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 07/11/2019); R$ 181.000,00 (S.T.J., EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp 1196640/BA, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 05/02/2019); R$ 187.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1469221/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06/12/2017); R$ 200.000,00 (S.T.J., REsp 1709926/AM, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 01/09/2021); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1610097/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 05/08/2020); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 1105185/RJ, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 01/10/2018); R$ 200.000,00 (S.T.J., AgInt no REsp 1653046/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJe 28/05/2018); R$ 280.000,00 (S.T.J., REsp 1784671/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 23/04/2019); R$ 400.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 778245/RJ, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 24/10/2019); R$ 400.000,00 (S.T.J., AgInt no AREsp 401519/RJ, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 23/05/2018). 11 S.T.J., REsp 1749965/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 19/11/2019; S.T.J., REsp 1197284/AM, Rel. Ministro Paulo de T. Sanseverino, DJe 30/10/2012; S.T.J., REsp 1842852/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 07/11/2019. 12 S.T.J., REsp 1835492/AC, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 04/10/2019; S.T.J., AREsp 812782/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 14/12/2016; S.T.J., REsp 1034652/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 27/06/2014; S.T.J., REsp 1745695/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJe 13/08/2018; S.T.J., AgInt no AgInt no REsp 1712285/TO, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 18/12/2018; S.T.J., AgRg no AREsp 725306/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 02/09/2015; S.T.J., AgInt no AREsp 1708564/MS, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 15/10/2020; S.T.J., REsp 1320715/SP, Rel. Ministro Paulo de T. Sanseverino, DJe 27.02.2014; S.T.J., REsp 1044527/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 01/03/2012; S.T.J., REsp 1279173/SP, Rel. Ministro. Paulo de T. Sanseverino, DJe 09/04/2013; S.T.J., REsp 1201244/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 13/05/2015.
quinta-feira, 16 de setembro de 2021

A responsabilidade civil pelo filho póstumo

O recente julgamento pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça sobre a implantação de embriões criopreservados após a morte do marido evidenciou que, sem norma específica que regulamente o tema, requisito essencial para esse tipo de procedimento post mortem é o consentimento "inequívoco, expresso e formal". Ou seja, para a maioria dos ministros da Corte Superior, não bastou a existência de autorização assinada no contrato com a clínica de fertilização, em que descrevia que caso um dos cônjuges viesse a falecer, os embriões ficariam sob a custódia do sobrevivente, para que a viúva pudesse levar a cabo o projeto de gravidez1. Um dos argumentos do Ministro Luís Felipe Salomão, que elaborou o voto vencedor, foi que "admitir-se que a autorização posta naquele contrato de prestação de serviços, na hipótese, marcado pela inconveniente imprecisão na redação de suas cláusulas, possa equivaler a declaração inequívoca e formal, própria às disposições post mortem, significará o rompimento do testamento que fora, de fato, realizado, com alteração do planejamento sucessório original, sem quaisquer formalidades, por pessoa diferente do próprio testador." De fato, o nascimento de um filho, ou a descoberta de um filho após a morte do testador é uma das causas do rompimento do testamento, segundo o artigo 1.974 do Código Civil. Mas, para que houvesse tal rompimento, este filho precisaria nascer com vida, conforme o artigo 2o do mesmo diploma. No acórdão citado, não houve debates específicos sobre o início da vida e se há reserva de legítima para embriões criopreservados2. Tampouco diferenciaram a implantação de embrião de inseminação de material genético do falecido3. Debruçaram-se os ministros tão e somente sobre o fato de que a autorização do cônjuge falecido para a implantação de embrião criopreservado, oriundo de fertilização homóloga4 (material genético é do casal), deve ser "inequívoca, expressa e formal". Dois tipos de consentimento Aqui, é importante diferenciar o que é o consentimento informado e esclarecido para os procedimentos de reprodução humana assistida (RHA) e o consentimento para a implantação de um embrião após a morte de um dos cônjuges. No primeiro caso, trata-se do direito do paciente-consumidor de ser informado sobre todas as implicações médicas de seu tratamento. É, em resumo, nos termos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), o direito à informação, e foi disciplinado no Código de Ética Médica (Resolução do CFM n. 1.246/1988). Essa necessidade de se respeitar a autonomia do paciente em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana está expressa na Constituição Federal (art 1o, III, e art. 5o, II, CF)5. O segundo caso, demandaria por parte dos contraentes, uma reflexão mais profunda sobre a maternidade/paternidade post mortem, visto que há consequências ético-jurídicas não só para o paciente que se submete ao tratamento, mas também para terceiros como o próprio filho póstumo, o cônjuge sobrevivente e os ascendentes e descendentes do falecido. O que se tem hoje, em grande parte das clínicas, é um contrato de adesão no qual a pessoa manifesta sua vontade com um "X". Essa diferenciação de consentimentos não é explícita, mas está disposta na resolução n. 2.294 de 2021 do CFM6. Nesse sentido, se, por um lado, houve o consentimento para realizar as técnicas de RHA (contrato entre a clínica e o paciente), por outro lado, a implantação desses embriões posteriormente à morte de um dos cônjuges precisaria da anuência específica para este fim (contrato entre a clínica e os pacientes e contrato existencial entre os pacientes)7. Tanto que um dos argumentos do voto vencedor do julgado do STJ supracitado foi que "custódia de embriões" não equivale à possibilidade de implantação dos mesmos. Entretanto, é importante frisar que, em vida ou em testamento, existe a possibilidade de revogação dessa autorização8. Contudo, uma vez implantado o embrião, tratar-se-á de um nascituro, cujos direitos estão resguardados. Mas, quais seriam as consequências jurídicas se este embrião for implantado à revelia desta autorização? Qual seria a responsabilidade civil do médico? Do cônjuge supérstite? Do filho póstumo? Quem teria legitimidade para propor alguma ação de reparação de danos em nome do morto?                A responsabilidade civil São inúmeras perguntas sem respostas prontas e objetivas. Para perquirir se há uma responsabilização civil, é preciso verificar se seus requisitos, dispostos nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, estão preenchidos. Considerando que a regra geral da responsabilidade civil é a de que quem causa dano a outrem, por ação ou omissão, está obrigado a repará-lo, desde que comprovado o nexo causal entre autor e dano, não é difícil perceber que na implantação de embrião sem consentimento, incorrem em responsabilidade tanto o médico quanto o cônjuge supérstite que deu cabo do projeto (agora) monoparental. Na lição de Nelson Rosenvald, "se o demandante pretende uma indenização, o réu deve ter violado uma norma de conduta que rege as maneiras como ele pode tratá-lo, e não alguma outra norma relativa às maneiras como qualquer outra pessoa pode ser tratada. Esse princípio é em si uma expressão da forma pela qual o direito civil deve lidar com a questão de como as pessoas tratam umas às outras"9. No caso em questão, se o falecido não deu seu consentimento expresso para a implantação dos embriões ou, pior, foi enfático em revogar essa autorização em testamento, o procedimento à sua revelia, ainda que post mortem, acarretaria, sim, responsabilização civil não só do médico, mas também do cônjuge supérstite. Responsabilidade do médico O médico responde com base no Código de Defesa do Consumidor (art. 14, § 4º), por se tratar de uma relação de consumo. Responde ainda ante seu próprio conselho de classe, uma vez que violados expressamente o art. 15, § 3º do Código de Ética Médica, e o item V.3 da Resolução 2.294/2021 do CFM. Apesar de não haver legislação específica sobre a criminalização de atos médicos na reprodução humana assistida, uma solução utilizada pela doutrina norteamericana10 para a implantação de embriões ou material genético sem a autorização foi a nomeação do crime de conspiração (conspiracy) e fraude, donde respondem os agentes que concorreram com o crime, mesmo antes da ocorrência do dano. É vasta a literatura sobre a responsabilidade civil do médico e das clínicas de fertilização, inclusive já trazidas por esta coluna11 e membros do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil)12. Mas, o importante é destacar que o tema é vastíssimo e entre as possibilidades criativas de inclusão da má conduta médica podendo-se, inclusive, aventar o enquadramento do wrongful conception13 - que aborda os casos de casais que escolheram lançar mão de métodos contraceptivos e, por falha médica, acabaram concebendo uma criança indesejada ou não planejada - pelo menos, por uma das partes. Responsabilidade do cônjuge supérstite Já a responsabilidade da viúva não decorre de relação de consumo, mas de um ato ilícito, pois rompeu com a confiança que seu falecido marido nela teria depositado, de não usar aquele material genético para uma inseminação post mortem. Sua responsabilidade encontraria fundamento, pois, basicamente no art. 186 da lei civil, bem como no art. 927 do mesmo estatuto legal.           Destaca-se que o dano aqui causado pode ser caracterizado não só pela quebra do contrato (existencial) entre as partes, o qual dispunha que deveria haver o consentimento expresso para a implantação, como também os danos causados aos descendentes ou ascendentes do falecido, podendo ocorrer, assim, um dano em ricochete. Não se trata aqui do caso clássico em que há a morte da vítima e os danos oriundos desta. Mas, de um dano ocorrido por uma violação da vontade do falecido que originou outro ser, um irmão, um neto, alguém cuja existência não foi quista pelo morto. O dano em ricochete, na leitura de Rafael Peteffi da Silva, é explicado como "o prejuízo que pode ser observado sempre em uma relação triangular em que o agente prejudica uma vítima direta que, em sua esfera jurídica própria, sofre um prejuízo que resultará em um segundo dano, próprio e independente, observado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete"14. Ainda segundo Rafael Peteffi da Silva, o princípio da função social do contrato poderia atuar como um dos critérios para fixar o dano reflexo ou por ricochete dentro da moldura dos danos indenizáveis15. Neste caso, houve quebra do contrato, posto que a agiu-se à revelia de uma (não) vontade expressa. O dano patrimonial para os herdeiros do falecido seria a própria imposição da divisão da herança com o irmão póstumo, se este nascer com vida. O dano moral seria a existência de um irmão que é fruto da quebra de contrato e de confiança que a viúva realizou frente ao marido morto. Esses familiares poderiam ainda defender em nome próprio o direito de resguardar a memória de seu ente querido, por violação à sua honra16. E o filho póstumo? Eduardo de Oliveira Leite afirma que, juridicamente, a criança oriunda de inseminação post mortem não tendo sido concebida durante o casamento não poderia, em vista do artigo 1.597, II, do Código Civil, ser considerada como filha de pai morto e, portanto, sua herdeira. Contudo, tendo a fertilização in vitro já ocorrido e restando os embriões criopreservados, a criança já pode ser considerada concebida quando transferida para o útero materno, considerando os incisos III, IV e V, do mesmo artigo17.  Assim, mesmo implantado à revelia, se o embrião conseguir se desenvolver e nascer com vida, terá garantido todos os seus direitos sucessórios. Porém, não se pode deixar de inquirir se, sob o ponto de vista ético, a reprodução post mortem não estaria causando algum dano daquele que está por vir. Nesta linha, José de Oliveira Ascensão argumenta: "entra-se aqui numa zona perigosamente problemática. Está-se 'produzindo' conscientemente um novo ser que nunca terá a possibilidade de um ambiente bipartido, ficando assim de fora do que é normal na formação humana. Os interesses da mãe prevalecem assim sobre o interesse do ser que ela concebe"18. De acordo com Alexandre Pereira Bonna, a efetiva lesão para fins de gerar a indenização por dano moral deve atingir um bem integrante do patrimônio jurídico da pessoa, como a vida, liberdade, intimidade, privacidade, honra, imagem, os quais são tutelados pelo Direito e fazem parte do patrimônio jurídico das pessoas, que possuem patrimônio material e imaterial19. Portanto, ao ter consciência de como foi o seu processo de nascimento e todas as consequências jurídicas vividas a partir deste evento, o filho póstumo poderia, a seu turno, ingressar com danos morais contra a própria mãe (e por que não o médico, se não houver prescrição) que, em atitude desesperada, forjou sua existência à revelia do pai que ele nunca virá a conhecer.  *Maria Carolina Nomura-Santiago é mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP (2020) e em Direito Internacional pela Fundación José Ortega y Gasset - Gregorio Marañon, então adscrito à Universidad Complutense de Madrid (2006). Membro da Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas, da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) e do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada e jornalista.   Referências bibliográficas CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito Civil. 5. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1.428  DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro; SANTIAGO, Maria Carolina N. Nomura. Responsabilidade civil pela desistência do projeto parental após a criopreservação de embriões: aplicação da teoria da perda de uma chance. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 103-118, jan./abr. 2021.  GOZZO, Débora. LIGIERA, Wilson Ricardo (organizadores). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.  LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.  NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade civil do médico. 8a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.  NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de direito do consumidor. Salvador: Juspodium, 2008.  NOMURA-SANTIAGO, Maria Carolina. Post Mortem: a questão sucessória dos embriões criopreservados. São Paulo: Liberars, 2021.  PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3ª ed., 2011. __________ 1 Para o Ministro-relator Marco Buzzi, que teve o voto vencido, "Se pelo ordenamento jurídico admite-se a manifestação por quaisquer meios, é fato que quando essa declaração se dá por documento escrito, tal aquiescência afigura-se verdadeiramente sofisticada a denotar a perfectibilização do requisito atinente à prévia e expressa declaração de vontade.(.) E que não se diga que a autorização precisava ter sido formulada por instrumento público, vez que inexiste lei que assim preveja". Já para o Ministro Luís Felipe Salmão, cujo voto foi o vencedor, à falta de lei específica sobre o tema, foram trazidos o § 7° do art. 226 da Constituição Federal, sobre o planejamento familiar, a lei 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), a Resolução n. 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, o Provimento n. 63 do Conselho Nacional de Justiça e o Enunciado n. 633 do Conselho da Justiça Federal, oriundo da VIII Jornada de Direito Civil, "houve autorização pelo falecido, para que T DA CRZ custodiasse o material genético após a sua morte, providência diversa da autorização para implantação dos embriões, após sua morte. Como custodiante, a ora recorrida poderá ceder o material para pesquisa, doação, descartar, ou deixar que o tempo o consuma, mas nunca implantá-lo em si, porque aí necessitaria de autorização prévia e expressa do titular do gameta que originou o embrião." Disponível aqui. Acesso em 13.Set.2021. 2 Sobre o tema, há dois posicionamentos distintos: Carolina Valença Ferraz afirma que embriões criopreservados são herdeiros necessários e sua capacidade de recebimento de sua quota-parte da herança não se confunde com sua capacidade civil (FERRAZ, Carolina Valença. Biodireito. São Paulo: Editora Verbatim, 2011) e Maria Carolina Nomura-Santiago, pontua que os embriões congelados só terão direitos sucessórios se assim for disposto em testamento como prole eventual e, após implantado, nascer com vida (NOMURA-SANTIAGO, Maria Carolina. Post mortem: a questão sucessória dos embriões criopreservados. São Paulo: Ed. Liberars, 2021). 3 O embrião é formado a partir da junção dos gametas masculino e feminino, gerando um novo DNA. Já a fertilização post mortem ocorre com a utilização do material genético de falecido. O Conselho Federal de Medicina não faz distinção sobre ambos, tratando tudo como "reprodução assistida post mortem".  4 Se a fertilização fosse heteróloga, ou seja, o material genético fosse de terceiro e não do falecido, haveria a necessidade de consentimento? Deve-se analisar o caso em concreto, porém, em termos objetivos, seria possível vislumbrar a implantação deste embrião, desde que não houvesse qualquer imputação à paternidade do cônjuge morto, visto que, biologicamente, ele já não era o genitor. 5 PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. pp.123-143. 6 A Resolução 2.294 de 2021 do CFM dispõe no item I.4. que "o consentimento livre e esclarecido será obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de RA. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido será elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância" e sobre a criopreservação, item V.3: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los." Portanto, na norma deontológica do CFM, ainda que tímida, existe essa diferenciação. 7 Frise-se que o contrato das partes com a clínica é um contrato de consumo. Entretanto, o contrato entre as partes, firmado a partir do contrato com a clínica, os enlaça em um contrato existencial, posto que em seu objeto está, necessariamente, um direito extrapatrimonial. Rafael Ferreira Bizelli destaca que nos contratos existenciais "ao menos em uma das partes de um contrato existencial, por conseguinte, o interesse envolvido estará diretamente relacionado com a dignidade e/ou à personalidade do contratante, visto que destinado à sua (sobre) vivência, de modo que são interesses, portanto, ditos extrapatrimoniais." Contratos Existenciais: Contextualização, Conceito e Interesses Extrapatrimoniais. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 - Out / Dez 2015. Disponível aqui. Acesso em 12.Set.2021. 8 Sobre o tema: DANELUZZI, M. H. M. B.; SANTIAGO, M. C. N. N. Responsabilidade civil pela desistência do projeto parental após a criopreservação de embriões: aplicação da teoria da perda de uma chance. Revista IBERC, v. 4, n. 1, p. 103-118, 12 abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em 10.Set.2021. 9 BONNA, Alexandre Pereira. Dano moral. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, X-XI (prefácio). 10 Tradução livre: "A fraude de inseminação não é apenas eticamente problemática, mas também também pode dar origem a processos criminais e ações judiciais civis. Isto não é fácil encontrar um ato análogo. Talvez o exemplo mais próximo ocorre quando os médicos têm relações sexuais com detentores do material genético". Uncommon Misconceptions: Holding Physicians Accountable for Insemination Fraud, 37(1) LAW & INEQ. (2019). Disponível aqui. Acesso em 14.Set.2021. 11 Objeção de consciência médica em reprodução humana assistida: entre o direito e a discriminação. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/337964/objecao-de-consciencia-medica-em-reproducao-humana-assistida--entre-o-direito-e-a-discriminacao; Primum non nocere: a responsabilidade do plano de saúde no congelamento de óvulos de pacientes com câncer, Disponível aqui. 12 PAGLIARI, Isadora Cé; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos Médicos e as Clínicas de Reprodução Humana Assistida. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. pp.123-143. 13 SILVA, Rafael Peteffi da; RAMMÊ, Adriana Santos. Wrongful conception, wrongful birth e wrongful life: possibilidade de recepção de novas modalidades de danos pelo ordenamento brasileiro. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 01, p. 121-143, dez. 2013. 14 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de Justiça, função social do Contrato e a Indenização do Dano Reflexo ou por Ricochete. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, [S.l.], v. 3, n. 5, p. 57-77, jul. 2012. ISSN 2358-601X. Disponível aqui. Acesso em: 14 set. 2021. 15 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de Justiça, função social do Contrato e a Indenização do Dano Reflexo ou por Ricochete. Unisul de Fato e de Direito: revista jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, [S.l.], v. 3, n. 5, p. 57-77, jul. 2012. ISSN 2358-601X. Disponível aqui. Acesso em: 14 set. 2021. 16 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. 17 Art. 1.597, CC - Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I- nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a conviveria conjugal; II- nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 18 ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação e direito, 2009, p. 355-356. 19 BONNA, Alexandre Pereira. Dano moral. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 6.
Ao longo dos últimos anos, as autoridades brasileiras de defesa da concorrência tomaram medidas para recrudescer o combate às violações à concorrência, concentrando grande parte de seus esforços para inibir os cartéis, tidos como a mais grave das violações. Tais medidas adotadas para a persecução pública foram reforçadas pelo aumento do número de ações privadas de pedido de indenização concorrencial. Os esforços empreendidos pelo público e pelo privado se complementam e ambas as atuações são necessárias para garantir uma efetiva dissuasão dos agentes econômicos à prática de atos anticoncorrenciais. Esse recente florescimento das ações indenizatórias no campo concorrencial deu destaque aos temas que delas resultam em maior controvérsia no Judiciário. Dentre eles, a discussão sobre a prescrição é altamente relevante, do qual se destaca o debate sobre termo inicial de sua contagem. Conta-se o prazo do ato ou da sua ciência? Qual a dada da efetiva ciência pela vítima? São essas as perguntas que precisam ser respondidas e que o PL 11.275/2018 poderá ajudar1. O Código Civil determina, em seu artigo 189, que a contagem do prazo de prescrição se inicia com a violação do direito. Contudo, a fim de evitar a perda do direito por aqueles que sequer conhecem a sua existência, a doutrina desenvolveu interpretação no sentido de considerar que o prazo prescricional se inicia apenas da data do conhecimento do ato ou da lesão e seus efeitos pela vítima. José Fernando Simão esclarece que o dies a quo da prescrição para exercício de direito sobre fatos desconhecidos é a data em que se verifica o dano-prejuízo, seguindo o mesmo entendimento de Junqueira de Azevedo e Paulo Torminn Borges2. A jurisprudência segue o mesmo caminho3 e referenda essa solução, que mantém vivo o direito da vítima e evita que se tornem totalmente inócuas as normas de responsabilização civil. A prescrição serve para evitar a eternização de direitos, não para suprimi-los. A multiplicidade de momentos dos cartéis No que diz respeito aos cartéis, são dois os níveis de prática de atos ilícitos. O primeiro é o do ato que deu origem ao acordo ilícito em si. O segundo é o da implementação desse acordo, quando ocorre a mudança das condições de mercado (dano-evento) - que, de forma direta ou indireta afeta os preços dos produtos ou serviços ofertados pelos cartelistas - e, a partir disso, geram-se as consequências aos agentes de mercado afetados (dano-prejuízo)4. O início da operação do cartel marca o momento do início da produção dos danos e ele costuma ocorrer logo após a celebração do acordo entre os envolvidos. Embora haja discussão sobre o cartel ser crime permanente ou continuado, é consenso que ele se estende no tempo5. Portanto, a data do início da operação do cartel demarca o início dos danos, no caso, a ocorrência do dano-evento. Importante agora dividir duas possíveis origens às ações de indenização por dano concorrencial: cartéis descobertos diretamente pelas vítimas e cartéis investigados pelas autoridades de defesa da concorrência. No primeiro caso, têm-se uma ação judicial chamada de "stand alone", na qual a vítima terá que apresentar todas as provas do ato alegado, comprovar a existência do cartel por meio de provas coletadas mediante seus próprios esforços e, também, comprovar o dano sofrido. O segundo caso é o da ação judicial chamada de "follow on", em que a vítima apoia todo seu pedido nas provas e decisões produzidas pela autoridade que julgou e condenou o cartel6. Essa diferença é fundamental para tratar da prescrição porque para as ações stand alone há apenas um ponto no tempo a ser discutido, enquanto para as ações follow on existem vários. Quando uma vítima inicia uma ação judicial stand alone, ela deve apresentar todas as provas quanto aos elementos formadores da responsabilidade civil e, tratando-se de fato sobre o qual tomou conhecimento após sua ocorrência, deverá comprovar a data de sua ciência. Os réus poderão contestar essa alegada data de ciência, caso tenham provas que ela ocorreu em momento diferente. Com relação às ações follow on, como as vítimas se embasarão em investigação promovida pelas autoridades de defesa da concorrência, pois não tinham acesso a qualquer informação ou prova antes da investigação - do contrário, estar-se-ia diante de uma ação stand alone -, há discussão sobre os inúmeros marcos temporais que existem na própria investigação, desde a data de instauração do processo administrativo até o dia de sua extinção. Especialmente no contexto das ações follow on, a dificuldade é determinar quando se daria o conhecimento inequívoco de tais danos tendo em vista os inúmeros marcos temporais, sobretudo em ilícitos complexos como os casos de cartel.  Conhecimento inequívoco dos danos pela vítima Cartéis são ilícitos sigilosos e seus membros tentam esconder ao máximo sua existência para que a prática se alongue no tempo, uma vez que a descoberta precoce impossibilitaria a continuidade dos ganhos espúrios, seja pela mobilização das autoridades ou dos demais agentes do mercado, prejudicados pelo ilícito. Por sua natureza secreta, a obtenção de provas quanto à existência dos cartéis é tarefa extremamente difícil, se não hercúlea. Quando inexiste qualquer acordo (leniência ou termo de compromisso de cessação - TCC) por meio do qual algum participante do cartel o denuncie e entregue provas de sua existência às autoridades, as provas materiais só podem ser obtidas mediante busca e apreensão de documentos. Tal medida não é tarefa fácil e demanda grandes recursos, esforços e articulação institucional entre diversos órgãos investigativos7. Portanto, ao prejudicado cabe buscar tal ajuda do governo (mediante a propositura de ações stand alone) ou aguardar que os fatos sejam desvendados para que depois inicie sua ação de indenização (ações follow on). Surge daí a seguinte questão: como buscar provas de algo cuja existência se desconhece? Na medida em que os prejudicados somente saberão que estão sofrendo prejuízo quando o cartel for revelado, eles só poderão buscar provas sobre eventual ilícito após tal data. Qualquer ponto cronológico que antecede a decisão final do CADE sobre uma investigação de cartel poderá trazer elementos parciais sobre a possível existência do ato ilícito, mas a partir dos quais não é possível determinar se ocorreu o dano-evento e qual seria ele, quanto menos averiguar suas eventuais consequências (dano-prejuízo). Portanto, fica claro que o marco que determina o início da contagem do prazo prescricional é o da verificação do dano-prejuízo, que pode ser coincidente ou não com o dano-evento e com o ato ilícito. Contudo, os casos de concorrencial revelam que há ainda maior dificuldade quando se desconhece a existência do próprio ato ilícito, porque mesmo que a vítima sofra as consequências do dano, não poderá relacionar tais efeitos a qualquer ato, pois os desconhece ou ainda não foram revelados. É sob tal ótica que a doutrina tem analisado a contagem do prazo prescricional para as vítimas de cartéis. Como o dano-prejuízo somente pode ser verificado mediante perícia econômica e econométrica, que se baseia nos dados do dano-evento, impossível que se verifique qualquer prejuízo antes que se tenha acesso às informações mínimas da abrangência, autoria e período de prática do ato ilícito. Assim, havendo uma sentença penal ou uma decisão administrativa, passa-se a ter ciência da existência do ato ilícito e de sua autoria, além dos seus efeitos, necessários para determinar a extensão do dano-prejuízo. Mais que isso, torna-se possível ter acesso às provas da existência de tal ilícito, necessárias para comprovar a relação de responsabilidade civil. Esse momento ocorre na data da publicação da decisão final da autoridade, após eventuais embargos de declaração e outros recursos modificativos da decisão. Apesar de ser ainda possível questionar na Justiça a decisão final administrativa, parece ser um exagero aguardar por tal decisão, mesmo que possam alterar totalmente o julgamento. Para fins de ciência do ato ilícito e seus efeitos, basta a coisa julgada administrativa. Já no caso de condenação criminal, deve-se aguardar pela coisa julgada judicial, pois somente com a publicação da decisão final do Judiciário que haverá a confirmação do crime e de sua autoria. Assim, a conclusão não pode ser outra que: a ciência do ato ilícito de cartel ocorre na data da decisão final administrativa ou criminal, a que ocorrer primeiro. O PL 11.275/18 e a prescrição: alteração ou confirmação? Ainda existe confusão na interpretação legal, mas ao menos no Tribunal de Justiça de São Paulo, perante o qual tramita a grande maioria das discussões sobre o tema, inúmeras decisões já estão sendo discutidas em segundo grau e consolidou-se o entendimento ora defendido por este autor, de que a responsabilidade é aquiliana e o termo de início de sua contagem é a data da publicação da decisão final do CADE8. Tal entendimento segue também as normas e decisões internacionais9. Nesse sentido, o texto do PL 11.275/2018 traz como grande contribuição ao debate da prescrição a consolidação do entendimento jurisprudencial e doutrinário já dominante, visto que determina expressamente que a ciência inequívoca do ato ilícito ocorre quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE10-11. Portanto, mais que inovar, o Projeto de Lei confirmará a interpretação já adotada para a legislação vigente. Contudo, estará longe de resolver todas as discussões oriundas do tema, ao menos em um primeiro momento. Por exemplo: como ficaria a contagem do prazo prescricional para cartéis que foram julgados ou que tiveram início antes da entrada em vigor da nova lei? Resta claro que a jurisprudência continuará desempenhando papel fundamental para nos guiar por esse tema por alguns anos. *Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Doutor, Mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", publicado pela RT, atualmente em sua 2ª edição, além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior. __________ 1 O Projeto de Lei (PL) 11.275/2018 é originário do Projeto de Lei do Senado (PLS) 283/2016 e atualmente aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto traz outras determinações além daquelas sobre a prescrição, tal como a criação do double damage, a imposição da cláusula arbitral para quem celebrar acordo de leniência ou TCC e regra expressa sobre o ônus da prova sobre casos de repasse do dano. 2 SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 213-216. 3 Nesse sentido: REsp 1.354.348/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.08.2014; AgInt no REsp 1.478.280/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.08.2017; REsp 1.346.489/RS, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 11.06.2013; REsp 1.645.746/BA, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 06.06.2017. 4 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 195-203. 5 Parece muito mais coerente classificar o cartel como um crime permanente, visto que o acordo e seu objetivo são definidos desde o início, e durante a operação do cartel os membros fazem apenas ajustes da forma de sua operação, mas o ato ilícito permanece o mesmo e se estende no tempo. Ao contrário, sendo considerado um crime continuado, pressupor-se-ia que a cada venda realizada por cada um dos membros do cartel haveria uma nova decisão por sabotar o ambiente concorrencial. Por mais que os cartéis de fraude à licitação se assemelhem a essa descrição, vê-se que não há um novo acordo a cada certame, mas sim um acordo macro que busca os objetivos globais do cartel a cada processo licitatório. Tanto é verdade que existem os sistemas de compensação entre os membros do cartel para ajustar as diferenças de valores dos contratos ou participações de mercado entre uma licitação e outra em diferentes regiões do país ou do mundo. 6 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 198. 7 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 197. 8 São decisões nesse sentido: TJ/SP - Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP - AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP - AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP - Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020. 9 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia e nos EUA asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da cocorrência. 10 Além de prever expressamente que a data da decisão final do CADE é o ponto de início da contagem da prescrição, a nova lei uniformiza o prazo prescricional em 05 anos, eliminando a distinção atualmente existente entre Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, confirmando também se tratar de responsabilidade civil extracontratual. 11 PL 11.275/2018: "Art. 2º A Lei nº 12.529, de 30 de dezembro de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência), passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 46-A e 47-A: (...) Art. 46-A. (...) § 2º Considera-se ocorrida a ciência inequívoca do ilícito quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade."
quinta-feira, 9 de setembro de 2021

É possível falar em mitigação de danos morais?

No âmbito da responsabilidade civil, a mitigação é a norma que repercute a conduta do lesado - posterior ao evento lesivo - sobre a quantificação e compensação do dano. O mais fácil é concebê-la a partir de seu efeito: o prejuízo evitável não é ressarcível, o que encoraja o lesado a mitigar, ou seja, a se portar com razoabilidade após o evento lesivo para impedir o agravamento do dano.1 Apesar de divergências quanto ao fundamento (se boa-fé objetiva, se abuso de direito ou se decorrência da causalidade, por exemplo), natureza jurídica (se dever, se ônus, ou se incumbência, etc.) e origem (se importação de figura estrangeira ou se solução nacional), há consenso doutrinário quanto à incidência da referida norma nas relações jurídicas reparatórias envolvendo danos patrimoniais (lucros cessantes e danos emergentes). Questão menos discutida, todavia, é a possibilidade de mitigação do dano moral.  Neste pequeno ensaio, serão apresentadas duas provocações sobre o tema. A primeira diz respeito ao exercício tardio do direito de ação referente à compensação do dano moral. Aqui, cogita-se a possível incidência da mitigação sobre os juros moratórios acrescidos à indenização frente à demora no ajuizamento da demanda pela vítima. Como se sabe, lesionado interesse existencial merecedor de tutela, a pretensão à compensação moral deve ser exercida dentro dos limites temporais estabelecidos pela prescrição no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Com base nisso, o agir da parte que exerce a pretensão no limiar de referidos prazos (por ex., no último dia) supostamente majoraria a condenação devida pelo ofensor a título de danos morais, por força da incorporação dos juros de mora desde o evento lesivo, nos termos da Súmula 54/STJ.2 A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já se deparou com a situação ao apreciar o RESp n. 1.677.773/RJ. Na ocasião, consignou que o dilatado prazo prescricional instituído no CC-16 "resultava em situações extremas, nas quais o período decorrido entre o evento danoso e a propositura da ação indenizatória se revelava nitidamente exagerado ou desproporcional", mas, com a drástica redução dos prazos operada pelo CC-023, a justificativa não mais subsistiria. Isso levou ao desprovimento do RESp.4 De fato, a invocação da mitigação não é o caminho mais adequado para lidar com o ajuizamento tardio e os juros de mora. A prescrição tem por panos de fundo a estabilização social e a segurança jurídica. Admitir a mitigação como meio de, casuisticamente, limitar os juros nas pretensões exercidas dentro dos marcos temporais definidos no Código geraria, justamente, instabilidade e insegurança. Se for o caso, a discussão deve se centrar na revisão da Súmula/54 e no marco a quo da incidência dos juros, evitando-se a utilização da mitigação como sucedâneo em situações patológicas. A segunda provocação pressupõe a investigação da real possibilidade de mitigar o prejuízo moral propriamente dito. Parte da premissa do dano moral, assim como o patrimonial, também pode ser agravado a depender da conduta da vítima, o que demanda necessária diferenciação entre dano-evento e dano-prejuízo. Dano-evento seria a lesão ao interesse juridicamente relevante (de índole existencial, no caso). O dano-prejuízo, por sua vez, consistiria na consequência patrimonial ou moral de referida lesão. O fato de existirem dois "momentos" não significa que haja lapso entre eles: pode ser que o prejuízo se consume simultaneamente à lesão.5 Diante disso, quando o dano-prejuízo for simultâneo ao dano-evento­ ou se for consequência direta de sua materialização, não há espaço para a incidência da mitigação. Isso porque, nessas circunstâncias, não há possibilidade de agravamento passível de ser atribuído à vítima. Para ilustração, imagine-se a hipótese de envio de cartão de crédito sem autorização (Súmula 532/STJ): dessa prática abusiva, por si só, decorre o prejuízo moral, sem que haja possibilidade de mitigação pela vítima, pelo menos dentro daquilo que normalmente ocorre. Diferente é a situação na qual: i) do dano-evento não necessariamente decorre o dano-prejuízo; ii) há o agravamento do dano-prejuízo após o dano-evento; iii) há o agravamento da lesão existencial em si, com a reconfiguração da relação reparatória. Exemplo da primeira situação: não correntista comparece ao caixa de determinado Banco público para realizar o pagamento da inscrição em concurso público no último dia do vencimento do título. Imagine-se que o sistema de referida Instituição Financeira sai do ar e, consequentemente, não é possível realizar o pagamento in loco. Ainda assim, o pagamento poderia ser realizado até às 22h por via de aplicativo mobile ou internet banking. Nessas circunstâncias, a pretensa vítima poderia localizar amigo, familiar ou terceiro, correntista da Instituição Financeira, e solicitar que realizasse referido pagamento, eliminando o prejuízo moral oriundo da falha sistêmica. Percebe-se que, apesar do dano-evento, o dano-prejuízo de índole moral pela perda da chance de realizar o concurso não necessariamente se materializaria, embora, é verdade, pudesse se configurar outra hipótese de dano-prejuízo, menos grave, pelo tempo despedido pelo consumidor. Exemplo da segunda situação: matéria baseada em fatos inverídicos é divulgada em veículo de comunicação social, abalando a honra subjetiva da vítima. No primeiro dia, há apenas 200 visualizações. Tomando a vítima ciência do fato, cabe a ela exigir o direito de resposta previsto na lei 13.188/2015? Ou enviar notificação extrajudicial exigindo a remoção ou retificação do conteúdo inverídico? Isso tendo em mente que tais medidas podem minorar o alcance de referida notícia. Aqui se está diante de hipótese em que ocorre o agravamento do dano-prejuízo posteriormente ao dano-evento pelos efeitos continuados da lesão existencial, sendo que a vítima poderia, pelo menos, tentar minorar-lhe as consequências, mesmo que não se possa apagar a lesão originária.6 Exemplo da terceira situação: a vítima é alvo de atropelamento e sofre apenas ferimento na perna, mas deixa de tratar a ferida. Sucede então grave infecção, a demandar a amputação do membro lesionado. Com efeito, a vítima poderia ter tratado a ferida sem se submeter à intervenção cirúrgica, sendo também certo que o ­dano-prejuízo de índole moral pelas escoriações decorrentes do atropelamento difere substancialmente do dano-prejuízo em caso de amputação de membro. A segunda situação é muito mais gravosa, exigindo condenação maior. Houve, pela conduta omissiva da vítima, a ampliação da lesão inicial, com a consequente alteração do quadro reparatório originário, ao qual estaria adstrita a responsabilidade do ofensor. Nesses três cenários, pelo menos intuitivamente, a mitigação poderá incidir acaso a vítima venha pleitear indenização por dano moral: i) pela perda da chance de participar do concurso; ii) pela divulgação da notícia inverídica durante certo lapso de tempo; e iii) pela amputação do membro. Sua efetiva incidência, todavia, será decidida apenas no caso concreto, em que será preciso considerar as reais possibilidades de mitigar o prejuízo. Longe de esgotar a temática, percebe-se que sim, é possível falar em mitigação de danos morais, mas ainda é necessário desenvolvimento teórico mais verticalizado. *João Pedro K. F. de Natividade é advogado e mestre em direito das relações sociais pela UFPR. __________ 1 Por todos: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Responsabilidade Civil & Mitigação de Prejuízos: a resposta do lesado ao evento lesivo e seus efeitos sobre a reparação de danos patrimoniais.  Curitiba: Juruá, 2020; DIAS, Daniel. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. 2 A propósito: "(...) o lesado que, convenientemente, posterga a dedução de sua pretensão em juízo, com vistas à majoração do benefício econômico que da condenação lhe pode advir, finda por se esquivar dos deveres de boa-fé impostos a todos e a qualquer um." ARNT RAMOS, André Luiz. Doctrine of mitigation, culpa concorrente e responsabilidade civil por dano moral: a súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça e o direito civil contemporâneo. In: PEREIRA, Gabriel Bittencourt; SILVEIRA, Robson Luiz Schiestl; BRUNETTO, Caroline Araujo (Coords.). Temas atuais e relevantes da responsabilidade civil.  Curitiba: Instituto Memória, 2015 v.2. p. 31. 3 Por exemplo, o art. 206 §3º inc. V prevê prazo prescricional de três anos para o exercício da pretensão de reparação civil, em contraste ao limite vintenário previsto no CC-16. 4 Clique aqui. 5 FLUMIGNAN, Silvano José. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 6 Em seu art. 2º, §3º, a lei inclusive 13.188/2015 ressalva que a retratação ou retificação espontânea, ainda que com o mesmo destaque, publicidade e periodicidade da publicação original, não exclui a ação de reparação por dano moral. Mas certamente a dimensão dano-prejuízo - sua quantificação - será minorada.