COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
O dever de documentação médica. Conteúdo e abrangência A responsabilidade civil do médico baseia-se na correta execução das medidas diagnósticas e terapêuticas, bem como no dever de informar sobre cada procedimento a ser executado. Paralelamente a esses deveres, observa-se o dever do profissional de manter documentado todo o acompanhamento de seu paciente, documentação essa sobre a qual recai o sigilo profissional, que somente pode ser levantado por ordem judicial ou com o consentimento do paciente.1 Assevera-se que os documentos médicos mais importantes são o atestado médico, o prontuário medico, o relatório médico, o laudo médico e o termo de consentimento livre e esclarecido.2 A obrigação de documentação do médico em relação ao paciente caracteriza-se como uma "obrigação terapêutica natural", ou seja, faz parte do próprio tratamento médico, é intrínseco a ele, até mesmo para possibilitar que o seguimento do tratamento se dê de forma segura.3 Ademais, isto não se aplica apenas a um tratamento ulterior pelo mesmo médico, mas é ainda mais importante no caso da sua continuidade por outro profissional, seja por um sucessor livremente escolhido pelo paciente, seja por um especialista ou por um hospital para o qual o médico encaminhou o paciente. Visto sob outro prisma, uma documentação insuficiente pode tornar o tratamento subsequente muito mais difícil. Consequentemente, os resultados de raios-X devem ser registrados para poupar o paciente de um segundo ou vários outros exames de raios-X e seus efeitos maléficos; o registro de reações alérgicas que ocorreram a medicamentos que já foram administrados pode salvar vidas; mais ainda, o curso do tratamento deve ser documentado para registrar quais medidas já foram realizadas e quais foram os resultados alcançados. Seria inútil, demorado e perigoso se um profissional prescrevesse ao paciente antibióticos que já haviam sido prescritos sem sucesso pelo tratamento anterior, se fosse feito um exame já feito sem resultado significativo. Apenas a documentação das medidas diagnósticas e terapêuticas tomadas cria o pré-requisito para o tratamento do paciente por um médico que continua o processo de tratamento.4 Esta responsabilidade do médico não corresponde apenas ao dever contratual de quem assume a responsabilidade de zelar pelos interesses de outrem por meio de um contrato (nesse sentido, o arquiteto, o auditor, o advogado, o administrador também possuem esse dever), mas sobretudo porque aqui vigora o princípio da boa fé objetiva, tendo em conta os interesses envolvidos. Naturalmente, um paciente anestesiado não pode acompanhar o curso de uma operação, mas tem um interesse legítimo em saber o que lhe aconteceu. No caso de doenças graves em particular, o paciente também tem uma necessidade legítima e compreensível de obter uma segunda opinião. Para tanto, é necessário que ele tenha todos os dados anteriormente colhidos, anotados em documentos, para que possam ser verificados por outro médico.5 Em relação ao conteúdo da documentação, deve ela abranger anamnese, diagnóstico e terapia e todas as informações relevantes sobre o curso do tratamento. Num caso de cirurgia, por exemplo, isso também inclui os resultados obtidos, os cuidados de enfermagem, a medicação prescrita, o protocolo anestésico, o método da operação, o curso da operação, o cirurgião, a mudança de cirurgião, os incidentes ocorridos, o estado geral pré-operatório, as precauções tomadas pelo paciente para prevenir determinado ferimento, qualquer desvio dos métodos padrão e processos padrão. Por outro lado, medidas de rotina não estão sujeitas à documentação, a menos que surja uma constatação que necessite ser registrada. Nesse sentido, a desinfecção da pele antes de uma injeção é uma medida de rotina que não requer documentação. O fato de a febre ter sido medida rotineiramente durante a internação não requer documentação se a medição permanecer sem alterações. Se, por outro lado, o paciente tiver febre, a temperatura deve ser documentada.6 Além de se anotar as medidas básicas referentes à anamnese, diagnóstico e terapia, devem ser documentadas todas as características especiais, anormalidades, alterações, desvios ou irregularidades que surjam no decorrer do processo. Ao contrário, questões médicas padrão, cumprimento de rotina e ausência de eventos especiais não precisam ser registradas, pois seria um formalismo desnecessário, irracional e demorado para um médico ter que copiar novamente as diretrizes ou recomendações existentes para cada operação.7 Nesse sentido, o §1º do art. 87 do CEM prescreve que: "O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número do registro do médico no Conselho Regional de Medicina." O conteúdo e a abrangência da documentação médica geralmente são moldados pela prática médica. Ao se deparar com um caso concreto, juízes e tribunais devem, se necessário, obter um parecer médico sobre a questão de saber se os fatos individuais precisam ser documentados do ponto de vista médico. Na prática médica, por exemplo, geralmente é documentado apenas um resultado de exame positivo, enquanto um resultado negativo não é. A este respeito, no entanto, pode ser que seja possível um padrão médico diferente em relação a um determinado caso concreto. Por exemplo, por razões médicas, a pressão arterial da gestante deve ser documentada durante toda a fase de parto, mesmo que a medição resulte em um valor normal.8 No que diz respeito à obrigação de documentação, avaliar quais informações, dados e resultados são importantes para registro médico, apenas o profissional poderá dizê-lo. No entanto, essa necessidade vem sendo paulatinamente moldada pelos operadores do Direito, na medida em que a documentação tem o objetivo de preservar provas. Trata-se de uma questão jurídica fundamental, pois baseando-se nas provas é que juízes e tribunais atribuirão ao médico eventual responsabilidade pelos danos causados ao paciente. Necessidade da documentação para fins de preservação da prova A violação da obrigação de documentação não resulta automaticamente em condenação do médico. Na verdade, o que ocorre é que a omissão da documentação ou uma documentação insuficiente facilita a prova ao paciente no respectivo processo de responsabilidade médica. Se uma medida que requer documentação não foi registrada, há uma presunção em favor do paciente de que essa medida não ocorreu. A falta de documentação tem um forte impacto na prova a favor do paciente, que pode demonstrar, assim, a ocorrência de um erro de tratamento. Ao contrário, a falta de documentação não tem influência sobre o nexo causal a ser comprovado pelo paciente (a menos que o erro de tratamento que se suspeite devido à falta de documentação seja o chamado erro grosseiro de tratamento). No entanto, a presunção de que a medida não documentada não foi tomada pode ser refutada por parte do profissional. Nesse sentido, há inversão do ônus da prova. Se o médico puder provar que a medida não documentada foi realizada de outra forma (por exemplo, depoimento de testemunha ou qualquer outro meio de prova), a falta de documentação é irrelevante.9 Foi nesse sentido que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação de um médico por negligência no preenchimento de prontuário de gestante. O caso de deu numa ação indenizatória, cujas instâncias ordinárias condenaram o médico e a clínica pelo fato de o obstetra não ter feito as anotações necessárias das intercorrências e procedimentos adotados na folha de evolução do parto. Tais registros eram de suma importância para monitorar as condições da mãe e do feto. Segundo o relator, Ministro Villas Bôas Cueva, a falta de anotação adequada no prontuário da paciente levou a gestante a sofrer problemas no parto que resultaram em sequelas neurológicas graves e irreversíveis no recém-nascido. Nas palavras do Ministro: "o cuidado e o acompanhamento adequados à gestante - deveres legais do médico - poderiam ter conduzido a resultado diverso, ou, ainda que o dano tivesse de acontecer de qualquer maneira, pelo menos demonstrariam que todas as providências possíveis na medicina foram tomadas - fatos que, registrados no prontuário, teriam auxiliado o profissional em sua defesa."10 Conclusões A documentação médica constitui um importante dever deste profissional no acompanhamento de seus pacientes. Trata-se de dever inerente ao tratamento médico, que se consubstancia em registrar todos os aspectos importantes relacionados ao tratamento. Sua omissão ou deficiência pode constituir importante fator de responsabilidade civil médica, na medida em que facilita a prova do erro médico em favor do paciente, que será indenizado caso o médico não consiga provar, por meio de outros meios de prova, a correta execução de sua conduta. __________ 1 Arts. 77 e 89 Código de Ética Médica 2 SARAIVA, Nayara Guimarães. Conheça os 5 documentos médicos mais importantes! In JusBrasil, acesso em 13/05/2022. 3 DEUTSCH, Erwin; SPICKHOFF, Andreas. Arztrecht, Arzneinmittelrecht, Medizinprodukterecht und Transfusionsrecht. 7ª edição. Frankfurt: Springer. 214, p. 578, 3ª edição. München: C.H. Beck, 2002, pp.485-486. 4 LAUFS, Adolf; UHLENBRUCK, Wilhem. Handbuch des Arztrechts. 3ª 5 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023. 6 LAUFS, Adolf. Handbuch, cit, pp. 483-484. 7 DEUTSCH, Erwin. Arztrecht, cit., pp. 580/581. 8 idem ibidem 9 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023.   10 Disponível aqui, acesso em: 12/05/2023.
Introdução É necessário que o Brasil retome investimentos em infraestrutura. É muito evidente que a ausência de investimentos, públicos e privados, em determinados setores vem gerando enormes gargalos que impedem o desenvolvimento firme e constante da economia nacional. Os exemplos são de conhecimento geral, como a falta de linhas de transmissão que melhorem e otimizem a distribuição da energia elétrica por todo território nacional1, e a carência de infraestrutura de transportes com eficácia e baixo custo que permitam o escoamento da produção nacional2. A necessidade premente de melhorias significativas da infraestrutura nacional certamente levará, no curto ou médio prazo, independentemente de pressões ou posições políticas, ao retorno de investimentos em obras de grande porte. Obviamente, tais obras encontrarão todos os percalços e vicissitudes costumeiras, que vão desde a necessidade de encontrar um balanço harmônico entre a evolução delas e o respeito ao meio ambiente até questões ligadas à segurança jurídica, passando, certamente, pela existência de litígios entre os donos das obras e os construtores. Esses novos litígios de construção, que serão instaurados em arbitragens e processos judiciais, não só repetirão os velhos temas, como, por exemplo, os debates acerca de insuficiências, lacunas e atrasos nos projetos das obras, mas também trarão novos desafios e debates relevantes. Essas construções complexas e de grande porte certamente serão reguladas, em sua maioria, por contratos EPC3, que já são adotados há décadas para a viabilização de obras sofisticadas, com o objetivo principal de facilitar o financiamento delas4. Nestes contratos, o construtor assume riscos mais significativos e se obriga a um número maior de obrigações. Diversamente da empreitada tradicional, na qual o empreiteiro se obriga a construir, podendo, se as partes assim acordarem, fornecer também os materiais5, no EPC, por sua vez, o epcista também é obrigado a conceber e elaborar todo o projeto (engineering), ficando, por óbvio, responsável pelas falhas dele. Ou seja, o epcista concebe o projeto, compra todos os materiais, executa a edificação, realiza todos os testes e a entrega pronta para ser utilizada pelo contratante. Essa modalidade contratual complexa e sofisticada tem ainda como uma de suas características a tentativa das partes de definir, de forma muito precisa, a alocação dos riscos mediante a elaboração de diversas cláusulas contratuais que vão desde a definição do que deve ou não ser considerado como caso fortuito e força maior6 - além de seus efeitos - até a estipulação de cláusulas limitativas e impeditivas do dever de indenizar, que consistem no objeto desta pequena reflexão. Embora sejam vistas com certas resistências, as cláusulas limitativas e impeditivas da obrigação de indenizar são instrumentos muito importantes para a repartição dos riscos entre os contratantes, dando maior segurança e previsibilidade aos negócios, podendo servir, inclusive, para redução de custos. Apesar das exacerbadas críticas sofridas, tais cláusulas sempre foram aceitas, em termos gerais, como válidas no ordenamento jurídico nacional, principalmente nas relações paritárias7-8. Apesar disso, muitas são as determinações e orientações legais, jurisprudenciais e doutrinárias, que limitam ou impedem a validade e a aplicabilidade das referidas cláusulas em certas situações. Na verdade, a regulamentação das cláusulas de limitação ou de exoneração da responsabilidade é feita às avessas. O ordenamento jurídico não indica os casos em que elas atuam, mas sim aqueles em que elas não podem ser aplicadas.   De uma forma geral, é possível afirmar que as cláusulas limitativas de indenização e de não indenizar não operaram nas hipóteses em que: (a) há norma especificamente às profligando; (b) são invocadas para impedir reparações decorrentes de atos dolosos; ou (c) atentam contra as regras de ordem pública ou elementos essenciais do contrato no qual foram inseridas9. Diante destas ponderações surge o questionamento objeto deste estudo: pode a cláusula limitação de responsabilidade ou de não indenizar impedir ou reduzir o direito a reparação decorrente do descumprimento da obrigação de construtor de edificar com solidez e segurança, tal qual determina o art. 618 do Código Civil10?    A cláusula de limitação e de exoneração do dever de indenizar frente às obrigações principais do contrato Antes de responder ao questionamento acima, é importante fixar alguns pontos relevantes acerca da aplicabilidade das cláusulas de não indenizar e de limitação das indenizações. Como acima dito, as aludidas cláusulas são, em regra, válidas. Contudo, existem situações em que elas não operam. Há diversas limitações e impedimentos por imposição legislativa. Exemplo vistoso ocorre nas relações de consumo, pois o art. 25 do Código de Defesa do Consumidor veda estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar por vício ou fato do produto e do serviço e o art. 51, I, daquele mesmo diploma legal reputa tais cláusulas abusivas e, por isso, nulas; sendo viáveis apenas as limitações de indenização nas relações entre fornecedor e consumidor pessoa jurídica em hipóteses justificáveis. Além disso, o decreto 2.682/1912, em seu art. 1211, o Código Brasileiro da Aeronáutica (lei 7.565/1986), cujo art. 247, repete a regra do art. 23 da Convenção de Varsóvia12 e o art. 734 do Código Civil, consideram nulas as cláusulas de não indenizar insertas em contratos de transporte por eles regulados. Também são consideradas inoperantes as cláusulas de limitação ou exoneração de responsabilidade quando adotadas para afastar as consequências de condutas dolosas ou eivadas de culpa grave. Embora não haja regra expressa na lei, o entendimento doutrinário e jurisprudencial é tradicional. Cabe aqui, por todos, trazer o ensinamento de Judith Martins-Costa: "Já quando voltada a exonerar o agente em caso de dolo, é nula a cláusula, pois admitir a sua validade importaria em dar uma autorização para delinquir, atingindo-se tríplice ordem de interesses: de índole moral (aí se entendendo que o devedor aproveitar-se-ia da própria torpeza); contratual (já que a posição de credor exige uma tutela mínima); e de índole econômica e social (pois atingiria o tráfico jurídico, com reflexos prejudiciais a nível econômico e social)."13 Além disso, a cláusula de não indenizar não é viável nas hipóteses em que exclui as consequências de obrigação essencial do contrato, a ponto de descaracterizá-lo. Existem alguns elementos definidos por lei que podem ser afastados pela autonomia da vontade das partes, porquanto subsidiários. Por outro lado, existem outros que são da essência do tipo contratual, por isso não são passíveis de derrogação. Seu afastamento atinge a natureza do tipo contratual. Nas palavras de Enzo Roppo:  "Em qualquer caso, deve, desde já, acrescentar-se que esta possibilidade da autonomia privada de derrogar a disciplina legislativa do tipo não é ilimitada. Se o grande número das normas que integram tal disciplina tem uma posição meramente subsidiária relativamente à vontade omissa das partes, e podem, por isso, sofrer derrogação quando estas últimas manifestem uma vontade em tal sentido (estas dizem-se então normas dispositivas), existem, de facto, outras, caracterizadas, inversamente, pela inderrogabilidade: aquilo que nelas é disposto, a solução do conflito de interesses que codificam, a repartição dos riscos, dos encargos, de vantagens que estabelecem, não podem ser modificadas pela vontade contrária das partes, constituindo barreiras ao poder de autonomia privada, tendo em vista a tutela de interesses superiores: são as normas imperativas, sobre que nos ocuparemos mais alongamente."14 Assim, não podem as partes afastar elementos essenciais do tipo contratual, tampouco suas consequências, de modo que cláusulas que têm esse objetivo serão reputadas nulas. Exemplo mais comum de elemento essencial é a cláusula de incolumidade nos contratos de transporte, que obriga o transportador a fazer o deslocamento das pessoas sãs e salvas e das coisas sem danificações. Não é por outro motivo que a jurisprudência consolidada aponta, há décadas, para a inviabilidade da inclusão da cláusula de não indenizar no contrato de transporte, na forma do verbete sumular 161 do Supremo Tribunal Federal15, que foi posteriormente positivado na parte final do art. 734 do Código Civil16. Outro importante exemplo é a obrigação essencial nos contratos de depósito de guardar e conservar a coisa depositada, na forma do art. 629 do Código Civil17. A responsabilidade decorrente da inexecução dessa obrigação essencial não pode ser afastada por cláusula de não indenizar, consoante firme entendimento jurisprudencial.18 Claro, pois, que as cláusulas de não indenizar e as de limitação de responsabilidade não operam para afastar a responsabilidade decorrente de obrigação essencial do tipo contratual. É essencial a obrigação de construir com solidez e segurança O art. 618 do Código Civil determina que o empreiteiro é obrigado a responder pela solidez e segurança da construção pelo prazo irredutível de cinco anos19. A lei criou uma garantia imposta ao empreiteiro de construir com qualidade e dentro das boas técnicas de engenharia de modo que edificação seja sólida e segura. Há, como apontam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, uma verdadeira "garantia legal de cinco anos", sendo que durante esse período a responsabilidade é objetiva, não sendo possível qualquer debate sobre a existência ou não de culpa do construtor20. Existindo qualquer problema na construção que ponha em risco sua solidez e segurança, haverá obrigação do construtor de reparar. Como lembra Silvio Rodrigues, da "obrigação genérica de executar a encomenda de acordo com as regras de sua arte, decorre, para o empreiteiro, um dever excepcional de garantia"21. E essa obrigação - esse "dever excepcional de garantia" - é essencial ao tipo contratual, tendo sido erigida pelo legislador à condição de norma de ordem pública. Como ensina Álvaro Vilaça Azevedo, "Atualmente, preferiu o legislador considerar de ordem pública a norma constante do art. 618, citado, tornando indiscutível seu posicionamento de considerar irredutível o prazo de cinco anos para esse tipo de responsabilidade excepcional do empreiteiro."22 Assim, "não se há de cogitar da exclusão da responsabilidade legalmente prevista no art. 618", até porque a "exclusão não tem eficácia quando seu objeto disser respeito à obrigações fundamentais do contrato, sob pena de desfiguramento do tipo"23. Note-se que a essencialidade da obrigação, fixada por regra de ordem pública, de construir com solidez e segurança não decorre apenas do contrato. Ela tem origem, principalmente, no ato de construir. Quem decide construir é obrigado a fazê-lo com solidez e segurança, seja perante aquele que com ele contratou seja em face de terceiro, como, por exemplo, um novo adquirente do imóvel24 ou os seus vizinhos (CC. Art. 1.311)25. A legitimidade de terceiros para exigir o cumprimento rigoroso da obrigação de construir de forma sólida e segura é mais um elemento que leva à conclusão de que regra é de ordem pública e, por isso, inderrogável. A inafastabilidade da obrigação de construir com solidez e segurança fica ainda mais evidente quando examinada a evolução legislativa, mediante a comparação da redação do art. 1.245 do Código Civil de 1916 com a do art. 618 da codificação vigente. Veja-se que do Código atual consta uma adição e uma supressão. Adicionou-se o adjetivo "irredutível" ao prazo de dois anos, reforçando sua natureza de ordem pública. Além da adição acima comentada, a nova redação suprimiu da parte final da norma a expressão "exceto quando este, se não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra".  Tal expressão permitia que o construtor se exonerasse da obrigação de construir com solidez e segurança caso detectasse problemas no solo e avisasse o dono da obra, que, ciente e consciente do risco, decidisse prosseguir mesmo assim. Com a advertência e a permissão para a continuação dos trabalhos, alocava-se o risco ao dono da obra. Ou seja, a parte final do dispositivo permitia, ao fim e ao cabo, que as partes celebrassem uma cláusula de não indenizar liberando o construtor da responsabilidade se os problemas construtivos decorressem de questões geológicas previamente informadas. Como já dito, a regra foi suprimida pelo Código Civil vigente, de modo que hoje não é mais viável a alocação ao dono das obras dos impactos na solidez e segurança da obra decorrentes de riscos geológicos, ainda que devidamente advertidos e consentidos. "Assim, é dever do empreiteiro recusar prosseguir na execução da obra que, sabe de antemão, apresentará risco de ruir"26 . A supressão da regra, que permitia, por acordo das partes, que se afastasse a obrigação de construir com solidez e segurança caso existissem problemas no solo, é mais uma demonstração da inafastabilidade da garantia legal criada pelo art. 618 do Código Civil. Por todos os pontos acima expostos, que vão do texto da lei até sua evolução histórica, fica claro que a obrigação de construir com solidez e segurança é essencial, elemento integrador do tipo, que, ipso facto, não pode ser afastada - nem ela, nem suas consequências - pela autonomia da vontade das partes. E essa inafastabilidade atingirá todos os contratos de construção, abrangendo todas as modalidades de empreitada e o contrato de EPC, dentre outros. A alocação dos riscos, que é inerente aos contratos de EPC, se dá dentro de limites dentre os quais os ditados pelas regras de ordem pública e pelas normas essenciais do tipo contratual. Conclusão  Agora já é possível responder ao questionamento formulado no parágrafo 9 deste estudo: podem as cláusulas de limitação de responsabilidade ou de não indenizar impedir ou reduzir o direito a reparação decorrente do descumprimento da obrigação de construtor de edificar com solidez e segurança, tal qual determina o art. 618 do Código Civil? A resposta é negativa. Essa obrigação e suas consequências - correção dos defeitos ou indenização - não pode ser afastada por estipulação contratual, pouco importa se inserta em contrato de empreitada ou de EPC. Bibliografia ANDRIGHI, Nancy; BENETI, Sidnei; ANDRIGHI, Vera. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. IX. AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de direito civil, v. 4: contratos típicos e atípicos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Potencialidades funcionais das cláusulas de não indenizar: releitura do requisito tradicional de validade referente ao dolo e à culpa grave do devedor. In: SCHREIBER, Anderson; et al. (Coord.). Problemas de Direito Civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2021. DEUS, Adriana Regina Serra de. Engineering, Procurement and Construction. São Paulo: Almedina, 2019. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Atlas, 2015. MARTINS, Raphael. Estudo mostra gargalos da infraestrutura e propostas para sair do buraco. Exame, 25 de mai. de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de construção. Contratos-Aliança. Interpretação contratual. Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indenizar. Parecer. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1/2014, out.-dez./2014, pp. 315-351. MESQUITA, Marcelo Alencar Botelho. Contrato Chave na Mão (Turnkey) e EPC (Engineering, Procurement and Construction). São Paulo: Almedina, 2019. PAMPLONA, Nicola. Gargalos de transmissão limitam transporte de energia para socorrer reservatórios secos. Folha de S. Paulo, Rio de Janeiro, 11 de jun. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 149-150 SALES, Claudio; et al. Restrições de geração impostas por gargalos de transmissão. Acende Brasil, 18 de jan. de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Turma, Recurso Especial n° 1.169.109/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 22.06.2010. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n° 1.909.182/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.06.2022. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma, Recurso Especial n° 168.346/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. para acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 20.05.1999. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma, Recurso Especial n° 7.363/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 08.10.1991. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma, Recurso Especial n° 8.754/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 30.04.1991. __________ 1 PAMPLONA, Nicola. Gargalos de transmissão limitam transporte de energia para socorrer reservatórios secos. Folha de S. Paulo, Rio de Janeiro, 11 de jun. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023; SALES, Claudio; et al. Restrições de geração impostas por gargalos de transmissão. Acende Brasil, 18 de jan. de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. 2 MARTINS, Raphael. Estudo mostra gargalos da infraestrutura e propostas para sair do buraco. Exame, 25 de mai. de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. 3 "... define-se o EPC, acrônimo da expressão engineering, procurement and construction, traduzida sem maiores qualificações por engenharia, aquisição (de materiais e equipamentos) e construção, como o negócio em que o contratado incumbe-se de todas as atividades desde a concepção de um empreendimento até a sua entrega, inteiramente construído, dotado de todo o maquinário e demais utensílios, testado e em operação" (MESQUITA, Marcelo Alencar Botelho. Contrato Chave na Mão (Turnkey) e EPC (Engineering, Procurement and Construction). São Paulo: Almedina, 2019, p. 25). 4 "A principal característica dessa operação é o oferecimento do próprio empreendimento financiado como garantia do empréstimo concedido. Com isso, o dano da obra consegue obter recursos de que necessita para executar o empreendimento e, simultaneamente, delimitar o risco que está exposto, salvaguardando parte de seu patrimônio. Por outro lado, é natural que o agente financiador externo exija um grau de certeza quanto ao cumprimento do preço, do prazo de entrega e do desempenho projetado para o empreendimento, cuja receita gerada será a principal fonte de pagamento do empréstimo e cujos bens serão a garantia em caso de inadimplemento. O instrumento jurídico que se encontrou para atender a essa necessidade de certeza foi justamente o contrato de EPC, que encontra em uma única parte, o epecista, a grande parcela dos riscos envolvidos na consecução do empreendimento." (DEUS, Adriana Regina Serra de. Engineering, Procurement and Construction. São Paulo: Almedina, 2019, p. 200). 5 Código Civil, art. 610. "O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais". 6 A definição do que pode ou não ser considerado como caso fortuito no âmbito de uma determinada relação contratual pela vontade das partes é claramente viável. Essa conclusão é muito evidente quando lembrada a dicção do art. 393 do Código Civil, que, em sua parte final, estipula que as partes podem excluir ou determinar a responsabilidade por fatos capazes de serem considerados como caso fortuito. Com efeito, estipula o referido dispositivo legal que "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado". 7 "As cláusulas de não indenizar, ao distribuírem os riscos atinentes à reparação por perdas e danos, exercem importante função de assegurar às partes a previsibilidade no que tange aos efeitos de eventual descumprimento, em relevante garantia de segurança jurídica. Além disso, considerando-se que risco e preço são fatores diretamente relacionados, a redução do primeiro gera, em consequência, a diminuição do segundo. Assim, as convenções, em sua função de gestão contratual de riscos, viabilizam operações econômicas que poderiam não ser exequíveis sem a sua inclusão, facilitam a contratação de seguros por prêmios menos custosos e permitem ao credor a obtenção de vantagem em contrapartida, não arcando (ou arcando em menor extensão) com o impacto no preço causado pelo grau de assunção de riscos pelo devedor. Nesse cenário, permite-se a ampliação do acesso a bens e serviços e o desenvolvimento da atividade no bojo do sistema econômico, com participação de novos agentes e incentivo à livre concorrência". (CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Potencialidades funcionais das cláusulas de não indenizar: releitura do requisito tradicional de validade referente ao dolo e à culpa grave do devedor. In: SCHREIBER, Anderson; et al. (Coord.). Problemas de Direito Civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 358). 8 STJ, 3ª Turma, REsp n. 168.346/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. para acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 20.05.1999; STJ, 2ª Turma, REsp n. 1.169.109/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 22.06.2010. 9 "Tradicionalmente, foram concebidos, em doutrina, como requisitos de validade das cláusulas de não indenizar: (i) o respeito à ordem pública; (ii) a não incidência da convenção sobre a obrigação principal do negócio jurídico; e (iii) a impossibilidade de referência ao dolo e à culpa grave". (CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Op. cit., p. 357) 10 Código Civil, art. 618. "Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo". 11 Art. 12, Decreto n° 2.682/1912. "A clausula da não garantia das mercadorias, bem como a prévia determinação do máximo de indenização a pagar, nos casos de perda ou avaria, não poderão ser estabelecidas pelas estradas de ferro senão de modo facultativo e correspondendo a uma diminuição de tarifa. Serão nulas quaisquer outras clausulas diminuindo a responsabilidade das estradas de ferro estabelecida na presente lei." 12 Art. 247, Código Brasileiro da Aeronáutica. "É nula qualquer cláusula tendente a exonerar de responsabilidade o transportador ou a estabelecer limite de indenização inferior ao previsto neste Capítulo, mas a nulidade da cláusula não acarreta a do contrato, que continuará regido por este Código (artigo 10)." 13 MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de construção. Contratos-Aliança. Interpretação contratual. Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indenizar. Parecer. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1/2014, out.-dez./2014, p. 327. 14 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 149-150.  15 Súmula 161 do STF: "Em contrato de transporte é inoperante a cláusula de não indenizar". 16 Código Civil, art. 734. "O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". 17 Código Civil, art. 629. "O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante". 18 STJ, 4ª Turma, REsp n. 8.754/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 30.04.1991 19 Veja-se que o prazo do art. 618 não é prescricional ou decadencial, mas sim verdadeira garantia legal. O prazo prescricional para o exercício da pretensão reparatória do dono da obra contra o empreiteiro é decenal. "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que é decenal o prazo prescricional da acão para obter, do construtor, a indenização por defeito na obra, na vigência do Código Civil de 2002 (...)" (STJ, 3ª Turma, AgInt no AREsp n. 1.909.182/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.06.2022). 20 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Atlas, 2015, p. 854. 21 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3, p. 250. 22 AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de direito civil, v. 4: contratos típicos e atípicos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 169. 23 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 336. 24 STJ, 4ª Turma, REsp n. 7.363/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 08.10.1991 25 Código Civil, art. 1.311. "Não é permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias." 26 ANDRIGHI, Nancy; BENETI, Sidnei; ANDRIGHI, Vera. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. IX, p. 326.
"Assim, determino o retorno dos autos à origem, para que o Tribunal local reaprecie acausa, à luz da jurisprudência desta Corte"1. Pois bem, não há decisão judicial mais emblemática capaz de ilustrar de maneira definitiva que hoje no Brasil vivenciamos uma verdadeira Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial. Mais adiante vamos nos dedicar ao estudo detalhado dessa decisão, mas o importante para o momento é ficar evidenciado que nesse caso o Superior Tribunal de Justiça atuou de uma maneira muito diversa da sua atuação cotidiana, sob o ponto de vista da forma empregada e do resultado gerado a partir desse julgamento. Explico. Em termos gerais, o STJ, verificando que uma decisão de um Tribunal inferior diverge do seu entendimento já consolidado, conhece do recurso interposto e reforma a decisão de segunda instância, substituindo o acórdão recorrido por sua própria decisão.   Nesse caso específico não foi assim, pois, como se vê, o STJ, por decisão do Min. Marco Buzzi, determinou "o retorno dos autos à origem, para que o Tribunal local reaprecie a causa". Vale dizer, não reformou e nem declarou nula a decisão do Tribunal inferior. Na prática, tornou o acórdão de segunda instância sem efeito e determinou que outro fosse proferido em seu lugar, "à luz da jurisprudência desta Corte" (do STJ). Ponto importante de ser mencionado é que essa espécie de "cassação" da decisão não se deu em virtude de nulidade procedimental que eventualmente maculasse o acórdão, e daí fosse passível de ser declarado sem efeito e substituído por um outro pelo mesmo órgão jurisdicional após eventual correção procedimental. Não. Essa espécie de "cassação" se deu num processo que tramitou de maneira absolutamente hígida sob o ponto de vista procedimental em primeira e segunda instâncias. Em outros termos, o acórdão estava formalmente apto a ser apreciado no mérito por meio do recurso interposto. Fosse constatado que o entendimento do acórdão estava em dissonância com alguma orientação consolidada no STJ, seria totalmente viável sua reforma no Tribunal Superior, sem necessidade de seu retorno para a origem a fim da prolação de um novo acórdão de segunda instância. Entretanto, ainda assim, o STJ considerou necessária a postura adotada, qual seja, repita-se, não conheceu do mérito do recurso interposto e determinou o retorno dos autos para o proferimento de uma nova decisão pelo Tribunal a quo, esta agora de acordo com seu entendimento, obviamente visando não só que prevaleça a observância de sua jurisprudência pelo trabalho revisor e uniformizador da instância especial (do STJ), mas principalmente pelo trabalho originário e de base da própria segunda instância ordinária (dos Tribunais de Justiça). Independente da conveniência ou não desse formato decisório adotado pelo STJ - o que não está sendo objeto de qualquer juízo de valor, mas apenas evidenciado - o fato é que essa atuação, nesse caso em específico, tem o condão de demonstrar que as questões da Responsabilidade Civil Médica hoje no Brasil são preponderantemente resolvidas por meio dos julgamentos nos Tribunais, contando com o trabalho de uniformização dos entendimentos esparsos pelo Superior Tribunal de Justiça, numa constante construção de um real Direito Jurisprudencial.    Frente a essa afirmação, legitimamente se pode indagar: ora, mas sendo o Brasil integrante dos países pertencentes ao Civil Law, não seria precipuamente tarefa da lei brasileira a disciplina e a previsão de consequências jurídicas para as relações jurídicas estabelecidas no país, inclusive aquelas derivadas da prestação do serviço médico entre pacientes e médicos/empresas de saúde? Sim, a pergunta, como disse, é legítima e parte de um pressuposto até certo ponto lógico, mas há necessidade do reconhecimento de um fenômeno notório: a legislação não tem mesmo o condão de disciplinar de maneira nem próxima do exauriente acerca das questões jurídicas surgidas nos mais variados ramos de atuação das pessoas e empresas, especialmente na seara da prestação do serviço médico, o que gerou o preenchimento desse espaço de disciplina jurídica pelos Tribunais nacionais. Nesse cenário, em que o Poder Judiciário tomou para si a relevante tarefa de disciplinar tais relações jurídicas advindas dos contratos de prestação de serviços médicos, destacou-se o Superior Tribunal de Justiça como instância máxima na maioria dos casos médicos que aportam para definição sobre a pertinência ou não da fixação de indenização e em que patamares pecuniários. Essa conclusão permanece hígida mesmo num cenário nacional de mais de 14.559 leis brasileiras só no âmbito federal, esta última que declarou Patrono do Esporte Brasileiro o ex-piloto Ayrton Senna da Silva, com toda legitimidade - diga-se. Isto é, mesmo num cenário de vertiginosa produção legislativa, nem sempre de qualidade satisfatória, a questão atinente à Responsabilidade Civil Médica ainda se pode dizer quase que totalmente entregue à resolução por parte dos organismos de justiça do país - talvez, por hipótese, por tratar de litígios surgidos de situações totalmente peculiares, demandando soluções a cada caso concreto, exclusivamente. Uma outra hipótese para esse fenômeno seria que, mesmo nas tentativas formuladas pelo Legislador de estabelecer uma disciplina mínima para os casos médicos, as normas dele emanadas acabaram por se traduzir em dispositivos legais de caráter bastante genérico, positivadas em verbetes normativos equiparados a verdadeiras cláusulas gerais - para o que, ademais, não se encontra proposta de solução plausível, dado que a tarefa do Legislador é mesmo estabelecer normas de natureza geral e abstrata. Nenhuma crítica quanto a isso, apenas o reconhecimento de um fenômeno que impôs ao Poder Judiciário muito mais que uma tarefa de interpretação ou mesmo de colmatação da lei, mas sim uma genuína criação de soluções para os casos médicos vivenciados e não disciplinados em legislação apontando num sentido ou noutro, daí falar-se numa verdadeira Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial, tratando o Superior de Justiça de uniformizar os entendimentos judiciais esparsos. A presente e honrada oportunidade, por seus limites editoriais, não permite o ingresso mais aprofundado por questões de ordem acadêmica, como, p. ex., se temos nesse campo do Direito Médico um sistema próximo dos precedentes judiciais do Common Law e outras indagações de ordem mais teóricas do que práticas. Para essas questões pedimos licença para remeter o Caríssimo Leitor à nossa tese de doutoramento na qual foi estudado o próprio sistema jurídico norte-americano e feito o devido cotejo com o sistema jurídico brasileiro, derivando o estudo para a comparação entre os punitive damages nos EUA e os danos morais no Brasil com ênfase no Direito de Imprensa2. De qualquer modo, a ideia básica desse texto é a demonstração de que hoje no Brasil praticamente todas as questões atinentes às indenizações decorrentes da prestação do serviço médico são resolvidas por meio de soluções verdadeiramente criadas pelo Poder Judiciário nacional, como passa a ser ilustrado por uma questão específica da Responsabilidade Civil Médica: a solidariedade civil (ou não) entre Médico e Hospital. Pareceu-nos importante trazer especificamente essa questão porque tivemos a sensação de que, muito embora haja uma importância extraordinária sob o ponto de vista jurídico, econômico e administrativo para pacientes, médicos e empresas de saúde, uma determinada decisão do STJ do meio do ano de 2021 não foi objeto da divulgação correspondente à sua enorme relevância para todo o sistema de saúde brasileiro. Pois bem, crescemos todos no Direito Médico com uma pergunta sempre presente: afinal, o hospital responde pelo erro do médico praticado dentro do nosocômio em caso de mera locação do centro cirúrgico? Essa questão quase sempre foi respondida de maneira praticamente uníssona em termos genéricos da seguinte forma: em havendo mera locação do centro cirúrgico e ali o profissional de medicina cometendo um erro médico, o hospital não responde solidariamente pela indenização ao paciente.    Pode-se dizer que essa era uma resposta única de fonte jurisprudencial, isto é, essa conclusão foi extraída de um antigo e consolidado entendimento do STJ sobre a questão. Mas esse quadro foi colocado em dúvida após a prolação da citada recente decisão do mesmo STJ do ano de 2021, como veremos após a descrição do seguinte caso concreto. Em virtude de um erro médico ocorrido em meio a uma cirurgia plástica realizada em 2012, uma paciente ajuizou, em 2015, uma ação cominatória c.c. indenizatória apenas contra o hospital dentro do qual foi realizada a cirurgia. Em outubro de 2017, o juiz de primeira instância julgou parcialmente procedente o pedido para compelir o hospital a realizar uma nova cirurgia reparadora conforme indicado pelo perito judicial, bem como compensar a paciente em danos morais no valor de R$10.000,003. Duas apelações foram interpostas - da paciente e do hospital - e ambas desprovidas. Para os fins desse estudo, importa no acórdão o seguinte trecho da ementa: Responsabilidade Objetiva de clínicas e hospitais e subjetiva dos profissionais liberais.4 Importante mencionar que, segundo o acórdão, o hospital acabou por ser condenado sob esse único fundamento de aplicação de responsabilidade civil objetiva ao caso, sem que fosse avaliada qual a relação jurídica que havia entre o nosocômio e o médico, conforme distinção que o STJ estabelecia à época do julgamento da apelação. Foi negado seguimento ao Recurso Especial interposto pelo hospital contra o acórdão, ensejando a interposição do Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, no qual foi proferida a decisão que deu início a este artigo, cassando-se o acordão do Tribunal a quo com determinação da prolação de um outro de acordo com a jurisprudência do STJ. De suma importância para o entendimento da questão a transcrição de trechos dessa decisão do STJ, pois que, segundo o Min. Relator Marco Buzzi: - Da leitura do acórdão recorrido, nota-se que o Tribunal local consignou que a responsabilidade civil do hospital seria objetiva, ainda que não houvesse relação jurídica com o médico assistente. - Com efeito, trata-se de entendimento que destoa da jurisprudência desta Corte, para a qual a existência e natureza do vínculo existente entre médico e hospital é relevante para a apreciação da responsabilidade deste. - No ponto, relevante a menção aos seguintes precedentes, nos quais restou assentado que, quando a falha técnica é restrita ao profissional médico sem vínculo com o hospital, não cabe atribuir à entidade hospitalar a obrigação de indenizar. - Nesse contexto, considerando-se que o Tribunal local não teceu qualquer comentário acerca da efetiva existência ou particularidades do vínculo existente entre o médico responsável pelo dano e o hospital ora recorrente, faz-se necessário o parcial provimento, para que reaprecie a demanda, à luz da jurisprudência desta Corte. Assim, retornados os autos ao Tribunal de origem, foi prolatado um novo acórdão em que foi modificada a orientação anterior e a sentença de parcial procedência agora foi reformada, julgando-se o pedido inicial da paciente integralmente improcedente: ERRO MÉDICO. Autor que alegou erro médico no procedimento estético realizado. Sentença de parcial procedência. Apelação da parte ré e da parte autora desprovidas. Recurso Especial interposto pela parte ré que teve seguimento negado. Agravo em Recurso Especial que deu provimento ao recurso especial, determinando a reapreciação dos autos, à luz da jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça. CASO CONCRETO. Laudo pericial que concluiu pela existência de "nexo causal entre a cirurgia realizada e o resultado inestético obtido". Ação que foi proposta somente em face do nosocômio, onde foi realizado o procedimento cirúrgico. Ausência de vínculo entre o profissional, que realizou a cirurgia, e o nosocômio réu. Impossibilidade de se atribuir responsabilidade objetiva ao prestador de serviços. Sentença reformada. RECURSO DA PARTE RÉ PROVIDO. RECURSO ADESIVO PREJUDICADO. (Apelação nº 1007671-14.2015.8.26.0590, 2ª Câmara de Direito Privado, 9/4/20). Vale mencionar que agora, com o julgamento de improcedência favorecendo o hospital, não houve interposição de Recurso Especial por parte da paciente, transitando em julgado o acórdão em maio de 2020. Ocorre que uma das características mais importantes e virtuosas desse denominado Direito Jurisprudencial é a sua capacidade de se revigorar e buscar a correção de entendimentos judiciais que porventura mereçam revisitação e eventualmente superação, naquilo que se denominaria overruling no sistema de precedentes. Foi, então, o que se viu em junho de 2021, iniciando-se esse movimento quando a mesma questão da solidariedade ou não entre médicos e hospitais aportou novamente no STJ para mais uma deliberação, mas agora verificando-se uma virada na orientação anterior sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi dentro da 3ª Turma, in verbis: 1. Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos materiais e compensação por dano moral ajuizada em 24/11/2014, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 19/12/2018 e concluso ao gabinete em 19/08/2019. 2. O propósito recursal é decidir sobre a legitimidade passiva do hospital recorrente, bem como sobre a denunciação da lide aos médicos responsáveis pelos procedimentos cirúrgicos ou à formação de litisconsórcio passivo necessário entre o hospital recorrente e os respectivos médicos. 3. Os fatos narrados na petição inicial, interpretados à luz da teoria da asserção, não autorizam reconhecer a ilegitimidade passiva do hospital, na medida em que revelam que os procedimentos cirúrgicos foram realizados nas dependências do nosocômio, sendo, pois, possível inferir, especialmente sob a ótica da consumidora, o vínculo havido com os médicos e a responsabilidade solidária de ambos - hospital e respectivos médicos - pelo evento danoso. 4. Segundo a jurisprudência do STJ, quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional; nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII, do CDC). Precedentes. 5. Em circunstâncias específicas como a destes autos, na qual se imputa ao hospital a responsabilidade objetiva por suposto ato culposo dos médicos a ele vinculados, deve ser admitida, excepcionalmente, a denunciação da lide, sobretudo com o intuito de assegurar o resultado prático da demanda e evitar a indesejável situação de haver decisões contraditórias a respeito do mesmo fato. 6. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.832.371/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3T, 22/6/2021). Vale notar a perspicácia do entendimento da 3ª Turma do STJ nessa questão sobre a solidariedade ou não do hospital pelo erro médico, traduzida nos seguintes fatores: * antes dessa decisão, para se definir quem seriam os responsáveis pela indenização ao paciente, voltavam-se as atenções exclusivamente para um dos polos da relação de prestação do serviço de saúde, isto é, definia-se quem seria responsabilizado ou não unicamente diante da observação e análise do tipo de vínculo jurídico havido entre médico e hospital; * posteriormente a essa decisão, a definição sobre a constituição do conjunto de devedores da indenização no caso de erro médico se descolou para o campo de observação do outro lado da relação de prestação do serviço médico, perquirindo-se agora qual seria o ponto de vista do paciente frente à relação estabelecida entre médico e hospital. Particularmente quanto ao item 3 da decisão acima e caso prevaleça doravante esse entendimento, entregamos para a comunidade jurídica uma conclusão inevitável que vai significar uma mudança de 180 graus no entendimento que se tinha da questão: * apaga-se por completo o antigo critério da locação do centro cirúrgico para definição da solidariedade ou não entre médico e hospital por dano ao paciente; * inaugura-se um novo critério baseado no espaço físico de realização da cirurgia dentro do hospital, fato este suficiente para atrair a responsabilidade do nosocômio juntamente com a do médico que falhou, agora sob o ponto de vista do paciente que não tem como desvelar que tipo de vínculo jurídico há entre os prestadores da cadeia do serviço médico-hospitalar. Dito isso, há, ainda, dois pontos extremamente importantes a serem evidenciados. O primeiro deles é que uma leitura rápida do acórdão do Resp. 1.832.371/MG pode levar o pesquisador a pensar que todas os pontos decididos e constantes da ementa acima transcrita foram objeto da divergência de votos acentuada de 3x2 entre os Ministros. Portanto, poderia parecer, numa primeira análise, que a conclusão sobre a solidariedade do hospital pelo critério único de realização do ato médico dentro de suas dependências estaria submetida a uma pronunciada divergência dentro mesmo da 3ª Turma do STJ. Mas não. A divergência aberta pelo saudoso Min. Sanseverino se restringiu unicamente ao item do voto da Min. Nancy Andrighi que deferiu a denunciação da lide ao médico que realizou a cirurgia, mantida a unanimidade de entendimento dos 5 Ministros quanto à conclusão segundo a qual o novo critério definidor da responsabilidade solidária do hospital é a realização do ato médico dentro de suas dependências - isso na 3ª Turma do STJ. Porém, e sendo este o segundo ponto importante a ser evidenciado, devemos mencionar um julgamento recentíssimo na 4ª Turma do STJ, ainda utilizando-se expressamente do antigo critério acerca do tipo de vínculo havido entre médico e hospital para a definição da solidariedade ou não pelo dano causado ao paciente, in verbis: 1. "Admite-se o prequestionamento ficto, nos termos do art. 1.025 do CPC, exigindo-se, para tanto, que, opostos embargos de declaração na origem, seja constatada a ocorrência de algum vício previsto no art. 1.022 do CPC, devidamente apontado nas razões do recurso especial, sob pena de incidência da Súmula n. 211 do STJ" (AgInt no AREsp n. 2.094.099/RJ, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 13/2/2023, DJe de 16/2/2023). 2. "Consoante a jurisprudência desta Corte, a 'responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem vínculo com o hospital - seja de emprego ou de mera preposição -, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar' (REsp 908.359/SC, Segunda Seção, Relator para o acórdão o Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 17/12/2008)" (AgInt no REsp n. 1.739.397/MT, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/8/2018, DJe de 27/8/2018). 3. A desconstituição das premissas fáticas que fundamentam as conclusões do Tribunal de origem encontra óbice no fato de o recurso especial não comportar o exame de questões que impliquem incursão no contexto fático-probatório dos autos, a teor da Súmula n. 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 2.223.737/PR, R. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ªT, j. em 3/4/2023). Resumindo e concluindo, estamos diante de mais uma recente e pronunciada divisão de entendimentos entre as duas Turmas julgadoras da Seção de Direito Privado do STJ, agora acerca do critério de definição da solidariedade indenizatória entre médico e hospital por dano ao paciente, e essa fulcral questão para todos os atores da prestação do serviço de saúde deverá ser definida mais uma vez com exclusivamente por aquela que é a fonte mais vigorosa de solução jurídica dos casos médicos concretos no país: a Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial. Referências - SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. Tese (Doutorado em Direito) - PUC/SP, São Paulo, 2013. - Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, STJ. - Processo n. 1007671-14.2015.8.26.0590, da 3ª Vara Cível da Comarca de São Vicente - SP. - Apelação n. 1007671-14.2015.8.26.0590 do TJ/SP. - REsp n. 1.832.371/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3T, j. em 22/6/2021. - AgInt no AREsp n. 2.223.737/PR, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4T, j. em 3/4/2023. __________ 1 Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, STJ. 2 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. Tese (Doutorado em Direito) - PUC/SP, São Paulo, 2013. 3 Processo n. 1007671-14.2015.8.26.0590, da 3ª Vara Cível da Comarca de São Vicente - SP. 4 Apelação n. 1007671-14.2015.8.26.0590 do TJ/SP.
Recentemente, defendemos tese, sob orientação do prof. Paulo Nalin, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, a qual resultará na obra intitulada "Responsabilidade Civil Médica na Inteligência Artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI", com publicação pela editora Revista dos Tribunais prevista para setembro de 2023. Nestas breves reflexões, tem-se o intuito de apresentar um panorama geral do que defendemos na referida obra - vide tabela abaixo - sobre as interseções dos princípios éticos da IA na Medicina com os deveres de conduta médica decorrentes da boa-fé objetiva contratual, ressignificados na perspectiva da Pós-Constitucionalização do Direito Civil e na Medicina Centrada na Pessoa. Para tanto, apresentaremos 4 cenários para reflexão sobre culpa médica e deveres de conduta quando o diagnóstico ou proposta de tratamento envolve um sistema decisional automatizado. No primeiro quartel do séc. XXI, algoritmos de IA têm proporcionado uma mudança de paradigma para o modelo de cuidados de saúde. Não substituirá os médicos, mas definitivamente todo o arsenal tecnológico impulsionado pela Era da Medicina Digital tem transformado - e transformará ainda mais - a relação médico-paciente e a maneira como os sistemas de saúde funcionam, especialmente pela possibilidade de o atendimento médico seguir um modelo mais proativo, preventivo, preciso e centrado na individualidade de cada paciente. Sistemas decisionais automatizados têm um imenso potencial de melhorar a experiência dos pacientes nos seus cuidados de saúde, proporcionando diagnósticos, prognósticos e propostas de tratamento com maior rapidez, precisão e eficácia. Por outro lado, surgem novos desafios para o setor da saúde, sobretudo pelos riscos de algoritmos imprecisos, discriminatórios, mal utilizados e com processos decisórios obscuros. Atualmente, ao redor do mundo, não se tem notícia de jurisprudência sobre responsabilidade civil médica envolvendo um sistema de IA. Todavia, há uma tendência de que surjam litígios, tendo em vista a maior frequência, nas últimas décadas, de utilização de sistemas autônomos para apoiar decisões clínicas. Cenário 1 - culpa médica: em 2018, noticiou-se o problema de que o denominado "Watson for Oncology", sistema decisional automatizado da IBM para apoiar diagnósticos e propostas de tratamento de pacientes oncológicos, estava indicando tratamentos flagrantemente incorretos. Em certa ocasião, o sistema de IA sugeriu o uso de um determinado medicamento quimioterápico para um paciente com câncer de pulmão e com histórico de sangramento grave.  A questão é que há um efeito colateral bastante conhecido pela comunidade médica no fármaco indicado que é justamente a possibilidade de causar sangramento, razão pela qual ele é utilizado apenas em alguns pacientes com essa patologia. Trata-se de situação na qual, sobrevindo a morte do enfermo após o tratamento inapropriado, a aferição da culpa médica se torna, de certa forma, menos complexa, pois o profissional age em evidente falta de diligência (erro grosseiro), caso siga a proposta de tratamento bastante fora do padrão trazido pela IA. Por outro lado, imagine-se a situação na qual o médico insere os dados de um paciente no sistema de IA, o qual apresenta uma proposta de tratamento com outro remédio quimioterápico, que é bastante fora do padrão (apesar de correto) do que o médico está acostumado a recomendar, ao longo de muitos anos de sua prática clínica. Em seguida, o profissional ignora o resultado algorítmico, seguindo sua própria convicção de que o caso clínico do paciente se enquadra naquele padrão de tratamento, sobrevindo, assim, danos ao enfermo. Deve o médico ser responsabilizado? Nessa hipótese, em princípio, pode-se concluir que o médico não será responsabilizado, caso tenha sido diligente na anamnese e solicitação de exames, reconhecendo como apropriado um tratamento que é o padrão para o quadro clínico do enfermo. Todavia, frise-se que os estudos científicos evoluem, e pode ser verificado que um determinado medicamento que vinha sendo usado por médicos para tratar determinada doença não é mais adequado, sendo muito mais benéfico para o paciente um novo medicamento. Justamente por isso que poderíamos defender que, diante do tratamento fora do padrão proposto pela IA, o profissional tem que ao menos ser diligente ao ponto de investigar se não é necessário repensar a forma de tratamento compreendida por ele como a correta para o paciente, sob pena de ser responsabilizado. Nicholson Price, grande estudioso sobre as intersecções entre o direito médico e a Inteligência Artificial, afirma que, em tese, o médico, caso não seja diligente na utilização da IA, pode ser responsabilizado.1  No mesmo sentido, Fruzsina Molnár-Gábor defende que, se os médicos reconhecerem, com base em suas expertises, que as informações fornecidas pela IA estão incorretas naquele caso específico, não devem considerá-las como base para sua decisão.2 Assim, seguindo nessa mesma linha de pensamento, concluímos que, para verificar se um médico agiu culposamente em um caso específico, devem ser analisados os padrões de conduta profissional exigidos no momento da atuação médica.  O médico, diante do resultado diagnóstico ou prognóstico trazido pelo algoritmo de IA, estará na complexa posição de justificar: (i) porque ele seguiu o diagnóstico ou tratamento sugerido pela IA; ou (ii) porque - e com base em quais fatores - ele se desviou da recomendação algorítmica. O médico é livre para escolher seus meios de diagnóstico e propostas de terapia, mas também é responsável por suas escolhas.3 De todo modo, há uma premissa básica na avaliação da culpa médica, que será sempre uma constante na análise jurídica dos eventos adversos ocorridos por ato essencialmente médico: a álea terapêutica, os fatores aleatórios da prática da Medicina tornam impossível impor ao médico uma obrigação de infalibilidade ou absoluta exatidão.4 Além disso, defendemos que, ao longo dos próximos anos, à medida que essas ferramentas baseadas em IA forem se tornando comuns no dia a dia da prática clínica, mais se exigirá do médico que utilize de todo o arsenal tecnológico disponível, a fim de cumprir com seu dever de diligência nos cuidados da saúde. Pela aplicação da Teoria da Alteração das Circunstâncias no contexto sanitário, muito em breve o padrão de diligência do médico, para fins de aferir a culpa profissional, será substancialmente modificado. Assim como hoje um médico diligente usa com sabedoria um estetoscópio como instrumento para ouvir o coração e os pulmões de um paciente, vai chegar um momento na história da Medicina na qual o padrão de diligência mínima exigida para um médico fazer um diagnóstico clínico será aferido com base na constatação do profissional ter ou não utilizado (com sabedoria) um sistema de IA para apoiar a sua decisão. Cenário 2 - violação do dever de esclarecimento: frequentemente, tem-se levantado a preocupação de que à medida que algoritmos de IA começam a se infiltrar nos ambientes de assistência médica, há um aumento no que é conhecido como "paternalismo da IA" (AI Paternalism). A propósito, em 2020, noticiou-se que milhares de pacientes hospitalizados em uma das maiores entidades hospitalares de Minnesota, nos Estados Unidos, tiveram suas decisões de planejamento de alta médica apoiadas em um sistema de Inteligência Artificial; todavia, nenhum destes enfermos teve sequer ciência sobre o envolvimento da tecnologia para apoiar a decisão dos profissionais da Medicina. Trata-se da denominada "opacidade algorítmica pela não revelação",5 que não diz respeito às características intrínsecas dos sistemas de IA, mas parte da ideia dos riscos à autodeterminação informativa do paciente. Eric Topol destaca a importância de "colocar os valores e preferências do paciente em primeiro lugar em qualquer colaboração homem-máquina", a fim de que o implemento de tecnologias na prática clínica não propague o paternalismo médico, mas, ao contrário, a "IA represente um ganho de tempo para o médico estar em contato com o paciente".6 Em que pese existir divergência doutrinária sobre a quantidade da informação que deve ser repassada ao paciente para que o médico cumpra com o seu dever de informação, entendemos que, há atualmente a exigência de nova interpretação ao princípio da autodeterminação do paciente: saímos do simples direito à informação e caminhamos para uma maior amplitude informacional, ou seja, há um direito à explicação e justificação.7 Nesse sentido, além do dever que o médico possui de informar que, por exemplo, utilizou um algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, ele precisa também explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de compreensão de cada paciente, sob pena de ocorrer a chamada "opacidade explicativa". Em conclusão, observa-se que o dever de conduta médica de informação, esclarecimento e conselho, decorrente da boa-fé objetiva contratual, está intimamente relacionado com dois princípios éticos próprios da IA: i) proteger a autonomia humana, e ii) garantir a transparência, explicabilidade e inteligibilidade. Importante a ressalva de que a ressignificação do direito à informação do paciente, nos moldes apresentados, engloba uma espécie de "padrão ouro no tratamento", razão pela qual deve se considerar as peculiaridades da situação concreta para aferir a possibilidade de exigir do médico determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o atendimento. Cenário 3 - violação do dever de lealdade: tem sido muito discutida a problemática em torno da falta de educação e treinamento contínuo dos médicos com a utilização de novas tecnologias, somando-se ao fato de que nem sempre o emprego da IA é recomendado. Em paralelo, há o risco de os profissionais, fascinados pelos sistemas decisionais automatizados, confiarem "cegamente" nas predições algorítmicas e assegurarem ao paciente que determinada ferramenta tecnológica é extremamente precisa ou até infalível e ao enfermo será praticamente garantido um certo resultado. Por exemplo, logo que os robôs da Vinci foram inseridos no mercado de consumo norte-americano, em 2000, havia uma propaganda maciça das cirurgias assistidas por robôs e os médicos passavam implícita ou explicitamente a garantia de sucesso, especialmente em cirurgias oncológicas de extirpação da próstata, devido ao emprego da plataforma robótica. Pode-se imaginar o risco de que a mesma situação ocorra com algum sistema decisional automatizado, para fins de diagnóstico, prognóstico ou proposta de tratamento médico. Então, questiona-se: qual seria o reflexo na forma de aferição da culpa médica por eventos adversos neste cenário? A obrigação médica continua sendo de meios? Observa-se aqui a importância do debate sobre o princípio ético da promoção de uma IA que seja responsiva e sustentável, com o correlato dever do médico de cooperação e lealdade, decorrente da boa-fé objetiva contratual.  O profissional da Medicina, seguindo parâmetros de lisura e honestidade, tem o dever de respeitar as legítimas expectativas do paciente. Caso o profissional não compreenda as limitações do sistema de IA (opacidade epistêmica), utilizando como um fim em si mesmo - não como uma ferramenta - e, mais do que isso, repasse a garantia de total sucesso ao paciente justamente por utilizar a tecnologia, poderíamos cogitar o seguinte: a possibilidade de qualificar a obrigação médica como sendo de resultado, baseando-se na promessa de infalibilidade do recurso tecnológico empregado no procedimento. Ou seja, quando o profissional não compreende a IA como uma ferramenta de apoio à tomada de decisão (AI-as-a-tool), trazendo a tecnologia como garantia de sucesso na atuação médica, há uma quebra da confiança e legítima expectativa do paciente e, assim, a possível qualificação da natureza jurídica obrigacional em obrigação de resultado. Nesse sentido, recairá uma presunção de culpa ao ser avaliada a diligência na atuação médica. Frank Pasquale é categórico ao sustentar a necessidade de se promover um futuro no qual a IA tenha a função primordial de auxiliar, ao invés de substituir os médicos, e que "sempre haverá um lugar para que especialistas verifiquem a precisão das recomendações algorítmicas e avaliem o quão bem elas funcionam no mundo real".8 O julgamento profissional e o diagnóstico clínico final não podem ser automatizados, pois haverá situações nas quais o médico, por razões sólidas/científicas não deverá seguir a recomendação do algoritmo. Ressalte-se que, chegará (muito em breve) um momento no qual a Inteligência Artificial se tornará tão comum no setor de saúde e, mais precisamente, na prática clínica, que novas tecnologias deverão ser incorporadas à educação formal, ensinadas aos médicos em formação no Brasil desde os próprios bancos da universidade - o que já ocorre em instituições fora do país, tal como a Universidade de Standford, nos EUA. Além disso, é urgente a necessidade de que o próprio conselho de classe estabeleça algumas diretrizes sobre a política de capacitação e treinamento contínuo dos médicos com os sistemas de IA, a exemplo da resolução do CFM sobre cirurgia robótica publicada em 2022. Como afirmam Bernard Nordlinger e Cédric Villani, o médico do futuro deve ser "inteligente" e "aprimorado", no sentido de implementar diversas inovações tecnológicas na sua prática clínica e, ao mesmo tempo, estar "melhor educado e informado para prevenir, analisar, decidir e tratar doenças com empatia e o toque humano".9 Caso 4 - violação do dever de proteção: entidades hospitalares que implementarem sistemas de IA devem garantir a manutenção e funcionamento regular dos equipamentos. A garantia de condições apropriadas para utilização de sistemas decisionais automatizados por pessoas adequadamente treinadas, com avaliação e monitoramento constantes, deve ocorrer por meio de um programa de compliance alinhado com o trabalho do comitê de bioética do hospital. Contudo, questiona-se: o médico tem alguma responsabilidade sobre o arsenal tecnológico que ele utiliza na sua prática clínica? O médico tem um dever de atualização que é intrínseco ao profissional e um dever de vigilância que é extracorpóreo, ou seja, está relacionado ao instrumental que ele usa para o seu exercício profissional. Ele tem a obrigação de estar sempre atualizado, mas não necessariamente ter à sua disposição todo o arcabouço tecnológico existente.  Por isso, o padrão de conduta exigível varia de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Em geral, é exigida uma diligência mínima na utilização de tecnologias, razão pela qual, caso ocorra, por exemplo, um erro de diagnóstico grosseiro apoiado em um sistema de IA bastante ultrapassado, que apresenta frequentemente resultados errados/imprecisos, o médico pode vir a ser responsabilizado subjetivamente pela violação ao dever de vigilância decorrente da boa-fé objetiva contratual. Isso, especialmente quando o aparato tecnológico não for frequentemente atualizado e o médico estiver ciente da falha na manutenção do equipamento, a exemplo de um episódio ocorrido com pacientes oncológicos submetidos à radioterapia com o equipamento chamado Cobalt-60, no Instituto Oncológico Nacional do Panamá. Ressalte-se que o médico, agindo com boa-fé, caso perceba que a IA não agrega valor na sua prática ou, ainda, traz frequentemente resultados errados, tem um dever ético - e jurídico - de parar de utilizar a tecnologia na sua prática clínica, sob pena de incorrer em violação positiva do contrato. Para além da possibilidade de incidir a responsabilidade do fabricante por um algoritmo defeituoso, veja-se que o debate se insere na observância do médico ao princípio ético da IA de fomentar a responsabilidade e prestação de contas - ou seja, incide aqui a ideia de accountability (data informed duties), com o correlato dever de cuidado e de vigilância decorrente da boa-fé objetiva. A partir dos 4 casos debatidos acima, conclui-se que, cada vez mais, o médico precisará estar familiarizado com novas tecnologias, sendo um profissional altamente capacitado, com habilidades em múltiplas áreas que ultrapassam o limiar do conhecimento técnico em Medicina. Além disso, deverá possuir um treinamento constante e pautado em inovações médicas, desde o primeiro momento da sua formação. É imprescindível que essas tecnologias sejam implementadas com responsabilidade, respeitando princípios éticos e preservando a importância do papel do médico e a centralidade no ser humano. Os novos especialistas deverão conseguir integrar tecnologia, ciência e habilidades interpessoais para fornecer cuidados de saúde mais personalizados, eficazes e acessíveis. O que determinará se o implemento da IA desumaniza ou despersonaliza a relação médico-paciente é a maneira pela qual a tecnologia será utilizada e o significado que a ela será atribuído nos diversos cenários da atividade médica. Por fim, vale uma ressalva: é deveras inviável adotar a responsabilidade sem culpa no âmbito da atividade médica, mesmo para ser aferida a violação a um dever de conduta na prestação de serviços médicos com IA, os quais foram analisados nos casos acima, não apenas como mandamentos éticos, mas especialmente em razão da sua força jurídica cogente. Tratando-se o contrato firmado entre médico e paciente de negócio jurídico de natureza existencial, alguns deveres são preenchidos com novos e diferenciados significados, conduzindo a uma tutela distinta com uma lógica diversa daquela tradicional visão da responsabilidade civil contratual. A violação positiva do contrato médico pautada em uma análise subjetiva se justifica porque os deveres de conduta apresentam-se de maneira qualificada na relação contratual médico-paciente, comportando-se quase que como obrigação principal. Nesse contrato existencial, encontra-se na culpa o fundamento jurídico da responsabilidade do profissional. De igual modo, a violação positiva do contrato médico (por meio do descumprimento dos deveres de conduta) deve ser aferida subjetivamente, por imperativo legal, nos termos do art. 951 do CC e do § 4º do art. 14, do CDC, sob pena de inviabilizar a profissão e despersonalizar a relação médico-paciente. Novos paradigmas para os contratos de prestação de serviços médicos com IA se aproximam e é essencial buscar entendê-los. Evidencia-se a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo de aperfeiçoamento gradual e/ou ressignificação dos institutos e normas existentes. Isso tende a se tornar mais acentuado no (breve) futuro. __________ 1 PRICE II, W. Nicholson; GERKE, Sara; COHEN, I. Glenn. Liability for use of artificial intelligence in medicine. In: COHEN, I. Glenn; SOLAIMAN, Barry (ed.). Research handbook on health, AI and the law. Versão eletrônica. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Ltd., 2023. 2 MOLNÁR-GÁBOR, Fruzsina. Artificial intelligence in healthcare: doctors, patients and liabilities. In: WISCHMEYER, Thomas; RADEMACHER, Timo (ed.). Regulating artificial intelligence. Cham: Springer, 2020, p. 350-351. 3 NOGAROLI, Rafaella; GUIA DA SILVA, Rodrigo. Inteligência artificial na análise diagnóstica:  benefícios, riscos e responsabilidade do médico. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 89-112. 4 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 35-37. 5 Sobre as três dimensões semânticas da opacidade algorítmica, particularmente relevantes para o Direito Médico - (I) opacidade epistêmica; (II) opacidade pela não revelação; (III) opacidade explicativa -, vide tese desenvolvida originalmente no seguinte artigo: NOGAROLI, Rafaella; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Tripla dimensão semântica da opacidade algorítmica no consentimento e na responsabilidade civil médica. Migalhas de Responsabilidade Civil, 17 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 22 maio 2023. 6 TOPOL, Eric. Deep medicine: how artificial intelligence can make healthcare human again. Nova Iorque: Basic Books, 2019, p. 288; 308. 7 Sobre o novo perfil do consentimento do paciente em novas tecnologias, remeta-se a DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 8 PASQUALE, Frank. New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2020, p. 33; 35. 9 NORDLINGER, Bernard; VILLANI, Cédric; RUS, Daniela (coord.). Healthcare and artificial intelligence. Cham: Springer, 2020, p. VIII.
Causou expressiva atenção na esfera jurídica, social e política a ação movida pela empresa Dominion Voting Systems frente à empresa de mídia Fox Corporation. A ação tinha por finalidade pedido indenizatório, por difamação, decorrente da conduta da Fox, que veiculou em seus noticiários referências à suposta irregularidade na eleição americana, sendo que a empresa Dominion produz máquinas eleitorais utilizadas na votação ocorrida em estados americanos objeto de críticas pelo resultado ocorrido. Nesse contexto, o pedido indenizatório era no valor de 1.6 bilhão de dólares. Cumpre recordar que a origem da questão residia nas referências falsas divulgadas pela Fox sobre a Dominion, a partir das alegações feitas pelo anterior presidente americano, Donald Trump, de que as eleições americanas tinham sido roubadas. Nesse contexto, a Dominion tinha de provar não apenas que as alegações não eram verdadeiras, como também demonstrar que a conduta da Fox configura o standard jurídico de 'actual malice'1, correspondente à noção de que a empresa de comunicação sabia que as notícias eram inverídicas ou que demonstrou uma irresponsável desconsideração pela verdade. A partir da fase inicial do processo, correspondente ao denominado legal discovery process, foi possível para a Dominion obter acesso à documentação que demonstrava que a Fox efetivamente tinha conhecimento (knowledge) sobre as teorias conspiratórias divulgadas e que optou por levá-las ao ar com o objetivo de atrair sua audiência, propícia a acreditar nessas alegações. Ao analisar a documentação obtida, Eric M. Davies, o juiz do caso, observou ser absolutamente cristalino (crystal clear foi a expressão utilizada pelo magistrado) que as alegações divulgadas pela Fox eram falsas. Diante disso, o recurso à transação apresentou-se como um caminho natural para a Fox, poupando-a dos dissabores, para dizer o mínimo, de ser submetida a todas as démarches do processo, que incluiriam por exemplo depoimentos de seus principais executivos e acionistas. Constitui um truísmo ressaltar que a transação configura um instrumento jurídico contratual para pôr fim a litígio, mediante concessões recíprocas, conforme a previsão do artigo 840, do Código civil2. Sobressai, porém, que a transação contemporaneamente não se limita a um simples contrato particular: ocupa um lugar entre os instrumentos para a solução de conflitos por meios alternativos, conforme reconhecido pelo Código de Processo Civil e pontuado pela melhor doutrina nacional3. Essa finalidade se apresenta no presente caso, em que no dia previsto para o início do julgamento propriamente dito sobreveio a notícia de que a transação fora celebrada entre as partes, mediante o pagamento do valor de cerca de 787 milhões de dólares pela Fox - praticamente metade do valor pretendido pela autora. Muito embora a distinção entre as finalidades da responsabilidade penal e a da responsabilidade civil seja tradicional e historicamente conhecida4, a circunstância de a transação envolver apenas o pagamento da expressiva cifra antes indicada, quase um bilhão de dólares, acarretou, em alguns setores, uma certa frustração, que teve por base mais de um fundamento. Em primeiro lugar, a transação não foi acompanhada de qualquer reconhecimento por parte da Fox de que ela havia agido maliciosamente. De forma mais concreta, não houve por parte dela qualquer pedido de desculpas em face da Autora, muito menos qualquer reconhecimento de que agiu contrariamente a padrões exigidos em sua atividade. Limitou-se a empresa a reconhecer que algumas alegações divulgadas relativamente à Dominion não eram verdadeiras, mas reafirmou os seus elevados padrões de jornalismo5. Em síntese, não houve tanto perante a Dominion, autora da ação, como por extensão em relação à comunidade em geral, o reconhecimento por parte da Fox de que ela agiu erradamente, violando códigos éticos e morais de conduta6. Essa circunstância parece representar uma certa dissociação entre os interesses da Dominion, que mediante o resultado financeiro do acordo, alavancou seu patrimônio de forma astronômica, na medida em que o investimento inicial na companhia foi de 38 milhões de dólares7, e os críticos da Fox, que a veem como uma inimiga dos melhores interesses da opinião pública - e por extensão da democracia -, razão pela qual esperavam que ela fosse explicitamente sancionada.  Em essência, a mera conclusão patrimonial não pareceu a melhor solução para os analistas, que exigiam uma espécie de penalidade e, provavelmente, uma execração pública da Fox, na medida em que consideravam sua conduta como violadora de padrões morais da sociedade.  Vislumbra-se, portanto, que apesar do reconhecimento da função corretiva da responsabilidade civil8, essa finalidade não pode, em princípio, ser alcançada de ofício, ou ao menos quando o interesse da vítima se dirige primordialmente à compensação, como ocorreu no caso da Fox. Com efeito, observa-se que não obstante seja reconhecido o valor das desculpas como instrumento de correção e sanção para o causador do dano9, este mecanismo pressupõe o interesse da vítima, que não se apresentou no caso concreto. Desse modo, o papel institucional que as desculpas poderiam desempenhar foi substituído pelo pagamento de uma soma em dinheiro exclusivamente ao ofendido, sem que a opinião pública pudesse vislumbrar que os seus valores morais violados foram igualmente, ainda que de forma simbólica e mínima, reparados10. Sobressai, aliás, a perspectiva de quanto mais alto for o valor pago pelo suposto causador do dano à vítima, especialmente no estágio inicial do processo, mais rapidamente esta estará disposta a renunciar a um eventual pedido de desculpas, o que implica uma certa fragilidade do mecanismo de responsabilidade civil, baseado precipuamente no pagamento de valores indenizatórios, para propiciar a satisfação social almejada por determinadores setores. Para piorar as coisas, logo apontou-se que o valor da transação, altamente expressivo para o comum dos mortais, não acarretaria um prejuízo expressivo para a Fox. A razão para essa constatação reside na circunstância de que a quantia paga poderia ser deduzida do seguro contratado pela Fox, estando coberta a partir da previsão para os riscos decorrentes de sua atividade (media liability insurance). Uma demanda como a enfrentada pela Fox e a consequente transação inserem-se nas provisões do seguro normalmente realizadas pelas companhias americanas, de modo que uma parte da indenização paga será reembolsada pelas seguradoras contratadas11. Além disso, em se tratando de pagamentos a particulares, a companhia poderá deduzir o valor do acordo invocando benefícios fiscais, conforme foi noticiado pelos especialistas americanos, na medida em que pagamento do valor da indenização poderá ser qualificado como uma despesa necessária para o custo da realização do negócio12.  Por fim, foi devidamente ressaltado que a Fox detém, em caixa, a quantia de 4 bilhões de dólares, de modo que, muito embora expressivo, o valor pago no acordo não afetará o desempenho da companhia. Em essência, portanto, o pagamento do valor decorrente da transação não representará, efetivamente, qualquer valor 'punitivo' para a empresa, capaz de eventualmente abalar suas atividades, ou acarretar ao menos qualquer responsabilidade corporativa para seus dirigentes ou membros do board, por força de um eventual prejuízo para os seus acionistas. Nesse contexto, muito embora se trate da maior soma paga na história americana em face de uma ação de difamação, a análise feita a partir da transação celebrada resultou em uma percepção crítica sobre as potencialidades da responsabilidade civil para efetivamente exercer uma função corretiva, a fim de alterar uma conduta reputada por todos como contrária aos melhores valores sociais. Configurou-se, portanto, um paradoxo: diante dos mecanismos de proteção estabelecidos pela empresa previamente e em face de seu extraordinário poderio econômico, ao invés de configurar uma sanção, o valor astronômico da transação resultou inexpressivo frente ao alto grau de culpa atribuída ao ofensor por diversos setores sociais, de modo que o processo civil movido pela autora demonstrou-se, em princípio, incapaz de servir como elemento dissuasório, a fim de impedir a reiteração de condutas como a praticada pela Fox. Essa percepção, porém, deve ser objeto de ponderação. Deve-se, de um lado, evitar percepções niilistas, capazes de levar ao imobilismo, como 'se não houvesse nada de novo sob o sol'. De outro, há que se afastar a percepção de que o sistema jurídico não atinge as classes dominantes, de modo a automaticamente caracterizar o direito como um instrumento de manutenção do status quo. Mesmo que a ação civil proposta, e o correspondente processo civil instaurado, tenham sido extintos a partir da transação, o elevado valor pago pelo "suposto" causador do dano revelam indiretamente um reconhecimento de responsabilidade e sinalizam a necessidade de atender a padrões mínimos de condutas: ou seja, certos padrões não podem ser ultrapassados, pois geram consequências. Nesse contexto, há que se reconhecer que o Direito Privado pode servir como um instrumento de subversão, ou seja, atuar para alterar as condições sociais, sendo que, como subsistema jurídico do Direito Privado, também a responsabilidade civil pode configurar um mecanismo de alteração de condutas sociais, estando presentes os pressupostos para que ela possa exercer esse papel. Desse modo, a transação no processo entre Dominion e Fox e o valor vultoso objeto de pagamento podem servir como um estímulo de reflexão, e não como um fator de desestímulo nesse longo percurso evolutivo. __________ 1 O referido standard foi estabelecido de modo unânime na decisão New York Times v. Sullivan, da Suprema Corte, de 1964. 2 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fábio S. Notas sobre a transação como contrato típico: instrumento negocial de autorregulação dos conflitos entre particulares. Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2017, v. 13, p. 171ss. 3 Ver por exemplo GARANI, João Peixoto; DENARDI, Eveline. Técnicas de Negociação e de Transação como forma de ampliar a efetividade dos meios extrajudiciais de solução de conflitos - um estudo sobre experiências internacionais. Revista Jurídica Luso Brasileira, 2021, n. 4, p. 891 ss; BERGAMASCHI, André Luis; TARTUCE, Fernanda. A Solução negociada e a figura jurídica da transação. Associação necessária? 4 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fabio S. de. Notas sobre as distinções e relações entre a Responsabilidade civil e a responsabilidade penal. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, 2020, n. 95, p. 83 ss. 5 No original : "We acknowledge the Court's rulings finding certain claims about Dominion to be false. This settlement reflects FOX's continued commitment to the highest journalistic standards. We are hopeful that our decision to resolve this dispute with Dominion amicably, instead of the acrimony of a divisive trial, allows the country to move forward from these issues".      6 Sobre o tema ver, por exemplo, ROSENVALD, Nelson. Os danos irreparáveis na filosofia da responsabilidade civil norte-americana: Um contributo de Gregory Keating - Parte 1, migalhas direito privado no common law, 20.03.2023. 7 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com 8 Ver, por exemplo, CARVAL.  Suzanne. La responsabilité civile dans sa fonction de peine privée. Paris: LGDJ, 1995. 9 Ver, por exemplo, VINES, Prue. Apologies as corrective Justice in Tort Law : Reparation and Compensation as (partial) redemption in a Torts System. UNSL Law Series, 2018, vol. 79, p. 1. 10 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com 11 ANDERSON, MAE. Fox's Settlement with Dominion unlikely to cost it $ 785.5M.  12 ANDERSON, MAE. Fox's Settlement with Dominion unlikely to cost it $ 785.5M.
Há pouco mais de 10 anos, com o surgimento do Facebook e, posteriormente, do Instagram e do Whatsapp, o comportamento da sociedade atravessou uma estrondosa mudança de hábito, potencializada não só pelo aumento do uso da tecnologia como também pelo confinamento decorrente da pandemia da Covid-19. A velocidade dos acontecimentos diariamente retratada (e eternizada) nas redes sociais trouxe não só a redução da privacidade e da intimidade, mas o aumento da ocorrência de danos. O tradicional "querido diário" de outrora hoje é compartilhado coletivamente nas redes sociais. As postagens variam entre conquistas profissionais, ida à academia, o prato do dia, a festinha do fim de semana, as sonhadas férias e tudo o mais que acontece na vida de uma pessoa em atividade digital. Todos assumiram o seu lado pop star e se transformaram em verdadeiros influenciadores digitais por meio de lives, vídeos, dancinhas, "reels" e fotos postadas nas redes sociais. Porém, a vida digital não é bem esse mar de rosas muitas vezes retratado minuto a minuto na Internet. Na realidade, esse ambiente digital, trazido pelas redes sociais, é bastante fértil para a ocorrência de danos, o que torna cada vez mais visível o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, evidenciando uma vulnerabilidade digital da coletividade. Uma das formas de dano oriundas da vida digital é o abuso de direito no exercício da liberdade de expressão1. No ambiente das redes sociais, as pessoas se sentem autorizadas a opinar sobre tudo e sobre todos como se fossem verdadeiros juízes do exercício da vida alheia, em um verdadeiro Tribunal da Internet, cuja competência principal é julgar o cotidiano dos outros sem ser provocado, além de multiplicar opiniões, levantar discursos odiosos e até mesmo discutir com desconhecidos para fazer valer a própria opinião. A figura obsoleta da chamada "Fifi Fofoqueira" - idealizada na figura de uma mulher na janela, olhando o movimento dos passantes - foi substituída pelo fofoqueiro digital, atividade profissional e lucrativa, não necessariamente exercida por um jornalista de formação. Sempre convidado para festas e grandes eventos, o fofoqueiro digital, por vezes realiza atividade descompromissada com a ética do que está sendo noticiado. A atividade de fofoqueiro retrata não só o cotidiano das celebridades, a beleza, a moda e o glamour, mas principalmente as polêmicas, os fins de relacionamentos e as perdas de contrato, pois, infelizmente, é o que dá engajamento e, portanto, lucro.   Quanto mais fofoca se faz, mais seguidores e mais visibilidade se tem e, por consequência, mais dinheiro se ganha com publicidades e contratos. Os seguidores, por sua vez, alvo de toda a publicidade promovida, estão sempre aptos a opinar, criticar, sem qualquer filtro, por se sentirem protegidos pelo ambiente remoto cujo escudo é a tela do celular. Em um ambiente de poucos escrúpulos, nem sempre se leva em consideração se a situação noticiada vai provocar algum dano a alguém, pois a preocupação maior é o burburinho da notícia.  Em 2022, uma sucessão de boatos, seguidos por críticas e ataques sem propósito algum à atriz Klara Castanho, movimentou as redes sociais, voltando a atenção da sociedade a respeito da vulnerabilidade digital das pessoas e da gravidade dos problemas oriundos da fofoca digital. A situação teve início com um teaser2de um fofoqueiro digital que, em poucas palavras, afirmava ter uma atriz, de 21 anos, encaminhado o filho recém-nascido para a adoção, provocando a curiosidade das pessoas a respeito da identidade da atriz. Em seguida, desconhecendo o contexto da situação e antes mesmo de se inteirar sobre o assunto, uma apresentadora de televisão, realizou uma live em que tomava como inaceitável a conduta da referida atriz, mencionou ainda que a parturiente sequer teria olhado para o nascituro e por fim imputou a ela o crime de abandono de incapaz. A proporção tomada pela fofoca digital levou a atriz Klara Castanho, a uma situação de completa fragilidade emocional, pois a partir dali iniciaram-se as propagações dos ataques moralistas e os discursos odiosos, forçando a atriz a justificar os fatos, através de nota postada em sua conta pessoal do Instagram. O triste relato trazia uma sequência de violências sofridas pela atriz que havia sido estuprada e, tendo descoberto a gravidez tardiamente, optou por realizar o procedimento de entrega voluntária do bebê para adoção (art. 19A do ECA). A informação teria sido vendida pela enfermeira que atendeu Klara no hospital a um fofoqueiro de plantão que, após a nota de esclarecimento da atriz, se viu no direito de realizar uma reportagem sobre o ocorrido, mesmo tendo sido orientado pela assessoria da atriz a não fazer qualquer abordagem sobre o assunto. Depois, a matéria foi apagada das redes e seguida de um pedido de desculpas do responsável pela postagem e da diretora da redação do jornal digital cuja função principal é noticiar a vida das celebridades. O episódio gerou comoção nas redes sociais por parte dos fãs e admiradores de Klara, reabrindo o sempre atual debate sobre a privacidade de pessoas públicas e danos digitais. Diante desta situação, questiona-se: o pedido de desculpas teve alguma relevância jurídica para o dano provocado? Nesse caso específico, o pedido de desculpas isolado servirá como forma de reparação natural apta a reparar integralmente a vítima? É possível haver cumulação da reparação pecuniária com a reparação natural? Como atender ao princípio da reparação integral nesse tipo de situação? O direito à privacidade, na perspectiva do Direito Civil Constitucional, é uma espécie de direito da personalidade e, como tal, encontra fundamento constitucional nos direitos fundamentais à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, bem como na inviolabilidade da casa, do sigilo e dos dados pessoais do indivíduo (art. 5º, incisos X - XII). Aliado a isso, a proteção de dados é direito fundamental, incluído no rol do artigo 5º, pela Emenda Constitucional 115/2022. No caso Klara Castanho, além da privacidade, houve uma violação a um outro direito fundamental autônomo que com este não se confunde, qual seja, o direito à proteção de dados. Já no Código Civil, a privacidade está regulada nos artigos 20 e 21 que garantem a inviolabilidade da vida privada, notadamente, quanto à transmissão de atos, escritos, palavras e imagens do sujeito, sem prejuízo de eventual indenização em caso de violação. Vista sob a perspectiva de cunho espacial, a privacidade não está limitada somente ao espaço físico3, mas também às ações do indivíduo no ambiente digital, abrangendo não só os dados pessoais, mas - principalmente - a sua intimidade, sendo irrelevante para tanto o fato de o indivíduo ser - ou não - uma pessoa pública. Nesse contexto, o professor Paulo Lôbo elege três faces da privacidade, quais sejam: i) o direito à intimidade e à vida privada, ii) direito ao sigilo e iii) direito à imagem. O direito à intimidade, portanto, está relacionado ao domínio privativo do sujeito, isto é, fatos que não se deseja compartilhar com ninguém, denominados pelo Prof. Paulo Lôbo de "direito de não informar", a exemplo do episódio vivenciado pela atriz Klara Castanho. São as situações de cunho particular aptas a trazer dor e sofrimento ao sujeito, cujo sigilo se deseja manter4. No caso da atriz, além do direito à proteção de dados, todas as faces da privacidade foram violadas. O ambiente das redes sociais, apesar de haver o compartilhamento espontâneo da vida privada do usuário, não autoriza a disseminação da vida íntima do sujeito cujo sigilo se deseja manter, ainda que este seja uma pessoa pública. Ademais, a preservação da privacidade é pedra angular da Lei Geral de Proteção de Dados, por ser fundamento da política de proteção de dados (art. 2º, I, II e IV, da LGPD) e direito do seu titular (art. 17 da LGPD). Além disso, dados de saúde configuram dados pessoais sensíveis (art. 5º, II, da LGPD), sendo dever do Hospital garantir o sigilo destes, em respeito ao princípio da segurança (art. 6, VII, da LGPD). Nos espaços relacionais, a exemplo de hospitais e consultórios médicos, há um espaço mais amplo a ser tutelado, porque a intimidade e os dados sensíveis do sujeito ficam (ou deveriam ficar) limitados às pessoas envolvidas. Veja-se que a notícia do parto seguido da entrega voluntária para adoção deveria ser sigilosa5 porque compreendida em prontuário médico. Apesar disso, foi vendida pela enfermeira do Hospital a fofoqueiros digitais. A profissional vilipendiou dados sensíveis e desrespeitou tanto o sigilo profissional como o sigilo do processo judicial relativo à entrega para adoção. Diante do ocorrido, o Hospital emitiu nota se desculpando com a atriz e ressaltando que "tem como princípio preservar a privacidade de seus pacientes bem como o sigilo das informações do prontuário médico''. O hospital se solidariza com a paciente e familiares e informa que abriu uma sindicância interna para a apuração desse fato"6.  Por outro lado, importa registrar que os fatos aqui narrados não são resguardados pela liberdade de expressão dos causadores dos danos, estando a hipótese na seara do abuso de direito, pois, pelas razões acima expostas, do outro lado da balança estão valores existenciais merecedores de tutela constitucional qualificada, quais sejam, o direito à intimidade, ao sigilo de dados sensíveis e à imagem, diretamente preservados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. A esse respeito, Maria Celina Bodin de Moraes esclarece: O substrato material da dignidade assim entendida se desdobra em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado da vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado7.                Assim, todos os sujeitos de direito são merecedores da tutela da privacidade em suas três faces por conformar e informar o princípio da dignidade humana. Diante da vulnerabilidade digital e dos danos à intimidade, à honra e à imagem sofridos por Klara, importa enumerar os responsáveis: i) o Hospital, em decorrência de divulgação de dados sensíveis provocado por preposto (artigo 932, inciso III, do Código Civil); ii) os fofoqueiros digitais pela divulgação e disseminação da notícia sabidamente sigilosa cuja publicação foi expressamente desautorizada pela atriz e iii) a apresentadora e influenciadora que caluniou a atriz ao imputar-lhe crime de abandono de incapaz, atingindo não só a sua privacidade como também a sua honra. A ofensa à direito da personalidade pode se dar por meio da i) reparação pecuniária, em que se fixa um valor indenizatório a título de compensação pela dor moral sofrida, efetivada em uma obrigação de dar (pagar) ou da ii) reparação natural, ou seja, quando se utiliza de todos os meios para levar a vítima - de alguma maneira - a  uma situação semelhante a que ela se encontrava antes de sofrer o dano. Nesta segunda hipótese, a reparação do dano causado é realizada por meio de obrigações de fazer ou de não fazer. A aplicabilidade da reparação natural se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, o homenageado Carlos Edison Monteiro Filho: Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.8 Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente. O direito de resposta é regulado pela lei 13.188/2015 e tem por objetivo assegurar ao ofendido, por matéria divulgada nos meios de comunicação social, a correção das informações inverídicas de forma gratuita e proporcional ao dano. A publicação da sentença condenatória em larga escala, por sua vez, se presta a dar repercussão social mediante a divulgação da condenação em caráter definitivo do causador do dano.  A retratação, extraída do direito penal, é uma das hipóteses de extinção da punibilidade nos crimes contra a honra (art. 143 do CP), pois implica na retirada, por parte do ofensor, daquilo que foi dito anteriormente, devendo este esclarecer, de forma completa e livre de dúvidas, a veracidade dos fatos. Assim, por exemplo, diante da divulgação de uma notícia falsa, o ofensor pode se retratar e, dirigindo-se aos destinatários da informação, corrigi-la. O caso Klara, no entanto, contém uma peculiaridade, pois a primeira postagem da notícia, qual seja, "atriz, de 21 anos, entrega filho para adoção" foi incompleta e fora de contexto, levando à compreensão de uma notícia falsa como se a atriz estivesse descartando um filho proveniente de uma aventura juvenil. Nesse caso, o causador do dano poderia ter se retratado, retificando ou complementando a informação. Porém, a retificação da notícia resultaria em um dano ainda maior, pois findaria por expor a intimidade da vítima e fatos dos quais ela desautorizou a divulgação.  Assim, o primeiro fofoqueiro digital - que não sabia da integralidade dos fatos, mas deveria saber - agiu corretamente ao apagar a postagem e silenciar sobre o assunto, pois a retratação resultaria em mais danos.  Diferentemente da retratação, o pedido de desculpas é personalíssimo, isto é, somente pode ser exercido pelo ofensor, trazendo consigo a intenção deste de buscar o perdão da vítima pelo dano causado. Assim, o destinatário do pedido é o ofendido, bastando que a ele seja dirigido e cientificado, independentemente do meio de comunicação utilizado. Contudo, isso não impede que o pedido de desculpas seja feito de forma pública. Ademais, o arrependimento do ofensor é irrelevante para efeito de reparação, ante a subjetividade da conduta cuja averiguação é inviável de ser constatada. Dos personagens envolvidos no episódio da Klara Castanho, apenas o Hospital e os fofoqueiros digitais se preocuparam em se desculpar com a atriz pelo ocorrido. Nesse contexto, o pedido de desculpas e a retratação podem figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo. Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera: O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso9. Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da Klara Castanho, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar a vítima à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos que poderiam ser: i) indenizações a serem pagas por todos os envolvidos na ocorrência do dano por violação da privacidade da atriz, ii) o pedido de desculpas por todos os envolvidos, notadamente, os fofoqueiros digitais, o jornal digital onde a notícia foi veiculada por um deles, o hospital, a enfermeira e a apresentadora, iii) a punição administrativa da enfermeira e dos fofoqueiros, traduzida na demissão de todos eles, e iv) a suspensão do perfil do Instagram da apresentadora, utilizado para levantar discursos de ódio contra a atriz. A atriz ajuizou diversas ações contra os envolvidos, porém por estarem em segredo de justiça não é possível saber o conteúdo dos pedidos realizados por ela. Sabe-se, apenas, que o Conselho de Enfermagem arquivou o processo disciplinar contra os profissionais de saúde envolvidos, por ausência de provas. O caso Klara Castanho demonstra que nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação próxima a este estado. Nesses casos, a reparação natural repercute apenas na extensão do dano, reduzindo a dor sofrida sem, contudo, repará-la integralmente. A cumulatividade entre as funções reparatória e ressarcitória, é de escolha, por parte da vítima. Logo, uma indenização pode ser aliada a uma obrigação de fazer, a exemplo do pedido de desculpas, pois somente a vítima é capaz de indicar como a reparação do dano sofrido será alcançada. __________ 1 Sobre esse tema vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego e MOUTINHO, Maria Carla. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade do humor. In EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.) Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 219-235. 2 Utilizado em peças publicitárias, o teaser constitui uma publicação, prestando informação incompleta com o objetivo de provocar a curiosidade das pessoas.  3 No espaço físico, a tutela da privacidade pode se apresentar de várias formas: em ambientes públicos, nos ambientes relacionais e na residência das pessoas. Apesar disso, sabe-se que, nos ambientes públicos, em princípio, a privacidade é quase irrisória, não se podendo livrar do conhecimento de passantes os fatos ocorridos nesses locais. 4 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 159. 5 As informações fornecidas ao médico e mantidas em prontuário se revestem de sigilo e pertencem única e exclusivamente ao paciente. 6 Disponível aqui. Acesso em 29/6/2022. 7 MORAES. Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional do dano moral. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85. 8 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 9 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.
Violações relacionadas a dados pessoais têm se tornado recorrentes em ritmo consentâneo com a evolução da sociedade da informação e em decorrência da introjeção de novas tecnologias nas rotinas individuais. De fato, todo tipo de atividade realizada a partir de então adquire contornos peculiares e desafiadores conforme se avolumam os incidentes de segurança de grandes proporções. Técnicas para a tutela jurídica desses incidentes passam a envolver - para além do mapeamento das vulnerações - o propósito mais abrangente da reparação civil, que, pelas proporções tipicamente gigantescas, demanda atuação dos legitimados para a tutela coletiva. Significa dizer que a tormenta gerada por situações dessa estirpe, embora encontre suporte normativo para a instrumentalização de ações coletivas que visem solucionar seus impactos deletérios, recorrentemente demandará análise casuística de seus efeitos a fim de que se possa conjecturar institutos jurídicos mais adequados para cada evento danoso. No contexto específico da proteção de dados pessoais, nem sempre se terá uma única violação setorial em eventos multitudinário e nem toda relação jurídica atingida será, por exemplo, de consumo, o que gera dúvidas quanto à invocação de instrumentos previstos no Código de Defesa do Consumidor - CDC (lei 8.078/1990), como a reparação fluida (fluid recovery) de seu artigo 100, para solucionar determinado caso1. A grande repercussão de violações variadas, usualmente relacionadas a crimes cibernéticos que desencadeiam a exposição indevida de conjuntos de dados, tem sido uma preocupação hodierna. Situações dessa natureza são noticiadas pela mídia sob a alcunha de "vazamentos"2, embora, em termos mais apropriados, seja preferível descrevê-las como "incidentes de segurança"3. Com o recrudescimento do uso de estruturas automatizadas para o tratamento de dados pessoais, o desafio tem se tornado ainda maior, pois passa a extrapolar a ação criminosa de hackers, crackers, spammers e malfeitores em geral. Eventos multitudinário têm sido caracterizados, em notícias recentes que circulam pela mídia, pela palavra "megavazamentos"4. Em seu cerne, o fenômeno descrito pela doutrina como Big Data5 - que remete ao volume massivo de dados que circula pela rede e que alimenta estruturas algorítmicas - é o fator preponderante da aferição casuística de cada evento, o que pode sinalizar a necessidade de soluções variadas para um fenômeno complexo e que atinge interesses plurissubjetivos variados e inegavelmente danosos6, mas recônditos. Eis alguns exemplos: a) publicidade comportamental e perfilização7; b) policiamento preditivo (predictive policing)8 e os "risk assessment instruments" (RAIs) para o mapeamento da criminalidade em grandes centros urbanos9-10; c) geo-pricing e geo-blocking, que são técnicas que analisam a localização geográfica do usuário para apresentar-lhe preços diversos (discriminatórios) ou negar-lhe acesso ao produto ou serviço11; d) a discriminação por gênero, peso, idade ou outros fatores para a ocupação de determinados postos de trabalho12; e) para fins de reconhecimento facial13-14; f) para a propagação do discurso de ódio (hate speech); g) para a propagação de fake news15; h) os citados "megavazamentos" etc. Todas essas atividades acirram riscos - muitos deles evitáveis e previsíveis - e desencadeiam os malfadados ilícitos. Analisando a interlocução normativa do CDC com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD (lei 13.709/2018) e outras fontes, como a Lei da Ação Civil Pública - LACP (lei 7.347/1985), fica clara a necessidade de conformação dos contornos estruturais da atuação dos legitimados para a tutela coletiva, que poderão se valer de institutos como a citada reparação fluida, mesmo em casos nos quais a identificação dos interesses violados não seja precisamente classificada como uma vulneração de consumo, a gerar reverberações plurais que justifiquem a conexão normativa descrita pelo artigo 45 da LGPD, segundo o qual "as hipóteses de violação do direito do titular no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras de responsabilidade previstas na legislação pertinente". Ora, nem sempre é possível individualizar todas as vítimas de um evento danoso, o que gera dificuldades para a delimitação do interesse merecedor de tutela - se difuso, coletivo ou individual homogêneo -, embora a legislação aplicável determine a realização da tutela coletiva para eventos de violação à proteção de dados pessoais. Nesse contexto, merecem expressa transcrição os artigos 22 e 42, §3º, da LGPD: Art. 22. A defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na legislação pertinente, acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva. Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. (...) § 3º As ações de reparação por danos coletivos que tenham por objeto a responsabilização nos termos do caput deste artigo podem ser exercidas coletivamente em juízo, observado o disposto na legislação pertinente. Nota-se, nos dois dispositivos, expressa remissão ao "disposto na legislação pertinente", indicando uma preferência do legislador, aparentemente calculada, quanto à não delimitação de instrumentos próprios para essa tutela, ou mesmo em relação à estipulação de explicações específicas acerca da aplicação dos métodos tradicionais de apuração de danos aos eventos de violação a dados pessoais. Leitura precipitada do artigo 45 da LGPD pode levar o intérprete à conclusão de que as relações de consumo que envolvam dados pessoais serão regidas unicamente pelo Código de Defesa do Consumidor. Isso é relevante para a averiguação da reparação fluida (fluid recovery) porque tal instituto é estruturado, no Brasil, pela legislação consumerista. O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 95, preconiza claramente que a sentença condenatória pautada em direitos individuais homogêneos será sempre genérica, demandando ulterior liquidação. A fase de conhecimento do processo coletivo destina-se, portanto, à delimitação do an debeatur (se há débito), do quis debeatur (o que é devido) e do quid debeatur (a quem se deve). Na LGPD, pouca clareza há quanto a diferenciações conceituais concernentes à delimitação dos danos, embora se tenha remissões ao "disposto na legislação pertinente" (art. 22 e art. 42, §3º, acima); nada se fala, em específico, sobre a extensão dessa conexão a outras leis, de modo que cabe ao intérprete analisar se o conteúdo de eventual decisão judicial decorrente de violação à LGPD deverá contemplar o cômputo dos danos. Na sistemática descrita, cada indivíduo lesado ou sucessor poderá, pessoalmente ou através de legitimados, promover a liquidação e posterior execução da indenização a que faz jus, conforme prevê o artigo 97 do CDC: "A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82". Destarte, na fase de liquidação e execução de que trata o referido dispositivo, surgem duas situações específicas: (i) a primeira diz respeito à iniciativa de cada uma das vítimas e de seus sucessores; (ii) a segunda traz à tona a possibilidade de ajuizamento dos pedidos de liquidação e execução pelos legitimados mencionados no artigo 82 do CDC16. Já no caso do artigo 98, tem-se a possibilidade de que a execução seja coletiva e promovida pelos mesmos legitimados do artigo 82, mas somente "abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções". Consta do artigo 100 do CDC que, "decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida". A redação do dispositivo é clara e revela a opção do legislador brasileiro pela incorporação da fluid recovery norte-americana, mas com algumas distinções17, pois foram estabelecidos dois requisitos cumulativos para a sua viabilização, a saber: a) que transcorra o prazo de um ano para que se inicie a liquidação e execução da reparação, a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória genérica a que se refere o artigo 95 do CDC; b) que a gravidade do dano seja incompatível com o número de habilitações à tutela coletiva18. A incorporação da reparação fluida no ordenamento brasileiro, pelo artigo 100 do CDC, tem o objetivo de reduzir as chances de que o lesante saia impune diante de determinada prática lesiva, que pode equivaler à inobservância dos parâmetros de segurança que lhe são impostos (a se constatar pela presença do verbo 'dever') no caput do artigo 46 da LGPD. A indenização pelo dano de grandes proporções tem a finalidade de garantir a prevenção geral de ilícitos19, algo evidente nos chamados "megavazamentos", na medida em que se atribui maior valor à eficácia deterrente (deterrence) e dissuasória que é associada ao interesse público subjacente à tutela coletiva20. Exatamente por isso, a reparação fluida se torna relevantíssima para a ampliação do acesso à justiça e para a efetivação do devido processo legal coletivo, uma vez que garante a satisfação da tutela coletiva em situações peculiares que envolvem direitos individuais homogêneos capazes de colocá-la em risco, mesmo que a identificação das vítimas de forma individualizada seja impossível ou dificílima21. Assim, devido à amplitude de determinadas ações coletivas, nem sempre o saldo total obtido por força de uma decisão judicial - ou até mesmo de um acordo - será vertido para indenizar, de forma integral, todos os indivíduos afetados. Por essa razão, é usual que haja um saldo não reclamado, uma sobra, um saldo residual, que merece ser destinado a algum fim socialmente útil. Essa destinação, no Brasil, é o Fundo de Defesa de Direitos Difusos criado pelo artigo 13 da lei 7.347/1985, com a seguinte previsão: "Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados". Referido fundo foi regulamentado pelo decreto 92.302, de 16 de janeiro de 1986. Sendo desejável que haja tutela coletiva em contraponto a eventos de grandes proporções que causem danos e gerem desequilíbrio no ordenamento, a integração da previsão do artigo 100 do CDC aos dispositivos delineados pela LGPD para a construção material da vulneração e para a responsabilização civil de quem cause danos (arts. 42 a 44) deve ser formatada para além do redirecionamento remissivo contido no artigo 45 da LGPD, que conecta seus termos ao artigo 100 do CDC, restringindo seu escopo apenas de forma aparente. Noutros dizeres, deve-se conceber a previsão do artigo 100 como uma festejada incorporação da reparação fluida ao ordenamento jurídico, com clara aplicação às relações de consumo, mas que não deve, nelas, se esgotar. Situações concernentes a vulnerações setoriais não consumeristas devem ser contempladas pelo instituto para que, também, se viabilize a imposição do instituto com o objetivo de redirecionar eventual saldo remanescente da condenação ao pagamento de dano moral coletivo ao FDD do artigo 13 da LACP. __________ 1 Cf. FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A imprescindibilidade da reparação fluida (fluid recovery) para a tutela de ilícitos relativos a dados pessoais. Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 11, n. 30, p. 35-53, maio/ago. 2022. 2 O exemplo mais recente ocorreu no Brasil e envolveu a exposição ilícita dos números de CPF de 223 milhões de brasileiros, quantidade superior à da população do país, atualmente estimada em cerca de 212 milhões. Sobre tal fato, conferir a notícia divulgada, em 2021, pelo Migalhas. Acesso em: 15 maio 2023. 3 Explorei detidamente o conceito em publicação da coluna Migalhas de Proteção de Dados. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 4 Cf. TEIXEIRA NETO, Felipe; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Dano moral coletivo e vazamentos massivos de dados pessoais: uma perspectiva luso-brasileira. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 265-287, 2021. 5 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big Data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Nova York: Houghton Mifflin Harcourt, 2014, p. 19. Eis o conceito: "Big Data is all about seeing and understanding the relations within and among pieces of information that, until very recently, we struggled to fully grasp". 6 Para este tema, são importantíssimas as considerações desenvolvidas por Romualdo Baptista dos Santos, em sua Tese de Doutoramento, sobre o conceito de "dano enorme". Consultar: SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba/Porto: Juruá, 2018. 7 COLOMBO, Cristiano; GOULART, Guilherme Damasio. Inteligência Artificial aplicada a perfis e publicidade comportamental: proteção de dados pessoais e novas posturas em matéria de discriminação abusiva. In: PINTO, Henrique Alves; GUEDES, Jefferson Carús; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de (Coord.). Inteligência artificial aplicada ao processo de tomada de decisões. Belo Horizonte: D'Plácido, 2020, p. 286-290; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; BASAN, Arthur Pinheiro. Desafios da predição algorítmica na tutela jurídica dos contratos eletrônicos de consumo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 44, p. 131-153, dez. 2020, p. 141-146. 8 Exemplo recente envolveu a licitação iniciada pelo Município de São Paulo visando à implementação do sistema "Smart Sampa". Conferir interessante publicação da coluna Dados Públicos, de autoria de Patricia Peck Pinheiro, Cecília Frota e Maiara Fenili. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 9 SLOBOGIN, Christopher. Assessing the risk of offending through algorithms. In: BARFIELD, Woodrow (Ed.). The Cambridge handbook of the Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 432. O autor explica: "To aid in the risk assessment inquiry at sentencing, commitment, and pre-trial proceedings, a number of jurisdictions have begun relying on statistically derived tools called "risk assessment instruments" (RAIs). In a few urban areas, police are engaging in what has been called "predictive policing," which involves using data-driven algorithms to identify crime hot spots and sometimes even 'hot people'". 10 BORSARI, Riccardo. Intelligenza Artificiale e responsabilità penale: prime considerazioni. MediaLaws: Rivista di Diritto di Media, Milão, p. 262-268, nov. 2019. 11 MARTINS, Guilherme Magalhães. O geopricing e geoblocking e seus efeitos nas relações de consumo. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin (Coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 635-647. 12 REIS, Beatriz de Felippe; GRAMINHO, Vivian Maria Caxambu. A Inteligência Artificial no recrutamento de trabalhadores: o caso Amazon analisado sob a ótica dos direitos fundamentais. Anais do XVI Seminário Internacional "Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea". Santa Cruz do Sul: UNISC, 2019. 13 Conferir, sobre o tema: NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de; COSTA, Ramon Silva. O uso de tecnologias de reconhecimento facial baseadas em Inteligência Artificial e o direito à proteção de dados. Revista de Direito Público, Brasília, v. 17, p. 82-103, maio/jun. 2020, p. 99-100. 14 Exemplo recente envolveu a concessionária Via Quatro, condenada ao pagamento de indenização por dano moral coletivo em razão do implemento de sistemas de reconhecimento facial em áreas de espera do metrô de São Paulo com o intuito de mapear reações e traçar perfis para fins publicitários. Consultar, sobre o caso, COLOMBO, Cristiano; GOULART, Guilherme Damasio. New body perimeter and biometrics as personal data: some thoughts and insights on the 'São Paulo metro case'. Brazilian Journal of Law, Technology and Innovation, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 1-22, jan./jun. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 15 Sobre o tema, consultar REIS, Robson Vitor Freitas; THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho. Os discursos de ódio e as ações coletivas. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 2084-2107, 2017. 16 O rol de legitimados contempla o Ministério Público; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica,      especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC; as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC, dispensada a autorização em assembleia. 17 LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O dano moral coletivo e a reparação fluida (fluid recovery). In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (Coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p. 389-393. 18 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ponderações sobre a fluid recovery do art. 100 do CDC. Revista de Processo, São Paulo, ano 29, n. 116, jul./ago. 2004, p. 327. 19 A este respeito, destaca-se que a indenização punitiva, segundo a doutrina, "consiste na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence), opondo-se, nesse aspecto funcional, aos compensatory damages, que consistem no montante indenizatório compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo. MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, jan./mar. 2005, p. 15-32. 20 VOIGT, Paul; VON DEM BUSSCHE, Axel. The EU General Data Protection Regulation (GDPR): a practical guide. Cham: Springer, 2017, p. 206. 21 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 313.
A responsabilidade civil ambiental é dotada de especificidades próprias do dano ambiental, podendo se dar de duas formas: por meio da indenização e por meio da recomposição do meio ambiente ao status quo ante. A reparação civil por dano ambiental será devida tanto na esfera coletiva, tratando-se de interesses difusos, quanto na esfera patrimonial do particular atingido, quando se tratar de dano individual ou individual homogêneo (STEIGLEDER, 2011)1. Os Tribunais Superiores adotam, em relação ao dano ambiental, a teoria do risco integral. Por esta teoria, a mera criação do risco autoriza incidência da responsabilização civil, não se admitindo excludentes de ilicitude para afastar a reparação do dano causado (MACHADO, 2017). Constatado que a atividade exercida gera risco de dano ambiental, admite-se a inversão do ônus da prova, havendo presunção de responsabilidade em desfavor do réu. A responsabilidade civil por danos ambientais também é solidária (STEIGLEGER, 2011), podendo ser demandado qualquer dos causadores do dano ambiental, inexistindo obrigatoriedade de formação de litisconsórcio e assegurado o direito de regresso do demandado contra os demais causadores do dano ambiental. Destaca-se, ainda, que a pretensão de reparação civil por danos ambientais é imprescritível, conforme tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 654.833/AC. O dano ambiental, por vezes, se prolonga no tempo e "a valorização do futuro é importante para responder aos riscos invisíveis" (STLEIGLEDER, 2011, p. 121), sendo certo que a sociedade é o titular do bem jurídico. Reconhecida a autonomia jurídica do dano ambiental, não é possível limitar as formas de reparação ao direito civil clássico. Nesse sentido, emerge a necessidade de buscar formas de reparação eficazes que, para além da reparação, previnam a ocorrência de novos danos. O instituto da indenização punitiva é uma solução possível à efetivação da tutela civil do meio ambiente. A indenização punitiva, originária do direito inglês (punitive damages), é definida por Nelson Rosenvald como o "remédio monetário de caráter punitivo em complemento à recomposição das perdas patrimoniais e existenciais das vítimas, sempre em caráter extraordinário"2 (ROSENVALD, 2017). A indenização punitiva possui função punitivo-pedagógica, extrapolando a função compensatória da reparação civil. A indenização punitiva, além de ter a finalidade de desestimular a conduta lesiva, também visa reparar a vítima que sofreu danos que podem ser imensuráveis e forçar a sociedade a cumprir a lei. Possui, ainda, a função de educação, que diz respeito tanto ao causador do dano quanto à sociedade em geral, servindo para "informar e lembrar ao réu e à sociedade que determinado valor legal não apenas existe, mas recebe a proteção firme da lei" (OWEN, 1994, p. 13, tradução nossa). A função compensatória da indenização punitiva, por sua vez, visa garantir a reparação por perdas que não são facilmente recuperáveis, as quais o autor é incapaz de fazer prova objetiva, incluindo por exemplo, as despesas processuais e honorários advocatícios, cabendo ao causador do dano arcar com tais ônus. A indenização punitiva também possui a função de prevenir condutas similares, cuja efetividade depende dois fatores principais: se a lei, de fato, pune o causador do dano e se os potenciais infratores compreendem o que a lei prescreve e a possibilidade de serem punidos por eventual comportamento danoso (OWEN, 1994). Nesta esteira, para dissuadir o potencial causador do dano é necessário que ele compreenda as condutas proibidas, bem como os mecanismos que sejam capazes de forçá-lo ao cumprimento da lei. A aplicação da lei é complementar à função dissuasiva dos punitive damages, emergindo em momento posterior ao dano, quando a dissuasão não foi capaz de prevenir a conduta lesiva. A indenização punitiva exige que a vítima seja capaz de fazer prova do seu direito, a fim de fazer cumprir a execução da responsabilização. Owen (1994) destaca que a perspectiva de recebimento de indenização punitiva serve como incentivo à vítima para demandar judicialmente a tutela de seu direito. Por fim, a função da retribuição é considerada por Owen (1994) como a mais fundamental dos punitive damages. Essa função se mostra apropriada por proteger e possibilitar liberdade e igualdade, considerados como valores fundamentais da lei, possibilitando restauração da igualdade da vítima e da sociedade em geral para com o causador do dano ambiental. A retribuição, portanto, se dá tanto em favor da vítima quanto em favor da sociedade, assegurando o direito de igualdade para com o causador do dano ambiental, por vezes em condição de superioridade econômica. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu, de forma mitigada, o caráter punitivo da indenização como forma de desestimular comportamentos semelhantes. Como exemplo, tem-se o Recurso Especial 210.101/PR, no qual o Superior Tribunal de Justiça afirmou que a fixação do valor do dano deve buscar desestimular a repetição do ato ilícito, mas também evitar o enriquecimento ilícito do ofendido. O acórdão consignou que "a aplicação irrestrita das punitive damages encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio" (BRASIL, 2008)[3], em razão da vedação ao enriquecimento ilícito, mas autoriza sua incidência de forma mitigada. Para Rosenvald (2017), o ordenamento jurídico brasileiro resiste em aplicar a indenização punitiva, mas recorre à "hipertrofia do dano moral" como alternativa. A adoção do dano moral como resposta aos conflitos levados ao Poder Judiciário é dada como resposta à necessidade de desestimular a prática de ato ilícito, transcendendo o viés "puramente reparatório de lesões existenciais, anabolizando a sua quantificação", justificando-se em "uma pseudofinalidade punitiva, com fundamento na extrema reprovabilidade do comportamento do ofensor e em sua portentosa condição econômica." (ROSENVALD, 2017). A resistência dos Tribunais Superiores na aplicação irrestrita do instituto da indenização punitiva é justificada nas decisões com base no artigo 944 do Código Civil ("A indenização mede-se pela extensão do dano.") e ma vedação ao enriquecimento ilícito. Contudo, o dispositivo legal não pode ser óbice à aplicação da indenização punitiva, sobretudo no que toca à responsabilização civil por danos ambientais. O ordenamento jurídico brasileiro fornece elementos que obstam o enriquecimento ilícito do ofendido em caso de arbitramento de indenização punitiva por dano ambiental. Conforme disposto na Lei de Ação Popular, os valores arbitrados em sede de ação coletiva são direcionados ao Fundo gerido por Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, dos quais devem fazer parte o Ministério Público e representantes da comunidade atingida. Nesse sentido, a fim de evitar o enriquecimento ilícito, a importação dos punitive damages pelo Direito Ambiental poderia restringi-lo aos danos ambientais coletivos. Na regulamentação da indenização punitiva, poderia haver previsão de não aplicação aos danos individuais decorrentes da lesão ambiental, sobretudo diante da assegurada participação da comunidade atingida no Fundo responsável pelo recebimento da indenização. Ademais, a responsabilidade civil objetiva prescinde da demonstração de culpa, mas não proíbe sua avaliação. Constada a ocorrência de dano ambiental que decorreu de conduta altamente reprovável por seu causador, é possível avaliar a gravidade da culpa do agente para fixação da indenização punitiva para desestimular a prática de novos danos, tanto pelo réu quanto pela sociedade. A lesão ao meio ambiente importa em lesão à direito fundamental garantido constitucionalmente, sendo necessário que as formas de responsabilização visem não só reparar e compensar o dano causado, mas também desestimular a prática de condutas lesivas e criar mecanismos de enforcement. O punitive damages é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro e encontra espaço de aplicabilidade ao Direito Ambiental, sobretudo em razão da autonomia jurídica do dano ao meio ambiente. A indenização punitiva no caso de dano ambiental visa efetivar os princípios da solidariedade intergeracional e da reparação integral, desestimulando a prática de danos ao meio ambiente por meio da fixação de valor indenizatório que ultrapasse a mera compensação. Contudo, a importação do instituto originário do common law deve se dar de forma cautelosa, atentando-se para as especificidades na criação e aplicação do direito no civil law. Desse modo, propõem-se alternativas de adequação do instituto ao ordenamento jurídico pátrio. Destaca-se que fixação do quantum indenizatório deverá considerar as condições financeiras do causador do dano ambiental, a dimensão do dano, o grau de reprovabilidade da conduta e a gravidade do ato ilícito, não havendo vedação a análise da culpa para fixação da indenização punitiva. Cabe registrar que eventuais obstáculos à adoção da indenização punitiva pelo ordenamento jurídico brasileiro podem ser solucionados pela interpretação sistemática das próprias normas jurídicas, valendo-se da hermenêutica constitucional e considerando a premente necessidade de proteção e efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida. __________ 1 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 2 ROSENVALD, Nelson. Uma reviravolta na responsabilidade civil. 2017. Disponível aqui. 3 BRASIL. Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 201.101/PR. 09 de dezembro de 2008. Disponível aqui.
A recente experiência francesa de denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de constrangimentos sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos não diverge da realidade brasileira, evidenciando, assim, de modo ostensivo, a premência da renovação da cultura da responsabilidade civil correlata. Considerações iniciais O presente texto se inspira na saisine1 em julho de 2022 do Comitê Consultivo Nacional de Ética francês ("CCNE") pela atual Primeira Ministra francesa, Elisabeth Borne, com o fim de conduzir reflexão sobre o consentimento no contexto dos procedimentos ginecológicos e, mais amplamente, nos exames médicos que concernem à intimidade da  paciente.2 No ato de saisine, a chefa do governo justifica a consulta considerando que "a noção de consentimento evoluiu nos últimos anos em razão, principalmente, de novas situações geradas pelos progressos da medicina e das técnicas e pela confrontação dos profissionais da saúde e do social com as novas vulnerabilidades",3 e que "no âmbito dos cuidados ginecológicos, a noção de consentimento reveste uma importância e uma sensibilidade peculiares, pois os exames dizem respeito à intimidade psíquica e física das mulheres".4 De fato, além da crescente conscientização da população francesa acerca do problema dos constrangimentos marcados pela questão de gênero na sociedade em geral e no campo do sistema de saúde especificamente (criação do hashtag #PayeTonUterus, e polêmica surgida em 2015 a respeito dos toques vaginais e retais praticados quando a paciente está sob anestesia geral, por exemplo), o  que realmente determinou uma nova saisine do CCNE sobre um tema  já abordado no Avis5 136 de 15 de abril de 20216 foi um aumento expressivo da frequência das denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de violências sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos e a midiatização das ações judiciais envolvendo profissionais da medicina que possuem expressão pública e que recebem acusações de estupro por pacientes. Assim, não é por acaso que o CCNE foi consultado em julho de 2022, um mês depois de vir à tona o fato de um membro da equipe governamental, a Secretária de Estado para o Desenvolvimento, a Francofonia e Parcerias Internacionais, Chrysoula Zacharopoulou, especialista reconhecida em endometriose, ter sido  alvo de denúncias por estupro e violências sexuais que teriam acontecido quando exercia a profissão de ginecologista. Segundo a revista Marianne, em edição de 24/06/2022,7 que se refere a duas entrevistas realizadas com mulheres no programa de TV Quotidien da rede TMC, o Parquet de Paris aceitou  abrir, em maio de 2022, um inquérito, após receber as denúncias a fim de determinar se os fatos relatados pelas supostas vítimas eram suscetíveis de qualificação penal. A primeira entrevista se reporta a uma consulta durante a qual a paciente teria expressamente recusado o procedimento do toque anorretal (verbalmente e por um movimento de recuo do corpo), mas que teria sido imposto pela referida Secretária de Estado sob argumento de que, segundo a vítima, "no meu consultório é assim que acontece, não de outra forma". Na segunda, outra paciente acusa Chrysoula Zacharopoulou de ter praticado toques vaginais sem dizer uma palavra e por surpresa, além de toques anorretais também sem prévio consentimento, de maneira brutal, violenta e dolorida. Embora as conclusões do Parquet, comunicadas no início de abril de 2023, tenham sido pelo arquivamento das acusações por ausência de infração suficientemente caracterizada,8 a forte repercussão do caso na sociedade acabou amplificando as declarações da Primeira Ministra que registrou que as mulheres, após um exame médico, ficam, recorrentemente, com o sentimento de não terem sido respeitadas, em que pese ter destacado a preocupação de profissionais da saúde quanto à utilização das palavras não necessariamente em seus significados técnicos, como acontece com a alusão ao estupro.9 Foi justamente nessa conjuntura de ebulição midiática que, em fevereiro 2023, o CCNE adotou, à unanimidade, o Avis 142, que se intitula "O consentimento e o respeito da pessoa na prática de exames ginecológicos ou no que toca à intimidade"10 após o depoimento de mais de 30 pessoas, incluindo representantes de usuários e usuárias do sistema de saúde (associações e demais movimentos sociais contra as violências sexuais e de proteção das mulheres) e profissionais e estudantes da área da medicina, da enfermagem, da educação e do Direito. A experiência francesa não é isolada e denúncias similares ganham espaço na mídia nacional com uma frequência que sugere um contexto que carrega marcas indeléveis de violência de gênero na assistência à saúde. Tal realidade expressa, ostensivamente, a urgência da renovação da cultura do consentimento da mulher na assistência médica e a premência de revisitação dos elementos estruturais, das funções e da amplitude da responsabilidade civil. O consentimento  Desde os seus primeiros registros como exigência prévia para autorizar procedimentos médicos, em julgado do século XVIII, na Inglaterra, o consentimento alcança relevância no tempo e espaço, inclusive no campo da assistência médica. Trata-se de imperativo ético-moral alçado à qualidade de exigência normativa, cujos requisitos são determinantes para a validade de atos praticados na teia da relação entre profissional da medicina e paciente.11 Com efeito, esse novo estado de coisas rejeita a concepção de paciente que se submete a tratamento como ser "desvalido" de opinião sobre as decisões médicas tidas como impassíveis de compartilhamento, de informação e de deliberação dialogada. Vale dizer, a autonomia privada das pessoas participantes da relação médica exige expedientes eficientes para o seu reconhecimento e para o seu exercício.12 Assim, o consentimento é imprescindível para conferir à pessoalidade um caráter normativo, pois viabiliza que os seres humanos se assumam enquanto pessoas livres, que são regidas e reconhecidas por meio das ações que decidem praticar. Para tanto, é preciso perpassar por um processo comunicativo em que as pessoas possam definir suas escolhas, para que, nesse cenário, o Direito possa ser aperfeiçoado e aplicado.13 O consentimento livre e esclarecido14 é pressuposto para que profissionais da medicina realizem procedimentos que interfiram na esfera psicofísica da pessoa.15 Logo, tratando-se de aspecto essencialmente existencial, que se desenha em conformidade com o personalismo ético constitucional, o consentimento deve ser pleno, efetivo, nunca presumido, atual, espontâneo, consciente, informado e circunscrito. É sempre revogável, ou seja, cabe arrependimento e revogação a qualquer tempo.16 Portanto, o consentimento livre e esclarecido, no contexto da relação médico-paciente, somente é válido se concedido na dinâmica da exposição detalhada de aspectos relevantes do procedimento a ser realizado, devendo ser resguardada a prerrogativa de recusa e de interrupção da intervenção. Nas palavras de Márcia Santana Fernandes e José Roberto Goldim,17 vale destacar a  necessidade do uso da "palavra "processo" associada ao verbo "consentir", para que o consentimento seja compreendido como "uma cadeia de atos e/ou procedimentos, não necessariamente consecutivos ou postos de forma sequencial, que agregados ao ato de consentir lhe dão sentido e determinam os efeitos jurídicos". Nesse rumo, autora e autor lançam luzes sobre a importância de observância de elementos plurais, tais como capacidade psicológico-moral e jurídica; motivações subjetivas e/ou objetivas; forma escrita ou verbal; e informação. Tal giro conceitual parece guardar o potencial de colaborar com a renovação da cultura jurídica sobre a responsabilidade civil no que toca ao consentimento da mulher na assistência médica. Boas práticas e responsabilidade civil Uma possível concepção das chamadas boas práticas é a de que elas compreendem ações, procedimentos, processos ou métodos que foram estabelecidos como efetivos e que são amplamente aceitos como padrões para alcançar um objetivo específico, usualmente ligado à observância da responsabilidade em sentido ético-moral (positivo), à precaução/prevenção de danos, à explicabilidade de posturas e de processos, à prestação de contas, à mitigação/ afastamento da responsabilidade. Baseadas em experiências, pesquisas, testes e desafios pregressos, as boas práticas podem ser implementadas em áreas diversas, como as boas práticas de governança corporativa, boas práticas de mercado, boas práticas de proteção e de promoção de vulneráveis e de vulnerabilidades, boas práticas em tratamento de dados e boas práticas em serviços de saúde. Em um sentido mais amplo, boas práticas podem ser entendidas como gênero apto a comportar os programas e as práticas de conformidade e integridade, revelando a urgência de uma cultura organizacional e comunitária renovada e comprometida com a ética intersubjetivamente firmada. Esse debate que tem a ética como importante recurso discursivo oferece uma teia de possibilidades para reflexões de redimensionamento da responsabilidade civil, tanto em sua estrutura quanto em suas funções e em sua extensão. Na estrutura, os pressupostos da responsabilidade civil admitem os influxos para a configuração de um sistema plástico de licitude, que aceita incursões diretas dos ditames da boa-fé e de outros princípios que se apoiam no personalismo ético constitucional18. O nexo de causalidade enfrenta processos de erosão e de reinterpretação, haja vista que as boas práticas podem turvar a sua tradicional definição.  Novos danos são passíveis de reparação. A própria culpa depende, fundamentalmente, da diligência e do comprometimento com as práticas, que, eventualmente, servem para afastar, por exemplo, a negligência em determinado caso concreto.  As boas práticas reforçam a emergência de reconhecimento da multifuncionalidade da responsabilidade civil19, que pode se voltar para além da remediação de danos, para manifestar propósitos de precaução, punição, regulação de atividades, reparação social, distribuição de riscos, educação ético-cultural. Aliás, já vem sendo propriamente pontuado20 que, ao lado da função compensatória da responsabilidade civil (liability), destacam-se também, nas jurisdições do common law, três outros sentidos, quais sejam, os de "responsibility", "accountability" e "answerability". Essas figuras inspiram as dimensões da responsabilidade civil em seu regime nacional e podem encontrar sustentáculo na teia normativa vigente, especialmente aquela dos direitos e garantias fundamentais eficazes, inclusive, em perspectiva horizontal para as relações de direito privado. Em suma, as repercussões de inobservância do sistema mais amplo de boas práticas aplicáveis à relação médico-paciente são sentidas e provocam uma renovação cultural para a responsabilidade civil.  Considerações finais Favorável à instauração de uma nova cultura do consentimento no âmbito da saúde, ultrapassando a sua natureza meramente jurídica e o seu caráter tradicionalmente binário (sim/não), o CCNE21 considera que, diante do risco evidenciado de "despersonalização" dos atos médicos,22 o consentimento deve ser tratado como uma "construção dinâmica, relacional e social"23 visando à promoção de uma cultura humanista da saúde. O comitê de ética24 ressalta ainda que a relação de saúde deve ser sempre regida pelos princípios fundamentais do respeito da inviolabilidade do corpo humano, da autonomia e da dignidade de pacientes, de modo a propor uma redefinição das noções de intimidade, pudor e integridade corporal e psíquica, julgando imprescindível uma nova tipologia das violações ilegítimas e desproporcionais sofridas pelas mulheres nessa espécie de exame  (como o fato de desconsiderar o desconforto emocional ou as manifestações de pudor, falta de empatia, observações sexistas). Com base nessas observações, o CCNE, em sua manifestação, recomenda que os procedimentos ginecológicos envolvendo as esferas urogenital e anorretal sejam sempre praticados em um ambiente de escuta, de "saber-ser" e de autonomia de decisão para que se busque a preservação da intimidade das pacientes, com a validação de manifestações de desconforto como expressão de recusa. Vale dizer, o CCNE conclui que o consentimento deve ser informado e sistematicamente buscado na relação médico-paciente, não podendo ser presumido ou tácito, mas sempre explícito (embora suficiente a sua oralidade) e diferenciado para cada ato do exame que exige um "contato" com o corpo e para cada "toque" relativo à extrema intimidade da paciente.25 Esse posicionamento ressoa para a necessidade do resgate ético nas relações humanas, tanto na dinâmica de seu acontecimento quanto nos debates acerca de sua regência jurídica. As recomendações do CCNE tendem a desenhar-se como verdadeiros mananciais de boas práticas na relação entre paciente e obstetra, que possuem o potencial de prevenir e de mitigar violências correlatas e danos decorrentes. A experiência francesa de denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de constrangimentos sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos não é distante da realidade brasileira, na qual casos similares ganham espaço na mídia com uma frequência que sugere um contexto que carrega marcas indeléveis de violência de gênero na assistência à saúde. Tal realidade expressa, ostensivamente, a urgência da renovação da cultura do consentimento da mulher na assistência médica e a premência de revisitação de elementos estruturais, das funções e da amplitude da responsabilidade civil, que hão de ser considerados no desenho da configuração da repercussão civil da conduta tida por violenta à mulher em decorrência do descaso com o consentimento na assistência médica.26 __________ 1 Saisine é palavra polissêmica no direito francês. Em sentido amplo, "saisine" pode referir-se ao ato de submeter um assunto ou uma questão à apreciação de um órgão jurisdicional. No Direito Administrativo, por exemplo, pode designar a obrigação que tem a administração pública de examinar, por iniciativa própria, determinados assuntos de interesse público (saisine d'office). 2 LE MONDE. Elisabeth Borne saisit le Comité consultatif national d'éthique sur le consentement en gynécologie. 6 jul. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 3 Tradução livre do texto original. A íntegra da carta de saisine está disponível em: COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis N°142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 33. 4 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: : Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 33. 5 Os "Avis" do CCNE francês têm natureza jurídica consultiva, sem força vinculante. Entretanto, sendo oriundos desse órgão consultivo independente que visa a fornecer orientações éticas nas áreas de saúde, ciência, tecnologia e direitos humanos para o governo, instituições públicas e privadas e a sociedade como um todo, tais pareceres ou recomendações podem orientar decisões e ações de indivíduos e organizações, bem como podem ter influência expressiva sobre a política pública e as práticas institucionais, haja vista que são frequentemente empregados como referência por tribunais, legisladores e outras autoridades. 6 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis N° 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 7 MAGAZINE MARIANNE. Plaintes pour viol: Chrysoula Zacharopoulou dénonce des accusations inacceptables. Marianne.net. 28 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 8 LE MONDE. Violences gynécologiques: l'enquête visant la secrétaire d'État Chrysoula Zacharopoulou classée sans suite. Le Monde.fr. 4 abr. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 9 LE MONDE. Élisabeth Borne saisit le Comité consultatif national d'éthique sur le consentement en gynécologie. Le Monde.fr. 6 jul. 2022. Disponível aqui.Acesso em: 22 abr. 2023. 10 Tradução livre. COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 11 TEIXEIRA, Ivan Lobato Prado. Capacidade e consentimento na relação médico/paciente. 2009. 210f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 71-72. Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2023. Ainda a esse respeito, o autor registra que um importante marco para a inserção do consentimento do paciente nas decisões médicas ocorreu em 1947, após o fim da Segunda Guerra Mundial, sobretudo com o Código de Nuremberg, contexto em que isso se mostrou indispensável face aos horrores decorrentes do nazismo. Isso porque esse regime promoveu uma série de práticas que objetificaram o ser humano, como, por exemplo, experimentos com pessoas sem qualquer autorização do paciente, reduzindo-as a um mero objeto de pesquisa clínica. Destaca-se, ainda, que em 1964, a Declaração de Helsinque ampliou a exigência do consentimento na Medicina para um alcance mundial, aplicável, porém, apenas em situações de experimentação médica. Cabe mencionar, por fim, a Declaração de Lisboa, em 1981, que previu, expressamente, o direito do paciente de conceder ou revogar o consentimento em qualquer procedimento médico. 12 NOGUEIRA, Roberto Henrique Porto. Prescrição off label de medicamentos, ilicitude e responsabilidade civil do médico. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2017, p. 189-190. 13 SÁ, Maria de Fátima Freire de; OLIVEIRA NAVES, Bruno Torquato de. Panorama bioético e jurídico da reprodução humana assistida no Brasil. Revista de bioética y derecho, n. 34, p. 64-80, 2015, p. 75. 14 LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire. Inteligência artificial e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: o direito à explicação nas decisões automatizadas. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 26, n. 04, p. 227-227, 2020, p. 245. 15 RIBEIRO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Consentimento informado em intervenções médicas envolvendo pessoas com deficiência intelectual ou psicossocial e a questão das barreiras atitudinais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 27, n. 01, p. 83, 2021, p. 87. 16 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 151. 17 FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Os diferentes processos de consentimento na pesquisa envolvendo seres humanos e na LGPD - Parte I. Migalhas de Proteção de Dados, 01 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 maio 2023. 18 NOGUEIRA, Roberto Henrique Porto. Prescrição off label de medicamentos, ilicitude e responsabilidade civil do médico. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2017. 19 ROSENVALD, Nelson. Funções da Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023. 20 Ver: ROSENVALD, Nelson. Funções da Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023; CLEMENTE, Graziella Trindade.  ROSENVALD, Nelson. A multifuncionalidade da responsabilidade civil. Migalhas de Direito, Médico e Bioética, 19 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023. 21 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis nº 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 4. 22 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 32. 23 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis nº 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 27. 24 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 22-23. 25 Segundo o CCNE é preciso distinguir o "contato" com o corpo que é a "materialidade de um ato técnico" e o "toque" que representa "o que pode aceitar o paciente, um contato aceito por um psychè" (CCNE, Avis N° 142, p.32). 26 O texto é um prelúdio dos diálogos havidos entre as advogadas Fernanda Galvão e Leila Bitencourt com os professores Arnaud Belloir e Roberto Pôrto Nogueira acerca de pesquisa que integrará o  2º volume da obra "Temas Contemporâneos de Responsabilidade Civil: teoria e prática", coordenado pelas professoras Aline França e Luciana Berlini.
O filósofo romeno Constantin Noica1, em belo trabalho de ontologia, reconheceu que ao lado das doenças somáticas e psíquicas, devem existir outras "de ordem superior", qualificadas como "doenças do espírito" que nenhuma neurose poderia explicar, entre outros sentimentos, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo etc. O criador da técnica logoterápica e professor de psiquiatria da Escola de Viena, Dr. Victor Frankl, descreve o ser humano em três dimensões, quais sejam: a dimensão biológica, a dimensão psicológica e a dimensão noológica, onde se desenvolvem os fenômenos noéticos2, ou seja, trata-se da dimensão espiritual no sentido mais largo do termo e que pode levar à ausência de "sentido existencial" e, por consequência, à perda "da vontade de sentido" 3. Em geral, de graves lesões à vida e à saúde de uma pessoa surgem danos que limitam ou extirpam a vontade de viver decorrente de uma parcial ou completa ausência de sentido existencial, aquilo que Frankl chama de "vazio existencial". Antes, porém, tais lesões podem provocar sequelas que atingem o ser humano em sua vida de relação e em seus projetos de vida. Existe notadamente uma diferença qualitativa, embora os danos sejam ontologicamente semelhantes, entre as três espécies de danos existenciais. O que será aqui sugerido é que para a reparação civil do dano existencial é necessário que se entenda a diferença qualitativa entre as três esferas de dimensões humanas - em sua acepção ontológica mesma - o que importará um valor maior da verba compensatória para cada título de acordo com a gravidade do dano. O dano existencial, segundo Flaviana Rampazzo4, "se consubstancia, como visto, na alteração relevante da qualidade de vida, vale dizer, em 'um ter que agir de outra forma' ou em um 'não poder mais fazer como antes', suscetível de repercutir, de maneira consistente, e, quiçá, permanente, sobre a existência da pessoa. Significa ainda uma limitação prejudicial, qualitativa e quantitativa, que a pessoa sofre em suas atividades cotidianas". No Peru, o professor Carlos Fernandez Sessarego5 desenvolveu o conceito de dano ao projeto de vida enquanto dano existencial. Segundo ele, o projeto de vida é, em sua linha de raciocínio, o rumo ou destino que a pessoa humana consagra à sua vida, ou seja, o sentido existencial derivado de uma prévia valoração, pois, enquanto ser humano, ela é livre para dar o rumo que desejar à sua própria existência, elegendo vivenciar de preferência certos valores, escolhendo determinada atividade de trabalho, perseguindo certos objetivos. Em resumo, como afirma Osvaldo Burgos6, "tudo o que a pessoa decide fazer com o dom de sua vida". O impedimento ao projetar-se do homem por ato ilícito praticado por outrem ou mesmo o retardamento a esse vir a ser, ou ainda o seu impedimento parcial, caracteriza, dessa maneira, o dano extrapatrimonial a tal projeto de viver (total ou parcial, respectivamente), impondo ao lesado a mudança substancial dos seus rumos a gerar sofrimento para além daquilo que possa suportar, de forma mais ou menos intensa. Observe-se o exemplo de um determinado pianista, em início de carreira e com futuro projetado de maneira promissora que, em razão de um acidente de veículo provocado por imprudência de um outro condutor, perdeu uma de suas mãos, impossibilitando-o de concretizar os resultados que planejava com muito esforço e previdência durante muitos anos de sua vida. O dano ao projeto de vida se estabelece, nessa situação, para além do dano tipicamente moral em razão da lesão à sua saúde e integridade física e independentemente da existência de danos emergentes e/ou lucros cessante caso existentes. Já o dano à vida de relação, embora imponha prejuízos existenciais à pessoa, difere do dano ao projetar-se na vida pelo motivo de não abarcar um vir a ser frustrado de maneira total ou parcial; entrementes, implica no aviltamento das condições de relacionamento do "ser" em sociedade, a dizer, na sua profissão, no seu casamento, na sua vida sexual e/ou familiar etc, a ponto de desestruturar também total ou parcialmente o seu dia a dia. O dano ao projeto de vida e à vida de relação de uma pessoa pode derivar de lesão existencial à integridade física ou à integridade psicológica, seja porque o homem não tem mais aptidão física para realizar determinado ofício - como na situação do pianista com mãos e dedos decepados -, seja porque foi acometido de um mal psíquico que o levou à depressão por um período mais ou menos longo. Resta-se evidente que tais agressões resultam no sujeito a ruptura do seu equilíbrio psicoemocional, ou seja, a homeostase (estado livre de tensão), mas, ainda assim, não se atinge o seu estado de equilíbrio espiritual, ou seja, quando esse estado é concretamente violado, a vontade de viver perde qualquer sentido, diante de atos ultrajantes que aviltam a própria alma humana e o suporte espiritual7. Segundo Frankl8, é nesse espaço em que a noodinâmica é atingida, e não mais a homeostase. A homeostase pode ser solapada por atos menos graves e um estado de tensão que produz a sua quebra resulta até necessário para o amadurecimento psíquico da pessoa em algumas situações. O dano resultante, portanto, da quebra noodinâmica do ser humano pode ser denominado de dano noológico.9 Gize-se como exemplo o dos judeus sobreviventes aos campos de concentração nazistas. Predicada a situação particular ao aviltamento intenso da dignidade humana, os fortes traumas desenvolvidos por eles, resultaram, para muitos, em verdadeiros danos noológicos, ante à quebra - em consideração permanente em cada vida humana - do equilíbrio do espírito e da sua correlata função noodinâmica. Os danos existenciais podem, em apertada e ligeira síntese, ser classificados como dano ao projeto de vida, dano à vida de relação e dano noológico.  As duas primeiras espécies aparentam produzir efeitos semelhantes sobre o homem, isto é, são decorrentes de agressões aos aspectos biológico e psicológico do sujeito e podem constituir consequências limitadoras ou impeditivas do funcionamento corporal e psíquico dele, resultando prejuízos consideráveis ao constante devir humano e aos relacionamentos de vida em suas múltiplas acepções. A terceira espécie, de sua parte, é decorrente da quebra do equilíbrio noológico da pessoa humana e resulta da falta de vontade de viver por consequência do vazio existencial provocado pela lesão de tão grande magnitude, podendo-se asseverar que a sua característica mais importante - e a que o faz diferenciar sobremaneira dos demais espécimes agora catalogados - é o elemento qualitativo da lesão: a lesão que pode atingir o equilíbrio noodinâmico para além do equilíbrio homeostático. Nessa ordem de ideias, a pessoa pode ser atingida em seu aspecto biológico e não desenvolver graves consequências sobre a sua psiquê ou sobre o seu sentido existencial de vida; pode, outrossim, desenvolver consequências sobre o seu estado psíquico sem ter sido atingido em seu campo biológico e também noético; entretanto, não pode ter seu estado espiritual atingido e não ter também sido atingido, a jusante, o seu estado psíquico, não obstante possa, na mesma situação, não ter sido atingido o seu estado biológico. Em termos de gravidade provocada, pode se estabelecer que o dano resultante da quebra do equilíbrio noológico - que vem sempre a rebote da quebra do equilíbrio psicológico - é o de maior intensidade na vida do cidadão e, por isso mesmo, merece atenção especial do Juiz a fim de possibilitar um maior valor à título de reparação pecuniária. Extrai-se, de pronto, a partir da categorização ora formulada, uma conclusão importante tanto para a teoria dos danos quanto para a práxis judicial: diferentemente do dano moral, o dano existencial, à guisa de sua classificação tripartite, é um dano de consequência provada, ou aquilo que em doutrina italiana se chamava de dano-consequência ou dano-prejuízo, cuja utilização foi defendida no Brasil por autores importantes10. Silvio Neves Baptista11 compreende o dano como um fenômeno unitário e um verdadeiro fato jurídico. Para o eminente jurista brasileiro, o dano é um fato jurídico consequente decorrente de um fato jurídico antecedente que, quando entra no mundo jurídico, produz efeitos indenizativos. Portanto, os fatos antecedentes podem existir sem que sejam transformados em supostos jurídicos, quando o ordenamento não lhe atribua consequências indenizativas, a exemplo dos prejuízos não indenizáveis provenientes de fatos encobertos por excludentes de ilicitude. Logo, enxerga o dano como uma unidade pressuposta do dever de reparar. De fato, a lesão a um interesse juridicamente tutelado pressupõe uma determinada consequência jurídica, contudo, tal efeito pode se encontrar predisposto no fato jurídico danoso (p., ex, o dano à honra de um sujeito absolutamente incapaz) ou necessitado de comprovação concreta (caso dos danos existenciais, na tipologia aqui adotada). Daí ser preferível à expressão "dano presumido" a expressão dano de consequência predisposta. Com base nesse raciocínio, quanto aos seus efeitos ou consequências, sugere-se dizer que os danos podem ser classificados em: a) Danos de Consequência Predisposta e b) Danos de Consequência Concreta ou Provada. Assim, nesse contexto, o Dano em seu sentido jurídico, como categoria unitária, não pode nunca ser presumido, porquanto está sempre pressuposto e entretecido ao dever de reparar, isto é, havendo lesão a um interesse tutelado pelo ordenamento jurídico, também se pressupõem as suas consequências sempre jurídicas, estando estas predispostas normativamente no fato danoso ou necessitadas de comprovação concreta em cada caso particular. O dano moral é um dano de consequência predisposta, pois decorre da simples lesão à bem personalíssimo do sujeito; enquanto o dano existencial - em qualquer de suas facetas - é uma espécie de dano extrapatrimonial de consequência concreta ou provada, cuja gradação poderá levar o Juiz a fixar a verba compensatória de acordo com a gravidade dessas mesmas consequências. Em resumo, os danos ao projeto de vida e à vida de relação merecem um valor consideravelmente maior em sua reparação que os simples danos morais, e, entre os danos existenciais, o dano noológico merece um valor maior, a título de reparação, que os danos ao projeto de vida e à vida de relação.  ___________ 1 NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito. Tradução de Fernando Klabin e Elena Sburlea. Beste/Bolso: Rio de janeiro, 2011, p. 19. 2 FRANKL, Victor. A vontade de sentido.  Fundamentos e aplicações da logoterapia. Tradução de Ivo Studart Pereira. São Paulo: Paulus, 2011, p. 27-32. 3 FRANKL, Victor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofifia. Tradução de Bruno Alexander. Campinas-SP: Auster, 2021, p. 45 e ss. 4 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 144 e 145. 5 SESSAREGO, Carlos Fernandez. El daño al proyecto de vida. Disponível em . Acesso em 17/05/2021, p. 4/8. 6 BURGOS, Osvaldo R. Daños al proyecto de vida. Buenos Aires: Astrea, 2012, p. 137-138. 7 FRANKL, Victor. Sobre o sentido da vida. Tradução de Vilmar Schneider. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 111. 8 FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Trad. de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. São Leopoldo: Sindonal; Petrópolis: Vozes, 2019, p. 126 e 128. 9 Nomenclatura criada por este articulista. 10 FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. DANO-EVENTO E DANO-PREJUÍZO. Tese: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2009. 11 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 65 e 76.
A cirurgia plástica é uma especialidade médica que tem como objetivo restaurar ou melhorar a aparência e/ou função de uma parte do corpo humano. Essa especialidade é composta por duas vertentes principais: a cirurgia plástica reconstrutiva e a cirurgia plástica estética. A cirurgia plástica reconstrutiva tem como objetivo reconstruir alguma parte do corpo que sofreu deformidades, defeitos congênitos, traumas ou lesões, como queimaduras e câncer de pele. Ela pode incluir procedimentos como a reconstrução de mamas, reparação de lábio leporino e fenda palatina, reconstrução de partes do corpo após a retirada de tumores, entre outros. Já a cirurgia plástica estética é aquela que busca melhorar a aparência física do paciente, sem necessariamente ter uma finalidade médica ou funcional. Ela pode incluir procedimentos como a rinoplastia (cirurgia do nariz), a abdominoplastia (cirurgia da barriga), a lipoaspiração (remoção de gordura localizada), a mamoplastia de aumento (colocação de prótese mamária), entre outros. Ambas as vertentes da cirurgia plástica exigem uma formação médica específica e um alto nível de habilidade técnica e artística por parte do cirurgião plástico. Além disso, é importante que o paciente esteja ciente dos riscos e benefícios de cada procedimento, e que escolha um profissional qualificado e experiente para realizar a cirurgia.  No campo do Direito Médico, a cirurgia plástica assume lugar de destaque, uma vez que a incidência de processos versando sobre tal especialidade assume proporções desmedidas, sendo digno de nota a quantidade de cirurgiões plásticos que sofrem ou já sofreram questionamentos judiciais à sua prática profissional. Não bastasse, o Brasil é um dos países onde mais se realizam procedimentos estéticos em cirurgia plástica, sendo necessário estabelecer conceitos jurídicos - em nome da estabilidade e da segurança - que estejam em consonância com os aspectos técnicos dos procedimentos realizados, especialmente em se tratando de uma atividade que não se traduz em uma ciência exata, onde múltiplos fatores influenciam em seu resultado.  São hipóteses que, mesmo indesejadas, se mostram presentes na literatura especializada, e que fogem ao controle do esculápio, uma vez que independem de sua capacidade técnica, da diligência empregada, e mesmo da utilização dos melhores e mais modernos centros cirúrgicos e equipamentos disponíveis. Muito se discute na doutrina nacional, quando se trata da natureza jurídica da obrigação médica, sobre obrigação de meio, e obrigação de resultado. É consenso que a atividade médica é considerada, em sua maioria, uma obrigação de meio, ou seja, que o exercício da medicina não promete cura, mas sim tratamento adequado, segundo as normas de prudência, perícia e diligência, e padrão de conduta ético e comprometido por parte do profissional em favor da melhora de seu paciente. Isto ocorre porque a atividade médica, por definição, está sujeita ao acaso, ao imprevisível comportamento da fisiologia humana, que por vezes insiste em desafiar o senso comum, os prognósticos mais acurados, e às expectativas mais prováveis. Enfim, além da resposta de cada organismo ser única (embora sejam esperados determinados padrões de resposta), ainda se encontra a intervenção médica sujeita ao acaso, ao infortúnio, à força maior. Por estas e mais outras tantas razões, a atividade médica não se sujeita a um comprometimento com o resultado, mas sim ao dever de diligência. Todavia, temos visto a repetição - por vezes irrefletida - de que dentre as exceções a esta regra, se encontraria a cirurgia plástica com finalidade estética (ou desprovida de finalidade terapêutica). Esta seria considerada uma obrigação de resultado, implicando comprometimento do cirurgião com o êxito satisfatório de sua intervenção. Em princípio, "êxito satisfatório" pode parecer redundante. Não o é, todavia, neste caso, uma vez que - dado o alto grau de subjetividade envolvido na apreciação do resultado de uma cirurgia plástica estética não reparadora, por parte do paciente. O que pode parecer belo e tecnicamente perfeito para uns, não o será necessariamente para outros. Um dos elementos centrais aqui a serem discutidos, portanto, versa sobre o fato de a cirurgia plástica estética não reparadora ser uma obrigação de meio, ou obrigação de resultado.  Por certo que, em qualquer atividade médica, existe a necessidade - e o dever - de se agir com prudência, diligência, precaução e perícia. Tal fato se justifica porque, em se tratando de uma obrigação de meio, na hipótese da superveniência de um resultado adverso, o que será analisado para a verificação da existência ou não de culpa, será a conduta do médico.  A comprovação do dano deverá passar, necessariamente, pela verificação da prudência, da perícia, do comportamento profissional adotado durante todo o procedimento. O que o atual estágio da medicina (e todo o seu aparato tecnológico) não permite mais tolerar, seja por parte do médico, da clínica ou do hospital, é o descuido, o descaso, a negligência, a imperícia e a imprudência. É nossa opinião que, sob nenhum aspecto, a cirurgia plástica pode ou deve ser considerada obrigação de resultado. A simples impossibilidade de pré-determinar o resultado de qualquer procedimento jurídico desautoriza esta distinção, afirma Hildegard Taggesell Giostri1. Muito se fala em impor diferença de tratamento jurídico à chamada cirurgia plástica desprovida de finalidade terapêutica. Ocorre que este termo, por si só, é equivocado. Há relativamente pouco tempo, era generalizado o conceito de que a cirurgia plástica de caráter meramente embelezador, sem finalidades terapêuticas, se constituía em simples capricho do paciente, sendo, portanto, desnecessária. A respeito do tema, Miguel Kfouri Neto em sua obra Culpa Médica e Ônus da Prova2, transcreve trechos do julgamento do Recurso Especial 81.101-PR3, onde se decidiu sobre recurso relativo à responsabilidade civil em cirurgia plástica estética. Ali, destaca trechos extremamente elucidativos do voto proferido pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, aqui emprestados em virtude de sua relevância e clareza elucidativa: "Pela própria natureza do ato cirúrgico, cientificamente igual, pouco importando a subespecialidade, a relação entre o cirurgião e o paciente está subordinada a uma expectativa do melhor resultado possível, tal como em qualquer atuação terapêutica, muito embora haja possibilidade de bons ou não muito bons resultados, mesmo na ausência de imperícia, imprudência ou negligência, dependente de fatores alheios, assim, por exemplo, o próprio comportamento do paciente, a reação metabólica, ainda que cercado o ato cirúrgico de todas as cautelas possíveis, a saúde prévia do paciente, a sua vida pregressa, a sua atitude somatopsíquica em relação ao ato cirúrgico. Toda intervenção cirúrgica, qualquer que ela seja, pode apresentar resultados não esperados, mesmo na ausência de erro médico. E, ainda, há em certas técnicas conseqüências que podem ocorrer, independentemente da qualificação do profissional e da diligência, perícia e prudência com que realize o ato cirúrgico. Anote-se, nesse passo, que a literatura médica, no âmbito da cirurgia plástica, indica, com claridade, que não é possível alcançar 100% de êxito." Nesse sentido, Arnaldo Rizzardo :  "Pode-se incutir a ideia que se encaixa um misto de obrigac¸a~o de resultado e de obrigac¸a~o de meio na cirurgia pla´stica, ou mais precisamente, a responsabilidade em face da contratac¸a~o, com forte carga objetiva. Inquestiona´vel que uma melhora deve haver, com a mudanc¸a do aspecto ou do defeito anterior. No entanto, e´ normal admitir-se uma margem de tolera^ncia, aceitando pequenas diferenc¸as. Bem coloca o assunto Fabri´cio Zamprogna Matielo: ... "Deixar de cumprir a obrigac¸a~o de resultado e´ causar ao paciente um prejui´zo percepti´vel de ordem fi´sica ou mesmo funcional(...)".  Não se pode ignorar que o paciente tem consciência dos riscos envolvidos em qualquer procedimento5. Eximi-lo desta responsabilidade em favor de uma falsa responsabilidade objetiva do médico (não prevista pela legislação, diga-se) é absolutamente contraproducente. O consentimento, a conduta e o comportamento do paciente são - mais que atenuantes, excludentes de responsabilidade. Rosana Jane Magrini6, conclui: "O que se exige do médico, seja qual for sua especialidade, é a prestação de serviços zelosos, atentos, conscienciosos, a utilização de recursos e métodos adequados e de agir conforme as aquisições da ciência. O que não se pode admitir, sempre com a máxima vênia, é uma corrente jurisprudencial em desalinho com a realidade moderna dos avanços da ciência médica e da ciência jurídica." O que se pretende demonstrar é que, sob todos os aspectos, a cirurgia plástica é intervenção cirúrgica equiparável a todos os demais procedimentos cirúrgicos, e que as reações do organismo humano são imprevisíveis e conseqüências indesejadas podem sobrevir, ainda que toda a técnica, recursos disponíveis, prudência e perícia tenham sido empregados ao caso concreto, não se podendo, por sua vez, simplesmente culpar o médico pelo infortúnio, por ele também não desejado. Cada corpo humano, em sua individualidade, pode apresentar somatizações, hipersensibilidades, reações diversas verdadeiramente imprevisíveis. A evolução de quadros clínicos ou patológicos, diante da intervenção médica, não é sempre igual, não obedece sempre a uma fórmula preestabelecida. Em qualquer procedimento cirúrgico, conforme comprovado por incontáveis estudos médicos, o organismo pode reagir de forma inesperada, negativa ou adversa, comprometendo o resultado. Na prática, ainda, é de destacar que o sucesso da cirurgia plástica depende muito dos cuidados pós-operatórios tomados pelo próprio paciente, o que em parte também escapa do controle do médico. O entendimento majoritário da jurisprudência brasileira sobre a obrigação de resultado na cirurgia plástica estética é equivocado e não se alinha com os princípios da medicina e da ética profissional. Reconhecer a obrigação de meio na cirurgia plástica estética é importante para proteger tanto o paciente quanto o médico. O paciente tem a garantia de que o cirurgião empregará a melhor técnica e cuidado, mas sem prometer um resultado que não pode ser garantido. E o médico não é injustamente responsabilizado por um resultado imprevisível e incontrolável.  Sérgio Cavalieri Filho entende e leciona no sentido de que não se deixa de reconhecer, em tais caso, a responsabilidade subjetiva, mas com culpa presumida7: "E como se justifica essa obrigac¸a~o de resultado do me´dico em face da responsabilidade subjetiva estabelecida no Co´digo do Consumidor para os profissionais liberais? A indagac¸a~o so´ cria embarac¸o para aqueles que entendem que a obrigac¸a~o de resultado gera sempre responsabilidade objetiva. Entendo, todavia, que a obrigac¸a~o de resultado em alguns casos apenas inverte o o^nus da prova quanto a` culpa; a responsabilidade continua sendo subjetiva, mas com culpa presumida. O Co´digo do Consumidor na~o criou para os profissionais liberais nenhum regime especial, privilegiado, limitando-se a afirmar que a apurac¸a~o de sua responsabilidade continuaria a ser feita de acordo com o sistema tradicional, baseado na culpa. Logo, continuam a ser-lhes aplica´veis as regras da responsabilidade subjetiva com culpa provada nos casos em que assume obrigac¸a~o de meio; e as regras de responsabilidade subjetiva com culpa presumida nos casos em que assumem obrigac¸a~o de resultado." O Superior Tribunal de Justiça, todavia, tem apresentado entendimento diverso, como se nota do acórdão abaixo transcrito: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INDENIZAC¸A~O POR DANOS MORAIS E ESTE´TICOS. CIRURGIA PLA´STICA. OBRIGAC¸A~O DE RESULTADO. DANO ESTE´TICO COMPROVADO. RECURSO NA~O PROVIDO. 1. A jurisprude^ncia desta Corte entende que "A cirurgia este´tica e´ uma obrigac¸a~o de resultado, pois o contratado se compromete a alcanc¸ar um resultado especi´fico, que constitui o cerne da pro´pria obrigac¸a~o, sem o que havera´ a inexecuc¸a~o desta" (REsp 1.395.254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe de 29/11/2013). (...) 4. Agravo regimental na~o provido.  (AgRg no AREsp 678.485/DF, Rel. Ministro RAUL ARAU´JO, QUARTA TURMA, julgado em 19/11/2015, DJe 11/12/2015) (original sem grifos)  Com a devida vênia, tal entendimento pode ser aplicado a um contrato de transporte de mercadoria, mas não a um procedimento cirúrgico. Não há justificativa alguma para qualificar de maneira diferente um procedimento "estético" de um "reparador". Ou seria o elemento vaidade, um fator a ser considerado, quando comparado com os demais procedimentos médicos? O que diferencia o compromisso de "alcançar um resultado específico" em uma cirurgia plástica estética, programada, de uma outra cirurgia - também programada - desta feita realizada na área de cardiologia, para a troca de uma válvula coronariana? Uma rápida busca na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mostra um impressionante (e preocupante) compilado de decisões8 com o mesmo fundamento, sem qualquer individualização de casos ou condutas, jogando na mesma vala comum todos os casos envolvendo cirurgia plástica estética, utilizando do mesmo conjunto de palavras: "2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que objeto do contrato estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profissional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica na busca pela cura. 3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a alcançar um determinado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o entendimento nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios. 4. No caso das obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu de culpa por parte do médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta que a vítima demonstre, como fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para que a culpa se presuma, havendo, destarte, a inversão do ônus da prova. 5. Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da "vítima" (paciente)." Negar as evidências científicas e os estudos médicos que afirmam a impossibilidade de prever com 100% de certeza o comportamento da fisiologia humana, em nome da imutabilidade de um entendimento equivocadamente sedimentado não faz bem à evolução e adequação do pensamento jurídico, e não orna com a tradição jurídica inovadora e doutrinária daquela Corte de Justiça. A doutrina admite a distinção entre cirurgia estética reparadora de enfermidades congênitas e outra de finalidade puramente estética. Ocorre que a fronteira entre tais casos pode ser extremamente difusa. A correção de um lábio leporino, por exemplo, é considerada reparação de enfermidade congênita. Por que, então, a modificação corretiva de um nariz enorme, ou de orelhas desproporcionalmente grandes não pode assim também ser considerada, se em ambos os casos o que se persegue é um melhoramento estético? Em nosso sentir, o verdadeiro problema nas cirurgias plásticas não é o fato de ela ser reparadora ou não, de possuir finalidade terapêutica ou não. Em qualquer situação, a obrigação continuará a ser de meio, não de resultado, em virtude das várias razões já expostas. O verdadeiro problema, causador de tantas celeumas e pendências jurídicas, é a falta de adequada e prévia informação ao paciente. Por vezes, a oferta do serviço não traz uma apresentação clara dos riscos envolvidos, inclusive os riscos anestésicos do procedimento, sendo sugeridos resultados que não podem ser garantidos. Cabe ao cirurgião plástico prestar ao paciente informação clara, completa, precisa e inteligível, de modo que o mesmo, conhecendo os riscos advindos de suas decisões e do tratamento perseguido, assuma as responsabilidades de seu consentimento informado, e se comprometa em seguir as instruções para o período pós-operatório. Em nome da segurança jurídica, e do respeito à autonomia da vontade que permeia e vincula as relações contratuais entre pessoas adultas e capazes, é necessário rever e modificar o entendimento jurisprudencial majoritário, no sentido de reconhecer a impossibilidade de um planejamento cartesiano para procedimentos cirúrgicos, estéticos ou não, uma vez que existe uma multiplicidade de fatores que podem interferir e interagir, não havendo na medicina a possibilidade de uma "obrigação de resultado". Decisões que simplesmente mencionam "entendimento dos tribunais superiores", como forma de não se debruçar - sequer superficialmente - sobre os elementos concretos dos processos indenizatórios envolvendo responsabilidade civil médica oriunda de procedimentos estéticos se mostram em completo desacordo com a sistemática processual atual, e em desacordo com o atual estágio de conhecimento sobre a fisiologia humana. __________ 1 Erro Médico à luz da jurisprudência comentada. Ed. Juruá, 1ª ed, Curitiba, 2001, p. 122. 2 Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, 1ª ed., p. 252 e ss. 3 DJU 31.05.1999. RSTJ 119/290. 4 In Responsabilidade Civil, 5ª edição revista e atualizada, Gen. Forense, 2011, p. 337. 5 Neste sentido, acórdão publicado na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RJTJESP 109/127), traz orientação bastante significativa: "Obviamente nenhum leigo pode ignorar os riscos decorrentes de qualquer cirurgia". 6 MAGRINI, Rosana Jane. Médico - Cirurgia plástica reparadora e estética: obrigação de meio ou de resultado para o cirurgião. Revista Jurídica Notadez 280/92-1993, fev. 2001. 7 In Programa de Responsabilidade Civil. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 505/507  8 São elas:  PROCESSO REsp 1468756 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 27/03/2015 RECURSO ESPECIAL Nº 1.468.756 - DF (2014/0173852-5) PROCESSO AREsp 334756 RELATOR(A) Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO DATA DA PUBLICAÇÃO 31/03/2015 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL nº 334756 - RJ (2013/0127613-0) PROCESSO AREsp 700208 RELATOR(A) Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI DATA DA PUBLICAÇÃO 19/05/2015 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 700.208 - DF (2015/0073218-1) PROCESSO AREsp 1233572 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 19/04/2018 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.233.572 - PR (2018/0010152-7) PROCESSO AREsp 614977 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 28/11/2014 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 614.977 - SP (2014/0277525-8) PROCESSO Ag 1359322 RELATOR(A) Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA DATA DA PUBLICAÇÃO 20/09/2011 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.359.322 - SP (2010/0180665-5) PROCESSO Ag 1151306 RELATOR(A) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO DATA DA PUBLICAÇÃO 26/10/2010 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.151.306 - RS (2009/0012581-6)  
A sociedade contemporânea perpassou por diversas mudanças no contexto social, econômico, cultural e, sobretudo, tecnológico, as quais ensejaram o surgimento do fenômeno da hiperconexão e do hiperconsumo, que, por conseguinte, permitiram o incremento de um novo paradigma tecnológico digital.1   Com o advento das plataformas digitais - Facebook, Instagram, Youtube e Tik Tok, dentre outras - se alterou profundamente os padrões de comunicações previamente estabelecidos, permitindo-se que as referidas mídias sociais se transformassem em locus, para a implementação de uma comunicação interindividual e transfronteiriça, possibilitando assim a difusão de conteúdo de forma célere e simplificada, e, afetando, intensamente, a vida dos indivíduos em sociedade e o mercado de consumo, que diante dos avanços tecnológicos se transforma em um mercado de consumo digital. Nesse cenário, exsurgem personalidades digitais denominadas de digital influencers ou influenciadores digitais2, os quais passaram a produzir conteúdo temático em diversas áreas (entretenimento, moda, medicina, jurídico, pets, games, lifestyle, finanças, dentre outros) e a realizar atividade publicitária para marcas, produtos ou serviços nas redes sociais. A atuação dos influenciadores digitais, na última década, remodelou os padrões de comunicação, informação, opinião, comportamento e, especificamente, hábitos de consumo de seu público-alvo (seguidores-consumidores) no ambiente digital.  Dentre os diversos nichos de atuação dos influencers, assume especial destaque, o segmento dos influenciadores mirins, o qual atrai significativo contingente do público infantojuvenil, na qualidade de seguidores dessas webcelebridades, no âmbito das plataformas digitais. Com efeito, a fama, prestígio e rentabilidade econômica em se tornar um influenciador digital é um grande atrativo para inúmeras crianças e adolescentes, de modo que "ser um youtuber mirim de sucesso é um negócio bastante promissor, e isso se constata pelo comportamento da família diante da atividade desenvolvida pelos pequenos."3 Logo, não é incomum que os pais invistam na carreira digital de seus filhos, os quais, por vezes, se tornam a principal fonte de renda do núcleo familiar. Os influenciadores mirins se apresentam como crianças e adolescentes, que produzem conteúdo específico para o público infantojuvenil, com o objetivo de se alcançar engajamento e contrapartidas econômicas nas mídias sociais. Muitos destes influenciadores são representados, por seus pais ou responsáveis legais, que administram suas plataformas digitais e incentivam a produção de conteúdo reiterado e em larga escala. O tema em análise revela múltiplas problematizações, especialmente, no tocante à superexposição de crianças e adolescentes na Internet, se desdobrando tanto pelo excesso de compartilhamento - prática conhecida como (over)sharenting - quanto pela hipersexualização infantojuvenil no ambiente digital. Para uma correta compreensão da questão relacionada ao excesso de compartilhamento, se faz necessário proceder a análise da semântica do termo "sharenting", que segundo Fernando Büscher von Teschenhausen Eberlin se qualifica como: A prática consiste no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet. O compartilhamento dessas informações, normalmente, decorre da nova forma de relacionamento via redes sociais e é realizado no âmbito do legítimo interesse dos pais de contar, livremente, as suas próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central. O problema jurídico decorrente do sharenting diz respeito aos dados pessoais das crianças que são inseridos na rede mundial de computadores ao longo dos anos e que permanecem na internet e podem ser acessados muito tempo posteriormente à publicação, tanto pelo titular dos dados (criança à época da divulgação) quanto por terceiros.4 Trata-se, de forma sintética, do ato ou prática dos pais ou responsáveis legais publicarem ou compartilharem, dados, imagens e demais formas de conteúdo relativos aos infantes, que estejam sob sua tutela, no ambiente digital. Destaca-se, por oportuno, que o compartilhamento realizado, nestes termos, não é, em princípio, considerado ilegal ou imoral. O problema, contudo, reside no compartilhamento excessivo, imoderado, desarrazoado, promovido pelos responsáveis legais dos infantes, que caracteriza a prática do (over)sharenting, que se configura como um exercício abusivo (disfuncional) da autoridade parental. Um dos casos de maior notoriedade relativamente à prática do (over)sharenting e do abuso da autoridade parental envolveu o canal do YouTube "Toy Freaks", o qual à época da controvérsia contava com mais de 8 (oito) milhões de seguidores. O referido canal publicou vídeos nos quais as crianças tinham que agir como se bebês fossem, inclusive, vestindo-as com roupas de bebês, forçando-as a mastigar e cuspir alimentos e, até mesmo, urinar nas próprias roupas. Logo, diante de inúmeras denúncias dos usuários da plataforma, o YouTube, em 2017, retirou o canal do ar, por violação às políticas internas de prevenção a abusos infantis.5-6 No Brasil, o canal do YouTube "Bel Para Meninas" (atualmente apenas "Bel"), com mais de 7 (sete) milhões de inscritos7, promovendo brincadeiras em família e relatos do cotidiano da jovem, que dá nome ao canal, gerou grande controvérsia nas redes sociais, em razão da excessiva exposição da criança na Internet, em diversas situações constrangedoras e vexatórias. A rotina da criança era transmitida com alta frequência por meio de vídeos filmados por seus pais. Em 2020, após uma série de vídeos publicados, contando, inclusive, com um episódio no qual a mãe da criança aparecia zombando da filha após esta vomitar diante das câmeras, a hashtag #SalvemBelParaMeninas ganhou evidência, com a finalidade de se questionar o comportamento da mãe em relação à criança.8 Destarte, se constata que a prática do (over)sharenting pode ser vislumbrada nas plataformas digitais de inúmeras crianças e adolescentes no ambiente digital. Entretanto, as que vivenciam o fenômeno em maior intensidade são aquelas que atuam nas mídias sociais como influenciadores mirins. Nesse giro, Renata de Oliveira Tomaz assevera, ainda, que "o processo por meio do qual as crianças vão da invisibilidade do ambiente doméstico para a visibilidade do espaço on-line é bastante complexo"9, ensejando, por conseguinte, inúmeros prejuízos ao desenvolvimento físico, intelectual e psicológico, bem como, a própria formação da personalidade das crianças e adolescentes que atuam como influencers.    Assim, constata-se que os pais ou responsáveis legais do infante podem exercer sua autoridade parental e, até mesmo, realizar o sharenting, mediante o compartilhamento de conteúdo diverso nas redes sociais, como forma de incentivo à carreira de influenciador, o que não configura conduta ilícita ou ilegítima. Não obstante, esse compartilhamento pode se tornar excessivo, imoderado e até abusivo, caracterizando o (over)sharenting, sem que a criança ou adolescente seja capaz de determinar os próprios atos e compreender as implicações dessa exposição desmedida nas mídias sociais. Outrossim, há de se destacar, ainda, que o (over)sharenting pode se consubstanciar ainda que os infantes consintam com a superexposição. Nessa linha de intelecção, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 227,10 estabelece como dever dos pais zelar pela incolumidade psicológica, moral e física dos filhos, em consonância com o melhor interesse dos mesmos, de forma que, devem se abster de veicular postagens que possam, eventualmente, violar a integridade física, moral e psicológica de crianças e adolescentes, resguardando, inclusive, sua imagem, dados e demais conteúdos, com o objetivo de coibir possíveis reflexos danosos ao desenvolvimento de sua personalidade. Nesse mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente11, em seus artigos 15, 17 e 18, destaca como garantia fundamental aos infantes, o respeito e a primazia pela dignidade humana, assegurando-se, assim, um caráter protetivo especial estabelecido pelo referido Estatuto aos hipervulneráveis no ambiente digital.    Ademais, o que se objetiva coibir é o compartilhamento excessivo nas plataformas digitais, prejudicial à formação da própria criança/adolescente, uma vez que essa superexposição pode ensejar situações caracterizadas pelo desconforto, angústia, constrangimento, humilhação ou em alguns casos até mesmo se efetivar mediante a sexualização dos infantes. A erotização de crianças e adolescentes não é fenômeno recente, nem mesmo restrito às plataformas digitais, uma vez que as celebridades mirins, em decorrência da superexposição midiática, se tornaram alvo de uma adultização precoce, por meio da utilização de uma imagem sexualizada das mesmas promovida por terceiros.12 Exemplificativamente, pode-se citar o caso da atriz infantojuvenil Millie Bobby Brown, mundialmente conhecida pelo seu papel na série "Stranger Things", a qual foi listada pela Revista W, como uma das atrizes que "fazem a televisão estar mais sexy do que nunca"13, quando tinha apenas 13 (treze) anos de idade. Em relação aos influenciadores digitais mirins, verifica-se que os próprios influencers ou seus pais/responsáveis legais promovem a referida hipersexualização infantojuvenil. Nesse sentido, 2 (duas) situações se denotam no tocante a problematização em análise, quais sejam: i) os influencers mirins são obrigados pelos pais ou responsáveis legais a postarem conteúdo erotizado; ii) influenciadores mirins, em patente omissão dos deveres relacionados ao exercício da autoridade parental, contam com a anuência dos pais/responsáveis legais na veiculação de publicações erotizadas nas mídias sociais. Outrossim, não é incomum que influenciadores mirins postem vídeos e imagens ao som de músicas, com teor sensual ou explicitamente erótico, com objetivo de alcançar mais seguidores e um maior engajamento nas redes sociais. O caso de maior repercussão relacionado a erotização precoce de influenciadores mirins no Brasil, se refere à cantora Melody, outrora conhecida como MC Melody, nome artístico de Gabriella Abreu Severiano, a qual possui mais de 12 (doze) milhões de seguidores no Instagram.14 A influenciadora mirim, atualmente, com 16 (dezesseis) anos de idade, foi alvo de numerosos debates acerca da hipersexualização infantil, desde os seus 8 (oito) anos de idade, época em que o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar o pai da influencer por suspeita de violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes.15 Nas mídias sociais da influenciadora mirim é possível vislumbrar a utilização de um visual adultizado nas postagens divulgadas pela cantora, bem como fotos com poses e clipes musicais com coreografias, letras e cenas com conteúdo erotizado. Outro caso de destaque em relação à temática, diz respeito à atriz Mel Maia, a qual possui mais de 19 (dezenove) milhões de seguidores no Instagram.16 A influencer, atualmente, com 18 (dezoito) anos de idade, protagonizou numerosas situações de erotização precoce em suas plataformas digitais, durante sua adolescência, ao publicar múltiplas fotos nas redes sociais com teor adultizado, gerando intensas polêmicas relativas à hipersexualização de crianças e adolescentes e o exercício abusivo da autoridade parental. Insta frisar que a atuação erotizada e hipersexualizada de influenciadores mirins contribui para que inúmeros prejuízos sejam causados ao desenvolvimento da personalidade dos mesmos. Ademais, as postagens erotizadas realizadas pelos influenciadores mirins, em função do seu alcance no ambiente digital, influência, credibilidade e engajamento que possuem junto ao seu público infantojuvenil (consumidores), possuem a potencialidade de gerar enormes danos aos seus seguidores, os quais reproduzem os referidos comportamentos, hábitos de consumo e lifestyle dos influencers. As crianças e adolescentes são considerados como hipervulneráveis, demandando, portanto, proteção especial do Estado, o qual restringe determinadas condutas da sociedade, dos pais/responsáveis legais e dos próprios infantes, com o intuito de se permitir o livre desenvolvimento de sua personalidade. No caso da hipersexualização dos filhos pelos próprios pais, nota-se grave disfunção da autoridade parental, pois os pais acabam excedendo a fronteira da proteção e promoção para a exposição. Com o intuito de ganhar seguidores, tornar-se popular, fazer publicidade e eventualmente até ter benefícios financeiros, desvirtua-se o próprio filho, antecipando fases significativas da vida.17 Em síntese, se impõe aos pais/responsáveis legais no exercício da autoridade parental, as plataformas digitais no estabelecimento dos termos de uso/utilização, ao Estado, por meio do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares, e a toda a sociedade, que atuem no sentido de garantir a efetiva tutela dos infantes no ambiente digital, com a finalidade de se coibir situações relacionadas a hipersexualização infanto-juvenil, a erotização precoce e a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais.  Outra relevante questão é apontada por Ana Carolina Brochado Teixeira e Filipe Medon ao explicitarem que "nada obstante sejam inicialmente exibidas por seus pais, não raro a exposição online passa a ser em algum momento a vontade da própria criança/adolescente"18, de forma em que, os influenciadores mirins passam a desejar, autonomia digital de suas plataformas, com a postagem de conteúdo muitas vezes impróprio aos mesmos e aos seus seguidores. O trabalho infantil cibernético, também, pode levar as crianças a estarem sujeitas a transtorno psicológicos e associar-se à "cultura de likes", o vício em ser notado instantaneamente e se definir pelo número de interações dadas a uma publicação em uma rede social. A criança que depende de like é viciada como se fora dependente de qualquer outra droga, objetificando a criança, pois ela não é vista pelo que ela é, mas pelos likes que consegue.19 A cultura dos likes não apenas valoriza, como, também, fomenta a superexposição, dos mais diversos aspectos da vida pública e privada dos influenciadores mirins, sendo que todo conteúdo publicizado no ambiente digital parece se tornar válido para garantir o maior número de likes, de seguidores e de engajamento. Múltiplos são os impactos psicoemocionais advindos dessa exposição desmedida ou erotizada dos infantes, ao longo de sua vida, ensejando um processo de adultização precoce. Nesse giro, as fotos e os vídeos publicizados nas redes sociais, podem ser utilizadas de modo indevido e ilegal, como por exemplo, por pedófilos com a finalidade de satisfazer a lascívia, pelo roubo de identidade, pela criação de memes, dentre outras situações indesejadas. Neste interim, crianças e adolescentes devem ser resguardados de situações que possam implicar em riscos e danos psicoemocionais, bem como que deixem pegadas digitais que impactem o livre desenvolvimento de sua personalidade ao longo da vida. Logo, os pais e responsáveis legais, devem se abster de publicar, ou mesmo consentir que os infantes publiquem, conteúdos que ensejem a hipersexualização, posto que tais condutas configuram o exercício abusivo da autoridade parental. Por fim, salienta-se, ainda, que inexistem regramentos legislativos e jurídicos específicos para o tratamento da controvérsia relacionada à superexposição e a hipersexualização de crianças e adolescentes no Brasil. A despeito disso, as disposições previstas na Constituição da República de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, preconizam a primazia do melhor interesse das crianças e adolescentes, dos seus direitos fundamentais e da sua proteção integral, bem como o respeito a dignidade humana dos infantes, como pilares essenciais a serem observados pelos pais/responsáveis legais, pelas plataformas digitais, pelo Estado e por toda a sociedade, com a finalidade de se garantir a adequada tutela de crianças e adolescentes no ambiente digital. __________ 1 Para maiores informações acerca do novo paradigma tecnológico e do mercado de consumo digital se remete a leitura de: MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e o direito do consumidor. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direito privado e internet. 4. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. 2 Para um estudo aprofundado sobre a temática dos influenciadores digitais, remete-se a leitura de: SILVA, Michael César; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; BARBOSA, Caio César do Nascimento. Digital influencers e social media: repercussões, perspectivas e tendências da atuação dos influenciadores digitais na sociedade do hiperconsumo. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2023. [No prelo]. 3 ALMEIDA, Claudia Pontes. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil: uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor e às leis protetivas da infância. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. VI, n. 23, 2016, p. 176. 4 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017, p. 258. 5 Canal de pai que constrangia e assustava filhas em vídeos é deletado do YouTube. Estadão. 2017. Disponível aqui Acesso em: 13 abr. 2023. 6 Insta frisar que o referido canal foi recriado na plataforma do YouTube, em 04 de março de 2023, e, desde então, está a publicar vídeos nos mesmos moldes anteriores. (YOUTUBE. Toy Freaks. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 21 abr. 2023). 7 YOUTUBE. BEL. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2023. 8 BATISTA JÚNIOR, João. A polêmica do canal 'Bel para meninas': "Exposição vexatória e degradante". VEJA. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 9 TOMAZ, Renata de Oliveira. O que você vai ser antes de crescer:  youtubers, infância e celebridade. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2017, p.199. 10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 11 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 12 Exemplificativamente, tem-se casos notórios de celebridades mirins, que em decorrência de sua excessiva exposição ao longo de seu crescimento sofreram uma série de abalos psicológicos, como nos casos de Lindsay Lohan, Britney Spears, Demi Lovato e Miley Cyrus, dentre outros, que repercutem, ainda hoje. 13 De sexualização precoce a críticas de fãs, elenco de 'Stranger Things' vive pressão da fama. BBC Brasil. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 14 INSTAGRAM. Melodyoficial3. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 15 SENRA, Ricardo. Ministério Público abre inquérito sobre 'sexualização' de MC Melody. BBC Brasil. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 16 INSTAGRAM. Melissamelmaia. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 17 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 18 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 19 LAS CASAS, Fernanda. O incesto financeiro de ativos digitais. Magis - Portal Jurídico. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. (destaques no original)
Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor,justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda. Paulo de Tarso, Bíblia, 2 Timóteo 4:7-8. Os autores da coluna Migalhas de Responsabilidade Civil me concederam a honra de escrever o artigo comemorativo dos três anos da coluna e o desafio de homenagear o meu querido professor, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Com grande pesar lamentamos o falecimento do Ministro Sanseverino, ocorrido no dia 8 de abril de 2023. De uma carreira exemplar no Poder Judiciário brasileiro, Sanseverino foi um destacado magistrado, excelente professor, competente jurista e, mais do que tudo, um grande ser humano. Paulo de Tarso nasceu em 16 de junho de 1959 em Porto Alegre, teve sua formação Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 1983. Tornou-se mestre (2000) e doutor (2007) em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro ano de formado, Sanseverino passou no concurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em 1º lugar e, depois, no concurso para magistratura estadual que lhe proporcionou a atuação como juiz de direito, a partir de 1986 em diversas comarcas gaúchas. Exerceu, ainda, a magistratura como juiz eleitoral entre 1998 e 1999. Em 1999 foi promovido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), atuando como desembargador até 2010, quando foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No STJ foi um exímio magistrado nos colegiados de direito privado, se destacando como uma referência no país para os temas contratuais, de reponsabilidade civil, formação de precedentes, entre outros. Foi relator de inúmeros Leading cases, dos quais se destacam: a) Em 2011, o Ministro Sanseverino já mostra a força de sua atuação no STJ ao relatar e votar pela aplicação do método bifásico da mensuração das indenizações por dano moral (REsp 1.152.541). No caso, o Ministro confirma aplicação de sua tese de doutorado, unindo jurisdição e pesquisa acadêmica, para exarar o voto condutor e determinar a elevação do valor da indenização por dano moral considerando as duas etapas que devem ser percorridas no arbitramento de indenizações por danos morais. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em precedentes para casos similares. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias específicas do caso para definição do valor da indenização com fundamento na determinação de arbitramento equitativo pelo juiz em interpretação analógica do da norma insculpida no art. 953 do Código Civil. b) Em 2012, no Recurso Especial nº 1.192.678-PR, o Ministro Sanseverino lidera o julgado pela aplicação da "teoria dos atos próprios" com base no princípio da boa-fé objetiva e nos institutos do "tu quoque" e "venire contra factum proprium" para reconhecer a validade de assinatura digitalizada aposta pelo próprio emitente em título de crédito. c) Sanseverino relatou o acórdão que julgou sistema credit scoring (Tema 710). Após realizar audiência pública no STJ, o Ministro Sanseverino votou pela validade do sistema desde que as instituições bancárias respeitem os direitos dos consumidores sob pena de responsabilização pelos danos causados. d) O Ministro Sanseverino relatou, em 2015, o acórdão do Tema Repetitivo 898, que julgou a controvérsia sobre a atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT. Após mais uma audiência pública, o Ministro votou e foi seguido, unanimemente, pela atualização monetária da indenização do seguro DPVAT desde a data do evento danoso. e) Relatou o acórdão que definiu a legitimidade da Telebras para responder a processos sobre complementação de ações (Tema 910). f) O Ministro Sanseverino, também, liderou o precedente que definiu o caráter abusivo do ressarcimento, pelo consumidor, da comissão do correspondente bancário (Tema 958). g) Cabe citar, ainda, seu voto na decisão sobre a plena eficácia da sentença arbitral estrangeira no Brasil após a homologação (REsp 1.203.430). h) Outra decisão de grande repercussão foi a da definição da abusividade da negativa de cobertura de despesas com cirurgia de gastroplastia necessária à sobrevivência do paciente nos contratos de planos de saúde (REsp 1.249.701). i) Recentemente, o Ministro Sanseverino relatou e conduziu o julgado pelo reconhecimento de que o "Direito da Concorrência e Direito do Consumidor apresentam relação simbiótica, pois, em termos gerais, quanto maior a concorrência, maior tende a ser o bem-estar do consumidor e que, quanto maior a proteção do consumidor, mais justa e leal tende a ser a concorrência". Contudo, apesar dessa relação essencial entre proteção à livre-concorrência e proteção ao consumidor, não é possível à concorrente exigir a inversão do ônus da prova e impor ao concorrente a comprovação de afirmações publicitárias como "o melhor hamburguer do mundo" sob pena de abuso de direito e violação da própria livre-concorrência (REsp 1.866.232).1 O ministro Sanseverino, além de excelente magistrado, foi um grande professor de Direito na graduação, mestrado e doutorado, exercendo o nobre ofício na PUC-RS, no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) entre outras renomadas instituições de ensino. A atividade como professor foi coroada com uma relevante carreira como escritor e pesquisador jurídico. O jurista Sanseverino escreveu diversas obras que marcaram o direito privado brasileiro, especialmente, sobre o direito da responsabilidade civil e o direito dos contratos. Dentre os principais escritos se destacam: a) "Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil"2: Na obra, fruto de seu doutorado, o doutrinador Sanseverino destaca que o princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que não se revela viável, entretanto, em várias ocasiões. Diante da complexidade dos diversos elementos da responsabilidade civil, Sanseverino buscou defender a aplicação do princípio da reparação integral nos casos de danos extrapatrimoniais de forma mitigada para que se evite distorções como o enriquecimento injustificado. A teoria da diferença (aplicável aos danos patrimoniais) deve ser superada pela teoria do interesse, permitindo a ponderação do interesse jurídico do lesado. O exame deve ser feito em duas fases (método bifásico): primeiro, pela análise dos precedentes jurisprudenciais similares e, posteriormente, num segundo momento, pela valoração das circunstâncias especiais do caso. Como acima referido no julgamento do REsp 1.152.541, o Professor Sanseverino pode liderar a consolidação de sua tese nos tribunais pátrios. b) "Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo)"3: obra na qual Sanseverino comenta os principais dispositivos do Código Civil em relação aos contratos nominados, com especial destaque para o mútuo e as formas de responsabilidade contratual. c) "Responsabilidade civil no Código Do Consumidor e a defesa do fornecedor"4: Sanseverino examina a responsabilidade por acidentes de consumo e os seus pressupostos (defeito, dano, nexo causal e nexo de imputação). Defende a compreensão do defeito com base na teoria do risco criado e a sua compatibilidade com as excludentes de responsabilidade como a culpa concorrente da vítima, o caso fortuito e a força maior. Por tudo referido e muito além, o Ministro Sanseverino foi uma das estrelas da escola gaúcha e brasileira de direito privado, herdeiro e/ou parceiro intelectual de grandes juristas como Clóvis do Couto e Silva, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Judith Martins-Costa, Claudia Lima Marques, citando apenas alguns. Como advogado, tive muitas demandas julgadas pelo magistrado Sanseverino, ganhei e perdi, mas sempre fui tratado de forma justa. Contudo, foi nos bancos universitários que aprendi a admirar ainda mais o professor e acadêmico. Fui aluno do Professor Sanseverino na disciplina de Contratos no ano 1996 na PUC-RS e, pelo seu exemplo, comecei a me interessar pelo direito privado, o direito dos contratos e a responsabilidade civil. Desde então, passei a ter o Professor Sanseverino como referência e lhe segui no mestrado da UFRGS (minha dissertação chega a abordar o mesmo tema da dele). Posteriormente, tive a sorte de ser seu colega como docente na PUC-RS e receber suas turmas de contratos quando da sua nomeação para o STJ e mudança para Brasília. Digo isso, pois tenho certeza que, assim como para mim, o Professor Sanseverino foi para muitos um exemplo do exercício dos diversos ofícios jurídicos na busca do bem e da justiça. Sanseverino foi a prova de que não há grande magistrado, jurista ou professor, sem um grande ser humano. Assim, deixo aqui meu testemunho de que, como seu homônimo citado no início deste breve depoimento, Paulo de Tarso combateu o bom combate, acabou a carreira, guardou a fé e, assim, certamente, a coroa da justiça, que ele tanto defendeu, lhe foi, merecidamente, dada. __________ 1 Informações em parte obtidas no site do STJ, em notícia sobre o falecimento do Ministro Sanseverino intitulada "A despedida prematura de Paulo de Tarso Sanseverino": Acesso aqui. 2 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). Editora Revista dos Tribunais, 2006. 4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. são Paulo: saraiva, 2010.
Um dos mais polêmicos pilares estabelecidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi o da responsabilidade civil dos agentes de tratamento. Ao regular as situações ilícitas, acidentais ou não, as normas dos artigos 42 a 45 da Lei 13.709/1 criaram um inusitado e desconfortável paradoxo: quais elementos levar em consideração para fixar os critérios do regime de responsabilização civil? Não há dúvida de que a reparação de danos decorrente do tratamento ilícito de dados pessoais há de ser examinada com extrema cautela. A ninguém interessa que o futuro se veja aprisionado em formas técnicas pertencentes ao passado e que possam se revelar insuficientes para compreender o significado das inovações que se apresentam atualmente (Rodotà,1997). Mas também é igualmente temerária a proposta alvissareira de revisão da tradição secular que firmou as bases da responsabilidade civil e que pode causar desproporcional insegurança jurídica para as relações civis e descortinar uma nova roupagem às afrontas à dignidade da pessoa humana. Interessa-nos compreender que o artigo 42 da LGPD estabelece que "o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo". Verifica-se a clara alusão aos institutos do ato ilícito e do nexo de causalidade, não se identificando qualquer alteração em relação aos tradicionais elementos ensejadores do dever de indenizar a que aludem os artigos 186 e 927 do Código Civil. Cumpre observar, entretanto, que durante a tramitação do PL que deu origem à LGPD, havia a expressão "independentemente de culpa" que foi retirada do texto do artigo 42 exatamente para que não fosse consagrado o regime da responsabilização objetiva dos agentes de tratamento de dados pessoais. Disso, e ainda de forma superficial, pode-se apontar a primeira incoerência de uma pretensão de se postular a aplicação do regime da responsabilidade objetiva pela simples interpretação literal da norma. Porém, também é importante compreender e com amparo na lição de Anderson Schreiber (2021, p.324) que "[...] a parte final do art. 42 alude ao dano causado em violação à legislação de proteção de dados pessoais, expressão que sugere uma responsabilidade fundada na violação de deveres jurídicos (culpa normativa)". O critério de culpa normativa aqui mencionado por Schreiber diz respeito à conduta do bonus pater familias (ou do reasonable man no common law) e ao critério de culpa in abstracto, levando-se em consideração circunstâncias comuns inerentes ao "tempo, lugar, usos, costumes e hábitos sociais" (BANDEIRA, 2008, p. 231). Dito isso, interessa-nos, por conseguinte, alcançar aquilo que se encontra previsto no artigo 43 da LGPD, em especial pela aproximação de sua redação com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor que traz consigo a fortíssima herança da responsabilização objetiva dos fornecedores de produtos e serviços: Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem: I- que não realizaram o tratamento de dado pessoais que lhes é atribuído; II- que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhe é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou III- que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro. De fato, a redação do indigitado dispositivo é bem próxima ao que dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14 do CDC, o qual consagrou a sistemática da responsabilidade do fornecedor independentemente de culpa na reparação de danos causados aos consumidores. Essa comparação, potencializada pelo fato de que o tratamento de dados pessoais constituirá uma frequente relação consumerista, constitui um fator de razoável insegurança no estudo da matéria diante da constante relação de dialeticidade entre essas normativas. Vale dizer que a objetivação da responsabilidade consumerista não deve ser confundida com a regra geral. No domínio do CDC, que pode ser aplicado diretamente (art. 45, LGPD) em inúmeros casos do tratamento de dados pessoais caso presentes as figuras do consumidor (direto ou por equiparação) e do fornecedor, o artigo 14 da Lei 8.078/90 estabelece que há responsabilidade "independentemente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços". E o parágrafo terceiro deste dispositivo estabelece que o fornecedor somente se isenta da responsabilização quando comprovar a inexistência de vício no serviço prestado ou se o dano tiver sido causado pela culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Na esfera da LGPD, como já se anotou, não foi adotada positiva e expressamente a expressão "independentemente da existência de culpa". No tocante ao mencionado artigo 43 da LGPD, aponta-se a prevalência da responsabilização do controlador, o qual estará isento do ressarcimento quando provar que não realizou o tratamento de dados pessoais (inciso I). Nesta hipótese, não haveria sequer a constituição de um liame a unir juridicamente o controlador ao titular, eis que em um primeiro momento aquele não seria sequer legitimado para responder por atos de terceiro1. É o típico caso da ausência do nexo de causalidade a impedir a responsabilização do controlador em relação ao qual, aliás, não se estabeleceu solidariedade como regra geral.2-3 A segunda hipótese contemplada no dispositivo diz respeito à inexistência de ato ilícito, isto é, embora o controlador tenha realizado efetivamente o tratamento de dados pessoais, e sua prática tenha sido respaldada por um dos fundamentos para o tratamento lícito inseridas no art. 7o da LGPD, ou em outro dispositivo correlato assim considerado pelo diálogo das fontes4. Nesta hipótese, não há ato ilícito e, consequentemente, não prospera o dever de indenizar entre o controlador e a pessoa lesada5-6. Houvesse o art. 43, II, da LGPD predeterminado a responsabilidade objetiva, não haveria motivo para se preocupar com a licitude ou não do ato praticado pelo agente de tratamento, já que bastaria, por si só, a existência de ato ou fato a ele atribuído que, em virtude de uma relação causal, houvesse causado danos à pessoa. A esse respeito, Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021, p.751) destacam que os incisos I e III se referem expressamente à relação de causalidade e que o inciso II remete claramente à ideia de culpa enquanto fundamento primário da responsabilidade. Neste particular, é essencial compreender que o ato que se reputar ilícito será praticado a título de culpa ou dolo. A responsabilidade objetiva, nada obstante, representa uma simplificação dos requisitos do dever de indenizar e do afastamento do elemento subjetivo da culpabilidade, bastando que exista ato praticado, dano e nexo de causalidade. Deste modo, é possível afirmar que o inciso II do art. 43 da LGPD constitui uma clara evidência da adoção do padrão subjetivo da responsabilidade civil pois, a se cogitar sua objetivação, seria irrelevante a comprovação do caráter lícito ou ilícito do ato praticado pelo respectivo agente de tratamento. Não há dúvida de que este dispositivo reclamou o cotejo do elemento culpa. A terceira hipótese estabelece que o controlador não será responsável, quando comprovar que o dano suportado pela pessoa foi causado exclusivamente por ela própria ou por terceiro. Mais uma vez, trata-se do reconhecimento da necessária relação de causalidade entre o ato que se reputa ilícito e o dano originado. Se o ato, ainda que ilícito, foi praticado pela própria pessoa ou por terceiro, há que se reconhecer o afastamento do nexo de causalidade e do dever de indenizar. A compreensão daquilo que está contido nos incisos do art. 43 da LGPD revela que o controlador será sempre responsabilizado, salvo nas hipóteses em que inexistir nexo de causalidade entre o ato por ele praticado e o dano suportado pela pessoa, assim como na ausência de antijuridicidade do ato realizado. Isso significa que o sistema adotado pela LGPD é o da culpa presumida em caráter relativo e não o da responsabilidade objetiva pura. Parte-se do pressuposto, portanto, de que a responsabilidade do agente de tratamento constitui uma regra geral que pode ser afastada mediante a demonstração de que sua conduta não incorreu em quaisquer das modalidades da culpa, o que ocorrerá notadamente através da demonstração da adoção dos deveres de cuidado inerentes ao bonus pater familias estruturalmente definidos pela lei. Acrescentem-se, ainda, os naturais obstáculos à comprovação da existência e da dimensão do dano, os quais podem excepcionalmente impedir o estabelecimento do liame obrigacional de ressarcimento e que historicamente justificaram a criação da teoria objetiva da responsabilidade civil. Taísa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2020), assim como Maria Celina Bodin de Moraes (2019), Laura Mendes e Danilo Doneda (2018) entendem que a objetivação da responsabilidade do controlador decorre da adoção da teoria do risco-proveito. Para tais autores, a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais prevista no art. 43 da LGPD estaria respaldada pelo parágrafo único do art. 927 do CC/02, segundo o qual o dever de reparar o dano não depende de culpa "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Porém, como observa Silvio Venosa (2010) "o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos; a atividade ou conduta do agente que resulta por si só na exposição a um perigo [...]". Em um mundo cada vez mais interconectado e em que o tratamento de dados pessoais se torna a pedra angular de qualquer atividade, não se pode presumir a prática da potencialidade danosa e acabamos por concordar com Leonardo Poli (2019): É lógico que a noção de risco criado deve ser relativizada, ou, caso contrário, a responsabilidade subjetiva não mais seria aplicável, visto que, em última análise, toda conduta humana em sociedade gera risco de dano para terceiros. Assim, tem-se que a teoria do risco criado não se aplica a qualquer atividade humana que gere risco, uma vez poder-se dizer que exista risco em qualquer atividade humana. A teoria se aplica apenas a atividades ditas perigosas, aquelas em que o risco é inerente, seja por sua natureza, seja pelos meios que utiliza. (POLI, 2019, p.575). Além disso, duas outras questões corroboram esse apontamento. A primeira, é que toda a LGPD é estruturada de acordo com uma complexa morfologia de práticas relacionadas ao dever de cuidado, transparência, informação, prevenção, segurança, responsabilização e prestação de contas e cujo cumprimento total ou parcial devem importar à gradação da responsabilidade do agente de tratamento. A simples atribuição da responsabilidade civil, independentemente do elemento subjetivo da culpa, significará que o cumprimento desses deveres estruturais será irrelevante para o agente de tratamento de dados pessoais, já que não resultaria em qualquer possibilidade de afastamento ou mitigação de sua responsabilidade. Dito de outra forma, nem mesmo existiria incentivo para a adoção das melhores práticas de governança de dados pessoais (art. 50, LGPD), da sua manutenção e melhoria contínua ao longo do tempo se, eventualmente, incapazes de evitar o ilícito, não pudessem atenuar total ou parcialmente a dimensão da responsabilidade do agente de tratamento. Se é certo afirmar que o instituto da responsabilidade civil tem passado por um deslocamento de seu eixo gravitacional, o qual se transfere de uma inicial incidência sobre o dano e, agora, tende para a reprovabilidade da conduta do ofensor (LEVY, 2012; ROSENVALD, 2010), seria igualmente apropriado também compreender que esse movimento deve ser levado em consideração, ao se interpretar a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais. A objetivação da responsabilidade civil, nessa esfera, embora possa constituir uma medida de facilitação da preservação dos direitos fundamentais da pessoa, não dispensa, a priori, a sua conjugação com o critério subjetivo. Para compreender a responsabilidade civil na LGPD é preciso ir além. Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021) chegam à mesma conclusão ao compararem a redação do art. 43 da LGPD com o art. 493, item 2, do Código Civil português e com o art. 2.050 do Código Civil italiano que acolheram exatamente a figura da culpa presumida em caráter relativo. No movimento histórico que levou ao desenvolvimento da responsabilidade civil enquanto presunção relativa de culpa e o dever de reparar, mediante presunção absoluta ou da adoção de medidas mitigadoras do dano, consolidara-se no CC/02 diversas disposições neste sentido, como é o caso da responsabilidade de pais, tutores, curadores, empregadores, donos de hotéis e hospedarias, casas ou estabelecimentos onde uma pessoa se abriga, mediante contraprestação pecuniária, em que a culpa por danos causados não é discutida pois dotada de presunção iure et de iure. O mesmo ocorre com a responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços pelos danos causados aos consumidores (art. 14, CDC).  Porém, em tais situações, houve expressa determinação prevista na legislação para a adoção desse tipo de obrigação. No desafio da construção de uma interpretação consentânea com a unidade da ordenação jurídica em um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007), sem descuidar da tendência antropocêntrica orientada pela dignidade da pessoa, de fato, não há sentido em se atribuir à parte lesada o ônus decorrente do tratamento indevido de seus dados pessoais, dificultando-lhe, sobremaneira, o exercício de seu direito de ação e o ressarcimento integral daquilo que suportou. Em inúmeras situações, a pessoa se torna verdadeiramente hipossuficiente em relação a qualquer prova do elemento subjetivo da culpa e da adoção das salvaguardas técnicas, de segurança e administrativas, a cargo do agente de tratamento, e às quais alude o art. 46 da LGPD. Porém, há aqui um problema relativo à prova do ato ilícito e da adoção das medidas de índole procedimental e estrutural previstas na legislação, como os deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização e não, rigorosamente, uma discussão inerente ao regime de culpa. Para tais situações, a legislação processual estabelece a possibilidade de inversão do ônus da prova, seja pela aplicação do art. 6o, do CDC ou do art. 373 do CPC. O sistema da culpa presumida em caráter relativo, destarte, serve como instrumento de inversão da lógica de comprovação da culpa (e da sua gradação), ao atribuir ao agente de tratamento o dever de demonstrar a adoção das obrigações de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, o que parece lógico e compatível com a disposição da LGPD. O mesmo se extrai do art. 44 da LGPD, segundo o qual haverá ilicitude no tratamento de dados pessoais, quando este não oferecer a segurança esperada, a se considerarem os seguintes vetores: o modo de sua realização, o resultado e os riscos razoavelmente esperados, e as técnicas de tratamento disponíveis à época. Aqui novamente se consagra a responsabilização decorrente da falta de demonstração da adoção de medidas de segurança. Presume-se, portanto, a culpa do agente de tratamento, até que haja demonstração da licitude dos atos por ele praticados, da inexistência de nexo causal entre o ato e o dano, assim como da suficiência dos deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, em sintonia com a cláusula geral da boa-fé objetiva. Situações consentâneas com a obrigação do agente de tratamento em demonstrar, ativa e claramente, as cautelas por ele observadas, envolvem a identificação do uso secundário de dados pessoais, o desvio de finalidade pautado em base legal que assim o permita (art. 7o, LGPD) e, neste ângulo, principalmente, a utilização do legítimo interesse do controlador (art. 7o, IX c/c art. 10, LGPD) e da proteção do crédito (art. 7o, X, LGPD). Essa conjuntura, que apresenta um maior grau de opacidade no tratamento de dados pessoais, tende a privilegiar a consecução de atividade meramente econômica e, em maior grau, a atender os interesses do controlador. Trata-se de situações concretas que eventualmente podem externar um verdadeiro risco assumido por este, em virtude de sua própria atividade, hipótese na qual a teoria do risco-proveito poderia se mostrar de adequada aplicação, sempre como regra de exceção. A proposição de que se reconheça a responsabilidade subjetiva com culpa presumida estabelecida pelo art. 43 da LGPD e a incidência da teoria do risco-proveito, apenas circunstancialmente e em decorrência da natureza extraordinária da atividade empreendida pelo controlador, leva em consideração não apenas um regime de incentivos econômicos e comportamentais a induzir um determinado padrão de comportamento responsável e zeloso pela dignidade da pessoa, mas, também, um profundo vetor de coerência da norma. Ao mesmo tempo em que os custos de transação associados ao tratamento de dados pessoais podem ser aumentados através do estabelecimento, por exemplo, da solidariedade entre operador e controlador, também se devem estabelecer verdadeiras salvaguardas, na concepção de um safe harbor, no sentido de se estabelecerem premissas para a ausência de responsabilidade civil, quando ausente o nexo de causalidade ou a própria ilicitude do ato, aspectos estes mencionados tanto pelo art. 42 quanto pelo art. 43, II, da LGPD. Bernardo Grossi é Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Advogado. Professor da Pós-Graduação do IEC PUC Minas. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC), da International Association of Privacy Professionals (IAPP), do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (IDEIA) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG).  Referências CHAMON JÚNIOR. Lúcio Antônio. Teoria geral do Direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: fundamentais da lei geral de proteção de dados. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 4: responsabilidade civil. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012. LIMA, Taísa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Microssistema de proteção de dados pessoais e contrato de trabalho: a reparação de danos decorrentes da violação dos direitos da personalidade do empregado. Revista eletrônica de direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, n. 40, p. 100-116. jan./abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em abr. 2023. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação, 2a ed. 3a reimp. São Paulo: Saraiva, 2019. MENDES, Laura Schertel Ferreira; DONEDA, Danilo. Comentário à nova Lei de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), o novo paradigma da proteção de dados no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, Brasília, v. 120, ano 27, p. 555-587, nov./dez. 2018. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2023. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. MORAES, Maria Celina Bodin de. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo. Civilistica.com., Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 1-6. 15 dez. 2019. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2023. MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Responsabilidade civil por danos causados pela violação de dados sensíveis e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018). [Rio de Janeiro]: PUC-Rio, 2021.Disponível aqui. Acesso em: abr. 2023. POLI, Leonardo Macedo. Ato ilícito. In: FIUZA, César (org.). Curso avançado de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 569-586. RODOTÀ, Stefano.Tecnopolitica: la democrazia e le nuove tecnologie della comunicazione. Roma: Sagittari Laterza,1997. ROSENVALD, Nelson. A refundação das penas privadas. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (coord.). Direito civil: atualidades IV: teoria e prática no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 625-648. ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas. [S. l.: s. n.], 06 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2023. SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRA, São Paulo, v. 3. n. 79, p.71-94, nov. 2007. Disponível aqui. Acesso em: abr. 2023. SCHREIBER, Anderson. Responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais. In: MENDES, Laura Schertel et al (coord.). Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 319-338. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: volume 4: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Responsabilidade civil dos agentes de tratamento.  In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p.741-770. __________ 1 Conquanto não se tenha estabelecido a solidariedade como regra geral. 2 A exemplo do que se estabeleceu, por exemplo, no art. 18 do CDC e cujo teor é o seguinte: Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. 3 Ad cautelam, é importante relembrar que o nexo de causalidade rompe com o dever de indenizar mesmo nas situações de objetivação da responsabilidade civil, eis que esta diz respeito à presunção relativa ou absoluta da culpa de uma das partes, enquanto não se dispensa o dano e a respectiva relação de causalidade direta. 4 Como, por exemplo, o autêntico exercício regular de direito previsto no art. 188, I, do CC/02. 5 Salvo na hipótese do abuso de direito que, por si só, será considerado como uma espécie de ato ilícito na forma do art. 186 do CC/02. 6 Ainda que a responsabilidade objetiva trate do dever de indenizar sem culpa, ainda nela há ato ou fato atribuído ou inerente àquele que foi definido como responsável pelo ressarcimento.
No livro recém-lançado pela Editora Foco e intitulado "Governança nos Grupos Societários: Inovações", o problema dos grupos de sociedades é tratado sob a perspectiva de uma específica estratégia regulatória: a que distingue os grupos segundo dois tipos, os grupos de direito e os grupos de fato. Embora outras estratégias da regulação sobre os grupos de sociedades sejam abordadas e problematizadas no curso da obra.  Como o leitor perceberá, não se parte da defesa da subjetivação ou da personificação dos grupos de sociedades, mas da sua compreensão por intermédio de um referencial teórico que possibilita, em um primeiro estágio, a identificação da empresa do grupo (a empresa grupal) e, em um segundo estágio, a elaboração de análises, de críticas e de propostas para os problemas apresentados na regulação dos grupos de sociedades.  A forma de compreensão dos grupos de sociedades encontra, numa primeira fase do desenvolvimento da pesquisa, suporte teórico nos modos de governança (empresa, mercado e híbrido) e à sua aplicação à organização grupal. Aqui, o conceito de hierarquia é trabalhado para a identificação da empresa que possui as suas fronteiras para além dos contornos da sociedade (a empresa grupal ou a empresa plurissocietária). Na regulação dos grupos de fato - mais presentes na realidade brasileira -, a estrutura orgânica da sociedade controladora, na visão dos autores, serve de estrutura ad hoc para a empresa grupal. Há uma marca coaseneana nessa abordagem.     Essa abordagem, mais identificada com a chamada Teoria dos Custos de Transação, é sucedida por uma análise dos conflitos de interesses presentes na sociedade isolada e naquelas grupadas. O potencial das teorias agencialistas (especializadas nos conflitos de interesses) é explorado. Gêneros de conflitos de agência são apresentados. É feito estudo acerca dos desenvolvimentos do agencialismo (com suporte em Jensen e Meckling) e, ao mesmo tempo, uma crítica da sua aplicação no plano normativo.  Identificados o potencial gerador de conflitos de interesses na estrutura societária e nas relações grupais, os autores avançam sobre a teoria do direito fiduciário. Se nos dois primeiros estágios, há forte influência de teorias econômicas, nessa terceira fase, busca-se por uma teoria jurídica. Avanços são propostos. Esse capítulo inicia-se com uma provocação sintetizada em duas perguntas: E quando os mecanismos de governança ex ante falham? E quando os interesses presentes no conjunto de contratos (nexus contratual) não são suficientes para resolver os conflitos de agência?  Ao fim e ao cabo do capítulo, o que se apresenta é o esforço, nos dias de hoje já ancorado em decisões judiciais estrangeiras, de compreender que a controladora possui deveres fiduciários para com os stakes das controladas. Jennifer Arlen, ao analisar três decisões recentes do Tribunal de Delaware, nos EUA, (Marchand v Barnhill; Teamsters Local 443 v Chou; e In re Boeing Company Derivative Litigation), propõe que:  Unlike other fiduciary duties, which are imposed to benefit the firm and its shareholders, directors should have duties to detect and terminate misconduct even when the firm profits from it. Thus, these duties should be used to create-rather than eliminate-an agency cost, by giving directors a personal incentive to implement measures likely to deter misconduct even when likely to reduce corporate profits.1  Depois de aplicada as três fases na análise da governança dos grupos societários - o método trifásico estruturado em outro texto, Governança Corporativa: a crise financeira e os seus efeitos (equívocos e possibilidades), publicado pela Editora Processo -, uma disfunção é especificamente estudada: é o que a literatura mais especializada denomina de "grupo de fato qualificado". O leitor, então, é apresentado à Teoria do Ilícito. Nos grupos de fato qualificados será necessário identificar tutelas adequadas que resguardem os direitos dos minoritários, pois o fato jurídico da tomada do controle se caracteriza por uma submissão econômica de uma sociedade, imposta à margem do direito. Uma alternativa viável é a de se estender ao minoritário a potestade de se retirar da sociedade mediante o pagamento de suas ações ou cotas, tal como se dá diante da formação de um grupo de direito.  Todavia, caso o minoritário decida prosseguir na sociedade, a tutela inibitória do ilícito pode conferir a ele ferramentas de contenção da atividade antijurídica, pela via de meios de coerção direta capazes de efetivamente proteger o seu direito à preservação substancial do direcionamento empresarial autônomo. Há coerção direta quando o direito é efetivamente tutelado independentemente da vontade do demandado, ou seja, quando puder ser dispensada a sua vontade. O direito será realizado em virtude da atuação de um auxiliar do juiz ou de um terceiro. Aqui cogitamos de uma intervenção judicial para o cumprimento de uma tutela específica. O magistrado nomeará administrador provisório para atuar no seio da sociedade controlada, à semelhança do que ocorre no Direito anglo-americano quando se pensa nas figuras do master ou administrator ou ainda do receiver.  Todo o conteúdo é elaborado em duas partes (contendo os capítulos respectivos) que tratam o problema sob duas perspectivas: a primeira é estrutural e procedimental e analisa a forma como o comando hierárquico, típico do modo de governança da empresa, se manifesta no interno dos grupos. A hipótese de que é necessária a internalização dos interesses das sociedades controladas pela forma e pelo conteúdo da sociedade controladora é construída ao longo do texto, sendo justificada nos vários conteúdos tratados, desde os fundamentos do modelo contratualista que defendemos até a análise do conteúdo da dogmática jurídica. Nessa primeira parte, é proposta como solução a abertura da estrutura orgânica da controladora para acomodar interesses dos minoritários das controladas.  Esse esquema metódico gravita em torno da nossa proposta sobre a relação entre empresa, sociedade e governança. O conteúdo da empresa é a hierarquia, a sua forma é o nexus (ou conjunto) de contratos. A sociedade, por sua vez, é um sistema de governança dos variados interesses presentes na empresa. Esses interesses serão internalizados pela forma jurídica com maior ou menor intensidade, a depender da abordagem escolhida (shareholder versus stakeholder). A sua forma, por outro lado, é a de um conjunto de contratos (em sentido econômico, compreendendo também os atos unilaterais de vontade).  A segunda parte é profilática porque identifica o problema, o grupo de fato qualificado, categoriza-o como ilícito e elabora soluções para serem mobilizadas antes mesmo da ocorrência de um eventual dano. Nessa parte, há um aprofundamento dos estudos sobre as possíveis estratégias regulatórias dos grupos de sociedades, é feita uma verticalização nos estudos da que é adotada pelo Brasil, o que nos possibilita entender mais claramente o problema que se manifesta nos chamados grupos de fato qualificados.  Esse percurso conduz à teoria do ilícito e a modulação de propostas para tratar a ilicitude dos grupos de fato qualificados. É o momento da utilização da tutela inibitória no contexto dos grupos societários. Essa hipótese também é construída e justificada ao longo do texto, desde os espaços dedicados aos fundamentos teóricos até aqueles outros destinados à aferição de sua viabilidade diante da dogmática jurídica.  A maneira como o tema é trabalhado, as influências teóricas utilizadas, os problemas formulados, assim como as soluções encontradas justificam o título do livro "Governança dos Grupos Societários: Inovações".    __________ 1 ARLEN, Jennifer. How Directors' Oversight Duties and Liability under Caremark Are Evolving. Disponível aqui. Acesso em: 04.03.2023.
Introdução  Anthony Giddens (2000), ao desenvolver uma teoria do risco, afirmou que este é intrínseco à sociedade de risco, utilizando o exemplo das mudanças climáticas para corroborar a sua afirmação. A comunidade internacional ainda vive a realidade da sociedade de risco, intensificada pela complexidade da era da modernidade, que preconiza a divisão do mundo entre países centrais e periféricos, ricos e pobres, sendo que os primeiros tomam as decisões que impactam no mundo todo e ficam com os lucros e, os últimos, suportam os prejuízos de referidas decisões, sem ter o direito de participar do debate. As mudanças climáticas e a degradação ao meio ambiente corroboram a tese da sociedade de risco, arraigada no contexto da globalização, uma vez que os efeitos dos danos ao meio ambiente estão sendo suportados de maneira exacerbada pelos países do Sul Global, bem como pelos países que pouco agridem o meio ambiente, a exemplo do Kiribati, que se vê diante da degradação de suas estruturas sociais, econômicas e culturais devido às consequências causadas pelo aumento do nível do mar, com a falta de empregos, a falta de estabilidade financeira, escassez de alimentos, de água potável, o que vem dando ensejo ao deslocamento forçado de seus cidadãos. Desde o Protocolo de Kyoto, de 1997, a comunidade internacional discute a participação e a responsabilização mais eficaz dos países que mais degradam o meio ambiente para a adoção de medidas de reabilitação, recuperação e restauração, sem muito êxito, uma vez que o próprio documento fora desqualificado pelos países centrais. Isso faz com que a comunidade internacional seja provocada a discutir com mais empenho a questão da responsabilização por danos ao meio ambiente, tanto no âmbito internacional, como no nacional, bem como para as atuais e para as futuras gerações. Nesse contexto, questiona-se por qual razão não se tem, ainda, um Pacto Global para o Meio Ambiente, de natureza hard law, obrigatório para todos os Estados, principalmente pelo fato de se conceber a proteção ao meio ambiente como interesse da humanidade. Talvez por isso as organizações internacionais estejam sendo provocadas a se manifestarem sobre a temática das mudanças climáticas registrando-se o pedido de duas solicitações de Opinião Consultiva a respeito deste tema, uma perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a outra, perante a Corte Internacional de Justiça as quais, em síntese, discutem as obrigações dos Estados em relação à proteção ao meio ambiente, tanto no âmbito do sistema regional, como no âmbito do sistema global de proteção aos direitos humanos. Não se pode deixar de consignar que, recentemente, no âmbito global, a Organização das Nações Unidas, pelo Conselho de Direitos Humanos, em 8 de outubro de 2021, adotou a Resolução A/HRC/48/13 (ONU, 2021) reconhecendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano e o dever de devida diligência dos Estados de adotarem as medidas necessárias à proteção do meio ambiente. Um dos aspectos mais relevantes da Resolução em apreço é a possibilidade de proteção autônoma do direito ao meio ambiente, o que pode reforçar a litigância deste direito no âmbito nacional e internacional. Por sua vez, em 28 de julho de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas emitiu a Resolução A/RES/76/300 (ONU, 2022), também sobre o direito humano ao meio ambiente limpo, sadio e sustentável, no mesmo sentido da mencionada Resolução do Conselho de Direitos Humanos. Apesar de não serem vinculantes, as Resoluções desencadeiam um movimento para que os Estados reconheçam o direito ao meio ambiente como direito humano em suas Constituições nacionais e para que as Organizações Internacionais também o façam em tratados internacionais globais e regionais. O reconhecimento do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é consequência dos diversos movimentos sociais desencadeados na comunidade internacional para a proteção ao meio ambiente e vem num momento crucial para a proteção ao meio ambiente de perda considerável da biodiversidade do Planeta Terra, bem como após a COP 26, Conferência que ressaltou a necessidade de ações imediatas no sentido de conter o aquecimento global. Diante desse cenário, essa intervenção tem o objetivo de refletir a respeito da relação jurídica de direito ambiental constituída a partir da prática do ato ilícito de degradação ao meio ambiente, a fim de que se possa estabelecer os parâmetros para a responsabilização civil ambiental intergeracional. Nota-se que o foco dessa discussão reside nos elementos constitutivos de referida relação jurídica, em especial, na consideração da humanidade como sujeito de direito, compreendendo as atuais e as futuras gerações. A grande provocação desta análise concentra-se, portanto, em propor uma reflexão a respeito do conceito de gerações futuras e em apontar caminhos para a responsabilização. Clique aqui para conferir a coluna na íntegra.
A peculiaridade da IA na sua autoaprendizagem, com a necessidade conectada do algoritmo de autoaprendizagem de incorporar um código de máquina para "moralizá-los", traz à tona o que parece ser o maior problema em traduzir as necessidades tecnoéticas do setor em tecno direito correspondente. No plano ético, de fato, uma ênfase cada vez maior é colocada nas responsabilidades do "programador", ao lado - e equacionando - aos do produtor e do formador. Trata-se de uma antinomia solucionável, pois é possível configurar, mesmo de forma puramente interpretativa, uma "responsabilidade algorítmica", a partir de uma dupla consideração. Uma está relacionada ao salto qualitativo fundamental da IA e, portanto, à singularidade específica do algoritmo que atribui sua capacidade de aprendizado: a de determinar não apenas seu ser, mas também seu dever, tornando-o mutante capaz de auto-substituir e auto-refinar. O segundo está ligado à natureza do algoritmo, criação intelectual e ativo intangível que consiste na mera descrição de um procedimento, ou numa simples fórmula matemática, tão etérea que parece quase uma ideia abstrata. O algoritmo, no entanto, dá alma à IA, afetando decisivamente suas características e funcionamento, também pelas habilidades autocorretivas e evolutivas que gera. Assim entendido, o algoritmo, pelo menos o da aprendizagem - deve, portanto, poder ser considerado como uma componente distinta e autónoma da criação intelectual global a que acede (por exemplo, um software) e, como tal, autonomamente censurável. O que se diz reflete nas responsabilidades também do autor-criador do algoritmo, que pode ser (e muitas vezes é) diferente do produtor da IA ou, em todo caso, do dispositivo que a incorpora; e que deve, portanto, responder não apenas perante seu cliente, por via negocial, mas também por responsabilidade perante terceiros prejudicados pela IA self-learning. Na verdade, o algoritmo deu-lhe a aptidão para aprender e modificar o próprio comportamento; potencialmente, produzir resultados ou invadir malware como efeito do treinamento recebido, ou em qualquer caso, das experiências experimentadas após sua implementação. Caso contrário, o autor do algoritmo (que pode não coincidir com o do software, incorporado ao produto como seu componente) apareceria como um mero fornecedor de uma fórmula, projeto ou ideia, que não constitui um componente do produto para fins de regulação da responsabilidade do produto: e do fornecimento do qual, portanto, não derivaria nenhuma responsabilidade direta pela responsabilidade do produto. Assim, permaneceria a responsabilidade do fabricante do produto final, ou de seus componentes, perante terceiros danificados, mas ficaria excluída a do criador do algoritmo. A situação pode parecer semelhante à do fabricante de um bem de consumo cujo design foi concebido e fornecido por um designer terceirizado. O design diz respeito apenas à concepção abstrata do produto e não constitui um componente do mesmo. É o fabricante que dá substância a essa idéia abstrata e ele é o único responsável pelo produto assim concretizado, e apenas pensado pelo designer. Este, então, costuma responder apenas negocialmente ao comissário em caso de defeito do projeto, e não na via aquiliana ao terceiro lesado pelo produto consequentemente defeituoso. Mas o cenário é diferente quando o que é fornecido é uma criação intelectual constituída por um algoritmo, que, ao atribuir ao produto que incorpora a capacidade de se auto-modificar, condiciona profundamente tornando-se, a ponto de constituir sua alma. Seria, portanto, um prejuízo não técnico acreditar que o caráter puramente imaterial do algoritmo coincidiria com a incapacidade de afetar o mundo externo e, portanto, também de se elevar a uma causa mais ou menos autônoma de eventos danosos. De fato, uma IA maligna capaz de autopercepção (e evoluindo - com infinitas passagens - para entidades cada vez mais inteligentes, ou mesmo, em teoria, para superinteligência) seria suficiente para ter mero acesso à rede para poder controlar outras entidades robóticas e também humanas, à sua vontade, gerando até efeitos catastróficos. O algoritmo, portanto, molda, não apenas estática, mas também dinâmicamente, a configuração do produto final, dando-lhe um sopro de vida pulsante e forjando sua comunidade, assumindo assim um papel (con)causal em relação aos seus comportamentos futuro. Portanto, surgem sérias questões quanto à extensão do campo de ação da responsabilidade do produto, especialmente no que diz respeito a danos pessoais. Com efeito, por um lado surge a possibilidade de considerar como produtor de um componente do produto inteligente não só o produtor do software global que o incorpora, mas também - se não coincidente - o criador-autor da programação, do algoritmo de autoaprendizagem ou outras contribuições adequadas para influenciar o comportamento do produto. É importante refletirmos sobre o fato de que a falta de introdução, no componente algoritmo de autoaprendizagem, de blocos adequados para inibir futuros desvios da IA, pode constituir um defeito do próprio componente, bem como do produto geral . E acrescente a necessidade de se fazer também um censo do fenômeno das invenções e ideias da IA geradas especialmente para garantir os justos direitos, tanto no campo das patentes quanto dos direitos autorais, para este novo tipo de bens intangíveis, mas também para gerenciar as responsabilidades relacionadas desde o produto ou na produção. A adaptação à ocorrência de novos cenários foi, nos últimos dois séculos, quase sempre interpretativa, e não normativa. Para uma reflexão sobre as responsabilidades da IA como racionalizáveis em grande parte por via interpretativa, poder-se-ia, portanto, partir da proposta que responsabiliza o ser humano por causar danos a capacidade particular de ação das coisas, em relação à atividade que as emprega. Então, à luz do panorama delineado acima, devemos nos perguntar se, diante da perspectiva de que agora (não apenas animais e humanos, mas) também as "coisas" podem ter "inteligência" e autoaprendizagem; será assim suficiente para regular as novas responsabilidades das coisas equipadas com inteligência artificial? Os resultados podem ser satisfatórios e altamente inovadores, uma vez que o uso de ferramentas interpretativas em relação às regulamentações existentes aparece pelo menos em grande medida capaz de revolucionar e racionalizar as estruturas de risco e os custos corporativos da responsabilidade, bem como os níveis de proteção dos sujeitos expostos aos perigos do dano, de fato, uma vez despojados do tabu da primazia da culpa, que havia dominado no setor de responsabilidade civil até a primeira metade do século passado, a neutralidade das previsões ou interpretações das regulamentações como fontes de responsabilidade objetiva tornaria ótima a alocação do risco. A necessidade de quaisquer novas regras gerais poderia, então, dizer respeito apenas à revisitação (ainda que apenas em processo de interpretação evolutiva) da disciplina de danos ao produto e das proteções conexas, cumulativas (no caso de infração pluriofensiva).
Diante de notícia recentemente veiculada na imprensa no sentido de que o Poder Judiciário teria emitido uma ordem de bloqueio de bens de ex-administradores e conselheiros fiscais de uma grande varejista, em ação judicial proposta por um banco credor1, o tema da responsabilidade dos administradores e de conselheiros fiscais volta à tona. Toda empresa, para a sua adequada manutenção e operacionalização, depende de uma estrutura minimamente organizada. Conquanto a definição jurídica de "empresa" seja polissêmica e nem mesmo a doutrina seja uníssona a respeito, inegavelmente trata-se de uma locução que expressa um "fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram"2. Como fenômeno econômico com veste jurídica, exerce uma função, de atuação encadeada que impulsiona e fomenta a atividade em todas as suas nuances (inclusive do trabalho e do capital empregado na operação tanto fática quanto jurídica), com finalidade econômica, caráter profissional e feição continuada. Todas as estruturas internas da empresa devem operar para atingir essa função. Nas empresas mais complexas, a estrutura empresarial pode ser formada internamente por diferentes classes profissionais - cada uma com a sua expertise -, que se encadeia e complementa com outras, com o objetivo de que a empresa obre eficientemente. Assim, não basta que a empresa seja notável no seu ramo especializado de atuação. Ela deve contar com uma estrutura administrativa, contábil e financeira eficaz. Essa estrutura deve estar apta a responder se a empresa está equilibrada, regular e saudável financeiramente, bem como se as operações efetivadas na sua marcha são transparentes e financeiramente sustentáveis, permitindo um adequado gerenciamento dos negócios empreendidos e das riquezas produzidas. Nesse contexto, registros e controles são essenciais, os quais somente atingem o seu objetivo se forem acessíveis, corretos, completos, dispostos de modo inteligente e transparentes, a permitir um exame adequado por aqueles que os acessam. Portanto, a transparência não beneficia apenas a empresa, seus acionistas, sócios ou empregados, mas sim todo o sistema econômico, cuja credibilidade é essencial para que, em última análise, a economia de um país funcione adequadamente3. Nas estruturas empresariais mais complexas e com sistema de governança corporativa implementado, permite-se a criação de um órgão específico chamado Conselho Fiscal, que é um órgão colegiado técnico permanente de supervisão, de funcionamento facultativo, composto de ao menos três membros (com suplentes)4, cuja finalidade precípua é a de fiscalizar os atos de gestão e de contabilidade da empresa, incluindo os "atos praticados por gerentes, supervisores e outros funcionários subordinados aos diretores"5, além da "legalidade e legitimidade das contas e a gestão financeira dos administradores"6. No âmbito de incidência do Código Civil (CC), estão incluídas as providências dispostas no art. 1.069 (inc. I), que dispõe sobre a obrigação do Conselho Fiscal de examinar ao menos trimestralmente "os livros e papéis da sociedade e o estado da caixa e da carteira". O resultado do trabalho executado pelo Conselho Fiscal deve ser registrado sob a forma de ata com respectivos pareceres, no livro próprio. Além disso, o órgão deve ter representação nas assembleias anuais para prestar esclarecimentos a respeito dos "negócios e as operações sociais do exercício em que servirem", a contemplar os trabalhos executados e resultados obtidos (art. 1.069, III, do CC). Sem prejuízo de outras atribuições que sejam estabelecidas no estatuto social da empresa ou que decorram da própria natureza da função, cabe ao Conselho Fiscal "denunciar os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, sugerindo providências úteis à sociedade" (inc. IV do art. 1.069 do CC). No âmbito da Lei das Sociedades por ações (LSA), a competência do Conselho Fiscal está prevista no art. 163, o qual estabelece, dentre outras, as atribuições de "fiscalizar os atos dos administradores e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários"; "opinar sobre o relatório anual da administração, fazendo constar do seu parecer as informações complementares que julgar necessárias ou úteis à deliberação da assembleia-geral"; "opinar sobre as propostas dos órgãos da administração, a serem submetidas à assembleia-geral, relativas a modificação do capital social, emissão de debêntures ou bônus de subscrição, planos de investimento ou orçamentos de capital, distribuição de dividendos, transformação, incorporação, fusão ou cisão"; "denunciar aos órgãos de administração e, se estes não tomarem as providências necessárias para a proteção dos interesses da companhia, à assembleia-geral, os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, e sugerir providências úteis à companhia"; "analisar, ao menos trimestralmente, o balancete e demais demonstrações financeiras elaboradas periodicamente pela companhia" e "examinar as demonstrações financeiras do exercício social e sobre elas opinar". O Conselho Fiscal foi criado para ser um órgão autônomo e técnico, porquanto deva agir na fiscalização sem atender a interesses alheios aos legítimos propósitos da empresa como uma organização independente. Tanto assim é que a sua instalação se consolida como uma ferramenta à disposição de sócios ou acionistas minoritários representativos de ao menos um quinto do capital social (que podem eleger um dos membros do conselho), na defesa dos seus justos interesses e para evitar que a empresa seja utilizada para propósitos indevidos. Desse modo, o Conselho Fiscal atua no sentido de verificar a correção de condutas; de evitar erros e danos; de orientar para que condutas lesivas sejam sustadas e para denunciar práticas ilícitas (aqui abrangidas as abusivas e fraudulentas). Constata-se que a ideia de prevenção de danos ou de mitigação de danos está presente na atuação desse órgão. Não se pode tratar o Conselho Fiscal como um 'órgão inútil', pois é inegável a importância do seu trabalho, para obstar prejuízos evitáveis, denunciar prejuízos evitáveis, sustar prejuízos ou condutas danosas e  denunciar falhas para que possam ser corrigidas. Ao Conselho Fiscal compete fiscalizar a legalidade, a legitimidade e a gestão8. Para além da aferição contábil, incumbe-lhe a verificação financeira e econômica da companhia. No entanto, não lhe cabe orientar ou assessorar decisões da administração, tampouco julgar se uma decisão estratégica está certa ou errada9, ainda que posteriormente venha a acarretar resultado financeiro prejudicial, pois os seus exames não tratam das decisões de gestão do negócio, e sim das verificações de regularidade cabíveis. Destarte, as análises do referido órgão ocorrem na maioria das vezes a posteriori, no sentido de investigar se os deveres normativos, estatutários e regimentais dos administradores (conselheiros de administração e diretoria) foram satisfeitos. Conquanto o Conselho Fiscal seja um colegiado, pode operar "mediante atos singulares de seus membros"10, pois o órgão "atua em determinadas matérias por intermédio de seu presidente, de um ou mais membros especialmente designados ou por qualquer de seus membros."11 E, embora em geral opere e delibere como colegiado, é possível que, diante de dissidências entre os seus membros, qualquer conselheiro individualmente considerado possa denunciar as irregularidades que vier a constatar. Esse aspecto interfere na imputação na responsabilidade civil, pois a responsabilidade incidirá sobre um ou mais de seus membros, e não sobre o órgão. E a responsabilidade poderá ser solidária ou individual, a apurar conforme as circunstâncias de atuação de cada conselheiro.  Nesse sentido, os §§ 2o e 3º, do art. 165 da LSA confirmam que a responsabilidade dos conselheiros fiscais é solidária como regra, mas o conselheiro fiscal não é responsável pelos atos ilícitos de outros membros, salvo se com eles foi conivente, ou se concorrer para a prática do ato, o que ressalta a importância de registrar as suas divergências ainda que individualmente em voto apartado, em parecer ou mesmo de denunciar o que entender que esteja errado. Assim, poderá o conselheiro fiscal, isolada ou conjuntamente (conforme a sua atuação tenha sido individual ou conjunta com os demais conselheiros), ser responsabilizado pelos danos decorrentes da falha ou da falta de verificação da adequação das contas da empresa e seu controle12. Para alguns casos, a denúncia efetivada apenas por um dos conselheiros às autoridades ou aos destinatários cabíveis "aproveita" aos demais no âmbito da responsabilidade civil, porque o propósito da fiscalização e da denúncia foi cumprido pela conduta diligente de ao menos um dos componentes do órgão (embora nem sempre esse raciocínio possa ser aplicado no âmbito da responsabilidade administrativa, como no caso da CVM). Entender em sentido distinto equivaleria a punir civilmente o conselheiro omisso, que não parece ser o propósito da responsabilidade civil, ao menos para esses casos. Os membros do conselho devem ser responsabilizados caso ocorra algum dano decorrente de fato que deveria ter sido apurado no exercício das suas atividades de competência. A responsabilidade civil do conselheiro fiscal no âmbito da LSA está prevista no art. 165, o qual dispõe que ele responde "pelos danos resultantes de omissão no cumprimento de seus deveres e de atos praticados com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto". A vinculação aos deveres dos administradores prevista nos arts. 153 a 156 da LSA traz, por exemplo, o dever dos conselheiros fiscais de agirem com cuidado, diligência e lealdade, atendendo aos fins e interesses da companhia, de modo que não podem praticar ato de liberalidade em prejuízo desta ou receberem vantagem pessoal direta ou indireta em razão da sua função; não podem fazer mal uso de informações privilegiadas ou de oportunidades de negócios que tenham conhecimento em face do cargo exercido ou agirem em conflito de interesses. Como exemplo de possíveis condutas ensejadoras de responsabilidade, o conselheiro poderá ser responsabilizado ao deixar de fiscalizar ou se fiscalizar de modo incorreto a conformidade normativa dos atos da diretoria ou a adequação (legal e estatutária) das decisões do conselho de administração; se deixar de verificar ou se averiguar inadequadamente a compatibilidade entre o "mérito" dos negócios financeiros da companhia e o objeto e objetivos sociais; a conformidade das contas apresentadas em relação a aspectos técnicos de contabilidade, para que as demonstrações espelhem a saúde econômica e financeira da companhia, incluindo a exatidão numérica e adequação à lei, aos estatutos, às deliberações sociais e ao objetivo social13. Em síntese, os membros do conselho devem ser responsabilizados caso ocorra algum dano decorrente conduta que lhe seja atribuível por sua competência funcional e que não tenha sido executada, ou se, na sua execução, tenha ocorrido alguma falha, desde que estejam presentes os pressupostos da responsabilidade civil, que neste caso é subjetiva. Não poderá o conselheiro, para se eximir da responsabilidade, alegar que não teve acesso a documentos, pois cabe a ele solicitá-los. Isso vale para documentos ou providências  ordinárias e que costumeiramente são requisitadas. Para as incomuns, isso dependerá da maior ou menor necessidade, a ser avaliada in concreto.14 Havendo recusa, cabe ao conselheiro fazer as denúncias cabíveis, registrando as suas divergências em ata, inclusive sendo facultada a renúncia. No entanto, não pode ser responsabilizado por documento que lhe tenha sido ocultado quando, segundo apurado pelas circunstâncias concretas, não pudesse saber da sua existência. A responsabilidade do conselheiro fiscal se configura ao deixar de conferir, ou de conferir inadequadamente a existência, a propriedade e a exatidão dos registros (inclusive os contábeis e financeiros) da empresa, o emprego efetivo dos recursos, os lançamentos contábeis corretos, fidedignos e que espelhem a realidade dos créditos, estoque, endividamento e patrimônio; a conferência dos pagamentos realizados, inclusive a empregados administradores, acionistas, credores, fornecedores e fisco, examinando o atendimento da regulamentação incidente15. O conselheiro fiscal pode ser responsabilizado se deixar de apontar contingências passivas que tenha identificado ou que fossem identificáveis, ou de obrigações, inclusive contratuais, para que possa verificar se estão corretamente contabilizadas e se os seus impactos no resultado estão devidamente dimensionados nos registros pertinentes. Ainda, de acordo com o especificado na Resolução CVM n. 44/2021, o conselheiro pode ser responsabilizado se deixar de atentar ao dever de sigilo quanto a fato relevante de que tenha conhecimento ou de comunicar fato relevante às autoridades quando cabível, para os casos de sociedades por ações de capital aberto (art. 3º, § 1º e art. 8º). O conselheiro fiscal pode ser responsabilizado caso deixe de fiscalizar ao tempo cabível as questões que lhe competem. Assim, embora a LSA trate de análises trimestrais, há pontos cuja verificação recomendável é variável, desde a mensal (balancetes de grandes companhias, por exemplo) até a anual (v.g., DIRF e ITR). Por fim, convém alertar que não se pode exigir que os conselheiros fiscais sejam "super heróis" da fiscalização na busca da "agulha no palheiro" e que tenham olhos de lince para todas as operações, notadamente em grandes companhias que operam em substanciais volumes, pois isso significaria na prática tornar todo conselheiro fiscal um contínuo réu em ação de responsabilidade civil. Não cabe responsabilizar o conselheiro fiscal "pela vírgula" que ordinariamente não seria exigível de ser fiscalizada e que gere prejuízo desprezível, cabendo identificar o que realmente é relevante a ponto de ser considerado como um dano juridicamente qualificável (nesse sentido, disposições estatutárias específicas e seguros profissionais podem ser ferramentas úteis). Tampouco pode ser responsabilizado pelo ardil de terceiro que, praticando crime, tenha ocultado ou alterado dados para gerar falsos resultados, se esse ardil não puder ser descoberto por meios usuais disponíveis a um conselheiro fiscal. Deve-se acentuar a análise quanto ao resultado da conduta, de maneira que desatenções que gerem impacto inexpressivo no resultado da companhia não sejam classificadas como condutas lesivas juridicamente qualificadas16. Por outro lado, por vezes pequenos erros, quando repetidos, podem gerar grandes danos, os quais devem ser analisados individualmente quanto a facilidade ou dificuldade de identificação, para que se tracem os contornos de uma conduta exigível. Quanto maior for a facilidade de detecção prévia (inclusive por amostragem), maior será a possibilidade de responsabilização. Não se olvide, em matéria de responsabilidade, que o conselheiro pode contratar perito para auxiliar na apuração de fato cujo esclarecimento seja necessário ao exercício das suas atribuições, o que eleva o grau de exigência na análise da sua conduta17. Conselheiros fiscais não podem ser responsabilizados pelo prejuízo da falta de implementação de correções que tenham apontado como necessárias, porque a conduta exigível é a de fiscalização e de denúncia, e não de correção. Nesse caso, a análise volta-se à conduta do gestor omisso. Outras questões igualmente relevantes são a possibilidade de corresponsabilização de administradores e divisão de responsabilidade entre gestores, conselheiros fiscais e auditores internos ou externos, bem como a legitimidade para ajuizar uma ação indenizatória contra conselheiros fiscais e a extensão do dano indenizável, o que demanda estudo que ultrapassa os limites desta coluna.  ____________ 1 Disponível aqui. 2 ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. por Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo. Revista dos Tribunais. Ano XXXV, n. 104. Out.-dez. 1996. P. 108-126. 3 O controle sobre a administração serve aos legítimos interesses de acionistas e credores, "embora alcance também o interesse mais geral da proteção ao crédito público e aos investimentos". BULGARELLI, Waldírio. O Regime Jurídico do Conselho Fiscal das S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 48-49. Dito de outro modo: "Como visto, há um duplo aspecto na atuação do conselho fiscal: uma vinculada a acionistas e credores, que almejam uma companhia saudável para cumprir seus compromissos e gerar lucros, e outra, que essa companhia seja profícua e confiável, como célula saudável dentro do corpo que forma um sistema econômico". SOARES, Flaviana Rampazzo; TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Apontamentos quanto à estrutura e funções do conselho fiscal brasileiro. Revista brasileira de Direito Comercial, v. 4, p. 85-108, 2018. 4 Nas Sociedades por ações o número de Conselheiros Fiscais é entre 3 e 5 (art. 161 da Lei das S.A.). 5 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume II - art. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 426. 6 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Vol. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 450. 7 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. II. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1977. p. 742. 8 CARVALHOSA, 2009. p. 450. 9 Não cabe ao conselheiro fiscal "recomendar aos administradores que pratiquem ou deixem de praticar determinados atos que entende mais ou menos adequado ao exercício da atividade empresarial". EIZIRIK, 2011. p. 444. 10 EIZIRIK, Nelson. 2011, p. 427. 11 LOBO, Carlos Augusto da Silveira. Conselho fiscal de sociedade anônima: atuação individual e autônoma de seus membros. In: WALD, Arnold (org.). Direito empresarial: sociedades anônimas. V. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 357-378, trecho da p. 367. No mesmo sentido preleciona BATALHA, Wilson de Souza Campos. Sociedades anônimas e Mercado de capitais. V. 2. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1973. p. 677. 12 CARVALHOSA, 2009, p. 450. 13 "Diante dessas premissas não há como deixar de concluir que os membros do Conselho Fiscal, especialmente os eleitos pelos dissidentes, podem, isoladamente, sem dependência de decisão da maioria do órgão, inspecionar os livros e documentos, o estado da caixa e o mais que for necessário para verificar se a administração da companhia cumpre com seus deveres legais e estatutários". Isso se estende inclusive à análise de documentos de sociedades controladas. LOBO, 2011. p. 363 e 375. 14 Veja-se a Cartilha da CVM com Recomendações sobre Governança Corporativa: "V.5. A companhia deve disponibilizar informações a pedido de qualquer membro do conselho fiscal, sem limitações relativas a exercícios anteriores, desde que tais informações tenham relação com questões atuais em análise, e a informações de sociedades controladas ou coligadas, desde que não viole o sigilo imposto por lei. A capacidade de fiscalização do conselheiro fiscal deve ser a mais ampla possível, em virtude inclusive das responsabilidades que a lei lhe impõe, em caso de má conduta. Desde que possam influenciar os números fiscalizados, todos os documentos e informações sobre os quais não recaia dever legal de sigilo devem ser disponibilizados". Disponível aqui. (acesso em 26.03.23) 15 "É importante que o conselho fiscal examine com acuidade os setores financeiramente "estratégicos" da companhia, como, por exemplo, o setor de compras, de vendas e o setor financeiro, especialmente quanto a sua composição, forma de atuação e trabalhos realizados. Os atos e processos internos que mais merecem atenção são: disponibilidades imediatas, expressas sob as rubricas de "caixas" e "bancos", e a conjugação dos saldos dos boletins de caixa com o razão geral; títulos vencidos e a vencer (analisando a situação da cobrança); fichas-razão de despesas (principalmente quanto à correta comprovação e a despesas que possam ser consideradas como benefício pessoal e indevido em favor de alguém em detrimento de outros, sem justificativa plausível), fazendo inclusive uma conferência quanto a sua correspondência com controles paralelos que sejam adotados na companhia; análise de processos internos de compras, contratação de prestadores de serviços (incluindo, mas não se limitando, a consultorias, propagandas e serviços de profissionais liberais), concessão de descontos ou benefícios a clientes; despesas relacionadas a produtos ou serviços que servem a mais de uma companhia; créditos tributários; ações judiciais e eventuais acordos e contratos (especialmente de mútuo e doação)." SOARES, Flaviana Rampazzo; TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Apontamentos quanto à estrutura e funções do conselho fiscal brasileiro. Revista brasileira de Direito Comercial, v. 4, p. 85-108, 2018. 16 "(...) qualquer dano, tanto a coisas como à pessoa, só será objeto de reparação se corresponder a um interesse que seja socialmente tido como sério e útil". NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 498. 17 Conforme prevê o art. 163, §5º e §8º, da LSA. Nesse sentido, vide FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito commercial. 4. vol. São Paulo: Saraiva, 1961. p. 515.
A fluid recovery no Brasil  Instituto audacioso e ainda enigmático, a fluid recovery (reparação fluída) foi inserida em 1990 no microssistema de tutela coletiva brasileira como mecanismo voltado à efetividade da responsabilidade civil no âmbito das relações de massa. O desenho processual originariamente previsto para as class actions no Brasil (ações coletivas de tutela de direitos individuais homogêneos) suscita duas fases. Inicialmente, os legitimados coletivos - agindo na qualidade de substitutos processuais das vítimas lesadas por uma origem comum -, requerem a fixação da responsabilidade civil do(s) réu(s) por meio de uma sentença condenatória genérica. Subsequentemente, espera-se que as próprias vítimas compareçam individualmente em juízo, demonstrando o nexo causal e o dano pessoal, objetivando liquidar os valores devidos e finalmente executá-los. Todavia, referido modelo processual pode se revelar extremamente ineficiente, na medida em que depende da ampla informação social a respeito das demandas coletivas propostas e das condenações obtidas, assim como da disseminada acessibilidade individual das vítimas ao sistema de justiça. Daí a enorme relevância do mecanismo previsto no art. 100 do CDC - autêntica ferramenta de fechamento do sistema de tutela coletiva -, que objetiva viabilizar a liquidação e execução das indenizações não buscadas a título individual pelas vítimas.1 A não ativação da pretensão de quantificação e execução da fluid recovery oportuniza o locupletamento ilícito dos demandados, frustrando a multifuncionalidade da responsabilidade civil no âmbito da tutela coletiva nacional.    Natureza jurídica  Os diversos obstáculos à plena operacionalidade da fluid recovery brasileira derivam da indefinição de sua natureza jurídica - até hoje discutida. A incompreensão do sistema de justiça a respeito do instituto acarreta reducionismo ou simplesmente inviabilização da sua realização concreta.    Fundamentalmente, duas correntes doutrinárias se formaram para tentar explicar o mecanismo versado pelo art. 100 do CDC, ora sustentando sua natureza reparatória residual, ora afirmando sua natureza sancionatória. Se a quantificação do montante a ser remetido ao Fundo reparatório previsto pelo art. 13 da LACP compreender a mera soma das indenizações devidas às vítimas que não procuraram o Poder Judiciário para executar a condenação genérica, a fluid recovery assumiria, então, natureza reparatória residual.2 Por outro lado, entendendo-se que a liquidação da fluid recovery não se restringe à quantificação das lesões individuais não reclamadas judicialmente, devendo levar em consideração também a necessidade de se imprimir aos demandados punição pedagógica para a não reiteração da conduta ilícita e lesiva aos direitos metaindividuais, então sua natureza jurídica seria sancionatória.3 Ambos os caminhos sugeridos, por certo, geram perplexidades. A tese da natureza reparatória residual da fluid recovery, por exemplo, sugeriria a necessidade da efetiva comprovação da existência e da extensão dos danos individuais não indenizados diretamente às vítimas - tarefa muitas vezes impossível ou extremamente onerosa às entidades colegitimadas à instauração do procedimento regulado pelo art. 100 do CDC.4 Para além disso, ainda que fosse viável provar e quantificar com exatidão os valores indenizatórios individuais não reclamados, sua destinação aos fundos reparatórios não se prestaria a desestimular a continuidade ou reiteração das práticas ilícitas e lesivas, ignorando, também, os lucros ilícitos auferidos pelos demandados. A tese da natureza sancionatória da fluid recovery, por sua vez, (res)suscita toda a difícil e ainda recente discussão que o sistema de justiça brasileiro vem travando a respeito da aplicação, limites e alcance da multifuncionalidade da responsabilidade civil. Nesse sentido, a literalidade do art. 100 do CDC não satisfaz à evidente necessidade de se ativar, para muito além da clássica função reparatória, as funções precaucional, preventiva, punitivo-pedagógica e restitutória, absolutamente imprescindíveis no campo das relações de massa e da proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.        A atual orientação jurisprudencial do STJ a respeito da fluid recovery  No longo caminho já trilhado (e ainda por se trilhar) rumo à adequada compreensão e concretização da fluid recovery brasileira, o Superior Tribunal de Justiça já parametrizou importantes premissas, inclusive a respeito de sua natureza jurídica. Recentemente, definiu o STJ que o mecanismo pode assumir, dependendo do caso concreto, tanto natureza reparatória residual como punitiva. Em aresto relatado pela Min. Nancy Andrighi, afirmou-se: "Não é possível definir, a priori, a natureza jurídica desse instituto, que poderá variar a depender das circunstâncias da hipótese concreta. Se for viável definir a quantidade de beneficiários da sentença coletiva, bem como o montante exato do prejuízo sofrido individualmente por cada um deles, a fluid recovery terá caráter residual. De outro lado, se esses dados forem inacessíveis, a reparação fluida assumirá natureza sancionatória, evitando-se, com isso, a ineficácia da sentença e a impunidade do autor do ilícito.5 Conforme o STJ, ainda, o objetivo da fluid recovery "consiste, sobretudo, em impedir o enriquecimento sem causa daquele que praticou o ato ilícito", e que "A ausência das informações necessárias para a constatação dos prejuízos efetivos experimentados pelos beneficiários individuais da sentença coletiva não deve inviabilizar a utilização da reparação fluida. Nessa hipótese, a indenização poderá ser fixada por estimativa, podendo o juiz valer-se do princípio da cooperação insculpido no art. 6º do CPC/2015 e determinar que o executado forneça elementos para que seja possível o arbitramento de indenização adequada e proporcional."6 Dessa forma, o STJ não apenas reforçou seu entendimento a respeito da possível instrumentalização da fluid recovery para o fim de evitar o enriquecimento ilícito dos réus7 como, fundamentalmente, consagrou sua finalidade punitivo-pedagógica.     A proposta de nova regulação da fluid recovery no PL 1641/2021 Elaborado por uma comissão de juristas designada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), o Projeto de Lei nº 1641/2021 objetiva aprimorar o sistema processual coletivo no Brasil.8 Dentre as inovações propostas, enuncia-se expressamente que a tutela coletiva é regida pelo princípio da "efetiva precaução, prevenção e reparação integral dos danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos" e da "responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".9 Vale dizer, a multifuncionalidade da responsabilidade civil finalmente encontraria textura legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, adequando-se seu regime jurídico às necessidades impostas pelas relações sociais do século XXI. Para além disso, referido Projeto de Lei reforma a fluid recovery, estabelecendo, como critérios para sua quantificação, não apenas a ausência de habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano (critério atualmente disposto pelo art. 100 do CDC), mas também "os lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".10 A inovação proposta atribui à fluid recovery a potencial função de neutralização dos ilícitos lucrativos (disgorgement), tanto cara à efetividade da tutela coletiva quanto esquecida até hoje pelo legislador brasileiro.11 Dessa forma, a partir da orientação jurisprudencial do STJ e da proposta de ressistematização da tutela coletiva engendrada pelo PL 1641/2021, extrai-se a conclusão de que o mecanismo da fluid recovery pode assumir naturezas tão diversificadas quantas forem as funções que, à luz do caso concreto, a responsabilização civil dos demandados nas ações coletivas exigir. __________ 1 Lei 8.078/90, art. 100 - "Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985." 2 Nesse sentido, originariamente, GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor (comentado pelos autores do anteprojeto). São Paulo: Editora Forense, 4ª ed., 1995, p. 565. 3 Sustentamos a necessidade de se imprimir à fluid recovery uma função sancionatória (para além da reparatória) há mais de duas décadas: "Mais do que emprestar uma tutela coletiva à defesa de direitos individuais homogeneizados, o legislador do CDC acabou por, considerando a elevada relevância social não só da facilitação da defesa processual mas também da repressão efetiva aos responsáveis pela lesão à classe, o que inegavelmente condiz com o interesse social, ao mesmo tempo não deixa-los impunes (não se lhes permitindo enriquecimento ilícito) e propiciar mais uma fonte de captação de recursos ao Fundo criado pela LACP". VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Editora Malheiros, 2000, p. 154.  4 A título de exemplo, o STJ já decidiu pela necessidade de efetiva demonstração dos danos individuais para a liquidação e execução da fluid recovery: ""A simples identificação dos possíveis lesados não se mostra suficiente para a quantificação do dano individualmente suportado, elemento sem o qual não é admitida a propositura da execução, que exige liquidez e certeza, tampouco implica habilitação capaz de transformar a condenação pelos prejuízos globalmente causados em indenização pelos danos individualmente sofridos, haja vista a ausência de manifestação pessoal acerca da intenção de promover a execução do julgado" (REsp n. 1.610.932/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/4/2017, DJe de 22/6/2017.) 5 REsp n. 1.927.098/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 24/11/2022. 6 Idem. 7 O STJ já houvera afirmado que "A recuperação fluida (fluid recovery), prevista no art. 100 do CDC, constitui específica e acidental hipótese de execução coletiva de danos causados a interesses individuais homogêneos, instrumentalizada pela atribuição de legitimidade subsidiária aos substitutos processuais do art. 82 do CDC para perseguirem a indenização de prejuízos causados individualmente aos substituídos, com o objetivo de preservar a vontade da Lei e impedir o enriquecimento sem causa do fornecedor que atentou contra as normas jurídicas de caráter público, lesando os consumidores" (REsp n. 1.955.899/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 21/3/2022.) 8 Referido Projeto de Lei encontra-se atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, apensado ao PL 4441/2020. 9 Art. 2º, incisos V e VI, do PL 1641/2021. 10 PL 1641/2021 - Art. 45. Na ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos, a indenização determinada será revertida, quando esta for a solução mais adequada, às vítimas do evento. (...) §4º - Decorrido o prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão proferida na ação coletiva para a execução individual sem que tenha havido habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, ou dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas, poderão os legitimados à ação civil pública promover a liquidação e execução da indenização devida. Os valores resultantes da execução da indenização devida nos termos do §4º serão depositados em juízo e, após o transcurso do prazo prescricional das pretensões individuais, revertidos a um fundo ou atividade, na forma desta Lei. §5º - Na definição da indenização prevista no § 4º, o juiz levará em consideração os valores já desembolsados pelo réu para pagamento das vítimas. §6º - Os valores liquidados serão depositados em juízo ou revertidos a fundos reparatórios, devendo ser aplicados, ouvido o Ministério Público, na recuperação específica dos bens lesados ou em favor da comunidade afetada. 11 Conforme Nelson Rosenvald, "O reconhecimento de que o resgate de lucros ilícitos é a resposta apropriada para certos tipos de ilícitos merece suporte normativo. Trata-se da necessidade de solucionar uma questão comum a diversos sistemas jurídicos sobre como canalizar os ganhos indevidos, sem que se tenha que recorrer ao raciocínio distorcido da 'cama de Procustes' pela indevida plasticização do cálculo da compensação dos danos patrimoniais ou pela inadequada hipertrofia da avaliação do dano moral". A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 314-315.
As reflexões acerca da responsabilidade civil dos profissionais da saúde, e mais particularmente dos médicos, corriqueiramente giram em torno de se discutir se, em virtude de erro médico - isto é, sobretudo nos casos de desvios de conduta no decorrer de procedimentos cirúrgicos ou mesmo nas hipóteses de mau diagnóstico - caberá determinar que o próprio profissional venha a responder por danos causados aos pacientes e, eventual e reflexamente, aos seus familiares. O propósito deste texto, todavia, será diverso: cumprirá doravante averiguar de que modo os profissionais da saúde poderão ser responsabilizados pela violação à autonomia de seus pacientes. Noutros termos, debater-se-á a possibilidade de imputar responsabilização civil aos médicos que, ainda quando empreendam adequadamente as melhores técnicas disponíveis para preservar a vida e a saúde dos pacientes - isto é, independentemente do cometimento de erro -, vêm a atuar em contrariedade à livre expressão de vontade destes. No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e pacientes, o consentimento informado é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos a serem seguidos. Atualmente, prevalece a noção de que a declaração do paciente para consentir com o ato médico é obrigatória, qualquer que seja a magnitude da intervenção e seus procedimentos e riscos. Nas relações médico-paciente, a liberdade para tomar decisões acerca dos tratamentos aos quais o paciente deseja ou não se submeter contribui para nele reconhecer o status de pessoa, e não de mero objeto da atividade médica. Todavia, somente cabe falar em verdadeiro consentimento informado se o paciente for capaz de compreender o teor do Termo de Consentimento Informado, cujo vocabulário deve ser suficientemente preciso e compreensível ao paciente, para que proporcione completo entendimento sobre seus termos. É necessário, pois, que o médico promova uma efetiva interação com seus pacientes, observando as condições e as limitações concretas de cada um, explicando-lhes cada aspecto do conteúdo do Termo, para que este possa ser uma fonte de segurança para ambos. O postulado acabado de referir é imprescindível para estabelecer que o consentimento somente será como válido se as informações transmitidas aos pacientes forem bastantes para a formação da sua convicção. À míngua de informação, ou sendo ela incompleta ou imprecisa para sustentar um consentimento devidamente esclarecido, poder-se-á afirmar que, ainda que o paciente tenha aposto sua assinatura no Termo que lhe tiver sido apresentado, o consentimento obtido será considerado inválido, passando a conduta médica a ser tratada como um ato não autorizado,1 incidindo, a partir daí, as regras que imputem a ele a responsabilidade civil pela intervenção não permitida sobre a integridade física de terceiros. Do mesmo modo, caso reste demonstrado que o próprio médico levou o paciente a prestar o consentimento, valendo-se, para tanto, de artifícios indevidos, seja mediante o induzimento malicioso capaz de deturpar a realidade dos fatos (dolo), seja em virtude de ameaça de mal injusto (coação), poderá responder civil e criminalmente, em virtude de atuar mediante constrangimento ilegal, ao intervir sobre a integridade física do paciente sem que este tivesse manifestado validamente sua permissão para tal fim. A averiguação sobre quais circunstâncias se enquadrariam em um comportamento inadequado do médico, contudo, exige prudência. Não se pode acusar o profissional de agir mediante coação quando vier a sugerir fortemente que seu paciente se submeta a determinada intervenção médico-cirúrgica, desde que se reserve a este a liberdade suficiente para rejeitar o tratamento proposto. A mera tentativa de persuasão, enfim, não induz a presença de vício. Outra será a hipótese, entretanto, caso o médico venha a reduzir a capacidade de resistência do paciente, ao colher seu consentimento após a ingestão de analgésicos, sedativos ou outros produtos farmacêuticos que lhe comprometam o discernimento.2 Neste caso, será indubitável a ausência de voluntariedade na manifestação de vontade, ficando comprometida sua validade, o que, em última instância, revela inaceitável desrespeito à autonomia do paciente, capaz de gerar a responsabilização civil do profissional envolvido. Enfim, a inobservância dos requisitos necessários para a validade do consentimento informado não permite dizer que houve verdadeira anuência, o que poderá acarretar a responsabilidade civil do profissional, seja pelos danos provocados ao paciente, seja pela intervenção não consentida sobre a sua integridade física. Nestes casos, mesmo que não haja danos à incolumidade física, caberá atestar, quando menos, a existência de ato ilícito praticado contra o direito à autodeterminação do paciente. É preciso, pois, atestar um postulado essencial neste domínio: não é necessária a existência de danos à saúde do paciente para que o profissional incorra em responsabilização pessoal; o desrespeito à autonomia do enfermo já justifica o reconhecimento de um dano à liberdade de escolha do paciente. Em tais circunstâncias, ainda que se demonstre que o profissional atuou em estrita observância das normas e técnicas próprias de seu ofício, caberá atribuir-lhe o dever de reparar o dano, consistente na violação de um espaço necessário de autonomia do paciente, a quem competirá, em última análise, a decisão sobre os rumos a tomar em relação à sua saúde. Malgrado seja de se exigir a exteriorização do consentimento do paciente, como elemento primeiro para a prática de qualquer intervenção médica, há situações excepcionais que permitem ao médico agir de imediato, independentemente da anuência do próprio paciente ou da autorização de seus representantes legais. Com efeito, em caso de iminente perigo de vida ou de lesões graves e irreversíveis, quando o paciente não está apto a prestar o consentimento, a urgência para a tentativa de preservar a vida ou integridade física justifica a intervenção médica imediata. Trata-se do denominado privilégio terapêutico, que consiste na faculdade de atuação médica, diante de situações de mal iminente, sem que seja necessário recorrer previamente ao consentimento do paciente.3 Nas circunstâncias acima descritas, não caberá falar na prática de ato ilícito, seja nas esferas civil, penal ou administrativa. O médico estará amparado por figuras jurídicas, previstas no ordenamento brasileiro, que excluem a ilicitude - no caso, o estado de necessidade e o exercício regular de um direito reconhecido, que encontram guarida nos arts. 23 do Código Penal e 188 do Código Civil. Aqui, tampouco caberá falar na existência de dano, atuando o profissional amparado pelo consentimento presumido do paciente, afastando-se a própria responsabilidade civil. A propósito, cabe firmar a ideia de que a omissão do médico, nos casos em que lhe é possível salvar a vida do paciente, é que será passível de reparação civil. A decisão de agir de ofício, sem que se colha o consentimento do paciente para a intervenção sobre a sua integridade física, tem caráter eminentemente subsidiário: somente será legítima tal conduta se o paciente estiver verdadeiramente inabilitado para manifestar sua vontade. A urgência da medida, neste domínio, também desempenhará papel preponderante: não se admitirá a realização do procedimento médico caso seja possível esperar pela decisão daquele que, embora pudesse estar apto a consentir, em condições normais, se acha apenas momentaneamente privado de o fazer. Justifique-se que, nas aludidas situações, caberá atestar a presença de uma autêntica presunção de consentimento. Parte-se do pressuposto de que, caso o indivíduo estivesse em condições de se manifestar, autorizaria, à partida, a realização das intervenções necessárias para preservar-lhe a vida e a saúde. Este regime especialíssimo de ausência de ilicitude e também de responsabilidade, diante da falta de consentimento expresso, somente se justifica pela natureza dos bens jurídicos a preservar e pela extrema urgência de agir. Outra circunstância em que poderá ser legítima a conduta médica, independentemente da manifestação de prévio assentimento por parte do paciente, consiste nos casos em que se fizer imprescindível o alargamento da operação. WOLFGANG FRISCH4 esclarece que a medida será adequada quando o paciente prestar seu consentimento para uma intervenção médica de determinada natureza e dimensão, descobrindo-se posteriormente ao início da sua realização que seria recomendável alargar a operação, para estendê-la para além dos limites do consentimento dado, já não sendo mais possível obtê-lo, por estar o paciente sedado e sob o efeito de anestesia. O mesmo autor relata um caso, submetido ao Tribunal Federal alemão, em que o médico tinha obtido da sua paciente o consentimento para erradicar um tumor no útero; durante a operação, contudo, verificou-se ser imprescindível remover todo o órgão para conter o alastramento do tumor, informação não levada oportunamente à paciente, o que tornava o procedimento, portanto, não consentido. Nestas hipóteses de risco agudo de vida ou de grave lesão corporal, não havendo meios de comunicar ao paciente a necessidade de se alargar o procedimento, será possível admitir que o apelo ao consentimento presumido legitima a conduta do médico.  É preciso, cabe salientar, que o profissional da saúde atue com enorme cautela para aferir a presença de situações de justificado consentimento presumido: elas apenas se manifestam se restar incontroverso o fato de ser absolutamente necessária e urgente a intervenção, revelando-se ser inexigível ao médico conduta diversa. Quando o profissional atuar no estrito limite da necessidade terapêutica, será descabida a imputação de qualquer responsabilização por sua conduta, servindo o consentimento presumido, portanto, como um verdadeiro fator de exclusão da responsabilidade civil. Em vias de conclusão, restando incontroverso o respeito ao primado da liberdade do paciente, caberá reconhecer, como inarredável consequência, que o desrespeito às escolhas do paciente quanto aos procedimentos a adotar em relação à sua saúde acarretará um autêntico dano à autonomia, a provocar a verificação da responsabilidade civil do profissional, ainda que atue em estrito cumprimento das leges artis e que não haja qualquer prejuízo ou lesão à vida, à saúde e à incolumidade do enfermo. Há, todavia, que reconhecer o advento de circunstâncias em que a urgência na adoção de medidas médicas prepondera; em casos tais, sendo impossível colher do próprio paciente ou de seus responsáveis a manifestação de vontade, emergirá a figura do consentimento presumido, a isentar o profissional de qualquer responsabilidade por seu comportamento, ainda que reste provado, posteriormente, que a atuação médica contrariou, de algum modo, a verdadeira intenção do enfermo. O que se impõe, em todo caso, é o excessivo zelo com que cabe apreciar a questão. Profissionais da saúde lidam rotineiramente com incessantes situações delicadas e muitas vezes extremas, e sua responsabilização há de ser atribuída, se for o caso, com acurada parcimônia. De toda sorte, em se verificando o desrespeito aos limites do consentimento prestado pelos pacientes, será inevitável constatar verdadeira violação à liberdade destes, o que não deixa de se caracterizar como uma conduta de violência contra o sagrado espaço de manifestação da individualidade de pessoas que, mesmo em circunstância de extrema vulnerabilidade, deverão decidir os traços e rumos de seus próprios destinos. __________ 1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento para intervenções médicas prestado em formulários: uma proposta para o seu controlo jurídico. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXVI, 2000, p. 451. 2 SILVA, Marcelo Sarsur Lucas da. Considerações sobre os limites à intervenção médico-cirúrgica não consentida no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 43. Belo Horizonte, julho-dezembro de 2004, p. 100. 3 RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português: elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: Centro de Direito Biomédico. Coimbra: Ed. Coimbra, 2001, p. 279. 4 FRISCH, Wolfgang. Consentimento e consentimento presumido nas intervenções médico-cirúrgicas. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (Dir.). Revista Portuguesa da Ciência Criminal, a. 14, ns. 1 e 2. Coimbra: Ed. Coimbra, janeiro-julho de 2004, p. 110-112.
Nossa Constituição Federal condiciona proteção jurídica à família não importando o modelo do qual ela se reveste. O vértice legal é a proteção do núcleo familiar e, que tem como ponto de partida, e também seu término, a tutela da pessoa humana. Se é na família que se promove os valores afetivos e de solidariedade humana, não se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas de seus membros seja de uma filiação advinda de forma biológica, civil ou socioafetiva. Por isso, os princípios inerentes à convivência familiar, baseada no afeto recíproco entre os integrantes deve se estender ao direito sucessório de forma igualitária, sob pena de contrariar o ditame constitucional. Para atribuição do devido a cada um dos herdeiros, para a prevenção por preterição entre co-herdeiros e ainda para diminuição de ações judiciais para acesso ao quinhão hereditário, seria importante haver mecanismo jurídico de imediata referência à filiação que associe os pais aos filhos biológicos, adotivos ou socioafetivos, declarados ou reconhecidos, porque assim, evitaria que alguns descendentes e sua estirpe, não tivessem acesso ao acervo hereditário a que tenham direito, por herança. E qual mecanismo poderia haver? Pela proposta da anotação registrária dos descendentes em assento de nascimento dos pais, lege ferenda. Reflexão inicial: a importância do registro civil reside na comprovação da autenticidade e publicidade sobre dados relativos ao estado da pessoa, cujos dados serão, na maioria das vezes, essenciais para eficácia da relação jurídica como se lê do próprio artigo 1º da Lei 6.015/73. Ele prepondera na preocupação com o tráfico de informações e no comprometimento com a garantia dos direitos fundamentais e ao final, aos próprios direitos da personalidade. Logo, o registro civil das pessoas naturais confere suporte legal à família, isso porque não existindo o registro, também juridicamente se tornam inexistentes as pessoas, as relações de parentalidade e seu acesso a todos os seus direitos subjetivos. A legalidade se dá por meio do registro, através do qual se atribuem os direitos e obrigações. Diante disso, vê-se que o registro civil confere acesso à busca da identidade familiar e, pelo registro de nascimento, surgirá documento originário da pessoa natural. Ele servirá de base para emissão de todos os demais assentos (casamento, óbito, etc.). Nele, se contém os elementos do estado da pessoa natural (estado individual) que individualizam a pessoa para a prática de atos e realização de negócios. E tão importante quanto ao registro de nascimento está o registro da extinção da pessoa natural, ou seja, a lavratura do registro de óbito conduzirá o acesso efetivo à legítima pelos descendentes do de cujus. E ainda. O sistema de registro civil se mantém também atualizado com outros atos que tornam o registro mais completo. Esses atos podem ser visualizados pelas averbações que alteram o conteúdo do estado da pessoa ou, os efeitos deste registro, mas também, pelas anotações as quais indicam que existe um outro ato de registro civil relativo à mesma pessoa, o que permite que a publicidade seja completa e que uma certidão atualizada indique a existência e a localização de atos registrários (registro ou averbação) posteriores que alteram o estado da pessoa natural. Essas anotações registrárias apenas produzem efeitos meramente publicitários e conduzem início de prova da existência de outro registro ou averbação. A anotação do óbito de uma pessoa no seu registro de nascimento e de casamento confere início à prova do óbito, mas não faz prova plena dele, isso só se dará com a certidão de óbito. Como se vê, as anotações formam uma "rede" que permite a busca por todos os registros de seus atos e fatos da vida civil. Elas são indispensáveis à plena publicidade, segurança e certeza dos assentamentos do registro civil. Na maioria das vezes, as alterações do estado civil das pessoas naturais não se verificam no mesmo local onde foi lavrado, originariamente, o assento de nascimento, e que devem constar averbações e anotações concernentes a todas as modificações do estado civil. As anotações eram comunicadas entre cartórios por meio de cartas, mas hoje é feito por meio da CRC-comunicações (artigo 106, § único da lei 6.015/73). A anotação registrária, portanto, é elemento de indicação que faz remissão a atos anteriormente praticados, através dela se faz o cruzamento das informações sobre os principais fatos da vida civil da pessoa natural. E aqui concentra-se nosso interesse neste ato registrário chamado anotação. Se a anotação registrária reserva a ideia de dar notícia de atos realizados no registro civil pela pessoa natural, mostrando os principais fatos que houveram em sua vida (meramente publicitários), mas que são considerados início de prova sobre a existência de outro registro ou averbação os quais produzem efeitos comprobatórios, por que então não se reconhecer e considerar a possibilidade do registro na sua inteireza e possibilitar a anotação dos filhos no assento de nascimento dos pais e, na de óbito ulteriormente, para que assim possa-se identificar de forma irrefutável quem são os descendentes para reconhecimento imediato das pessoas partícipes da sucessão legítima daquela pessoa natural que anotou (através do Oficial do Cartório) os filhos em seu livro de nascimento e, que posteriormente, após sua morte, poderão ser anotados, pelo registrador, no livro de óbito do de cujus? Caso haja a morte da pessoa natural, será realizado o registro do seu óbito com as anotações de sua morte em seu assento de nascimento e, no de casamento, se houver. Os filhos do de cujus, naturalmente serão os primeiros a receber a herança, mas para isso, deverão se apresentar em inventário a ser formalizado (judicial ou extrajudicial) por meio de suas certidões de nascimento ou casamento atualizadas. Caso alguns (ou todos) dos filhos não tenham conhecimento da morte do pai/mãe e, não foram declarados na certidão de óbito à época, pelo declarante, pois sequer os irmãos (bilaterais ou unilaterais, socioafetivo, reconhecidos) tios, avós, sobrinhos, se conhecem e nem possuem seus registros em cartório idêntico ao do de cujus, dificultará a esse descendente vivo e registrado de ter acesso à legítima quando desconhecido, culposa ou dolosamente, pelos outros descendentes, no momento da distribuição dos quinhões. Se não fosse só por este motivo que a anotação registrária oferece segurança jurídica de acesso à legítima, também pode servir de prevenção, pois, sabendo quem é o herdeiro, de imediato, evita que mais tarde aquele que não participou da partilha perca bens ou as rendas sobre os bens de sua legítima. E mais. Vale lembrar que todos os descendentes do doador, responderão pela contemplação do não favorecido, pois o herdeiro necessário não poderá ser prejudicado podendo buscar sua quota na herança de quem quer que seja (artigo 1.824 do Código Civil). De fato, como não é possível o conhecimento de todos os filhos/irmãos de plano, caso houvesse a possibilidade da apresentação de certidões - do transmitente/herdeiro de cota de sua herança - expedidas pelo Cartório de Registro Civil, potencialmente geraria a confiança e boa-fé ao adquirente resguardando-o de futuros pleitos judiciais, bem como ao herdeiro/vendedor de indenizações futuras dos outros co-herdeiros. Numa situação exemplificativa de ação investigatória de paternidade cumulada com petição de herança e, a paternidade sendo reconhecida, o bem imóvel alienado a terceiros de boa-fé pelos os outros co-herdeiros (consoante o disposto no art. 1.826 do Código Civil) só deveriam eles restituir os frutos percebidos aos outros herdeiros após caracterizada sua má-fé. Passados vários anos entre a abertura da sucessão e o cálculo da cota de cada herdeiro na herança, dever-se-á realizar perícia para avaliação dos bens segundo critérios atuais, tendo em vista a falta de certeza de correspondência dos montantes utilizados na partilha com os de mercado, assim como a ausência de parâmetros seguros para aferição dos valores históricos. Assim sendo, a apuração de perdas e danos será dificultosa e merecerá formulação jurídica de prevenção de dano em casos como esse. Se não fosse só pelos argumentos acima, também ainda é possível, pedido de indenização (pelos co-herdeiros preteridos) no tocante à utilização de bens alheios (artigo 186 Código Civil). As normas de enriquecimento injustificado, no que couber, também são aplicáveis (artigo 884 Código Civil) visto que se privou da posse os demais herdeiros do bem que faziam jus. E ainda que de ordem moral, havendo prejuízo ao herdeiro (relíquias de família, valor afeição) serão indenizáveis a título de perdas e danos. Sabendo-se, ainda, que a legítima dos herdeiros necessários, ou metade indisponível, enquanto vivo o doador, não pode ser atingida por nenhuma hipótese de liberalidade, às doações irregulares - após apuradas as falsas transferências onerosas - merecerão apuração de danos causados à privação dos bens. Diante disso, a anotação registrária dos filhos nos assentos de nascimento de seus pais ampliaria as chances de conhecer de plano, de forma irrefutável, os co-herdeiros. Ao conhecer de plano os co-herdeiros que, até aquele momento encontram-se registrados e anotados nos assentos de nascimento e de óbito dos pais, evitaria o dolo por parte de um deles em sonegar bens da legítima (art. 1.992 Código Civil) ao que caberia responder perante os demais co-herdeiros pelo valor do bem, mais perdas e danos (art. 1.995 Código Civil)1. __________ 1 VALESI, Raquel Helena. Efetividade de acesso à legítima pelo registro civil. Rio de Janeiro:Processo, 2019.
quinta-feira, 23 de março de 2023

Distanásia e responsabilidade civil médica*

Ao redor do mundo, os termos obstinação terapêutica, futilidade terapêutica e esforço terapêutico1 são, comumente, usados para nomear este o prolongamento artificial e indevido da vida biológica. Para fins didáticos, optou-se, neste artigo, por usar o termo distanásia posto que é o mais conhecido no Brasil. O neologismo distanásia foi criado a partir da junção de dois radicais gregos: "dis", que denota o que é disfuncional e "thanatos", palavra grega que significa morte.  Assim, a distanásia é o termo que nomeia a morte que ocorre de maneira anômala, o que, na contemporaneidade, é entendida como a morte postergada, em que suporte artificiais são usados "mesmo quando flagrantemente infrutíferos para o paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento ao lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso."2 Em verdade, a distanásia é o oposto da eutanásia pois, enquanto nesta objetiva-se abreviar a vida biológica, naquela objetiva-se posterga-la. Assim, se na discussão da eutanásia a incurabilidade e a irreversibilidade são argumentos legítimos para que a morte seja antecipada, no que tange à distanásia, é exatamente o caráter incurável e irreversível da doença e/ou do estado clínico que deslegitima o prolongamento artificial da morte e do morrer. A disfuncionalidade da distanásia existe exatamente porque há a compreensão de que quando não é mais possível a cura, ao paciente devem ser prestados todos os cuidados para que o desfecho de sua morte ocorra com o menor sofrimento possível para ele e seus familiares. E a distanásia não é um cuidado, ela é um não cuidado. Os estudos comprovam que em termos de fim de vida a hora de parar de tratar é uma das mais tormentosas decisões para os profissionais de saúde3. Todavia, vem ganhando aceitação entre bioeticistas e paliativistas a ideia de que a futilidade terapêutica precisa ser combatida e que cabe ao médico a decisão de quando não investir mais no paciente4. A título de exemplo, o Código de Ética e Deontologia Médica da Organização Médica Colegial da Espanha estabelece que a prática do esforço terapêutico é infração ética, mas não há nenhuma lei punindo civil e criminalmente os médicos por essa prática5.  No Brasil, a palavra distanásia não é encontrada em nenhuma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), nem mesmo no Código de Ética Médica6, o que não significa que a prática seja permitida aos médicos brasileiros. A resolução n. 2.156/2016 do CFM trata dos critérios de admissão do paciente em Unidade de Terapia Intensiva, evidenciando que pacientes "com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, não são apropriados para admissão em UTI, cabendo ao médico intensivista analisar o caso concreto e justificar em caráter excepcional."7 O artigo 35 do Código de Ética Médica veda ao médico "(...)exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos", cabendo a interpretação a contrario sensu de que o médico que praticar o esforço terapêutico incorrerá em infração ética. O artigo 41, muito utilizado para averiguação de condutas éticas nos cuidados com o paciente em fim de vida, dispõe: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Há nesse artigo a figura de vários institutos atribuídos à discussão do fim de vida: a) eutanásia: prática vedada pelo caput; b) ortotanásia: prática permitida na primeira parte do parágrafo único: c) distanásia: prática vedada na segunda parte do parágrafo único, quando o CFM afirma que o médico não deve "empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas". Percebe-se assim que, apesar de o artigo 41 ser explícito quanto à proibição da eutanásia e deixar implícita a vedação da distanásia, uma interpretação conforme com a o artigo 35 permite a conclusão de que esta também é uma prática antiética. Deve-se, neste contexto, perquirir a existência de fundamentos jurídicos para responsabilizar civilmente o médico por ter agido para prolongar a vida do paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura. Para tanto, é preciso averiguar se: (i) se o direito à vida é também um direito/dever de ser mantido vivo a qualquer custo; (ii) a distanásia é um tratamento desumano ou degradante. Quanto ao primeiro fundamento, Cynthia Pereira Araújo e Sandra Marques Magalhães8 afirmam que eventual reconhecimento de um direito à distanásia implicará no reconhecimento de que há direitos prejudiciais ao paciente e há salvaguardas à má prática médica, razão pela qual defendem a impossibilidade deste reconhecimento. Quanto ao segundo, é necessário retomar o conceito de distanásia e seu propósito: Trata-se do uso desproporcional do suporte avançado causando sofrimento ao paciente com o objetivo de prolongar o processo de morrer. Ou seja, está-se diante de um tratamento desumano e degradante que distancia o paciente de seu direito à morte digna reconhecido por Flávia Piovesan9 como um direito constitucional, decorrente do "direito à liberdade, à autonomia, ao respeito e à vida, no marco de um Estado laico, no qual impera a razão pública e secular." Historicamente, o ofensor é responsabilizado quando comprovado ato ilícito, dano, nexo de causalidade e culpa. Schreiber10 afirma que como resultado direto da erosão dos filtros tradicionais da reparação - ou, em outras palavras, da relativa perda de importância da culpa e do nexo causal como óbices ao ressarcimento dos danos sofridos - um maior número de pretensões indenizatórias passou a ser acolhido pelo Poder Judiciário. Diante desse cenário, a responsabilidade civil tem, cada vez mais, sido amparada no binômio dano/reparação. Nesse contexto, Rosenvald11 afirma que é preciso pensar que a responsabilização do ofensor tem a finalidade compensatória, mas também de prevenção de comportamentos. E, no caso em tela, resta claro a necessidade também prevenir o comportamento médico que - sob o pretexto de salvar a vida do paciente - acaba por prolongar danosamente o processo de morrer. __________ *O presente texto trata-se de uma atualização do artigo DADALTO, Luciana. Investir ou desistir: análise da responsabilidade civil do médico na distanásia. In: Nelson Rosenvald; Marcelo Milagre. (Org.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. 1ed.Inddaiatuba: Foco, 2017, v. 1, p. 487-497. 1 Para aprofundamentos nessas nomenclaturas recomenda-se: AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2015. Vol. 191, n. 11. 2 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Eutanásia. In: GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão; DADALTO, Luciana. Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo: Almedina, 2017, p. 106. 3 WILKINSON, DJC; SAVULESCU, J. Knowing when to stop: futility in the intensive care unit. In: Current Opinion in Anaesthesiology. 2011 Apr; 24(2): 160-165. 4 AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine Volume 191 Number 11 June 1 2015. 5 Disponível aqui, acesso em 13 mar. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (Código de Ética Médica). Disponível aqui, 13 mar. 2023 7 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.156, de 17 de novembro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 mar. 2023. 8 ARAÚJO, Cynthia Pereira; MAGALHÃES, Sandra Marques. Obstinação terapêutica: um não direito. In: DADALTO, Luciana. Cuidados Paliativos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Foco, 2022, p.331-344. 9 PIOVESAN, Flávia. Proteção jurídica da pessoa humana e o direito à morte digna. In: DADALTO, Luciana; GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão. Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo, Almedina, 2017, p. 77. 10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013. 11 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.91.
Diante dos nove anos em vigor do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14 - MCI) e do crescente aumento do uso das redes no País, verifica-se a necessidade de se revisitar temas abordados pela norma. De fato, os ambientes online tornaram-se mais complexos e as interações ali promovidas vêm provocando repercussões sociais e políticas relevantes. Nesse sentido, a discussão do Recurso Extraordinário 1.037.396 pelo Supremo Tribunal Federal mostra-se essencial para a proteção de direitos na rede e a manutenção de uma internet livre, aberta e democrática. Discutir a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet1 envolve diretamente a análise de direitos fundamentais e de possíveis limites ao discurso e à liberdade de expressão na rede. A preocupação com a temática, vale lembrar, não se encontra restrita ao Brasil. A Suprema Corte dos Estados Unidos, no início de 2023, realizou uma série de audiências no contexto dos casos Gonzalez vs. Google e Twitter vs. Taamneh. Na Europa, em novembro de 2022, o Digital Services Act e o Digital Market Act entraram em vigor. As duas normas europeias visam a proteger os direitos dos usuários de serviços digitais e estabelecer condições adequadas para a promoção da inovação, do crescimento e da competitividade, tanto no mercado único europeu quanto globalmente. Elas impactam diretamente a atuação de agentes intermediários e de plataformas online. No debate, há também a Lei Alemã para as Redes Sociais (NetzDG) de 2018. Com base no panorama atual, é importante que a construção interpretativa do Marco Civil da Internet se dê em diálogo com as contemporâneas reflexões acerca da moderação de conteúdos online, as normas internacionais de direitos humanos e de governança da rede, a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (lei 13.709/18 - LGPD) e a estratégia nacional de inteligência artificial. Contudo, desenvolver tal interpretação traz mais dúvidas do que respostas ao intérprete. No presente texto, a partir de três eixos, pretende-se apresentar questões que envolvem a caracterização dos provedores, suas responsabilidades e deveres, seus papéis na moderação de conteúdos online e suas respectivas atuações no cenário público nacional. I) Em primeiro lugar, é necessário esclarecer a definição e quais plataformas e/ou sujeitos podem ser qualificados como provedores de aplicações de internet no MCI. Seria possível pensar em outras categorias de provedores, para além dos mencionados nos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet (respectivamente, o provedor de conexão à internet e o provedor de aplicações de internet)? O artigo 19 seria uma norma prioritariamente estruturada para contemplar as atividades das redes sociais virtuais e de seus usuários? Em que medida a estrutura do provedor de aplicações, sua influência sobre o discurso público e sua possibilidade de exercer um controle prévio sobre os conteúdos postados pelos seus usuários podem impactar o tratamento legal a ele conferido? Como deverá ser desenhado o sistema de deveres e responsabilidades dos provedores de aplicações de internet? II) Acerca do regime de responsabilidade civil aplicável, parece adequado tecer as seguintes questões: a possibilidade de análise e edição do conteúdo de terceiro poderia tornar o provedor de aplicações, em alguma circunstância, corresponsável em caso de dano? A remoção de conteúdos questionados só deverá ocorrer após ordem judicial específica, como regra? Não são incomuns as críticas e falas diversas e plurais nas redes. Como situações com um grau maior de subjetividade devem ser tratadas pelos provedores e pelo Poder Judiciário? Não se pode perder de vista que entre as cores branca e preta, há vários tons de cinza... Quais exceções legais ao artigo 19 do MCI poderiam ser consideradas legítimas no ordenamento jurídico brasileiro? Seria possível aplicar outras exceções ao artigo 19, para além dos artigos 21 e 19, parágrafo 2º, do Marco Civil da Internet, os quais tratam, respectivamente, da divulgação não autorizada de imagens íntimas e de conteúdo protegido por direitos autorais? Essa é uma discussão extremamente interessante em nosso debate. É necessário frisar que a responsabilização dos agentes deve se dar de acordo com as suas atividades (Art. 3º, VI, do MCI). Portanto, eventual regime de responsabilidade civil deverá ser desenvolvido com base no serviço efetivamente prestado pelo provedor em questão, nos sujeitos envolvidos na relação e no poder e gerência que ele possui sobre o conteúdo que é disponibilizado em seu ambiente. O artigo 19 do Marco Civil da Internet - já aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em diversas situações que envolveram, especialmente, redes sociais e conteúdos lesivos a terceiros publicados por seus usuários - traz relativo equilíbrio ao regime de responsabilidade civil de provedores de aplicações de internet por conteúdo de terceiro, bem como segurança jurídica acerca da regra aplicável à relação. No caso, conforme o artigo 19 do Marco Civil, a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet será subjetiva por omissão e derivará do não cumprimento da ordem judicial que determinou a remoção do conteúdo danoso (inserido por terceiro em seu ambiente). Foi estipulado que a retirada de conteúdo deverá ocorrer no âmbito e nos limites técnicos do serviço prestado, orientação importante que considera as peculiaridades de cada provedor. Ao colocar o Poder Judiciário como instância legítima para definir o que é ou não um conteúdo ilícito, passível de remoção, o MCI determinou que a responsabilidade civil do referido provedor não nasceria imediatamente após o descumprimento de uma notificação privada / extrajudicial. A lei 12.965/14 não impede que os provedores de aplicações possam determinar requisitos para a remoção direta de conteúdos em seus termos e políticas de uso e atendam a possíveis notificações extrajudiciais enviadas, quando serão responsáveis diretamente pela remoção e/ou filtragem do material. Ainda que essa perspectiva pareça interessante em certos casos, como nas questões envolvendo desinformação, deve-se evitar que os provedores abusem de suas posições e que venham a filtrar ou realizar bloqueios a conteúdos sem uma justificativa plausível (que deve estar de acordo com as normas constitucionais) e sem que sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa às partes ali envolvidas.  Na ausência de um sistema adequado de responsabilização, serão enfrentadas consequências negativas pela sociedade, como, por exemplo, a diminuição da confiança de usuários e intermediários no uso e no desenvolvimento de ferramentas de comunicação na Internet, além do estímulo de ações governamentais e de agentes privados a estabelecerem mecanismos de controle e censura na Internet, o que levaria a processos arbitrários de remoção de conteúdos e excessiva vigilância dos cidadãos.   III) Diversos aspectos de nossa vida e sociedade vêm sofrendo interferências de algoritmos e serviços de plataformas. O mercado de tecnologia e seus sujeitos estabelecem continuamente tendências e necessidades, especialmente diante da concentração de players e atividades por eles desenvolvidas. Há, cada vez mais, tanto a análise e predição de comportamentos quanto a captura de nossa atenção. Nesse cenário, muito se tem questionado acerca do papel das mídias sociais e dos canais de comunicação no debate público. Acerca da moderação de conteúdos e do desenvolvimento de políticas internas e normas legais, cabe indagar: quais parâmetros as plataformas deveriam utilizar na elaboração de seus termos de uso e na sua atividade de moderação? Como tornar a moderação de conteúdo mais objetiva, precisa e contextual, especialmente nos casos que envolverem disseminação em massa de desinformação? Como desenvolver um processo mais responsivo, transparente e participativo?  Parece interessante, no cenário atual, que o controle acerca da moderação de conteúdos não seja integralmente transferido aos agentes de mercado. Cabe também ao Estado, às instituições públicas democráticas e entidades independentes apontarem premissas base e orientarem - de forma geral e mínima - plataformas e intermediários por meio, por exemplo, de políticas públicas, reuniões multissetoriais, resoluções e normas legais. Nesse sentido, debate-se hoje a possibilidade de uma autorregulação regulada. Haveria, assim, apoio a uma auto-organi­zação dos agentes privados, de acordo com a expertise e as dinâmicas próprias do mercado, mas também o estabelecimento de parâmetros gerais de inte­resse público importantes ao Estado democrático. Proteger os direitos humanos no ambiente digital mostra-se urgente e necessário, por meio de normas equilibradas e aplicáveis de forma ampla às diversas problemáticas. Normas e interpretações casuísticas, de viés autoritário ou meramente importadas sem um debate consistente, devem ser afastadas. É, aqui, que a discussão ampla, séria e acadêmica apresenta o seu relevo. Traçar as diretrizes desse debate é tarefa fundamental e exige uma reflexão constante, alinhada ao desenvolvimento tecnológico e às mudanças sociais, políticas e culturais. __________ 1 "Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação."
Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute a (relevante) possiblidade de compensação in re ipsa da perda indevida de tempo no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO, a teoria e os(as) julgadores(as) das instâncias ordinárias debatem há tempos a autonomia e a cumulação da compensação por lesão ou "dano" temporal. Obviamente, não é fato imputável ao STJ, pois este depende de Recursos Especiais manejados com observância dos requisitos constitucionais. Nesse contexto, a ministra Nancy Andrigui alertou em voto sobre o desvio produtivo que o "dano temporal" ainda não alcançou aquele Tribunal: "(...) não é objeto do presente recurso especial o exame da existência, no direito brasileiro, do chamado dano temporal, tampouco a sua possível indenização através do regime da responsabilidade civil prevista no Código Civil" (STJ, voto REsp n. 2.017.194/SP, j. 25/10/2022, g.n.). Na teoria, sinteticamente1, a proteção do tempo nasce como "novo" substrato fático dos danos morais em sentido amplo (extrapatrimoniais) em especial por André Gustavo Corrêa de Andrade2 (2005). Com efeito, a proteção temporal tem sua real expansão a partir dos estudos de Marcos Dessaune (2011), na popular "teoria do desvio produtivo". Contudo, na ocasião, Dessaune apresentou um óbice à emancipação e autonomia compensatória da tutela temporal: "(...) o 'tempo' (...) merece tratamento jurídico especial que o destaque, fora da mencionada cláusula geral de tutela da personalidade - a qual provavelmente aprisionaria o desvio produtivo a um mero 'novo fato gerador de dano moral'(...)".3 Desse modo, no avançar jurisprudencial da tutela do tempo pela responsabilidade civil, tal proteção surgiu como "ampliação dos casos de dano moral" e um "filtro relativo aos meros aborrecimentos", os quais muitas vezes impendem justas compensações morais - afirmou Flávio Tartuce4. Nesse cenário - com olhar protetivo aos mais frágeis e muito além da famigerada "guerra de las etiquetas" -, é possível avançar no abrandamento da vulnerabilidade temporal5 via responsabilidade civil, especialmente ao visualizar a conduta do fornecedor de impor a perda indevida do tempo como um fato transvestido de antijuridicidade - ou seja, de um "pressuposto do dever de reparar", uma palavra hábil para "adjetivar a conduta do causador do dano", como registrou Marcos Catalan6. Para sanear a questão do "aprisionamento" da lesão temporal como "mero novo fato gerador de dano moral", por volta de 20137-8 foi iniciado o debate sobre a autonomia da compensação da lesão temporal, sob o nome "dano temporal" para - aproveitando o "know-how" do STJ acerca da autonomia da compensação das lesões ou "danos" estéticos -, conferir maior visibilidade à proteção do tempo e, desse modo, alcançar maiores efeitos pedagógicos no mercado de consumo. Apesar da "timidez" da proposta interpretativa sobre a autonomia compensatória do tempo, o Poder Judiciário de 1º grau passou a dar, paulatinamente, feedbacks à tese. Nesse campo, o Juiz Fernando Antônio de Lima, em 28.8.2014, tangenciou a autonomia da compensação da lesão temporal: "Isso traduz hipótese de reparação, autônoma, se a parte-autora assim o desejasse, ou por danos morais, nos termos pleiteados na inicial em razão da perda de tempo produtivo ou útil direito (...)" (Jales-SP, Processo n. 0005804-43.2014.8.26.0297). Ou seja, o juiz paulista compreendeu que o pedido voltado à compensação autônoma poderia ser analisado, acaso fosse formulado. Em 17.12.2014, a Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) propôs ação em prol de consumidor e, pela técnica da cumulação de pedidos, pleiteou as compensações por lesões morais e temporais. Em 19.8.2019, o Juiz Paulo Benevides dos Santos julgou procedentes os pedidos cumulados, condenando o fornecedor bancário ao pagamento de 20 (vinte) salários mínimos por danos temporais e 10 (dez) salários mínimos referentes aos danos morais. Pontuou ainda o juiz: "Aplica-se a ambos a súmula 362 do STJ (...); estende-se o raciocínio para os danos temporais, não obstante ter-se reconhecido sua autonomia em relação aos danos morais, pelo fato de se tratar de dano de natureza extrapatrimonial" (Maués-AM, Processo n. 0001622-07.2014.8.04.5800). Por outro lado - antes mesmo da condenação supracitada cumulando o dano moral "em sentido estrito" (da dor psicológica) com o "dano" temporal -, o juiz Rafael Cró homologou acordo nos autos com a mesma referida cumulação. Ao sentenciar, ponderou: "O acordo celebrado preenche todas as formalidades legais. Por oportuno, ressalta-se a posição deste Magistrado no sentido de que além de ser possível a reparação pelos danos moral e material, há nítida autonomia na reparação do dano temporal" (Maués-AM, Processo n. 0000265-21.2016.8.04.5800, j. 11.8.2016). Em sentença de 28.9.2020, a Juíza Maria Eunice Torres do Nascimento - por pedido expresso e cumulado da Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) em prol de consumidor de 3.9.2018 -, condenou expressamente o fornecedor à compensação de danos morais (em dez mil Reais) e de danos temporais (em cinco mil Reais). A juíza, ao lado dos elementos geradores do clássico conceito de "dano moral" (sentido estrito), ressaltou "a perda desarrazoada do tempo útil do consumidor configurador de dano temporal" (Manaus-AM, Processo n. 0640771-53.2018.8.04.0001). Desse modo, o Judiciário brasileiro vem alertando sua posição ampliativa da proteção do tempo do consumidor. Mas não parou por aí... O juiz Fernando da Fonseca Gajardoni tem a lavra do (possivelmente) 1º acórdão de turmas recursais a reconhecer a compensação autônoma dos "danos" temporais. Assim pronunciou-se: "Há no caso, verdadeiro dano temporal. (...) A perda do tempo, por si só, não enseja a violação à psiquê humana. Todavia, o seu desperdício em vão, por causa de outrem, deve ser protegido pelo ordenamento jurídico". (1ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal - Franca/SP - Recurso Inominado Cível n. 1000847-46.2020.8.26.0434, j. 30.11.2020). Durante o período exposto, a teoria sobre a proteção do tempo avançou. Marcos Dessaune9, por exemplo, publicou duas edições de seu clássico livro aproximando o "dano por desvio produtivo" do "dano existencial"10, expandindo ainda o debate para o Direito do Trabalho. Por outro lado, a teoria produzida na UERJ, em especial por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, alertou sobre a problemática do termo "dano" temporal lançando sua opção técnica por "lesão temporal". Noutro passo, os estudos da UFSC, por Daniel Deggau Bastos12 e Rafael Peteffi da Silva13, apontam o cuidado teórico para não se criar uma nova (e desnecessária) categoria no mesmo nível que os danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Na UFRGS, destaque especial à Laís Bergstein14, debatendo o "menosprezo planejado". Entre a UFAM e UFSC, Alexandre Morais da Rosa15 e Maia ressaltam que a "opção" por "lesão temporal" ou "dano temporal" depende de escolhas teóricas por um conceito "amplo" ou "restrito" de "danos morais". O STJ, v.g., possui tendência à especificação dos "danos" extrapatrimoniais em "subcategorias" - vide o verbete n. 387 de sua Súmula citando o "dano estético". Em tal período, o Poder Legislativo também caminhou. No Amazonas, editou-se o pioneiro "Estatuto do Tempo do Consumidor" (Lei Amazonense n. 5.867, de 29.4.2022; autor: dep. estadual João Luiz). A lei amazonense reavivou os debates legislativos e inspirou a Câmara dos Deputados (PL n. 1.954, de 8.7.2022; autor: dep. federal Carlos Veras). No Senado Federal há ainda o PLS n. 2.856, de 24.11.2022 (autor: Sen. Fabiano Contarato). O PLS citado recebeu a atenção de Alexandre Freitas Câmara (TJRJ), inclusive abarcando críticas16 à terminologia "desvio produtivo". Recentemente, em meio à "quentura" do debate, a solução do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) se voltou mais à substância constitucional-protetiva do consumidor (art. 5º, XXXII e art. 170, V) que à forma. Nos dizeres do desembargador Paulo Lima - relator do 1º acórdão de Tribunal catalogado a tutelar autônoma e cumulativamente as compensações por danos morais e temporais -, o importante está em compensar, de algum modo, a lesão temporal sofrida (TJAM, Ap. Cível n. 0679992-38.2021.8.04.0001, j. 9.2.2023). Nessa senda, inobstante a autonomia (e cumulação) compensatória da perda indevida de tempo ainda esteja longe do STJ, a Justiça Ordinária do Brasil não está "fechando os olhos" à vulnerabilidade temporal. Por outro lado, no momento, é mais urgente à responsabilidade civil e ao direito do consumidor a observação de como o Tribunal da Cidadania cumprirá, como intérprete da legislação federal, o mandamento constitucional de proteção do consumidor (inclusive através da dimensão temporal da vida) ao fixar tese no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO - atenção! __________ 1 São muitas as autoras e os autores atentos à evolução do debate sobre o tempo humano, alguns destaques, dentre outros: (1) BORGES, Gustavo. VOGEL, Joana Just. O dano temporal e sua autonomia na Responsabilidade Civil. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021; (2) FARIAS, Cristiano de Farias. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022; (3) GAGLIANO, Pablo Stolze. Responsabilidade Civil pela perda do tempo. Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, COAD, p. 29-32, Mai. 2013; (4) BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Juspodivm, 2021; (5) GUGLINSKI, Vitor Vilela. O Dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. Revista de Direito do Consumidor, nº 99, São Paulo: RT, Mai.-Jun. 2015; (6) BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019; (7) CORRÊA, Bruna Gomide. Dano ao tempo do consumidor: autonomia do dano temporal e o direito fundamental de defesa do consumidor. Londrina(PR): Thoth, 2022; (8) AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade Civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Plácido, 2018; entre outros. 2 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral em caso de descumprimento de obrigação contratual. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29, 2005, p. 134-148 3 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Ed. RT, 2011, p 133-135, g.n.. 4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 423. 5 Sobre vulnerabilidade temporal: MAIA, Maurilio Casas. Vulnerabilidade Temporal e Estatuto do Tempo do Consumidor (ETC): Comentário à Lei Amazonense 5.867/2022 - um subsistema protetivo em diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 142, p. 307-326, Jul.-Ago. 2022. 6 CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. 2ª ed. Idaiatuba-SP: Foco, 2019, p. 41. 7 MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal, desvio produtivo e perda do tempo útil e/ou livre do consumidor: Dano cronológico indenizável ou mero dissabor não ressarcível? Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, Mai. 2013p. 26 e 28. 8 MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 92, p. 161-176, Mar.-Abr. 2014. 9 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória (ES): Edição Especial do autor, 2017; ______. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3ª ed. Vitória (ES): Edição do Autor, 2022. 10 Sobre o dano existencial: SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do Direito Civil: Estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 223. 12 BASTOS, Daniel Deggau. Responsabilidade civil pela perda do tempo: o dano ressarcível e as categorias jurídicas indenizatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 13 BASTOS, Daniel Deggau. Silva, Rafael Peteffi da. A busca pela autonomia do dano pela perda do tempo e a crítica ao compensation for injury as such. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 2, 2020. 14 BERGSTEIN, Laís. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: RT, 2019. 15 ROSA, Alexandre Morais da. MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal na Sociedade do Cansaço: uma categoria lesiva autônoma? In: BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019, p. 27-46. 16 CÂMARA, Alexandre Freitas. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão.
As repercussões dos múltiplos usos das técnicas de reprodução humana assistida no campo da responsabilidade civil são infindáveis, formando um mosaico de situações jurídicas existenciais, patrimoniais e dúplices1 que permitem a configuração de danos indenizáveis, que, de forma didática e sintética, podem ser categorizadas em três eixos centrais: (i) relações entre médicos, clínicas ou centros de reprodução assistida e seus pacientes, de índole existencial, eis que a tutela do corpo e da saúde se colocam em cena, mas com importantes reverberações patrimoniais, visto que geralmente são técnicas que envolvem custos dos mais diversos; (ii) impactos no direito ao planejamento familiar, uma vez que envolve a elegibilidade às técnicas e a formação de entidades familiares com o nascimento da futura prole; e, (iii) as questões relativas à criopreservação de embriões excedentários, incluindo a sua qualificação e destinação. A rigor, tais procedimentos conformam um conjunto de técnicas paliativas que permitem a concretização do projeto parental por aqueles que não podem ter filhos biologicamente vinculados naturalmente, seja em razão da infertilidade ou da elegibilidade individual ou por casais homoafetivos ou transgêneros. A inexplicável e persistente inexistência de lei específica sobre o tema no Brasil aprofunda os dilemas e as inseguranças em relação ao uso das técnicas de reprodução assistida. Com sua contumaz percuciência, Stefano Rodotà pontua que a responsabilidade civil é "como uma campainha de um alarme", uma vez que "se presta muito a seguir as novas tendências determinadas em uma organização social, e que oferece a elas uma primeira forma de tutela, que demandariam uma intervenção do legislador, que ainda não estão maduras e percebidas pela sociedade e pelos parlamentos."2  Decerto que a variada cartilha de problemas que rondam a reprodução humana assistida, ainda que infiram situações delicadas, não permite mais afirmar que não estariam devidamente sazonadas para deslinde pelo legislador. Pelo contrário, o "apagão" legal inunda cada vez mais o Poder Judiciário com demandas reparatórias, que poderiam ser evitadas com uma disciplina jurídica equilibrada, que contemplasse os múltiplos interesses e previamente balizassem os valores envolvidos a partir da moldura imposta pela legalidade constitucional. A responsabilidade civil no cenário atual funciona mais como um "extintor de incêndio" do que "campainha de alerta", de viés nitidamente paliativo, cuja tendência é o agravamento nos próximos anos, uma vez que inexiste mobilização congressual voltada à aprovação de uma lei sobre a matéria e mesmo que tal iniciativa se desenhasse nos próximos anos a composição da vigente legislatura não parece ter a sensibilidade necessária para legislar adequadamente sobre o assunto. As episódicas regras dispersas no direito brasileiro (como, por exemplo, o art. 1.597 do Código Civil, e o art. 5º, da Lei de Biossegurança) e as normas de caráter administrativo (como o Provimento n. 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que trata entre outros temas sobre o "registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida") e deontológico, estas editadas pelo Conselho Federal de Medicina, revelam a fragilidade das relações jurídicas e os dramáticos impasses frutos da escassa disciplina jurídica sobre a temática. Desde 1992, resoluções são publicadas pelo órgão fiscalizador com o objetivo de balizar as condutas médicas e resguardar sua atuação, embora, na prática, constituam o principal referencial ético, com repercussões no campo jurídico, sobre a reprodução humana assistida no Brasil, o que descortina a hipertrofia legislativa do CFM em temas bioeticamente sensíveis e carentes de produção legal no âmbito do Poder Legislativo brasileiro3. A acelerada sucessão de atos normativos nos últimos anos demonstra a urgente necessidade de regulamentação do tema e evidencia o déficit democrático na tomada de decisões sobre os mais variados dilemas que permeiam a procriação humana artificial.4 A Resolução n. 2.320, de 1º de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina, repete diversas disposições já presentes nas resoluções anteriores, mas inova ao suprimir a disciplina de pontos importantes como, por exemplo, o descarte de embriões, antes, denominados abandonados, o que, a rigor, parecia afrontar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Por outro lado, permanece o limite etário de 50 anos às candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida, a vedação da redução embrionária na hipótese de gestação múltipla, a limitação da transferência de embriões de acordo com a idade das mulheres, bem como a proibição do caráter lucrativo da doação de gametas ou embriões e da cessão temporária de útero. Com isso, velhas questões ressurgem e geram impasses desconfortáveis para os pacientes de tais técnicas, notadamente no campo do diagnóstico genético pré-implantacional, da atual possibilidade de conhecimento dos doadores de gametas ou embriões com parentesco até o 4º (quarto) grau, desde que não incorra em consanguinidade, e, por fim, a destinação dos embriões após divórcio, separação, dissolução da união estável e falecimento. Sob o ângulo da relação entre clínicas, centros, serviços, médicos e pacientes envolvidos na aplicação e uso das técnicas de reprodução assistida, visualizam-se os elementos caracterizadores de uma relação de consumo que atrai, por conseguinte, a incidência da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Cuida-se, por óbvio, de relação terapêutica na qual, além do diploma consumerista, incidem as normas éticas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina, em especial, úteis para fixação dos deveres imputados aos médicos envolvidos, eis que, nos termos do art. 14, § 4º da Lei Protetiva, a responsabilidade dos profissionais liberais é de natureza subjetiva. Desse modo, à luz dos arts. 186 combinado com 927 do Código Civil, é indiscutível que a aferição da culpa é essencial para fins de configuração do dever de indenizar. Por outro lado, cabe destacar que o deslocamento da culpa subjetiva, calcada na análise do clássico tripé negligência, imprudência e imperícia, em viés psíquico, cede espaço, em especial em relação aos profissionais liberais, para a denominada "culpa normativa", extraída do comportamento esperado pelos pacientes a partir dos vetores ditados pela boa e ética prática médica, notadamente em situações nas quais há normas deontológicas previstas. Nesse cenário, em especial, as clínicas, centros ou serviços são responsáveis pelo "controle de doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e pelo descarte de material biológico humano dos pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida". Deve, ainda, manter registro permanente das "gestações e seus desfechos (dos abortamentos, dos nascimentos e das malformações de fetos ou recém-nascidos), provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões"; "exames laboratoriais a que são submetidos os pacientes, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças" (Resolução n. 2.320 do CFM). Em relação, portanto, às clínicas, centros e serviços de reprodução humana assistida, ressalta-se que a responsabilização civil é de ordem objetiva, uma vez constatada a falha na prestação do serviço, independentemente de culpa. Cristaliza-se, ademais, a imputação de deveres específicos por meio da aludida resolução, além dos deveres atinentes à segurança, informação e diligência na prestação de tais serviços especializados. Instigante reflexão, com profunda implicação no campo da responsabilidade civil, relaciona-se com a natureza da obrigação concernente ao procedimento da reprodução assistida - se de meios ou de resultado. A rigor, a complexidade que envolve tais técnicas permite a exigência da máxima diligência dirigida ao emprego adequado das técnicas e do esclarecimento necessário em todos as etapas que envolvem os ciclos artificiais da procriação. Entretanto, a trajetória de mercantilização da reprodução artificial evidencia que o sonho de ter filhos foi capturado pela lógica do lucro,5 o que descortina práticas publicitárias que margeiam a ilicitude e mascara riscos que atingem especialmente mulheres na busca pela concretização do desejo maternal. Esse cenário desperta e incentiva expectativas desarrazoadas, descompromissada com os dados estatísticos, facilmente frustráveis, o que impõe identificar, com base na informação prestada na relação médico-paciente, mas também nos anúncios publicitários, o enevoado limite entre a obrigação de diligência e a de resultado, mas, em especial, pela violação do dever de informação e falhas no consentimento livre e esclarecido.  Cabe sublinhar que o "mercado" da reprodução assistida envolve recursos financeiros significativos, como já acentuado, o que inclusive descortina o problema do acesso da população que não tem condições econômicas e que recorrem ao Poder Público6 ou aos planos privados de saúde. Inclusive, após intensa controvérsia sobre o tema do custeio das despesas pelos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do tema repetitivo 1067, firmou tese no sentido de, salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear tratamento médico de fertilização in vitro. A questão submetida ao julgamento residiu na definição em relação à obrigatoriedade ou não de cobertura, pelos planos de saúde, da técnica de fertilização in vitro.7 Para além da questão atuarial e jurídica, é fato que a decisão reforça a exclusão de um conjunto de pessoas que permanecerão com dificuldades e barreiras para a concretização do projeto parental, bem como não colocou em destaque a fundamentalidade do direito ao planejamento familiar. Se tais questões se revelam extremamente intrincadas, em especial se considerando o forte aumento pela busca das técnicas procriativas artificiais no Brasil,8 não restam dúvidas que a frustração ou desistência do projeto parental despertam como situações potencialmente lesivas a direitos fundamentais dos envolvidos, não raras vezes, configurando como verdadeiras violações ao direito ao planejamento familiar hábeis a serem suas pretensões indenizadas em razão do injusto dano provocado. A colisão de princípios constitucionais deflagra meticulosa atividade ponderativa trilhada pelo intérprete no itinerário que revele a máxima efetividade dos valores maiores em jogo. Convém identificar duas hipóteses para melhor enquadrar a responsabilização civil dos atores em cena. Em primeiro lugar, eclode a questão do destino dos embriões excedentários após o divórcio, separação, dissolução da união estável ou morte de um ou ambos os parceiros9. A relevância do tema impõe que o destino seja acordado entre o casal ainda durante a preparação para a realizações dos ciclos de reprodução assistida e antes da geração dos embriões por meio de manifestação de vontade nos termos de consentimento livre e esclarecido, específicos e revogáveis, por excelência, e, preferencialmente, renovados a cada tentativa, inclusive com a expressa declaração do desejo de doação. Vale salientar que a vigente Resolução n. 2.320/2022 estabelece que o consentimento livre e esclarecido é obrigatório e deve abranger todos os aspectos médicos, biológicos, jurídicos e éticos, de forma detalhada.10 Indispensável, portanto, que tais documentos sejam específicos sobre o destino dos embriões nas hipóteses mencionadas, sob pena de obtenção de um consentimento frágil a partir de uma informação inadequada e entremeada entre tantos outros dados e autorizações, conforme determina a própria resolução em seu item V.3.11 Por consequência, qualquer falha na obtenção segura e pormenorizada do consentimento gera a responsabilidade da clínica ou centro de reprodução assistida, de forma objetiva, uma vez que configurado a violação ao dever de informação, inclusive, com sensíveis repercussões que, a depender do caso, devem ser levados em consideração no momento da quantificação do dano. A revogabilidade do consentimento a qualquer tempo, desde que antes da implantação do embrião, provoca os mais calorosos debates em razão da possibilidade de desistência de um dos parceiros, geralmente causada em razão do divórcio ou da dissolução da união estável. Tal situação é tributária da intrínseca anatomia dos atos de autonomia existencial, uma vez que o consentimento há de ser contemporâneo, bem como suas repercussões impactem na esfera de interesses de terceiros, cuja titularidade sequer se iniciara, eis que pessoa futura, ainda a ser concebida e eventualmente nascida com vida. Em célebre caso, o ex-noivo processou a atriz colombiana Sofia Vergara para obter a custódia dos embriões e implantá-los em gestante substituta. A noticiada batalha judicial foi favorável à atriz, uma vez que a decisão determinou que os embriões apenas poderiam ser implantados mediante sua autorização. No Brasil, já há decisões judiciais favoráveis ao descarte de embriões excedentes no processo de fertilização in vitro na hipótese de divórcio, ainda que um dos parceiros tenha previamente manifestado a vontade de o embrião ser custodiado pelo outro.12 A situação é ainda mais dramática quando um dos parceiros, por motivos médicos, não mais pode ter filhos biologicamente vinculados, a não ser por meio do uso do embrião crioconservado. Discute-se se tal celeuma teria os rumos alterados neste caso, prevalecendo o direito ao planejamento familiar da mulher ou do homem impossibilitado de ter filhos biológicos por outros meios. A revogação do consentimento é um ato legítimo e compatível com a autodeterminação existencial, que exige sua atualidade para sua efetivação. Desse modo, é perfeitamente possível a desistência de um dos pares que haviam antes por meio de ciclos de fertilização in vitro gerado embriões excedentários e manifestado sua vontade para algum fim legalmente permitido. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já examinou caso no qual entendeu como legítima a posterior recusa do ex-parceiro em autorizar o uso dos embriões após o término do relacionamento, mas que as consequências patrimoniais negativas do ato deveriam ser indenizadas, condenando-o em arcar com metade do custo do tratamento, uma vez que à época consentiu com a realização do procedimento, ainda que verbalmente. No caso em questão, uma mulher, após relacionamento extraconjugal mantido por aproximadamente 02 anos e planos de constituírem família, inclusive com futuros filhos, contratou os serviços de uma clínica de reprodução assistida, tendo suportado integralmente os custos. Após o término da relação, o parceiro revogou seu consentimento, impedindo o prosseguimento do tratamento. Inconformada, a mulher ajuizou ação declaratória com pedido de danos materiais e morais, argumentando, ainda, o fato de ter 46 anos e que a gestação poderia acontecer até completar os 50 anos. Observa-se, portanto, que não houve dano moral ressarcível na hipótese de posterior desistência após o término da relação afetiva, havendo discussão apenas em relação aos eventuais danos patrimoniais devidamente comprovados.13 Nessa linha, não parece razoável sequer invocar a possibilidade de indenização por perda de uma chance, uma vez que a revogação do consentimento antes da implantação no útero da mulher não configura ato ilícito e nem interrompe uma vantagem legitimamente esperada ou evita um prejuízo. A responsabilidade civil pela perda de uma chance descortina novas hipóteses fáticas deflagradoras do dever de indenizar por meio do reconhecimento de lesão injusta a um bem jurídico. Diante disso, não parece razoável que a possibilidade de revogação de uma situação existencial desperte uma frustração de acordo com premissas probabilísticas de uma chance séria e real, uma vez que a desistência não configura - permita-se a insistência - ato ilícito. A taxa de sucesso das técnicas de reprodução assistida, como já afirmado, é reduzida e a criopreservação de embriões, independentemente do destino acordado entre o casal, não gera legítima expectativa de concretização do projeto parental. Vale gizar que a possibilidade do nascimento de um futuro filho por meio de técnicas de reprodução assistida não caracteriza uma chance séria e real e nem é possível comprovar que tal resultado poderia ser esperado, salvo se por falha no dever de informação da equipe médica ou erro de diagnóstico, o que altera o bem jurídico lesado e os fundamentos da responsabilização civil. O pleito de indenização pelo insucesso da reprodução assistida já alcançou o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do AREsp. 178.254, um casal pleiteou a indenização por danos morais e materiais por imprudência e negligência do médico na condução do procedimento de reprodução assistida. Após 4 anos de tentativas sem êxito, o casal procurou outro médico que prescreveu o exame de cariotipagem, considerado de praxe em tais casos, no qual restou constatada uma anomalia em dois cromossomos. A alegação de que a conduta médica negligente impactou na decisão do casal de continuar com as tentativas não logrou sucesso na Corte Superior, que manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que não houve omissão e os fundamentos do acórdão bastariam a justificar, encontrando óbice na súmula 7 do STJ.14 A reprodução humana assistida é tema que fascina, subverte com a ilusória imutabilidade da ordem natural e comprova a dessacralização da natureza. Não por outra razão, desafia, no campo da filiação, o estabelecimento da paternidade e da maternidade, passando em revista institutos centrais do direito das famílias e sucessório. Entretanto, repousa nos domínios da responsabilidade civil os fronteiriços dilemas da utilidade e dos limites do remédio indenizatório, que reverbera um nítido caráter paliativo, uma vez que embora possível, nem sempre se mostra como o antídoto adequado diante da frustração para os impasses dos desejos parentais. Mesmo com o progresso biotecnológico nem sempre conseguimos ser o timoneiro de nossas existências e nem sempre o recurso à responsabilidade civil servirá como instrumento satisfatório para compensar a violação ao projeto parental diante da "perda de uma chance" pela desistência de um dos envolvidos diante da revogação do consentimento ou a frustração em razão do descarte indevido ou falha do dever de informar a respeito da viabilidade de concretização do desejo de ter filhos, de alguma forma, biologicamente vinculados. __________ 1 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida e a proteção da pessoa humana nas situações jurídicas dúplices. In: ROSELVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. 2. ed., Indaiatuba, SP: Foco, 2021. 2 Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./set., 2022, p. 287-288. 3 As alterações das resoluções que disciplinam as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida vêm ocorrendo desde 1992, na seguinte ordem: Resolução CFM nºs 1.358/1992; 1.957/2010; 2013/2013; 2.121/2015; 2.168/2017; 2.283/2020, 2.294/2021 e 2.320/2022. 4 Sobre o tema, seja consentido remeter a PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. A reprodução humana assistida e a atuação do Conselho Federal de Medicina: as repercussões da nova resolução 2.294/21. In: DALSENTER, Thamis (coord.). Migalhas de Vulnerabilidade, jul., 2021. Disponível aqui. Acesso em 26 set. 2022. 5 Cf. FROENER, Carla; CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, SP: Foco, 2021, passim. 6 O Superior Tribunal de Justiça condenou o Estado do Rio de Janeiro a custerar tratamento de fertilização in vitro de uma mulher com dificuldade uma mulher que tinha dificuldade para engravidar em razão da endometriose e obstrução das trompas, mas não podia pagar pelos procedimentos. V. STJ, REsp. 1.617.970-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, jul. 20 set. 2016. Em sentido contrário, o STJ ao analisar agravo regimental no REsp. 1.471.559 não reverteu a decisão do TJRJ que concluiu que não é razoável obrigar o Estado ao alto gasto com o tratamento. 7 Recursos Especiais ns. 1.822.420/SP, 1.822.818/SP e 1.851.062/SP. 8 Segundo dados do 13º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões - SisEmbrio, criado pela Resolução de Diretoria Colegiada/Anvisa RDC nº 29, de 12 de maio de 2008, em 2019 foram realizados 44.705 ciclos de fertilização in vitro, o que revela um aumento de 3,7% em relação ao ano anterior. 9 Cf. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. Os desafios da reprodução assistida post mortem e o alcance do testamento genético: ampliando as formas de disposição do próprio corpo após a morte. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Org.). Arquitetura do planejamento sucessório - Tomo III. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 159-174. 10 Resolução n, 2.320/2022, item I.4: "O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a  técnica  proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão entre as partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida". 11 "Antes da geração dos embriões, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino dos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los". 12 De acordo com a decisão da 5ª Turma Cível do TJDFT, que manteve a sentença que julgou procedente o pedido de descarte dos embriões após o divórcio, "a vontade procriacional pode ser alterada-revogada de maneira legítima e válida até a implantação do embrião crioconservado". Disponível aqui. Acesso em 25 jan. 2023. 13 TJMG, Ap. Civ. 1.0000.19.073065-5/001, 16ª Câm. Civ., Rel. Marcos Henrique Caldeira Brant, julg. 22 jan. 2020. 14 AREsp. N. 178-254-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 23 mai. 2012.
Introdução  A relação entre médicos e pacientes, consoante às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente, que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. Portanto, ao tentar resguardar o direito dos pacientes e garantir uma maior segurança jurídica, a atividade, o entendimento majoritário da doutrina e a jurisprudência brasileira enquadram o ofício médico como uma prática de consumo. Contudo, as modificações dessa relação tão singular fizeram com que o paciente conquistasse os valores da dignidade, autonomia e liberdade frente à proteção da sua saúde em sua integralidade. Diante disso, o elemento essencial da atividade médica e o elemento essencial da atividade consumerista se distinguem.  Breve abordagem histórica da relação médico-paciente                O cuidado à beira do leito e a fidúcia entre médicos e pacientes, segundo Vasconcelos (2020), já se fazia presente na Antiguidade, quando havia uma forte crença na ligação entre os humores da saúde humana e os humores dos deuses, época em que o exercício médico adotava meios peculiares de apresentação de diagnóstico e tratamento para a tentativa da cura. Por meio da observação física do paciente, seguida do assinalar da provável existência de doença que - enquanto mera consequência de atos anteriores - carecia da busca pelos erros cometidos pelo padecente com o intento de identificação da entidade mítica contrariada a que se deveria recorrer, evocando-se, a ela, a restauração da saúde. (VASCONCELOS, 2020) No momento atual da relação, faz-se necessário observar a vulnerabilidade do paciente. O ser vulnerável é um sujeito com susceptibilidade de ser ferido e um ser vulnerado é aquele que antes era susceptível, agora, efetivamente ferido. Segundo Patrão Neves (2006), a vulnerabilidade possui o sentido adjetivo e subjetivo, ambos formalmente na acepção do princípio. A vulnerabilidade no sentido subjetivo refere-se à condição humana, o reconhecimento da sua finitude, sendo uma condição inafastável. Já no sentido adjetivo, caracteriza-se por circunstâncias ou características "temporárias", podendo ser afastável. Como também, existe a vulnerabilidade social, onde um contexto torna grupos sociais desprotegidos, desamparados e/ou desfavorecidos, seja por exclusão social, dificuldade de acesso aos avanços e benefícios advindos do desenvolvimento, por estigmatização e vivências de preconceitos históricos, ou por uma redução de possibilidades de resguardo de direitos. E a vulnerabilidade enquanto princípio ético universal, disciplinado pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005, p.7). Desse modo, a relação entre médicos e paciente, assim como às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa então, a vivenciar a respeito e reconhecimento da sua vulnerabilidade e valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A atual aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na atividade médica A relação médico-paciente, como observamos anteriormente, modificou-se como passar do tempo, assim, faz-se necessária identificar, inicialmente, a natureza jurídica desta relação, por existir uma correlação legal e interpretativa que envolve a responsabilidade civil; fazendo-se necessário, o estudo comparativo, dos integrantes dessa atividade obrigacional no universo legislativo eis que há divergência jurisprudencial sobre este vínculo. Atualmente, há uma corrente amplamente majoritária, que entende pela incidência do Código de Defesa do Consumidor à relação paciente-médico, que conforme Nilo (2020, p.83) preceitua, está sob dois argumentos: a) a subsunção dos conceitos de paciente e médico, aos conceitos de consumidor e fornecedor trazidos pelo artigo 3º do diploma consumerista; e b) a vulnerabilidade do paciente, cuja proteção encontraria guarida nesse diploma protetivo, em razão do Princípio da Vulnerabilidade, adotado expressamente pelo artigo 4º, inciso I, do Código (BRASIL, 1990). Em contrapartida, existe uma segunda corrente que entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico. Na aritmética da moral, que o professor Sander (2012) denomina como utilitarismos, existem bens da vida ou bens jurídicos que não podem ser submetidos à mesma escala de valor, dentre eles a vida e a saúde. No entendimento da medicina - e os juristas devem tentar imergir nesta alteridade - a saúde não é uma mercadoria, não podendo jamais ser enquadrada como objeto de consumo e, por via oblíqua, os próprios profissionais que não têm o lucro como seu objeto principal - mola propulsora de qualquer atividade empresarial (COELHO, 2015, p. 54) - não poderiam ser alocados na categoria de "fornecedores" ou "prestadores de serviço" comuns, como prescreve o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) No entanto, um olhar mais atento pode revelar que este enquadramento decorre muito mais de um mérito da proposital ampla definição legal oferecida pela normativa consumerista, do que pela correspondência prática efetiva da relação paciente-médico minimamente ética. Ademais, conforme leciona Gonçalves (2015, p. 205), apoiado em decisões do Superior Tribunal de Justiça, "a interpretação das leis não deve ser formal", assim como a "interpretação meramente literal deve ceder passo quando colide com outros métodos de maior robustez e cientificidade". Uma leitura sistemática do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, revela que o art. 39, XII considera como prática abusiva "deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério". Entretanto, sob pena de incorrer em falta ético-profissional e, até mesmo por questões práticas, o médico não pode garantir um termo final para um tratamento (apesar de poder estabelecer um prognóstico), assim como não pode, por norma, ficar condicionado ao aperfeiçoamento de um acordo para estabelecer o termo inicial de tratamentos de urgência, emergência ou em algumas situações não eletivas associadas ao iminente perigo de vida (BRASIL, 1990). Ainda com relação às antinomias, a normativa consumerista determina que não se possa estabelecer um contrato em que o dano não seja indenizável, desta forma, aqueles casos de iatrogenia (dano médico justificável), não poderia ser aplicado. Segundo Nilo (2019, p. 84), um médico não pode exercer a promoção da saúde como uma mera prestação de serviço que vai ser trocada pelo dinheiro do seu paciente. Nem o paciente pode conceber que a sua própria saúde seja mero objeto de troca comercial numa relação de consumo. Em uma cadeia produtiva qualquer, todos os insumos, inclusive a própria mão de obra humana, são enxergados como mais uma despesa pelo empresário. Os custos que impactam no lucro interferem na estratégia. Na Medicina, essa lógica difere, já que, sobretudo está a saúde do paciente, pois, ao médico é vedado permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens do seu empregador, ou superior hierárquico, ou do financiador público, ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente, ou da sociedade, conforme está disposto no art. 20 do Código de Ética Médica (CFM, 2019). Em suma, não se pode imaginar que um típico fornecedor, exercendo livremente a sua atividade mercantil, seja impedido de fazer promoção de seus serviços. E mais, como poderia um "prestador de serviços comum" ser obrigado a trabalhar de forma gratuita, por dever profissional, independente de contraprestação acordada ou nomeação judicial? Contudo, os médicos, segundo a deontologia médica, não podem deixar de atender um paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Desse modo, conforme Takahashi (2021, p. 282), não teve o legislador, ao elaborar o Código de Defesa do Consumidor, a intenção de reger a atividade médica, visto que, o interesse protegido foi o comercial, ou seja, difere do interesse que permeia a relação entre médico e o paciente, não podendo conceber que a saúde seja objetivada, em que estaríamos contrariamente aos próprios avanços e conquistas bioéticas. Outro ponto importante é a questão da vulnerabilidade do consumidor, conforme já elencado neste artigo. Em que, na incidência da norma consumerista, se fala de uma vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor, para que ele não seja lesado na aquisição de um produto/serviço, bem como, possua segurança jurídica dentro do contrato consumerista. A vulnerabilidade do paciente decorrente da sua patologia. Podendo ser reduzida através de um diálogo informacional. O médico está em posição de superioridade ao paciente, porém, a vulnerabilidade que afeta o paciente na relação com o seu médico é uma vulnerabilidade que decorre da informação acerca da sua patologia. Diante disso, é possível chegar a uma relação horizontal, a partir do momento que o médico cumprir um processo informacional, empoderando seu paciente de conhecimento, falando a linguagem do paciente de forma humanística, fazendo com que o enfermo compreenda de forma efetiva os riscos, objetivos e alternativas do tratamento que está sendo proposto.  Assim, o médico reduz a vulnerabilidade do paciente e ele tem sua autonomia e autodeterminação respeitada, podendo realizar uma escolha esclarecida, que pode culminar em uma aceitação ou em uma recursa de tratamento. Em contrapartida, observando a vulnerabilidade do consumidor, percebe-se que ela foi criada para protegê-lo da massificação da economia, uma vez que, foi elaborado em um momento de processos inflacionário e em uma consequente elevação do custo de vida, o qual desencadeou fortes mobilizações sociais no sentido de proteção do cliente. Logo, visa resguardá-lo dentro de uma relação mercantil, que tem o lucro como objeto principal, sendo contrária à vulnerabilidade do consumidor. Ademais, a teoria do risco, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor para o regime de responsabilidade consumerista, não se mostra plausível com a natureza da relação paciente-médico. Na teoria do risco, o fornecedor responde objetivamente em função da prestação de um serviço que adiciona um risco ao consumidor, entretanto o médico não age no intuito de criar um perigo adicional para o paciente, mas atua sempre para redução do agravo na vida/na saúde do paciente que chega ao consultório.  (BRASIL, 1990).  Por fim, é notória diferença a hierarquia dos objetos na perspectiva deontológica e na perspectiva mercantil do CDC. Observa-se que, na relação médica regida pela deontologia, o ápice da pirâmide é a saúde e bem-estar do paciente. Já na perspectiva mercantilista, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, o ápice da pirâmide está no lucro e no interesse comercial. Desse modo, pode-se concluir que a segunda corrente entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico, frente à divergência de hierarquia entre os objetos protegidos. Considerações finais  Concluímos que, a incidência da normativa consumerista, nessa relação, implica consequências processuais, como a inversão do ônus da prova, prazo prescricional maior, vedação à denunciação da lide. É admirável a proteção da vulnerabilidade do consumidor, quando estamos diante de um contrato de adesão, como nos casos de plano de saúde, em que temos o lucro como elemento essencial, visto que, nesse caso, o consumidor se encontra em uma situação desigual e para que tenha seus direitos reconhecidos necessita de instrumentos processuais protetivos. Entretanto, como observamos no decorrer desse artigo, a evolução da relação médico-paciente, não nos permite considerá-la desigual, pois o paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo, segundo a moral e a doença, sendo essa uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde demonstra o cumprimento do processo informacional do médico, não possibilitando uma presunção automática de vulnerabilidade do paciente. Uma vez que, pacientes informados/esclarecidos e com acessos aos documentos médicos, não é, parte vulnerável. Logo, é necessária uma análise do caso concreto antes de considerar o paciente hipossuficiente, se ele não teve acesso às mesmas possibilidades probatórias do médico, deve ser invertido o ônus da prova, mas caso, as possibilidades probatórias sejam as mesmas, não se deve redistribuir o ônus da prova, conforme é disciplinado no Código de Processo Civil, no seu artigo 373, §1, que a inversão deve ser justa e equânime. Desse modo, é necessária uma maior reflexão acerca da incidência das regras consumeristas, principalmente, por conta das especificidades que a cercam. Por fim, é fundamental um maior debate, uma mudança de interpretação, pois a relação médico-paciente não deve ser mercantilizada por se tratar de intimidade, de dignidade, em que as partes possuem o único objetivo, o restabelecimento da saúde do paciente.  Referências  BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016. BRASIL, TJ-MG - Al: 10000191253137001 MG, Relator: Mariangela Meyer Data de Julgamento: 22/09/2020, Câmaras Cíveis/ 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/09/2020. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF. Disponível aqui. Acesso: 23 de abril de 2021. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso: 23 de abril de 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Penal e Processual Penal. Recurso Especial nº 466.730 - TO (2002/0109327-0). Órgão Julgador: Quarta Turma. Ministro Relator: Hélio Quaglia Barbosa. Data de Julgamento: 11/09/2007. Data de Publicação: DJU 23/09/2008. Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril 2021. CFM. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resoluções CFM 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificado pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. Brasília. Conselho Federal de Medicina. 2019. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Direito médico. 3. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2014. JASPERS, Karl. La práctica médica em la era tecnológica. Madrid: Gedisa Editorial; 1987. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor: 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters,2019. MINOSSI JG, SILVA AL. Medicina defensiva: uma prática necessária? Rev Col Bras Cir. [periódico na Internet] 2013; 40(6). Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril 2021. MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: RT, 2018. NILO, Alessandro Timbó. A relação paciente-médico para além da perspectiva consumerista: uma proposta para o contrato de tratamento. 2019. NILO, Alessandro Timbó. Direito Médico: o contrato de Tratamento no Direito Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2020. PATRÃO NEVES. Maria do Céu. Sentidos da vulnerabilidade: características, condição, princípio. Revista Brasileira de Bioética, v.2, n.2, 2006. TAKAHASHI, Samantha. Breves reflexões acerca da não incidência do código de defesa do consumidor à atividade médica. Rio de Janeiro. Editora GZ,2021. Carlos Alberto Kastein Barcellos. [et. al.]. Tendências do Direito Médico.  VASCONCELOS, Camila. Direito Médico e Bioética: história e judicialização da relação médico-paciente / Camila Vasconcelos. - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
Não havia, até a chegada da lei 14.478/2022, regulamentação legal no Brasil para a prestação de serviços de ativos virtuais. As prestadoras de serviços de ativos virtuais são chamadas exchanges ou corretoras. A lei chega para tentar proteger os consumidores nesse mercado e implantar boas práticas de governança e, sobretudo, transparência. No passado - e ainda hoje de certa forma - ocorria certa assimetria informacional entre os dados que o consumidor conhece e os dados que a corretora dispõe. Para diminuir essa assimetria é importante que a corretora faça prova robusta de suas reservas, mediante auditoria independente. Fundamental é conhecer os mecanismos de salvaguarda dos ativos dos clientes. Tudo recomenda maior transparência nas relações informacionais. Aliás, essa é uma das diretrizes do direito privado no século XXI. Nesse contexto, a regulamentação era necessária e é bem-vinda. O colapso da FTX em 2022 - a segunda maior exchange do mundo - representou um dos maiores escândalos financeiros dos EUA (mais de 1 milhão de credores perderam dinheiro com a fraude na FTX). Em dezembro de 2022, o fundador da corretora de criptomoedas FTX, Sam Bankman-Fried, foi preso nas Bahamas tendo os EUA pedido sua extradição (ele, aliás, em 2022 foi o segundo maior doador para as campanhas eleitorais nos EUA, tendo doado cerca de 77 milhões de dólares). Foram surgindo, aos poucos, para espanto de muitos, notícias sobre os desvios - maliciosos e ilícitos - que a empresa realizava usando ativos de clientes. Talvez para esses e outros que agem assim caiba a frase perspicaz de San Tiago Dantas, notável civilista nascido no início do século passado, que escreveu que "nada é mais próximo do máximo da ingenuidade do que o máximo da esperteza".    O Marco cripto (lei 14.478/2022) é lei fundamentalmente voltada para regrar as empresas que operam neste mercado, alterando pouco a situação dos usuários (ainda que traga mais segurança para esses, pelo menos em tese). A grande questão em termos de segurança do usuário - chamada segregação patrimonial - ficou de fora do arcabouço legislativo, por conta de lobby de parte do setor, o que é de se lamentar. A custódia de ativos é um tema central nesse mercado (a forma mais segura é armazenar os ativos em cold storage, que são sistemas desconectados da internet). A segregação patrimonial consiste, essencialmente, na imposição de separar o que é patrimônio da corretora e o que é do cliente, não podendo a corretora (exchange) manejar o patrimônio do cliente em outras aplicações, por exemplo. Em outras palavras, havendo segregação, a exchange fica obrigada a manter o dinheiro dos usuários (consumidores) isolado dos ativos corporativos dela, corretora (exchange). Assim, caso a corretora fique insolvente, o consumidor poderá reaver seu patrimônio. Sem segregação patrimonial, as corretoras - um mercado que não tem as limitações legais aplicáveis aos bancos, por exemplo - podem aplicar e emprestar recursos dos consumidores, o que é perigoso, como a experiência recente demonstra. A lei 14.478/2022 (arts. 2º e 4º) não definiu qual órgão ou entidade da administração pública federal ficará responsável pela tarefa regulatória e fiscalizatória. O mais provável é que venha a ser atribuída ao Banco Central a complexa tarefa de regular a questão em termos infralegais. É até possível - embora polêmico - que a segregação patrimonial (antes mencionada) venha a ser imposta por ato normativo infralegal do BACEN. Aliás, o real impacto da legislação dependerá, em boa medida, da normativa infralegal que virá. A CVM também terá função relevante nesse painel regulatório. Aliás, segundo reportagem do Valor Econômico de 22/12/2022, "influenciadores digitais, temas relacionados a práticas ESG e ofertas de security tokens distribuídas pelas principais corretoras cripto entraram no radar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para o biênio 2023-2024. O regulador incluiu esses tópicos no plano de supervisão baseada em risco para o próximo biênio, em que irá analisar os riscos ligados a tais atividades". O desafio das normas jurídicas nesse setor é imenso - deve o legislador, de um lado, conferir clareza ao mercado e segurança aos usuários. Por outro, deve evitar inibir inovações numa área essencialmente dinâmica e disruptiva. Aliás, em meio ao colapso da FTX - que trouxe imenso pânico, com sério abalo de credibilidade do mercado cripto como um todo - ocorreu algo inédito: os próprios players passaram a pedir que houvesse alguma regulamentação. Isso, antes, não ocorria: pelo menos a imensa maioria dos atores era contrário a qualquer regulamentação. O discurso contrário à regulamentação, no entanto, é ingênuo e pouco realista. A regulamentação é necessária não só para dar segurança aos consumidores como também para permitir a entrada de valores mais amplos nesse novo universo, valores provindos dos chamados institucionais - os grandes bancos, os fundos de investimento internacionais com reservas bilionárias. Regulação, se bem feita, rima com estabilidade e segurança jurídica. Assim, em termos econômicos, é possível que a regulação traga benefícios ao setor, havendo certa semelhança com o que aconteceu com as fintechs - termo que surgiu a partir da união entre as palavras finança e tecnologia, buscando soluções digitais de questões financeiras -, como o Nubank, por exemplo. Elas, as fintechs, ao serem regulamentadas, passaram a concorrer com os grandes bancos na prestação de serviços, ampliando consideravelmente sua carteira de clientes. Espera-se que a nova legislação traga ao mercado cripto brasileiro segurança, clareza regulatória, e maior adoção entre as pessoas. Afinal, trata-se de mercado que ainda é visto com desconfiança por muitos, confundido com fraudes e pirâmides financeiras (que existem, é bom que se diga). Trata-se de mercado que ainda sofre as dores do crescimento, que está aprendendo - através da dor e da perda patrimonial de muitos - a separar projetos sérios e fundamentados de outros sem lastro ou seriedade. É necessário ainda aprimorar os instrumentos de combate à lavagem de dinheiro através das criptomoedas. Olhando para a sociedade é fácil ver que vivemos dias em que os bens físicos perdem muito da primazia que tiveram nos séculos passados. Há uma clara desmaterialização dos bens. Paralelamente, os serviços ganham intensa, e progressiva, relevância econômica. Nossas profissões surgem a cada dia - ligadas, sobretudo, ao mundo digital - e muitas delas são financeiramente mais atrativas do que aquelas convencionais. Talvez não exageraríamos se disséssemos que muitos pais, hoje, não conseguem compreender bem o trabalho dos filhos. Enfim, podemos dizer, em autêntico truísmo, que o mundo mudou, está mudando. Além disso a tecnologia hoje permite organizar informações que antes se encontravam dispersas. O patrimônio, hoje, se virtualiza, perde a materialidade que tinha no passado. Hoje, aliás, não só os produtos e serviços migraram para o universo digital, mas também as fraudes e os crimes. Serviços que hoje são centralizados em instituições financeiras serão cada vez mais descentralizados. O sistema bancário assumirá outro perfil, novos e interessantes modelos de negócio chegam e outros chegarão - baseados em algoritmos, criptografia e blockchains. A figura do intermediário tende a perder importância, com modelos menos centralizados. Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes.  Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes1. Aliás, em meados do século passado Pontes de Miranda lembrava que a realidade dos direitos é independente da materialidade do objeto. As mudanças em hábitos sociais também são marcantes. Por exemplo, é interessante observar que novos tipos de sanções estão surgindo. Sanções sociais, amplamente difundidas por meio de mídias sociais. Também os mecanismos de avaliação através de clientes (Uber, por exemplo), sites de reclamação virtual, entre muitas outras. Os danos à imagem que podem ocorrer - seja a empresas, seja a pessoas físicas - são muito reais nesses casos. O curioso é que as novas gerações tendem a não buscar os mecanismos judiciais para resolver disputas (como compras que deram errado), mas costumam preferir caminhos ligados a algoritmos ou outras soluções digitais2. Talvez possamos acrescentar que as sanções sociais sempre existiram. Hoje, porém, atingem velocidade e difusão impressionantes. São muito mais temidas que outras sanções. Aliás, as mudanças que a internet trouxe - e continua trazendo - para a sociedade são tão intensas que impactam até a língua que é falada e escrita3. O século XXI tem redefinido muitas de nossas antigas certezas. Novas tecnologias renovam velhos hábitos. Um dos modos mais eficazes de criar valor no século XXI é unir criatividade à tecnologia. Aliás, podemos dizer que a pandemia fortaleceu - e acelerou - ainda mais a migração para o universo digital.  Luís Roberto Barroso lembra que a "conjugação da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões"4. Em termos jurídicos, os desafios são muitos. Os princípios, valores e funções do direito privado são formados pelo espírito coletivo de determinada época. Eles traduzem fontes que dialogam e definem dinâmicas respostas. Nos dias em que vivemos - ultraconectados e velozes - o direito privado se vê desafiado a abraçar novos papéis e a aceitar novas funções. Ele dialoga com a sociedade complexa em que se insere, daí extraindo multifacetado perfil. Não nega a complexidade social e tecnológica, nem vira as costas para as profundas mudanças em curso - que repercutem profundamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Tradicionalmente o direito costuma regular as relações sociais olhando para trás, para a tradição - mesmo diante das tecnologias. Acontece que isso não pode ser feito diante de tecnologias disruptivas. O direito, para permanecer relevante, precisa se adaptar dinamicamente às novas realidades. Convém relembrar da frase de George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - escrita nos anos 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". Em termos de criptoativos, muitos debates surgirão nos próximos anos (sobretudo sobre sucessão de ativos virtuais, sobre a penhora deles e, fora do campo do direito privado, a questão da tributação). Fora esses pontos específicos, talvez seja importante reconhecer que os potenciais regulatórios do direito são limitados (em relação às criptos). Se é verdade que o Estado pode regulamentar e até controlar as corretoras (exchanges), que nada mais são que empresas centralizadas (semelhantes a tantas empresas tradicionais do mercado financeiro), o mesmo não se pode dizer, por exemplo, do Bitcoin. Este é, por excelência, descentralizado, e nenhum governo ou qualquer outra entidade terá sucesso ao tentar controlá-lo, ao que nos parece. Aqui, portanto, o direito pode pouco, novas realidades se impõem e ninguém sabe ao certo os próximos passos disruptivos que virão. Cabe ainda uma palavra sobre a IA (Inteligência Artificial) neste contexto. Ninguém se atreve a negar quão fortes são os impactos da IA nas dinâmicas sociais atuais. Trata-se de algo que está profundamente vinculado à nossa (atual) vida diária, ainda que nem sempre percebamos5. A IA possui vasta conectividade e pode tomar decisões de forma muita rápida. É uma ferramenta com extraordinária capacidade de gestão, com potenciais notáveis, únicos (a lista de usos ocuparia muitas páginas, citemos apenas alguns: aplicativos variados de celular, operações bancárias, veículos, aviação, navegação, drones, medicina, educação, serviços de segurança, robôs industriais, operações na bolsa, turbinas eólicas, e até armas autônomas letais). Não é exagero afirmar que a IA, hoje, salva vidas nas múltiplas aplicações possíveis (pensemos na medicina, na aviação, em mecanismos variados de segurança). Aliás, a IA atinge hoje campos que sequer imaginamos (um exemplo trivial: a bola da Copa do Mundo de 2022 possuía sensores que enviavam dados 500 vezes por segundo para 26 antenas ao redor do campo, tudo comandado pela inteligência artificial). As funcionalidades algorítmicas são inestimáveis, assim negativas como positivas, cabendo ao direito reprimir umas e promover outras. O direito relativo à IA (Inteligência Artificial) deverá refletir um pouco o próprio campo tecnológico que pretende regrar. Será em certa medida complexo, dinâmico, terá tons profundamente atuais. Trará uma espécie de balanceamento entre ser estável e ser ágil. Terá que aprender a lidar com padrões técnicos e não com pura retórica. Precisará contar com padrões de avaliação que são constantemente revisados. Enfim, os desafios não são desprezíveis. Aliás, a  própria filosofia do direito terá que se debruçar sobre a normatividade tecnológica6. Requisitos e funções da ordem jurídica podem estar em jogo. Convém ao olhar doutrinário distinguir o essencial do acessório, o passageiro do permanente, tentar discernir as linhas de tendência mais relevantes. É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. Estamos mudando muito, e muito rápido. É preciso ter aquele senso, dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo. Voltando ao Marco da Criptos (lei 14.478/2022), este deve ser interpretado, em diálogo das fontes, juntamente com o CDC e a LGPD. Há uma convergência sistêmica entre os microssistemas, que resultam numa proteção privilegiada ao cidadão (seja como consumidor, como titular de dados, como investidor). O desafio, hoje, é concretizar os direitos fundamentais - e a solidariedade social - dentro do direito privado (mas não só nele). Não é desejável que haja burocracia, é preciso regras claras e fiscalização para salvaguardar os ativos dos clientes. A (difícil) fórmula é proteger o consumidor sem cercear o ambiente de inovação que existe nesse setor. Aliás, o art. 13 do Marco das criptomoedas prevê que se aplicam às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições do CDC. Essa previsão didática, pedagógica, é importante - embora o CDC fosse aplicável ainda sem ela. De todo modo, com a dicção expressa da lei 14.478/2022, ficam previamente afastadas quaisquer discussões hesitantes: o CDC é aplicável ao serviços prestados pelas corretoras de criptomoedas7. Além de tudo isso, em outra situações, o fato de ser aplicar o CDC favorece, sem dúvida, uma interpretação integrada e herdeira de toda a principiologia construída ao longo de mais de 30 anos de sua vigência. O CDC é uma lei comprometida com os valores deste século, que dirige os olhos para os interesses da vítima, especialmente em condições de vulnerabilidade. É um microssistema que vem, ao longo das décadas, sendo em grande parte reconstruído e forjado por intensa construção jurisprudencial, superando uma concepção individualista em favor de uma visão aberta, dinâmica e funcional. As soluções que o direito privado precisa oferecer são mais complexas, porque a sociedade é mais complexa. Essa relação vai sempre existir. Sociedades marcadas por maior simplicidade e estabilidade nas relações sociais aceitam melhor soluções estáticas e relativamente simples. O século XXI exige, ao contrário, esquemas dinâmicos e funcionais, que devem refletir a pluralidade e os desafios imensos oriundos da revolução digital. Essas tecnologias cada vez mais farão parte de nossas vidas, e de modo profundo. A questão é compatibilizar isso com princípios éticos e respeito aos direitos fundamentais. O desafio é buscar soluções preventivas e funcionais. As reflexões contextualizadas, os diálogos entre as fontes normativas, a teoria dos direitos fundamentais redefinem as respostas jurídicas do século XXI, com forte tom ético e solidarista. O direito, hoje mais que ontem, é aprendizado constante. O que nos serviu ontem não necessariamente servirá hoje - e precisamos todos, individual e coletivamente, ter a sensibilidade para ouvir as respostas do amanhã. __________ 1 O Enunciado 687 das Jornadas de Direito Civil (CJF) enfatiza: "O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo". A justificativa do Enunciado aponta como exemplos dessa categoria: Bitcoins, direitos autorais sobre conteúdos digitais; perfis, publicações e interações em redes sociais e plataformas digitais com potencial valor econômico; arquivos em nuvem, sites, etc. Dizemos nós: qualquer outro criptoativo (altcoins) também entram nessa categoria, além dos NFTs e outras tantas possibilidades (como a propriedade intelectual dos códigos-fontes dos algoritmos). 2 MAGALHÃES, Matheus L. Puppe. Disruptive technologies and the rule of law: autopoiesis on an interconnected society. BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JR, José Luiz de Moura (Coords). Direito Digital e Inteligência Artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 536. 3 McCULLOCH, Gretchen. Because Internet: understanding the new rules of language. Nova York: Riverhead Books, 2019. 4 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78. 5 PASQUALE, Frank. The Black Box Society: the secret algorithms that control money and information. Harvard University Press, 2016; SALES, Philip James. Algorithms, Artificial Intelligence and Law. Judicial Review, v. 25, n. 1, 2020; FRISCHMANN, Brett; SELINGER, Evan, Re-engineering Humanity, Cambridge University Press, Cambridge, 2018; BUCKLAND, Michael. Information and society. Cambridge: The Mit Press, 2017; FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016; SARMAH, Simanta Shekhar. Concept of Artificial Intelligence, its Impact and Emerging Trends. International Research Journal of Engineering and Technology, v. 6, 11, Nov. 2019. Disponível em: https://www.irjet.net/archives/V6/i11/IRJET-V6I11253.pdf. Acesso em: 21 dez. 2022; DEEKS, Ashley. The Judicial Demand for Explainable Artificial Intelligence, Columbia Law Review, v. 119, n. 7, 2019, p. 1829-1850; KELLEHER, John. Deep learning. Cambridge: The Mit Press, 2019; DIAKOPOULOS, Nicholas. Algorithmic Accountability Reporting: on the Investigation of Black Boxes, 2014; DE LAAT, Paul B. Algorithmic Decision-Making Based on Machine Learning from Big Data: Can Transparency Restore Accountability? Philosophy & Technology, v. 31, n. 4, p. 525-541, dez. 2018; RASO, Filippo; HILLIGOSS, Hannah; KRISHNAMURTHY, Vivek; BAVITZ, Christopher; LEVIN, Kim. Artificial intelligence & human rights: opportunities & risks. September 25, 2018. Berkman Klein Center Research Publication. n. 2018-6; YEUNG, Karen. Algorithmic regulation: a critical interrogation. Regulation and Governance, v. 12, 2018; DOWEK, Gilles; ABITEBOUL, Serge. The age of algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2020; NÚÑEZ ZORRILLA, Maria del Carmen. Inteligencia artificial y responsabilidad civil. Madrid: Reus, 2019; BATHAEE, Yavar. The Artificial Intelligence Black Box and the Failure of Intent and Causation, Harvard Journal of Law & Technology, v. 31, 2, 2018, p. 890-938; HIDALGO, Luis Amador. Inteligencia artificial y sistemas expertos. Córdoba: Universidad de Córdoba, 1996; WU, Tim. Will the intelligence artificial eat the Law? The Rise of Hybrid social-ordering systems, Columbia Law Review, v. 119, n. 7, November 2019, p. 2001-2020); FALEIROS JR, José Luiz de Moura. A evolução da inteligência artificial em breve retrospectiva. BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JR, José Luiz de Moura (Coords). Direito Digital e Inteligência Artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, 6 PAGALLO, Ugo; DURANTE, Massimo.The philosophy of law in an information society. In: FLORIDI, Luciano (Ed.). The Routledge handbook of philosophy of information. Londres: Routledge, 2016. 7 Sendo aplicável o CDC, concretamente falando, o usuário das corretoras poderá se valer, por exemplo: a) da possibilidade de solicitar a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII); b) da possibilidade de propor a ação em seu domicílio, ainda que outro seja o domicílio da corretora (CDC, art. 101, I); c) do prazo prescricional mais amplo (5 anos, segundo o art. 27 do CDC, ao invés de 3, do Código Civil, para a prescrição da pretensão da reparação civil); d) as corretoras não podem ser valer da denunciação da lide (o art. 88 do CDC veda em algumas hipóteses, mas o STJ foi além, afirmando: "Não é possível, em nenhum caso, nos processos que têm como objeto relações de consumo, haver denunciação à lide (STJ, AgRg no AREsp 157.812); e) sem falar que são inválidas as cláusulas contratuais que excluam ou mesmo atenuem o dever de indenizar, em caso de dano (CDC, art. 51, I). Convém lembrar ainda que os deveres de informação, por parte dos fornecedores de produtos e serviços, no âmbito do CDC, são singularmente fortes".
Com a aprovação da lei 14.470/2022, que alterou a lei 12.529/2011 (a Lei de Defesa da Concorrência), objetivou-se o fortalecimento do arcabouço jurídico para propositura de ações de reparação por danos concorrenciais pelas vítimas de condutas praticadas por agentes econômicos que ofendem a livre concorrência. Trata-se da velha conhecida ação indenizatória, respaldada no instituto da responsabilidade civil, estrutural e funcionalmente disciplinado pelo Código Civil, que assegura o exercício da pretensão reparatória em qualquer hipótese de dano indenizável. No âmbito das infrações econômicas, a ação indenizatória ganhou alguns contornos próprios, especialmente a partir da recente alteração da Lei de Defesa da Concorrência, que adotou sistemática incomum na nossa tradição jurídica, diante da possibilidade de dobra no valor da indenização em algumas hipóteses (conforme o §1º adicionado ao artigo 47 da Lei). Tal possibilidade, agora expressamente prevista em nosso ordenamento, constitui exceção ao princípio da reparação integral, este que funciona como piso e teto no valor da indenização, ao determinar a reparação na medida da verificação dos prejuízos, nem menos, nem mais. Para o melhor aproveitamento das potencialidades da ação indenizatória, inclusive para sua efetiva contribuição, juntamente com as respostas administrativa e criminal também existentes para o aprimoramento do ambiente concorrencial brasileiro, é fundamental que os jurisdicionados bem conheçam o ferramental relacionado às ações de reparação (em geral), e também bem compreendam as questões que exsurgem na seara concorrencial. Dentre elas, uma que se destaca é a dificuldade de distribuição das responsabilidades, tanto de quem quanto para quem.  Isto é, uma vez conhecidos os fatos violadores da concorrência e sua autoria, há ainda o desafiador trabalho de calcular os prejuízos decorrentes da infração, a proporção devida a cada vítima, e quem deve responder por cada fração, uma vez que os danos concorrenciais, por sua própria natureza, são espraiados, sempre impactam a coletividade - não à toa esta é expressamente referida no artigo 1º da Lei de Defesa da Concorrência como a titular dos bens jurídicos protegidos pela norma concorrencial. Diante da perspectiva coletiva, é possível compreender mais facilmente que agentes econômicos que atuam em cadeia de distribuição podem ser vítimas de outro(s) agente(s), mas ao mesmo tempo repassar os prejuízos sofridos nas relações de mercado, tornando-se, a um só tempo, vítimas e autores de danos. Em tais situações, o intérprete deverá analisar o caso sob a perspectiva do nexo de causalidade entre os danos sofridos e a conduta do(s) agente(s) econômico(s). Com efeito, em sede de reparação de danos, inclusive os concorrenciais, a apuração do nexo de causalidade importa para dois desafios principais: o primeiro relacionado à dificuldade da prova da existência de vínculo entre a conduta imputável (com ou sem culpa, conforme a responsabilidade seja subjetiva ou objetiva) e o dano sofrido e, notadamente, a suficiência do vínculo para fins de imputação do dever de indenizar.  Lembre-se que em sede de infrações econômicas, se o conhecimento da conduta ilícita não é levado a público, por vezes eventuais partes prejudicadas sequer terão ciência do vínculo entre eventual lesão econômica sofrida e o ato ilícito que lhe deu origem, tampouco terão acesso aos meios de comprovação para fins de obtenção de posterior reparação. Mas, apesar das (enormes) dificuldades com a prova do vínculo entre o dano e o ilícito, ela deve ocorrer, pois a responsabilidade civil tem seus próprios pressupostos, que devem ser observados. O segundo desafio tem relação com a definição da proporção exata da contribuição da conduta lesiva para o resultado danoso, afinal qualquer prejuízo econômico pode ser causado por múltiplas variáveis, havendo prejuízos que podem ser provocados por fatores externos à ação do agente infrator, mas que se somam à sua conduta, dando novos contornos aos danos, mas não necessariamente imputáveis ao agente.  Esta questão fica mais delicada em situações de crises sucessivas como as que temos vivido, como a de origem sanitária iniciada em 2020, a política que começou até antes da sanitária, e, mais recentemente, o impacto da guerra da Ucrânia em todas as economias conectadas em cadeia global. As questões que se relacionam ao tema do adequado sopesamento das causas, e, mais especificamente, ao tema do eventual rompimento do nexo de causalidade, exigem dos intérpretes especial atenção ao que seja causa juridicamente relevante para imputação da responsabilidade civil a qualquer agente infrator. Afinal, o autor do dano deve sempre responder na medida de sua efetiva participação para o resultado, seja nas hipóteses em que tem culpa, ou mesmo quando não tem, quando a responsabilização é objetiva e a culpa não é condição para a imputação de responsabilidade. A vítima de danos concorrenciais pode buscar, em princípio, sua reparação junto a mais de um agente econômico envolvido na produção do resultado danoso - devendo, entretanto, as partes ter cuidado com as inovações legislativas trazidas pela Lei 14.470/2022, que, também de maneira excepcional no ordenamento brasileiro, mudou substancialmente a regra sobre a solidariedade dos agentes (em situações ligadas à assinatura, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, de um acordo de leniência ou um termo de compromisso de cessação de prática, conforme o novo §3º incluído no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência).  Sem prejuízo das questões atinentes à solidariedade, especialmente nas relações em cadeia vertical, o elemento causal deve ser objeto de atenção tanto das vítimas, para que possam obter o ressarcimento pelos danos sofridos, quanto do agente econômico que se insere na cadeia de distribuição, pois este pode ser, como mencionado, vítima e também causador de danos a terceiros, ao repassar adiante os prejuízos sofridos. É possível cogitar da responsabilização solidária em alguns casos, sendo o agente aí entendido como coautor que pode ser acionado pela(s) vítima(s).  Mas em outros casos, ele será mais uma vítima, que se soma a outras na coletividade, considerando os possíveis impactos nos seus próprios resultados econômicos.  Daí a importância dos estudos sobre a causalidade, sobre a qual várias teorias já foram desenvolvidas pela doutrina, em esforço contínuo de dar solução aos problemas de distribuição de responsabilidades e quantificação do valor indenizatório.  Nessa temática, de acordo com a previsão legal contida no artigo 403 do Código Civil, confirma-se a adoção, pelo legislador brasileiro, da teoria da causa direta e imediata, a qual, temperada pela teoria da causalidade necessária, permite apontar mais de um responsável em situações jurídicas complexas, tais como as relacionadas aos danos concorrenciais. Em um artigo desenvolvido para a Revista IBERC, editada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, busquei apresentá-las e apontar, seguindo a contribuição de diversos autores que me precederam, como as teorias podem funcionar para a atribuição, ou, no sentido inverso, para o afastamento do dever de indenizar por um agente econômico inserido em relações de cadeia com outros agentes infratores. O nexo causal acaba sendo elemento chave para dar tratamento adequado a muitas situações, dentre as quais, aquelas conhecidas como de pass-on defense, ou defesa por efeito repasse no curso das cadeias verticais de produção, que vem à tona quando um agente econômico que sofre prejuízos em suas operações em decorrência de conduta lesiva de outro agente eventualmente os repassa adiante ao longo da cadeia produtiva, integral ou parcialmente.   No julgamento de condutas de qualquer agente no mercado, inclusive eventuais repasses de prejuízos, a racionalidade econômica impõe reconhecer oscilações que podem ocorrer nos preços e nas práticas comerciais por múltiplas razões, e, justamente há que se identificar razões e práticas legítimas, considerando que nosso sistema jurídico é orientado pela livre iniciativa e operante pela lógica de mercado.  Mas isto não equivale a reconhecer que quaisquer oscilações possam ser justificáveis, fazendo com que, em alguns casos, o repasse seja antijurídico e interpretado de diferentes maneiras, conforme a perspectiva do sujeito cujos interesses se busca tutelar. Assim, em sede de danos concorrenciais, além do cuidado com as inovações trazidas pela Lei 14.470/2022, é preciso, antes, atentar à normativa geral trazida pela Código Civil referente ao instituto da responsabilidade civil.  Ao estabelecer um sistema jurídico que aponta o nexo causal como elemento que opera de um lado como pressuposto constituinte e quantificador, mas de outro também regulador do dever de reparação, em verdadeira função dúplice, o legislador na prática em algumas situações facilitou a reparação, em outras impôs limite à pretensão reparatória.  Fica o convite para a abordagem mais aprofundada sobre o tema na primeira edição de 2023 da Revista IBERC.  Boa leitura!
Recorrentemente o Poder Judiciário é acionado em demandas judiciais propostas por adquirentes ou condomínios que, alegando a ocorrência de vícios construtivos nas edificações (unidades autônomas ou áreas comuns), requerem a condenação das empresas para a realização dos reparos devidos (indenização pecuniária ou obrigação de fazer). Não se negue que aquele que adquire uma unidade autônoma em construção tem o direito de receber o imóvel em regulares condições de uso e habitabilidade e com a observância do escorreito atendimento às boas práticas da engenharia civil. Todavia, reconheça-se que boa parte das edificações (sobretudo aquelas de grande porte) está sujeita à necessidade de alguns ajustes quando da sua conclusão, dada as complexidades que envolvem a construção civil. Nesse sentido, é comum às construtoras manterem um departamento de assistência técnica cujo objetivo é atender aos diversos chamados que podem surgir imediatamente após a entrega da edificação. Isso porque ao receber a sua unidade autônoma, o adquirente pode notar, por exemplo, mau acabamento da pintura, incorreto funcionamento de instalações elétricas ou hidráulicas ou a necessidade de ajustes diversos. O condomínio, representado pelo síndico, também costuma solicitar reparos, principalmente após a ocupação do edifício, oportunidade em que a edificação é efetivamente testada em sua plenitude. Mas além dos defeitos construtivos aparentes e simples, mesmo após determinado período de ocupação, os adquirentes e síndicos podem se deparar com vícios ocultos, ou seja, aqueles que somente serão efetivamente constatados meses ou até mesmo anos após a entrega da edificação. Cite-se, nessa esteira, infiltrações em paredes e subsolos, problemas estruturais, inadequação de materiais empregados na obra, erros do projetos, dentre outras questões. A partir do aparecimento dos vícios e havendo relação de consumo, os consumidores possuem pretensões distintas. Sendo a hipótese de vícios aparentes e de fácil constatação, o Código de Defesa do Consumidor confere ao consumidor o prazo de 90 dias para reclamá-los (art. 26, inciso II). O mesmo CDC também estabelece que na hipótese de os vícios serem ocultos, o prazo para a reclamação inicia-se a partir do momento em que o defeito ficar evidenciado (art. 26, § 3º). O Código Civil, a seu turno, também dispõe a respeito dos prazos conferidos ao adquirente na hipótese do aparecimento de vícios construtivos. Como medida mais drástica, o Código permite que o adquirente possa redibir o contrato (ou obter o abatimento no preço) no prazo decadencial de um ano, contado da entrega efetiva (art. 445). Contudo, caso o vício, por sua natureza, só possa ser conhecido mais tarde, o prazo conta-se do momento em que dele tiver ciência o adquirente (art. 445, § 1º). Discute-se, todavia, qual a extensão do vício que permitiria a redibição do contrato, com a devolução integral dos valores pagos pelo adquirente. Embora a parte lesada pelo inadimplemento possa escolher entre a indenização (e, consequentemente, manutenção do contrato) ou resolução do vínculo (art. 475, do Código Civil), diversos autores entendem que se o descumprimento contratual não for relevante o suficiente, não cabe a opção do mecanismo resolutório, tal como defendem Araken de Assis1 e Ruy Rosado de Aguiar Júnior2. Na doutrina mais contemporânea, Giovanni Ettore Nanni3 destaca que "[...] para fins de resolubilidade [...] o inadimplemento perpetrado no caso concreto deve ser não apenas incurável como também necessita de qualificação adicional: ser severo"4. O debate doutrinário leva em consideração a ausência de regra específica no Código Civil brasileiro (contrariamente à legislação italiana5 e portuguesa6) de dispositivo que inadmita a resolução quando o inadimplemento contratual tiver escassa importância (scarsa importanza). Por outro lado, o artigo 395, parágrafo único, determina que "se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos". Justamente por isso é que se defende que se o vício construtivo for sanável e não impactar na habitabilidade da edificação, o pleito resolutório deve ser afastado, para que o contrato seja mantido, sem prejuízo da possibilidade de propositura de ação indenizatória para o reparo. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já entendeu que a inadequação do sistema de ar-condicionado em empreendimento hoteleiro não admite a redibição do contrato, considerando que perícia prévia reputou o vício como sanável e quantificou o valor de reparo7. Mas se não é o caso de redibição do contrato, seja porque os requisitos para tanto não estão previstos, seja porque a opção do lesado é o reparo e a manutenção do contrato, qual o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória? Não obstante certa hesitação da jurisprudência (em especial dos tribunais estaduais), o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que, a partir da constatação do vício, o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória (e não redibição contratual, reitere-se) é decenal8. Esse entendimento foi reforçado a partir do EREsp nº 1.280.825/RJ que considerou que nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral do art. 205 do Código Civil9. Ocorre que o prazo decenal, estabelecido genericamente para a pretensão referente à indenização dos vícios construtivos, talvez deva ser repensado pela doutrina, assim como o "prazo quinquenal de garantia" normalmente referido pela jurisprudência10 e localizado no artigo 618, do Código Civil. Tal como já asseverado por Nelson Rosenvald e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, o fato de o contrato de compra e venda poder ser considerado de longa duração não significa que o fornecedor está obrigado a uma garantia ad eternum12.  Há que se pensar que toda edificação é formada por diversos sistemas e materiais construtivos distintos. A fundação de uma edificação deve ser projetada para que resista por muitos e muitos anos e, portanto, o prazo de vida útil deve ser extenso. Contudo, a pintura da fachada normalmente tem prazo de vida útil de até três anos e, após tal interregno, há perda da garantia do sistema e a edificação deve ser repintada. Como se nota, na construção civil há sistemas que são feitos para perdurarem no tempo por longo prazo, enquanto a pintura, o rejunte dos pisos, as lâmpadas, dentre outros elementos ou componentes possuem prazo de vida útil inferiores. Não é possível, portanto, atribuir genericamente o prazo de cinco anos como a "garantia" da construção, seja porque esse prazo é insuficiente para garantir a estabilidade da fundação que, por exemplo, possui prazo de vida útil superior a trinta anos, seja porque o prazo é extenso demais para garantir componentes e sistemas mais simples. A prática no contencioso envolvendo ações de vícios construtivos demonstra que dentre as diversas demandas propostas, algumas ações pleiteiam o reparo de sistemas cujo prazo de vida útil já foi exaurido, há anos. Normalmente acompanhada de um parecer técnico de engenharia, são apontados diversos vícios construtivos, mas não se demonstra que o sistema reclamado ainda possui prazo de vida útil vigente ou que a manutenção predial foi realizada, tal como determina o Manual de Uso e Operação da edificação. Não há separação entre o que efetivamente é vício construtivo (de responsabilidade do construtor) e o que pode ser considerado vício decorrente (i) da ausência de manutenção; (ii) da irregularidade de uso ou (iii) do transcurso do prazo de vida útil do sistema, o que poderia afastar a responsabilidade do construtor. Nesse sentido, é necessário maior debate acadêmico sobre questões técnicas envolvendo a construção civil. A manutenção predial, por exemplo, é indispensável a qualquer construção e engloba um plexo de cuidados técnicos aptos a preservar o bom desempenho de uma edificação13. Sem que a manutenção predial seja realizada, não há como se atingir a vida útil e o desempenho dos sistemas, elementos e componentes construtivos. Assim, "a manutenção não pode ser feita de modo improvisado e casual. Ela deve ser entendida como um serviço técnico, cuja responsabilidade exige capacitação apurada"14. Inexiste no Brasil legislação federal que obrigue expressamente os condomínios a realizarem as manutenções prediais devidas, bem como registrarem em livro próprio as ações adotadas. A regra genérica que obriga o síndico a diligenciar a conservação e guarda das partes comuns estabelecida no art. 1.348, inciso V, do Código Civil, em nosso ver, é insuficiente. É verdade que a Lei Estadual (RJ) nº 6400/2013 foi um passo importante, porque determina a realização periódica de autovistoria nos condomínios, bem como a emissão de laudo técnico cujos apontamentos obrigam o Condomínio. Lamenta-se, contudo, que a legislação tenha aplicação regional, apenas no estado do Rio de Janeiro. Diante da ausência de legislação federal que regule questões envolvendo manutenção predial, prazos de vida útil e garantias da construção civil, algumas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) foram editadas nos últimos anos. Tais normas possuem papel relevante no âmbito da engenharia civil, mas também poderiam ter relevância no direito. A NBR 5674 de 2012 dispõe dos requisitos para a gestão da manutenção em edificações de forma a preservar as características originais da edificação e prevenir a perda de desempenho decorrente da degradação dos sistemas, elementos ou componentes da construção civil. Referida norma, portanto, estabelece um conjuntos de ações e registros que devem ser realizados pelos condomínios para o bom atendimento da manutenção predial. Já a ABNT 15575-1 de 2013, conhecida como "norma de desempenho", estabelece os prazos de vida útil dos sistemas construtivos e os prazos mínimo de desempenho, bem como destaca a importância da manutenção predial para que a construção possa atingir referidos prazos. Mais recentemente, a NBR 17170 de 2022 estabeleceu prazos recomendados de garantia que, segundo a norma, deve ser [...] o tempo em que o fornecedor é responsável perante o consumidor por corrigir falhas nos produtos por ele fornecidos e originados no processo de sua concepção e produção, desde que seja realizada a manutenção devida, os produtos sejam corretamente utilizados e observadas as demais condições prevista no manual de uso, operação e manutenção deste produto. Como exposto acima, é verdade que as referidas normas técnicas, embora relevantes no âmbito da construção civil, nem sempre são levadas em consideração pelo intérprete do direito brasileiro. Apesar do artigo 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor determinar que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços colocar no mercado qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas da ABNT, não obriga o consumidor a atender às disposições das referidas normas. O objetivo do presente artigo é apontar que nas ações indenizatórias envolvendo vícios construtivos, não deve o intérprete se valer de soluções genéricas e simples. O Código Civil, em nosso ver, não é suficiente para estabelecer as regras necessárias envolvendo os prazos para tais ações e é papel da doutrina o melhor desenvolvimento da matéria. Como defende José Carlos Puoli15, os prazos estabelecidos no Código Civil deveriam ser alterados. Enquanto a matéria não é suficientemente tratada pelo legislador, é necessário que o juiz, nas ações envolvendo vícios construtivos, atente-se para saber se (i) o sistema sobre o qual se reclama está (ou não) dentro do prazo de vida útil; (ii) se o usuário (adquirente ou condomínio) observou as determinações relacionadas à manutenção predial. Na hipótese de ambas as respostas serem afirmativas, a responsabilidade civil do construtor estará mais evidenciada, facilitando a prova pericial normalmente produzida nesse tipo de demanda. Esperamos que a doutrina reconheça que no âmbito do direito imobiliário, o conhecimento técnico de engenheiros, arquitetos e órgãos técnicos, tal como é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas, podem contribuir muito na resolução de conflitos e na melhor elaboração das leis. __________ 1 Segundo o Autor o "[...] inadimplemento relativo impede, irrevogavelmente, o acesso ao mecanismo resolutório [...]. Por conseguinte, o inadimplemento deverá se revestir de características muito relevantes para autorizar a resolução. A existência se manifesta nas várias modalidades de descumprimento. Sua reiteração constante, nessas áreas, indica talvez o interesse na preservação do vínculo, em detrimento do seu desfazimento, e aponta o inadimplemento absoluto, porque, elimina em definitivo a possibilidade de o obrigado prestar, como única modalidade admissível em sede resolutiva". (ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114). 2 "[...] para a dissolução do vínculo e quebra do contrato, certamente há de se exigir um incumprimento mais forte e qualificado, que esteja, assim, a atingir o contrato na sua substância, e não em simples acidente ou qualidade. Para o cumprimento fora do tempo, referido no art. 394 como causador de perdas e danos, o art. 395, parágrafo único adjetiva-o como inútil, para só então autorizar a resolução. Analogicamente, se há de considerar as demais espécies de incumprimento: para resolver, a falta deve atingir substancialmente a relação, afetando a 'utilidade' da prestação. Como a utilidade deriva da capacidade da coisa ou do ato em satisfazer o interesse do credor, temos que a prestação inútil - que pode ser enjeitada e levar à resolução do contrato e mais perdas e danos - é a feita com atraso ou imperfeições tais que ofendam substancialmente a obrigação, provocando o desaparecimento do interesse do credor, por inutilidade. Ao reverso, quando, não obstante a mora, o cumprimento ainda é possível e capaz de satisfazer basicamente o interesse do credor ou quando, apesar da imperfeição do cumprimento, parcial ou com defeitos, foram atendidos os elementos objetivos e subjetivos a serem atingidos pelo cumprimento, diz-se que o adimplemento foi substancial e atendeu às regras dos arts. 394, 395 e 389 do Código Civil, afastando-se a resolução." (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. p. 132). 3 NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 580. 4 No mesmo sentido vide BIAZI, João Pedro de Oliveira de. Resolução do contrato de compra e venda na incorporação imobiliária: breves considerações sobre o art. 43-A da Lei 4.591/1964. Migalhas. Publicado em 09/02/2023. Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2023. 5 Art. 1.455. Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). Tradução livre: "O contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes for de pouca importância, resguardado o interesse da parte contrária". 6 Artigo 802.º (Impossibilidade parcial) 1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização. 2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância. Artigo 808.º (Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento) 1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente. 7 "[...] MÉRITO. Insurgência que prospera. Existência de vício no sistema de ar-condicionado que, no caso em tela, não autoriza a resolução contratual. Vício que é passível de reparação e não há comprovação de que obsta o exercício da atividade hoteleira, finalidade da contratação. Autores que, ao contrário, afirmaram que não questionam vícios na prestação de serviços hoteleiros e o resultado financeiro da exploração hoteleira [...] Sucumbência dos autores. RECURSOS PROVIDOS." (TJSP, Apelação Cível 1024047-23.2019.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Viviani Nicolau). 8 DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. 2. Ação ajuizada em 19/07/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 08/01/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é o afastamento da prejudicial de decadência e prescrição em relação ao pedido de obrigação de fazer e de indenização decorrentes dos vícios de qualidade e quantidade no imóvel adquirido pelo consumidor. 4. É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (art. 26, II e § 1º, do CDC). 5. No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no art. 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 ("Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra"). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ, REsp n. 1.721.694/SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03/09/2019, DJe de 05/09/2019.) 9 STJ, EREsp n. 1.280.825/RJ, Segunda Seção, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/06/2018, DJe de 02/08/2018. Ainda a respeito dos prazos envolvidos na construção civil, vide GUERRA, Alexandre. Incorporações imobiliárias. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2.011. p. 649 e seguintes; GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 649 e seguintes; BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. A responsabilidade civil do incorporador imobiliário. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 681 e seguintes. 10 TJSP, Apelação Cível 1004648-61.2020.8.26.0048, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Augusto Rezende; j. 27/10/2022; Data de Registro: 27/10/2022. 11 ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsability. Conjur. Publicado em: 02/03/2022. Acesso em 17 fev. 2023. 12 No mesmo sentido, José Carlos Puoli aduz: "É dizer, não pode ser eternizado, nem tampouco desarrazoadamente grande, o período dentro do qual um construtor/incorporador irá responder pela construção realizada. É que, se assim acontece, eleva-se a insegurança, estimulam-se conflitos e, ainda, é acarretado relevante aumento no custo da produção, com efeitos deletérios não apenas para construtores/incorporadores, mas também para contratantes e consumidores de 'produtos imobiliários', que acabam tendo que conviver com preços mais elevados no mercado". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670. 13 GOMIDE, Tito Lívio Ferreira. A manutenção das obras de construção civil deve ser obrigatória e periódica? Blog do Instituto de Engenharia. Disponível aqui. Acesso em: 25 jan. 2020. Como bem destacado por Carlos Pinto Del Mar "Nenhum edifício é imune à degradação provocada pelo ambiente, pelo uso ou pelas características intrínsecas de seus materiais constituintes. Mesmo que tenha sido concebido, projetado e construído corretamente, devem ser esperados problemas causados pelo desgaste normal dos produtos de construção utilizados. A negligência nas atividades de manutenção provoca degradação do edifício construído, gerando consequentemente uma também crescente insatisfação de seus usuários". (DEL MAR, Carlos Pinto. Direito na construção civil. São Paulo: Pini/Leud, 2015. p. 184). 14 NBR 5.674: Manutenção de Edificações - Procedimento, p. 02. 15 Segundo o autor: "[...] parece necessário que a verificação destes prazos seja alterada, para que não mais prevaleça a generalização que tem sido verificada na prática, cumprindo que se contemple leitura conjunta de fatores jurídicos e técnicos, de forma que se possa ter mais uma justa solução destes caso, seja para prestigiar o dono de uma edificação que precisa obter o justo 'reparo' das decorrências de um vício construtivo, seja para não onerar desarrazoadamente o construtor/incorporador que deve se ver isento da obrigação de responder pelo bem, desde que ultrapassado um prazo razoável de tempo, o qual varia em vista do tipo de construção que se estiver tratando". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670.
O Direito de Danos no Brasil tem como um de seus princípios basilares a regra insculpida pelo artigo 935 do Código Civil, que fixa a independência entre as esferas cível e criminal. Pela máxima contida no dispositivo, certas condutas poderão corresponder à sanção estatal pela aplicação da pena aos fatos considerados típicos e também poderão culminar na responsabilização civil em favor da vítima. A independência permite que as jurisdições caminhem por vias próprias. É porque a responsabilidade jurídica, como gênero, admite fontes diversas, como bem observa Maria Helena Diniz "Na responsabilidade penal o lesante deverá suportar a respectiva repressão, pois o Direito Penal vê, sobretudo, o criminoso; na esfera civil, ficará a obrigação de recompor a posição do lesado, indenizando-lhe os danos causados, daí tender apenas à reparação, por vir principalmente em socorro da vítima e de seu interesse, restaurando seu direito violado"1. Por esta mesma razão é que a parte ofendida, embora não seja obrigada, pode aguardar que todo o trâmite processual penal seja concluído para que somente depois proponha a respectiva ação de reparação de danos. Garantem-lhe tal faculdade a suspensão da prescrição prevista pelo artigo 200 do Código Civil, mas também a previsão do artigo 63 do Código de Processo Penal, o qual prevê a chamada ação civil ex delicto, isto é, execução da reparação de danos mediante apresentação de título consistente em sentença penal condenatória transitada em julgado2. Todavia, em celebração ao princípio da segurança jurídica e também da prevenção às decisões conflitantes, há exceção à independência prevista no corpo do artigo 935 do Código Civil. Isso porque, uma vez decididos no juízo criminal, a autoria e o fato não mais poderiam ser objeto de discussão no juízo cível. Em outros termos, transitada em julgado uma sentença penal condenatória ou absolutória, não mais se faria necessário o reexame de fato e autoria no juízo cível, que restaria adstrito, quando o caso, à discussão do quantum indenizatório. A ressalva é compatível com a previsão do artigo 315 Código de Processo Civil3, que autoriza a suspensão do processo até que se resolva no juízo criminal a verificação da existência de fato delituoso, complemento ao que já constava do parágrafo único do artigo 64 do Código de Processo Penal. Feita a ressalva é preciso reconhecer, portanto, que havendo sentença penal condenatória, pouco se pode fazer em matéria de instrução probatória no juízo cível que extrapole o debate da extensão dos danos. Hipótese distinta quando ocorre sentença absolutória. Afastada a participação do autor da suposta ofensa ou, ainda, ocorrendo excludentes de ilicitude como o reconhecimento de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de um direito, não há como persistir em demanda reparatória no juízo cível4. De outro lado, nos casos de arquivamento de inquérito ou se a absolvição decorre, por exemplo, do reconhecimento da atipicidade do fato ou da extinção da pretensão punitiva, mantém-se a independência das jurisdições e será possível ao ofendido a propositura da ação civil para a rediscussão de fato e autoria. Confirmam essas conclusões a questão levada, por intermédio do Recurso Especial nº 1.802.170/SP5, ao julgamento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a independência das jurisdições, quando a sentença absolutória decorre da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. No caso, a Relatora Nancy Andrighi destaca que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". Em suma, a prescrição na seara criminal não exaure o debate quanto à autoria ou existência do evento, mantendo hígida a regra da independência. Ocorre, porém, que o avanço da técnica processual tem implementado métodos alternativos de resolução dos litígios, incluindo a esfera criminal, como se extrai do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), regulamentado no Brasil por ocasião do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019) e incluído no Código de Processo Penal pela disciplina do artigo 28-A6. Em apertada síntese, o ANPP é oferecido pelo Ministério Público como substitutivo da denúncia quando, não cabendo arquivamento do feito, tratar-se de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, desde que o acusado aceite confessar circunstancialmente (a autoria do fato supostamente delituoso), fixando-se uma medida de reparação e reprimenda alternativa, tal qual elencado nos incisos do dispositivo legal regulamentador. É possível dizer que mecanismos de tal estirpe possuem natureza de negócios jurídicos pré-processuais, isso porque ao aceitar essa posição idealmente mais benéfica instituída com a formalização do acordo, o acusado suprime o "processo, a produção da prova e o contraditório em troca de um sancionamento mais célere e consentido pela defesa"7. A questão que se coloca é, havendo ANPP e eventualmente esbarrando a conduta tanto na esfera criminal quanto na cível, é possível a utilização do acordo homologado para afastar a independência das jurisdições, partindo da premissa de que a autoria e existência do fato encontram-se resolvidas na justiça penal? Em outros termos, qual seria o alcance de um ANPP homologado para além da esfera criminal e como isso impacta na prática o debate da responsabilidade civil? A questão merece algum aprofundamento. Inicialmente, como mencionado, a interpretação sistemática do artigo 935 do Código Civil pressupõe, como exceção à regra da independência das jurisdições, a existência de sentença penal transitada em julgado. O diálogo entre tal dispositivo e o artigo 63 do Código de Processo Penal ao prever a ação civil ex delicto não revela interpretação diversa. Ou seja, apenas e tão somente a sentença penal condenatória transitada em julgado legitima, neste ponto, o exercício de uma pretensão executória. Ocorre que o ANPP tem características próprias de negócio jurídico prévio ao processo, ou seja, oriunda da renúncia ao enfrentamento da persecução e suas repercussões; dele não decorre sentença penal condenatória transitada em julgado. Significa também dizer que não há um mínimo de instrução probatória, uma vez que tudo resolve-se antes mesmo de eventual denúncia8, da qual o parquet abre mão pela realização do acordo. Em oportunidades pregressas, o Superior Tribunal de Justiça já pôde manifestar-se quanto à imprescindibilidade da sentença penal condenatória como pressuposto para afastar a regra geral de independência entre as jurisdições nas ações civis ex delicto. A lição fica evidenciada na análise do Recurso Especial nº 678.143/MG, sob a Relatoria do Ministro Raul Araújo9: [...]No entanto, a executoriedade da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou seu aproveitamento em ação civil ex delicto proposta no juízo cível (CPP, art. 64; CPC, arts. 110 e 265, IV) depende da definitividade da condenação, ou seja, da formação da coisa julgada criminal, até mesmo pela máxima constitucional de que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII)10. Em aprofundamento daquilo que fundamentou o Ministro Raul Araújo, talvez seja possível concluir que a repercussão da aplicação do ANPP em esferas diversas da criminal toca pontos de relevância constitucional, aos quais é possível agregar o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à não autoincriminação, como se verá. Não se pode perder de vista que a confissão circunstancial é elemento objetivo para a realização do acordo, pelo que consta do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Questiona-se, portanto, se essa confissão teria o condão de cravar a existência do fato e sua autoria, tornando-os incontroversos para o juízo cível e permitindo a excepcional quebra da independência entre as jurisdições. Primeiro, é preciso refletir sobre a natureza desta confissão tomada a termo pelo Ministério Público como elemento essencial à realização do acordo. O legislador, não por acaso, escolhe a expressão confissão formal e "circunstancial". Palavras não são em vão e neste caso a circunstancialidade decorre daquilo que se extrai do dicionário, ou seja, episódico, incidental, casual11. Não se confunde com o termo "circunstanciado", que, ao contrário, remete àquilo que é enunciado de forma pormenorizada, em todas as circunstâncias12. A confissão obtida no ANPP, pela letra fria da lei, tem finalidade exclusiva e limitada ao acordo, com objetivo evidente da obtenção do benefício identificado pela supressão do processo e suas eventuais consequências. Ainda são residuais os debates no ambiente cível, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha analisado questões similares em oportunidades recentes, notadamente vinculadas ao uso de acordos de leniência na esfera administrativa ou no aproveitamento de outras ações penais. Analisando a questão, Sílvio Luis Ferreira da Rocha e Oswaldo Henrique Duek Marques13 destacam o fato de que a obtenção extraprocessual da confissão não deveria, em princípio, prejudicar o confitente em outras esferas "pois o valor probatório da confissão seria nulo, pelo fato de não ter sido obtido em procedimento judicial". Nos autos de Agravo Regimental Pet. nº 7065-DF14, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, há interessante posicionamento de divergência adotado pelo Ministro Gilmar Mendes quanto ao compartilhamento de termos obtidos em colaboração premiada, que vai ao encontro da posição de Rocha e Duek Marques acima colacionada. Em sua análise, o Ministro destaca que o compartilhamento de declarações obtidas consensualmente em acordos de leniência para outras searas não incluídas expressamente no acordo podem condenar institutos de acordo ao seu esvaziamento, colocando em risco a sua própria efetividade, assim como possibilitaria a vulneração de direitos daquele que consentisse colaborar. Neste sentido, é preciso reconhecer que a confissão obtida circunstancialmente nos casos de ANPP decorre de uma declaração episódica, cujo objetivo revela-se na busca do sujeito em ver-se à salvo da persecução penal o que, após o balizamento das consequências, lhe pareceu mais favorável do que suportar o peso do processo. Entender de forma diversa, em casos similares, seria como atribuir ao colaborador o inconstitucional ônus da produção de provas contra si mesmo. Ademais, como bem destaca o Ministro Gilmar Mendes na mencionada divergência, "a utilização de tais elementos probatórios, produzidos pelo próprio colaborador, em seu prejuízo, de modo distinto do firmado com a acusação e homologado pelo Judiciário é prática abusiva, que viola o direito à não autoincriminação". Extrai-se daí que, uma vez entabulado o ANPP, em decorrência da própria publicidade do ato homologatório15, ficaria difícil frear que interessados dele tomassem conhecimento, todavia, nestes casos a utilização do termo serviria não para afastar a independência das jurisdições, mas para dar corpo e força às alegações da vítima na eventual instrução processual civil. Não é demais destacar que nem mesmo como prova emprestada o ANPP poderia ser usado com o fito de afastar o debate da autoria e da existência do fato, visto que o Código de Processo Civil exige a observância do contraditório16, atributo consolidado como requisito primordial pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 617.428-SP17; condição esta ausente nos negócios jurídicos pré-processuais, como o acordo de não persecução penal. Dito isso, longe de encerrar o debate, parece que, para fins de excepcionar a regra da independência das jurisdições cível e criminal contida no artigo 935 do Código Civil, o acordo de não persecução penal não preenche requisitos adequados, seja como título apto à ação civil ex delicto, seja para tornar incontroverso o fato e autoria, pois lhe faltam característica de sentença transitada em julgado: devido processo legal e ampla dilação probatória, sustentando-se sobre uma confissão, que nos próprios termos da lei, é específica para o ato e não pormenorizada e ampl. Conclui-se, destarte, havendo ANPP mantém-se necessária a instrução probatória quanto ao fato e autoria na esfera cível, sob pena de colocar em posição de vulnerabilidade não apenas a finalidade do instituto de transação em si, mas também direitos e garantias fundamentais a serem observados no estado democrático de direito e pela desejável interpretação civil-constitucional dos institutos jurídicos. __________ 1 Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 7. 26.ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 40. 2 Em sentido convergente é a posição de Cláudio Luiz Bueno de Godoy in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. PELUSO, Cezar (Coord.). São Paulo: Manole, 2007, p. 779. 3 Disponível em aqui. 4 CPP. Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Disponível aqui. 5 REsp n. 1.802.170/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/2/2020, DJe de 26/2/2020. 6 Disponível aqui. 7 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. O acordo de não persecução penal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2020 e 2021. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 191/2022, p. 93/120. Jul-Ago de 2022. 8 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Acordo de não persecução penal e a expansão da justiça criminal: natureza, retroatividade e consequências ao descumprimento. Boletim Revista do Tribunais Online, vol. 27/2022. Maio de 2022: "Por outro lado, mecanismos como a transação penal e o acordo de não persecução penal possuem natureza distinta, ao passo que não são direcionados à produção de provas, mas exatamente à exclusão completa do processo e de sua finalidade cognitiva epistêmica. Enquanto a colaboração premiada busca, de certo modo, produzir provas para se verificar os fatos imputados, a transação penal e o ANPP excluem por completo o processo e qualquer pretensão cognitiva." 9 REsp n. 678.143/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 22/5/2012, DJe de 30/4/2013. 10 No mesmo sentido: REsp n. 1.829.682/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 9/6/2020. 11 Confira aqui. 12 Confira aqui. 13 Acordo de não persecução penal e suas repercussões no âmbito administrativo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 95, Abr-Mai de 2020, p. 15. Os autores bem explicam sua posição: "Milita a favor dessa ideia o princípio do devido processo legal, pois evidente que a confissão teve por propósito beneficiar-se do acordo de não persecução penal. Ademais, a confissão obtida seria de natureza extraprocessual, prestada perante a Polícia ou Ministério Público, e, portanto, destituída de valor probatório, conforme se verifica do próprio sistema, ao admitir como provas emprestadas apenas aquelas submetidas ao crivo do devido processo legal judicial". 14 Pet 7065 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 30/10/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 19-02-2020  PUBLIC 20-02-2020. 15 Admite-se que no bojo do acordo sejam inseridas cláusulas de sigilo ou limitação de acesso. 16 CPC. Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório. 17 EREsp n. 617.428/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/6/2014, DJe de 17/6/2014.