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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Recorrentemente o Poder Judiciário é acionado em demandas judiciais propostas por adquirentes ou condomínios que, alegando a ocorrência de vícios construtivos nas edificações (unidades autônomas ou áreas comuns), requerem a condenação das empresas para a realização dos reparos devidos (indenização pecuniária ou obrigação de fazer). Não se negue que aquele que adquire uma unidade autônoma em construção tem o direito de receber o imóvel em regulares condições de uso e habitabilidade e com a observância do escorreito atendimento às boas práticas da engenharia civil. Todavia, reconheça-se que boa parte das edificações (sobretudo aquelas de grande porte) está sujeita à necessidade de alguns ajustes quando da sua conclusão, dada as complexidades que envolvem a construção civil. Nesse sentido, é comum às construtoras manterem um departamento de assistência técnica cujo objetivo é atender aos diversos chamados que podem surgir imediatamente após a entrega da edificação. Isso porque ao receber a sua unidade autônoma, o adquirente pode notar, por exemplo, mau acabamento da pintura, incorreto funcionamento de instalações elétricas ou hidráulicas ou a necessidade de ajustes diversos. O condomínio, representado pelo síndico, também costuma solicitar reparos, principalmente após a ocupação do edifício, oportunidade em que a edificação é efetivamente testada em sua plenitude. Mas além dos defeitos construtivos aparentes e simples, mesmo após determinado período de ocupação, os adquirentes e síndicos podem se deparar com vícios ocultos, ou seja, aqueles que somente serão efetivamente constatados meses ou até mesmo anos após a entrega da edificação. Cite-se, nessa esteira, infiltrações em paredes e subsolos, problemas estruturais, inadequação de materiais empregados na obra, erros do projetos, dentre outras questões. A partir do aparecimento dos vícios e havendo relação de consumo, os consumidores possuem pretensões distintas. Sendo a hipótese de vícios aparentes e de fácil constatação, o Código de Defesa do Consumidor confere ao consumidor o prazo de 90 dias para reclamá-los (art. 26, inciso II). O mesmo CDC também estabelece que na hipótese de os vícios serem ocultos, o prazo para a reclamação inicia-se a partir do momento em que o defeito ficar evidenciado (art. 26, § 3º). O Código Civil, a seu turno, também dispõe a respeito dos prazos conferidos ao adquirente na hipótese do aparecimento de vícios construtivos. Como medida mais drástica, o Código permite que o adquirente possa redibir o contrato (ou obter o abatimento no preço) no prazo decadencial de um ano, contado da entrega efetiva (art. 445). Contudo, caso o vício, por sua natureza, só possa ser conhecido mais tarde, o prazo conta-se do momento em que dele tiver ciência o adquirente (art. 445, § 1º). Discute-se, todavia, qual a extensão do vício que permitiria a redibição do contrato, com a devolução integral dos valores pagos pelo adquirente. Embora a parte lesada pelo inadimplemento possa escolher entre a indenização (e, consequentemente, manutenção do contrato) ou resolução do vínculo (art. 475, do Código Civil), diversos autores entendem que se o descumprimento contratual não for relevante o suficiente, não cabe a opção do mecanismo resolutório, tal como defendem Araken de Assis1 e Ruy Rosado de Aguiar Júnior2. Na doutrina mais contemporânea, Giovanni Ettore Nanni3 destaca que "[...] para fins de resolubilidade [...] o inadimplemento perpetrado no caso concreto deve ser não apenas incurável como também necessita de qualificação adicional: ser severo"4. O debate doutrinário leva em consideração a ausência de regra específica no Código Civil brasileiro (contrariamente à legislação italiana5 e portuguesa6) de dispositivo que inadmita a resolução quando o inadimplemento contratual tiver escassa importância (scarsa importanza). Por outro lado, o artigo 395, parágrafo único, determina que "se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos". Justamente por isso é que se defende que se o vício construtivo for sanável e não impactar na habitabilidade da edificação, o pleito resolutório deve ser afastado, para que o contrato seja mantido, sem prejuízo da possibilidade de propositura de ação indenizatória para o reparo. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já entendeu que a inadequação do sistema de ar-condicionado em empreendimento hoteleiro não admite a redibição do contrato, considerando que perícia prévia reputou o vício como sanável e quantificou o valor de reparo7. Mas se não é o caso de redibição do contrato, seja porque os requisitos para tanto não estão previstos, seja porque a opção do lesado é o reparo e a manutenção do contrato, qual o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória? Não obstante certa hesitação da jurisprudência (em especial dos tribunais estaduais), o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que, a partir da constatação do vício, o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória (e não redibição contratual, reitere-se) é decenal8. Esse entendimento foi reforçado a partir do EREsp nº 1.280.825/RJ que considerou que nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral do art. 205 do Código Civil9. Ocorre que o prazo decenal, estabelecido genericamente para a pretensão referente à indenização dos vícios construtivos, talvez deva ser repensado pela doutrina, assim como o "prazo quinquenal de garantia" normalmente referido pela jurisprudência10 e localizado no artigo 618, do Código Civil. Tal como já asseverado por Nelson Rosenvald e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, o fato de o contrato de compra e venda poder ser considerado de longa duração não significa que o fornecedor está obrigado a uma garantia ad eternum12.  Há que se pensar que toda edificação é formada por diversos sistemas e materiais construtivos distintos. A fundação de uma edificação deve ser projetada para que resista por muitos e muitos anos e, portanto, o prazo de vida útil deve ser extenso. Contudo, a pintura da fachada normalmente tem prazo de vida útil de até três anos e, após tal interregno, há perda da garantia do sistema e a edificação deve ser repintada. Como se nota, na construção civil há sistemas que são feitos para perdurarem no tempo por longo prazo, enquanto a pintura, o rejunte dos pisos, as lâmpadas, dentre outros elementos ou componentes possuem prazo de vida útil inferiores. Não é possível, portanto, atribuir genericamente o prazo de cinco anos como a "garantia" da construção, seja porque esse prazo é insuficiente para garantir a estabilidade da fundação que, por exemplo, possui prazo de vida útil superior a trinta anos, seja porque o prazo é extenso demais para garantir componentes e sistemas mais simples. A prática no contencioso envolvendo ações de vícios construtivos demonstra que dentre as diversas demandas propostas, algumas ações pleiteiam o reparo de sistemas cujo prazo de vida útil já foi exaurido, há anos. Normalmente acompanhada de um parecer técnico de engenharia, são apontados diversos vícios construtivos, mas não se demonstra que o sistema reclamado ainda possui prazo de vida útil vigente ou que a manutenção predial foi realizada, tal como determina o Manual de Uso e Operação da edificação. Não há separação entre o que efetivamente é vício construtivo (de responsabilidade do construtor) e o que pode ser considerado vício decorrente (i) da ausência de manutenção; (ii) da irregularidade de uso ou (iii) do transcurso do prazo de vida útil do sistema, o que poderia afastar a responsabilidade do construtor. Nesse sentido, é necessário maior debate acadêmico sobre questões técnicas envolvendo a construção civil. A manutenção predial, por exemplo, é indispensável a qualquer construção e engloba um plexo de cuidados técnicos aptos a preservar o bom desempenho de uma edificação13. Sem que a manutenção predial seja realizada, não há como se atingir a vida útil e o desempenho dos sistemas, elementos e componentes construtivos. Assim, "a manutenção não pode ser feita de modo improvisado e casual. Ela deve ser entendida como um serviço técnico, cuja responsabilidade exige capacitação apurada"14. Inexiste no Brasil legislação federal que obrigue expressamente os condomínios a realizarem as manutenções prediais devidas, bem como registrarem em livro próprio as ações adotadas. A regra genérica que obriga o síndico a diligenciar a conservação e guarda das partes comuns estabelecida no art. 1.348, inciso V, do Código Civil, em nosso ver, é insuficiente. É verdade que a Lei Estadual (RJ) nº 6400/2013 foi um passo importante, porque determina a realização periódica de autovistoria nos condomínios, bem como a emissão de laudo técnico cujos apontamentos obrigam o Condomínio. Lamenta-se, contudo, que a legislação tenha aplicação regional, apenas no estado do Rio de Janeiro. Diante da ausência de legislação federal que regule questões envolvendo manutenção predial, prazos de vida útil e garantias da construção civil, algumas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) foram editadas nos últimos anos. Tais normas possuem papel relevante no âmbito da engenharia civil, mas também poderiam ter relevância no direito. A NBR 5674 de 2012 dispõe dos requisitos para a gestão da manutenção em edificações de forma a preservar as características originais da edificação e prevenir a perda de desempenho decorrente da degradação dos sistemas, elementos ou componentes da construção civil. Referida norma, portanto, estabelece um conjuntos de ações e registros que devem ser realizados pelos condomínios para o bom atendimento da manutenção predial. Já a ABNT 15575-1 de 2013, conhecida como "norma de desempenho", estabelece os prazos de vida útil dos sistemas construtivos e os prazos mínimo de desempenho, bem como destaca a importância da manutenção predial para que a construção possa atingir referidos prazos. Mais recentemente, a NBR 17170 de 2022 estabeleceu prazos recomendados de garantia que, segundo a norma, deve ser [...] o tempo em que o fornecedor é responsável perante o consumidor por corrigir falhas nos produtos por ele fornecidos e originados no processo de sua concepção e produção, desde que seja realizada a manutenção devida, os produtos sejam corretamente utilizados e observadas as demais condições prevista no manual de uso, operação e manutenção deste produto. Como exposto acima, é verdade que as referidas normas técnicas, embora relevantes no âmbito da construção civil, nem sempre são levadas em consideração pelo intérprete do direito brasileiro. Apesar do artigo 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor determinar que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços colocar no mercado qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas da ABNT, não obriga o consumidor a atender às disposições das referidas normas. O objetivo do presente artigo é apontar que nas ações indenizatórias envolvendo vícios construtivos, não deve o intérprete se valer de soluções genéricas e simples. O Código Civil, em nosso ver, não é suficiente para estabelecer as regras necessárias envolvendo os prazos para tais ações e é papel da doutrina o melhor desenvolvimento da matéria. Como defende José Carlos Puoli15, os prazos estabelecidos no Código Civil deveriam ser alterados. Enquanto a matéria não é suficientemente tratada pelo legislador, é necessário que o juiz, nas ações envolvendo vícios construtivos, atente-se para saber se (i) o sistema sobre o qual se reclama está (ou não) dentro do prazo de vida útil; (ii) se o usuário (adquirente ou condomínio) observou as determinações relacionadas à manutenção predial. Na hipótese de ambas as respostas serem afirmativas, a responsabilidade civil do construtor estará mais evidenciada, facilitando a prova pericial normalmente produzida nesse tipo de demanda. Esperamos que a doutrina reconheça que no âmbito do direito imobiliário, o conhecimento técnico de engenheiros, arquitetos e órgãos técnicos, tal como é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas, podem contribuir muito na resolução de conflitos e na melhor elaboração das leis. __________ 1 Segundo o Autor o "[...] inadimplemento relativo impede, irrevogavelmente, o acesso ao mecanismo resolutório [...]. Por conseguinte, o inadimplemento deverá se revestir de características muito relevantes para autorizar a resolução. A existência se manifesta nas várias modalidades de descumprimento. Sua reiteração constante, nessas áreas, indica talvez o interesse na preservação do vínculo, em detrimento do seu desfazimento, e aponta o inadimplemento absoluto, porque, elimina em definitivo a possibilidade de o obrigado prestar, como única modalidade admissível em sede resolutiva". (ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114). 2 "[...] para a dissolução do vínculo e quebra do contrato, certamente há de se exigir um incumprimento mais forte e qualificado, que esteja, assim, a atingir o contrato na sua substância, e não em simples acidente ou qualidade. Para o cumprimento fora do tempo, referido no art. 394 como causador de perdas e danos, o art. 395, parágrafo único adjetiva-o como inútil, para só então autorizar a resolução. Analogicamente, se há de considerar as demais espécies de incumprimento: para resolver, a falta deve atingir substancialmente a relação, afetando a 'utilidade' da prestação. Como a utilidade deriva da capacidade da coisa ou do ato em satisfazer o interesse do credor, temos que a prestação inútil - que pode ser enjeitada e levar à resolução do contrato e mais perdas e danos - é a feita com atraso ou imperfeições tais que ofendam substancialmente a obrigação, provocando o desaparecimento do interesse do credor, por inutilidade. Ao reverso, quando, não obstante a mora, o cumprimento ainda é possível e capaz de satisfazer basicamente o interesse do credor ou quando, apesar da imperfeição do cumprimento, parcial ou com defeitos, foram atendidos os elementos objetivos e subjetivos a serem atingidos pelo cumprimento, diz-se que o adimplemento foi substancial e atendeu às regras dos arts. 394, 395 e 389 do Código Civil, afastando-se a resolução." (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. p. 132). 3 NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 580. 4 No mesmo sentido vide BIAZI, João Pedro de Oliveira de. Resolução do contrato de compra e venda na incorporação imobiliária: breves considerações sobre o art. 43-A da Lei 4.591/1964. Migalhas. Publicado em 09/02/2023. Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2023. 5 Art. 1.455. Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). Tradução livre: "O contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes for de pouca importância, resguardado o interesse da parte contrária". 6 Artigo 802.º (Impossibilidade parcial) 1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização. 2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância. Artigo 808.º (Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento) 1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente. 7 "[...] MÉRITO. Insurgência que prospera. Existência de vício no sistema de ar-condicionado que, no caso em tela, não autoriza a resolução contratual. Vício que é passível de reparação e não há comprovação de que obsta o exercício da atividade hoteleira, finalidade da contratação. Autores que, ao contrário, afirmaram que não questionam vícios na prestação de serviços hoteleiros e o resultado financeiro da exploração hoteleira [...] Sucumbência dos autores. RECURSOS PROVIDOS." (TJSP, Apelação Cível 1024047-23.2019.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Viviani Nicolau). 8 DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. 2. Ação ajuizada em 19/07/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 08/01/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é o afastamento da prejudicial de decadência e prescrição em relação ao pedido de obrigação de fazer e de indenização decorrentes dos vícios de qualidade e quantidade no imóvel adquirido pelo consumidor. 4. É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (art. 26, II e § 1º, do CDC). 5. No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no art. 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 ("Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra"). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ, REsp n. 1.721.694/SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03/09/2019, DJe de 05/09/2019.) 9 STJ, EREsp n. 1.280.825/RJ, Segunda Seção, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/06/2018, DJe de 02/08/2018. Ainda a respeito dos prazos envolvidos na construção civil, vide GUERRA, Alexandre. Incorporações imobiliárias. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2.011. p. 649 e seguintes; GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 649 e seguintes; BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. A responsabilidade civil do incorporador imobiliário. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 681 e seguintes. 10 TJSP, Apelação Cível 1004648-61.2020.8.26.0048, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Augusto Rezende; j. 27/10/2022; Data de Registro: 27/10/2022. 11 ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsability. Conjur. Publicado em: 02/03/2022. Acesso em 17 fev. 2023. 12 No mesmo sentido, José Carlos Puoli aduz: "É dizer, não pode ser eternizado, nem tampouco desarrazoadamente grande, o período dentro do qual um construtor/incorporador irá responder pela construção realizada. É que, se assim acontece, eleva-se a insegurança, estimulam-se conflitos e, ainda, é acarretado relevante aumento no custo da produção, com efeitos deletérios não apenas para construtores/incorporadores, mas também para contratantes e consumidores de 'produtos imobiliários', que acabam tendo que conviver com preços mais elevados no mercado". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670. 13 GOMIDE, Tito Lívio Ferreira. A manutenção das obras de construção civil deve ser obrigatória e periódica? Blog do Instituto de Engenharia. Disponível aqui. Acesso em: 25 jan. 2020. Como bem destacado por Carlos Pinto Del Mar "Nenhum edifício é imune à degradação provocada pelo ambiente, pelo uso ou pelas características intrínsecas de seus materiais constituintes. Mesmo que tenha sido concebido, projetado e construído corretamente, devem ser esperados problemas causados pelo desgaste normal dos produtos de construção utilizados. A negligência nas atividades de manutenção provoca degradação do edifício construído, gerando consequentemente uma também crescente insatisfação de seus usuários". (DEL MAR, Carlos Pinto. Direito na construção civil. São Paulo: Pini/Leud, 2015. p. 184). 14 NBR 5.674: Manutenção de Edificações - Procedimento, p. 02. 15 Segundo o autor: "[...] parece necessário que a verificação destes prazos seja alterada, para que não mais prevaleça a generalização que tem sido verificada na prática, cumprindo que se contemple leitura conjunta de fatores jurídicos e técnicos, de forma que se possa ter mais uma justa solução destes caso, seja para prestigiar o dono de uma edificação que precisa obter o justo 'reparo' das decorrências de um vício construtivo, seja para não onerar desarrazoadamente o construtor/incorporador que deve se ver isento da obrigação de responder pelo bem, desde que ultrapassado um prazo razoável de tempo, o qual varia em vista do tipo de construção que se estiver tratando". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670.
O Direito de Danos no Brasil tem como um de seus princípios basilares a regra insculpida pelo artigo 935 do Código Civil, que fixa a independência entre as esferas cível e criminal. Pela máxima contida no dispositivo, certas condutas poderão corresponder à sanção estatal pela aplicação da pena aos fatos considerados típicos e também poderão culminar na responsabilização civil em favor da vítima. A independência permite que as jurisdições caminhem por vias próprias. É porque a responsabilidade jurídica, como gênero, admite fontes diversas, como bem observa Maria Helena Diniz "Na responsabilidade penal o lesante deverá suportar a respectiva repressão, pois o Direito Penal vê, sobretudo, o criminoso; na esfera civil, ficará a obrigação de recompor a posição do lesado, indenizando-lhe os danos causados, daí tender apenas à reparação, por vir principalmente em socorro da vítima e de seu interesse, restaurando seu direito violado"1. Por esta mesma razão é que a parte ofendida, embora não seja obrigada, pode aguardar que todo o trâmite processual penal seja concluído para que somente depois proponha a respectiva ação de reparação de danos. Garantem-lhe tal faculdade a suspensão da prescrição prevista pelo artigo 200 do Código Civil, mas também a previsão do artigo 63 do Código de Processo Penal, o qual prevê a chamada ação civil ex delicto, isto é, execução da reparação de danos mediante apresentação de título consistente em sentença penal condenatória transitada em julgado2. Todavia, em celebração ao princípio da segurança jurídica e também da prevenção às decisões conflitantes, há exceção à independência prevista no corpo do artigo 935 do Código Civil. Isso porque, uma vez decididos no juízo criminal, a autoria e o fato não mais poderiam ser objeto de discussão no juízo cível. Em outros termos, transitada em julgado uma sentença penal condenatória ou absolutória, não mais se faria necessário o reexame de fato e autoria no juízo cível, que restaria adstrito, quando o caso, à discussão do quantum indenizatório. A ressalva é compatível com a previsão do artigo 315 Código de Processo Civil3, que autoriza a suspensão do processo até que se resolva no juízo criminal a verificação da existência de fato delituoso, complemento ao que já constava do parágrafo único do artigo 64 do Código de Processo Penal. Feita a ressalva é preciso reconhecer, portanto, que havendo sentença penal condenatória, pouco se pode fazer em matéria de instrução probatória no juízo cível que extrapole o debate da extensão dos danos. Hipótese distinta quando ocorre sentença absolutória. Afastada a participação do autor da suposta ofensa ou, ainda, ocorrendo excludentes de ilicitude como o reconhecimento de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de um direito, não há como persistir em demanda reparatória no juízo cível4. De outro lado, nos casos de arquivamento de inquérito ou se a absolvição decorre, por exemplo, do reconhecimento da atipicidade do fato ou da extinção da pretensão punitiva, mantém-se a independência das jurisdições e será possível ao ofendido a propositura da ação civil para a rediscussão de fato e autoria. Confirmam essas conclusões a questão levada, por intermédio do Recurso Especial nº 1.802.170/SP5, ao julgamento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a independência das jurisdições, quando a sentença absolutória decorre da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. No caso, a Relatora Nancy Andrighi destaca que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". Em suma, a prescrição na seara criminal não exaure o debate quanto à autoria ou existência do evento, mantendo hígida a regra da independência. Ocorre, porém, que o avanço da técnica processual tem implementado métodos alternativos de resolução dos litígios, incluindo a esfera criminal, como se extrai do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), regulamentado no Brasil por ocasião do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019) e incluído no Código de Processo Penal pela disciplina do artigo 28-A6. Em apertada síntese, o ANPP é oferecido pelo Ministério Público como substitutivo da denúncia quando, não cabendo arquivamento do feito, tratar-se de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, desde que o acusado aceite confessar circunstancialmente (a autoria do fato supostamente delituoso), fixando-se uma medida de reparação e reprimenda alternativa, tal qual elencado nos incisos do dispositivo legal regulamentador. É possível dizer que mecanismos de tal estirpe possuem natureza de negócios jurídicos pré-processuais, isso porque ao aceitar essa posição idealmente mais benéfica instituída com a formalização do acordo, o acusado suprime o "processo, a produção da prova e o contraditório em troca de um sancionamento mais célere e consentido pela defesa"7. A questão que se coloca é, havendo ANPP e eventualmente esbarrando a conduta tanto na esfera criminal quanto na cível, é possível a utilização do acordo homologado para afastar a independência das jurisdições, partindo da premissa de que a autoria e existência do fato encontram-se resolvidas na justiça penal? Em outros termos, qual seria o alcance de um ANPP homologado para além da esfera criminal e como isso impacta na prática o debate da responsabilidade civil? A questão merece algum aprofundamento. Inicialmente, como mencionado, a interpretação sistemática do artigo 935 do Código Civil pressupõe, como exceção à regra da independência das jurisdições, a existência de sentença penal transitada em julgado. O diálogo entre tal dispositivo e o artigo 63 do Código de Processo Penal ao prever a ação civil ex delicto não revela interpretação diversa. Ou seja, apenas e tão somente a sentença penal condenatória transitada em julgado legitima, neste ponto, o exercício de uma pretensão executória. Ocorre que o ANPP tem características próprias de negócio jurídico prévio ao processo, ou seja, oriunda da renúncia ao enfrentamento da persecução e suas repercussões; dele não decorre sentença penal condenatória transitada em julgado. Significa também dizer que não há um mínimo de instrução probatória, uma vez que tudo resolve-se antes mesmo de eventual denúncia8, da qual o parquet abre mão pela realização do acordo. Em oportunidades pregressas, o Superior Tribunal de Justiça já pôde manifestar-se quanto à imprescindibilidade da sentença penal condenatória como pressuposto para afastar a regra geral de independência entre as jurisdições nas ações civis ex delicto. A lição fica evidenciada na análise do Recurso Especial nº 678.143/MG, sob a Relatoria do Ministro Raul Araújo9: [...]No entanto, a executoriedade da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou seu aproveitamento em ação civil ex delicto proposta no juízo cível (CPP, art. 64; CPC, arts. 110 e 265, IV) depende da definitividade da condenação, ou seja, da formação da coisa julgada criminal, até mesmo pela máxima constitucional de que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII)10. Em aprofundamento daquilo que fundamentou o Ministro Raul Araújo, talvez seja possível concluir que a repercussão da aplicação do ANPP em esferas diversas da criminal toca pontos de relevância constitucional, aos quais é possível agregar o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à não autoincriminação, como se verá. Não se pode perder de vista que a confissão circunstancial é elemento objetivo para a realização do acordo, pelo que consta do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Questiona-se, portanto, se essa confissão teria o condão de cravar a existência do fato e sua autoria, tornando-os incontroversos para o juízo cível e permitindo a excepcional quebra da independência entre as jurisdições. Primeiro, é preciso refletir sobre a natureza desta confissão tomada a termo pelo Ministério Público como elemento essencial à realização do acordo. O legislador, não por acaso, escolhe a expressão confissão formal e "circunstancial". Palavras não são em vão e neste caso a circunstancialidade decorre daquilo que se extrai do dicionário, ou seja, episódico, incidental, casual11. Não se confunde com o termo "circunstanciado", que, ao contrário, remete àquilo que é enunciado de forma pormenorizada, em todas as circunstâncias12. A confissão obtida no ANPP, pela letra fria da lei, tem finalidade exclusiva e limitada ao acordo, com objetivo evidente da obtenção do benefício identificado pela supressão do processo e suas eventuais consequências. Ainda são residuais os debates no ambiente cível, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha analisado questões similares em oportunidades recentes, notadamente vinculadas ao uso de acordos de leniência na esfera administrativa ou no aproveitamento de outras ações penais. Analisando a questão, Sílvio Luis Ferreira da Rocha e Oswaldo Henrique Duek Marques13 destacam o fato de que a obtenção extraprocessual da confissão não deveria, em princípio, prejudicar o confitente em outras esferas "pois o valor probatório da confissão seria nulo, pelo fato de não ter sido obtido em procedimento judicial". Nos autos de Agravo Regimental Pet. nº 7065-DF14, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, há interessante posicionamento de divergência adotado pelo Ministro Gilmar Mendes quanto ao compartilhamento de termos obtidos em colaboração premiada, que vai ao encontro da posição de Rocha e Duek Marques acima colacionada. Em sua análise, o Ministro destaca que o compartilhamento de declarações obtidas consensualmente em acordos de leniência para outras searas não incluídas expressamente no acordo podem condenar institutos de acordo ao seu esvaziamento, colocando em risco a sua própria efetividade, assim como possibilitaria a vulneração de direitos daquele que consentisse colaborar. Neste sentido, é preciso reconhecer que a confissão obtida circunstancialmente nos casos de ANPP decorre de uma declaração episódica, cujo objetivo revela-se na busca do sujeito em ver-se à salvo da persecução penal o que, após o balizamento das consequências, lhe pareceu mais favorável do que suportar o peso do processo. Entender de forma diversa, em casos similares, seria como atribuir ao colaborador o inconstitucional ônus da produção de provas contra si mesmo. Ademais, como bem destaca o Ministro Gilmar Mendes na mencionada divergência, "a utilização de tais elementos probatórios, produzidos pelo próprio colaborador, em seu prejuízo, de modo distinto do firmado com a acusação e homologado pelo Judiciário é prática abusiva, que viola o direito à não autoincriminação". Extrai-se daí que, uma vez entabulado o ANPP, em decorrência da própria publicidade do ato homologatório15, ficaria difícil frear que interessados dele tomassem conhecimento, todavia, nestes casos a utilização do termo serviria não para afastar a independência das jurisdições, mas para dar corpo e força às alegações da vítima na eventual instrução processual civil. Não é demais destacar que nem mesmo como prova emprestada o ANPP poderia ser usado com o fito de afastar o debate da autoria e da existência do fato, visto que o Código de Processo Civil exige a observância do contraditório16, atributo consolidado como requisito primordial pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 617.428-SP17; condição esta ausente nos negócios jurídicos pré-processuais, como o acordo de não persecução penal. Dito isso, longe de encerrar o debate, parece que, para fins de excepcionar a regra da independência das jurisdições cível e criminal contida no artigo 935 do Código Civil, o acordo de não persecução penal não preenche requisitos adequados, seja como título apto à ação civil ex delicto, seja para tornar incontroverso o fato e autoria, pois lhe faltam característica de sentença transitada em julgado: devido processo legal e ampla dilação probatória, sustentando-se sobre uma confissão, que nos próprios termos da lei, é específica para o ato e não pormenorizada e ampl. Conclui-se, destarte, havendo ANPP mantém-se necessária a instrução probatória quanto ao fato e autoria na esfera cível, sob pena de colocar em posição de vulnerabilidade não apenas a finalidade do instituto de transação em si, mas também direitos e garantias fundamentais a serem observados no estado democrático de direito e pela desejável interpretação civil-constitucional dos institutos jurídicos. __________ 1 Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 7. 26.ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 40. 2 Em sentido convergente é a posição de Cláudio Luiz Bueno de Godoy in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. PELUSO, Cezar (Coord.). São Paulo: Manole, 2007, p. 779. 3 Disponível em aqui. 4 CPP. Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Disponível aqui. 5 REsp n. 1.802.170/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/2/2020, DJe de 26/2/2020. 6 Disponível aqui. 7 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. O acordo de não persecução penal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2020 e 2021. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 191/2022, p. 93/120. Jul-Ago de 2022. 8 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Acordo de não persecução penal e a expansão da justiça criminal: natureza, retroatividade e consequências ao descumprimento. Boletim Revista do Tribunais Online, vol. 27/2022. Maio de 2022: "Por outro lado, mecanismos como a transação penal e o acordo de não persecução penal possuem natureza distinta, ao passo que não são direcionados à produção de provas, mas exatamente à exclusão completa do processo e de sua finalidade cognitiva epistêmica. Enquanto a colaboração premiada busca, de certo modo, produzir provas para se verificar os fatos imputados, a transação penal e o ANPP excluem por completo o processo e qualquer pretensão cognitiva." 9 REsp n. 678.143/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 22/5/2012, DJe de 30/4/2013. 10 No mesmo sentido: REsp n. 1.829.682/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 9/6/2020. 11 Confira aqui. 12 Confira aqui. 13 Acordo de não persecução penal e suas repercussões no âmbito administrativo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 95, Abr-Mai de 2020, p. 15. Os autores bem explicam sua posição: "Milita a favor dessa ideia o princípio do devido processo legal, pois evidente que a confissão teve por propósito beneficiar-se do acordo de não persecução penal. Ademais, a confissão obtida seria de natureza extraprocessual, prestada perante a Polícia ou Ministério Público, e, portanto, destituída de valor probatório, conforme se verifica do próprio sistema, ao admitir como provas emprestadas apenas aquelas submetidas ao crivo do devido processo legal judicial". 14 Pet 7065 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 30/10/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 19-02-2020  PUBLIC 20-02-2020. 15 Admite-se que no bojo do acordo sejam inseridas cláusulas de sigilo ou limitação de acesso. 16 CPC. Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório. 17 EREsp n. 617.428/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/6/2014, DJe de 17/6/2014.
A morte é vida intensa demais para quem fica1, e ela, em um certo dia de 2003, cindiu sem cerimônia um casal de catarinenses. Ainda em luto, Sebastião foi ao INSS solicitar sua pensão. Ao final de um tempo, entretanto, seu pleito foi rejeitado, porque no registro do óbito, e por consequência na certidão a partir dele tirada, o sobrenome de sua falecida esposa estava lamentavelmente errado. Se a morte, especialmente para quem ama, já é uma ofensa, um dano irreversível, um erro alheio é sempre capaz de piorar as coisas. Na época, chegando ao cartório, o viúvo soube que somente o juiz poderia reparar o erro. E assim se fez. O sobrenome foi retificado, porém não antes de três longos anos. Nesse período, Sebastião ficou sem a pensão. Indignado, mais uma vez bateu à porta do Poder Judiciário, desta vez querendo, em face do Estado de Santa Catarina, a indenização do seu prejuízo. O Estado resistiu, isentando-se de culpa instância após instância, até que a história chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 842.846. O Ministro Luiz Fux, percebendo que a pendenga extrapolava, até com folga, a perda individual do viúvo, afetou o julgamento ao sistema da repercussão geral, criando-se o Tema 777. O que fosse ali decidido repercutiria nos quatro cantos do país, servindo de regra, dali em diante, para os demais casos semelhantes, e vinculando as futuras decisões judiciais. Historicamente, em situações assim, os donos de cartório, mesmo quando não tinham culpa, muitas vezes viravam réus, e precisavam enfrentar duas correntes adversas que lhe atribuíam responsabilidade objetiva perante o usuário: (i) Uma primeira corrente defendia existir relação de consumo, fazendo incidir o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor2, o que não soa correto, já que os emolumentos têm natureza tributária (taxa), e os usuários são contribuintes, e não consumidores; e (ii) A segunda corrente baseia-se no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal3: sendo prestadores de serviço público, os titulares de cartórios, em nome da coerência do sistema, devem respondem objetivamente. Esta não parece ser a melhor interpretação, ante a literalidade do texto constitucional, que utiliza a expressão "pessoas jurídicas". Ora, os delegatários são pessoas naturais, que prestaram concurso público (art. 236, parágrafo 3º, da Constituição Federal4), e pagam seus impostos nesta condição. Tal dispositivo, assim, aplica-se ao Estado (pessoa jurídica de direito público), mas não aos cartórios. Claramente este era um cenário de insegurança jurídica e ineficácia judicial que demandava uma solução. Então, em 2019, tantos anos depois, o julgamento do RE 842.846 finalmente aconteceu. Como a unanimidade em assuntos polêmicos é algo mesmo raro, os Ministros se dividiram em três correntes: - para os Ministros Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, o Estado, mesmo sem culpa, responde objetiva e diretamente pelo erro do delegatário, desde que demonstrados o dano e o nexo de causalidade; - os Ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, a seu turno, concordaram que a responsabilidade do Estado é objetiva, porém subsidiária; ou seja, primeiro responde o titular do cartório que errou, também independentemente de culpa, e somente então, se este não tiver bens penhoráveis, o Estado vira o alvo, devendo cobrir o prejuízo; - finalmente, o Ministro Marco Aurélio Mello isentou o Estado de qualquer responsabilidade, cabendo esta unicamente ao delegatário. Com oito votos, a primeira corrente foi a vencedora, sendo criada a tese segundo a qual "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa". Em outras palavras, desde então, de forma vinculante, no país inteiro, a pessoa que sofreu o dano não precisa acionar o cartório; ela pode simplesmente demandar o Estado, sem precisar provar sua culpa, tendo apenas que provar a ocorrência do erro, o dano sofrido e o nexo causal entre o erro e o prejuízo. Ainda conforme a tese, o Estado, se condenado, tem não só o direito, mas o dever, sob pena de improbidade administrativa, de exigir o reembolso do titular do cartório, sempre que, e somente se, constatar a existência de dolo ou culpa. Tal suprema decisão, na prática, tirou os cartórios da linha de fogo a que sempre foram arrastados. Como visto, quando algo se passava, mesmo sem culpa da serventia, a tendência era sua inclusão no polo passivo da ação judicial. Só uma minoria, como Sebastião, se aventurava a mirar o Estado, enfrentando os riscos do dissenso jurisprudencial. A nova tese, contudo, chacoalhou a antiga equação de risco-benefício. Desde então, o que se vê nos tribunais estaduais foram decisões em sintonia, como ilustram os acórdãos a seguir, proferidos em sete Estados diferentes: Mato Grosso: "Ação de retificação de registro civil e indenização por dano moral. Transtornos causados pela serventia e pelo tabelião ... Tema 777 do STF... A serventia e os tabeliães não têm responsabilidade civil pelos atos praticados no exercício de sua função pública que causem prejuízo a terceiros, e são delegatários do Estado. Portanto, este é que deve figurar no polo passivo da demanda em que se discute o dano moral, e tem assegurado o direito de ajuizar ação regressiva".5 Mato Grosso do Sul: "O Supremo Tribunal Federal, ao... reconhecer a responsabilidade civil objetiva do Estado para reparar danos causados a terceiros pelo tabeliães, assegurando o dever de regresso contra o responsável, consignou que a responsabilidade do Estado, é direta, primária e solidária, premissa que permitia concluir que, além da já reconhecida possibilidade de questionamento da responsabilidade subjetiva do delegatório, a responsabilidade objetiva do Estado incidiria na modalidade solidária", sendo "indiscutível a legitimidade do Estado para figurar no polo passivo da lide".6 Paraná: "Extravio de registro de nascimento em cartório. Falha na prestação do serviço. Responsabilidade objetiva do Estado... Tema 777 do STF".7 Santa Catarina: "Entendimento em divergência com a tese jurídica firmada no Tema 777 do STF, tão somente quanto à fundamentação, para fazer constar o dever de regresso contra o responsável, em homenagem ao tema 777 do STF".8 Rio Grande do Sul: "Recorre o estado sustentando que foi incluído no polo passivo da demanda unicamente em vista da responsabilização solidária por ato do Tabelionato de notas. Destaca que os oficiais de registro não estão submetidos ao regime jurídico disciplinado pelo artigo 37 da Constituição Federal. ... delineando que os oficiais de registro são responsáveis pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. Entretanto, no julgamento do tema 777 o STF (RE 842.846) fixou a tese de que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa".9 São Paulo: (i) "Nulidade de escritura pública de venda e compra de imóvel... Reconhecimento judicial de falsidade da procuração apresentada, porque o outorgante já era falecido ao tempo da lavratura desse ato notarial... O Estado responde pelos danos decorrentes de ato dos delegatários de serviço público, quando praticados no exercício da função. Tema 777 do STF"10; (ii) "Conforme restou decidido no julgamento do RE nº 842.846/SC, a responsabilidade do Estado é objetiva, sendo cabível o direito de regresso nos casos em que a conduta tiver sido praticada com culpa ou dolo. Reforma da r. sentença para afastar a condenação solidária do tabelião (e seus herdeiros), de modo a se restringir a condenação apenas em face da Fazenda do Estado de São Paulo"11; e (iii) "O tabelião interino não deve responder solidariamente, apenas resguardado à Fazenda possibilidade de regresso em face do tabelião interino à época dos fatos. ... recurso da Fazenda Pública não provido, com observação quanto à aplicação do Tema 777, do E. STF ao feito, caracterizando a responsabilidade objetiva da Fazenda e, portanto, excluindo a responsabilidade solidária do corréu".12 Rio de Janeiro: "Responsabilidade objetiva e solidária do ente público em relação aos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções delegadas, causem danos a terceiros. Incidência do Tema 777 do STF".13 Como se vê, a antiga discussão acima está ficando no passado. Desde 2019 não há mais dúvida: em regra é melhor acionar o Estado, sem ter que provar culpa ou dolo, do que correr o risco numa ação contra o tabelião ou registrador, cuja responsabilidade é subjetiva. O sistema ficou mais coerente e justo, afinal. Pois não custa sublinhar, um imenso conjunto de delegatários em todo o país é formado por verdadeiros heróis da resiliência, que lutam diariamente para não terminarem o mês no vermelho, sem estrutura, com um caminhão crescente de regras e procedimentos a seguir, e com a espada da Corregedoria Geral de Justiça do Estado sobre as suas cabeças. Acionar tais pessoas significa correr um grande risco, mesmo em caso de sentença favorável, de não encontrar patrimônio penhorável. Assim, sendo mais difícil ganhar; e mesmo ganhando, sendo arriscado não levar, porque acionar o delegatário? Daí que a tendência, com a estabilização da jurisprudência, é que as ações futuras passem a ser dirigidas contra o Estado, e este, nas ações de regresso, quando ajuizadas, terá o ônus da prova contra o delegatário14, pois a Tese 777 é explícita em restringir a responsabilidade destes "aos casos de dolo ou culpa". O tempo revelará se a alvissareira decisão do STF será, em definitivo, motivo de alívio para notários e registradores. __________ *Este artigo é o desenvolvimento de outro publicado originalmente no Jornal do Notário nº 190, mar/abr 2019, pp. 26-27. Agradeço penhoradamente a Beatriz Delgado pelo trabalho de pesquisa jurisprudencial. 1 MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record, p. 152 2 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 3 Art. 37 (...) §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 4 Art. 236 (...) §3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 5 TJ-MT 10031402620178110041 MT, Relator: RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Data de Julgamento: 25/08/2021, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/08/2021 6 TJ-MS - AC: 08004608920208120018 MS 0800460-89.2020.8.12.0018, Relator: Des. Geraldo de Almeida Santiago, Data de Julgamento: 16/09/2021, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 21/09/2021 7 TJ-PR - RI: 00008090820198160194 Curitiba 0000809-08.2019.8.16.0194 (Acórdão), Relator: Aldemar Sternadt, Data de Julgamento: 31/08/2021, 4ª Turma Recursal, Data de Publicação: 31/08/2021 8 TJ-SC - APL: 00030413520108240016 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 0003041-35.2010.8.24.0016, Relator: Carlos Adilson Silva, Data de Julgamento: 09/11/2021, Segunda Câmara de Direito Público 9 TJ-RS - AC: 70083822106 RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Data de Julgamento: 04/11/2020, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 20/11/2020 10 TJ-SP - AC: 10198261720148260224 SP 1019826-17.2014.8.26.0224, Relator: J. M. Ribeiro de Paula, Data de Julgamento: 22/01/2021, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 22/01/2021 11 TJ-SP - AC: 10008600220188260568 SP 1000860-02.2018.8.26.0568, Relator: Camargo Pereira, Data de Julgamento: 04/05/2021, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 04/05/2021 12 TJ-SP - AC: 10057242020178260568 SP 1005724-20.2017.8.26.0568, Relator: Leonel Costa, Data de Julgamento: 27/04/2020, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/04/2020 13 TJ-RJ - APL: 00067341720168190061, Relator: Des(a). MARGARET DE OLIVAES VALLE DOS SANTOS, Data de Julgamento: 12/06/2019, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL 14  Enunciado 77 da I Jornada de Direito Notarial e Registral, realizada em mai/22: "As atividades notariais e de registros públicos são desempenhadas em caráter privado, sendo pessoal a responsabilidade civil e criminal do tabelião e ou do registrador por seus atos e omissões, de modo que as serventias extrajudiciais não possuem capacidade processual e são desprovidas de personalidade jurídica".
Em 27 de dezembro de 2022, foi publicada a lei 14.510, que "altera a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional". De imediato, é necessário fazer três observações. A primeira nota dirige-se à parte inicial da ementa dada à norma: "autorizar a prática de telessaúde". A prática da telessaúde, inclusive dentro do Sistema Único de Saúde, já era adotada em diversas ações e serviços de saúde antes mesmo da crise sanitária decorrente da Covid-19 ou de regulamentações do Conselho Federal de Medicina. A histo'ria da telemedicina na~o e' ta~o recente quanto se imagina. O seu surgimento, assim como os questionamentos e'ticos e juri'dicos que de sua pra'tica decorrem, remontam ha' mais de um se'culo, confundindo-se com o pro'prio desenvolvimento das tecnologias de comunicac¸a~o e informa'tica. No Brasil, embora tenha chegado tardiamente em razão do pouco acesso às novas tecnologias e do alto custo de implantação e utilização, o uso da telemática em saúde teve início na década de 80, quando começaram a ser desenvolvidos diversos projetos de informática em saúde. Desde então, ações e serviços de telessaúde e de telemedicina são desenvolvidos nos sistemas públicos e privados de saúde e, durante a pandemia de Covid-19, confirmaram a sua importância e aniquilaram muitas resistências (em especial da classe médica). A segunda observação dirige-se ao fato de estar a revogar lei já revogada: a lei 13.989/201, que autorizou o uso da telemedicina, em caráter emergencial, durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Há duas imprecisões importantes: a primeira é de que não havia lei anterior proibindo o uso da telemedicina no Brasil, portanto, não era necessária uma lei para autorizar o seu uso durante a pandemia, bastava que os conselhos profissionais a ela não se opusessem. O próprio Conselho Federal de Medicina autorizava o uso da telemedicina para a realização de alguns atos médicos desde 2002 (Resolução n. 1.643, CFM, revogada pela Resolução n. 2.314/22, CFM2-3). Segundo, ao que tudo indica, a vigência da lei 13.989/20 não estava propriamente condicionada à existência "da crise" provocada pelo SARS-Cov-2, mas sim, parece estar subordinada à vigência do estado de emergência sanitária de importância internacional no Brasil, o que seria tecnicamente mais apropriado. Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de emergência4 sanitária, definido como "uma situação extraordinária que constitui um risco de saúde pública para outros Estados através da disseminação internacional de doenças e por potencialmente exigir uma resposta internacional coordenada" (Regulamento Sanitário Internacional5 - RSI)6. A categorização da Covid-19 como uma emergência de saúde pública internacional possui não apenas um caráter sanitário, mas também político, servindo de alerta à comunidade internacional sobre as necessárias medidas de cooperação para contenção da doença. No Brasil, o fundamento constitucional do estado de emergência está previsto nos arts. 136 e 141, CF e, na área sanitária, também no Decreto Legislativo n. 395/20097, que ratificou o RSI, e no decreto 7.616/118, que dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e determina que a declaração será efetuada pelo Poder Executivo federal, por meio de ato do Ministro de Estado da Saúde, o que de fato foi feito com a publicação da Portaria n. 1889, GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, seguida da lei 13.979/2010, que dispôs sobre as medidas de enfrentamento da Covid-1911. Apenas em 22 de abril de 2022, por meio da Portaria n. 91312, GM/MS, declarou-se o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV). Com vacatio legis de 30 dias, oficialmente o ESPIN foi encerrado em 23 de maio de 2022 e, por consequência, todas as normas cuja vigência era excepcional (vinculadas ao ESPIN) automaticamente foram revogadas. Portanto, desnecessário que a lei 14.510/22 fizesse qualquer menção à revogação da lei 13.979/20, porque ela já não estava mais vigente. A terceira observação refere-se aos conceitos de telessaúde e de telemedicina constantes na lei 14.510/22. A Telemática13 em Saúde caracteriza-se pela utilização de meios de telecomunicação e informática para a prática de atividades sanitárias que tenham por objetivo promover, prevenir ou recuperar a saúde individual e coletiva. Didaticamente, pode-se dividir as finalidades da Telemática em Saúde em dois grandes grupos (espécies) que reúnem uma multiplicidade de técnicas de práticas de saúde a distância que variam conforme o seu objetivo. Adotando-se essa orientação tem-se, então, dois grandes grupos: a Telessaúde que engloba todas as ações voltadas para a prevenção de doenças (Medicina Preventiva), educação e coleta de dados e, portanto, direcionadas a uma coletividade, a políticas de saúde pública e disseminação do conhecimento. E o segundo grupo que é denominado Telemedicina e abarca toda a prática médica à distância voltada para o tratamento e diagnóstico de pacientes individualizados (identificados ou identificáveis)14. Assim, são exemplos de Telessaúde: a teledidática; a telefonia social; as comunidades; bibliotecas virtuais e videoconferências; os aplicativos didáticos para smartphones. Já os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telemedicina (resolução 2.314/22, CFM) são: teleconsulta ou consulta em conexão direta; teleatendimento; teletriagem; telepatologia; telerradiologia (resolução 2.107/2014, CFM); telemonitoramento ou televigilância (homecare); telediagnóstico; telecirurgia (resolução 2.311/2022, CFM); teleterapia; sistemas de apoio à decisão; aplicativos de atendimento para smartphones15. As revogadas resoluções 1.643/2002 e 2.227/18, CFM, incorreram na mesma confusão conceitual tratando sob o mesmo guarda-chuva telemedicina diferentes tipos de procedimentos, inclusive os tipicamente de telessaúde. A confusão persiste com a resolução 2.314, CFM, publicada em 5 de maio de 2022, que em seus considerandos afirma que "o termo telessaúde é amplo e abrange outros profissionais da saúde, enquanto telemedicina é específico para a medicina e se refere a atos e procedimentos realizados ou sob responsabilidade de médicos"; e define no art. 1° a "a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde". Perpetuando o mesmo equívoco e ainda confundindo as modalidades com as técnicas e os instrumentos utilizados, a lei 14.510, define no art. 1°, a telessaúde como sendo aquela que "abrange a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área de saúde regulamentadas pelos órgãos do Poder Executivo federal", sendo "modalidade de prestação de serviços a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, que envolve, entre ouros, a transmissão segura de dados e de informações de saúde, por meio de textos, de sons, de imagens ou outras formas adequadas" (art. 26-B, da lei 8.080/90). Para alguns pode parecer bobagem discutir esses conceitos. Mas, na prática, as implicações são diferentes16. É preciso compreender corretamente o que se está a regular e autorizar a fim de se garantir mínima segurança jurídica. Feitas essas breves considerações iniciais, é necessário também analisar o que é o princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio da telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90). Verificadas as justificativas do projeto de lei17, parece o princípio conduzir mais a um ideal bioético de adoção responsável da telemática em saúde, do que propriamente tem um conteúdo jurídico, embora desse não possa se desvencilhar. Segundo Cláudio Choen18 "a ética é algo de dentro do indivíduo (dever com); a moral é imposta pela sociedade (tenho que respeitar as normas); somos julgados pelas atitudes (o que fazemos, o que optamos); e essa atitude será sua responsabilidade (responder por ela). Assim, a moral digital tem como finalidade melhorar a sociedade, trazendo inovações, otimizando processos, possibilitando vantagens e até melhorando a qualidade de vida. Sem esse propósito, seu uso não é ético". Portanto, sob o ponto de vista ético ou de cultural organizacional, a responsabilidade digital estaria associada a práticas e estratégias adotadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz, além de torná-los mais acessíveis. No entanto, a ausência de técnica legislativa ou de traduções imprecisas de princípios contidos em normas estrangeiras19, como é o caso da inclusão do princípio da "responsabilidade digital" como princípio da telessaúde na lei 14.510/22, pode confundir em vez de auxiliar. Do ponto de vista jurídico, o tal princípio parece estar mais direcionado ao que se entende por accountability20, parte importante da governança de dados (plano ex ante21no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos. A Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18/LPGD) estabeleceu como um de seus princípios, o da responsabilidade (art. 6o., X, LGPD), que reafirma a responsabilidade dos agentes de dados pelo tratamento de dados pessoais e consequente conformidade com os marcos legais (art. 50, LGPD). "É esse o espírito do princípio da accountability descrito no art. 6°, inciso X! O foco é a ampliação do espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post"22. Sendo a LGPD inafastável da telemática em saúde (qualquer que seja a sua espécie), a Lei n. 14.510/22, ao estabelecer o princípio da responsabilidade digital como princípio informador da telessaúde no Brasil, parece estar a determinar que todos aqueles que utilizem sistemas telemáticos nas ações e serviços de saúde (públicos ou privados) são obrigados a fornecer segurança aos seus titulares e adotar boas práticas de governança capazes de garantir a privacidade sobre os dados tratados. Para a aplicação dos diversos princípios estabelecidos na LGPD (art. 6°), "caberá ao controlador dos dados pessoais, observados a estrutura, a escala e o volume de suas operações, bem como a sensibilidade dos dados tratados, a probabilidade e a gravidade dos danos para os titulares dos dados, implementar programas de governança em privacidade de dados que, no mínimo, possuam as seguintes características: a) demonstre o comprometimento do controlador em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento, de forma abrangente, de normas e boas práticas relativas à proteção de dados pessoais; b) seja aplicável a todo o conjunto de dados pessoais que estejam sob seu controle, independentemente do modo como se realizou sua coleta; c) seja adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas operações, bem como à sensibilidade dos dados tratados; d) estabeleça políticas e salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade; e) tenha o objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular, por meio de atuação transparente e que assegure mecanismos de participação do titular; f) esteja integrado a sua estrutura geral de governança e estabeleça e aplique mecanismos de supervisão internos e externos; g) conte com planos de resposta e incidentes de remediação; e h) seja utilizado constantemente com base em informações obtidas a partir do monitoramento contínuo e avaliações periódicas"23. A falta de um marco legal mais claro acerca da proteção de dados na telemática em saúde (para além da LGPD) exige um esforço redobrado para se compreender o seu alcance. Por isso, "padrões de segurança da informação precisam ser estabelecidos de forma segura diante dos graves riscos de incidentes de segurança de dados pessoais sensíveis24", qualquer que seja o sistema de saúde ou a ação e o serviço em que se adote a telemática em saúde. A segurança de dados exige conduta proativa e mitigação de riscos25 (accountability), ainda mais quando se está a realizar tratamento de dados sensíveis (como os dados de saúde). Portanto, quando se estabelece como princípio da telessaúde no Brasil a responsabilidade digital, não se está a falar apenas de otimização e transparência de processos, mas especialmente, se está a impor "um circuito decisório justo sobre o fluxo informacional. Essa deve ser a essência do princípio da accountability no campo da proteção de dados"26, dever geral de segurança capaz de proteger a autodeterminação informativa como principal fundamental que é (art. 5°, LXXIX, CF/88). __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui e aqui. 3 Vide também, Portaria n. 1.348/2022, Ministério da Saúde. Disponível aqui. 4 Disponível aqui e aqui. 5 Implementação do RSI - 58o. Conselho Gestor - 72a. Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas. O RSI entrou em vigor no dia 15 de junho de 2007. Disponível aqui. 6 No entanto, a declaração de pandemia só foi feita pela OMS em 11 de março de 2020. 7 Disponível aqui. Tradução do RSI aprovada pelo Congresso Nacional. Disponível aqui. "Emergência de saúde pública de importância internacional" significa um evento extraordinário que, nos termos do presente Regulamento, é determinado como: (i) constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença e (ii) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada". 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Portaria n. 356, 11 de março de 2020, Ministério da Saúde - Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19).  12 Disponível aqui. 13 Telemática é o resultado das expressões telecomunição e informática que engloba sistemas, processos, procedimentos e instrumentos. Telecomunicações, na definição de Ralph M. Stair e George W. Reynolds "referem-se à transmissão eletrônica de sinais para as comunicações, incluindo meios como telefone, rádio e televisão. [...]. A comunicação de dados, um subconjunto especializado das telecomunicações, refere-se à coleta eletrônica, ao processamento e à distribuição dos dados - geralmente, entre os dispositivos de hardware do computador. A comunicação de dados é completada por meio do uso da tecnologia de telecomunicação" (STAIR, R.M.; REYNOLDS, G.W. Telecomunicações e redes. In: _____. Princípios de sistemas de informação. Trad. Alexandre Melo de Oliveira. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2002. p. 172). Informática é a junção dos termos informação + automática, sendo considerada "a ciência que estuda o tratamento automático e racional da informação".  Termo utilizado pela primeira vez em 1957 pelo alemão Karl Steinbuch, em artigo publicado sob o título Informatik: Automatische Informationsverarbeitung (Informática: Processamento de Informação). Mas o termo se popularizou a partir de 1962 quando foi empregado pelo francês Philippe Dreyfus (informatique) na designação da sua empresa "Sociedade de Informática Aplicada" (SIA). Em 1967 a Academia Francesa adotou o termo para designar a "ciência do tratamento da informação" e a partir de então o termo se difundiu por todo mundo (LANCHARRO, E.A.; LOPEZ, M.G.; FERNANDEZ, S.P. Informática básica. São Paulo: Pearson Makron Books, 1991. p. 01). 14 SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico (Coords.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. Indaiatuba, SP: Foco, 2022. 15 SCHAEFER; GLITZ (Coords.), ibid. 16 Exemplo claro da confusão ocorreu durante a pandemia de Covid-19. O Ofi'cio n. 1726/20, CFM, encaminhado ao Ministério da Saúde solicitava a liberação de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta, para o período de emergência sanitária. Procedimentos bem diversos daquele liberado pela Portaria n. 467/20, MS (que autorizava a teleconsulta, embora se refira à telemedicina de maneira genérica) e pela Lei 13.989/20, que autorizava a telemedicina (também em conceito tecnicamente errado) durante a situação de emergência em saúde pública de importância internacional. Resultado, o que se pediu estava muito aquém do que foi liberado. O que ocorreu na prática estava muito além do que se pretendia autorizar. Daí a importância de se delimitar corretamente telemedicina e telessaúde e todas as suas variáveis, para se compreender sobre o que se está a legislar. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Como, por exemplo, A HIPAA (Health Insurance Portability and Accountability Act, 1996) americana.   20 "Na língua inglesa, entretanto, há outros termos representativos de outros sentidos para o conceito jurídico de responsabilidade. Ao lado de liability, colocam-se três outros vocábulos: responsability; answerability e accountability. Os três podem ser traduzidos para a língua portuguesa como 'responsabilidade', mas seus sentidos, em verdade, diferem do conteúdo monopolístico que as jurisdições da civil law conferem à liability, como palco iluminado da responsabilidade civil (arts. 927 a 954, do Código Civil). Em comum, os três vocábulos transcendem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas camadas à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e à velocidade dos arranjos sociais contemporâneos. Enfim, tem-se a accountability, e a partir dela ampliamos o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil e a regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post" (ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JUNIOR, José de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (Coords.) Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomas Reuters, 2022). 21 No plano ex post "a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, norteando a identificação e a quantificação de responsabilidade e lastreando o estabelecimento de remédios mais adequados (e sua gradação/dosagem)" (id., p. 779). 22 (id., p. 791-792). 23 GIOVANNINNI JUNIOR, Josmar Lenine. Fase 4: governança de dados pessoais. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega (Coord.). LGPD. Manual de Implementação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 167-188). 24 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Patient Safety in e-Health and Telemedicine. Lex Medicinae - Revista de Direito da Medicina, n. Especial (2014), p 95-106. Disponível aqui. World Health Organization (WHO). Global Observatory for eHealth [Internet]. Geneva: WHO; 2005. Disponível aqui. 25 MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo. Editorial. Civilistica. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. 26 DIAS, Daniel. Notas sobre o princípio da accountability. Disponível aqui.
O artigo se propõe a debater a existência da lista bancária proibida como uma forma de retaliação pelo exercício do direito de ação dos consumidores que acionam os bancos e, em razão das ações favoráveis, são penalizados com restrição de crédito. Ações contra bancos e financeiras não são incomuns. De acordo com dados consolidados no CNJ e também pelas próprias cortes Estaduais1, ao lado de empresas de transporte aéreo, concessionárias e telefonia celular, os bancos estão no ranking de maiores acionados por consumidores no Judiciário. Se, como já abordado na Coluna do IBERC2, o excesso de processos é, em parte, uma falha no controle regulatório, na medida em que 40% das ações decorrem de relação de consumo entre consumidores e bancos/telefonia que nem sequer precisariam chegar ao Judiciário, a litigância excessiva apenas prejudica o próprio desenvolvimento das atividades jurisdicionais. Ocorre que, é isso um dado concreto, os processos chegam ao Judiciário. Consumidores que entendem que foram lesados buscam o Judiciário para defesa dos seus interesses. O presente texto se propõe a analisar o pós-processo. Consideremos o seguinte caso hipotético: João litiga judicialmente em face de Banco X e a ação é julgada procedente com o reconhecimento de que a conduta do Banco foi ilícita. Dois meses após o pagamento da indenização arbitrada, João é cientificado pelo Banco que seu limite do cartão de crédito será, no prazo de 60 dias, reduzido em 40% em decorrência de análise interna. Inconformado com a redução de limite, o consumidor questiona a razão da redução, porém não recebe nenhuma resposta esclarecedora. Em não raras situações, os bancos têm promovido retaliações, sob o argumento de exercício regular de direito, em prejuízo daqueles que acionam o Judiciário. Nesse sentido, consumidores que já possuem um histórico de litigância contra bancos são notificados de uma redução de limites no cartão de crédito ou acesso ao crédito, por exemplo. Em um cenário de redução de crédito, mostra-se fundamental verificar os elementos objetivos e subjetivos do caso. São exemplos recorrentes as situações de redução de crédito em desfavor de consumidores com alta pontuação no Serasa Score, sem variação de renda e adimplentes com suas obrigações. Se, por um lado, é direito subjetivo dos bancos promover uma análise do crédito e, eventualmente, reduzir ou majorar os limites disponíveis, tem-se que as empresas precisam motivar essa redução de crédito justamente para afastar eventual revanchismo pelo exercício do direito de ação dos consumidores. O fato de a redução de crédito ser unilateral não afasta o dever de motivação e transparência, notadamente por representar uma consolidação do dever de informação. A inversão do ônus da prova e a distribuição dinâmica do ônus da prova exigem que o Banco prove, administrativa ou judicialmente, a razão da redução do limite de crédito, sob pena de presunção de que se trata de uma retaliação em decorrência do ajuizamento, pelo consumidor, de uma ação judicial. Assim, surge a existência de uma lista proibida bancária, uma espécie de relação de personae non gratae. O consumidor não consegue provar a existência da lista, mas a falta de motivação e uma atuação direcionada em prejuízo, curiosamente, daqueles que já litigaram em face da Instituição bancária apenas reforça a hipótese de que ela existe. Nesse sentido, a jurisprudência já se manifestou sobre a existência da lista proibitiva3: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. NEGATIVA DE CONCESSÃO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO JUDICIAL CONTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DESCABIMENTO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTUM MANTIDO. Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência exarada na ação de indenização por dano moral decorrente da não concessão de crédito em razão do ajuizamento de ação judicial contra instituição bancária. A prática de elaboração e consulta de "lista" com nomes de consumidores que buscaram tutela judicial em face de abusividades que entendiam presentes em contratos bancários são atos flagrantemente ilegais e abusivos. As instituições financeiras negam sua existência, pois cientes da impossibilidade de registro de tais fatos, que atenta, inclusive, contra o direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, na forma do artigo 5º, XXXV, da CF. Nenhuma lista negativa pode ser criada, fomentada ou consultada se o seu conteúdo for a restrição de crédito a quem ingressou com ação judicial contra empresa integrante do sistema financeiro, por seu caráter limitador de direitos e discriminatório. In casu, logrou a parte autora produzir prova dos fatos constitutivos do seu direito, demonstrando suficientemente os fatos narrados na exordial. As testemunhas ouvidas no feito apontaram que a lista existe e a demandante teve o crédito negado por conta de sua inclusão. Em razão... disso, responde o segundo requerido por ter alimentado o sistema com a informação, que no caso concreto ainda encontrava-se equivocada, já que não ajuizou a parte autora ação revisional, mas demanda declaratória de inexistência de débito. Por sua vez, a responsabilidade do segundo requerido decorre do fato de ter acessado o cadastro e negado crédito à parte demandante. Outrossim, não há que se falar em descabimento de aplicação de pena de multa para fins de dar efetividade ao provimento cominatório dirigido à exclusão do cadastro, que encontra previsão legal no art. 461 do CPC. Sentença de procedência mantida. APELAÇÕES DESPROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70050395730, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, Julgado em 01/10/2015). DANO MORAL Responsabilidade Civil "Restrição Interna" do banco contra o autor, em razão de débitos em uma conta bancária que não contratou. Informação que, apesar de não acessível a terceiros, limita o acesso do correntista à plenitude dos serviços oferecidos pela Instituição Financeira aos consumidores nas mesmas condições - A existência de restrições internas ou outras espécies de "listas negras", consiste em prática ilegal, uma vez que, pelo art. 43 e seu § 1º da Lei n. 8.078/90, o consumidor tem direito a ter acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes, e os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão - Clandestinidade e abusividade O conhecimento da existência de informações depreciativas, ainda que inverídicas e reservadas, traz ao negativado mais que mero aborrecimento ou dissabor, mas verdadeiro constrangimento e ofensa à honra, por ser considerado mau pagador, sendo desnecessárias maiores provas disso, o que se presume. Fixação. Razoabilidade - Recurso do réu e apelo adesivo desprovidos. (TJ-SP - APL: 03195829820098260000 SP 0319582-98.2009.8.26.0000, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 18/06/2013, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/06/2013) RECURSO INOMINADO. PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULADO COM EXTINÇÃO DE DÍVIDA. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE SERVIÇO BANCÁRIO EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO CREDITÓRIA INTERNA, EM "LISTA NEGRA" MANTIDA PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ENVOLVIDAS. SENTENÇA QUE AFASTOU A PRETENSÃO DO CONSUMIDOR. PROVIMENTO DO RECURSO PARA RECONHECER A ILICITUDE DAS RESTRIÇÕES CREDITÓRIAS, COM ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MORAIS CONFIGURADOS, CANCELANDO AINDA A DÍVIDA IMPUTADA AO CONSUMIDOR SEM PROVA DA ORIGEM. (TJ-BA 103898220081 BA, Relator: WALTER AMÉRICO CALDAS, 5ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS, Data de Publicação: 16/07/2010) RELAÇÃO DE CONSUMO - INDENIZATÓRIA - INGRESSO EM LISTA NEGRA COMO REPRESÁLIA - APONTAMENTO INDEVIDO DO NOME DO CONSUMIDOR NO SERASA - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO OPE LEGIS - INÉRCIA DA INSTITUIÇÃO RÉ - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - OCORRÊNCIA - LISTA NEGRA QUE TERIA SIDO CRIADA A PARTIR DE PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL ANTERIOR CONTRA A INSTITUIÇÃO - CONDUTA ILEGAL, ABUSIVA E DISCRIMINATÓRIA - SITUAÇÃO VIVENCIADA PELA AUTORA QUE ULTRAPASSA A SEARA DO MERO DISSABOR - PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO - DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Alegação de negativa de crédito decorrente de inserção do nome da correntista em lista negra dos bancos, além do apontamento do nome da autora em cadastros de inadimplentes. A lista negra configura instrumento ilícito de retaliação, pelo simples fato de o consumidor ter ingressado com demanda judicial contra instituição financeira, desestimulando o exercício do direito de ação garantido constitucionalmente. Dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva atrelada à teoria do risco do empreendimento. A inclusão do nome da parte em cadastro de inadimplentes, por si só, gera, independentemente de prova, o dano moral in re ipsa. Verbete Sumular 89 do TJ/RJ. Negado provimento ao apelo principal, restando improvido o recurso adesivo. (TJ-RJ - APL: 00112421020188190037, Relator: Des(a). EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, Data de Julgamento: 07/07/2020, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2020-07-10) É sabido, contudo, da existência de decisões em sentido contrário que apontam para a existência de listas de restrição não públicas não geram o dever de indenizar, porém o cerne de debate não se trata da publicidade ou não da lista, mas sim da impossibilidade do banco de reduzir o limite de crédito por razão revanchista. É cristalino que, a partir de critérios técnicos, o banco tem o direito subjetivo de reduzir limites de cartão de crédito ou negar acesso ao crédito. O problema jurídico reside no uso dessa redução / limitação como uma punição pelo direito de ação, o que deturpa o instituto. O art. 187 do Código Civil dispõe que: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. "O abuso de Direito está caracterizado como o exercício de um direito em contrariedade aos limites da prerrogativa individual"4. Isto posto, é preciso perceber que a redução/limitação de acesso ao crédito quando não baseada em critérios técnicos, viola a eticidade e a própria finalidade econômica do contrato, violando-se, portanto, a função social do contrato. Os bancos simplesmente não podem dizer que farão determinadas condutas baseadas em critérios unilaterais e arbitrários. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. A instituição bancária tem a discricionariedade de analisar se deve manter, reduzir ou majorar o acesso ao crédito, porém essa decisão é técnica, não podendo jamais ostentar um critério punitivo. Reduções e limitações ao crédito enquanto resposta punitiva ao direito de ação não podem existir em um ordenamento em que o acesso ao Judiciário deve ser garantido. Ser penalizado com redução/limitação ao crédito em decorrência de ter provocado o Judiciário não se mostra compatível com os valores que regem o Direito Civil e, sobretudo, o Direito Constitucional. O exercício legítimo do direito de ação não pode ser obstaculizado ou penalizado por restrições ao crédito, de modo que a redução ao crédito, enquanto direito subjetivo dos bancos, não pode ser deturpado ou transformado em instrumento de vingança, retaliação ou mesmo de ameaça. Essa conduta das instituições financeiras é um claro exemplo de abuso de direito e, pior, violador não apenas do Código Civil, mas também uma espécie de penalização do exercício do direito constitucional de ação. A verdade é que esta conduta - além de ilícita - cria uma dupla judicialização, pois todos aqueles que litigaram uma vez e foram inseridos na "Lista Proibida" buscarão o Judiciário novamente para serem reparados pelo novo dano causado, o que apenas aumenta o número de processos e fomenta uma litigância que seria evitável. Desta feita, será preciso garantir condenações exemplares, significativas e efetivamente punitivas com o condão de eliminar a existência da referida lista e, consequentemente, garantir o direito constitucional de ação, além da proteger o livre exercício de direitos do consumidor, sem que ele sofra restrições e/ou retaliações. __________ 1 Conheça as 30 empresas mais acionadas na Justiça do Rio de Janeiro em 2018. 2018. CONJUR. Acesso em 07 de fev. 2023; TJAM. "Mutirão dos Grandes Litigantes" começa com total de 80 processos analisados pelo 3.º Juizado Especial Cível. 2022. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023; MIGALHAS. Órgãos Federais e estaduais lideram 100 maiores litigantes da Justiça: Setor público Federal e bancos respondem por 76% dos processos em tramitação. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023. 2 KHOURI, Paulo R. Roque A. Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais. 2020. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2022 3 Algumas decisões e autores tratam da lista proibitiva como "lista negra", porém, por uma questão de respeito e atualização vocabular, entendemos que a lista proibitiva ou lista de restrição se mostra mais adequado. 4 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da Medicina Defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 141, p. 339-355, 2022.
A recém-promulgada Lei da Telessaúde (lei 14.510, de 27 de dezembro de 2022) acrescentou artigos à Lei do Sistema Único de Saúde (lei 8.080, de 19 de setembro de 1990), especificamente quanto ao uso das tecnologias digitais nos atendimentos médicos. Os arts. 26-D e 26-E, introduzidos pela nova lei, impõem o dever de observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina. Além disso, por tratar-se de atendimento médico prestado por meio virtual, a nova lei elencou, entre os seus princípios, o da confidencialidade dos dados e o da responsabilidade digital (art. 26-A, IX). Diante dessa terminologia trazida pela nova lei, cumpre indagar sobre o que vem a ser essa tal "responsabilidade digital" e sobre como ela se harmoniza com as demais formas de responsabilidade jurídica. Dentro do panorama de uma teoria geral da responsabilidade, podemos dizer que há um princípio geral, segundo o qual "somos responsáveis pelo que possa suceder ao outro". A responsabilidade jurídica é uma das manifestações desse princípio, ao lado da responsabilidade moral, da social e da política. Ao longo da Era Moderna, houve uma discriminação das várias espécies de responsabilidade jurídica, iniciando pelo desmembramento da responsabilidade civil em relação à penal e prosseguindo com o surgimento da responsabilidade administrativa e da política em sentido estrito. Desde que alcançou sua emancipação dogmática, no início da Era Moderna, a responsabilidade civil é um campo que se expande continuamente, na medida em que se modificam os relacionamentos sociais e surgem novas estruturas danosas. Hodiernamente, diante da passagem da sociedade da informação para a sociedade digital, as preocupações se voltam para os danos que possam surgir como decorrência do tráfego de dados e informações nos ambientes virtuais da Internet, controlados pelas plataformas digitais e com emprego de inteligência artificial. A maioria dos estudiosos está de acordo em que a primitiva função reparatória da responsabilidade civil é insuficiente para enfrentar os problemas que surgem na sociedade contemporânea, notadamente em matéria de tecnologias digitais. A busca por soluções para os problemas que surgem das constantes transformações sociais tem aproximado os estudiosos do sistema do Common Law, que admite outras funções para a responsabilidade civil, além da função reparatória que é marcante no sistema do Civil Law. Uma das constatações realizadas nos últimos tempos é no sentido de que a palavra "responsabilidade" possui diversos significados análogos nos idiomas de origem latina, como é o caso do português, ao passo que o idioma inglês apresenta diversos termos para as distintas formas de responsabilidade jurídica. Elena Simina Tanasescu explica que há três expressões no idioma inglês que exprimem a ideia de responsabilidade: responsibility, que corresponde a um preceito ético com status de princípio, como o da igualdade e o da liberdade, que envolve o cuidado que a pessoa deve ter com as consequências de suas ações; liability, que é a responsabilidade legal, implementada na lei, a fim de viabilizar a responsabilização individual; e accountability, que se refere aos deveres de quem desempenha algum tipo de atividade de cumprir as normas e regulamentos, bem como de prestar contas de seus atos1. Semelhante entendimento pode ser encontrado nos recentes estudos de Nelson Rosenvald, Carlos Edison Monteiro Filho e José Luiz Faleiros Filho, para quem o termo responsibility designa o sentido moral de responsabilidade, que é voluntariamente aceito, sem necessidade de imposição legal, ao passo que a liability corresponde ao sentido clássico da responsabilidade civil no Civil Law, com função estritamente compensatória dos danos. Já a accountability envolve deveres de prestação de contas sobre a adoção e a observância de normas regulatórias de governança e boas práticas que estabeleçam padrões técnicos e de segurança. Em complemento, a answerability consiste no dever de transparência e explicabilidade quanto aos processos que envolvem determinada atividade2. Os deveres de cumprimento de normas técnicas, de explicabilidade e de prestação de contas (accountability e answerability) se manifestam em diversos campos de atividade, inclusive no âmbito do direito público, conforme apontado por Elena Simina Tanasescu e por José Faleiros Júnior3. Podemos citar como exemplo o dever de cumprir as normas da ABNT, por parte das empresas de construção civil, sob pena de multa ou até mesmo rescisão do contrato público ou particular. Outro exemplo é o dever imposto aos profissionais de saúde de cumprir os Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas - PCDT e as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas - DDT, baixados e atualizados pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de orientar e padronizar o atendimento, diagnóstico e tratamento no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Ou ainda os deveres impostos a diversas categorias profissionais quanto às normas deontológicas baixadas pelos respectivos conselhos. Entretanto, a mais recente legislação sobre tratamento de dados pessoais tem dado ênfase à prevenção e à precaução contra danos, impondo deveres de boas práticas e compliance aos agentes de tratamento de dados pessoais, conforme consta do art. 6º da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD e dos arts. 12 e seguintes do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho - RGPD, de 27 de abril de 20164. De acordo com Bruno Bioni, a LGPD adota uma lógica eminentemente precautória, que "aposta na capacidade dos agentes de tratamento de dados de adotarem medidas preventivas de danos"5. Todos esses deveres de adotar medidas voltadas para a prevenção de danos se inserem em um campo de responsabilidade abrangidos pela rubrica da accountability e da answerability. A questão é saber por qual modo esses deveres se relacionam com as demais formas de responsabilidade jurídica, particularmente com a responsabilidade civil. Se tomarmos este instituto como sistema amplo e multifuncional, a accountability e a answerability integram o sistema, como camadas da responsabilidade civil, conforme lembrado por Nelson Rosenvald. Se entendermos o mesmo instituto em seu sentido clássico e estrito, com a função primordial de reparar os danos causados, os deveres compreendidos pela accountability e pela answerability se encontram na antessala do sistema, atuando ora na prevenção ao dano ex ante, ora na determinação do nexo de causalidade ex post factum. Não podemos perder de vista o mencionado fenômeno da expansividade da responsabilidade civil ao longo da modernidade. A busca constante por novas soluções diante das transformações sociais e do surgimento de outras estruturas danosas conduz ao elastecimento da responsabilidade civil que, com isso, vai se afastando pouco a pouco de sua conformação inicial, cuja única função era a de possibilitar a reparação dos danos causados. No momento atual, diante da necessidade de fortalecimento da função preventiva e precaucional, toma corpo esse conjunto de deveres compreendido pela accountability e pela answerability, os quais são voltados para impedir a ocorrência do dano6. Nelson Rosenvald e José Faleiros Júnior explicam que, em matéria de proteção de dados pessoais, a accountability e a answerability atuam ex ante e ex post factum. Na fase anterior ao dano, servem como guia para os agentes de tratamento de dados, os quais podem inclusive estabelecer regras de governança e boas práticas com a finalidade de evitar a ocorrência de danos. Na fase posterior, servem como guia para o reconhecimento do nexo de causalidade entre o dano e a atividade, norteando a identificação e a quantificação da responsabilidade civil e administrativa7. Ao que tudo indica, porém, a accountability e a answerability não se confundem com a responsabilidade civil em sentido estrito (civil liability), uma vez que que esses deveres existem a despeito da existência de um dano a ser reparado. São deveres que devem ser cumpridos com a finalidade de evitar a ocorrência do dano, mesmo que este jamais se concretize. Todavia, uma vez concretizado o dano, o cumprimento dos deveres de accountability e de answerability são determinantes para verificação do nexo de causalidade, podendo afastar ou mitigar a responsabilidade do agente (LGPD, art. 44). Em contrapartida, o dever de reparar o dano (civil liability) existe em incontáveis situações independentes dos deveres de accountability e de answerability. A compreensão da polissemia do termo "responsabilidade" nos idiomas de origem latina e da multiplicidade de expressões análogas no idioma inglês certamente é útil para o entendimento da estrutura e do funcionamento do sistema contemporâneo de responsabilidade civil, especialmente diante do surgimento das tecnologias digitais. Uma conclusão possível é que os deveres de accountability e answerability aos poucos se constituem em um campo de responsabilidade jurídica, consistente nos deveres de cumprir normas técnicas, de prestação de contas e de explicabilidade, cujo descumprimento produz consequências próprias, no âmbito regulatório, podendo também ensejar responsabilidade civil, administrativa e criminal. Outra conclusão possível é que, ao menos em tema de tratamento de dados, o sistema de responsabilidade civil (civil liability) funciona de maneira articulada, de sorte que o cumprimento ou descumprimento dos deveres abrangidos pela accountability e pela answerability são determinantes para caracterização do dever de indenizar. Disso resulta que, ao referir-se à responsabilidade digital, entre os princípios que norteiam a telessaúde, a lei 14.510/2022 emprega o termo "responsabilidade" no sentido de accountability. Com efeito, a responsabilidade digital, na verdade accountability digital, refere-se aos deveres de cuidado que se deve ter, tanto em relação às condutas (postar, curtir, comentar e compartilhar) quanto em relação ao tráfego de dados e informações no ambiente virtual da Internet8. A responsabilidade digital está relacionada ao exercício da cidadania digital, no sentido de que os usuários devem contribuir para que a tecnologia seja utilizada de forma adequada, responsável e não criminosa9. No âmbito corporativo, a responsabilidade digital pode ser entendida como um desdobramento da responsabilidade social aplicada ao contexto das tecnologias digitais10. Desse modo, a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação. __________ 1 TANASESCU, Elena Simina; Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. On responsibility in public law. Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011, mensal. 2 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, [s. l.], 6 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2022; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. Acesso em: 30 out. 2022. 3 TANASESCU, Elena Simina. On responsibility in public law, cit., p. 6; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Administração pública digital: proposições para o aperfeiçoamento do regime jurídico administrativo na sociedade da informação. Indaiabuba: Foco, 2020. p. 130-147. 4 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 18-20. 5 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 41. 6 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD, cit.; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility, cit. 7 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 777-779. 8 Disponível aqui. Acesso em: 27 dez. 2022. 9 NUNES, Danilo Henrique; LEHFELD, Lucas Souza. Cidadania digital: direitos, deveres, lides cibernéticas e responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, [S. l.], v. 22, n. 35, 2019. DOI: 10.22171/rej.v22i35.2542. Disponível aqui. Acesso em: 29 dez. 2022. 10 LONDOÑO-CARDOZO, José; PÉREZ DE PAZ, Maria. A responsabilidade digital organizacional: fundamentos e considerações para seu desenvolvimento. Revista de Administração Mackenzie, 22(6), 1-31, 2021. doi:10.1590/1678-6971/eRAMD210088. Disponível aqui. Acesso em: 28/12/2022.
Algum tempo atrás, escrevi aqui sobre um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), que, num caso bastante sensível, majorou o valor de indenização por danos morais fixado nas instância inferiores. Um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta. A indenização pelo dano moral (houve condenação por danos materiais também) foi fixada, no 1º grau, em R$ 120 mil para cada uma das autoras da ação (esposa e filha da vítima). As autoras não recorreram da sentença, mas o réu sim. O Tribunal estadual reduziu a indenização para R$ 30 mil para cada uma delas (25% do valor fixado pelo Juízo) por conta da "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima". As autoras (esposa e filha da vítima) e o réu recorrem ao STJ. Elas para aumentar o valor da indenização moral (e outras discussões quanto aos danos patrimoniais). Ele, para diminuir ainda mais o valor da indenização dos danos morais. O Superior aumentou a condenação, e fixou a indenização para R$ 150 mil para a esposa e R$ 150 mil para a filha da vítima. Esse foi o percurso do valor da indenização pelo dano moral: de R$ 240 mil para R$ 60 mil e, depois, para R$ 300 mil. Destaco: o valor fixado pelo STJ foi superior ao indenizado pelo 1º grau, contra cuja sentença as autoras não recorreram. O julgamento dos recursos foi monocrático, por aplicação da súmula 7. As partes manearam agravos, que foram julgados conjuntamente. Transcrevo a ementa na parte que interessa (a fixação do quantum indenizatório pelo dano moral): RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. ... 7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência. 8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30 mil viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150 mil, a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso. Na época em que publiquei a primeira parte desse artigo, não havia sido disponibilizada a íntegra dos acórdãos, mas eu já pude destacar alguns pontos importantes, do ponto de vista da prestação jurisdicional e da reflexão doutrinária. Repito-os: (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da súmula 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação. Agora, os acórdãos foram publicados, e confirma-se que eles constituem um ambiente privilegiado para o estudo do direito civil e processual civil, bastando ver alguns temas que acresço aos itens antes indicados. A alegação de negativa de prestação jurisdicional. O excesso de linguagem no acórdão. A juntada de novos documentos no curso da ação. O dano em ricochete. A legitimidade ativa. A legítima defesa da honra como matéria de defesa processual ("...uma retórica odiosa, desumana e cruel, com a repulsiva tentativa de se imputar à vítima a causa de sua própria morte"). Culpa concorrente. A relação entre as responsabilidades civil e criminal. O julgamento em perspectiva de gênero: o STJ disse: "A adoção de pensamento diverso contribui para a banalização e perpetuação de violência (principalmente contra as mulheres), cabendo do Poder Judiciário atuar como contrafator a essa cultura antiquada, impondo a vigência da lei a fim de se evitar a perpetração de comportamentos bárbaros"). O método bifásico para a fixação da indenização. O termo final da condenação ao pagamento de pensão alimentícia. Em suma, para aqueles professores e estudiosos que trabalham com a metodologia de estudo de caso (para ensinar e para aprender), o acórdão é um ótimo exemplo do direito teórico e prático. Destaco, entre as várias temáticas suscitadas pelo julgamento, uma que me parece muito relevante, e que diz respeito à variabilidade do valor da indenização. O STJ fixou a indenização em valor maior do que aquele fixado pelo 1º grau, de cuja sentença as autoras não recorreram. Pode isso? E se isso pode, qual o fundamento técnico para tanto? Quer me parecer que a questão pode ser respondida a partir de três razões: A um, a própria ontologia do dano moral e dos critérios da fixação de sua indenização. Na espécie, seguindo uma sólida tradição, o STJ utilizou o método bifásico. Na 1ª fase, remeteu ao valor de 300 a 500 salários-mínimos no caso de evento morte e, na 2ª fase, levou em conta as peculiaridades do caso concreto (gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes etc); os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade foram utilizados também como argumento para cassar a decisão do Tribunal estadual. A dois, as perspectivas horizontal e vertical do princípio da devolutibilidade recursal. Se a dimensão horizontal desse princípio diz respeito à extensão do efeito devolutivo (o quanto da decisão foi impugnada, a extensão do recurso), a dimensão vertical diz respeito a quais matérias sobem ao exame do órgão superior (a profundidade). Bem por isso o acórdão assentou "nota-se que, no caso vertente, a apelação devolveu ao Tribunal a questão referente à configuração, ou não, dos danos morais em razão da concorrência de culpas (dimensão horizontal). [...] Assim, ao analisar a matéria a ele devolvida, o Tribunal estadual argumentou que [...] a vítima foi responsável por gerar um sentimento de revolta, o que configura a sua culpa concorrente (dimensão vertical)". Não há, então, erro do STJ, mesmo que as autoras não tivessem recorrido da decisão do 1º Grau (isto é, tivessem acolhido a indenização de R$ 120 mil para cada). A três, os papéis e a dinâmica da responsabilidade civil, numa sociedade em constante mudança. No dizer do acórdão, "Por conseguinte, a responsabilidade civil assume um papel mais flexível, menos dogmático e com maior atenção aos reais anseios da sociedade, com a difícil tarefa de distinguir aquilo que deverá, ou não, ser reparado". Tentei responder apenas uma das inquietações que surgem a partir do acórdão. As outras ficam para o leitor pensar e responder. Assim se estuda o Direito. Assim se aprende o Direito.
A fisioterapia e a terapia ocupacional são duas importantes profissões inseridas dentro da área da saúde, segundo o que consta nas Resoluções nº 04/20021 e 06/20022, ambas do Conselho Nacional de Educação - Conselho Pleno (CNE/CP). Os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais tiveram sua profissão reconhecida por meio do Decreto-Lei nº 9383, de 13 de outubro de 1969. Entretanto, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), trata-se de uma Autarquia Federal, constituída em 1975, por meio da Lei nº 6.3164, que normatiza ambas as profissões, bem como exerce o controle ético, científico e social. O Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia, aprovado por meio da Resolução nº 4245, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o fisioterapeuta presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e recuperação da sua saúde e cuidados paliativos, sempre tendo em vista a qualidade de vida, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde vigente no Brasil" (artigo 4º). A atuação dos fisioterapeutas tem um papel fundamental na qualidade de vida das pessoas, pois trabalha diretamente com o bom funcionamento do corpo, evitando ou melhorando disfunções que causam dor, desconforto ou interferem nas capacidades motoras. Na atualidade, a prevenção de acidentes e a promoção da saúde primária são as principais funções da fisioterapia. Por sua vez, o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional, aprovado por meio da Resolução nº 4256, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o terapeuta ocupacional presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção, prevenção de agravos, tratamento, recuperação e reabilitação da sua saúde e cuidados paliativos, bem como estabelece a diagnose, avaliação e acompanhamento do histórico ocupacional de pessoas, famílias, grupos e comunidades, por meio da interpretação do desempenho ocupacional dos papéis sociais contextualizados, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde, de assistência social, educação e cultura, vigentes no Brasil" (artigo 4º). A terapia ocupacional traz inúmeros benefícios para a vida diária das pessoas, de todas as idades que possam apresentar dificuldades para realização das atividades comuns da rotina diária. Na atualidade, a terapia ocupacional desempenha um papel importantíssimo, vez que auxilia tanto nos aspectos físicos como psíquicos do ser humano. Conclui-se que a atividade do fisioterapeuta visa a execução de métodos e técnicas fisioterapêuticas, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade física do paciente; enquanto a atividade do terapeuta ocupacional visa a execução de métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade mental do paciente (Decreto-Lei n. 938/69, artigos 3º e 4º7). O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, com a finalidade de cumprir o propósito legal para o qual foi constituído, vem aprovando várias Resoluções e regulamentando as matérias necessárias para as duas profissões. No entanto, algumas dessas Resoluções foram objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente, em 22/11/22, dentre elas a Resolução nº 808, de 09 de maio de 1987, que prevê o direito dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais de diagnosticar, prescrever tratamentos e dar alta ao paciente, de forma autônoma e sem qualquer vínculo com o médico. Esta é uma celeuma antiga que envolve médicos e fisioterapeutas. Por isso, a matéria foi analisada pelo STJ em 2005, momento no qual a Ministra Nancy Andrighi decidiu que: "Nos termos da legislac¸a~o que regula a mate´ria - Decreto-Lei nº 938/69 e Lei nº 6316/75, os profissionais de fisioterapia e terapia ocupacional esta~o habilitados, ta~o somente a executar os me´todos e te´cnicas indicados pelos me´dicos especializados, de acordo com a a´rea afetada que necessite de recuperac¸a~o, sendo-lhes vedado fazer o diagno´stico e indicar o tratamento a ser realizado, atividade esta reservada aos profissionais da medicina"9. Na época, a Ministra citou a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Representação nº 1.056 - DF, que declarou a constitucionalidade dos artigos 3º e 4º do Decreto-lei nº 938/69 e do art. 12 da lei nº 6.316/75, constando na referida fundamentação da Suprema Corte: "a) ao me'dico cabe a tarefa de diagnosticar, prescrever tratamentos, avaliar resultados; b) ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional, diferentemente, cabe a execuc¸a~o das te'cnicas e me'todos prescritos". Mesmo com o mencionado entendimento do STJ e do STF, tramitava desde 2004 uma ação ordinária ajuizada perante a 9ª Vara Federal de Porto Alegre - RS (Processo nº 2004.71.00.0039.549-1), pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul em face do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, visando declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de alguns direitos assegurados aos respectivos profissionais, previstos por algumas resoluções do COFFITO, além de obrigação de fazer. O principal fundamento para o ajuizamento da ação foi o de que alguns dos termos utilizados na referida resolução concedem direitos que extrapolam a competência profissional primária fixada pelo Decreto-Lei nº 938/69 e invadem a esfera profissional e privativa atribuída aos médicos, o que colocaria em risco a saúde e a vida da coletividade. Para os autores da ação, o diagnóstico é ato privativo do médico, nos termos da Lei nº 12.842/201310 e, portanto, seria ilegal ser esse direito assegurado aos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A ação principal foi extinta sem julgamento do mérito, uma vez que o juiz Candido Alfredo Silva Leal Junior, acolheu a preliminar da defesa quanto à ilegitimidade ativa do Sindicato e a inadequação da via eleita, configurando a falta de interesse processual. Em sede recursal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4) cassou a decisão de primeira instância e determinou a remessa dos autos à Vara Federal de origem para nova decisão de mérito. Com isso, foi interposto Recurso Especial (REsp), que restou inadmitido, fazendo com que o processo retornasse e, após os trâmites legais, fosse novamente sentenciado em outubro de 2012, pela M.M. Juíza, que julgou improcedentes os pedidos formulados, após rejeição das preliminares. Da nova sentença mencionada, foi interposto um novo Recuso de Apelação, do qual foram opostos embargos, que foram rejeitados. Com isso, a parte recorrente interpôs REsp11, que foi admitido pelo fato de não terem sido acolhidos os embargos, restando matéria a ser decidida. Posto isso, a matéria chegou ao STJ após mais de 17 anos de tramitação e da última decisão do Superior Tribunal sobre o tema. Mesmo com várias discussões abordadas no REsp, o foco principal se deu quanto ao questionamento formulado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul quanto à possível ilegalidade ou inconstitucionalidade da previsão contida no artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, pelo fato de constar: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional, sendo esta, um processo pelo qual, através de metodologias e técnicas fisioterapêuticas, são analisados e estudados os desvios físico-funcionais intercorrentes, na sua estrutura e no seu funcionamento, com a finalidade de detectar e parametrar as alterações apresentadas, considerados os desvios dos graus de normalidade para os de anormalidade; prescrever, baseado no constatado na avaliação físico-funcional as técnicas próprias da Fisioterapia, qualificando-as e quantificando-as; dar ordenação ao processo terapêutico baseando-se nas técnicas fisioterapêuticas indicadas; induzir o processo terapêutico no paciente; dar altas nos serviços de Fisioterapia, utilizando o critério de reavaliações sucessivas que demonstrem não haver alterações que indiquem necessidade de continuidade destas práticas terapêuticas" (grifos nossos). O julgamento do Recurso Especial ocorreu em 21 de junho de 2022, cujo Ministro Relator Gurgel de Faria entendeu pela ilegalidade de "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia" - previstos no citado artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO - em consonância com o citado entendimento do STF. Ficou claro que as profissões do fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e médico são autônomas, mas interdependentes. Em que pese a inexistência de hierarquia, ambas atuam em conjunto e em benefício do paciente, mas o diagnóstico, a prescrição e a alta são atos privativos dos médicos, em conformidade com a Lei nº 12.842/2013. Todavia, houve oposição de Embargos de Declaração12 contra a decisão mencionada, com efeitos infringentes, no qual o Ministro Benedito Gonçalves, em decisão diametralmente oposta ao que havia sido decidido, proferiu voto para dar provimento ao recurso do CREFITO-5/RS e COFFITO e rejeitar o recurso do CREMERS e SIMERS. Com isso, a Primeira Turma do STJ, por maioria, vencida a Ministra Regina Helena Costa, decidiu em consonância com o voto vista citado, acolhendo os embargos de declaração do CREFITO-5/RS e COFFITO, permanecendo incólume a previsão acerca da possibilidade de os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais para "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia". Do exposto, conclui-se que a demanda chegou até o STJ pela existência de um conflito real sobre a correta interpretação e alcance do termo diagnóstico, contido na Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO. Entretanto, a recente decisão do STJ não foi suficiente para solucionar o tema diante da divergência das decisões proferidas pela própria Turma Julgadora. Isso porque incialmente entenderam pela ilegalidade do diagnóstico realizado pelos fisioterapeutas, conforme decisão proferida no Recurso Especial. Contudo, poucos dias após, eles mudaram a decisão quando do julgamento dos Embargos, opostos em face da decisão do Resp, para considerar legal o diagnóstico realizado pelo fisioterapeuta. Obviamente que é assegurado ao judiciário decidir de forma contrária. No entanto, a fundamentação para a mudança não foi suficientemente clara, permitindo a manutenção das dúvidas. E isso pode ser constatado através de algumas matérias noticiadas após o julgamento dos embargos, dentre elas a publicada com o título "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento"13. Por outro lado, a notícia veiculada pelo site oficial do STJ, datado de 24.11.22, intitulada como: "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos"14, traz a seguinte narrativa: "Ao julgar os embargos de declaração no REsp 1.592.450, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, concluiu que é permitido ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional diagnosticar doenças, prescrever tratamentos e dar alta terapêutica" (grifos nossos). Não sei se os leitores observaram de forma atenta, mas destacamos em negrito os termos utilizados na matéria veiculada no próprio STJ, que, inadequadamente e, ampliando a interpretação judicial e, a previsão contida na Resolução analisada prevê que: os fisioterapeutas podem diagnosticar doenças e dar alta terapêutica. Evidente a não compreensão sobre o real alcance e interpretação da Resolução, mas, principalmente, o entendimento do STJ sobre a matéria. Inobstante a inequívoca dúvida quanto a legalidade ou não do fisioterapeuta diagnosticar, temos ainda que compreender qual o conteúdo inserido dentro desse possível diagnóstico atribuído ao fisioterapeuta. Para isso, iniciaremos através dos ensinamentos trazidos pelo fisioterapeuta João Noura15, que fundamentado no dicionário médico explica que diagnóstico é "ato de determinar se uma condição está ou não presente, e Avaliação (cuja tradução mais aproximada, na ausência de assessment, é evaluation) é definida como o ato de examinar e, consequentemente, determinar o nível ou quantidade de algo (que podemos entender como sendo uma abordagem probabilística à presença de uma condição)". Ele explica que o diagnóstico, conduta privativa do médico, visa a identificação da condição do paciente (presença ou não de lesão muscular, por exemplo) através da "avaliação, prescrição e interpretação de exames complementares". Por outro lado, ao fisioterapeuta compete a função de mera avaliação dos sinais e sintomas, bem como histórico do paciente constatar: a condição diagnosticada pelo médico, a necessidade de encaminhamento ao médico ou prescrever as técnicas próprias da fisioterapia ao caso concreto. Em resumo, o diagnóstico só poderá ser realizado pelo médico, pois consiste na identificação da patologia primária do paciente. Conduta essa que exige conhecimentos específicos estudados na Medicina, dentre eles a "fisiopatologia, patocronia e literatura associada às condições de saúde", como explica o citado autor. Por outro lado, a avaliação, pode ser realizada tanto por médicos como por fisioterapeutas, razão pela qual o artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, estabelece: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional...". Contudo, chamem o diagnóstico, como aquele relacionado com a identificação da doença (diagnóstico médico) ou com sinais e sintomas relacionados com a mesma - como é o caso do comprometimento motor ou limitações funcionais, que são denominados de "diagnóstico fisioterapêutico" - deve ser realizado com o máximo de cautela e conhecimento técnico, para viabilizar o alcance da expectativa pretendida, segurança e bem estar do paciente. Inobstante à existência das duas espécies de diagnósticos apresentadas, conclui-se que a Resolução analisada faz uso da terminologia diagnóstico de maneira equivocada, considerando o real propósito ser a mera avaliação, como consta do texto da própria resolução. Sendo assim, o STJ perdeu uma grande oportunidade de distinguir o conceito de ambas as expressões, delimitá-lo e estabelecer a abrangência das atividades de ambas as profissões, sem que se possa falar em invasão de competências e possibilitar a identificação clara das responsabilidades incidentes. Sem a especificação quanto ao limite de atuação de cada profissional e a existência inequívoca das dúvidas quanto ao diagnóstico, teremos consequências para ambos os profissionais. Primeiramente, se o fisioterapeuta pode diagnosticar, seja exclusivamente a avaliação físico-funcional ou a doença, terá como ônus inerente a responsabilidade civil e penal pelos atos por ele praticados. Por outro âmbito, quando o fisioterapeuta apenas realiza a avaliação físico funcional, fundamentando-se em laudo e exames fornecidos pelo médico responsável pelo diagnóstico, toda e qualquer conduta do fisioterapeuta estará justificada na documentação médica. Portanto, na hipótese de tratamento fisioterapêutico inadequado, mas em consonância com o laudo, a responsabilidade civil pelos danos por ventura ocasionados será atribuída ao médico, com base na responsabilidade de terceiro. De modo que o fisioterapeuta só será responsabilizado por danos decorrentes dos seus atos exclusivos, como escolha da técnica ou método inadequados, forma de realização da fisioterapia ou mesmo período de tratamento. Jamais por diagnóstico errado praticado pelo médico. Importante lembrar que é muito complicado para o fisioterapeuta assumir os riscos decorrentes do diagnóstico, especialmente diante de possíveis intercorrências da doença, pelo fato de não ser capacitado tecnicamente. Além disso, o fisioterapeuta deve ter em mente o ônus que está atraindo para si, quando poderia estar isento, caso reconheça tratar-se de um conhecimento específico dos médicos, haja vista o aprofundamento nos estudos necessários para um diagnóstico mais seguro, seja para hipóteses de meras entorses ou casos mais complexos. Portanto, antes das comemorações por parte dos fisioterapeutas em decorrência da decisão proferida pelo STJ, muita cautela é necessária, pois esse é o primeiro passo de um caminho longo a ser percorrido, pois muitos fatos serão desencadeados diante das omissões que deveriam ter sido supridas para obtenção da efetiva segurança, seja para o paciente, ou mais especialmente para os profissionais envolvidos.  Por fim, não se pretende delimitar totalmente o alcance prático do que fora decidido, mas trazer um alerta para estes profissionais, demonstrando que o momento é de extrema atenção e comedimento redobrado, em relação à responsabilidade civil inerente aos direitos supostamente reconhecidos, que poderiam ser atribuídos com exclusividade aos médicos, considerando a maior capacitação técnica, como bem explicado no artigo do fisioterapeuta João Noura. __________ 1CNE/CES. Resolução nº 4, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Fisioterapia. Disponível aqui. 2 CNE/CES. Resolução nº 6, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 3 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Disponível aqui. 4 Lei nº 6.316, de 17 de dezembro de 1975. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e dá outras providências. Disponível aqui. 5 COFFITO. Resolução nº 424, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Disponível aqui. 6 COFFITO. Resolução nº425, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 7 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Art. 3º É atividade privativa do fisioterapeuta executar métodos e técnicas fisioterápicos com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do ciente. Art. 4º É atividade privativa do terapeuta ocupacional executar métodos e técnicas terapêuticas e recreacional com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade mental do paciente. 8Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução n. 80, de 9 de maio de 1987. Disponível aqui. 9 STJ, REsp nº 693.466- RS, Relatora Ministra Eliana Calmon. Segunda Turma.  Julgado em 03.11.2005, DJ. 14.11.2005.  10 Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Art. 4º São atividades privativas do médico: § 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I - agente etiológico reconhecido; II - grupo identificável de sinais ou sintomas; III - alterações anatômicas ou psicopatológicas. Disponível aqui. 11 STJ, REsp nº 1.592.450 - RS, Relator Ministro Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 21.06.2022, DJ. 30.06.2022. 12 STJ, EDcl no REsp nº  1.592.450 - RS, Relator Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 22.11.2022. 13 VITAL, Danilo. "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento". 14 STJ. "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos". Disponível aqui. 15 NOURA, João. O "Diagnóstico", e porque é que não o queremos na Fisioterapia. Publicado em 19.07.22. Disponível aqui.
O Direito Ambiental tem como objeto de estudo a proteção do meio ambiente visando a sadia qualidade de vida dos cidadãos. O preceito está positivado no art. 225 da Constituição Federal, que garante a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e à sociedade o dever de preservá-lo. Didaticamente, divide-se a proteção ao meio ambiente em quatro partes que são integradas e interdependentes: natural, artificial, cultural e do trabalho. Em qualquer dos aspectos, há sempre o foco no controle da poluição com vistas a garantir um meio ambiente seguro e adequado aos que aqui habitam. A poluição sonora em ambientes urbanos (meio ambiente artificial) é um grande desafio às autoridades e pessoas que moram nas cidades e metrópoles. A razão é clara: exposto à polução sonora o indivíduo tende a ter piora sensível na qualidade de vida, aumentando o estresse, trazendo dificuldades para dormir, entre outras consequências danosas daí advindas. Tanto assim que a lei brasileira é farta em regulamentar o tema da poluição sonora para minimizar os prejuízos evidentes à saúde humana. Cite-se a regulamentação pela lei 6.938/1981, passando pela Lei de Contravenções Penais (art. 42, incisos I e III), Lei dos Crimes Ambientais (art. 54) e pelo art. 1.277 do Código Civil. Ademais, as leis municipais também estabelecem limites de emissão de ruídos conforme o zoneamento desenhado pelo Plano Diretor. No caso específico da cidade de São Paulo o tema é trazido pela lei municipal 16.402/2016 e decreto municipal 57.443/20161. Os níveis de ruído são, em regra, definidos pelas leis municipais, sempre observando dados científicos sobre o tema, que sugerem limite máximo até 60 (sessenta) decibéis durante o dia de até 50 (cinquenta) decibéis após 22 horas. A Organização Mundial de Saúde apresenta escala de decibéis relativa à emissão de ruídos e suportabilidade humana. Por outro lado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas propõe escala de decibéis de níveis de ruídos aceitáveis em espaço urbano e rural. Vejamos1: O art. 3º da lei 6.938/1981, define em seu inciso III a poluição como sendo "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos". Por outro lado, a mesma lei define poluidor como sendo "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (inciso IV). Portanto, a emissão de ruído acima do indicado pela ABNT ou pela lei municipal pode ser considerado poluição sonora. Ademais, sendo "poluidor" aquele que direta ou indiretamente causa a degradação ambiental, o poluidor pode ser aquele tem a posse do imóvel (locatário ou comodatário) e o proprietário, que seria considerado poluidor "indireto" em razão do uso nocivo da propriedade. Vale lembrar que a responsabilidade civil do poluidor, nesse caso é objetiva, com fundamento no § 1º do art. 14 da lei 6.938/1981: "(...) Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade". A questão seria, então, solucionada pelas regras e princípios do Direito Ambiental, diante da característica de direito ou interesse difuso e/ou interesse individual homogêneo, cabendo a interposição de Ação Civil Pública por qualquer dos legitimados definidos no art. 5º da LACP, para a responsabilização civil dos poluidores, além das imposições de sanções administrativas e penais cabíveis. Trata-se, portanto, de responsabilidade civil objetiva e solidária, obrigando ao ressarcimento dos danos materiais e morais. Caberia pedido de tutela de urgência ou emergência para cessar o ruído, bem como pedido de indenização por dano moral coletivo pela via difusa, devendo o valor ser destinado ao fundo de direitos difusos e coletivos. Na mesma ação coletiva, seria possível o legitimado formular pedido fundamentado em direito individual homogêneo (indisponível, nesse caso, por se tratar de direito à saúde) para indenização aos moradores prejudicados pela poluição sonora. No entanto, conceituada a poluição sonora e definidos os seus parâmetros, resta saber se caberia (além da propositura de ação civil pública) ação individual fundamentada no direito de vizinhança, para responsabilizar os poluidores. A regra geral da tutela coletiva de direitos é clara: a propositura de ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais (art. 104 do CDC), devendo ser observada a interpretação do Superior Tribunal de Justiça para a ocorrência de suspensão das ações individuais até a o julgamento da ação coletiva (Tema 923). Direitos de vizinhança Os denominados direitos de vizinhança são direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não necessariamente da contiguidade. As regras de vizinhança têm por objetivo harmonizar a vida em sociedade e o bem-estar, sem deixar à margem as finalidades do direito de propriedade3. Além disso, o Direito de Vizinhança é marcado por uma relação jurídica fática: não há uma relação jurídica especial que liga os proprietários vizinhos, a relação é, portanto, propter rem, vinculando o proprietário ou o possuidor do imóvel perante seus vizinhos. Trata-se de situação jurídica de direito das coisas. O conflito de vizinhança deve ser solucionado pelo Código Civil quando um dos proprietários ou possuidores de prédios vizinhos exerce atividade sobre o seu próprio imóvel a qual repercute em outra propriedade. Sílvio Rodrigues destaca que três espécies de ato são capazes de provocar conflito de vizinhança: os ilegais, os abusivos e o lesivos4. Os atos ilegais ocorrem quando um vizinho prejudica o outro praticando um ato ilícito, respondendo pelos danos causados nos termos dos art. 186 e, se o caso, do art. 927, ambos do Código Civil. Já o abuso de direito pode ocorrer nas relações de vizinhança quando um proprietário, mesmo no exercício do seu direito, se dele usar abusivamente. Os atos lesivos dizem respeito ao uso da propriedade de forma irregular, desrespeitando a legislação vigente, em especial as regras estabelecidas pelo Código Civil e do Estatuto das Cidades, ou restrições advindas de licenças ambientais conforme o Estudo de Impacto de Vizinhança para obras de maior potencial ofensivo. A par das discussões sobre a responsabilidade civil objetiva ou subjetiva em direito de vizinha, a poluição sonora pode ser considerada ato lesivo, que diz respeito ao uso da propriedade de forma irregular, devendo seguir a regra da responsabilidade civil objetiva do possuidor e do proprietário, na forma do art. 14 da Lei 6.938/1981 acima transcrito. Ressalta-se, por fim, que o art. 1.277 do Código Civil autoriza o proprietário ou possuidor do prédio a fazer cessar as interferências prejudiciais causadas por outro vizinho: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Breve conclusão Não resta dúvida, portanto, que nas hipóteses de poluição sonora a via adequada para que haja a cessação da emissão de ruído, bem como a indenização pelo desrespeito ao meio ambiente sadio, é a Ação Civil Púbica, por ser mais abrangente e adequada à defesa dos interesses difusos. É cabível, na mesma ação, pedido individual homogêneo para o ressarcimento dos prejuízos dos moradores e outras pessoas que foram afetadas pela emissão de ruídos. Por outro lado, havendo uso nocivo da propriedade, o proprietário ou possuidor lesado tem legitimidade para estar em juízo, em ação individual, para pleitear a cessação da emissão de ruído, danos materiais e morais advindos da poluição sonora, sem prejuízo de eventual ação coletiva em andamento.  Referências bibliográficas DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. PEREIRA. Caio Mário. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2018. __________ 1 Importante notar que o tema está em ebulição na cidade de São Paulo, tendo sido aprovado projeto de lei que aumentou o limite máximo para 75 decibéis em eventos e nos espaços denominados "dark kitchens" (vale notar, a regra geral continua sendo 65 decibéis o volume máximo de ruído tolerado até às 22 horas, passando para 55 decibéis após esse horário). Sobre o assunto, veja aqui. 2 Disponível aqui. 3 San Tiago Dantas, em sua clássica obra sobre Direito de Vizinhança, explica que, para que haja "conflito de vizinhança", é sempre necessário "que um ato praticado pelo possuidor de um prédio, ou o estado de coisas por êle mantido, vá exercer os seus efeitos sôbre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incómodos ao seu morador. Essa "interferência", essa repercussão in alieno, é o elemento fundamental do conflito. O rumor que se propaga, a fumaça que se espalha no ar, a umidade que se infiltra no solo, tudo que atinge um prédio em consequência de um fato, ocorrido em outro, constitui "interferência" e pode motivar a reclamação do proprietário incomodado, dando nascimento, assim, ao conflito. Não basta, porém, que se verifique "interferência" num prédio, para a colisão de interesses daí resultante ser chamada "conflito de vizinhança". Esta última expressão tem compreensão mais limitada, abrange espécies mais precisas e menos numerosas, e é essencial lhe fixemos a amplitude, antes de avançar no estudo dos problemas que temos de considerar". O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 20. 4 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 125.
A partir da edição do Código Civil de 2002, poucas foram as categorias jurídicas que denotaram tamanha expansão quanto o direito à privacidade. Em duas décadas, testemunhou-se o deslocamento do espaço lateral que a privacidade ocupava para a centralidade de discussões em diversas áreas: de certo modo, tratar da dimensão normativa das relações jurídicas (em seus diversos matizes) passou a significar, também, a tratar do alcance normativo da privacidade. É possível identificar diversas causas para este movimento centrípeto da privacidade; porém, uma delas parece expressar particular importância: o desenvolvimento potencializado da tecnologia da informação, que promove o uso incessante de algoritmos para a coleta e processamento de dados e viabiliza o predomínio, hoje percebido, das plataformas digitais. Surge disso, nas palavras de Ana Frazão, "[...] a ideia de uma economia movida a dados [...], já que os dados pessoais são hoje o novo 'petróleo' ou principal insumo das atividades econômicas"1, perspectiva que globalmente vem sendo denominada como data-driven economy.2 De modo similar, Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, afirma que esse predomínio das plataformas digitais implica na consolidação da "era do capitalismo de vigilância" ("The Age of Surveillance Capitalism"), que caracteriza "[...] uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como material livre para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda"3. Tal modelo compreende a estruturação das plataformas digitais para além de simples ferramentas de usuários, porquanto, ao erigirem-se como verdadeiro modelo de negócios, criam um ecossistema de interação entre agentes empreendedores que viabiliza substanciais trocas econômicas. Essas trocas, ao seu turno, consubstanciam-se por meio da colheita de dados pessoais dos usuários das referidas plataformas e, do mesmo modo, da expansão da utilização de produtos e objetos dotados de interfaces tecnológicas (smartwatches, termostatos informatizados, palmilhas inteligentes, etc) que os conectam com a internet e a outros dispositivos, otimizando o dia a dia de consumidores em ambiente doméstico e profissional. É nesse espaço de inovação que Eduardo Magrani define a consolidação da chamada "Internet das Coisas", globalmente referida pela sigla IoT (Internet of Things), como "[...] um ecossistema de computação onipresente [...] voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas [...]. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em objetos que interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade"4. Apesar de atrativo, todo esse cenário parece colocar em xeque a definição da privacidade balizada exclusivamente no paradigma da autodeterminação informativa, que a compreende a partir do controle de dados e informações pessoais por cada sujeito - paradigma esse que, apesar de relevante, já se mostra insuficiente em face dos desafios contemporâneos. É necessário, portanto, ir além, justamente porque a privacidade expressa importante valor normativo se reconhecida como eixo para o exercício das liberdades, sendo o vetor de projeção e gênese dos direitos da personalidade na medida em que se reconhece que as expressões de nossa existência dela (da privacidade) surgem. E, se assim o é, a privacidade pode também servir como chave de configuração de um sistema normativo desinente de institutos correlacionados do Direito Civil que possam contribuir com os mecanismos de tutela da personalidade humana já encetados na ordem jurídica. Esse viés abre espaço para uma compreensão renovada da Responsabilidade Civil e de seu contributo à proteção da privacidade como vetor de projeção dos direitos da personalidade e exercício de liberdades, justamente a partir do reconhecimento do traçado multifuncional que vem sendo a ela atrelada. De plano, cumpre destacar que desde a primavera de 1988, a Responsabilidade Civil no Brasil tem sido objeto de crescentes modificações e flexibilizações, inicialmente derivadas do giro conceitual que fixou na vítima do evento lesivo o foco de maior atenção5. Bem por isso é que Nelson Rosenvald afirma que a Responsabilidade Civil expressa contemporaneamente uma face multifuncional, envelopando funções de reparação, punição e precaução, acabando por se mostrar "[...] dúctil e maleável às exigências de um direito civil, comprometido com as potencialidades transformadoras da Constituição Federal."6 Esse traçado multifuncional da Responsabilidade Civil pode se mostrar útil ao desafio de tutela da personalidade humana inaugurado pela data-driven economy a partir do crescente interesse verificado na doutrina nacional para uma melhor compreensão sobre a restituição derivada de lucros ilícitos, corporificadas normativamente a partir de duas figuras oriundas do common law: o disgorgement (estruturado como a remoção dos lucros ilícitos) e o restitutionary damages (delineado com a restituição dos lucros ilícitos). Em recente obra sobre o tema, Nelson Rosenvald explica que a restituição pelo lucro ilícito é usualmente encarada por meio do modelo fragmentado erigido pelo instituto do enriquecimento sem causa, alicerçado no art. 884 do CC/20027. Em um comparativo com o sistema normativo alemão, o autor sustenta8 que o instituto do enriquecimento sem causa pode funcionar como "[...] fonte de obrigações, apto a ocasionar o exercício da ação in rem verso" em hipóteses de enriquecimento obtido por fato injusto; enriquecimento pela frustração negocial indevida descrita no art. 885 do CC/20029; e o enriquecimento decorrente da prestação de terceiro, hipótese regulada pelo art. 305 do diploma material cível em vigor.10 Adiante, é forçoso reconhecer que o modelo de restituição pelo lucro ilícito, se melhor explorado nos limites da Responsabilidade Civil brasileira, poderá servir como um mecanismo de tutela restitutória em face da apropriação indevida de dados pessoais por meio de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos de IoT. Ora, se mesmo com os escândalos de hackers e coleta não autorizada de dados pessoais o Facebook arrecadou lucro recorde no último trimestre de 2018, alcançando a cifra de US$ 6.800.000.000.000,00 (seis bilhões e oitocentos milhões de dólares)11, a restituição pelo lucro ilícito poderia ser compreendido como uma contribuição adequada da Responsabilidade Civil (i) ao desestímulo gradual da continuidade da atual tecnorregulação da coleta de dados pessoais e (ii) à possível restituição e consequente tutela concreta da privacidade erodida pelas plataformas digitais que protagonizam a atual economia movida a dados. Neste ponto, é necessário sublinhar que o dano caracterizado pelas plataformas digitais possui feições singulares no âmbito da data-driven economy. Ainda que a captura e processamento incessante e não autorizados de dados pessoais atinja interesses juridicamente tutelados (como bem categoriza Anderson Schreiber ao tratar da definição jurídica de dano12), verificados na personalidade humana e privacidade, a mera eficácia indenizativa do ato ilícito não se mostra, a rigor, adequado ao propósito de uma tutela e reparação efetivas. Há que se melhor investigar a projeção da eficácia restitutória derivada dos atos ilícitos praticados em tal âmbito, justamente para que se alcance o contributo acima assinalado. Ponderando sobre a definição de civilização vertida por Mario Vargas Llosa e a tutela da propriedade imaterial, Nelson Rosenvald afirma hipótese que bem se amolda ao cenário da data-driven economy: a ampliação incalculável de possibilidade de novas violações aos direitos da personalidade e o estabelecimento de lucros consideráveis a partir dessas condutas ilícitas. Em suas palavras: A par de todas estas vicissitudes - inerentes à civilização do espetáculo -, comparados aos direitos das propriedades intelectuais, vê-se que os direitos da personalidade apresentam similar necessidade de tutela. Um infinito número de violações é possível, não existe tutela preventiva efetiva e a proteção oferecida pelo direito penal é insuficiente. Ademais da consolidada reparação do dano moral, o resguardo de situações existenciais pode ser implementado por tutelas inibitórias e pretensões desmonetizadas, como retratações e direito de resposta. Todavia, esses remédios são inadequados para levar em consideração o alto nível de proteção que estes direitos demandam. Além disso, consideráveis lucros podem ser produzidos pela violação de atributos intrínsecos à pessoa, em quantias muito superiores aos danos estimados, especialmente pela inerente dificuldade de sua avaliação. Essa combinação de fatores, torna atrativa sob o cálculo matemático a reiteração dessas violações [...]13.  Assim, no estabelecimento da Responsabilidade Civil inserta no sistema normativo fundado na privacidade e esteado no Direito Civil, mostra-se possível identificar na investigação comprometida do instituto estabelecido no art. 884 do CC/2002 a trilha de contributo que possa nos levar ao estabelecimento concreto da restituição do lucro derivado de práticas ilícitas aos titulares dos dados pessoais que tiveram sua privacidade, em sentido além da autodeterminação informativa, erodida. Eis, então, um primeiro passo para (re)pensarmos qual é o papel que a Responsabilidade Civil efetivamente poderá desempenhar na tutela da privacidade compreendida como eixo principal do desenvolvimento da personalidade humana (e de seus direitos correlatos), bem como para o exercício de liberdades por cada sujeito. Referências CORRÊA, Rafael. Os plúrimos sentidos da privacidade e sua tutela: a questão da proteção de dados pessoais e sua violação na atual construção jurisprudencial brasileira. In: FACHIN, Luiz Edson et al [Coords.] Jurisprudência Civil Brasileira. Métodos e problemas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s).Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora,2011. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. ______. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.  WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-DrivenEconomy. Roadmap for usageandexploitationof Big Data in Europe [livro eletrônico]. Springer InternationalPublishing, 2016.  WALDMAN, Ari Ezra. Privacy as Trust. Informationprivacy for aninformation age [livro eletrônico]. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.  ZUBOFF, Shoshana. The Age ofSurveillanceCapitalism. The fight for a human future atthe new frontierofPower [livro eletrônico]. New York: PublicAffairs, 2019. __________ 1 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 333. 2 WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-Driven Economy. Roadmap for usage and exploitation of Big Data in Europe. Springer International Publishing, 2016 [livro eletrônico]. 3 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019 [livro eletrônico]. Já na abertura da obra, Zuboff assim consigna o primeiro verbete definidor do "capitalismo de vigilância": "1. A new economic order that claims human experience as free raw material for hidden comercial practices of extraction, predictions, and sales." Posição 102. 4 MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. 5 Tais perspectivas redundam, inclusive, em alteração da nomenclatura do instituto, passando a ser encarado como "direito de danos" ou "responsabilidade por danos". A perspectiva do giro paradigmático é espelhada com clareza na reflexão de Luiz Edson Fachin: "Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. [...] A imputação tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas." FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 113-114. 6 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 5-6. 7 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.  Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. 8 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 325-328. 9 Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir. 10 Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento. 11 Em ano de crise, Facebook ganha usuários e lucro bate recorde. Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em novembro de 2022. 12 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013. 13 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 437-438.
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Ao longo da atuação da Comissão, um dos pontos mais discutidos foi, sem dúvidas, o da Responsabilidade Civil. A importância deste assunto se deve, sobretudo, ao fato de que o Projeto de Lei 21/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados, previa a adoção preferencial do regime de responsabilidade de natureza subjetiva, o que atraiu forte onda de críticas por parte da doutrina especializada, tendo sido esta discordância uma das razões preponderantes para a própria instalação da Comissão de Juristas. Especialistas ouvidos nas audiências públicas, como Anderson Schreiber, Caitlin Mulholland, Gisela Sampaio e Nelson Rosenvald, apontavam para os perigos de uma regulamentação descuidada do tema, sob pena de se acabar gerando verdadeira fratura no sistema de Responsabilidade Civil brasileiro. Ao mesmo tempo, representantes de inúmeros setores, especialmente daqueles ligados à indústria e ao mercado, se manifestaram na defesa da regulamentação da matéria, a fim de favorecer a segurança jurídica e permitir a criação de um ecossistema de governança mais adequado. Diante de opiniões tão radicalmente contrárias, a opção escolhida pela Comissão parece tender ao equilíbrio. Com nítida inspiração nas recentes propostas de regulamentação do tema pela União Europeia, especialmente na Resolução de 20 de outubro de 2020 do Parlamento Europeu, o anteprojeto busca regular o tema a partir dos riscos gerados pelos diversos sistemas de Inteligência Artificial, evitando o perigo - e a tentação - de conferir resposta única para um problema multifacetado. Se muitos são os sistemas de IA e os riscos a eles associados, muitos devem ser os regimes de Responsabilidade Civil. Da mesma forma, para além deste aspecto objetivo, o anteprojeto faz um recorte subjetivo, diferenciando as soluções de acordo com os sujeitos envolvidos na causação do dano. Atenta-se, assim, para os critérios da tipologia, autonomia, riscos e sujeitos da IA, como já tivéramos a oportunidade de identificar como tendência mundial para o tema ainda no ano de 2019.1 O recorte feito pela Comissão se estrutura, então, em dois aspectos centrais: sujeitos e tipos de IA, a depender do tipo de risco envolvido. Em relação aos sujeitos, o regime de responsabilidade proposto só seria aplicável aos chamados "agentes de IA" (art. 4º, inciso IV), que são, respectivamente, o "fornecedor de sistema de IA" (art. 4º, inciso II) e o "operador de sistema de IA" (art. 4º, inciso III). No entanto, antes de analisar as figuras, necessário dar um passo atrás para compreender o que são sistemas de IA. Na definição do inciso I do art. 4º, sistema de inteligência artificial (IA) é todo "sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real." O conceito - em atenção a críticas feitas por especialistas ao longo das audiências públicas - não se restringe às técnicas de aprendizado de máquina (machine learning), projetando-se, também, para outras técnicas de IA. Em relação aos agentes, tem-se que o fornecedor de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito" (art. 4º, inciso II). Já o operador de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional." No fundo, a figura dos fornecedores se confunde, em grande medida, com a dos desenvolvedores de tecnologias, seja para colocação no mercado, seja para utilização própria, ainda que a título gratuito. Por outro lado, os operadores são aqueles sujeitos que utilizem a tecnologia, desde que não o façam para fins de atividade pessoal de caráter não profissional. Além disso, em seu artigo 29 - e na mesma direção do artigo 45 da LGPD -, o anteprojeto excluiu da incidência do regime criado pela lei as hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo, as quais "permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Como se pode perceber, o anteprojeto optou por uma regulação com âmbito de incidência mais restrito, eis que ficaram de fora, por exemplo, os usuários de IA de caráter não profissional, o Estado - cujo regime de responsabilidade tem sede constitucional -, bem como os fornecedores previstos pelo CDC, ainda que profissionais liberais. Exemplificativamente, o regime previsto no anteprojeto não é aplicável (i) ao proprietário de carro autônomo ou de robô doméstico que cause acidente em atividade não profissional; (ii) ao Estado quando utilize IA e venha a causar danos; (iii) ao hospital que realize cirurgia robótica com IA e cause dano estético ao paciente; e, enfim, (iv) ao médico, quando profissional liberal, que cause dano ao paciente após se valer de alguma ferramenta de IA. Tais situações continuarão sendo regidas pela legislação pertinente, cabendo à doutrina e à jurisprudência a definição dos regimes de responsabilidade aplicáveis a cada hipótese. Por outro lado, o regramento proposto seria aplicável aos contextos de relações interempresariais, quando, por exemplo, uma empresa desenvolva um software de IA para outra e tal software venha a causar algum tipo de dano. Observe-se, contudo, que será preciso, ainda, verificar, no caso concreto, se existe ou não vulnerabilidade apta a atrair a aplicação da legislação consumerista. Há, contudo, situações que estão numa zona cinzenta. Veja-se, nessa direção, o caso do condomínio que utilize sistema de IA e cause dano a condômino. Por certo, não se trataria, em princípio, de relação de consumo, mas ainda haveria dúvidas em relação ao elemento "atividade pessoal de caráter não profissional" para se determinar se o condomínio se enquadraria como operador ou não. Em relação ao recorte objetivo, isto é, os tipos de IA, o artigo 27 diferencia em seus parágrafos 1º e 2º o regime aplicável a depender se o sistema de IA é de alto risco e risco excessivo ou não. Como regra geral, o caput dispõe que: "o fornecedor ou operador de sistema de IA que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema." A reparação integral evidenciada no dispositivo também consta do rol de princípios do anteprojeto, que em seu art. 3º, inciso X, elenca "prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos." Outrossim, a fim de se evitar a irresponsabilização em casos de delegação ou supervisão, o caput traz o aposto explicativo de que os agentes serão responsáveis não importando qual seja o grau de autonomia do sistema de IA. Conforme o parágrafo 1º, "[q]uando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano." E, de acordo com o parágrafo 2º, "[q]uando se tratar de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima." Ou seja: para IAs de alto risco ou risco excessivo, a responsabilidade será objetiva e, em atenção ao nexo de causalidade, dependerá da participação de cada um na causação do evento lesivo, não havendo que se falar em solidariedade. Já em relação aos demais tipos de IA, o regime será de natureza subjetiva, com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima. O artigo 28 destaca, na sequência, que os agentes de IA não serão responsabilizados quando "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA;" e "II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Destaca-se que as excludentes se aplicam para todos os tipos de sistemas de IA, independentemente do risco. Resta, por derradeiro, explicar, resumidamente, as classificações de IA em risco excessivo e alto risco. Em linhas gerais, as IAs de risco excessivo são aquelas proibidas pela lei. No fundo, risco excessivo é o risco inaceitável (utilizando-se a terminologia europeia) e sua disciplina se concentra nos artigos 14 a 16. O artigo 14 traz em seu caput que "[s]ão vedadas a implementação e uso de sistemas de IA: I - que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos deste lei; II - que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei; III - pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional." De nítida inspiração na proposta do AI Act europeu, ficaram de fora, de forma explícita, a proibição a armas letais autônomas e as restrições às deepfakes. No artigo 15, buscou-se disciplinar a vigilância de massa, isto é, o chamado mass surveillance: "Art. 15. No âmbito de atividades de segurança pública, somente é permitido o uso de sistemas de identificação biométrica à distância de forma contínua em espaços acessíveis ao público, quando houver previsão em lei federal específica e autorização judicial em conexão com a atividade de persecução penal individualizada, nos seguintes casos: I -para persecução de crimes passíveis de pena máxima de reclusão superior a dois anos; II - busca de vítimas de crimes ou pessoas desaparecidas; III - crime em flagrante. Parágrafo único. A lei a que se refere o caput deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal e o controle judicial, bem como os princípios e direitos previstos nesta Lei, especialmente a garantia contra a discriminação e a necessidade de revisão da inferência algorítmica pelo agente público responsável antes da tomada de qualquer ação em face da pessoa identificada." Por fim, dispôs o artigo 16 que "[c]aberá à Autoridade Competente regulamentar os sistemas de IA de risco excessivo." Em relação ao alto risco, a disciplina se resume aos artigos 17 e 18. O primeiro traz um rol taxativo: "Art. 17.  São considerados sistemas de IA de alto risco aqueles utilizados para as seguintes finalidades: I - aplicação como dispositivos de segurança na gestão e funcionamento de infraestruturas críticas, tais como controle de trânsito e redes de abastecimento de água e eletricidade; II - de educação e formação profissional, incluindo sistemas de determinação de acesso a instituições de ensino e formação profissional ou para avaliação e monitoramento de estudantes; III - de recrutamento, triagem, filtragem, avaliação de candidatos, tomada de decisões sobre promoções ou cessações de relações contratuais de trabalho, repartição de tarefas e controle e avaliação do desempenho e do comportamento das pessoas afetadas por tais aplicações de IA nas áreas de emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria; IV - avaliação de critérios de acesso, elegibilidade, concessão, revisão, redução ou revogação de serviços privados e públicos que sejam considerados essenciais, incluindo sistemas utilizados para avaliar a elegibilidade de pessoas naturais quanto a prestações e serviços públicos de assistência e seguridade; V - avaliação da capacidade de endividamento das pessoas naturais ou estabelecer sua classificação de crédito; VI - envio ou estabelecimento de prioridades para serviços de resposta a emergências, incluindo bombeiros e assistência médica; VII - administração da justiça, incluindo sistemas que auxiliem autoridades judiciárias na investigação dos fatos e na aplicação da lei; VIII - veículos autônomos quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas; IX - aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos; X - sistemas biométricos de identificação; XI - investigação criminal e segurança pública, em especial, para avaliações individuais de riscos pelas autoridades competentes, a fim de determinar o risco de uma pessoa cometer infrações ou de reincidir, ou o risco para potenciais vítimas de infrações penais ou para avaliar os traços de personalidade e as características ou o comportamento criminal passado de pessoas singulares ou grupos; XII - estudo analítico de crimes relativos a pessoas naturais, permitindo às autoridades policiais pesquisar grandes conjuntos de dados complexos, relacionados ou não relacionados, disponíveis em diferentes fontes de dados ou em diferentes formatos de dados, no intuito de identificar padrões desconhecidos ou descobrir relações escondidas nos dados; XIII - investigação por autoridades administrativas para avaliar a credibilidade dos elementos de prova no decurso da investigação ou repressão de infrações, para prever a ocorrência ou a recorrência de uma infração real ou potencial com base na definição de perfis de pessoas singulares; XIV - gestão da migração e controle de fronteiras." Apesar de taxativo, o rol poderá ser atualizado pela Autoridade Competente, figura esta criada pelo anteprojeto e que deverá ser escolhida em momento posterior. Segundo o artigo 18: "[c]aberá à autoridade competente atualizar a lista dos sistemas de IA de risco excessivo ou de alto risco, identificando novas hipóteses, com base em pelo menos um dos seguintes critérios: a)  a implementação ser em larga escala, levando-se em consideração o número de pessoas afetadas e a extensão geográfica, bem como a sua duração e frequência; b) o sistema puder impactar negativamente o exercício de direitos e liberdades ou a utilização de um serviço; c) o sistema tiver alto potencial danoso de ordem material e moral, bem como discriminatório; d) o sistema afetar pessoas de um grupo específico vulnerável. e)  serem os possíveis resultados prejudiciais do sistema de IA irreversíveis ou de difícil reversão; f) um sistema de IA similar já ter causado danos materiais ou morais; ou g) baixo grau de transparência, explicabilidade e auditabilidade do sistema de IA, que dificulte o seu controle ou supervisão; h) alto nível de identificabilidade dos titulares dos dados, incluindo o tratamento de dados genéticos e biométricos para efeitos de identificação única de uma pessoa singular, especialmente quando o tratamento inclui combinação, correspondência ou comparação de dados de várias fontes; i) quando existirem expectativas razoáveis do afetado quanto ao uso de seus dados pessoais no sistema de IA, em especial a expectativa de confidencialidade, como no tratamento de dados sigilosos ou sensíveis. Parágrafo único. A atualização da lista pela autoridade competente deve ser precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e audiência públicas e de análise de impacto regulatório." Outra norma de grande relevância está contida no artigo 41 do anteprojeto, que se insere na disciplina do ambiente regulatório experimental para inovação (sandbox regulatório) em IA. Segundo o dispositivo: "Os participantes no ambiente de testagem da regulamentação da IA continuam a ser responsáveis, nos termos da legislação aplicável em matéria de responsabilidade, por quaisquer danos infligidos a terceiros em resultado da experimentação que ocorre no ambiente de testagem." A regra, de inspiração imediata em disposição semelhante na Proposta do AI Act europeu tem por finalidade evitar a irresponsabilização por danos no âmbito das sandboxes. Dito diversamente: o fato de haver eventuais atenuações no rigor de normas regulatórias não implicaria a ausência de responsabilidade por danos eventualmente causados. Em linhas finais, cumpre pontuar que o regime de Responsabilidade Civil proposto pelo anteprojeto tem âmbito de aplicação bastante limitado e manifesta clara tendência pela objetivação da responsabilidade, considerados os inegáveis riscos de danos causados pelos sistemas de Inteligência Artificial. Caberá ao Congresso Nacional, em aprofundamento dos trabalhos da Comissão, refletir de modo mais detido em relação a temas como securitização obrigatória e fundos compensatórios, que têm se revelado como tendência global na matéria. E, à doutrina, caberá aprofundar as discussões em relação à gestão de riscos - incluindo precaução e prevenção -, governança, boas práticas e medidas de accountability, à luz dos diversos dispositivos sugeridos pelo anteprojeto. O texto traz, inequivocamente, importantes avanços não apenas em matéria de Responsabilidade Civil, como em outros temas centrais para o desenvolvimento da IA, com a inclusão da pessoa humana em seu epicentro. No entanto, não se trata de um trabalho pronto e acabado, mas de um pontapé inicial para o jogo que recomeça agora no campo do Congresso. E, aproveitando o clima de Copa e a inspiração "galvanesca": segue o jogo, amigo! __________ 1 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed.
Introdução Com mais de 500 mil médicos no Brasil1, a maioria dos acadêmicos e profissionais optam por fazer Residência Médica - com duração de 2 a 5 anos - e tornarem-se especialistas em determinada área do corpo humano. Atualmente o CFM2 reconhece 55 especialidades médicas e 59 áreas de atuação. Dentre as 55 especialidades oficiais existem algumas que ainda podem ser pouco conhecidas pelo público em geral, como a acupuntura, a medicina de emergência ou a medicina preventiva e social. Interessante expor que o CFM não reconhece "medicina estética" e "medicina integrativa" como especialidades médicas. Aos médicos que não cursaram uma residência ou não possuem um título de especialista, a nomenclatura correta é "médico generalista" e não "clínico geral" como comumente são chamados, haja vista que "clínico geral" é o título do médico especialista em Clínica Médica. Pediatria Aqueles que optam por fazer a especialidade mais fofa de todas cursam um programa de residência médica com duração de 3 anos. A pediatria é a opção de 10,1% dos médicos brasileiros e 74,4% deles são mulheres3. Dentre as atribuições de um pediatra está o dever de cuidado, principalmente em casos de suspeita de abusos sexuais e maus-tratos com contra seus pequenos pacientes. Nestes casos cabe ao especialista a notificação obrigatória ao Conselho Tutelar e em alguns casos ao Ministério Público, como dispõe o artigo 13 do ECA4. Mesmo que o público-alvo desses especialistas sejam menores de idade, o Código de Ética Médica enfatiza a importância de manter o sigilo profissional entre o médico e o paciente. Dispõe o artigo 745 que é vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente criança ou adolescente, desde que estes tenham capacidade de discernimento, inclusive a seus pais ou representantes legais, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. Sendo assim, se o pediatra quebrar o sigilo fora das hipóteses que lhe são permitidas, poderá haver responsabilidade civil. Considerando a natureza da atividade do médico pediatra, os erros mais comuns dentro desta especialidade são a negligência e o erro de diagnóstico. A negligência, nas palavras de França6, se caracteriza pelo não fazer, pela inércia, pela indolência e como exemplo podemos citar: não requerer exames pré-operatórios, não requisitar exames complementares, não considerar o relato dos pais/responsáveis ou não fazer perguntas aos pais/responsáveis. Compreendendo que a maioria dos pacientes possuem dificuldade em verbalizar por conta da própria idade, aos pediatras cabe colher informações suficientes dos pacientes e dos pais/responsáveis para fechar um diagnóstico correto. E é então que surge o erro de diagnóstico. Kfouri7 leciona: Sobretudo na Pediatria, quando o paciente, de tenra idade, não pode dizer o que sente - e o médico, muitas vezes, guia-se por observações transmitidas pela mão da criança - o diagnóstico fica ainda mais difícil. O exame do pequeno paciente deve ser minucioso, detalhado, sem descurar o mau mínimo indício que sirva à identificação da patologia. O erro de diagnóstico escusável não gerará dever de indenizar porque não constitui culpa médica. Porém, se o erro for resultado de negligência ou ignorância, haverá responsabilidade civil médica. Ortopedia A ortopedia e traumatologia é a segunda especialidade médica mais masculina de todas, com 93,5% dos médicos homens8, perde apenas para urologia. Outro importante segundo lugar que esta especialidade ocupa é no ranking do STJ das especialidades médicas mais processadas no Brasil, fica atrás apenas da G.O. A ortopedia tem um importante traço: a subespecialização extrema. Só em relação aos membros superiores, podem existir as seguintes subespecialidades: cabeça, pescoço, ombro, cotovelo e mãos. O ortopedista, via de regra, contrai obrigação de meio com seu paciente, mas possui uma importante exceção. Kfouri9 aduz: Isso significa não existir a imposição de curar sempre, de obter êxito em todas as intervenções, mas sim de aplicar os conhecimentos da ciência médica contemporânea, dispensar cuidados atentos e de boa qualidade ao paciente, enfim, de envidar os melhores esforços no sentido de atingir o resultado esperado, mas sem garantia plena de sucesso. Cirurgias como artroplastias, fixação interna de fratura óssea e colocação de próteses são exemplos de procedimentos cirúrgicos comuns para os ortopedistas e consideradas como obrigação de meio. Uma perguntinha rápida: Já quebrou o braço? Já assinou o gesso de um colega que quebrou o braço? Pois bem, a doutrina compreende que a colocação de aparelho gessado é obrigação de resultado, haja vista a simplicidade da tarefa. A ortopedia é uma especialidade majoritariamente cirúrgica e como todas as intervenções no organismo humano apresenta riscos considerados habituais, entre eles: lesão do nervo radial, reoperação e infecções. Kfouri10 sintetiza "na ortopedia cada caso deve ser examinado segundo um modelo abstrato, encontradiço na literatura médica, mas que varia segundo os ditames da ciência, a prática comum ou o que seja desejável, naquele tipo de atividade". Nesta especialidade o erro mais comum consiste no erro de diagnóstico na leitura de exames de imagem e eventual falha na identificação de fraturas. A lógica da indenização segue a mesma: se for escusável não haverá dever de indenizar, contudo, se decorrer de ignorância ou negligência, haverá responsabilidade civil médica. Oftalmologia A visão está entre os sentidos mais importantes do ser humano e ao oftalmologista cabe atuar no cuidado clínico e cirúrgico dos olhos. No país, 3,6% dos médicos optaram por esta especialidade que possui mais de 16 subespecialidades, como por exemplo: retina, catarata, glaucoma, lente de contato, córnea, oncologia ocular entre outras. Dentre os especialistas, 60% dão homens. A obrigação contraída pelo oftalmologista é de meios, não de resultado e vale expor que não se pode comparar a cirurgia destinada a corrigir disfunção visual, ainda que leve, à cirurgia embelezadora. Nesse sentido, alerta Kfouri11: Toda cirurgia realizada no olho, seja na parte externa, câmara média ou posterior, envolve risco ao paciente, que deve ser alertado sobre tal circunstância, e a finalidade da intervenção é o ganho funcional, a melhora da acuidade visual. A catarata é a maior causa de cegueira no Brasil, por isso está entre as cirurgias oftalmológicas mais comuns no país. Este procedimento cirúrgico consiste em substituir o cristalino opaco pelo implante de uma lente intraocular com o uso de laser. Mesmos nesses casos não há que se falar em obrigação de resultados, continua sendo uma obrigação de meio. Uma questão de ordem prática consiste em responder duas perguntas curiosas: 1. O oftalmologista pode ser dono de uma ótica? 2. O oftalmologista pode indicar uma ótica específica? A resposta é não para ambos os questionamentos e estão, respectivamente, respaldadas nos artigos 12 e 16 da lei 24.492/34. Considerações finais Nota-se que a maioria dos médicos brasileiros optam por tornar-se especialista e que cada especialidade médica exige do especialista cuidados próprios que variam conforme o perfil do seu paciente. A escuta atenciosa e a anamnese completa continuam sendo meios importantes para chegar a um diagnóstico correto. A obrigação nas três especialidades médicas aqui citadas são de meio, como aduz a regra geral dentro da responsabilidade civil médica, a exceção do procedimento de colocação tala gessada dentro da ortopedia. Yasmin Folha Machado é Professora universitária. Advogada. Doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas dirigido pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Referências bibliográficas KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. __________ 1 SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 2 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 3 SCHEFFER, M. et al., p. 69 4 Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. 5 RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 6 P. 259 7 KFOURI, 2019, p. 252 8 SCHEFFER, M. et al., p. 72 9 KFOURI, 2021, p. 363 10 2021, p. 364. 11 2021, p. 369
Resenha: Este artigo apresenta críticas ao PL 2856/2022, do Senado Federal, que propõe incluir no CDC a regulamentação do "desvio produtivo do consumidor". O texto dialoga criticamente com a obra de Marcos Dessaune, autor da "teoria do desvio produtivo do consumidor", e aponta uma série de falhas do projeto, esperando assim contribuir para seu aperfeiçoamento. Tive minha atenção recentemente chamada para um projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, "para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor". Li o projeto e o considerei muito ruim. Daí esse breve trabalho, destinado a apresentar minhas críticas ao texto projetado.1 Inicio descrevendo o projeto, que é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto ("Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor") e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção ("Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor"), formada pelos arts. 25-A até 25-F). Pois já tenho, aqui, uma crítica, de ordem terminológica: fala o texto do projeto em "desvio produtivo do consumidor". E essa expressão é equivocada. Vale registrar, porém - e antes de tudo - que a expressão só aparece na epígrafe da Seção que se pretende acrescentar ao texto do Código de Defesa do Consumidor, não sendo empregada em nenhum dos artigos projetados. A expressão "desvio produtivo" tem sido empregada para fazer alusão à lesão sofrida por alguém que tem de gastar parte de seu tempo para resolver (ou tentar resolver) um problema causado por outro sujeito de uma relação jurídica, especialmente em relações de consumo. O autor da expressão assim se refere ao fenômeno: "evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa".2 E sobre a expressão, diz Dessaune: "Inicialmente, denominei o fenômeno socioeconômico em análise "desvio dos recursos produtivos do consumidor", por ser um nome mais completo e autoexplicativo. Porém, a necessidade de dispor de um nome menor e mais simples, tanto para o título do livro quanto para as inúmeras citações ao longo da obra, levou-me a simplificá-lo e a reduzi-lo para "desvio produtivo do consumidor". Note-se, contudo, que nessa nova expressão cunhada não empreguei o adjetivo "produtivo" para qualificar o desvio do consumidor como sendo um ato "producente" ou "improducente". Diversamente, utilizei tal adjetivo em sua acepção de "relativo à produção", indicando tão somente que, em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos "que produzem" (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".3 O fato de o criador da expressão ter de explicar que ao falar em "desvio produtivo" não emprega o adjetivo produtivo para qualificar o substantivo desvio já é suficiente para mostrar como a expressão é falha. E ainda afirma que o fez em razão de uma suposta "necessidade de dispor de um nome menor e mais simples". Com todas as vênias, mas ciência não se faz por simplificações, ainda que terminológicas. Vale, aqui, a mesma afirmação que - sobre a expressão "exceção de pré-executividade" - fez José Carlos Barbosa Moreira: "Está claro que o ponto não interessará a quem não dê importância à terminologia - a quem suponha, digamos, que em geometria tanto faz chamar triângulo ou pentágono ao polígono de três lados, e que em anatomia dá na mesma atribuir ao fígado a denominação própria ou a de cérebro. Mas - digamos com franqueza - tampouco interessará muito o que esses pensem ou deixem de pensar".4 Mesmo depois da explicação dada pelo autor da expressão, porém, as coisas não melhoram. Diz Dessaune que usou o adjetivo produtivo no sentido de "relativo à produção", para indicar que, "em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos 'que produzem' (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".5 O que se percebe, então, é que o adjetivo produtivo estaria a qualificar o substantivo (omitido na expressão) recursos. Haveria, portanto, um desvio de recursos produtivos do consumidor, especialmente de seu tempo. É preciso considerar, porém, que não só o tempo "produtivo" pode ser perdido quando se tenta resolver um problema como esses descritos pelo autor da expressão. Aliás, para a imensa maioria da população brasileira, o tempo a ser empregado na tentativa de resolução de problemas causados por fornecedores é, exatamente, um tempo que não seria dedicado a atividades produtivas, já que as pessoas em geral não podem simplesmente dedicar parte do tempo que dedicam a suas atividades profissionais para isso. É no tempo de folga, que poderia ser dedicado a atividades nada produtivas, que em geral se pode tentar resolver esses problemas. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Esse texto pretende ser um diálogo com as ideias sobre o tema de Marcos Dessaune, autor da assim chamada "teoria do desvio produtivo do consumidor" e integrante da comissão responsável pela redação do anteprojeto que resultou no projeto de lei aqui criticado. Ao aludido autor, de cujas ideias divirjo, fica aqui a manifestação de meu respeito, convencido de que é pelo confronto de ideias, especialmente das divergentes, que a Ciência Jurídica pode evoluir. 2 DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 15-16. 3 Idem, pág. 23, nota de rodapé n. 19. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Exceção de Pré-Executividade: uma denominação infeliz. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 121. 5 DESSAUNE, op. cit., pág. 23, nota de rodapé n. 19.
O reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo (CDC, art. 4º, I) e fator diferenciador da legislação brasileira no âmbito do direito comparado. Trata-se de fundamento dogmático das relações de consumo, premissa que tanto justifica quanto orienta e conforma a proteção dos consumidores a partir da sua base constitucional1 de valorização da pessoa2 e suas normas de ordem pública e interesse social estabelecidas em favor do consumidor. A primeira inovação nesse tema é que com a atualização trazida pela Lei 14.181/2021, uma gradação da vulnerabilidade do consumidor, já reconhecida pela doutrina3, foi incorporada à legislação (a exemplo do disposto no CDC, art. 54-C, IV), preferindo-se a expressão proposta por Bruno Miragem, vulnerabilidade agravada. No contexto do Mercosul, incorporou-se a noção de hipervulnerabidade de algumas categorias de consumidores. O bloco consagrou um importante passo na defesa do consumidor com a aprovação da Resolução 11/2021, sobre a proteção ao consumidor hipervulnerável, que resolve: "Art. 1° - Considerar como consumidores em situação de hipervulnerabilidade as pessoas físicas com vulnerabilidade agravada, desfavorecidos ou em desvantagem por razão de sua idade, estado físico ou mental, ou circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais que provoquem especiais dificuldades para exercer com plenitude seus direitos como consumidores no ato concreto de consumo que realizarem. A presunção de hipervulnerabilidade não é absoluta e deve ser atendida no caso concreto, em função das circunstâncias da pessoa, tempo e local."4-5 Cada Estado deverá adotar internamente de maneira gradual medidas tendentes a, por exemplo, implementar políticas de orientação, assessoramento, assistência e acompanhamento aos consumidores hipervulneráveis quanto às reclamações no âmbito das relações de consumo, proteger contra publicidade e ofertas enganosas ou abusivas e promover a proteção de dados e intimidade desses consumidores, dentre outras. Instrumentos e mecanismos que reassegurem o equilíbrio nas relações de consumo são imperiosos e consistem, por exemplo, no acesso a meios adequados de resolução de litígios e de facilitação da instrução probatória em favor do consumidor.6 A efetividade da tutela de direitos perpassa a identificação de fatores socioeconômicos que interferem nas relações humanas. A vulnerabilidade7 não é uma característica reservada aos consumidores, mas um fenômeno social, presente em diversas esferas. Um de seus efeitos é o regime de dependência e a erosão da autonomia. Esses temas são estudados por Martha Fineman, para quem  a vulnerabilidade deve resultar em medidas responsivas do Estado.8 A igualdade que é assegurada pela lei9 ainda não é suficiente para alcançar a efetividade dos seus efeitos nos mercados. Vive-se um cenário de vulnerabilidade estrutural, de dependência recíproca entre agentes e instituições sociais e a sua mitigação perpassa a compreensão de que a noção de homem médio - geralmente imaginado em uma versão "Brooks brothers" do sujeito de direitos - está muito distante da realidade. Um estudo de Siciliani, Cristine Riefa e Gamper apresenta quatro theories of harm (scam, lemon, schock, subsidy), ou teorias sobre os danos causados aos consumidores, que acentuam a sua vulnerabilidade e demandam providências no âmbito do Direito10. É interessante perceber a gradação feita pelos autores, que bem destacam que parte das pessoas não é suscetível a alguns dos riscos identificados, diferenciando as pessoas mais ingênuas ou com diversas camadas de vulnerabilidade. Essa percepção é especialmente importante para o julgador e para o intérprete da legislação. A primeira delas é a teoria do golpe, que descreve situações em que consumidores ingênuos são deixados à mercê de fornecedores injustos. Eles não percebem o risco de que o produto ou serviço oferecido possa ser inútil. No esquema, a demanda é totalmente injustificada e os falsários competem para enganar. Os exemplos tradicionais incluem esquemas em pirâmide, falsas loterias ou sorteios de prêmios, ou falsas reivindicações médicas. Nessas situações, o máximo prejuízo financeiro é experimentado por uma categoria de consumidores mais vulneráveis. Nem os consumidores sofisticados nem as empresas justas querem negociar nesses falsos "mercados". Como eles podem evitá-los, não há incentivos suficientes para que empresas injustas melhorem a maneira como operam. A segunda teoria, do limão (que nos remete aos market for "lemons"11), os consumidores não podem realmente julgar a qualidade do que é oferecido. Isto diz respeito principalmente à falta de experiência ou aos bens de crédito. Consumidores sofisticados e empresas em conformidade com a legislação querem ser ativos no mercado, mas a presença de consumidores ingênuos e empresas injustas pode implicar em riscos à concorrência, por vezes fazendo com que ambos se retirem do mercado. Exemplos tradicionais incluem carros, relógios, serviços de reparos. A assimetria informacional é o fator preponderante nesse contexto, que acentua a vulnerabilidade dos consumidores. A terceira teoria, do "choque", retrata as diferenças de resultados (e prejuízos) quando consumidores ingênuos e sofisticados são confrontados com o mesmo uso generalizado de práticas enganosas, mas os consumidores sofisticados são capazes de detectar as tentativas dos comerciantes de enganar. Esta teoria do dano se aplica principalmente aos atributos de busca (como preço ou termos e condições). O choque é sentido apenas por consumidores ingênuos que não detectaram a prática desleal e exemplos típicos incluem preços diferenciados e cláusulas contratuais abusivas, inclusive as restritivas de responsabilidade. É nesse contexto que as dark patterns ou práticas deceptivas são alocadas. Não há uma definição unânime sobre o que são os padrões comerciais deceptivos ou dark patters, que "são usados por algumas empresas online para coagir, dirigir ou enganar os consumidores a tomarem decisões não intencionais e potencialmente prejudiciais."12 Também conhecidas como práticas de design enganosas, as dark patters podem ser descritas como "truques usados em sites e aplicativos que fazem você fazer coisas que você não queria fazer, como comprar ou se inscrever para algo"13. Vários exemplos destas práticas que atraem os consumidores (e não se confundem com de nudges ou técnicas de neuromarketing) são listados por organizações preocupadas com a segurança de ambientes online.14 Estudos mais recentes de dark patters confirmam os efeitos que essa arquitetura de escolhas causa aos consumidores. O crescente uso de dados pessoais tem acentuado a vulnerabilidade dos consumidores e incrementando os riscos de danos. Os preços personalizados (que utilizam as informações coletadas sobre um consumidor ou um subconjunto de consumidores para oferecer um preço diferente daquele ao qual o consumidor estaria sujeito se tivesse pegado o produto em uma prateleira física) podem colocar uma barreira extra aos consumidores. Se todos os preços são personalizados, há um obstáculo a mais para o consumidor saber quais preços são propostos a outros consumidores e identificar se lhe está sendo cobrado um valor justo ou adequado. Mas as práticas de preços discriminatórios são prejudiciais não apenas aos consumidores, mas também aos fornecedores comprometidos com um tratamento justo no mercado de consumo. A mera proibição da prática comercial não se revela como medida suficiente para conter os danos aos consumidores de maneira eficaz.15 Da mesma forma, o mero alerta acerca do uso de decisões automatizadas não alcança todos os consumidores.16 A aplicação das sanções administrativas conhecidas no microssistema de defesa dos consumidores em conjunto com as dispostas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018) pode ser um incentivo à conformidade, mas depende da identificação e comprovação da prática comercial abusiva, o que é bastante difícil nos mercados. No relatório da OCDE, sugerem-se como medidas alternativas: exigir que a empresa obtenha a permissão dos consumidores para usar seus dados pessoais para personalizar os preços, informando-os que os preços ou descontos oferecidos são personalizados e como foi calculado (incluindo as informações pessoais que foram usadas para definir o preço). Além disso, sugere-se que a empresa publique um preço uniforme listado para todos os consumidores que desejem optar por não personalizar os preços.17 Por fim, na teoria do "subsídio", há um desequilíbrio do mercado e surge o risco de os consumidores ingênuos serem discriminados pela generalidade dos comerciantes, com consumidores sofisticados se beneficiando dessa exploração. A falta de previsão ou disciplina por parte dos consumidores ingênuos significa que os comerciantes desleais são capazes de cobrar taxas elevadas - muitas das quais os consumidores sofisticados podem evitar -, sendo assim subsidiados por consumidores vulneráveis. Isto inclui, por exemplo, taxas adicionais ou multas. No Brasil observava-se um subsídio cruzado entre consumidores de maior e menor renda no que concerne as formas de pagamento. A proibição de cobranças de preços diferentes em razão da modalidade de pagamento persistiu até 2017, quando uma medida provisória, posteriormente convertida na Lei n. 13.455/2017, autorizou a diferenciação. Consumidores mais pobres, que não tinham acesso a crédito, pagavam mais por produtos ou serviços em razão dos custos acrescidos pelo amplo uso cartão de crédito por outra parcela da população. Até hoje, no setor bancário, os exemplos são abundantes, a começar pela isenção de inúmeras taxas, tarifas e anuidades com que investidores maiores são beneficiados, o que revela o custo acrescido da pobreza. Para a mitigação dos efeitos da assimetria informacional aos consumidores, buscam-se ferramentas jurídicas e tecnológicas, que promovam um ambiente de negócios fair by design. A percepção das múltiplas camadas e graus de vulnerabilidade que cometem os consumidores é um convite a todos os leitores desta reconhecida e importante coluna do IBERC para uma reflexão conjunta sobre as nossas pesquisas e políticas. Referências ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020. BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. MARQUES, Claudia Lima Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. SICILIANI P, RIEFA C, GAMPER H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível em: https://darkpatterns.uxp2.com/. Ambos acessados em 20 de março de 2022. __________ 1 MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 43, p. 111-132, jul./set., 2002. 2 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Pessoa, personalidade, conceito filosófico e conceito jurídico de pessoa: espécies de pessoas no direito em geral. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 118, p. 281-291, Jul./Ago, 2018. 3 A concepção de hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade exacerbada é explicada nos escritos de Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Cristiano Heineck Schimitt (Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 65.), Marcelo Schenk Duque (O dever fundamental do estado de proteger a pessoa da redução da função cognitiva provocada pelo superendividamento. Revista de Direito do Consumidor, v. 94,  Jul.-Ago., 2014. p. 157-179.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores. 4 MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível em: https://normas.mercosur.int/public/normativas/4116. Acesso em: 25 abr. 2022. 5 A Resolução elenca como hipervulneráveis: "a) ser criança ou adolescente; b) ser idoso, conforme a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos; c) ser pessoa com deficiência; d) ter a condição de pessoa migrante; e) ter a condição de pessoa turista; f) pertencer a comunidades indígenas, povos originários ou minorias étnicas; g) encontrar-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica; h) pertencer a uma família monoparental a cargo de filhas/os menores de idade ou com deficiência; i) ter problemas graves de saúde." (MERCOSUL. Resolução 11/2021. Proteção ao Consumidor Hipervulnerável. Disponível aqui. Acesso em: 25 abr. 2022.) 6 BERGSTEIN, Laís Gomes. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 93-94. 7 Conceito multifacetado complexo que comporta diferentes interpretações - conf. KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017 -, mas que no Brasil orienta e conforma o microssistema de proteção dos consumidores. 8 FINEMAN, Martha. The Autonomy Myth: A Theory Of Dependency. New Press, 2004. 9 FINEMAN, Martha. The Vulnerable Subject and the Responsive State. 60 Emory L.J. 251 (2010-2011). 10 Siciliani P, Riefa C and Gamper H (2019). Consumer Theories of Harm - an Economic Approach To Consumer Law Enforcement and Policy Making. Hart Publishing, Oxford: 111. 11 Veja: ALVES, Mariana Domingues; LIMA, Cintia Rosa Pereira de; BERTRAN, Maria Paula. "The market for (real) lemons": a assimetria de informação e a rotulagem de alimentos alergênicos, orgânicos e vegetarianos no brasil. São Paulo, Revista de Direito do Consumidor, v. 127, p. 199-233, Jan./ Fev., 2020.  12 OCDE. Draft Agenda: Committee on Consumer Policy (CCP) 99th Session - Part II. Roundtable on dark commercial patterns online. 13 Deceptive Design: formerly darkpattersns.org. Design enganoso: antigamente darkpattersns.org. Disponível aqui.  Acesso em 20 de março de 2022. 14 Veja: The Hall of shame of  Deceptive Design. (O Salão da vergonha do design enganoso). Disponível aqui. Ou a pesquisa do UX Design disponível aqui. Ambos acessados em 20 de março de 2022. 15 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. 16 Sobre o tema, veja a tese de doutoramento de Guilherme Mucelin, defendida perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, orientada pela Profª Drª Sandra Regina Martini e intitulada "Direito de validação das decisões individuais automatizadas baseadas em perfis de consumidores". 17 (OECD (2018). Personalised Pricing in the Digital Era. Note by the United Kingdom (28 November 2018) DAF/COMP/ WD (2018) 127, 9, para 25. In the United Kingdom, under the application of the Consumer Contracts (Information, Cancellation and Additional Charges) Regulations 2013 implementing the Consumer Rights Directive, the sanction for non-disclosure of this information would be breach of statutory duty (Reg 18) and /or breach of contract.)
A resposta à pergunta que intitula este artigo define os rumos da política criminal de um país e impacta diretamente no comportamento social de sua nação. As normas jurídicas e seus operadores devem buscar que a resposta a tal questionamento seja sempre negativa, de modo a garantir a obediência das leis pelos cidadãos. Nesse contexto, surge a lei 14.470/22, com menos de 1 semana de vigência, mas com mais de 5 anos de trajetória legislativa. Fruto do PL 11.275/18, originário do PLS 283/16, a nova lei altera a Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) para recrudescer a política de combate às violações à ordem econômica. Importante ressaltar que as infrações à ordem econômica impactam fortemente a população, pois seus efeitos tendem a atingir de milhares a milhões de vítimas, tanto que a proteção à concorrência e ao consumidor está prevista na Constituição Federal e muitas de tais infrações são também consideradas crimes, conforme texto da lei 8.137/90. E como a nova lei poderá mudar o equilíbrio entre incentivos e desincentivos à prática de infrações concorrenciais? Novamente, devemos retornar à pergunta inicial: o crime compensa? Tratando-se de crimes econômicos no Brasil, a resposta até o momento é: SIM. Isso porque os infratores não devolvem às vítimas os ganhos obtidos ilicitamente. Apesar de existirem inúmeras demandas individuais e coletivas, além de ações civis públicas, que visam a reparação dos prejudicados por cartéis (pior das infrações à concorrência) e outras condutas de abuso de poder econômico, não há no Brasil ainda uma condenação final em favor das vítimas de qualquer um dos grandes cartéis condenados pelo CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. São muitas as dificuldades enfrentadas pelas vítimas na busca pela indenização de seu prejuízo e a lei recém-promulgada auxiliará no enfrentamento de algumas dessas questões. Destacam-se 3 temas principais do texto da lei 14.470/22: a criação do dano em dobro; a harmonização do prazo prescricional e a data inicial de sua contagem; e a vedação expressa à presunção de repasse do dano. A nova lei determina que todos os prejudicados por infrações à ordem econômica terão direito ao ressarcimento em dobro por seu prejuízo. É o chamado double damage, que tem como paralelo internacional o treble damage, previsto pela legislação americana para as infrações de cartel, entre outras. No ordenamento pátrio também não é novidade, visto que a pena civil ocorre em outras situações, como nos casos do segurador de má-fé, do cobrador de dívida já paga e do construtor invasor de má-fé1. A importância dessa previsão legal não reside apenas no fato (óbvio) de ressarcir em dobro a vítima das infrações concorrenciais, mas principalmente em gerar grande desincentivo à prática do ilícito. A persecução privada dos danos concorrenciais é essencial para complementar a iniciativa pública de punição dos infratores, pois torna o ilícito financeiramente inviável. Na medida em que o violador devolve todo o lucro que obteve com sua prática infratora e ainda paga uma multa ao Estado, ele passa a ter prejuízo com o ilícito. Mas ainda há potenciais ganhos derivados do fato de que a taxa de detecção das violações pelo Estado é inferior a 100% e que também são poucas as vítimas que buscam o ressarcimento por seus danos, por diversos motivos. Assim, a implementação do dano em dobro equilibra a situação. De outro lado, a nova lei também não descuida dos incentivos à própria descoberta dos ilícitos, ao usar o dano em dobro também como medida de aumento do incentivo à confissão das infrações por seus agentes. Tal efeito é obtivo pelo fato de o recente diploma excluir a imposição do dano em dobro para os signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação de prática com a autoridade de defesa da concorrência, bem como gerar uma excludente da responsabilização solidárias em benefício dos mesmos. O segundo ponto de importância da lei é a definição expressa do prazo e termo inicial da prescrição. Antes da promulgação da lei em comento, o prazo prescricional era dúplice, sendo de 5 anos para as vítimas enquadradas no conceito de consumidor do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e de 3 anos para as demais vítimas, conforme previsão do artigo 206, §3º, V do Código Civil. A partir de agora, todas as vítimas estão sujeitas ao prazo quinquenal. A nova lei também elimina em definitivo eventual dúvida que ainda houvesse sobre a interpretação legal do prazo inicial para a contagem da prescrição. O Tribunal de Justiça de São Paulo (perante o qual tramita a grande maioria das demandas de indenização por dano concorrencial do país) já havia consolidado o entendimento de que a data da publicação da decisão final do CADE demarca o termo de início da contagem da prescrição2, seguindo o entendimento das normas e decisões internacionais3. A nova lei, portanto, não inova, mas confirma a interpretação já adotada para a legislação vigente, na medida em que determina que a contagem do prazo prescricional só pode ser iniciada quando ocorre a ciência inequívoca do ilícito pela vítima (em respeito à já consagrada teoria da actio nata) e indica de modo expresso que tal ciência ocorre somente no momento da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE. Ainda, a nova lei determina expressamente que o repasse do sobrepreço não pode ser presumido e estipula que o ônus da prova de tal alegação é do réu, ou seja, do agente que infringiu a norma concorrencial. Novamente, o tema era objeto de muita discussão nos tribunais brasileiros e a solução podia ser obtida a partir da intepretação das normas já vigentes nos Códigos Civil e de Processo Civil. Contudo, a inclusão do §4º no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência é de grande importância para eliminar qualquer dúvida e definir cabalmente a regra processual aplicável. O uso da teoria do repasse dos danos pelos infratores é fonte de grande protelação processual e criava grandes dificuldades às vítimas, que não podiam ter acesso aos dados econômicos de formação de preço de toda a cadeia produtiva. Novamente, a solução trazida pela nova lei se alinha com as legislações americana e europeia, mantendo o Brasil na vanguarda da regulação sobre o tema. Por fim, vale dizer que o PL 11.275/18 previa em seu texto final a obrigatoriedade da inserção de cláusula arbitral nos acordos celebrados pelo CADE (seja leniência ou termo de cessação de conduta), de modo a delegar à vítima a escolha de qual procedimento utilizar para conduzir sua demanda (judicial ou arbitral), mas foi vetado pela Presidência da República. Certamente, a arbitragem traria impulso ainda maior às iniciativas de indenização dos danos concorrenciais, em razão da maior celeridade e tecnicidade de tal procedimento em comparação ao processo judicial. Mas tal veto não retira o brilho da lei 14.470, que nasceu vocacionada para mostrar que a partir de agora, no Brasil, o crime econômico certamente não compensa. ___________ 1 Vide artigos 773, 940 e 1.259 do Código Civil. 2 Vide decisões nesse sentido: TJ/SP - Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP - Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP - AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP - AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP - Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020.   3 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia (artigo 10º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho) e nos EUA (Clayton Act 15 U.S.C. § 16(i)) asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da concorrência. ___________ *Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Doutor, mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pela Análise Advocacia, pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior.
1 Introdução Nos últimos anos tem-se visto um aumento na busca por tratamentos faciais e corporais. Ao mesmo tempo, observa-se que os profissionais da saúde, notadamente, para fins deste artigo, da medicina e da odontologia, têm se dedicado bastante a métodos e técnicas de harmonização facial e corporal, seja para fins estéticos ou por motivos de saúde ou funcionais. Em tempos de hiperexposição nas redes sociais, em que se fala em tom de brincadeira que "só vale se postar", médicos e dentistas demonstram anseios pelo direito de divulgar resultados de tratamentos nas mídias sociais como forma de publicizar os procedimentos e técnicas que colocam a disposição dos pacientes, deparando-se com conflitos éticos e legais no que concerne à violação de direitos da personalidade e suposta mercantilização da profissão. Ambos os conselhos se manifestaram a respeito. 2 O atual estado da arte sobre divulgação de fotos de pacientes no Conselho Federal de Medicina O Conselho Federal de Medicina (CFM) enfrentou a matéria na resolução 2.126/15, que altera a resolução 1.974/2011, e estabelece critérios para a propaganda em medicina. Esta última norma, inclusive, dispõe, acertadamente, em seu texto que a publicidade médica deve ter fins educativos, diferenciando-se de anúncios de produtos e práticas comerciais.  Com efeito, a vida e o corpo humanos não são mercadorias, assim como não devem ser mercantilizados os cuidados com a pessoa. Reside aí a diferença entre se falar em "preço" e "valor" quando se faz menção ao ser humano na concepção kantiana de dignidade1. A res. 2.126/15 estabelece, na exposição de motivos, preocupação com o que chamou de "mudança avassaladora" ocasionada pelos avanços tecnológicos das mídias sociais, que passaram a permitir postagens imediatas, muitas vezes feitas por impulso, sem a necessária reflexão sobre abordagens e consequências, e que vieram a ocasionar "uma avalanche de demandas" nos conselhos ético-profissionais da área médica. Desta feita, considerando, inclusive, a proteção constitucional à vida privada, honra, e imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88), alterou o art. 13 da res. 1.974/11 para inserir a proibição à publicação de imagens de "antes e depois" de procedimentos. Mais do que isso, para garantir que os fins estabelecidos nas normas de ética médica sejam cumpridos, estabelece que a publicação reiterada de imagens de "antes e depois" por pacientes e terceiros, bem como elogios repetidos com frequência devem ser investigados pelos Conselhos Regionais de Medicina. A regra é clara no sentido de trazer um tratamento voltado a impossibilitar que a norma seja burlada de maneira indireta. Em que pese as não raras publicações de resultados de antes e depois de procedimentos que se pode ver nas redes sociais, e eventuais decisões favoráveis à prática de publicidade por médicos em juízo de primeira instância, o CFM tem logrado êxito e reverter decisões desse tipo em segunda instância e segue firme na defesa das normas éticas. Todavia, o tema está longe de ser pacificado e, não obstante nossa opinião em sentido contrário, considerando o risco que pode representar a mercantilização da saúde e uma eventual corrida em busca de resultados prometidos por profissionais2, é possível que haja mudanças de entendimento, a exemplo do que aconteceu no Conselho Federal de Odontologia. 3 Análise da Resolução 196/2019 do Conselho Federal de Odontologia O Conselho Federal de Odontologia (CFO), historicamente, dispunha de tratamento similar ao aplicado pelo Conselho Federal de Medicina no que diz respeito à publicidade. Do mesmo modo que o CFM, o CFO também rechaça a mercantilização da profissão e traz disciplina ética contrária a ver o paciente como "fatia de mercado". O ser humano é muito mais do que isso. No entanto, recentemente, o CFO, por meio da Resolução 196/2019, adotou posicionamento mais moderado a respeito da divulgação de fotos e resultados de tratamentos odontológicos nas redes sociais por profissionais da odontologia. Com efeito, a norma de 2019 considera o destaque que as mídias sociais têm conquistado como canais de divulgação dos temas mais diversos, dentre os quais se incluem temas e trabalhos odontológicos. Diante disso, considera imperiosa a "necessidade de se regulamentar os critérios de uso de expressões, imagens e outras formas que impliquem na divulgação da odontologia, dos cirurgiões-dentistas e dos tratamentos odontológicos". Observa-se, portanto, que diante da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de evitar a utilização das redes sociais para divulgar imagens de diagnósticos e resultados, o CFO preferiu atender aos apelos da classe e disciplinar a matéria. Apesar das críticas, pertinentes, à época, no sentido de que a Resolução 196/2019 seria incompatível com o Código de Ética Odontológica, que só permite a publicação de imagens de "antes e depois" para fins acadêmicos, não se pretende analisar esta abordagem no presente artigo. Pretende-se, aqui, analisar especificamente a tutela de direitos da personalidade na norma em comento. A esse respeito, mister ressaltar que a redação da Res. 196/2019 do CFO, ainda na parte dos "considerandos", reconhece que o direito à imagem é tutelado no ordenamento jurídico brasileiro com o status de direito fundamental pela Constituição Federal, e também pelo art. 20 do Código Civil, que disciplina a necessidade de autorização para divulgação da imagem de terceiros. Percebe-se, pois, que apesar do risco de mercantilização da profissão, o CFO permite a divulgação de autorretratos e de imagens de "antes e depois", mas desde que haja prévia e expressa autorização do paciente no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme dispõe os arts. 1º e 2º: Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. [...] Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. (Grifos nossos) Cumpre ressaltar que, conforme disciplina o artigo 3º da mesma resolução, a exceção de publicações científicas com a devida autorização, é vedada a publicação de fotos e vídeos do transcurso ou realização dos procedimentos odontológicos.  Ocorre que, apesar da Resolução do CFO ser muito clara sobre a necessidade de autorização prévia e expressa do paciente no TCLE, aparentemente muitos profissionais estão desconsiderando a segunda parte dos dispositivos supracitados (arts. 1º e 2º), além de desconsiderar completamente o artigo 3º da Resolução, posto que não são raras as ocasiões em que se observa divulgação de fotos e vídeos produzidos durante a realização de procedimentos. 4 A proteção do direito à imagem no ordenamento jurídico brasileiro É compreensível que o profissional se sinta envaidecido ou orgulhoso ao final de um trabalho bem sucedido, mister quando se traz satisfação pessoal ou maior e melhor qualidade de vida ao paciente, quando o procedimento, para além de resultados estéticos, tinha por objetivo corrigir distúrbios funcionais, como dificuldade de mastigação ou alterações na fala corrigidos após tratamentos ortodônticos e cirurgias ortognáticas. Todavia, por mais que o profissional se sinta "autor" daquele corpo ou, no caso dos cirurgiões dentistas, daquela face, não é de uma pintura ou escultura que se está a falar. O médico ou dentista não é autor de uma obra de arte sobre a qual detém os direitos autorais e, consequentemente, possibilidade de divulgar os resultados conforme sua vontade. Trata-se, o paciente, de uma pessoa, de um ser humano com valores ontológicos e cuja existência, em sua completude, é digna de respeito. Os direitos da personalidade que estão postos em tela, portanto, são outros, dizem respeito aos direitos de imagem daquele(a) que está se submetendo ao tratamento médico ou odontológico. Na lição do professor Paulo Lôbo, o direito à imagem se trata da reprodução da figura humana no todo ou em parte, cuja exposição não autorizada é repelida3. De fato, a Constituição Federal de 1988 tutela o direito à imagem na qualidade de direito fundamental, no art. 5º, X, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] (Grifos Nossos) Cumpre salientar, ainda, que o Código Civil atual cuidou dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21, tratando especificamente do direito à imagem no art. 20, onde resta claro que a divulgação ou reprodução da imagem de terceiros só é permitida se autorizada. Fala-se aqui da imagem externa da pessoa (retrato ou efígie), uma vez que a imagem atributo é tutelada pela garantia constitucional de proteção à honra. A partir da análise dos dispositivos da CF/88 e do Código Civil de 2002, compreende-se que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a divulgação não autorizada de fotos do paciente é passível de indenização por dano moral. Concorda-se com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald quando eles afirmam que decorre o dano moral da "simples e objetiva violação a direito da personalidade"4. Com efeito, a Constituição brasileira de 1988 tratou de ambos os institutos em conjunto no art. 5º, inciso X. Deve-se concluir, com Paulo Lôbo, que a "interação não é ocasional, mas necessária" (LÔBO, 2001, pág. 79). Observa-se que os "direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, possuem a mesma natureza do dano moral, também não patrimonial"5. Corroborando com este entendimento, a súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça disciplina que: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais". 5 Conclusões Em suma, eventuais permissões de divulgação de imagens de pacientes por normas éticas de conselhos profissionais só podem acontecer em consonância com o que disciplina a lei (Código Civil) e a Constituição Federal. Eventual permissão de divulgação de imagens de diagnóstico e resultado pelo CFM, notadamente fotos de "antes e depois", devem se adequar à proteção legal e constitucional, respeitando o direito de escolha do paciente, que deve autorizar expressamente em TCLE. A resolução 196/19 do CFO está adequada ao que diz o texto Constitucional e o CC/2002, uma vez que a divulgação de "antes e depois" só é permitida mediante autorização prévia do paciente em TCLE. Os profissionais, portanto, devem se adequar à resolução caso queiram utilizar fotos de pacientes para divulgar seus métodos e técnicas nas redes sociais, sendo a divulgação não autorizada passível de indenização por dano moral decorrente de violação de direito à imagem. _________________ *Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa é doutora e mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, com realização de estágio doutoral no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal da Paraíba. Associada do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Presidente do Instituto Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil Constitucional (IDCC). Advogada. Conselheira Estadual da OAB-PB. Secretária-Geral da Rede de Advogadas em Sororidade da OAB-PB. _________________ 1 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. 2 O perigo existe, sobretudo, em relação ao fato de que produto ou serviço prestado é realizado em um ser humano. O resultado é incerto, posto que o corpo humano não é uma ciência exata e nem sempre os resultados de uma pessoa se replicarão ipsis literis em outra. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. 4 Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241 5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80. _________________ Farias, Cristiano Caves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. 17.ed.  Salvador: Juspodivum, 2019. p. 241. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Patmas. Nº06, abris/jun de 2001. p. 79-80.
Na sessão do dia 9 de agosto de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal e Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial (REsp.) 2.009.210/RS, sedimentou o entendimento pelo qual Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica aos casos de responsabilidade pelo fato decorrentes de impactos ambientais das etapas do processo produtivo anteriores à colocação do produto no mercado. Tais situações, portanto, para além de seus óbvios efeitos no campo do direito ambiental, também repercutem no âmbito consumerista, caracterizando hipóteses de responsabilidade pelo fato do produto (CDC, art. 12). No julgamento daquele recurso, acompanharam unanimemente o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Na origem, a indenizatória teve como causa de pedir remota a produção de ruído intenso, emissão de fuligem, gases poluentes, materiais particulados, odores fétidos e vazamento de amônia decorrentes da atividade econômica desempenhada por sociedade empresária voltada ao beneficiamento, industrialização e comercialização de carnes de aves, que por diversas vezes já houvera sido alvo de processos administrativos e inquéritos civis por violação de normas de direito ambiental. Tal situação, que perdurara por vários anos, alegadamente acarretou à autora daquela demanda judicial, dentre outros sintomas, hipoxemia, fortes cefaleias, fadiga, ardência nos olhos, náusea, diarreia, vômito e mal-estar. Importante observar que estes fatos se reportam às etapas do processo de produção de proteína animal anteriores à introdução do produto no mercado, ou seja, àquelas fases que antecedem a aquisição ou utilização do bem propriamente ditas pelo destinatário final. No caso concreto, a vítima sequer chegou a consumir os produtos fabricados pelo frigorífico, mas residia próximo ao seu parque industrial, de modo que os danos lhe advieram pela exposição duradoura aos impactos ambientais da atividade econômica do fornecedor. Ao poluir o ambiente, o frigorífico ofendeu os direitos da personalidade e o direito à saúde da demandante, que foi equiparada a consumidor ao ser considerada vítima de acidente de consumo (CDC, art. 17), fazendo jus a indenização pelo fato do produto (CDC, arts. 12 e 17). Em suas razões de recurso especial, a autora do ilícito ambiental alegou, em síntese: a) não incidência do CDC às ações de indenização por danos morais fundadas em dano ambiental; b) não caracterização de acidente de consumo; c) não enquadramento da demandante/recorrida como consumidora por equiparação (bystander), e; d) impossibilidade de inversão do ônus da prova. Como se percebe, o debate girou em torno da natureza consumerista da relação jurídica entre a empresa poluidora e o particular vitimado por danos ambientais anteriores à inserção do produto no mercado de consumo. Num primeiro momento, considerando que o conceito jurídico de consumidor constante do art. 2º do CDC pressupõe a aquisição ou utilização de produto pelo destinatário final, poder-se-ia imaginar que prejuízos decorrentes de poluição industrial ficassem adstritos à legislação ambiental, não podendo ser açambarcados pela legislação consumerista. Todavia, como já tivemos oportunidade de defender alhures1, é plenamente possível equiparar a consumidor toda e qualquer pessoa que tenha sofrido danos oriundos dos impactos ambientais da produção, ainda que cronologicamente anteriores à disponibilização do produto ao público consumidor em geral, estendendo-lhe o regime jurídico protetivo do CDC. Isso ocorre, pois, a figura do bystander, descrita no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, rompe a lógica meramente contratual da relação de consumo, impondo-lhe uma perspectiva ampliada, de maneira a contemplar também todos os atingidos pelos efeitos ambientais prévios da produção, inclusive as futuras gerações. No Tribunal da Cidadania, o tema já vem sendo maturado há quase uma década. Em agosto de 2014, no julgamento do REsp 1.354.348/RS2, a Quarta Turma daquela corte, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, aplicou o prazo prescricional quinquenal do art. 27 do CDC à pretensão indenizatória decorrente da contaminação do solo e das águas subterrâneas na localidade onde o bystander residia. Ratificando o enquadramento da vítima do dano ambiental como consumidor por equiparação, a Segunda Seção do STJ, em abril de 2016, analisando o Conflito de Competência 143.204/RJ3, entendeu ser competente o foro do domicílio das vítimas do evento (CDC, art. 17 c/c 101, I) para conhecer e julgar indenizatória proposta por pescadores artesanais que tiveram suas atividades pesqueiras prejudicadas por derramamento de óleo em área marinha. Também aqui se buscava reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental, tendo sido os autores considerados vítimas de acidente de consumo. Mais recentemente, no julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.833.216/RO4, a Quarta Turma daquele colegiado expressamente afirmou que "a jurisprudência desta Corte Superior admite, nos termos do art. 17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais". Aliados a entendimentos sobre responsabilidade pelo fato do produto já consolidados no âmbito do STJ, os precedentes acima referidos nos permitem constatar que sua jurisprudência evoluiu no sentido de: a)       Equiparar a consumidor aquele que, mesmo não participando diretamente da relação de consumo, "venha a sofrer consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica"5; b)      Admitir a equiparação da vítima de danos ambientais a consumidor, por força do art. 17 do CDC6; c)       Reconhecer que o acidente de consumo caracterizador da responsabilidade pelo fato do produto pode ocorrer durante o processo de produção, antes da aquisição ou utilização do produto pelo destinatário final, ainda nas etapas de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, etc. O reconhecimento da responsabilidade do fornecedor pelo fato ambiental do produto, com a aplicação do CDC aos danos ecológicos oriundos das etapas industriais precedentes à colocação do produto no mercado, reafirma a interface indissociável entre os microssistemas protetivos do meio-ambiente e do consumidor, de modo a convergir a proteção consumerista à tutela ambiental, paradigma do direito do consumo sustentável. _____________ 1 RIBEIRO, Alfredo Rangel. Direito do Consumo Sustentável. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Pág. 262/263. 2 STJ, REsp n. 1.354.348/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe de 16/9/2014. 3 STJ, CC n. 143.204/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 13/4/2016, DJe de 18/4/2016. 4 AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021. 5 STJ, AgRg no REsp n. 1.000.329/SC, Quarta Turma, julgado em 10/8/2010, DJe de 19/8/2010; REsp n. 1.574.784/RJ, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 25/6/2018; REsp n. 1.787.318/RJ, Terceira Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 18/6/2020; REsp n. 1.327.778/SP, Quarta Turma, julgado em 2/8/2016, DJe de 23/8/2016. 6 STJ, CC 143.204/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 18/04/2016; REsp 1354348/RS, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 16/09/2014; AgInt no REsp n. 1.833.216/RO, Quarta Turma, julgado em 20/9/2021, DJe de 27/9/2021; AgInt nos EDcl no CC 132.505/RJ, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/11/2016, DJe 28/11/2016. _____________ *Alfredo Rangel Ribeiro é Advogado, sócio fundador do escritório de advocacia Santiago & Rangel Advogados. Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da UFPB. Professor titular do Departamento de Direito do Centro Universitário de João Pessoa. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa.  
Caio Júlio César é reconhecido, ainda hoje, como um general brilhante. Embora tenha promovido uma guerra ilegal e cometido inúmeras atrocidades (reconhecidas como tais até em sua época), muito do que se acredita saber sobre suas batalhas na Gália foram forjadas em seus famosos comentários, produzidos e divulgados ao longo do combate, com o propósito de informar e entreter a população romana. César tratou de reduzir os seus próprios riscos antes de atravessar o Rubicão. Já no final do Século XIX, nos Estados Unidos da América, Nikola Tesla e Thomas Edison disputavam o estabelecimento da forma de distribuição de energia elétrica que passaria a ser o padrão nacional. A arena daquele combate foi, justamente, a publicitária: Edison teria recorrido ao suposto risco do sistema concorrente propondo que o sacrifício da elefanta Topsy se desse com a utilização da tecnologia rival. A ampla divulgação do uso letal da invenção de Tesla ajudou a garantir o monopólio de patentes de Edison. Esses exemplos só reforçam aquilo que já sabemos: informação e publicidade entrelaçam-se desde sempre e com propósitos variados: seja para construir uma reputação, seja para fomentar o consumo. No Brasil as técnicas publicitárias sempre estiveram fortemente associadas ao 'comércio' razão pela qual a Constituição da República, ao estabelecer a competência legislativa sobre o tema, se refere à "propaganda comercial" (art. 22, XXIX) e é o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) que lhe dá tratamento geral. Não é, contudo, apenas a atividade empresarial1 que se vale de estratégias de comunicação com a finalidade de viabilizar seus objetivos e desempenho. Também outras atividades econômicas o fazem, ainda que não 'mercantis'. Esta classificação, aliás, é, como se sabe, um resquício da antiga distinção entre atividades de conteúdo civil (profissões liberais e sociedades simples, por exemplo) daquelas de conteúdo outrora comercial (sociedades e atividades empresariais). Explicava-se, então, que atividades econômicas de cunho intelectual (como aquelas associadas às artes e às ciências) seriam distintas daquelas que buscariam o lucro por meio da organização dos fatores de produção (capital, mão de obra e insumos) e com isso, também seria o tratamento dispensado a cada atividade: dos tipos de registros até a estratégia de comunicação disponível. Entendia-se, então, que a publicidade não se destinava aos profissionais liberais, que construiriam sua clientela em conjunto com sua reputação. Contudo, como em outros pontos do Direito Privado brasileiro, a nitidez dos contornos desta distinção fica cada vez menos definida. Assim, por exemplo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça que exige que o produtor rural comprove o exercício de atividade empresarial para pretender a recuperação judicial2, também aceitou o processamento de pedido de associação civil educacional3. Contribuem em especial para essa 'sensação' de fluidez, talvez, a incidência da cláusula geral de boa-fé objetiva (impondo os deveres de transparência, informação e lealdade) e a ampliação da proteção do consumidor àqueles legalmente equiparados e aos vulneráveis expostos às práticas de mercado. Aliado a isso, o amplo acesso à Internet modificou não só a forma de expressão individual e a comunicação, como ampliou o espaço e o público para a autopromoção individual. O culto da celebridade e o apego a influenciadores gerou um novo padrão de mercantilização da comunicação em que todos podem estar sujeito ao merchandising e tudo pode ser objeto de publicidade. É neste espaço em transformação, então, que se encontram os limites da publicidade para algumas atividades econômicas não empresariais, tais como a Advocacia e os serviços de profissionais liberais da Saúde. Para destacar este ponto e entendermos o denominador comum para a publicidade profissional é que escolhemos analisar a utilização do paciente/cliente como porta voz da publicidade/marketing e como a Medicina, a Odontologia e a Advocacia lidam com esta forma de expressão publicitária. Como sabemos, proliferam nas redes sociais exemplos de publicações e fotos de celebridades (ou não) pacientes/clientes (ou não) indicando/visitando profissionais em seus consultórios/escritórios. No caso da Medicina e da Odontologia, seguem-se, ainda, as publicações explicativas de exames, procedimentos e/ou resultados com a imagem ou depoimento do paciente/cliente. O engajamento e a promoção destes posts são forma evidente de comunicação publicitária. Como não poderia deixar de ser, a regulamentação profissional dos profissionais da Saúde acaba se preocupando profundamente com a questão da imagem do paciente ao ponto de o Código de Ética médica (art. 75)4 e a regulamentação da publicidade médica (art. 3º, "g")5 proibirem totalmente sua exposição, mesmo como seu consentimento, como forma de divulgação de técnica, método e/ou resultado do procedimento. A regulamentação da publicidade odontológica, por sua vez, adota posição intermediária6, permitindo a foto de selfies com pacientes (art. 1º)7 e imagens do diagnóstico e conclusão do tratamento ("antes e depois" - art. 2º)8, desde que haja - em ambos os casos - o seu consentimento expresso, proibindo-se, contudo, imagens de materiais biológicos (§1º) e da realização do procedimento em si (art. 3º)9. Assim, enquanto os médicos não poderiam se valer de posts com pacientes (em situações gerais de visita, selfies, exames, comparações, procedimentos, etc.) como forma de publicidade (direta ou indireta), os odontólogos poderiam, desde que tomassem o cuidado de obter a autorização prévia e não divulgassem o procedimento em si. Na outra ponta do tratamento regulamentar, encontra-se marketing jurídico. Simplesmente não há detalhamento do tratamento da imagem do cliente para fins de publicidade para além de uma menção exemplificativa10. Selfies, depoimentos gravados e visitas ao escritório estariam liberadas? Pode-se dizer, então, que as diferentes regulamentações guardam um denominador comum? Acreditamos que sim. Isso porque todas as três profissões analisadas pautam-se pelo sigilo profissional11 e pela não 'mercantilização' de sua atividade12. Desta forma, o dever de sigilo deixa de estar apenas na esfera ético-profissional para também instruir a relação contratual mantida com o paciente/cliente. Como se sabe, o descumprimento deste dever é considerado violação positiva do contrato e, como tal, faz incidir as consequências da responsabilidade obrigacional (dentre elas, as indenizatórias). Além disso, deve-se sempre destacar que o serviço quando colocado no mercado (por qualquer agente, empresarial ou não) deve obedecer às normas regulamentares competentes, dentre elas, aquelas relacionadas ao exercício profissional. Assim, o prestador de serviço que utiliza a imagem de seu cliente/paciente para fins publicitários pode estar colocando no mercado um serviço viciado (Art. 20, §2º13 do CDC) e, portanto, realizando uma prática comercial abusiva (art. 39, VIII14 do CDC), dando ensejo, também, às consequências administrativas cabíveis (art. 56 do CDC) para além das indenizatórias. Deve-se, ainda, lembrar que estão equiparados a consumidores todos aqueles sujeitos a este tipo de prática (art. 29 do CDC). Além disso, a imagem - por si só - é um dado do paciente/cliente e, nos termos da lei 13.709/18, se o seu tratamento se der sem sua autorização e/ou causar dano, haverá responsabilização civil solidária do controlador e do operador de dados (art. 42 e seguintes), além, é claro, das consequências administrativas correspondentes. Por fim, lembre-se que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça considera que a utilização desta imagem pode, eventualmente, motivar uma pretensão indenizatória que prescinda da demonstração de dano15. Assim, resta claro que os prestadores de serviços profissionais devem avaliar a exposição de seus clientes/pacientes com finalidade publicitária como um potencial risco. A avaliação desta relação de custo x benefício que pode ser encarada, hoje, como o denominador comum buscado. ______________  Frederico Glitz é advogado, mestre e Doutor em Direito Privado e com pós-doutorado em Direito e Novas Tecnologias. ______________  1 Entendida como "atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços" (art. 966 do Código Civil). 2 Tema Repetitivo 1145 - "Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro." 3 "(...) No âmbito de tutela provisória e, portanto, ainda em juízo precário, reconhece-se que há plausibilidade do direito alegado: legitimidade ativa para apresentar pedido de recuperação judicial das associações civis sem fins lucrativos que tenham finalidade e exerçam atividade econômica." (STJ, AgInt no TP nº 3654 / RS, julgado em 08/04/2022). 4 "Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente." (Resolução CFM nº 1.931/2009). 5 "Art. 3º É vedado ao médico: (...) g) Expor a figura de seu paciente como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, ainda que com autorização expressa do mesmo, ressalvado o disposto no art. 10 desta resolução [trabalhos e eventos científicos]; (Resolução CFM nº 1.974/2011). 6 "Art. 44. Constitui infração ética: (...) VI - divulgar nome, endereço ou qualquer outro elemento que identifique o paciente, a não ser com seu consentimento livre e esclarecido, ou de seu responsável legal, desde que não sejam para fins de autopromoção ou benefício do profissional, ou da entidade prestadora de serviços odontológicos, observadas as demais previsões deste Código;" (Resolução CFO nº 118/2012). 7 "Art. 1º. Fica autorizada a divulgação de autoretratos (selfies) de cirurgiões dentistas, acompanhados de pacientes ou não, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 8 "Art. 2º. Fica autorizada a divulgação de imagens relativas ao diagnóstico e à conclusão dos tratamentos odontológicos quando realizada por cirurgião-dentista responsável pela execução do procedimento, desde que com autorização prévia do paciente ou de seu representante legal, através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE." (Resolução CFO nº 196/2019). 9 "Art. 3º. Fica expressamente proibida a divulgação de vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo ao transcurso e/ou à realização dos procedimentos, exceto em publicações científicas." (Resolução CFO nº 196/2019) 10 Quando aborda a criação de conteúdo, o Anexo do Provimento OAB 205/2021 menciona que ela "deve ser orientada pelo caráter técnico informativo, sem divulgação de (...) clientes (...)." 11 Arts 73 e seguintes da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 5º, II da Resolução CFO nº 118/2012 e Art. 35 e seguintes da Resolução OAB nº 02/2015. 12 Art. 58 da Resolução CFM nº 1.931/2009; Art. 4º, parte final, da Resolução CFO nº 118/2012; Art. 4º do Provimento OAB nº 205/2021 13 "Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: (...) § 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade." (grifo nosso). 14 "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);" (grifo nosso). 15 Por exemplo, Súmula STJ nº 403: "Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais."
Introdução  Um dos temas relevantes e polêmicos no âmbito da responsabilidade civil guarda relação com o arbitramento judicial dos danos imateriais. Como quantificar, por exemplo, a lesão, a ofensa, ao corpo? à honra, ao nome? Daniel Silva Fampa e João Vitor Penna formulam a seguinte pergunta: "Quanto vale uma indenização por dano extrapatrimonial?1 As indagações acima trazidas, em que pese tenha a parte quantificado na petição inicial, a título de pedido, ficarão a cargo do juiz no sentido da resposta em sede de arbitramento da quantia a ser devida. Discussão, então, que pode ocorrer, é de as partes não se contentarem com o valor: uma, dizendo ser irrisório; a outra, muito elevado, podendo, inclusive, o debate ir para a seara de um julgamento realizado fora dos limites do pedido. Portanto, nossa proposta, nestas breves linhas, é a de analisar o processo civil válido à luz do arbitramento judicial contextualizado ao pedido feito pela parte.  1. Arbitramento do dano imaterial  Em relação ao arbitramento, percebemos que a doutrina destaca a atuação do magistrado no caso concreto, pois:  O juiz, investindo-se na condição de árbitro, deverá fixar a quantia que considera razoável para compensar o dano sofrido. Por isso pode o magistrado valer-se de quaisquer parâmetros sugeridos pelas partes, ou mesmo adotados de acordo com sua consciência e noção de equidade, esta, na visão aristotélica de "justiça no caso concreto"2.  1.1 O CPC e a exigência do valor pretendido pela parte  O Código de Processo Civil é muito claro quanto à exigência de que a parte indique o valor da causa, também em relação ao dano imaterial: "Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido". Pedido, a seu turno, significa o "[...] que o autor veio buscar em juízo com a sua propositura".3 Mesmo que parte traga ou até sugira determinada quantia, o certo é que a reparação do dano imaterial deverá ocorrer através da função compensatória, como leciona Bruno Miragem, justamente pela natureza da ofensa, que torna impossível o retorno ao estado anterior ao da lesão.4 2. O arbitramento à luz do art. 492, do CPC  A norma do caput do art. 492, do Código de Processo Civil, apresenta a seguinte redação: "Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado". A doutrina, ensinando sobre o dispositivo processual civil acima transcrito, aduz que: "A regra do processo civil é que a sentença seja conforme ao pedido do demandante".5 De sorte que, caso não observada tal regra pelo juiz, a sentença se caracterizará como infra petita, ou seja, aquela que deixa de analisar um pedido ou um dos pedidos cumulados. Pode ocorrer de ser extra petita (justamente a discussão mais abaixo trazida ao STJ), com julgamento fora do pedido feito pelo autor da ação. Pode, ainda, revelar-se a sentença ultra petita, quando o órgão jurisdicional vai além dos limites do pedido. Independentemente desses casos, haverá desconformidade com o pedido, podendo a sentença vir a ser invalidada.6 Neste sentido ilustramos com a posição do Superior Tribunal de Justiça: Ao analisar a peça exordial, constata-se que houve requerimento pela condenação a título de dano moral em valor a "ser fixado por V. Exa. em não menos que 40 salários mínimos": [...] Tem-se, portanto, que não foi estabelecido valor indenizatório máximo referente aos danos morais, tendo a autora feito mera estimativa e deixado a quantificação ao arbítrio judicial.7 3. Conclusão  Em que pese às dificuldades de arbitramento do valor a título de danos imateriais, haja vista as inúmeras variáveis ou critérios a ser adotado pelo julgador, uma conclusão nos parece certa: em havendo a prova da ofensa a direitos da personalidade, o magistrado, ao arbitrar e, antes, apresentar a fundamentação clara no sentido de como julgou procedente o pedido e chegou à quantia, não terá violado a norma do art. 492, do CPC, independentemente do valor indicado pelo autor, se a título de sugestão trazida na inicial. Por outro lado, se o demandante define um valor (e não o sugere), parece-nos certo afirmar que o arbitramento não pode superar o valor do pedido, sob pena, aí sim de ocorrer o julgamento justamente fora dos limites do pedido. Por outro lado, isso não significa dizer que o juiz, convencido da prova da ofensa a direitos da personalidade fique refém do valor atribuído à causa, mas, sim, arbitre quantia a observar o limite máximo, mas não mínimo, justamente pela compensação que a quantia oferece dada a natureza do dano. Portanto, julgado procedente o pedido, mas em relação ao quantum, o ordenamento não o vincula de forma automática ao pedido. Tanto sentença como acórdão, ao chegarem ao arbitramento que, no caso concreto, observe as lições da doutrina em relação às funções da responsabilidade civil, com toda a certeza, terão mirado a lisura do processo civil no ponto:   (1)    Função reparatória: a clássica função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado, como forma de requilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil ao ofensor como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: possuir o objetivo de inibir atividades potencialmente danosas.8  De sorte que a validade do processo não poderá, neste aspecto, ser questionada ao ponto de nulidade da sentença ou do acórdão, como muito bem elucidado pelo Superior Tribunal de Justiça. Deve o julgador fazer a diferença entre um pedido a título de valor sugerido ou meramente estimativo, daquele pedido com valor certo, previamente definido pela parte.  ____________ *Felipe Cunha de Almeida é Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor, advogado, parecerista. ____________ 1 FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022. 2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 426. 3 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 440. 4 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 211. 5 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 6 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018 , p. 619. 7 Ementa: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. VIOLAÇÃO AO ART. 492 DO CPC/2015. PEDIDO EXORDIAL MERAMENTE ESTIMATIVO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O magistrado, ao arbitrar a indenização por danos morais, não fica vinculado ao valor meramente estimativo indicado na petição inicial, podendo fixá-lo ao seu prudente arbítrio sem que se configure, em princípio, julgamento extra petita. Precedentes. 2. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no REsp n. 1.837.473/PR Rel. Min: Raul Araújo. Julgado em: 26/11/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201902709828&dt_publicacao=19/12/2019. Acesso em: 26 ago. 2022). 8 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 40. ____________ BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm.  BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 de março de 2015. Disponível em: .  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.  FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/360601/o-metodo-bifasico-de-quantificacao-das-indenizacoes-por-danos-morais. Acesso em: 26 ago. 2022.  FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2015.  GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.  MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.  MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 
No começo de 2022, foi lançado o documentário "Pai Nosso?" no Netflix1, que trata da história do médico Donald Cline. Cline foi um especialista em reprodução humana assistida muito famoso nos anos de 1970. Ele realizou diversos procedimentos de RHA, sempre alegando que estava utilizando material genético de um doador ou do próprio casal, como de praxe nesta modalidade de prestação de serviços. Entretanto, anos depois, por meio de teste de ancestralidade e utilização de um site, diversas pessoas começaram a encontrar meio-irmãos desconhecidos. Ao longo do documentário, descobre-se que espantosamente o médico utilizava o próprio material genético na inseminação das mulheres, sem qualquer consentimento ou informação prévia, tendo gerado uma "legião" de "meio-irmãos", muitos deles convivendo, estabelecendo laços de amizade ou vínculos de trabalho sem ter ideia da origem genética comum.  O documentário relata de forma sensível as reações emocionais dos envolvidos, bem como a "saga" em busca de sua punição. Devido às leis norte-americanas da época, o ato cometido pelo médico não se caracterizou como crime. Ele respondeu por obstrução de justiça, tendo permanecido um ano em liberdade condicional, além do pagamento da multa. Um ano após a multa, o médico entregou sua licença para o Conselho Médico e foi decidido que ele jamais poderia se inscrever novamente nem poderia ter sua licença restituída. Em 2019, em Indiana, foi aprovada a lei que tornava crime a "fraude na fertilização". Assim, caso outro médico viesse a realizar a mesma conduta que Cline, responderia por ato ilícito no âmbito penal. Apesar da grande discussão criminal da conduta do médico, outra esfera do direito também foi violada - o campo do Direito Civil - mais especificamente o direito contratual e a responsabilidade civil. Pensando no ordenamento jurídico brasileiro, a reprodução humana assistida é exteriorizada na forma de um contrato, que consiste em um negócio biojurídico2, porquanto reveste-se dos pressupostos de um acordo de vontades juridicamente tutelado. Tal documento contém os termos estipulados pelas partes, segundo as diretrizes da recentíssima resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina. Dessa forma, há uma responsabilidade consubstanciada na imprescindibilidade de cumprimento integral das cláusulas ali pactuadas, caso contrário é possível a discussão tal violação. Segundo Flaviana Rampazzo Soares3, a responsabilidade negocial exige um vínculo obrigacional prévio entre as partes e a ocorrência de um dano, devido ao descumprimento, total ou parcial, do negócio. Tal situação se amolda quando há um contrato de prestação de serviços relacionados  à reprodução humana assistida entre a clínica e o paciente, e este acordo não é cumprido. No Brasil, um caso de grande repercussão  - amplamente divulgado pela mídia, à época - envolvendo um médico especialista em reprodução humana assistida, foi o de Roger Abdelmassih. Ele foi acusado de ter cometido diversos crimes de estupro e de manipulação genética irregular contra 74 pacientes, entre 1990 a 2008. No âmbito da responsabilidade civil, o mencionado profissional da área da saúde foi condenado a pagar indenização no montante de R$500 mil reais a título de danos morais a um casal de irmãos gêmeos porque ele trocou o material genético durante o procedimento. Assim, foi concluído que o médico utilizou o material genético de um desconhecido sem o consentimento nem a autorização dos pais4. O termo de consentimento consiste em um documento importantíssimo para garantir que a informação foi efetivamente prestada ao paciente e que este aceitou se submeter ao procedimento ou ao tratamento. Em 2018, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão em que condenou um hospital ao pagamento de R$200 mil a um paciente e seus pais, pela falta de informação sobre um procedimento cirúrgico. No caso por último mencionado, o paciente tinha sofrido um traumatismo crânio-encefálico após um acidente e tinha tremores no braço direito. O médico sugeriu um procedimento cirúrgico para que o paciente retornasse com os seus movimentos. Entretanto, após a cirurgia, o paciente teve uma piora do seu quadro clínico, não conseguindo mais andar e tendo se tornado dependente de cuidados específicos. Segundo  a perícia, embora não houvesse ocorrido erro médico,  o  resultado da cirurgia era um risco do paciente que não foi informado . No caso em tela, não havia Termo de Consentimento. Dessa forma, fica evidente a importância da presença desse documento. Segundo a Resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina, o termo de consentimento deve seguir a seguinte formalidade e conteúdo: 4.O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas  de  reprodução  assistida.  Os  aspectos  médicos  envolvendo  a  totalidade  das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como  os  resultados  obtidos  naquela  unidade  de  tratamento  com  a  técnica  proposta.  As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo  com  a  concordância,  por  escrito,  obtida  a  partir  de  discussão  entre  as  partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida. Flaviana Rampazzo Soares, com muita propriedade, aponta no mesmo sentido: O consentimento esclarecido tem, em seu núcleo, uma permissão que também é decisão proveniente de processo informativo e deliberativo delineado, percorrido e experimentado pelo paciente e, em regra, acompanhado pelo médico, em maior ou menor extensão, de acordo com as circunstâncias concretas.5 Retornando à análise sobre a  troca de material genético, nos Estados Unidos, foi noticiado em 2019, que uma clínica foi processada por esse motivo. No caso em tela,  um casal asiático teve dois filhos sem nenhum traço dos pais. Por meio de exame, foi comprovado que o material genético utilizado, tanto masculino como feminino, não era do casal, mas sim de outros pacientes . Apesar da manifestação de vontade do casal no sentido de permanecer com as crianças, tiveram que entregá-las aos pais biológicos. Na ação movida pelo casal contra a clínica, a alegação central foi imperícia médica, negligência, agressão, inflição intencional de sofrimento emocional e quebra de contrato6. Ademais, é importante destacar que, no caso de procedimento de reprodução humana assistida, deve-se ressaltar dois momentos: a) Antes da realização do procedimento, a clínica é responsável por manusear e armazenar todo o material, devendo mantê-lo em condições adequadas; b ) No momento da realização do procedimento, o médico tem a responsabilidade de realizar o procedimento na forma acordada7, lembrando que não é possível acordar de forma contrária à lei nem à Resolução do Conselho Federal de Medicina. Em caso de descumprimento de qualquer dessas etapas, é possível requerer a responsabilização civil dos envolvidos, como aconteceu no caso do médico Roger Abdelmassih. O procedimento de reprodução humana assistida no Brasil tem sido cada vez mais popular, culminando até na  "técnica" (não "assistida"- diga-se de passagem) de inseminação caseira, que não é recomendada pelas autoridades sanitárias, por razões evidentes e preocupantes.  Já em relação aos procedimentos realizados em clínica, o SISEmbrio emitiu seu 13º Relatório do Sistema Nacional de produção de embriões, que constatou que 100380 embriões  foram criopreservados em 2019, correspondendo a um aumento significativo do número de criopreservações. Em decorrência desse grande número de embriões criopreservados (excedentes), é muito importante que haja a devida e efetiva fiscalização para que situações de troca ou substituição sem autorização não se concretizem. Mesmo havendo a possibilidade de resolver os casos na esfera da responsabilidade civil, além da esfera penal, a valoração pecuniária se torna a única sanção possível, apesar de incapaz de sanar os prejuízos  no âmbito existencial dos envolvidos. Assim, impedir ou dificultar  a ocorrência de tais casos, parece ser a melhor alternativa. De fato, a relação de confiança8 que se estabelece nos bionegócios reprodutivos reveste-se de caráter peculiar, porquanto embora se trate de uma tentativa (com o auxílio das novas tecnologias) de geração de filhos, por meio de serviço altamente especializado, o "pano de fundo" existente transcende questões patrimoniais. Ora, lida-se com sonhos compartilhados pelos contratantes e terceiros voltados à concretização de projeto parental e - para muitos - ao atingimento da felicidade e plenitude existencial. Neste sentido, Carla Froener e Marcos Catalan: É inconteste que o avanço da biotecnologia despertou o seu interesse, em especial, por conta dos sonhos que involucra, sonhos que vão da aplicação de fármacos tonificantes ou de realização de cirurgias plásticas rejuvenescedoras at e a gestação de filhos que talvez - e apenas talvez - tragam alguma esperança a vidas que parecem despidas de sentido.9 Entretanto, para além dos motivos ensejadores da avença entre a clínica e o paciente, inconteste que o material genético criopreservado, bem como os embriões efetivamente gerados, merecem cuidado, zelo e comprometimento em relação ao seu armazenamento e utilização correta, tempestiva e responsável ética e juridicamente, a fim de que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em pesadelo inábil a ser "apagado", ainda que com o auxílio da tutela ético-jurídica. Referências FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reproducao humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015. SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006. SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021. SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021. __________ 1 Netflix. Acesso em 18.10.22. 2 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. 3 SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021.  4 Disponível aqui. Acesso em 15.10.22. 5 RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 246 6 Clínica dos EUA é processada por trocar embriões fertilizados in vitro. Acesso em 10.10.22 7 PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015.  8 Neste sentido, ao  mencionar os contratos de telemedicina, Fernanda Schaefer: "Destarte, o princípio da confiança e um dever necessário  ser observado pelas partes contratantes, em especial por médicos e pesquisadores, face a grande vulnerabilidade técnica, cultural, física e emocional de seus pacientes ou pesquisados, pois e um dos parâmetros para a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana em todas as suas vertentes, inclusive bioética."  SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006.p. 144. 9 FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020, p.84.
terça-feira, 1 de novembro de 2022

Sigilo médico e violação positiva do contrato

No âmbito da coercibilidade juspositiva do dever de boa-fé objetiva nos contratos médicos, é essencial o instituto da responsabilidade civil, em especial, a aplicação da teoria da violação dos deveres anexos, derivados do mister de lealdade, em todas as fases contratuais, também denominada de violação positiva do contrato. Trata-se da teoria que originalmente surgiu no Direito alemão, tendo como principal expoente Karl Larenz, mas que chegou a ter desdobramentos de forma autônoma no Brasil e em Portugal. Pode ser atualmente apontada como mais um subsídio de grande valia para perseguir a observância do sigilo médico na prática clínico-hospitalar, baseando-se no dever de boa-fé objetiva, sob pena de responsabilidade civil fundamentada na violação desse princípio geral. A responsabilidade civil contratual difere da responsabilidade extracontratual delitual. Nesta, o objeto do instituto é a reparação de um dano ilegalmente causado por uma pessoa, fora de uma relação contratual, em um cenário no qual, na maioria dos casos, a vítima e o autor são desconhecidos entre si até a ocasião do ato danoso, ao passo que a responsabilidade contratual advém das obrigações decorrentes dessa espécie de negócio jurídico, quando se configura, em tese, um inadimplemento. Na evolução da responsabilidade contratual, merece destaque a teoria da violação dos deveres anexos ou da violação positiva do contrato, a qual defende que, mesmo ocorrendo o adimplemento de uma obrigação principal contratual, seja configure um inadimplemento, relativo ou absoluto, por terem sido transgredidos outros deveres pautados na lealdade. Na violação positiva do contrato, tal como preceitua Menezes Cordeiro1: A boa-fé é chamada a depor em dois níveis: no campo da determinação das prestações secundárias e da delimitação da própria prestação principal, ela age sobre as fontes, como instrumento de intepretação e de integração; no dos deveres acessórios, ela tem papel dominante na sua gênese [..]. Os deveres acessórios, reportados à boa-fé, traduzem, deste modo, uma síntese histórica, típica nos quadros da terceira sistemática e da evolução juscientífica subsequente, entre a consideração central do problema, ditada pelos estudos teoréticos da complexidade inter-obrigacional e o influxo periférico adveniente de problemas reais e concretos, veiculada pela prática da violação positiva do contrato, na parte relevante desta, para o efeito em causa. Os deveres resultantes do princípio da boa-fé são chamados de deveres secundários, anexos, instrumentais2, ou, ainda, de deveres acessórios de lealdade. Fazem com que as partes sejam obrigadas a, na pendência contratual, não se comportar de modo que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações. Da aplicação da boa-fé objetiva, surgem também deveres de atuação positiva, como o dever de sigilo em relação aos elementos obtidos por via de pendência contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte; impondo atuação com vista a preservar o objetivo e a economia contratuais.3 Pontes de Miranda4 explica que esses deveres são como deveres-meio, deveres de atitude ou conduta, que impõem a necessidade de haver diligência e compreensão recíproca, com o objetivo de que a prestação se cumpra, atinja o seu fim do melhor modo possível. Martins-Costa5 classifica os deveres obrigacionais decorrentes da boa-fé da seguinte forma: a) deveres anexos ou instrumentais - servem para otimizar o adimplemento satisfatório, fim da relação obrigacional, não dizem respeito ao que prestar, mas como a prestação ocorre; b) deveres de proteção ou laterais -  destinados a implementar uma ordem de proteção entre as partes, não se ocupam do prestar, mas do interesse de proteção; têm o fito de evitar a ocorrência de danos injustos para a contraparte da relação obrigacional. Sabendo que a pauta da boa-fé faz referência ao resgate da confiança manifestada e posta em causa, bem como a consideração da reciprocidade entre as partes,6 apesar de serem nomeados como deveres acessórios, é possível afirmar que "os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio conteúdo dos deveres principais".7 A obediência à boa-fé deixa de configurar como mero dever reflexo, secundário, incidental, como se tivesse menos relevância que a obediência a um outro dever tido como 'principal'. A relevância desse raciocínio não se circunscreve na área teórica, volta-se para que na prática da relação obrigacional, as partes contratantes vislumbrem o dever de comportamento probo com a relevância que o princípio geral em questão demanda. Apesar da importância da boa-fé, deve-se alertar que esse princípio não é a resposta de todos os problemas da responsabilidade civil,8 e nem se tem a pretensão de que ele seja suscitado como a dignidade da pessoa muitas vezes tem sido apontada, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, como se fosse uma salvação para todos os dilemas jurídicos. O que se defende é o aproveitamento das funções principiológicas da forma mais completa e ponderada possível, utilizando a capacidade integradora, construtiva e interpretativa da boa-fé objetiva. É verdade que o princípio geral em enfoque apresenta sim a subjetividade das suas raízes morais, como já se apontou, mas deve-se atentar que, ao ser concretizado no âmbito de aplicação das relações clínicas, os parâmetros da sua observância vão se mostrando cada vez mais explícitos, palpáveis e objetivos. Sob essa perspectiva, pode-se, com tranquilidade, asseverar que na relação clínica é possível que um médico utilize da melhor forma a técnica científica para a qual teve formação e domina, chegando a curar, diminuir os sintomas ou dar conforto paliativo ao paciente e, ainda assim, em relação à sua prestação obrigacional, seja configurado um inadimplemento, por violação positiva do contrato - em outros termos, por ter violado a boa-fé objetiva - na hipótese, por exemplo, de ter contrariado o segredo médico no curso do tratamento. Na adoção da perspectiva de prestação obrigacional ampliada, conforme a teoria social dos contratos e a teoria da violação dos deveres anexos, pode-se frisar, pois, que o dever do médico não se limita à prática da obrigação tradicionalmente tida como principal. Sendo assim, tão ou mais importante, mostra-se a persecução da honestidade e de seus valores correlatos na prática científica da medicina. O adimplemento do contrato médico somente estará completamente concluído quando em todas as fases contratuais for observada a obediência à boa-fé objetiva. Esclarece-se, pois, que ao lado da mora e da impossibilidade de cumprimento, a violação positiva do contrato corresponde a uma terceira espécie de descumprimento das obrigações, e abrange as hipóteses de mau cumprimento da prestação principal e da inobservância dos deveres acessórios, dentre estes, o dever de proteção, de informação e de lealdade.9 Como no âmbito da relação médico-paciente, a violação mais latente da proteção, do resguardo informacional e da lealdade se materializa no desrespeito ao sigilo médico; conclui-se que a boa-fé objetiva figura como mais um argumento de suma importância para se proteger juridicamente este que é um dos mais antigos preceitos da Ética Médica. Como contraponto, no rol de possíveis justificativas para o afastamento do sigilo médico, pode-se apontar a teoria do incumprimento eficiente para, em sede de análise econômica do Direito, verificar a plausibilidade da sua aplicação às questões que dizem respeito à proteção dos dados clínicos. O incumprimento eficiente, tal como explicita o Professor Fernando Araújo,10 resulta da junção de duas ideias: o contrato é mero instrumento de afetação de recursos econômicos, por meio da interdependência e das trocas. Para que se alcance a eficiência social, faz-se necessário que os ganhos de uns não impliquem em perdas dos demais, levando em conta a eficiência dos atos cujos benefícios ultrapassem, ainda que apenas marginalmente, a indenização e que evite o averbamento de perdas por qualquer das partes. O incumprimento é tido como eficiente nas hipóteses em que o inadimplemento gera mais ganhos que os prejuízos do credor frustrado. Há o aumento de bem-estar para uma das partes, sem que enseje perda de bem-estar para outrem. Em muitos casos, o incumprimento eficiente, na verdade, deveria ser designado como ajustamento eficiente, pois consiste no reconhecimento de alternativas mais vantajosas à continuação do contrato.11 Salienta-se que eficiente "é aquilo que maximiza a finalidade das partes, é aquilo que faz justiça à intenção delas".12 Com isso, é possível vislumbrar alguns casos excepcionalíssimos, em que seria viável suscitar a teoria do incumprimento eficiente para justificar uma violação do sigilo médico, por exemplo: os casos em que há indícios relevantes de que a recusa aos tratamentos evidencia um quadro depressivo. Sendo assim, a participação da família seria de grande importância, para contribuir com a deliberação sobre qual é a melhor conduta clínica a ser utilizada. Em razão das dificuldades existentes na prática clínica, o paciente pode esquivar do paternalismo médico, há tanto tempo sedimentado no senso comum; bem como devido aos riscos que essa teoria apresenta à construção da confiança e a sedimentação da boa-fé objetiva podendo, inclusive, fragilizar a teoria da violação positiva do contrato. Acredita-se que a adoção da teoria do incumprimento suficiente à relação médico-paciente apresenta mais probabilidade de agravar a vulnerabilidade do enfermo, que potenciais benefícios. Julga-se, pois, ser preferível adotar construções teóricas que exaltem e consubstanciem o respeito à confiança, como princípio ético e jurídico. No exemplo suscitado acima, o problema poderia ser resolvido com base na aferição da capacidade de consentir, para legitimar ou não a vontade do enfermo, sem necessitar recorrer à teoria do incumprimento suficiente.  Nessa acepção, a coercibilidade do Direito serve para suscitar, em âmbito de responsabilidade civil, um dever de reparação, pautado na violação positiva dos contratos, embasado no entendimento de que o desrespeito ao sigilo médico caracteriza a violação da confiança e, por consequência, resulta na desobediência do princípio geral que preconiza a lealdade no âmbito contratual, a boa-fé objetiva. Por fim, no que tange a extensão temporal do dever de sigilo médico, com base na pós-eficácia de alguns direitos da personalidade, especialmente dos que se ligam à privacidade,13 é plenamente possível afirmar que após a morte do paciente remanesce a incidência da boa-fé objetiva a ponto de haver a sobrevida do dever de sigilo profissional no âmbito clínico e hospitalar, sob pena de configurar a violação positiva do contrato. __________ 1 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 602. 2 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 37. 3 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 606. 4 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo 26. Rio de Janeiro: Editor Borsói, 1959, p. 282. 5 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Ebook, p. 155-158. 6 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 410-411. 7 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 34. 8 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 160. 9 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil.  Vol II., Coimbra: Almedina, 1984, p. 1291. 10 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735. 11 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735-737. 12 ARAÚJO, Fernando.  Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 241, grifos do autor. 13 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Direito ao sigilo médico após a morte do paciente. Curitiba: Juruá, 2022.
Muito embora a revolução tecnológica tenha provocado impactos sociais outrora apenas imagináveis em obras de ficção científica, talvez a maior ruptura tecnológica da trajetória humana esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,1 no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, seja pelas vias da biotecnologia, da nanotecnologia e/ou da neurotecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo, portanto, empregar toda a tecnologia possível para permitir que seres humanos transcendam suas capacidades naturais, o que, em princípio, propiciará o surgimento de uma nova categoria de entes artificialmente aprimorados em relação às limitações que naturalmente demarcam a condição humana. O transhumanismo propõe mais do que simplesmente usar a tecnologia para sanar deficiências humanas, mas para aperfeiçoar as capacidades das pessoas, inclusive as que sejam perfeitamente saudáveis. Há, com efeito, sensível distinção entre o uso de aparatos que visem a reparar enfermidades ou debilidades - que variam entre o uso de simples lentes de contato até a inserção de instrumentos como marcapassos ou próteses no corpo humano - e o emprego de meios tecnológicos para facultar a seres humanos a superação de suas naturais limitações. Enquanto aqueles permitem a uma pessoa corrigir imperfeições e viver em paridade de condições com os demais, estes objetivam dotar indivíduos de condições sobre-humanas, naturalmente inatingíveis por qualquer pessoa. Aí reside o núcleo da ideologia transhumanista: promover, por meio da tecnologia, melhoramentos capazes de dotar os indivíduos de benefícios físicos, como a força e a resistência, e também psíquicos e intelectuais, como uma memória prodigiosa e uma inteligência capaz de processar informações tal qual uma máquina faria. Por se tratar de intervenções realizadas sobre o organismo humano, tais aprimoramentos são também denominados biomelhoramentos. Das diversas consequências decorrentes das intervenções transhumanistas, emergem potenciais problemas como o crescimento exponencial e o envelhecimento sem precedentes da população, as alterações drásticas sobre o corpo humano e a sua definitiva fusão com mecanismos tecnológicos. O propósito destas linhas, todavia, é o de analisar um problema em particular: o que dizer da incidência de regras concernentes à responsabilidade civil, inclusive de sua responsabilização pelos eventuais danos que causarem a terceiros, particularmente aos demais seres humanos que não se sujeitarem às intervenções biotecnológicas de caráter melhorador? Nos domínios da responsabilidade civil, os problemas que a revolução transhumanista coloca são de fato perturbadores; afinal, calcado na perspectiva do princípio do neminem laedere, que traduz a ideia de "a ninguém ofender", a verificação danos decorrentes da conduta de um indivíduo implica, como corolário, o dever de compensar o que fora perdido2. Não é difícil imaginar que novos avanços tecnológicos impliquem a inserção de novos riscos sociais, potencializando-se a ocorrência de um sem número de danos. Com efeito, a responsabilidade civil tende a ser um dos ramos do Direito mais afetados perante os desenvolvimentos tecnológicos que globalizam os ideais e práticas transhumanistas; afinal, a dotação de especiais capacidades aprimoradas a seres humanos pode vir a constituir mais uma via para a consumação de novos e extremamente gravosos danos, porventura de difícil reparação.  A fim de delimitar o propósito das linhas a seguir, serão apresentadas perspectivas de soluções jurídicas para os seguintes problemas: i) a eventual ocorrência de danos ocasionados em indivíduos que sofram intervenções para o implante de tecnologias que visem ao seu aprimoramento; ii) o regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem; iii) a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas; iv) a releitura acerca das funções desempenhadas pelo instituto da responsabilidade civil, nomeadamente a preventiva; v) o emprego de tecnologias para aprimorar as capacidades de seres humanos de gerações vindouras. Cada um destes pontos merecerá específico tratamento. À partida, cumpre pensar nos danos que um indivíduo que se apresente como beneficiário de técnicas transhumanistas eventualmente venha a sofrer. Imagine-se, por hipótese, que uma pessoa se apresente como voluntária para ter determinados aparatos tecnológicos incorporados ao seu organismo, com o propósito de tornar-se intelectual ou fisicamente mais evoluída. O que dizer dos danos que podem sobrevir a partir destas intervenções, que, a depender de sua gravidade, podem eventualmente levar uma pessoa à morte? No Brasil, ainda que inexista regramento legal específico para reger atos desta natureza - eis que se cuida, enfim, de circunstância ainda incipiente -, quer parecer que o regime geral da responsabilidade civil, assente em especial no texto do Código Civil, exigirá a aplicação do seu art. 927, parágrafo único, a imputar o modelo da responsabilidade civil objetiva (isto é, independentemente de culpa) a todo agente que normalmente desenvolva atividade que implique, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. Neste domínio, adota o legislador brasileiro a denominada teoria do risco criado: o simples fato de se instituir novos riscos em sociedade, para além dos inúmeros outros já existentes, induz a responsabilização objetiva do agente causador do dano. No âmbito das intervenções transhumanistas, manipular equipamentos de alta tecnologia com o propósito de aperfeiçoar as condições humanas há de ser inequivocamente reconhecido como um fator de elevado risco, em especial para o voluntário, eis que qualquer desvio poderá ocasionar severos danos à saúde do lesado, que podem inclusive ser fatais. i) Pouco importará, inclusive, que o ato tenha sido praticado em caráter gratuito ou oneroso: a responsabilização deriva do simples fato de um indivíduo ser lesado em intervenções de cunho transhumanista, ainda que não tenha contribuído financeiramente para que fosse submetido ao ato. Em havendo dano imputável ao comportamento do interventor, o dever de repará-lo surge como corolário imediato da verificação do nexo de causalidade. Também não parece correto supor que o fato de o voluntário ter prestado seu consentimento seja suficiente para afastar a potencial responsabilidade civil dos agentes que operam tecnologias transhumanistas. Ainda que requerida pelo próprio indivíduo a intervenção transhumanista, se ela vier a gerar danos ao interessado em se tornar um ser transhumano, caberá analisar as circunstâncias do caso concreto e verificar, afinal, se houve algum desvio no ato da intervenção, ou mesmo se ocorreu algum vício no processo de informar ao voluntário sobre os riscos da medida. No primeiro caso, a responsabilidade civil se manifestará pelo erro no procedimento; no segundo caso, mesmo que não tenha ocorrido falha no processo de intervenção corporal, ainda assim caberá cogitar da responsabilidade civil do agente, por ter sido imprecisa a prestação de informações claras acerca dos riscos da intervenção, que devem ser adequadamente mensurados antes mesmo que se coloquem em prática as medidas de caráter transhumanista. Com efeito, por se tratar de atuação sobre a integridade psicofísica de seres humanos, é necessário proceder a uma criteriosa e antecipada ponderação sobre a incidência dos princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência, somente sendo admitidas as experiências transhumanistas com seres humanos - se é que serão de fato aceitáveis - se a assunção dos riscos a elas inerentes se justificar pela magnitude das vantagens esperadas. É de se esperar, portanto, que os atos praticados com técnicas de alta tecnologia ofereçam uma razoável garantia de segurança, sob pena de se sujeitar o agente que os conduz à responsabilização pelos danos deles derivados. ii) Quanto ao regramento jurídico aplicável aos seres transhumanos que venham a causar danos a outrem, cumprirá reconhecer que, por mais que o indivíduo se transforme em um ser dotado de capacidades extraordinárias - sejam cognitivas ou motoras -, não deixará de ser uma pessoa, ainda que ostente a condição de ser um híbrido entre máquina e ser humano. Assim, o indivíduo submetido a intervenções de cunho transhumanista responderá pessoalmente pelos danos causados a terceiros, mesmo que eventualmente se deva cogitar da edição de novas regras na seara da responsabilidade civil, mormente porque, na mais extrema das hipóteses, a sociedade passará a ser dividida entre seres humanos e transhumanos, cumprindo reconhecer a vulnerabilidade daqueles e a superioridade física e intelectual destes. iii) O postulado acabado de referir coloca em causa um problema consequente: a definição do modelo de responsabilidade civil a incidir sobre as pessoas transhumanas e o modo de aferir a culpabilidade em suas condutas.   À primeira questão, caberá insistir na premissa assente: os indivíduos aprimorados, à partida, serão pessoas para o Direito, cidadãos integrados à sociedade como os demais (meros) humanos. Em princípio, portanto, ao se comportarem no meio social, responderão subjetivamente pelos danos causados a terceiros, a não ser que estejam a desempenhar atividades de risco ou que haja alguma regra legal específica a imputar-lhes responsabilidade sem culpa. Daí decorre que os indivíduos aprimorados por técnicas transhumanistas somente devem reparar danos, em tese, se adotarem comportamentos intencionais (dolosos) ou descuidados (culposos). Tal assertiva, todavia, desafia novos dilemas. Os indivíduos aprimorados ostentariam uma condição de superioridade física e/ou intelectual em relação aos demais. Caberia conceber, então, que os atos, fatos e relações jurídicas que os envolvam mereçam idêntico tratamento legal? Uma pessoa que detém condições físicas ou mentais aperfeiçoadas em função do emprego de tecnologias de ponta não deveria, por isso mesmo, atuar com diligência mais acurada que os demais? Caberia aferir o comportamento culposo do agente transhumano a partir da análise da conduta que se deveria esperar do "homem médio", sabendo-se de antemão que tal indivíduo ostenta uma condição que o segrega do termo mediano da sociedade? A averiguação da culpa pressupõe que uma pessoa, por negligência, imprudência ou imperícia, deixe de cumprir com um dever geral de cautela que a todos se impõe. Em relação a indivíduos dotados de excepcionais habilidades físicas ou de aptidões intelectuais invulgares, não seria de se esperar que tenham melhores condições de agir cautelosamente e, consequentemente, de evitar lesões a terceiros? Em um primeiro momento, a resposta se afigura positiva; caberá, portanto, averiguar conforme as circunstâncias do caso concreto qual a verdadeira condição do indivíduo transhumano causador do dano e apurar, enfim, de que modo se pode caracterizar a adoção de comportamento que, dada a sua particular situação de vantagem, deveria ter sido evitado.   iv) Cumprirá, ainda, fazer valer a função preventiva da responsabilidade civil e evitar que o emprego da tecnologia para fins transhumanistas se dê de modo indiscriminado, potencializando não apenas o suposto aprimoramento das capacidades humanas, como também a ocorrência de danos enormes em sociedade. Neste domínio, à medida em que as técnicas transhumanistas forem implementadas, cumprirá estabelecer normas de cautela, com o propósito de impor limites éticos, jurídicos e biológicos ao plano de superação das condições humanas. Parece salutar, quando menos, que sejam criados comitês de ética que tenham a atribuição de fiscalizar e autorizar ou rechaçar práticas transhumanistas que, de algum modo, venham a colocar em risco não apenas a integridade psicofísica dos seus voluntários como também direitos e interesses sociais dignos de tutela. v) Finalmente, e ainda como decorrência das ideias desenvolvidas no item antecedente, cabe refletir cuidadosamente sobre o emprego de tecnologias transhumanistas para aprimorar as condições físicas e intelectuais de gerações vindouras. Por meio de modificações genéticas, seria viável alçar crianças por nascer a patamares biológicos e psíquicos superiores aos de seus antepassados. O que dizer, entretanto, dos possíveis danos que podem ser sofridos por estes bebês geneticamente manipulados? A respeito das edições gênicas da linhagem germinativa, Graziella Clemente3 cuida de apontar seus possíveis benefícios, seja em curto prazo, como importante instrumento para o tratamento de doenças monogenéticas, seja a longo prazo, como ferramenta apta a combater doenças poligênicas, multifatoriais e infecciosas. As intervenções genéticas que tenham a finalidade de evitar enfermidades não podem, todavia, ser confundidas com a manipulação genética que vise não a impedir doenças - isto é, preservando-se as condições naturais do indivíduo ainda por nascer -, mas a aprimorar as capacidades de um nascituro, com vistas à geração pré-natal de um indivíduo transhumano. Neste derradeiro caso, os riscos de danos assumidos são intensos, não apenas porque pode haver erro na manipulação provocada, mas também em razão de potenciais danos futuros, cuja verificação é desconhecida no momento da intervenção. De todo modo, nos casos em que houver intervenções genéticas de caráter transhumanista, caberá recorrer, uma vez mais, à cláusula geral de responsabilidade objetiva contemplada no aludido art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro, cumprindo ao agente interventor a assunção do dever de reparar todo e qualquer dano oriundo de seu comportamento. Afinal, tratar-se-á de conduta que, em sua essência, implica a assunção de elevados riscos de danos, que podem colocar em xeque o futuro de toda uma geração de seres transhumanos. __________ 1 VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362. 2 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe; FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 886. 3 CLEMENTE, Graziella Trindade. Responsabilidade civil: edição gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, Nelson et al (Coord.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 303.
terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fake news: O Brasil necessita de um marco legal

Será que o Brasil deveria ter leis específicas que promovam a prevenção e o combate à proliferação intensa de fake news? Depois dos cenários descortinados pela pandemia em 2020 e das eleições gerais em 2022, é mais que necessário que se evoluam as discussões já iniciadas, para que se possa construir marcos legais adequados para a temática.  Inicialmente, vale destacar que o Brasil ainda não possui uma legislação específica para as divulgações de notícias falsas. De 2017 a 2022 foram apresentados ao menos 17 projetos de lei1 no Congresso Nacional, que procuram combater este tipo de conteúdo que desinforma, confunde a população, traz riscos à saúde, manipula massas, destrói reputações, corroendo o sistema representativo e a própria democracia. Outras iniciativas parlamentares foram apensadas a esses projetos. Entre tais propostas, destaca-se a tentativa de se criminalizar a divulgação de fake news, com penas máximas de prisão de dois anos, criando-se assim mais um crime de menor potencial ofensivo. Mas, para além do uso do Direito Penal como instrumento de coerção, prevenindo e reprimindo-se condutas daqueles que deliberadamente usam deste expediente para propagação de ideias, interesses ou mesmo com a finalidade espúria de confundir um contingente de pessoas, há também outras medidas interessantes sendo discutidas no parlamento. No sensível campo das eleições, surgem três projetos direcionados à temática. O mais recente, o PLP 120/2022 prevê mais uma causa de inelegibilidade, exatamente para aquele indivíduo que divulgar notícia falsa sobre urna eletrônica e o processo eleitoral. Além deste, o PLS 218/2018 determina que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) crie campanhas educacionais de combate às fake news em anos eleitorais. De igual maneira, o PLS 471/2018 busca definir os crimes de criação ou divulgação de notícia falsa, com a finalidade de afetar indevidamente o processo eleitoral. O PL 632/2020 buscando impor maior rigor às falas e atos de autoridades públicas, considera a divulgação de fake news promovidas por tais autoridades, como uma nova hipótese de crime de responsabilidade e, também, de improbidade administrativa. Assim, uma informação manifestamente falsa veiculada e promovida, por exemplo, por um chefe do Poder Executivo, em qualquer esfera (federal, estadual ou municipal), poderia ser enquadrada com crime de responsabilidade, gerando inclusive a possibilidade de impedimento à continuidade do mandato (impeachment). Entendendo que a transmissão de notícias falsas afeta o direito difuso à correta informação, direito fundamental de quarta dimensão, o PLS 246/2018 prevê a inserção de um novo artigo no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), permitindo que qualquer cidadão seja parte legítima para propor ação judicial questionando a divulgação de conteúdos falsos ou ofensivos em aplicações de internet. Buscando cortar o fluxo financeiro em sites que veiculam propositalmente fake news, o PLS 2922/2020 deseja impedir o anúncio em páginas com desinformação e discurso de ódio. A finalidade é cortar o financiamento, por meio de publicidades, a sites que notoriamente se utilizam de notícias falsas para gerar tráfego e vender espaços a anunciantes. Tal conduta é extremamente comum num mercado online que luta pela atenção do navegante, configurando aquilo que comumente se denomina de click bait (caça-cliques). Este PLS 2922/2020 está pronto para deliberação do plenário na Câmara dos Deputados e também promove inserções de novos dispositivos no Marco Civil da Internet. Buscando definições no Código de Conduta da União Europeia sobre Desinformação, o projeto conceitua fake news como sendo a informação comprovadamente falsa ou enganadora que, cumulativamente: i) é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas ou para enganar deliberadamente o público; ii) é suscetível de causar um prejuízo público, entendido como ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a proteção da saúde dos cidadãos, o ambiente ou a segurança. No rastro da pandemia da covid-19, alguns desses projetos visam a tutela da saúde como direito coletivo. O PLS 5.555/2020 direciona a criminalização tanto da recusa imotivada à vacinação obrigatória em casos de emergência de saúde, quanto da propagação de notícias falsas sobre as vacinas. Já o PL 1.015/2021 prevê pena de 1 a 4 anos de prisão e multa para o crime de criar, divulgar, propagar, compartilhar ou transmitir, por qualquer meio, informação sabidamente inverídica sobre prevenção e combate à epidemia. Nesta mesma esteira, o PL 2.745/2021 tipifica a conduta de divulgar ou propalar, por qualquer meio ou forma, informações falsas sobre as vacinas. Importante registrar que o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.197/2021, que previu o novo título "Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito" no Código Penal, inserindo os vários tipos penais nos arts. 359-I a 359-T e, ainda, revogando a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83). O art. 359-O trazia o novo delito de "comunicação enganosa em massa", com a seguinte disposição: "Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". A pena prevista era de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. Todavia, o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, optou por vetar, valendo-se da seguinte justificativa2: "A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um 'tribunal da verdade' para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica. Outrossim, o ambiente digital é favorável à propagação de informações verdadeiras ou falsas, cujo verbo 'promover' tende a dar discricionariedade ao intérprete na avaliação da natureza dolosa da conduta criminosa em razão da amplitude do termo. A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões, indo de encontro ao contexto do Estado Democrático de Direito, o que enfraqueceria o processo democrático e, em última análise, a própria atuação parlamentar". Diante deste cenário, o Projeto de Lei 2.630/2020, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira, que Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a mais bem construída proposta para o enfrentamento da temática, até o presente momento. Já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, o projeto prevê a proibição da criação de contas falsas, de contas robotizadas (comandadas por robôs), devendo as plataformas digitais desenvolverem mecanismos que limitem o número de contas geridas pelo mesmo usuário. Além disso, a proposta legislativa impões também que estes provedores de serviços online, tais como redes sociais e aplicativos de mensagens, limitem o número de envios de um mesmo conteúdo a usuários e grupos. Há uma clara tentativa de se controlar os envios de mensagens em massa. Por isso, as empresas terão o dever de guarda, pelo prazo de três meses, dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa3. Todavia, o acesso aos registros somente poderá ocorrer mediante ordem judicial, permitindo-se assim que haja espaço para   responsabilização cível e/ou criminal. Este projeto traz também regulações sobre remoção de conteúdos falsos, identificação de postagens que foram impulsionadas com pagamentos, considera de interesse público os perfis de agentes políticos (como chefes do Poder Executivo, por exemplo), cria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, determina que as empresas estrangeiras devam ter representantes no Brasil, sendo que caso venham a descumprir as medidas impostas ficarão sujeitas a advertência e multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício. Para além da atuação do Estado, as próprias companhias de tecnologia estão, mundo afora, alterando seus termos de uso, trazendo mais rigor na análise de conteúdos falsos, fato este que se acentuou nos anos 2020 e 2021. Dois fatos foram as molas propulsoras deste papel mais ativo das empresas: a pandemia e a eleição presidencial norte-americana. As redes sociais, por exemplo, passaram a gerar advertências sobre a suposta falsidade da informação veiculada em determinado perfil, suprimiram publicações e, em caso de reiterações, chegaram até mesmo a excluir o usuário da rede. No Brasil, entretanto, a atuação das plataformas tem sido mais tímida que em solo estadunidense. A grande problemática, num mundo premido por vieses de confirmação e na denominada era da pós-verdade, onde o fato real encontra o muro das narrativas convenientes, é a suposta violação ao direito à liberdade de expressão. Há posicionamento corrente de que a liberdade de expressão merece ser reconhecida como um direito mais amplo, com primazia, devendo ser tolhida apenas em situações absolutamente excepcionais. Contudo, há que se recordar que como direito fundamental que é, a liberdade de expressão está necessariamente subordinada a limites, devendo o abuso de direito ser objeto de adequada repressão, por se tratar de um ato ilícito e ilegítimo. Assim, mesmo sem que haja um diploma específico, o Poder Judiciário tem se esforçado entre erros e acertos, para fornecer respostas à divulgação de notícias inverídicas em variados cenários, valendo-se dos regramentos presentes no Código de Processo Civil, no Código Civil, nas leis eleitorais, no Marco Civil da Internet, entre outros diplomas. A título de exemplo, a utilização de tutelas de inibição, a fixação de astreintes, a determinação de remoção de conteúdos, a desmonetização de sites e canais, o estabelecimento de indenizações, entre outras medidas, vem sendo utilizadas para conter os enormes danos que as fake news causam à sociedade em rede. Por todo o exposto, o combate estatal às notícias falsas merece ser melhor aprimorado no Brasil, buscando-se não apenas a criminalização da divulgação, mas sobremaneira medidas mais efetivas de tutela da informação, como direito difuso que é. A criação de uma causa de inelegibilidade de quem se utiliza dolosamente deste meio abusivo, a previsão de nova hipótese de crime de responsabilidade, a especificação de deveres às sociedades empresárias que atuam no universo online, a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, parecem ser alternativas mais inteligentes e efetivas que a simples criação de novos tipos penais. O ordenamento como um todo merece ser acionado e revisitado, para que o Estado contemporâneo consiga enfrentar uma de suas mais desafiadoras ameaças: a verdadeira "pandemia" de fake news. __________ 1 Fonte: pesquisa no site da Agência Senado apresenta os projetos em andamento. Disponível aqui. Acesso em 17.10.2022. 2 Tal veto (nº 46/2021) está para ser analisado no Congresso Nacional, que poderá mantê-lo ou derrubá-lo. 3 Considera-se encaminhamento em massa, os envios de uma mesma mensagem para grupos de conversas e listas de transmissão por mais de cinco usuários em um período de 15 dias, tendo sido recebidas por mais de mil usuários.
  "Os caminhos não estão feitos. É andando que cada um de nós faz o seu próprio caminho. A estrada não está preparada para nos receber. É preciso que sejam nossos pés a marcar o destino; destino ou objetivo, ou que quer que seja" José Saramago Como anuncia o subtítulo do presente, o brevíssimo ensaio que ora vem a público é fruto de reflexões que tive oportunidade de realizar no IV Congresso Nacional de Responsabilidade Civil do IBERC, em Belém/PA, ocorrido no mês setembro de 2022. De início, registro especial agradecimento à organização do evento, o que faço nas pessoas dos Professores Pastora Leal, Alexandre Pereira Bonna, Nelson Rosenvald e Carlos Edison Monteiro do Rêgo Filho. Do mesmo modo, consigno meus cumprimentos aos ilustres colegas de Mesa, Professores Thais Pascolalotto, Marco Fábio Morsello e Bruno Brasil. A indagação primeira que suscita a reflexão que se compartilha pode ser assim sintetizada: em tema de responsabilidade civil contratual, havendo inadimplemento ilícito, o que se deve indenizar? Mostra-se hoje ainda suficiente a solução apresentada pelo art. 389 do Código Civil para atender às exigências do Princípio da reparação integral, insculpido, dentre outras passagens, no art. 944, caput, do Código Civil do Brasil? A meu ver, a resposta for negativa: é realmente preciso ir além... Se o art. 389 do Código Civil estabelece que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais litros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado", o que se deve, então, indenizar? Qual é o conteúdo da categoria jurídica perdas e danos nas hipóteses de resolução do contrato por inadimplemento culposo (ilícito)? Indeniza-se "apenas o interesse negativo? Ou também o interesse positivo, isto é, aquele que teria se o contrato tivesse sido cumprido?"1 São questões que brotam inexoráveis da própria provocação inicial. Em certa medida, o legislador civil oferece uma solução para o problema da recomposição contratual ao disciplinar a cláusula penal compensatória, o que faz, entre outras passagens, no art. 408 do Código Civil, segundo o qual "incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora". Ocorre que, o próprio legislador, logo a seguir, em duas passagens, excepciona a inevitabilidade desse regime de perdas e danos contratuais. Em síntese, afirma o que é de clareza meridiana: os danos indenizáveis decorrentes do descumprimento do contrato podem ser superior ao montante da cláusula penal compensatória. podem ser superiores aos fixados a esse título. Primeiro, no art. 410 do Código Civil, estabelece que "quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor. Caso o valor do dano seja superior ao valor da cláusula penal, o inocente pode pedir indenização suplementar". Segundo, no art. 416 do mesmo diploma, afirma, no seu parágrafo único, que "ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente". Note, portanto, que deflui do próprio regime legislativo a possibilidade de admitir-se que, diante do ilícito inadimplemento do programa contratual, outros interesses são passíveis de atenção, para realizar-se o Princípio da reparação integral.2 Nesse cenário, surge, então, a discussão da indenizabilidade dos interesses contratual positivo e negativo.3 A eles. O interesse contratual negativo (também referido como interesse da confiança), conquanto tenha gênese na investigação dos danos na fase pré-contratual, diz respeito ao dever de repor-se o contratante inocente à situação em que se encontraria caso não tivesse celebrado o contrato, isto é, como se o inocente jamais tivesse "entrado em negociações que se viram injustamente frustradas."4 De outro lado, o interesse contratual positivo (também denominado interesse de cumprimento) diz respeito àquela situação que resultaria para o credor inocente se tivesse havido o perfeito cumprimento do contrato: presta-se, portanto, resumidamente, a colocar o contratante na exata situação econômica em que estaria caso o contrato fosse sido fielmente cumprido, em perfeita atenção ao que impõe o Princípio pacta sunt servanda. Dito de outra forma, a indenização do interesse contratual negativo (interesse de confiança ou dano negativo) assenta suas raízes na doutrina da responsabilidade civil pré-contratual e visa levar o inocente à situação em que ele estaria se jamais tivesse celebrado o contrato (ou se não tivesse iniciado negociações que se frustraram injustamente, seja pelo recesso injustificado; seja pela revelação de segredos/informações; seja pela omissão de informações relevantes para formar o contrato etc.), como exemplifica Gisela Sampaio da Cruz Guedes5, com respaldo nas lições de Judith Martins Costa.6 De outro lado, de acordo com a doutrina do interesse contratual positivo (também referido como interesse no cumprimento ou por dano positivo), deve se indenizar tendo em perspectiva a necessidade de colocar-se o inocente na mesma situação patrimonial em que ele estaria se o contrato tivesse sido cumprido corretamente. Disso decorre que se devem indenizar todos os prejuízos que brotam do não-cumprimento definitivo (ou do cumprimento tardio/defeituoso). A indenização do interesse contratual positivo, portanto, abrange o equivalente à prestação (dano emergente e lucros cessantes) somado à reparação de todos os demais prejuízos que diretamente derivam da própria inexecução do contrato: coloca-se o inocente, como referi, na mesma situação em que ele estaria se a obrigação tivesse sido perfeitamente cumprida, o que se mostra de todo razoável. Pela tutela do interesse contratual positivo, é fácil ao leitor perceber a insuficiência de uma visão extremamente restritiva do art. 403 do Código Civil, segundo o qual "ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato (...)". A partir da visão ampliativa da indenizabilidade de danos contratuais, por exemplo, seria possível perquirir o cabimento da teoria da responsabilidade civil (contratual) pela perda de chance no cenário celebração de um contrato com determinada pessoa, que, frustrado, fez impossível a celebração de outro contrato com o inocente, configurando-se para o inocente uma situação jurídica que lhe traria a reais chance de obter-se maiores vantagens...7 No Brasil, há salutar tendência de alargamento dos danos contratuais indenizáveis. Expandir o âmbito de danos indenizáveis por rompimento da relação contratual para melhor atender às exigências do Princípio da reparação integral é uma perspectiva que se afina às tendências contemporâneas do Direito Contratual, da Responsabilidade Civil e da correta interpretação das exigências do Princípio da reparação integral. Enfim, o modelo dogmático que se assenta sobre as bases tradicionais do art. 389 do Código Civil não mais atende à complexidade das relações jurídicas contemporâneas, sequer quanto à função compensatória da responsabilidade civil contratual. Seguindo a mesma trilha, por exemplo, não seria demais indagar a possibilidade de reconhecer-se um plus ao valor indenitário decorrente também da ilícita violação às expectativas contratuais legítimas despertadas e da grave frustração da confiança depositada pelo inocente, em interpretação sistêmica do parágrafo único do art. 944 do Código Civil, a contrário sensu. Os conceitos, portanto, estão em construção... O Superior Tribunal de Justiça acolhe a possibilidade de abarcar-se com maior envergadura a indenização de interesses contratuais negativos e positivos, como se colhe da Leitura dos voto-vista lançado pela Min. Nancy Andrighi nos autos de Recurso Especial 1.641.868/SP.8 Novos tempos. Novas realidades. Novos danos indenizáveis... A insuficiência dos modelos tradicionais para atender às exigências da Responsabilidade Civil por inadimplemento ilícito do contrato exige um olhar rente à vida e ao Direito no século XXI. As novas luzes que incidem sobre os danos contratuais permitem indagar: devem ser indenizados os lucros ilícitos (ilegítimos) que decorrem da violação de um contrato?9 A resposta é positiva. Nesse sentido é o recente entendimento do Tribunal de Contas da União: na responsabilidade civil contratual, é possível indenizar os danos decorrentes de comportamentos ilícitos parasitários fruto da conduta ilícita da parte (disgorgment).10 Em 10 de agosto de 2022, a Corte de Contas acolheu com acerto a tese de que "a restituição de lucros ilegítimos está fundamentada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, assim como no princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza e ainda nos efeitos retroativos da declaração de nulidade, no sentido de que se deve buscar a restauração do status quo ante ." Enfim, o ensaio que ora se encerra traz um convite à comunidade jurídica, que deve investigar quais são os critérios e os limites a serem respeitados para atender-se ao Princípio da reparação integral nas hipóteses de ilícito descumprimento do contrato. Não se pode descartar a indenizabilidade de interesses contratuais positivos. Não se pode afastar do inocente o direito à indenização dos lucros decorrentes do ilícito perpetrado. Se o caminho não está ainda feito e pronto para nos receber, como nos encoraja Saramago, que sejamos nós a andar, e que assim façamos o próprio caminho. "Conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade": são as ferramentas, com as quais nos encoraja Norberto Bobbio11, para que possamos chegar a bom porto. ---------- 1 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009 , p. 489, comentários ao art. 402 do Código Civil 2 Sobre o Princípio da reparação integral, ver: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. GUERRA, Alexandre. Reparação integral vs. indenização tarifada: o que a lei 14.128/21 espera de nós? Disponível aqui. 3 Sobre o tema, ver: PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora. vols. 1 e 11. 2008. STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Responsabilidade civil e interesse contratual positivo e negativo (em caso de descumprimento contratual). In. GUERRA, Alexandre D. de Mello; BENACCHIO, Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura. Disponível aqui;   GUERRA, Alexandre D. de Mello. Interesse contratual positivo e negativo: reflexões sobre o inadimplemento do contrato e indenização do interesse contratual positivo. Revista IBERC, Minas Gerais, v.2, n.2,mar.jun./2019,p. 1-23. Disponível aqui. SILVA, Rodrigo da Guia. Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo: influxos da distinção no âmbito da resolução do contrato por inadimplemento. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 3, n. I ,p. I -37 ,jan./abr. 2020. Disponível aqui. 4 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 482. 5 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 125 ss 6 Nas palavras de Judith Martins-Costa, para delimitar as perdas e danos na resolução, encara-se o prejuízo que o lesado deixaria de ter se não tivesse confiado que o contrato teria regular eficácia. O que deixou de ganhar também é indenizado, pois o que se indeniza é o dano que resultou de se ter tornado sem efeito o que se cria que teria efeito. Logo, o que se indeniza é interesse negativo, interesse da confiança. Porém, não nos esqueçamos que o art. 402 introduz o postulado normativo da razoabilidade que contém uma das facetas da equidade. Ao aludir ao que o lesado "razoavelmente deixou de lucrar" seria équo considerar - tal qual ocorre no dano pré-contratual - as expectativas ilegitimamente frustradas, tais quais os decorrentes da perda de uma chance, pois essa poderá consistir em uma vantagem que o lesado teria obtido se não tivesse confiado que o contrato projetasse regularmente a sua eficácia" (MARTINS-COSTA, Judith. Ob. cit., p. 491). 7 Vale acentuar que o Sistema Commom Law norte-americano encontra aberturas à indenização dos danos suportados pelo inocente, como se pode verificar em FARNSWORTH, E. Allan. Legal Remedies for Breach of Contract. Columbia Law Review, vol. 70, no. 7, 1970, pp. 1145-216. JSTOR. Disponível aqui. Accessed 25 Aug. 2022; PIZZOL, Ricardo Dal. Exceção de contrato não cumprido. Indaiatuba: Foco, 2022. 8 Disponível aqui. 9 Cfr. ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bemard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil - RFDC, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. Disponível aqui. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgment e a indenização restituitória. JusPodium, 2019. 10 CAVALLARI, Odilon. TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement. 11 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 232.
Não fosse issoe era menosNão fosse tantoe era quase1 Introdução Débora solicitou um tratamento cuja negativa pelo plano de saúde fundou-se na ausência de previsão no Rol da ANS. Em sede judicial, julgou-se razoável a negativa, e ainda assim, determinou-se a cobertura. Sarah ingressou com demanda judicial e obteve tutela antecipada a qual assegurou que cirurgia eletiva (sem urgência) fosse realizada. As situações acima expostas, embora hipotéticas, servem como singela ilustração da complexidade da saúde suplementar e das nuances das controvérsias que se desdobram em reparação por danos. Enfoca-se neste artigo as negativas de tratamentos não previstos no rol da ANS, e as hipóteses em que são afastados os danos à pessoa, frequentemente, designados de "danos morais". Não se examina os danos associados a reajustes, extinção contratual ou atos de prestadores como clínicas e hospitais2. Rol da ANS: afinal, quais as coberturas obrigatórias? A lei 9.656/1998, "Lei dos planos de saúde", estabelece de forma ampla as coberturas obrigatórias. Por exemplo, o art. 12, inc. II, alínea 'a' impõe o custeio de internações para os contratos com cobertura hospitalar. A respeito cabe indagar, isso significa o dever de custeio de todas as cirurgias imagináveis realizadas em hospitais? Para regular o tema, a Agência Nacional de Saúde Suplementar estabeleceu por meio de resolução uma listagem de procedimentos obrigatórios, popularmente chamada de "Rol da ANS". "A jurisprudência do STJ, até o ano de 2020, havia consagrado a compreensão de que o rol da ANS possuía caráter ilustrativo. Ao mesmo tempo, contudo, não havia um critério claro para o fornecimento"3. A cobertura fora rol frequentemente exigia apenas a prescrição do médico que acompanha o paciente, em que pese os acórdãos apontassem também como parâmetro o caráter indispensável tratamento4. Assim, julgava-se que "A recusa indevida à cobertura de cirurgia é causa de danos morais"5. A construção jurisprudencial ensejou a divergência no sentido de que "a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo".6 Na apreciação do tema, ao adotar a expressão "taxatividade mitigada", ao invés de um "caráter exemplificativo condicionado", o STJ buscou, possivelmente, reforçar dois aspectos centrais: i-) o rol é a regra; ii-) as exceções dependem da verificação de hipóteses cujo ônus probatório recai sobre o solicitante. Vale dizer, nem se consagrou o rol da ANS como exaustivo, nem se pode, simplificadamente, afirmar um caráter ilustrativo. A edição da lei 14.454/2022, equivocadamente tem sido associada à consagração de um rol ilustrativo, o que não encontra respaldo no texto normativo. De acordo com o art. 10, § 4º, da Lei dos Planos de Saúde, na redação definida pela nova lei: "A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação". Para tratamentos não previstos no rol, exige-se, de forma muito próximo ao que estabeleceu o STJ, a comprovação de requisitos específicos, senão vejamos: O quadro acima revela considerável identidade entre a compreensão jurisprudencial e a nova redação da Lei dos Planos de Saúde, com exceção ao critério (i-) da decisão judicial. Danos à pessoa e planos de saúde: afastamento do chamado "dano moral" Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é possível identificar precedentes que consideram que a negativa de tratamento pelo plano de saúde caracteriza dano moral in re ipsa7. Em sentido contrário, consagra-se a compreensão de que a recusa, mesmo ilegítima, "não configura dano moral indenizável, que pressupõe ofensa anormal à personalidade"8. Dessa maneira, a negativa de cobertura somente enseja reparação "quando trouxer agravamento da condição de dor, abalo psicológico e prejuízos à saúde já debilitada do paciente"9. A partir do exame dos precedentes do STJ, identifica-se um segundo filtro a ser observado que consiste em apurar se a negativa fundamenta-se em dúvida razoável de interpretação, tal como na hipótese procedimentos não contemplados no Rol da ANS. Dessa maneira, julga-se que "não há se falar na ocorrência de dano moral indenizável quando a operadora se nega a custear tratamento médico com base em previsão contratual que excluía a cobertura da referida terapêutica, ou seja, com base em dúvida razoável"10, o que na compreensão do STJ afasta a antijuridicidade da conduta. "Há situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a pretensão de compensação por danos morais"11. Para maior clareza, sem caráter exaustivo, apresentam-se os seguintes quadros: Considerações finais A jurisprudência do STJ, ao longo do tempo, tornou mais rígida a possibilidade de concessão de tratamentos não contemplados pelo Rol da ANS. Não obstante seja impreciso afirmar que adotou-se a compreensão de taxatividade, no plano do direito de danos, a ausência de previsão no rol é tomada como "dúvida razoável", o que, na compreensão do Superior Tribunal de Justiça afasta o dever de reparar. Nesse sentido, é possível identificar uma análise bifásica da reparabilidade do dano extrapatrimonial em sede de negativa de cobertura. Em um primeiro momento, examina-se o contrato e a legislação para verificar se há dever de cobertura; em uma segunda fase, avalia-se se há dúvida razoável na interpretação contratual, e os impactos que a recusa representou, no caso concreto ao paciente. Ao retomar os casos apresentados ao início sob a perceptiva da compreensão do STJ, observa-se que a negativa do tratamento para Débora pode não ensejar danos extrapatrimoniais se fundada em cláusula contratual que enseje dúvida razoável, mesmo se o tratamento for assegurado por interpretação extensiva do Rol da ANS12. Sarah, igualmente, poderá ter rejeitada a pretensão reparatória visto que seu procedimento é eletivo e o atraso no acesso não tenha representado impacto a sua saúde. Em apertada síntese, é possível afirmar que na compreensão do Superior Tribunal de Justiça: 1. A negativa de cobertura de um tratamento pela operadora de plano de saúde não é suficiente para caracterização do dano à pessoa (dano moral); 2. Para examinar a reparabilidade do dano faz-se necessário uma dupla análise. Além de verificar o dever de cobertura, no plano objetivo examina-se a presença de dúvida razoável na interpretação contratual; no plano subjetivo, a reparação do dano à pessoa depende da comprovação de impacto à saúde ou abalo relevante; 3. Na jurisprudência do STJ, a recusa indevida de cobertura pode ensejar a reparação por danos; a contrario sensu, a negativa baseada em dúvida razoável é legítima e afasta o dever de reparar. 4. Um tratamento, mesmo se previsto no Rol da ANS, pode ser negado de modo legítimo, por exemplo em vista de carência, extinção do contrato, por não haver compatibilidade com a condição de saúde do paciente. __________ 1 LEMINSKI, Paulo. Não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase. Curitiba: ZAP, 3 ed. 1980. 2 Enfrentamos o tema recentemente, permita-se referir: SCHULMAN, Gabriel. Responsabilidade civil dos planos de saúde e suas nuances: erro médico, ações regressivas e responsabilidade solidária na saúde suplementar. Revista IBERC, v. 5, n. 2, p. 220-246, 8 jun. 2022.  3 SCHULMAN, Gabriel. Duas novidades surpreendentes na jurisprudência do STJ sobre a cobertura de tratamentos por planos de saúde: necessidade de registro de medicamentos na Anvisa (2018) e caráter taxativo do rol da ANS (2020). Revista do Advogado, São Paulo, v. 40, n. 146, p. 53-67, jun. 2020. 4 Idem. Sobre o tema, confira-se recente levantamento, em que temos a alegria de figurar: BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Amplitude da cobertura dos planos de saúde e rol de procedimentos da ANS: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022. 5 STJ. AgRg no AREsp 158625. Rel.: Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma. DJe 27/08/2013. 6 STJ. REsp 1733013/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª, Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020. No mesmo sentido, STJ. AgInt no REsp 1848717/MT, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª. Turma, DJe 18/06/2020. STJ. Agravo em Recurso Especial n. 1.562.169. Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO. DJe: 14/04/2020. O presente artigo não aprofundará esta discussão, seus acertos ou limites. 7 Com igual teor: STJ. EREsp: 1889704 SP, Rel: Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe: 29/6/2021. 8 STJ. AgInt no AREsp n. 1.978.927/PB, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe: 30/06/2022. STJ. AgInt no AREsp n. 1.782.051/PR, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª. Turma, DJe: 15/6/2021. 9 STJ. AgInt no REsp n. 1.988.367/SE, Rel.a Minª. Maria Isabel Gallotti, 4ª. Turma, DJe de 30/9/2022. Distingue-se assim o inadimplemento do dano: ROSENVALD,  Nelson. As  funções  da  responsabilidade  civil:  a  reparação  e  a  pena  civil.  São Paulo: Atlas, 2013, p. 187. 10 STJ. REsp n. 1.904.603/RS, Rel.a Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe de 24/2/2022. 11 STJ. AgInt no REsp 1927347/RS, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, 3ª. Turma. DJe 28/05/2021. 12 STJ. REsp 1.645.762/BA, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe 18/12/2017. 13 Nessa linha STJ. REsp: 1876630, Rel. Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe 11/03/2021.
Respeite mais, julgue menos!Perdoe mais, condene menos!Abrace mais, empurre menos!Faça mais, fale menos! [...] Seja menos preconceito!Seja mais amor no peito!Seja amor, seja muito amor!E se mesmo assim for difícil sernão precisa ser perfeito.Se não der pra ser amorseja pelo menos RESPEITO! Bráulio Bessa O mundo digital exerce atualmente caráter prioritário na vida em sociedade, tendo assumido novos contornos com o período eleitoral. Se o advento das redes sociais, há cerca de 10 anos, trouxe um novo olhar a respeito do marketing pessoal, da democratização da economia digital e do exercício da liberdade de expressão, fez emergir também, em tempos de extremismos políticos, um grande palco para a produção de danos. As corriqueiras dancinhas, "reels", vídeos divertidos e a novel publicidade orgânica deram lugar a um palco de xingamentos, agressões, repúdios, discursos odiosos com requintes de racismo e, sobretudo, de xenofobia, deixando ainda mais evidente o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, pois não houve uma educação digital para a convivência social nesse ambiente. Quando isso se alia ao extremismo do debate político, evidencia-se ainda mais o desrespeito dos usuários às lições básicas de educação, empatia, cordialidade e de convivência com a divergência de opiniões. Por consequência, potencializa-se a ocorrência de danos. Longe de esgotar o tema, esse artigo traz, em um primeiro momento, um breve relato sobre os danos sofridos pelos nordestinos no ambiente digital, decorrentes de declarações xenofóbicas e, em um segundo momento, busca-se avaliar a viabilidade de cumulação entre a reparação pecuniária e a natural, com o objetivo de atender ao princípio da reparação integral. O caso de xenofobia Recentemente, com o resultado do 1º turno das eleições presidenciais, o exercício - legítimo - da liberdade de expressão foi confundido com liberdade de agressão, resultando em abuso de direito. Vários vídeos com críticas xenofóbicas pelo resultado das eleições presidenciais do primeiro turno circularam nas redes, sendo o de maior repercussão o da advogada de Uberlândia/MG, então vice-presidente da comissão da mulher advogada.   No vídeo, a advogada critica o Nordeste e diz que não vai mais "alimentar quem vive de migalhas", por ter o candidato da oposição ao governo tido expressiva votação naquela região. Na ocasião, a advogada: "A todos aqueles brasileiros que a partir de hoje têm que ser muito inteligente. Nós geramos empregos, nós pagamos impostos e sabe o que que a gente faz? A gente gasta o nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos fazer isso mais. Vamos gastar dinheiro com quem realmente precisa, com quem realmente merece. A gente não vai mais alimentar quem vive de migalhas. Vamos gastar o nosso dinheiro aqui no Sudeste, ou no Sul ou fora do país, inclusive porque fica muito mais barato. Um brinde a gente que deixa de ser palhaço a partir de hoje". A declaração viralizou no mesmo dia e causou perplexidade na comunidade jurídica, resultando em notas de repúdio assinadas por parte de todas as seccionais da OAB do Nordeste, além da exoneração da advogada do cargo de vice-presidente a comissão da mulher advogada. O presidente da OAB/MG, Sérgio Leonardo, respondeu rapidamente às declarações da colega, alertando ao fato que essa é uma opinião pessoal que materializam preconceito e discriminação ao povo nordestino, não refletindo a opinião da instituição e assegurando que as providências disciplinares cabíveis ao caso seriam tomadas. A advogada emitiu nota procurando se desculpar com a população nordestina ao tempo em que quis se desviar da conduta criminal e se vitimizar por ataques sofridos no ambiente virtual após as suas declarações: "Em razão de manifestação pessoal publicada em minhas redes sociais, venho a público me desculpar por compreender a infelicidade do que foi falado, uma vez que é totalmente incompatível com meus valores. Minha conduta, embora reprovável, não se encontra tipificada como crime em qualquer dispositivo legal vigente. A exposição da minha fala foi feita por terceiros, sem o meu consentimento, e fez com que eu siga atacada com as mais diversas formas de violência contra a mulher, tendo que blindar a mim e minha família. A infelicidade da minha fala não pode autorizar ou justificar a prática de crimes graves contra a minha pessoa, que vão desde injúria e difamação, até mesmo a apologia ao estupro. Em um Estado Democrático de Direito os fins não justificam os meios. Lamento pela repercussão desta infeliz colocação e me arrependo profundamente pelo ocorrido, desculpando-me com todas as pessoas de origem nordestina que tenham se sentido ofendidas, retratando-me completamente." Na sequência, a Defensoria Pública de Minas Gerais ingressou contra a advogada com ação civil pública com pedido de danos morais coletivos em favor do povo nordestino. A peça, assinada por sete defensores públicos, tinha dentre os pedidos: i) a imediata retratação da advogada pelas ofensas provocadas, por todos os meios de comunicação disponíveis, notadamente, em sua rede social e no jornal local; ii) a condenação da advogada por dano moral coletivo no valor de R$ 100.000,00, devendo o valor ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos; iii) o envio de ofício ao ministério público estadual para eventual apuração de crime e iv) o envio de ofício à OAB/MG para eventual instauração de procedimento administrativo por desvio ético, além dos pedidos de praxe.  A reparação integral dos danos coletivos de natureza existencial Apesar de não haver, na legislação brasileira, dispositivo específico regrando a reparação natural, traduzida, na hipótese em questão, no dever de pedir desculpas por parte da causadora do dano, a sua aplicabilidade se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, Carlos Edison Monteiro Filho: Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.1 Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente. Nesse contexto, o pedido de desculpas pode figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo. Em algumas situações, a reparação natural pode se demonstrar bem mais eficiente do que a compensação financeira, cabendo à vítima indicar a via adequada para atender à reparação integral de forma eficaz. Isso porque a solução apontada como adequada para um, pode não ser a mais benéfica para outro, pois não há como conceder uma mesma providência jurisdicional a todas as violações sofridas pela sociedade. Assim, danos de somenos importância como uma inscrição indevida em cadastro restritivo de crédito podem, a depender da situação, ser resolvidos rapidamente com uma reparação pecuniária. Em outras hipóteses isso não acontece, sendo necessário analisar a viabilidade da cumulação dos pedidos reparatórios, visto como um meio de minorar o dano sofrido pela vítima, e compensatório, isto é, a imposição de condenação pecuniária. Apesar da cumulação de pedidos da referida peça ajuizada pela defensoria mineira, para parte da doutrina é difícil aceitar a cumulação de pedidos quando se enxerga a reparação natural como primeira e única via adequada a reparar o dano, no sentido de levar a vítima ao status quo ante. Assim, para Leonardo Fajngold, esse retorno ao estado anterior de coisas seria suficiente para reparar integralmente à vítima. Em outras palavras: havendo reparação natural, a compensação não teria lugar e, por consequência, a cumulação dos pedidos não seria permitida, pois o dinheiro não repara, compensa2. No entanto, quem, senão a vítima, seria capaz de indicar como a reparação integral será atendida? Nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação semelhante a este estado. Nas ações coletivas relativas a danos ambientais, por exemplo, o dever de reflorestamento como via de retorno ao que mais se aproxima do status quo ante não afasta o dever de indenizar. Isso se torna ainda mais evidente quando o dano sofrido é coletivo como na hipótese dos danos provocados por declarações xenofóbicas a uma determinada população. A cumulatividade entre as funções reparatória (pedido de desculpas) e compensatória, deve, portanto, ser de escolha do autor da ação. No caso do dano coletivo por xenofobia, o pedido de desculpas não afasta a reparação pecuniária, pois a indenização serve como meio de viabilizar o fomento de instituições que trabalham em prol da coletividade lesada. Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera: O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso3.  Em tempos de redes sociais, exposições e agressões por meio da Internet tomam uma proporção infinitamente superior e, por vezes, fora do controle das pessoas. Algumas pessoas parecem esquecer que o dever de se abster de causar um dano a outrem (nemimem laedere) é cláusula geral de conduta, irradiada em todo ordenamento jurídico. Se a natureza dos direitos da personalidade não permite uma significação patrimonial exata hábil a aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem viabiliza a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas eficazes para a recomposição dos danos, utilizando-se para tanto todos os meios admitidos em direito. Isso porque as necessidades existenciais de cada um não se apresentam de modo uniforme. Os modelos abstratos da codificação anterior não se demonstravam adequados para as demandas contemporâneas, tendo o Código Civil de 2002 dado um grande passo em favor da defesa dos direitos da personalidade. Cabe à doutrina continuar exercendo o seu papel instrutivo, fomentando o debate e trazendo entendimento ao tema da reparação integral, mediante o reconhecimento das variadas formas de recomposição natural, sem que, com isso, haja exclusão da reparação pecuniária. A admissão da cumulação de pedidos não tem por objetivo esvaziar o instituto da reparação natural, mas dar efetividade ao princípio da reparação integral do sistema brasileiro. Sob esse ponto de vista, não se deve retirar da vítima o poder de, no pleno exercício do acesso à justiça, indicar o que melhor atende à reparação integral e pleitear uma indenização aliada a uma das formas de reparação natural. Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da xenofobia, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar as vítimas à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos nos moldes realizados pela defensoria pública mineira. __________ 1 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 2 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. O autor entende que a cumulação da reparação natural com a reparação pecuniária implicaria em esvaziar o instituto da reparação natural, vista como meio hábil de levar a vítima ao status quo ante. Para o autor, a admissão de uma reparação natural cumulada com uma compensação financeira implicaria em aceitar que o instituto da reparação natural não tem o condão de reparar. 3 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.
terça-feira, 11 de outubro de 2022

As questões legislativas do dano moral

O atual momento do dano moral, no Brasil, está enfrentando um grande desafio, pois devido a falácia que se criou de que estaríamos diante de uma indústria do dano moral, foram criados mecanismos legislativos que acabaram inibindo o ingresso de ações judiciais com pleito indenizatório por danos morais, o que gerou preocupação de várias instituições que defendem o livre acesso à Justiça e o direito dos cidadãos. Na verdade são duas questões no âmbito legislativo que se verificam a necessidade de alteração, ao menos no meu entendimento, e de vários doutrinadores. A primeira mudança legislativa necessária encontra-se na esfera trabalhista, que contém uma inconstitucionalidade absurda! A lei 13.467/17,1 chamada de "Reforma Trabalhista," alterou vários pontos contidos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, de maneira substancial, dentre outras situações estranhas, o art. 223 A e G,2 tabelou o valor a ser pago a título de indenização por dano extrapatrimonial, fazendo clara distinção no valor de cada vida perdida, por exemplo, num acidente de trabalho. Ora, de acordo com esta infeliz alteração, os familiares de um funcionário que foi vítima fatal de acidente de trabalho farão jus a uma indenização maior do que os familiares do funcionário que recebia um salário mais modesto, o que é desumano e difícil até de explicar para quem perde um ente querido em acidente de trabalho. O referido artigo, que parece ser uma reedição do tabelamento do dano moral, quando da antiga Lei de Imprensa, o qual foi considerado inconstitucional, ao definir que os valores da condenação deverão ter como referência o último salário contratual do empregado - até três vezes, quando a ofensa é de natureza leve, alcançando o máximo de 50 vezes para casos gravíssimos. E dessa forma, flagrante, esses nefastos artigos da Reforma Trabalhista, violam o princípio da reparação integral do dano, conforme acentua o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, pois não permitem que os danos causados sejam livremente medidos pelo julgador, haja vista, a limitação da norma cuja declaração de inconstitucionalidade se faz necessária. Esses arts. 223 A e G da Reforma Trabalhista, também violam o princípio da isonomia, consoante art. 5º, caput da CF, e os arts. 7º, XXVIII, 225, caput, VI da Constituição Federal.3 Em breve síntese, é evidente o afrontamento ao princípio constitucional da igualdade, pois na Justiça do Trabalho existe o limitador do famigerado artigo, mas na Justiça Cível o julgador é livre para condenar o agente causador, por dano moral, arbitrando o valor que bem entender. Ou seja, as vítimas que sofrem e fazem jus a indenização por danos morais  teriam seu direito limitado na Justiça do Trabalho, ao passo que na Justiça Cível não haveria qualquer limite de indenização !! Por conta disso, atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal, três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), que postulam a declaração da inconstitucionalidade dos artigos da reforma trabalhista.  Pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) ADIS 6050, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, ADI 6082, e a movida pelo Conselho Federal da OAB, ADI 6069. Neste momento, após o Ministro Gilmar Mendes4 se pronunciar em seu voto, de forma muito sábia pelo livre arbitramento do dano extrapatrimonial pelos magistrados, embora não tenha considerado que os artigos são inconstitucionais, o Ministro Cassio Nunes, pediu vista ( outubro/2021), e assim se encontra o processo até a presente data a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade 6069. A segunda questão do dano moral, está contida no Código de Processo Civil,5 no art. 292, inciso V,6 que obriga o advogado a inserir o valor do dano moral na petição inicial. É sabido, que na jurisprudência não existe consenso nos valores arbitrados a título de dano moral. Basta examinar os casos concretos para se constatar que diante da mesma situação de fato incidem valores de condenação diferentes, pois cada magistrado valora os danos morais de forma subjetiva de acordo com seu entendimento pessoal frente a demanda que se apresenta. Ainda, é possível que diante de um mesmo episódio, um magistrado entenda que houve violação do direito à personalidade, condenando o agente causador ao pagamento de indenização por danos morais, enquanto seu colega julga a ação improcedente por entender que os fatos narrados não passaram de mero dissabor da vida comum. Ou seja, é impossível valorar no início da ação o valor dos danos morais, pois os mesmos podem inclusive ser agravados ou minimizados no decorrer do processo judicial. O que não considero equivocado, pois o arbitramento do dano moral, depende da instrução, da oitiva de testemunhas, de laudos e perícias (caso ocorram) para ao final, o julgador, ter as informações suficientes, e arbitrar o valor como era antes do advento Código de Processo Civil atual. É impossível o advogado quantificar este valor na inicial, no momento da distribuição da ação, pois as dificuldades em atribuir o valor do dano são imensas, e necessita da instrução para isso. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça,7 um processo judicial cível tem tempo de tramitação médio de quatro anos e cinco meses. Assim, ao longo desse período muitas situações podem ocorrer e impactar nos danos sofridos pelo demandante, sendo evidente que a mudança legislativa que impõe a obrigatoriedade de estipulação do dano no ato da distribuição do processo, além de deixar de refletir o direito da vítima é um retrocesso. Por exemplo, no caso de um acidente aéreo, que tenha vitimado o filho único de um casal. Que valor o advogado colocaria na petição inicial, a título de condenação por danos morais, para cada um dos genitores ?!?! Na jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho, tanto na esfera trabalhista como cível, e mesmo no Superior Tribunal de Justiça, uma pesquisa com uma certa profundidade encontrará valores de dano moral para cada um dos genitores de 200 salários-mínimos, 300 salários-mínimos, podendo alcançar até 500 salários-mínimos, este último mais raro de ocorrer. Mas, e que valor o advogado coloca no pedido?! Se não existe consenso jurisprudencial!! E mais, o advogado tem que se preocupar com a questão das custas judiciais. Se o cliente não possuir o direito à assistência judiciária gratuita, o acesso à Justiça fica prejudicado, pois a pretensão a indenização do dano moral será bem defasada em relação a sua real pretensão. E os honorários sucumbenciais, como ficariam, se a pretensão do pedido na inicial, ocorresse um decaimento!? Na forma do exemplo do acidente aéreo, se a inicial contivesse o pedido indenizatório de dano moral de 300 salários-mínimos para cada genitor e a decisão final arbitrasse em 200 salários-mínimos para cada um, como ficaria a fixação da sucumbência? Fica o questionamento, os honorários sucumbenciais incidiriam sobre o valor que o demandante decaiu, ou seja, 100 salários-mínimos? Esta questão também gerou polêmica, pois a súmula 3268 do Superior Tribunal de Justiça não permite a sucumbência em relação a danos morais.  E nesse sentido, em julgamento recentíssimo da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do eminente Ministro Antônio Carlos Ferreira,9 este decidiu que em indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Dessa forma, vivenciamos esse momento em que é necessário a luta pela garantia dos direito ao livre acesso à Justiça e à dignidade da pessoa humana, possibilitando que os magistrados possam fixar danos morais de forma justa, sem tabelamento e que os advogados possam ajuizar uma ação de danos morais de forma tranquila sem necessidade de fixar inicialmente o valor dos danos morais. ---------- 1 BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022. 2 'Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.' [...] 'Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: [...] § 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; (BRASIL, 2017). 3 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 4 Após o voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator), que conhecia das ADI 6.050, 6.069 e 6.082 e julgava parcialmente procedentes os pedidos formulados, para conferir interpretação conforme a Constituição, de modo a estabelecer que: 1) As redações conferidas aos art. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou danos em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por danos extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em: 30 ago. 2022.). 5 BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022. 6 Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;(BRASIL, 2015). 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2020. Brasília: CNJ, 2020. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022, p. 47. 8 "Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca" (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 326. Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2006]. Disponível aqui. Acesso em: 30 ago. 2022.) 9 "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. REVISÃO. REEXAME DE PROCAS E FATOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N 7/STJ.VALOR DA INDENIZAÇÃO.PEDIDO.CONDENAÇÃO.QUANTUM DEBEATUR. INFERIOR AO PEDIDO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA326/STJ. SUBSISTÊNCIA NO CPC/2015.RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial nº 1.837.386-SP. Civil e Processual Civil. Recurso Especial. [...].Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira, 16 de agosto de 2022.).
O presente ensaio é uma conversão da palestra apresentada no IV Congresso Nacional do IBERC, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil - IBERC em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/Pará.  O tema abordado são os danos sociais, razão pela qual se faz necessária a sua delimitação conceitual e a sua diferenciação quanto aos danos correlatos. Centralidade do dano Partimos do pressuposto de que o dano é o elemento desencadeador dos deveres de responsabilidade civil: prevenção/precaução e reparação. Isso quer dizer que não se pode cogitar de responsabilidade civil sem ao menos uma probabilidade de dano. Isso se deve ao fato de que o dano é fenomênico, pois acontece no mundo dos fatos, na relação tempo/espaço. Entre os pressupostos da responsabilidade civil, o que atinge os nossos sentidos e afeta diretamente a vida das pessoas é o fenômeno danoso. A doutrina especializada traz diversos conceitos1, mas o certo mesmo é que o dano algo de ruim que acontece na vida da vítima. O dano é algo ruim e injusto porque a vítima não tem obrigação de tolerar. É claro que muitas coisas ruins acontecem na vida, mas não são danos. Por exemplo, pagar imposto é um sério prejuízo para o contribuinte, mas se trata de uma obrigação legal que ele tem o dever de suportar. Além disso, o dano tem que ser causado por outra pessoa porque se for causado pela própria vítima pode ser um prejuízo, mas não é dano2. Então, o dano pode ser entendido como prejuízo injusto e heterônomo porque é causado por outra pessoa e porque a vítima não está obrigada a suportá-lo, nem por lei nem por contrato. Principais classificações: Dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso O dano comporta várias classificações: dano patrimonial e extrapatrimonial, dano ao patrimônio e dano à pessoa, dano ordinário e extraordinário, dano individual e coletivo/difuso. Além disso, dependendo da abordagem, o dano moral comporta uma série de especificações: dano psíquico, dano físico, dano estético, dano existencial. Entre essas classificações, há duas que interessam diretamente à delimitação do nosso estudo: dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso3. A classificação dano ordinário e extraordinário nos faz pensar que existem danos comuns, que acontecem ordinariamente, o que é normal na vida em sociedade; e danos que extrapolam este senso de normalidade, aqueles que não deveriam acontecer nem em nossos piores pesadelos. Além disso, se pensarmos nas consequências do evento danoso, percebemos que alguns danos são individuais porque atingem determinada pessoa ou grupo de pessoas, ao passo que outros são coletivos porque refletem sobre a coletividade. A combinação entre esses fatores - natureza extraordinária e consequências sobre a coletividade - é um problema que tem nos ocupado nos últimos tempos, diante das grandes tragédias que ocorreram em nosso país. Longe de se apontar para este ou aquele culpado, para esta ou aquela empresa, o que nos ocupa é a busca de soluções jurídicas para enfrentar esse tipo de situação. A observação desses fenômenos revela a existência de algumas características que são próprias do dano extraordinário ou dano enorme. Um desses aspectos é a multiplicidade ou indeterminação de suas causas. Outro aspecto é a magnitude de suas consequências. O terceiro é que provocam intensa comoção social4. Os danos extraordinários são danos impregnados de socialidade, tanto em suas causas, como em suas consequências e em sua reflexividade, pois são relacionados com atividades necessárias ao nosso modo de vida em sociedade e suas consequências alcançam, não somente as vítimas diretas, mas também a coletividade como um todo, provocando intensa comoção social. Aqui sobressai em importância a distinção entre danos individuais e danos coletivos. Os primeiros atingem uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, enquanto os segundos atingem uma coletividade ou uma categoria de pessoas indeterminadas ou indetermináveis, por exemplo, os moradores da cidade de Mariana ou os consumidores de determinado produto. Danos sociais: características Acontece que os danos sociais vão um pouco além desta dicotomia entre danos individuais e coletivos. Embora sejam modalidade de dano coletivo em sentido amplo, não se confundem com o denominado "dano moral coletivo", que se caracteriza pela "Ofensa a interesses extrapatrimoniais compartilhados por determinada coletividade, que pode ser uma comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas titular de interesses protegidos pela ordem jurídica"5. Neste passo, é de grande utilidade a conceituação fornecida por Antônio Junqueira de Azevedo acerca dos danos sociais: além dos efeitos produzidos sobre as vítimas diretas e individuais, tais danos produzem um rebaixamento na qualidade de vida da sociedade como um todo, envolvendo aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais de maneira indistinguível6. Por esta razão, podemos dizer que o dano social desafia a dicotomia entre dano moral e patrimonial, porque se trata de um rebaixamento da qualidade de vida de maneira global e não especificável. Pois bem, o dano enorme ou extraordinário se identifica de imediato pela amplitude de suas consequências, podendo-se citar como exemplos o incêndio na Boate Kiss e o rompimento das barragens de minério em Mariana e Brumadinho. Percebe-se também que esses episódios estão relacionados com atividades inerentes ao modo de vida nas sociedades contemporâneas, de sorte que ninguém em sã consciência postularia o fechamento das mineradoras no Brasil ou das casas noturnas. Os danos sociais também são dotados de socialidade em suas consequências, as quais atingem a coletividade como um todo, produzindo um rebaixamento na qualidade de vida da população. É como se fosse um dano existencial de natureza coletiva. Por exemplo, uma companhia de saneamento fornece água de péssima qualidade para a população, obrigando-a a uma vida de sofrimento e sacrifícios. Trata-se de uma situação em que as pessoas poderiam ter uma qualidade de vida melhor, se não fosse a atividade danosa desenvolvida por determinada empresa. Então, para identificar a natureza social do dano devemos entender que: a) não é normal existir aquele tipo de situação; b) há um rebaixamento da qualidade de vida para todas as pessoas, de maneira indistinguível. Estes aspectos estão presentes no rompimento das barragens de minério de Mariana e Brumadinho. Trata-se de situações danosas anormais, que poderiam ser evitadas e cujas consequências ultrapassam o campo das vítimas individuais, alcançando a sociedade como um todo e diminuindo a qualidade de vida das pessoas. Especificamente nestes casos, são danos impregnados de socialidade em suas causas, uma vez relacionados a atividades necessárias ao nosso modo de vida; e socialidade em suas consequências porque produzem rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Autonomia dos danos sociais Devemos ter clareza de que os danos sociais são indenizáveis por si mesmos e não como acréscimo ou extensão aos danos individuais. Ademais, esses danos não se confundem com os danos morais coletivos, cujas consequências atingem uma coletividade de maneira difusa, mas delimitada, ao passo que os danos sociais atingem a sociedade como um todo. Diante de danos catastróficos, como são os casos de Mariana e Brumadinho, há danos para as pessoas diretamente e indiretamente atingidas e há danos para a sociedade como um todo, mediante rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Então, cabe indenização em favor das pessoas direta e indiretamente atingidas e cabe indenização em favor da coletividade, que é vítima desse dano social, pelo rebaixamento da qualidade de vida das pessoas em geral. Em tema de direito do consumidor, os danos sociais têm aplicação aos casos de disponibilização de serviços de má qualidade ao público, de maneira contumaz e de forma generalizada. Por exemplo, nos casos de serviços bancários que sujeitam as pessoas em geral a golpes, mesmo que aplicados por terceiros; nos casos de serviços de internet e de telefonia com falhas e intermitências. Nesses casos, os prejuízos individuais são pequenos, muitas vezes relegados à categoria do mero dissabor. Porém, considerados em seu conjunto, trata-se de prática danosa que atinge não somente os usuários diretos dos serviços, mas a qualidade de vida da sociedade como um todo. Nesses casos, é perfeitamente cabível a propositura de ação de indenização por dano social. O problema da legitimidade ativa Como a vítima do dano social é a coletividade, cabe ao Ministério Público promover a ação indenizatória com vista à reparação (LACP, art. 5º, I). Todavia, há pelos menos dois aspectos a serem explorados. O primeiro é que a Lei da Ação Civil Pública limita as hipóteses de cabimento da ação civil pública à tutela dos bens elencados no art. 1º7. Uma interpretação superficial levaria à conclusão de que somente caberia ação civil pública nas hipóteses elencadas na lei. No entanto, essa disposição contrasta com o direito fundamental de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV). Logo, a melhor interpretação é aquela que admite a legitimidade do Ministério Público para promover ação civil pública com vista à reparação dos danos causados à coletividade: danos sociais. A outra questão é saber se as associações podem promover a mesma ação indenizatória em prol da coletividade, visto que devem estar vinculadas aos seus objetivos sociais, ou seja, à defesa dos direitos e interesses de determinadas categorias de pessoas (consumidores, funcionários públicos, advogados, médicos etc.) ou de bens jurídicos (meio ambiente, o consumo, o patrimônio histórico, artístico e cultural etc.). Neste ponto, faz-se importante a distinção entre dano moral coletivo e dano social, uma vez que as associações são legitimadas a promover a defesa de interesses coletivos delimitados a determinadas categorias de pessoas ou de bens jurídicos relacionados ao seu objeto social, mas não existe associação destinada à defesa dos interesses da sociedade genericamente8. Por isso, é correto dizer que a legitimidade das associações é mais restrita que a do Ministério Público, devendo se ater à abrangência de seu objeto social. De qualquer modo, é possível instituir uma associação com a finalidade específica de promover a reparação de danos ocorridos em determinada localidade, desde que relacionados a alguma das hipóteses descritas na lei: meio ambiente, consumidor, ordem econômica etc. (LACP, art. 5º, V, b). Neste caso, o Ministério Público atuará como litisconsorte ativo ou como custos legis, bem como poderá assumir a autoria em caso de abandono da ação (LACP, art. 5º, §§ 1º e 3º). Ainda no tocante à legitimidade ativa, cabe lembrar que o direito brasileiro não admite a conversão da ação indenizatória individual em ação coletiva, como ocorre com as class actions do direito norte-americano, uma vez que o art. 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa essa possibilidade, sofreu veto presidencial. Desse modo, prevalece o entendimento doutrinário fixado no Enunciado 456 da VI Jornada de Direito Civil do CJF9. Em sede jurisprudencial, merece menção o julgado do Superior Tribunal de Justiça, em regime de controvérsia repetitiva, que, embora reconhecendo a existência de dano social, afastou a possibilidade de fixação da reparação pelo juiz, ex-offício, em ação movida pela vítima individual da ação lesiva10. Assim, diante de fato que caracterize dano social, além dos danos individuais causados às pessoas, cabe ao Ministério Público promover ação civil pública indenizatória. É importante destacar que: [1] não cabe à vítima individual promover ação de reparação de dano social; [2] não é possível ao juiz transformar ação individual em ação coletiva; [3] nem pode o juiz, diante de uma ação individual, determinar de ofício o pagamento de indenização por dano social. Síntese conclusiva Em síntese, os danos sociais são modalidade de dano coletivo, que não se confundem com os danos individuais nem com os danos morais coletivos. Sua principal característica é o rebaixamento da qualidade de vida da sociedade como um todo, de maneira indistinguível, ultrapassando a dicotomia dano patrimonial e extrapatrimonial. Esses danos são indenizáveis por si mesmos, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para promover ação indenizatória em prol da sociedade. __________ 1 GOMES, Orlando. Obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. II. p. 328; ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 187-188; CALVO COSTA, Carlos Alberto. Daño resarcible. Buenos Aires: Hamurabi, 2005. p. 89. p. 61-97. 2 No sentido de que o dano decorre da conduta ou atividade alheia, confiram-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1950. v. II, p. 313; BUERES, Alberto J. Derecho de daños. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 2001. p. 483; ZANNONI, ZANNONI, Eduardo A. El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1982, p. 1; VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, v. I, p. 597; TUHR, Andreas von. Tratado de las obligaciones. Tradução do alemão de W. Roces. Direção de José Luis Monereo Pérez. Granada, Espanha: Editorial Comares, 2007, p. 47. 3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 555-586. 4 SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá; Porto: Juruá, 2018. p. 201-214. 5 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo, LTr, 2004, p. 138. Ver também: TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Curitiba: Juruá, 2014, p. 178-179; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6183. Acesso em: 18 fev. 2021. 6 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381-382. 7 Art. 1º: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III - à ordem urbanística; IV - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - por infração da ordem econômica e da economia popular; VI - à ordem urbanística. 8 A redação original do art. 5º, II, da LACP, era mais aberta, incluindo "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" entre as finalidades das associações. Esta expressão foi retirada do texto pela lei 8.078/1990 (CDC). 9 Enunciado 456: A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas. 10 EMENTA. RECLAMAÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO POR TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS. RESOLUÇÃO STJ N. 12/2009. QUALIDADE DE REPRESENTATIVA DE CONTROVÉRSIA, POR ANALOGIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO INDIVIDUAL DE INDENIZAÇÃO. DANOS SOCIAIS. AUSÊNCIA DE PEDIDO. CONDENAÇÃO EX OFFICIO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. CONDENAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO ALHEIO À LIDE. LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA DEMANDA (CPC ARTS. 128 E 460). PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. NULIDADE. PROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC. 2. A eg. Segunda Seção, em questão de ordem, deliberou por atribuir à presente reclamação a qualidade de representativa de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, por analogia. 3. Para fins de aplicação do art. 543-C do CPC, adota-se a seguinte tese: "É nula, por configurar julgamento extra petita, a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide". 4. No caso concreto, reclamação julgada procedente. (STJ - 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v. u.).
No último dia 28 de setembro foi apresentada pela Comissão Europeia uma Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu que busca adaptar as regras de Responsabilidade Civil extracontratual a casos de danos envolvendo Inteligência Artificial. O presente artigo se propõe, em seu reduzido escopo, a lançar breves e sumaríssimas impressões sobre o documento, sem qualquer pretensão de esgotá-lo, já que sequer houve tempo hábil para destrinchar com maior aprofundamento seus complexos e multifacetados meandros, o que se reserva para um momento posterior. A proposta, que foi apelidada de Diretiva sobre a Responsabilidade Civil da IA (AI Liability Directive), parte do dado concreto de que vários países da União Europeia estão gestando legislações específicas para a temática. Diante desse cenário, e buscando evitar a fragmentariedade das soluções legislativas dentro do bloco, a Comissão sugere a criação de um ferramental que poderá servir de base para os aplicadores do Direito e para as vítimas diante de casos de danos envolvendo IA. A Diretiva, caso aprovada, se integrará ao complexo quebra-cabeças regulatório da Inteligência Artificial proposto pela União Europeia e que já conta, por exemplo, com a Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial [2020/2014(INL)]. Em seu relatório, a Comissão aponta que se corre atualmente o risco de insegurança jurídica, já que a ausência de um corpo comum de regras poderia fazer com que magistrados aplicassem regras internas de forma ad hoc para garantir a justa reparação das vítimas, o que acabaria gerando uma realidade custosa para os atores do mercado, em especial para as pequenas e médias empresas (medium-sized enterprises - SMEs). Regras claras também criariam um reforço na confiança na utilização da IA, bem como incentivos econômicos para que operadores agissem em conformidade com regras de segurança, sendo este um contributo para se prevenir a ocorrência de danos, a ressaltar a função precaucional da Responsabilidade Civil. Além disso, o relatório aponta para a necessidade de se garantir que as vítimas obtenham o mesmo grau de proteção que já obtêm para danos causados por produtos em geral que não se valham de IA. E isso passaria pela criação de um ferramental a ser empregado pelas vítimas e pelos aplicadores do Direito para contornar eventuais problemas de assimetria informacional e técnica, especialmente na produção de provas. Essa necessidade surge diante da constatação do chamado "efeito black box", que dificulta a investigação a apuração de atos praticados por IA, e, por consequência, acaba tornando a prova da culpa e da causalidade verdadeiramente problemáticas para as vítimas. Afinal, se nem mesmo programadores por vezes conseguem descobrir como determinada IA agiu, não há como se pretender que as vítimas alcancem tal desiderato. É importante compreender que a proposta de Diretiva tem escopo de aplicação bastante limitado: serviria apenas para aqueles casos em que as vítimas (ou quem se sub-rogue no seu direito), ingresse com ações judiciais baseadas em Responsabilidade Civil não contratual e de natureza subjetiva, reservando à Product Liability Directive, isto é, a Diretiva de Produtos Defeituosos (para a qual também se apresentou proposta de reforma contemplando a Inteligência Artificial) a disciplina destes casos, que em muito se assemelham às normas do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, embora guardem diferenças substanciais. A Diretiva também não afetaria as regras em vigor que regulam as condições da responsabilidade no setor dos transportes nem as estabelecidas pelo Regulamento de Serviços Digitais, ou Digital Services Act (DSA). Dentro deste âmbito restrito de aplicação, seriam assegurados às vítimas alguns direitos como solicitar em juízo que determinada pessoa (como, por exemplo, fornecedores e utilizadores) forneça elementos de prova sobre um sistema de IA de alto risco suspeito de ter causado dano, quando, por exemplo, tal pedido tenha sido anteriormente negado. Esse procedimento, a que se denomina disclosure of evidence, obedeceria a regras específicas de proporcionalidade e seria utilizado para facilitar a instrução de ações judiciais de indenização. O não atendimento a semelhante requisição judicial poderia acarretar o ônus da presunção de que o agente não agiu em conformidade a um dever de diligência pertinente. Inverte-se, assim, o ônus da prova aos agentes, que precisam reforçar a documentação relativa ao funcionamento dos sistemas de IA. Além disso, inclui-se em dito ferramental (art. 4º, 1) a possibilidade de se afirmar presunção relativa de nexo de causalidade, caso estejam presentes três requisitos cumulativos, a saber: "(a) O demandante demonstrou ou o tribunal presumiu, nos termos do artigo 3.º, n.º 5, a existência de culpa do demandado, ou de uma pessoa por cujo comportamento o demandado é responsável, consistindo tal no incumprimento de um dever de diligência previsto no direito da União ou no direito nacional diretamente destinado a proteger contra o dano ocorrido; (b) Pode-se considerar que é razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que o facto culposo influenciou o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado; (c) O demandante demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado deu origem ao dano." Importante registrar, no entanto, que, em princípio, a menos que tenha havido presunção da culpa, os demandantes precisarão demonstrá-la para terem direito a eventual presunção do nexo de causalidade. Como se afirma em um dos considerandos da Proposta: "Essa culpa pode ser demonstrada, por exemplo, por incumprimento de um dever de diligência nos termos do Regulamento Inteligência Artificial ou de outras regras estabelecidas a nível da União, como as que regulam o uso da monitorização e da tomada de decisões automatizadas para o trabalho em plataformas digitais ou as que regulam o funcionamento de aeronaves não tripuladas. O tribunal também a pode presumir com base no incumprimento de uma decisão judicial de divulgação ou conservação de elementos de prova ordenada nos termos do artigo 3.º, n.º 5."1 O já referido artigo 4º também esmiuça essas regras gerais previstas no item "1", notadamente para modular o disposto na alínea "a", assegurando, por exemplo, em seu item "7", que: "[n]o caso de uma ação de indemnização contra um demandado que tenha utilizado o sistema de IA no âmbito de uma atividade pessoal e não profissional, a presunção estabelecida no n.º 1 só é aplicável se o demandado tiver interferido substancialmente nas condições de funcionamento do sistema de IA ou se o demandado tivesse a obrigação e a capacidade de determinar as condições de funcionamento do sistema de IA, mas não o tenha feito." Tal norma tem importante aplicabilidade prática, pois se destina às situações envolvendo pessoas que utilizem IA de modo não profissional. Ao longo de toda a Proposta, alude-se a normas da Proposta de Regulamento da Inteligência Artificial na União Europeia, o chamado AI Act. Nessa direção, a nova Proposta se utiliza, por exemplo, dos conceitos de IA de alto e baixo risco, determinando, por exemplo, que nos casos de IAs que representem risco elevado, poderia haver uma exceção à presunção de causalidade, caso o demandado venha a demonstrar que "estão razoavelmente acessíveis ao demandante elementos de prova e conhecimentos especializados suficientes para provar o nexo de causalidade."2 A ideia é de que esta possibilidade poderia vir a "incentivar os demandados a cumprirem as suas obrigações de divulgação, as medidas estabelecidas pelo Regulamento Inteligência Artificial para assegurar um elevado nível de transparência da IA ou os requisitos de documentação e registo."3 Por outro lado, nas hipóteses de sistemas de IA que não sejam de risco elevado, o artigo 4º, nº. 5 da Proposta busca estabelecer uma condição para que tal presunção de causalidade seja aplicada, de modo que esta dependeria "de uma determinação do tribunal em como é excessivamente difícil para o demandante provar o nexo de causalidade. Tal dificuldade deve ser apreciada à luz das características de determinados sistemas de IA, como a autonomia e a opacidade, que, na prática, tornam muito difícil explicar o funcionamento interno do sistema de IA, afetando negativamente a capacidade do demandante em provar o nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado da IA."4 Outrossim, é importante consignar, desde já, que a norma não ordena os sistemas internos de Responsabilidade Civil, nem cria hipóteses de imputação. No fundo, o escopo da Proposta está em fornecer um ferramental para as vítimas e para os aplicadores do Direito quando as legislações internas dos países integrantes da União Europeia previrem hipóteses específicas de responsabilidade civil baseada na culpa, diante do chamado "efeito black box" da IA, ao mesmo tempo em que estabelece regras de conformidade claras para os agentes, minimizando os efeitos da insegurança jurídica. Finalmente, não se pode perder de vista que a Diretiva se destina a harmonizar as distintas realidades jurídicas dos países-membros da União Europeia, muitos dos quais contam com normas rígidas que dificultam a prova do dano e, por vezes, sequer apresentam cláusulas gerais de Responsabilidade Civil, ao contrário da realidade brasileira. Daí a importância de não se cair na tentação de sugerir a importação descuidada de inovações legislativas reservadas a cenários distintos, como já se advertiu em outra sede.5 Não há dúvidas de que a Proposta, fruto de intensos, longos e aprofundados debates, é instrumento verdadeiramente útil, especialmente porque tem como escopo claro a garantia de direitos fundamentais das vítimas, ao mesmo tempo em que compreende que é preciso assegurar regras claras, estimulando-se e premiando-se comportamentos diligentes e cooperativos em busca daquela que é, de fato, a mais importante das diretrizes da Responsabilidade Civil na atualidade: a prevenção dos danos. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 2 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 4 Disponível aqui. Acesso em 02 out. 2022. 5 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2. ed. Terceira edição a ser publicada no início de 2023.
Muito já se questionou acerca da importância de novas tecnologias para a consolidação dos impactos da Quarta Revolução Industrial na transição para a Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT) e um dos assuntos de maior destaque é o desenvolvimento de carros autônomos, analisado a partir de várias soluções inovadoras. Exemplo curioso é o da tecnologia LiDAR (acrônimo de Light Radar), baseada no rastreamento da luz refletida por objetos do entorno de um veículo autônomo. Sem dúvidas, trata-se de empolgante tecnologia que vem sendo adotada para o desenvolvimento de carros e navios autônomos - e até mesmo de drones - que independem de um condutor ou piloto1. Para bem contextualizar o assunto, é importante lembrar que foi com as amplamente divulgadas testagens de um Toyota Prius autoguiado, em iniciativa levada a efeito pela Google, Inc. (projeto "Waymo"2), bem como do veículo autônomo Chevrolet Bolt, desenvolvido pela Cruise, LLC3, e do projeto-piloto da fabricante norte-americana Tesla, Inc., que tais discussões passaram a ser concebidas como projetos comerciais. O que se almeja, de fato, é atingir a categoria "nível 5" de autonomia veicular, que é considerada ideal para a oferta de veículos autônomos ao mercado de consumo4. De todo modo, a inconcretude da autonomia faz surgir grande preocupação quanto aos riscos (e falhas) que podem apresentar as máquinas enquadráveis nos níveis mais baixos (que variam de "0" a "4"). É certo que a possibilidade de criar máquinas sofisticadas e capazes de potencializar o desenvolvimento das sociedades levanta uma série de questionamentos éticos, relacionados tanto à necessidade de que se garanta que tais máquinas não causem danos a humanos e outros seres moralmente relevantes, quanto aos aspectos concernentes aos variados estágios de projeto e de desenvolvimento em que se encontram5, e, para o que mais interessa a esse breve ensaio, à responsabilidade civil aplicável em razão de falhas desses sistemas algorítmicos. As propostas dos projetos "Waymo" e "Cruise" são baseadas na citada tecnologia LiDAR para a realização de cálculos matemáticos que projetam a distância do veículo em relação aos objetos que o circundam6. Em milissegundos, dados são coletados e processados para que se crie uma estrutura tridimensional do ambiente7. A partir dela, o algoritmo autoriza ou não a aceleração ou frenagem do automóvel, controlando, ainda, sua velocidade média e eventuais manobras (bruscas ou sutis). Naturalmente, há que se considerar uma série de parametrizações que variam de um fabricante para outro, e entre modelos de automóveis com diferentes dimensões, massa, estrutura aerodinâmica etc. Além disso, o fato de ser uma tecnologia baseada em luminância, ou seja, que mede a densidade da luz com base em feixes que são projetados pelo veículo, refletidos pelo ambiente, que retornam e são recapturados pelo sensor que os projetou, o qual afere, por fórmulas, a distância entre a projeção original e o reflexo capturado, sua principal utilização sempre foi a medição de eixos perpendiculares (abscissas e ordenadas) para mapeamento morfológico, indicando a estrutura de relevo do solo a partir de feixes emitidos por satélites artificiais geoestacionários dedicados ao mapeamento topográfico. Somente agora é que essa tecnologia vem sendo testada para projetos envolvendo veículos autônomos. É nesse contexto que se suscita a dúvida sobre a segurança desses sistemas. Imagens e dados coletados a partir de estruturas de luminância e de radares compõem o conjunto inicial que alimenta o sistema e aciona o algoritmo respectivo. A partir de então, um modelo 3D é gerado e dá início à etapa de navegação veicular propriamente dita. É a partir desse modelo de três dimensões (largura, altura e profundidade) - e de novos dados que serão continuamente coletados e utilizados para identificar os elementos do entorno (a própria estrada, eventuais objetos, suas cores, contornos etc.) - que se dá início à segunda etapa, "interação", pela qual o veículo passará ao processamento de dados e iniciará seu deslocamento. Nesse momento, as sinalizações horizontais e verticais serão consideradas, bem como eventuais objetos e obstáculos, como transeuntes e outros automóveis. É a etapa mais crítica do processo, pois é nela que eventuais colisões e atropelamentos podem ocorrer. Na terceira etapa, descrita como "raciocínio"8, tem-se a estruturação de rotinas cíclicas de tomada de decisão. Os dados que chegam a esse estágio já foram tratados e filtrados anteriormente para que, então, seja viável a aferição contextual das consequências de eventual decisão (acelerar, frear, mudar a trajetória, gerar um alerta etc.). E o ciclo se repete continuamente, com novos dados, novos contextos e novas decisões. O veículo e sua composição material são mero objeto, controlado por um algoritmo (software) complexo, que considerará espaço, tempo, velocidade, contexto, natureza dos outros objetos dos arredores, riscos de colisão, potenciais danos9 e que, enfim, "decidirá" como "reagir" a tudo isso. É nessa etapa do processo que decisões algorítmicas, baseadas em predições estatísticas, são implementadas10. Também é nesses ciclos decisionais que eventuais erros podem gerar danos! E, entre o previsível e o imprevisível, o ponderável e o imponderável, há decisões que ultrapassam a mera heurísticas... São decisões morais. Iniciativas como a Moral Machine ("Máquina Moral"), do Massachusetts Institute of Technology - MIT, propõem a testagem das decisões tomadas por humanos em cenários extremos (de "dano ou dano")11. Um carro autônomo ilustrativo é apresentado em situações nas quais, por exemplo, um pedestre atravessa a pista e é preciso escolher entre a manutenção do percurso, que causará o atropelamento e a morte do pedestre, ou, alternativamente, o desvio de percurso, implementado para salvar o pedestre, mas causando a colisão ou perda de controle do veículo e a morte certa do passageiro que está em seu interior12. Por óbvio, havendo erro, seja pela má coleta, seja pelo mau processamento, seja ainda pela inviabilidade de solução algorítmica para o problema, corre-se o risco de que a decisão tomada seja contaminada por vieses. Em simples termos, o enviesamento algorítmico (algorithmic bias)13 indica a falha 'no consequente', que pode gerar dano. Entretanto, é preciso que se considere o 'antecedente', ou seja, que se investigue o percurso causal do processo heurístico para que seja possível aferir se a decisão eivada de vício foi tomada em função de uma falha ocorrida em etapa prévia, que tenha acabado por macular os estágios de processamento subsequentes. Em 2019, a grande mídia noticiou haver maior propensão de carros autônomos baseados na tecnologia LiDAR ao atropelamento de pessoas negras, denotando possível natureza discriminatória do algoritmo14. De fato, é usual que debates envolvendo o assunto "inteligência artificial" gerem sonoras polêmicas, inclusive do ponto de vista terminológico, pois ainda não se atingiu o especulativo e distópico momento da "singularidade tecnológica"15 descrita por Vernor Vinge e Ray Kurzweil. Além disso, o tema é permeado por inconsistências e incertezas, que tornam qualquer pretensão regulatória um desafio ainda maior. Nos Estados Unidos da América, foi apresentado, em 12 de dezembro de 2017, o "Fundamentally Understanding the Usability and Realistic Evolution of Artificial Intelligence Act", ou apenas "Future of AI Act"16, que é bastante apegado à correlação entre o conceito de IA e o funcionamento do cérebro humano, denotando proximidade conceitual com a ideia de "singularidade tecnológica". Tal documento indica, ainda, diretrizes éticas para o fomento ao desenvolvimento algorítmico, mas não aborda a responsabilidade civil de forma direta. Alguns documentos mais recentes, como o Artificial Intelligence Act europeu de 202117 (2021 EU AIA) e o recentíssimo Algorithmic Accountability Act norte-americano de 202218 (2022 US AAA), que atualizou a versão anterior, de 201919, evitam a discussão terminológica sobre o alcance semântico do termo "inteligência", preferindo se reportar a "sistemas decisionais automatizados"20 (Automated Decision Systems, ou ADS's) para explicitar a necessidade de que seja definido um regime de responsabilidade civil aplicável em decorrência de eventos danosos propiciados por tais sistemas, e, até mesmo, para reafirmar a importância da estruturação de parâmetros éticos para o desenvolvimento de algoritmos. Segundo abalizada doutrina21, os documentos citados possuem qualidades que podem servir para mútua inspiração, denotando a importância da adequada assimilação semântica (além de outros temas) para a evolução das discussões até mesmo a nível global. No Brasil, os projetos de lei 5.051/19, 21/20 e 872/21 visam regulamentar o tema em linhas gerais (e não apenas para o contexto dos carros autônomos), priorizando a delimitação de um sistema de responsabilização baseado na anacrônica teoria da culpa, que simplesmente não faz sentido para tutelar matéria tão complexa. Todavia, em fevereiro de 2022, foi instituída, pelo Senado Federal, a elogiável "Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA" (CJSUBIA). Já foram realizadas diversas reuniões e audiências públicas e os trabalhos de elaboração do substitutivo, com término originalmente previsto para 9/8/22, tiveram seu prazo prorrogado para 7/12/2222. Sem dúvidas, as atividades da comissão merecem efusivos encômios e seus membros são extremamente competentes. Por isso, espera-se que seja apresentado um projeto substitutivo que mais se aproxime da solução adotada na União Europeia, que há anos discute a matéria em caráter prospectivo, primando por estratificar as soluções possíveis para cada contexto, a depender do grau de risco que a atividade implique. O exemplo da tecnologia LiDAR simboliza bem isso, pois, sendo baseada em feixes de luz e na aferição da luminância para o mapeamento de obstáculos, suas falibilidades e sua previsibilidade (foreseeability) permitem, com absoluta segurança, identificar o liame causal para viabilizar a responsabilização civil do fabricante que coloca no mercado um automóvel baseado em tal tecnologia, com supedâneo na teoria do risco. Eis algumas das razões: (i) são sensores costumeiramente utilizados para o mapeamento topográfico, tendo sido apenas recentemente aplicados a veículos autônomos; (ii) a dependência dos sensores de verificação da luminância acarreta riscos de enviesamento de dados nos processos ulteriores à coleta; (iii) a dependência do algoritmo quanto à qualidade dos dados reduz a possibilidade de redundância do sistema, acarretando a deturpação dos resultados nos estágios de processamento de decisões e inviabilizando o monitoramento de erros e a auditoria de dados; (iv) não há clareza quanto à inclusão de backdoors nos carros autônomos baseados em LiDAR (como "freios de emergência", by design), recursos de desligamento automático ("shut down") ou recursos que permitam aos operadores ou usuários "desligar a IA" por comandos manuais, ou torná-la "ininteligente" ao pressionar um botão de pânico. Logo, ao invés de simplesmente acolher um regime geral de responsabilidade civil subjetiva para eventos envolvendo falhas de sistemas de IA, mais prudente seria que o Brasil reconhecesse a plêiade de situações com maior ou menor propensão à causação de danos a partir de tais sistemas, viabilizando soluções condizentes com as particularidades de cada situação, tal como definido no recente documento europeu (2021 EU AIA), no qual se optou pela regulação por abordagem baseada em riscos (risk-based approach). No caso do LiDAR, sendo evidentes os riscos, objetiva seria a responsabilização. E também assim poderia ser no Brasil. Nesse ponto, filiamo-nos ao pensamento de Nelson Rosenvald23, que destaca, com argumentos sólidos, a necessidade de que o substitutivo ao projeto de lei brasileiro supere o singelo modelo subjetivista e avance nesse debate, ampliando a compreensão que se tem sobre a teoria do risco para abarcar múltiplas camadas que a catalisem, a exemplo da accountability e da answerability. ---------- 1 Algumas reflexões iniciais em torno do tema e que serviram de inspiração para esta coluna foram extraídas de artigo que escrevi em 2020, a saber: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Discriminação por algoritmos de Inteligência Artificial: a responsabilidade civil, os vieses e o exemplo das tecnologias baseadas em luminância. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 1007-1043, 2020. 2 FINGAS, Jon. Waymo launches its first commercial self-driving car service. Engadget, 5 dez. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 3 OHNSMAN, Alan. GM's Cruise Poised To Add 1,100 Silicon Valley Self-Driving Car Tech Jobs. Forbes, 04 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 4 GOH, Brenda; SUN, Yilei. Tesla 'very close' to level 5 autonomous driving technology, Musk says. Reuters, 09 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 5 BOSTROM, Nick; YUDKOWSKY, Eliezer. The ethics of Artificial Intelligence. In: FRANKISH, Keith; RAMSEY, William (ed.). The Cambridge Handbook of Artificial Intelligence. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 316. 6 Cf. NEFF, Todd. The laser that's changing the world: the amazing stories behind LiDAR for 3D mapping to self-driving cars. Nova York: Prometheus, 2018. E-book. 7 ÖZGÜNER, Ümit; ACARMAN, Tankut; REDMILL, Keith. Autonomous ground vehicles. Boston: Artech House, 2011, p. 86-87. Explicam: "A scanning laser range finder system, or LIDAR, is a popular system for obstacle detection. A pulsed beam of light, usually from an infrared laser diode, is reflected from a rotating mirror. Any nonabsorbing object or surface will reflect part of that light back to the LIDAR, which can then measure the time of flight to produce range distance measurements at multiple azimuth angles". 8 CHENG, Hong. Autonomous intelligent vehicles: theory, algorithms, and implementation. Londres: Springer, 2011, p. 13. 9 SIEGWART, Roland; NOURBAKHSH, Illah. Introduction to autonomous mobile robots. Cambridge: The MIT Press, 2004, p. 90. 10 FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 15-22. 11 BELAY, Nick. Robot ethics and self-driving cars: how ethical determinations in software will require a new legal framework. The Journal of the Legal Profession, Tuscaloosa, v. 40, n. 1, p. 119-130, 2015, p. 119-120. Anota: "Perhaps most notably, machines will have to make decisions regarding whom to save or protect in the event of a collision or unforeseen obstacle". 12 MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY. Moral Machine. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 13 DANKS, David; LONDON, Alex John. Algorithmic bias in autonomous systems. Proceedings of the Twenty-Sixth International Joint Conference on Artificial Intelligence (IJCAI-17), Viena, p. 4691-4697, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 14 KIM, Theodore. Op-Ed: AI flaws could make your next car racist. Los Angeles Times, 7 out. 2021. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; HERN, Alex. The racism of technology - and why driverless cars could be the most dangerous example yet. The Guardian, 13 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022; VIEIRA, Laís. Carros autônomos podem atropelar mais pessoas negras do que brancas. R7, 11 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 15 A "singularidade tecnológica" seria o momento teorético e futuro no qual o avanço e a sofisticação de sistemas algorítmicos propiciaria verdadeira simbiose - e possível indistinção - entre o 'biológico' e o 'tecnológico'. Conferir, sobre o tema, VINGE, Vernor. The coming technological singularity: How to survive in the post-human era. In: Interdisciplinary Science and Engineering in the Era of Cyberspace. NASA John H. Glenn Research Center at Lewis Field, Cleveland, 1993, p. 11-22. Disponível em: aqui. Acesso em: 19 set. 2022; KURZWEIL, Ray. The age of spiritual machines: when computers exceed human intelligence. Nova York: Viking, 1999. p. 213; BARBOSA, Mafalda Miranda. Inteligência artificial, e-persons e direito: desafios e perspectivas. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 3, n. 6, p. 1475-1503, 2017, p. 1501-1502. 16 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 4625, Dec. 12, 2017. FUTURE of Artificial Intelligence Act. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 17 EUROPA. European Commission. Artificial Intelligence Act. 2021/0106(COD), abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 18 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 6580, Feb. 3, 2022. Algorithmic Accountability Act of 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 19 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. House of Representatives. House Resolution No. 2231, Apr. 10, 2019. Algorithmic Accountability Act of 2019. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 20 Cf. SELBST, Andrew. An institutional view of algorithmic impact assessments. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 35, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 21 The US Algorithmic Accountability Act of 2022 vs. The EU Artificial Intelligence Act: what can they learn from each other? Minds and Machines, Cham: Springer, v. 22, p. 1-9, jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 22 BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA). Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022. 23 ROSENVALD, Nelson. A falácia da responsabilidade subjetiva na regulação da IA. Migalhas, 13 maio 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 set. 2022.