"É bem verdade que, de certo modo, a Responsabilidade Civil talvez seja o instituto jurídico que mais se redefine a partir das mudanças sociais. O estudo [...] não evolui apenas através da acumulação de conhecimentos, mas também incorporando novos modos de percepção"
(Farias; Rosenvald; Braga Neto, 2019, p. 25)
Resenha
Mistanásia traduz o contexto de exclusão social, ocasionando mortes de forma miserável, precoce e lenta de pessoas vulneradas, que dependem do atendimento de saúde pública. As mortes mistanásicas decorrem da situação de abandono social. Categorizando-as como danos existenciais, a obrigação de reparar o dano por parte do Poder Público, por meio dos entes federados, mostra-se indiscutível, pois os danos morais configurados devem ser reparados. As mortes recorrentes denunciam a precarização da saúde, a insuficiência de leitos hospitalares e o deficitário atendimento oferecido ao cidadão, enfim, a caótica condição dos hospitais e postos de atenção básica à saúde. Embora as verbas destinadas a este segmento da administração sejam expressivas, por diversas causas, não chegam às pessoas em situação de pobreza. Se, em virtude de comando constitucional do art. 6º e 196, o Poder Público tem o dever de promover saúde pública de qualidade e não o faz, incumbe-lhe criar mecanismos assecuratórios da efetividade do direito à reparação civil, objetivando a devida e justa compensação à morte em nível social de pessoas vulneradas, vítimas das mazelas da saúde pública, cabendo a nós, acreditarmos em um futuro melhor e nesse sentido fazer a nossa parte.
Introdução
A Mistanásia não é um fenômeno novo, deste momento, mas uma realidade que se tornou tão comum, que a violência em suas frequentes manifestações, nos grandes centros urbanos, em nada diferem das cenas da ficção. A morte indigna, em péssimas condições, com intermináveis agruras sempre me inquietou. No Brasil, as pessoas morrem muito mal e, talvez por esse motivo temam tanto o momento da morte, pois sabem que um dia, terão de enfrentá-la, pois ela virá, implacável, fria e desumana para a maioria. Por esse motivo, tenho estudado este fenômeno há mais de sete anos e, a cada dia, a situação se agrava; chegamos a perceber certa tendência à perpetuação, caso não sejam implementadas urgentes políticas públicas no sentido de resgatar a dignidade da população vulnerada. A propósito, quando utilizamos a expressão pessoas vulneradas, referimo-nos àquelas expostas a risco, pois o conceito etimológico da expressão vulnerabilidade significa expostas a risco, conforme leciona Amatriain (2017).
Este artigo corresponde a um novo aspecto da pesquisa, pelo qual situamos na esfera dos novos danos as mortes decorrentes das más condições de saúde da população brasileira vulnerada. Assim, ao deitar luzes sobre a natureza dessas mortes, podemos enquadrá-las como lesão a direitos existenciais antes não apreciados na fina percepção desta especial categoria. Por isso, as mortes por causas sociais, às quais denominamos mistanásicas, estão albergadas nos danos existenciais, uma vez que decorrentes do descumprimento, pelo Poder Público, do dever de promover saúde de qualidade à população vulnerada.
Para situar a expressão no contexto da Bioética, Ricci, explica a Mistanásia como substantivo e mistanásica, como adjetivo, ou seja, é a morte adjetivada, pois a expressão mistanásica tem conotação ética, não natural nem normal, portanto, adjetivada (precoce e evitável), que produz transformações pessoais e sociais, enfatizando que no Brasil a desigualdade social expõe um exército de pessoas vulneradas a situações de risco (Ricci, 2015).
Este exército se refere às centenas de milhares de brasileiros que morrem anualmente em razão de fome, miséria, desigualdade, falta de infraestrutura, violência nos centros urbanos e no trânsito, precarização no atendimento de saúde, dentre outras causas que se amoldam ao conceito de morte mistanásica. Para efeitos do presente estudo, basta-nos compreender as mortes mistanásicas como aquelas caracterizadas pela ocorrência da Mistanásia em suas diversas manifestações.
Não menos importante, torna-se categorizar Mistanásia na esfera dos novos danos, que são aqueles direitos clássicos, já existentes, mas que alcançou recente reconhecimento como prejuízo aos direitos existenciais, entendidos como aqueles inerentes à dignidade da pessoa humana. Uma vez albergadas nessa importante categoria de prerrogativas, as mortes mistanásicas passam a gozar de tutela com absoluta primazia, que impõe respeito erga omnes. Pois bem, nesse contexto, a tutela dos direitos existenciais exige observância e passa a atribuir reparação civil às violações referentes a essa espécie de dano.
A noção de reparar o dano se inspira na observância do dever jurídico segundo o qual não devemos causar mal a ninguém, traduzido pela expressão latina neminem laedere. Nessa linha de ideias, a responsabilidade civil passa a desempenhar importante papel na proteção dessa classe de direitos, preconizando reparação à vítima pelo dano sofrido, tendo em vista, basicamente três funções, segundo os eminentes juristas Farias; Rosenvald; Braga Neto (2019, p. 61 e segs): a função punitiva (que condena o autor pela prática ilícita e lesiva); a reparatória (que visa recompor o ofendido quanto à sua perda); e precaucional (que visa desestimular o agente de cometer novos ilícitos).
Então, no caso especifico da saúde, se identificados o ato ilícito (conduta antijurídica), o dano (prejuízo ao paciente) e o nexo de causalidade (liame entre a prática da conduta e o dano), teremos preenchido a tábua de pressupostos configuradores da responsabilidade civil, devendo o agente reparar o dano experimentado pelo paciente. Este é o desenho da responsabilidade civil no âmbito das mortes mistanásicas, cabendo ao Poder Público, nos limites de sua atuação, suportar o ônus advindo da reparação dos danos que os agentes públicos, nessa qualidade, causaram a terceiro (paciente) durante o atendimento, tratamento ou procedimento.
Mistanásia: conceito, contornos e correlação com direitos existenciais
Mistanásia é um neologismo cunhado na literatura bioética brasileira em substituição à clássica expressão "eutanásia social" que, na doutrina bioética internacional designa a morte em massa de pessoas vulneráveis. A necessidade de cunhar uma nova expressão se justificou pelo fato de que "eutanásia social" não corresponde à noção de mortes miseráveis, pois o prefixo "eu" é indicativo de "boa", sendo que a morte em nível social nada tem de boa: antes é indigna, em condições sub-humanas, lenta, precoce e ocorre sem que a pessoa seja capaz de completar o ciclo vital, então, por esse motivo a expressão não é apta a retratar a realidade das mortes mistanásicas. Alguns atribuem a autoria desta expressão que traduz o conceito de mortes indignas e miseráveis sob a nova designação a Marcio Fabri dos Anjos, ouros, a Leonard Martin, ao final da década de 1980. O conceito etimológico então seria uma derivação do vocábulo grego thanatus (morte) + mys (rato), significando morte como um rato, morte miserável, com dor e aflição.
Estudando a Mistanásia, elaborei um conceito amplo e semanticamente aberto com o objetivo de abarcar as variadas hipóteses nas quais o fenômeno se manifesta:
Mistanásia é a morte prematura, evitável, lenta e indigna de pessoas socialmente excluídas, em consequência da banalização da vida humana, devido a causas diversas que vão desde o abandono social e doenças a outros riscos naturais ou provocados a que estão expostas as pessoas vulneradas" (Cabral, 2020, p. 27).
No mesmo sentido, "A morte miserável põe em xeque a dignidade do indivíduo em seu direito de viver e de morrer sem sofrimentos adicionais" (Santos et al., 2020, p. 2). Isso porque a Mistanásia em variadas formas de ocorrência, descortina uma realidade nefasta, qual seja, um número elevado de óbitos de pessoas da população brasileira de forma indigna, miserável, angustiante, que morrem em razão de pobreza, fome, miséria, tráfico de entorpecentes, feminicídio, violência doméstica e familiar, por diversas formas de violência urbana, falta de infraestrutura, saneamento básico, dificuldades quanto ao acesso à saúde, dentre outras situações degradantes. Essas pessoas (sobre)vivem à margem do sistema de atendimento público de saúde, por motivos tais como: não conseguem chegar aos postos de atenção básica, ou conseguem ser atendidas, mas vêm a óbito por falta de aparelhamento, de recursos humanos ou negligência, enfim, situações nas quais percebemos a marginalização.
A consagração da dignidade como valor maior da CF, logo no art. 1º, como fundamento da República Federativa do Brasl, demonstra sua precedência não apenas topográfica, mas interpretativa, dotando-o de preferência em relação a qualquer outro princípio (Rosenvald, 2007): "A dignidade atuaria como cláusula aberta, legitimando a construção de direitos não expressos na Lei Maior, mas com ela compatíveis em razão de sua linha axiológica e principiológica" (Rosenvald, 2007, p. 51). Significa atribuir primazia à dignidade em relação aos demais princípios, convertendo-a em fio condutor das relações neste Estado Democrático. Assim, os direitos albergados no bojo da cláusula geral da dignidade da pessoa humana passam a gozar de tutela nunca antes verificada, com a correspondente reparação quando violada em quaisquer de suas manifestações. Por esse motivo, a Mistanásia e suas diferentes formas de ocorrência integram a órbita dos denominados novos direitos. Tratam-se de direitos de personalidade já existentes e consagrados, cuja violação não ensejava responsabilização civil, e só mais recentemente lhe foram conferidos o reconhecimento do dano decorrente da violação e o consectário lógico da responsabilidade civil: a reparação (Schreiber, 2013). Novos então não são os direitos, mas o reconhecimento dos danos e a consequência natural, a responsabilidade civil.
Nessa linha de intelecção, a Mistanásia não é um fenômeno recente, assim como os demais novos danos não o são, entretanto, até bem pouco tempo, a tutela dos direitos existenciais não era tão reconhecida, nem enfática a reparabilidade, pois foi ao conferir status de valor à dignidade da pessoa humana, que a responsabilidade civil alcançou a observância dos preceitos constitucionais e a efetividade da tutela dos direitos existenciais de forma imperativa (Schreiber, 2013). Nesta perspectiva, a relação de direitos existenciais se amplia de forma desmesurada e, ao adotarmos a tese da personalidade como valor, tentar enumerar as novas espécies de danos, será uma tentativa falha, pois sempre haverá novas hipóteses (Bodin de Moraes, 2009). Conforme se amplia e se diversifica a cada dia, crescem as situações merecedoras de tutela desses direitos.
As mortes mistanásicas no âmbito da saúde pública brasileira
A Mistanásia é uma realidade já emoldurada na periferia dos grandes centros, de forma que deixou de ser uma excepcionalidade para se converter em cruel rotina:
A violência se tornou costumeira e até banal: as trágicas mortes que aconteciam na tela da TV extrapolam aquele universo distante e agora se avizinham, trazendo essa realidade para cada vez mais próximo de cada brasileiro. As extensas filas nos atendimentos de saúde, com pessoas morrendo nos corredores dos hospitais dos grandes centros urbanos ou à porta deles sem atendimento começa a se reproduzir de forma mais nítida nas cidades de médio porte (Cabral, 2020b, p. 24).
À vista desses fatos, percebemos, em evidentes matizes, a forma como a Mistanásia tem assolado a população vulnerada e a necessidade, até mesmo urgência de adoção de políticas públicas a fim de operar uma transformação profunda e efetiva na realidade social brasileira, pois o maior bem jurídico violado tem sido a dignidade humana e o direito à saúde, como uma das principais prerrogativas da pessoa no que diz respeito à vida digna, por isso, o direito constitucional outorgado pelos arts. 6º e 196 da CF é de inegável magnitude e de obrigatória observância. Nesse viés, se, por um lado, o direito à saúde foi incorporado às garantias do cidadão brasileiro por força de comando constitucional, por outro, nasce um dever para a Administração Pública, que consiste na prestação positiva de promover saúde adequada à população, conforme disposição ipsis litteris: "A saúde é direito de todos e dever do Estado" (Brasil, CF, art. 196, 1988). Do descumprimento dessa garantia constitucional que causa lesão à população, nasce, para o Poder Público a obrigação de reparar o dano.
A despeito da enorme soma de numerário destinada à saúde pública pelo Governo Federal, os recursos ainda são insuficientes. Santos et al., (2020) explicam que "No Brasil, investimos menos de 4% do PIB em saúde pública nos últimos anos, o que ocasionou importantes deficiências no sistema de saúde e aumento de desigualdades sociais". É realmente uma parcela pequena em face de tantas dificuldades enfrentadas. No mesmo sentido:
O Brasil perdeu, nos últimos dez anos, mais de 41 mil leitos hospitalares no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2008, o total de leitos na rede pública era de 344.573. Em 2018, o total chegava a 303.185. [...] Os dados informam queda dos leitos em 22 estados e 18 capitais. A Região Sudeste apresentou a maior redução de leitos, com o fechamento de quase 21,5 mil em oito anos (LABOISSIÈRE, 2018).
Os recursos não alcançam usuários das extremidades, que seriam os primeiros destinatários dos serviços públicos de saúde, pois são muitos os que se encontram excluídos do sistema: as pessoas que não conseguem uma vaga no leito de um hospital, as que esperam mais de um ano para o exercício do direito à determinada cirurgia, as que aguardam na fila para um exame oneroso há dez meses, as residentes em locais de difícil acesso e que continuam à margem do atendimento de saúde e das condições dignas de vida.
A realidade revela uma crescente precarização no setor da saúde pública, revelando a ocorrência da Mistanásia de forma exponencial, com estatísticas estarrecedoras, a exemplo dos casos levados à análise pelo Poder Judiciário no que explicito abaixo, conforme registro na obra acerca da Mistanásia (Cabral, 2023):
responsabilidade civil do hospital municipal decorrente da morte de paciente, pela comprovação de nexo causal entre a conduta culposa e o dano moral e pensão mensal vitalícia dos dependentes da vítima;
ação de indenização por dano moral pela morte do filho devido à falha de diagnóstico de dengue hemorrágica e demora na internação em hospital estadual, constatando-se responsabilidade objetiva do Estado, por dano moral configurado;
prestação de serviços médicos em que o deslocamento de paciente por UTI móvel demorou (três horas de espera) no encaminhamento do transporte, provocando a morte do paciente;
paciente morre após esperar por atendimento, nos fundos do posto de saúde: uma vez demonstrado o nexo de causalidade, omissão e falha no atendimento; direito à saúde e dever do Estado, foi reconhecida a solidariedade entre os entes federativos quanto ao fornecimento de medicamentos de alto custo;
ação civil pública, ajuizada pelo MP do Rio Grande do Sul, em razão de esgotos a céu aberto, consistente em obrigação de fazer a instalação da rede de esgoto já projetada, por violação ao art. 45 da lei n. 11.445/2007;
estupro de vulnerável em circunstâncias desfavoráveis, em que houve aproveitamento da situação de miséria;
falecimento de filho, aos 11 anos, pois o paciente ingressou em hospital da União Federal para transfusão de sangue e, contaminado pelo vírus HIV, veio a óbito, cabendo obrigação de reparar o dano;
o autor foi contaminado com o vírus HIV nas dependências do Centro Previdenciário durante internação para tratamento de dengue, por falha do enfermeiro durante o procedimento, ao reutilizar utensílio descartável (seringa e agulha usadas anteriormente em doente com HIV), tendo o relatório de inspeção da Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado de Saúde realizada na instituição, um ano e meio depois do ocorrido com o autor, constatada a continuidade da prática de reutilização de materiais descartáveis.
Percebemos nas situações citadas de forma exemplificativa, a seriedade dos direitos existenciais violados, havendo ainda tantas outras de semelhante teor. A ementa, o Tribunal e os dados de cada um dos mencionados julgados foram devidamente indicados na obra "Mistanásia: vidas banalizadas, mortes miseráveis" (Cabral, 2023). Observamos a existência de vários aspectos caracterizadores da morte mistanásica: vulnerabilidade, deficiência ou carência no serviço médico-hospitalar; morte sem atendimento nos fundos do posto de saúde; excessiva espera para deslocamento; falhas no diagnóstico levando a pessoa a óbito; paciente em estado grave conduzido sem as devidas cautelas; direito à saúde descumprido pelo Ente Público; estado de miséria e exclusão social; falta de infraestrutura (tratamento de água e esgotos); contaminação por material descartável reutilizado em hospitais e consequente óbito.
Trata-se de uma realidade que precisa se tornar alvo de sérias, urgentes e eficazes políticas públicas, objetivando minimizar a ocorrência das mortes mistanásicas, a fim de podermos voltar a preconizar a dignidade e passarmos à implementação da humanização da medicina e do atendimento.
A responsabilidade civil por mortes mistanásicas
Pudemos observar que certos casos acima deflagram a atuação do Poder Judiciário (mediante provocação das partes legitimadas) para compelir a Administração Pública ao cumprimento do dever de promover saúde (art. 196 da CF): foi assim em relação aos medicamentos onerosos que o cidadão não pôde custear e com a obrigação de fazer a instalação das redes de esgoto que já estavam previamente planejadas mas não se efetivavam e, em muitas outras hipóteses, decisão judicial liminar para realização de exames, procedimentos e cirurgias de pessoas com risco de morte na enorme fila de espera do Sistema Único de Saúde (SUS).
Se por um lado, o teor dos julgados expostos demonstram a necessidade de atuação do Poder Judiciário para o acesso a medicamentos, atendimentos e intervenções nos hospitais para efetivar o direito à saúde, por outro, há decisões no sentido de reparar o dano experimentado pelos pacientes que foram a óbito vitimados pela omissão, o erro no diagnóstico, as falhas no atendimento, a morte por abandono, a negligência e outras espécies de prejuízos aos direitos existenciais, constituindo-se lesões morais do bem jurídico maior: a dignidade da pessoa humana, seguido do direito à vida, que por determinação constitucional é um direito inviolável.
Então, ante as considerações deste breve estudo a respeito da obrigação de reparar o dano, torna-se indispensável a coexistência de três pressupostos configuradores da responsabilidade civil objetiva, que diz respeito à Administração Pública, aos hospitais e postos de atendimento (927 e segs do CC e art. 14, caput, da Lei n. 8.078, de 1990, o CDC)): ato ilícito (que é a conduta contrária à lei, que causa o prejuízo ou dano a terceira pessoa); dano (prejuízo experimentado por terceira pessoa, o paciente, que pode ser material ou moral) e o nexo de causalidade (que é o liame entre o ato ilícito e o dano, sendo indispensável que o dano tenha decorrido diretamente do ato ilícito praticado).
No caso da responsabilidade civil dos agentes de saúde, como médico e demais profissionais da área, a responsabilidade civil será subjetiva, somando-se a esses três elementos anteriores (ato ilícito, dano e nexo causal), a culpa (os profissionais da saúde somente serão obrigados a reparar o dano se agirem com culpa, por força do art. 186 do CC e do art. 14, § 4º da lei 8.078, de 1990, o CDC: "§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa"). Comprovada a culpa, eles responderão; em não havendo prova da culpa, resta à instituição hospitalar (ou congêneres) a obrigação de reparar o dano experimentado pelo paciente, eis que a responsabilidade civil objetiva o impõe.
Pois bem, a partir dessa compreensão, todas as vezes que os hospitais e demais unidades de atendimento vinculadas a um ente federativo (União, Estados ou Municípios), por meio de seus agentes, praticam ato ilícito, nasce para a Administração Pública a obrigação de reparar o dano (essa obrigação subsiste em relação aos hospitais particulares, entretanto, eles não estão inclusos como objeto desta pesquisa). Se a Administração Pública é responsável pelos serviços de saúde oferecidos por meio dessas instituições, ela será obrigada a arcar com a reparação civil, conforme vimos na síntese dos julgados.
À guisa de remate, uma vez demonstrada a importância dos direitos existenciais violados pela Mistanásia e a consequente obrigação de reparar o dano na seara dos novos direitos e novos danos, concluímos pela necessidade da correspondente reparação civil todas as vezes que os pacientes forem vitimados por lesão aos direitos existenciais. Nesse caso, deverão buscar, primeiramente, em seara administrativa, a composição de conflitos e, em face de não haver conciliação, buscarem a via judicial para ajuizar a competente ação de reparação civil em face do ente público legitimado para figurar no polo passivo da demanda.
Conclusões
As mortes mistanásicas se caracterizam como novos danos na seara da responsabilidade civil, uma vez que a partir da valorização dos direitos existenciais, as lesões à dignidade da pessoa humana passam a compor um universo de direitos de primazia absoluta, os existenciais, decorrentes da dignidade da pessoa humana em todas as suas manifestações. A realidade é tão degradante, que se tornou conhecida pela doutrina bioética como morte em nível social, coletivo, em número tão elevado de pessoas cujas vidas são banalizadas, que levou Pessini a atribuir a esse fenômeno, a expressão "silencioso holocausto" (Pessini et al, 2015).
Nessa esteira, mais de valores do que de direitos propriamente ditos, as mortes mistanásicas, reconhecidas como dano existencial, passam a merecer especial tutela, devendo o Poder Público, em cumprimento da função social, criar mecanismos capazes de garantir e assegurar a efetividade do direito, promovendo a responsabilização civil, a fim de que a imensa camada de pessoas vulneradas, obtenham a reparação que lhes cabe, em face do dano por elas experimentado, pois quanto a eles, jamais serão alcançados os objetivos da reparação civil, a restitutio in integrum (restituição integral do dano, de forma a restabelecer o equilíbrio ao ofendido), tampouco o status quo ante (que visa restituir ao ofendido o estado anterior à ocorrência da lesão). Trata-se de lesão passível de reparação, da espécie compensação, que visa tão somente atenuar os efeitos do dano, pois a rigor, é irreparável, por força da natureza intangível do bem jurídico violado, qual seja, vidas humanas.
Precisamos crer em dias melhores, em um futuro promissor, no qual o volume de mortes mistanásicas se torne fato do passado, pois está nas mãos de nossa geração a possibilidade de acolhermos as obrigações como nossas e, como agentes transformadores, buscarmos viabilizar os valores e princípios da Lei Maior. E, aos que enquadram este sonho na categoria de utopia, concluo com a sabedoria de Pessini (2023, p. 20): "Então para que serve a Utopia? Podemos nos perguntar com Eduardo Galeano, e ele nos diz que 'a utopia está no horizonte. Caminho dois passos, e ela se distancia dois passos e o horizonte se afasta mais dez passos adiante'. Então para que serve a utopia, a não ser para caminhar? Então, caminhemos com esperança!" Ao que acrescento: e com muita fé!
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