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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
terça-feira, 10 de outubro de 2023

Responsabilidade civil e perda do tempo

Diz-se que Sísifo teria sido o mais perspicaz dos seres humanos: para evitar a pena que lhe havia sido imposta por deuses, teria enganado a morte. Quando finalmente é por ela alcançado, retorna aos vivos trapaceando o deus dos mortos. Por fim, é desmascarado e condenado à realização eterna de trabalho exaustivo e sem sentido1. Dentre os mais variados significados que podemos encontrar nesta fábula, destaca-se, sempre, aquele que talvez seja o mais evidente: opor-se à finitude da vida é essencialmente uma ocupação inócua. Do ponto de vista ontológico, portanto, seria a certeza do fim que nos daria sentido à vida. Como que em novo desafio aos deuses, a civilização ocidental parece ter se imbuído da missão de não só buscar o prolongamento da existência física2, como de garantir a perpetuação de nosso rastro existencial individual. Nesta nova batalha sisifiana, nossa estratégia foi regulatória: delimitamos a morte3, como que para limitá-la e, quando ela finalmente nos abraça, impomo-la a vontade4. Valendo-nos de certo sincretismo, invocamos a antiga mitologia egípcia para firmar que apenas o esquecimento seria o verdadeiro fim5. Somos, afinal de contas, apenas seres humanos. Há, entretanto, um segundo aspecto a considerar: não se trata apenas do fim como ausência de recordação, mas também como checkout de nossa breve hospedagem. Embora saibamos, pelo menos por enquanto, que o tempo não é igual para todos6; reconhecemo-lo como inevitável e finito. E, embora devêssemos levá-lo como aqueles que gazeiam aula7, sem sequer olhar o relógio8, o enfrentamos com a coragem de sonâmbulos9. Talvez esta conclusão revele a esperança em nova promessa prometeica10, mas gosto de pensar que Sísifo talvez tenha mais uma vez logrado os deuses: enquanto é lembrado, vive, assim como burla o tempo enquanto rola a rocha. Sua finitude acabou. Sem esta mesma certeza, contudo, precisamos encarar uma lição póstuma: se "matamos o tempo; o tempo nos enterra"11. Daí porque o Ocidente parece ter adotado, quanto a este segundo aspecto, uma abordagem significativamente diferente: a valorização do tempo12. Esta premissa, contudo, não é apenas filosófica ou poética, mas também jurídica. Seus reflexos podem ser encontrados, por exemplo, nas noções de termo, prescrição, decadência, preclusão e duração do processo. Seria, então, o tempo traduzível como bem jurídico? Poderia ser tutelado em face daqueles terceiros que insistem em esbanjá-lo? Ocorre-me, contudo, que definir o tempo como tal, traria consequências relevantes: da ressignificação da mora à consagração de um potencial dano extrapatrimonial autônomo. Falar, então, em desperdício do tempo pode associar consequências sensíveis à tema que permeia muitas interfaces do Direito Privado. Para exemplificar, bastaria afirmar que o desrespeito à duração razoável do processo para além de violação a direito fundamental13, seria tomada como violação de direito de personalidade, com a constatação do dano in re ipsa14. A dúvida que permeia este ensaio não é completamente despropositada, portanto. Nem sua resposta é simples. Foi neste cenário que me interessou, especialmente, a recentíssima manifestação da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reafirmava a aplicação de precedentes anteriores daquela mesma Corte no sentido de que não seria qualquer atraso suficiente a justificar o reconhecimento de violação a um direito de personalidade15. Era a discussão que, em alguma medida, já foi visitada pela doutrina e jurisprudência quando debateram a possibilidade de danos extrapatrimoniais a partir do inadimplemento. O caso, em si, envolvia, contudo, situação muito menos complexa: consumidor pretendia ver-se indenizado pelas dificuldades experimentadas com a liberação de imóvel que havia adquirido16. Para apreciar a questão, a Corte, como já havia feito em outros precedentes, invocou a chamada teoria do desvio produtivo do consumidor, para, ao final, distinguir o aborrecimento sentido pelo indivíduo da perda do tempo útil nas relações de consumo. Eis o ponto que me chamava a atenção: a aparente consideração de distintos "tempos"17. Seria o tempo útil conceito distinto do tempo cronológico, então? A chave da resposta estaria na forma como o STJ compreenderia e aplicaria a teoria do desvio produtivo. Daí porque passaria a ser necessária uma pesquisa18 mais ampla para que pudesse extrair qualquer conclusão. De início, constata-se que todos os poucos casos encontrados naquela Corte associam a aplicação da teoria do desvio produtivo a situações que descrevem como perda do "tempo útil". Ocorre que a chamada teoria do desvio produtivo trataria como o dano aquele que decorreria da atribuição maliciosa e danosa de dever/custo próprio do fornecedor ao consumidor: a assunção de deveres e custos operacionais para a solução de falha na prestação do serviço ou serviço que desviariam o consumidor de suas atividades diárias de modo a exonerar o fornecedor (que lucraria indireta e indevidamente com a situação)19. A rigor, portanto, a teoria do desvio produtivo não se refere, propriamente, a hipóteses de responsabilidade civil pela perda do tempo livre ou útil, mas à responsabilidade pelo desvio produtivo, ou seja, desequilíbrio obrigacional causado pela transferência dos 'custos' (em sentido amplo) do fornecedor ao consumidor. Haveria, neste contexto, salvo engano, mais uma análise de uma prática comercial abusiva, focada no desequilíbrio obrigacional, que propriamente a defesa de violação de um direito fundamental ao tempo. Em outros termos, para sua incidência pouco importaria se o consumidor empregasse suas férias ou horário de trabalho para solucionar a falha no serviço ou produto. Para que pudesse ter certeza de que este seria o contexto dos precedentes invocados é que a pesquisa passava de necessária a imprescindível. 1) O precedente inicial sobre o tema teria sido o Recurso Especial n° 1.634.85120 de relatoria da Min. Nancy Andrighi e que envolvia demanda coletiva acerca da interpretação do art. 18, §1°21 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nele acabou prevalecendo o entendimento de que não poderia o fornecedor impor ao consumidor o dever de encaminhamento do produto viciado à assistência técnica para que fosse consertado. Neste caso, a teoria do desvio produtivo surgiu como reforço argumentativo a justificar que, muitas vezes, o acesso à assistência técnica é, inclusive, prejudicado. A rigor, portanto, este recurso não abordaria a aplicação da teoria, nem a pretensão indenizatória pela perda do tempo. 2) No Recurso Especial n° 1.737.412-SE22 também de relatoria da Min. Nancy Andrighi, discutiu-se o desrespeito ao tempo máximo de atendimento do consumidor em agência bancária pela perspectiva do chamado dano moral coletivo. Neste caso constatou-se a viabilidade de "proteção à perda do tempo útil do consumidor (...), realizada sob a vertente coletiva, a qual, por possuir finalidades precípuas de sanção, inibição e reparação indireta, permite seja aplicada a teoria do desvio produtivo do consumidor e a responsabilidade civil pela perda do tempo." O fundamento desta pretensão 'indenizatória' seria a ofensa aos deveres anexos da boa-fé "com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço". Neste caso, salvo melhor juízo, o bem jurídico tutelado teria sido a perda do tempo qualificada pela transferência dos custos operacionais pelo fornecedor (desvio produtivo) que permitiria o reconhecimento de caráter punitivo à atribuição da responsabilidade civil. 3) No Recurso Especial n° 1.406245-SP23 de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, por outro lado, a discussão envolvia o pedido indenizatório por aquilo que acabou identificado como "dissabores por não ter havido pronta resolução satisfatória, na esfera extrajudicial, obrigando o consumidor a lavrar boletim de ocorrência em repartição policial". Neste caso, a pretensão individual do consumidor acabou sendo afastada por não caracterizar lesão a direito de personalidade. 4) No Recurso Especial n° 1.929.288-TO24, novamente de relatoria da Min. Nancy Andrighi, reconheceu-se a aplicação da teoria do desvio produtivo, em análise sob a perspectiva coletiva, assim como a responsabilidade civil em sentido punitivo. O caso envolvia "a prestação inadequada dos serviços de atendimento em caixas eletrônicos por falta de numerário ou de terminais operantes não se justifica por eventual incremento das ocorrências de furtos ou roubos às agências bancárias ou por qualquer outro incremento da insegurança no desempenho da atividade empresarial, porquanto se trata de risco inerente à atividade desenvolvida pelas instituições financeiras, cujos custos não podem ser transferidos aos consumidores". Mais uma vez a perda do tempo útil surgia qualificada pela transferência de riscos. 5) Por fim, no Recurso Especial n° 2.017.194-SP25, mais uma vez de relatoria da Min. Nancy Andrighi, declara-se que a teoria do desvio produtivo aplicar-se-ia, exclusivamente, às relações de consumo uma vez que se fundaria na vulnerabilidade do consumidor, na violação de deveres associados ao produto e serviço, na violação do dever de informação e na proteção contra práticas abusivas. Além disso, deve-se destacar que o acórdão menciona, expressamente, o que denomina "dano temporal", afirmando que esta tese não estaria em análise, assim como não teria sido apontado no recurso fundamento normativo do Código Civil suficiente para apreciar o desvio produtivo por este viés. A esta altura, então, parecia possível concluir que o STJ não apreciou, ainda, o tema da perda do tempo (dano temporal) como potencial dano autônomo. O único momento em que o tema surge é como esclarecimento de sua exclusão e para advertir o potencial risco de seu reconhecimento (Recurso Especial n° 2.017.194-SP). Por outro lado, a menção dos julgados à perda do "tempo útil" permitiria concluir: 1. Não se aplicar, em princípio, à pretensão individual de consumidor. Nos dois casos analisados pela Terceira Turma (REsp n° 2.232.663-RJ e REsp n° 1.406245-SP), a necessidade de providências extrajudiciais para tentar viabilizar a solução do caso não teriam o condão de violar direito de personalidade. 2. Serviria, em princípio, para fundamentar a pretensão coletiva de tutela do consumidor (Recurso Especial n° 1.737.412-SE e Recurso Especial n° 1.929.288-TO), inclusive quanto ao caráter punitivo de condenação 'indenizatória'. 3. Tratar-se de situação qualificada muito mais como prática comercial abusiva e violação das obrigações decorrentes do princípio da boa-fé objetiva que de tutela de um bem jurídico tempo. É neste contexto, então, que se encaixa o unânime recurso à teoria do desvio produtivo naquela Corte. 4. O STJ não apreciou, ainda, o tema do desvio produtivo sob a perspectiva, exclusiva, de violação de dispositivo do Código Civil (Recurso Especial n° 2.017.194-SP), por isso, por enquanto, o tema é matéria exclusiva de tutela de consumo. Sob a perspectiva, então, do STJ poder-se-ia afirmar que, embora não exista ainda, propriamente, jurisprudência sobre o tema, não seria o tempo reconhecido como bem jurídico autônomo a justificar pretensão indenizatória pelo seu desperdício por terceiros. Este esboço, contudo, não reflete toda a complexidade da questão, nem traz uma resposta definitiva ao questionamento. Para esta conclusão, pareceu-me oportuna a realização de breve pesquisa junto ao E. Tribunal de Justiça de São Paulo. Dela constatou-se que, em tese, o tema já estaria sendo debatido em volume considerável (o verbete consta de 5013 ementas26) e para além das relações de consumo27. Além disso, nos acórdãos analisados foi unânime, nos estreitos limites da amostra, a associação da teoria do desvio produtivo ao exagerado desperdício, não qualificado, de tempo. A indenização correspondente passou, então a ser apreciada a partir do excesso ou anormalidade desta perda28. Como se percebe, trata-se de resposta menos restritiva à aplicação elaborada pelo STJ. No Recurso Especial n° 2.017.194-SP a Terceira Turma advertia que "eventual aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor exige cautela e parcimônia, sob pena de causar indesejada insegurança jurídica". O seu fundamento principal de aplicação (violação de deveres anexos e prática comercial abusiva), contudo, permite que a mesma solução seja aplicada aos consumidores por equiparação29. Precisamos, portanto, discutir o tema de forma mais aprofundada, sob pena de nos limitarmos a afirmar: "não tenhamos pressa, mas não percamos tempo"30. __________ 1 O leitor deve conhecer várias representações gráficas deste mito, em resumo trata-se do sujeito que rola enorme rocha morro acima, apenas para ver, sempre, frustrado seu objetivo final. O mito inspirou, ainda, o famoso livro de Albert Camus em que introduz a sua filosofia do absurdo. 2 A título de exemplo podemos destacar recentes estudos que classificam a "cura" ao envelhecimento celular como chave para o prolongamento indefinido da vida (YANG, Jae-Hyun; HAYANO, Motoshi; GRIFFIN, Patrick T.; PFENNING, Andreas R.; RAJMAN, Luis A.; SINCLAIR, David A. Sinclair. Loss of epigenetic information as a cause of mammalian aging, disponível aqui). Em defesa deste raciocínio, normalmente se indicam as pesquisas demográficas. No Brasil, por exemplo, ela teria quase dobrado em um século: de 33,7 anos (1900) para 77 anos (2021). 3 Vide, por exemplo, a Resolução CFM n° 2.173 de 2017, disponível aqui. 4 Nesta perspectiva a ampliação do escopo da autonomia privada, do contrato ao testamento e diretivas antecipadas, e a preocupação com a utilização da inteligência artificial para nossa própria recriação, seriam exemplos atuais. Diga-se, que recente utilização publicitária de falecida cantora chegou mesmo a motivar, no Brasil, a apresentação de Projeto de Lei que a regulasse (PLS n° 3592/2023, disponível aqui.). 5 Daí sua preocupação existencial com a perpetuação da memória do falecido, seja pela adoção de elaborados ritos funerários, a permanência do culto dos antepassados, a preservação do corpo e a construção de templos e túmulos com a preocupação de contar a existência daquela pessoa. Proferir o nome do morto, era dar-lhe existência. O desenvolvimento da escrita (neste caso a hieroglífica) parece ser, então, condição desta perpetuidade e, ainda neste sentido, Tutancâmon talvez seja o mais vivo de todos os antigos egípcios.  6 O leitor reconhecerá, em forma excessivamente simplista, o enunciado da Teoria da relatividade de Albert Einstein, segundo a qual o tempo é reconhecido como uma quarta dimensão do espaço-tempo sendo influenciado pela velocidade, espaço percorrido e, claro gravidade. Daí porque o tempo correria mais rápido na Terra que no Espaço. Interessante expressão visual destas conclusões pode ser vista no filme Interestelar disponível em streaming. 7 "A gente deve atravessar a vida como quem está gazeando a escola e não como quem vai para a escola." (QUINTANA, Mário. Caderno H. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013). 8 "A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal. Quando se vê, já terminou o ano. Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado. Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas. Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo. E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará." (QUINTANA, Mário. Antologia poética. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015). 9 "Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa, minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai." (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998). 10 Segundo a mitologia grega Prometeu, um dos Titãs, furtou o fogo divino para entregá-lo aos seres humanos. Serve de alegoria civilizatória, uma vez que teria sido o conhecimento que nos tornou diferentes do que éramos. Interessante notar que há um ponto de contato entre os dois mitos: Sísifo e Prometeu transgredem e, ao fazê-lo, buscam reinventar o mundo. 11 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin-Companhia, 2014. Capítulo CXIX. 12 Trata-se, é claro, de simplificação. Se seguirmos a trilha de Ost, falar-se-ia em inexistência do tempo por si, pois categoria social que é institucionalizada pelo Direito e, com ele, mantem relação dialética (OST, François. O tempo do direito. Bauru: Educs, 2005). 13 Art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação." 14 Esta aparentemente não é uma conclusão tão simples, conforme atestam as decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, o Habeas Corpus em que se afirmou que a "razoável duração do processo não pode ser considerada de maneira isolada e descontextualizada das peculiaridades do caso concreto." (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n° 198396, Primeira Turma, Relator Min. Luís Roberto Barroso, julgamento em 17 de maio de 2021). 15 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n° 2.232.663-RJ, Terceira Turma, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18 de setembro de 2023. 16 Como o STJ não poderia analisar os fatos que ensejariam tal pretensão indenizatória, a decisão fazia referência à explicação contida no acórdão originalmente recorrido: o dano teria surgido do "fato do consumidor ser exposto à perda de tempo na tentativa de solucionar amigavelmente um problema de responsabilidade do fornecedor e apenas posteriormente descobrir que só obterá uma solução pela via judicial". 17 Para reconhecer o tempo como instituição social, ele o distingue de outras duas experiências humanas: o tempo como fenômeno físico (no contexto deste ensaio, o envelhecimento ou o avançar dos dias, semanas, meses, etc.) e o tempo com experiência individual (a sensação de longa duração, por exemplo, quando enfrentamos uma fila no supermercado, distinta daquela que talvez tenhamos se estivéssemos em lugar mais agradável). 18 Pesquisa realizada em 03/10/2023, sem limitação temporal e com os verbetes "desvio produtivo" (4 casos) e "perda de tempo" (1 caso). 19 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: um panorama. Direito em movimento. Rio de Janeiro, v. 17, n.1, 1º semestre de 2019, p.15-31. 20 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.634.851-RJ, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 12 de setembro de 2017. 21 Direito de o fornecedor consertar o produto viciado em até 30 dias. 22 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.737.412-SE, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 05 de fevereiro de 2019. 23 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.406.245-SP, Quarta Turma, Relator Min. Luis Felipe Salomão, julgamento em 24 de novembro de 2020. 24 Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial n° 1.929.288-TO, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgamento em 22 de fevereiro de 2022. 25 Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial n° 2.017.194-SP, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgamento em 25 de outubro de 2022. 26 A escolha deste Tribunal se deu em razão de dois fundamentos: ser o maior do país em volume de casos, bem como ser um dos dois mais relevantes para a discussão a partir dos casos julgados pelo STJ. A pesquisa conduzida no mesmo dia (03/10/2023) revelou 5013 casos que, de alguma forma, se referem a "desvio produtivo" (exclusivamente na ementa). Seria, portanto, impossível apreciá-los todos. Apenas nos dois primeiros dias de outubro de 2023 foram julgados 10 casos. São eles que adotei como amostra. 27 Como em recurso que tratava de pretensão individual envolvendo situação empresarial em que se reconheceu a aplicação da tese do desvio produtivo (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1065142-56.2022.8.26.0100, 33ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Sá Moreira de Oliveira, julgado em 1º de outubro de 2023). 28 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1065142-56.2022.8.26.0100, 33ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Sá Moreira de Oliveira, julgado em 1º de outubro de 2023 (não teria havido "o dispêndio excessivo e anormal de tempo"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1000897-26.2023.8.26.0577, 28ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Ferreira da Cruz, julgado em 2 de outubro de 2023 (demora na execução obrigacional ultrapassou o limite do aceitável" que teria extrapolado "inocente inadimplemento contratual"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1014242-57.2022.8.26.0007, 26ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Carlos Dias Motta, julgado em 2 de outubro de 2023 (o autor "não demonstrou o dispêndio de tempo considerável na solução administrativa do impasse."); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1024154-86.2022.8.26.0554, 26ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Carlos Dias Motta, julgado em 2 de outubro de 2023 (o autor "despendeu tempo excessivo na tentativa de solução extrajudicial do impasse", tendo recorrido ao Reclame Aqui e ao Procon antes do ajuizamento da ação); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1002487-65.2022.8.26.0450, 14ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, julgado em 2 de outubro de 2023 (a autora se viu obrigada a "percorrer percurso desnecessário para quitar a dívida"; Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005014-57.2022.8.26.0072, 15ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Achile Alesina, julgado em 2 de outubro de 2023 (a autora se viu obrigada a "entrar em contato com os réus para tentativa de solução do problema e lavrar Boletim de Ocorrência"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005546-37.2023.8.26.0576, 11ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Marino Neto, julgado em 2 de outubro de 2023 (não comprovada a "excessiva perda de tempo, para solução da controvérsia"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1002314-59.2022.8.26.0153, 24ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Márcio Teixeira Laranjo, julgado em 2 de outubro de 2023 (o consumidor não teria comprovado o "empenho de tempo desmedidamente excessivo, intolerável, pela requerente, na tentativa de solucionar o entrevero"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005407-63.2023.8.26.0066, 34ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Issa Ahmed, julgado em 2 de outubro de 2023 (não se comprovou "ter desperdiçado quantidade desarrazoada de tempo para solução da celeuma") e Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1010012-84.2022.8.26.0002, 34ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Issa Ahmed, julgado em 2 de outubro de 2023 (a consumidora teve "desperdiçado seu tempo na tentativa de solucionar problemas gerados pelo próprio fornecedor"). 29 Art. 29. Para os fins deste Capítulo [CAPÍTULO V - Das Práticas Comerciais] e do seguinte [CAPÍTULO VI - Da Proteção Contratual/, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." 30 SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Recentemente eu identifiquei mais de -incríveis - trezentos acessos feitos, em sua maioria, por uma advogada a um processo judicial em que eu e minha sócia defendemos os interesses de 3 dos 4 médicos acusados por erro profissional. Intrigado da razão de tantos acessos, pesquisei no Google quem seria a advogada tão interessada nesta causa e fui surpreendido com seguinte autodescrição da advogada consultora: "atuo na maior lawtech do Brasil, vivendo a fronteira do Direito com a Tecnologia, na missão de conectar todos os cidadãos à justiça". Posteriormente, percebi que as petições relativas a este processo eram disponibilizadas por esta lawtech de forma onerosa, mediante a assinatura de planos. E mais, que os assinantes conseguem obter acesso não apenas à petição original, mas também à petição editável em word com a supressão dos nomes das partes para -  de acordo com a lawtech - promover o reforço argumentativo de suas próprias peças. Ou seja, advogados não integrantes do processo conseguem ter acesso às petições feitas de outros profissionais, remunerando a lawtech, e não há qualquer discussão acerca de eventual violação de direitos dos profissionais da advocacia responsáveis pela construção das peças. Como forma de afastar uma suposta responsabilidade na prática de auferir lucros com o trabalho intelectual de terceiros, a referida lawtech cita, em seu próprio site, a decisão do STJ de 2002 que estabelece que: Por seu caráter utilitário, a petição inicial somente estará protegida pela legislação sobre direito autoral se constituir criação literária, fato negado pelas instâncias ordinárias. Súmula 7/STJ. Recurso não conhecido. (REsp 351.358/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2002, DJ 16/09/2002, p. 192) O presente autor sabe que este é o posicionamento do STJ, porém há uma diferença significativa entre o julgado de 2002, quando não havia um sistema de informatização consolidado, e caso aqui discutido de apropriação das petições em escala e disponibilizada mediante remuneração para um terceiro. O julgado de 2002 considerava um contexto fático, histórico, tecnológico e finalístico distinto à realidade atual, visto que antes a busca era utilitarista. Ocorre que tal critério, sob a perspectiva da lawtech, é inexistente, posto que estas empresas usam as petições com o objetivo precípuo de aferir lucro. Não há, neste uso,  solidariedade ou atuação empática; há objetivo de enriquecimento, em larga escala. A verdade é que, ao comercializar peças processuais editáveis de terceiros, a lawtech promove verdadeira captura da atividade intelectual do profissional da advocacia, sistematiza tal entendimento e depois cobra para que outros juristas tenham acesso a tais documentos. Ressalte-se que as petições não estão excluídas da proteção jurídica ao direito autoral. O que houve, em dado momento histórico, foi a exclusão judicial desta proteção em análises casuísticas totalmente diferentes da situação em apreço. É importante, inclusive, notar que a própria reflexão sobre a natureza jurídica da petição judicial e a necessidade de proteção tem evoluído, conforme se observa de decisão da OAB/SP: TRABALHOS FORENSES - CÓPIA DE PETIÇÕES SEM AUTORIZAÇÃO - ANÁLISE EM TESE - INFRAÇÃO ÉTICA Advogado que copia petição de outrem, ipsis literis, sem indicação da fonte e sem autorização, ainda que tácita ou decorrente de comportamentos concludentes, comete a infração ética prevista no art. 34, V, do CED e afronta princípios imemoriais do direito e da moral, quais sejam: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere. A reprodução parcial, se desbordar os limites análogos aos do direito de citação, também pode, em tese, ensejar o cometimento de infração disciplinar. Precedentes da Primeira Turma: E-2.391/01, E-3.075/04 e E-3.137/2005. Proc. E-4.558/2015 - v.u., em 17/09/2015, do parecer e ementa do Rel. Dr. FÁBIO DE SOUZA RAMACCIOTTI - Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO - Presidente em exercício Dr. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF Se, antes da virtualização dos processos judiciais, um jurista em consultar o processos patrocinados por outros advogados tinha se deslocar ao fórum, consultar cada uma das varas e fazer um trabalho braçal - uma vez que não desejava fazer o intelectual -, , agora, esta virtualização - tão benéficas às partes, aos profissionais da advocacia, aos membro do Ministério Público, aos serventuários e Magistrados - promove o favorecimento da indolência: todos estão a um click da petição alheia.  Neste contexto, o trabalho intelectual é do profissional da advocacia probo, mas os ganhos são capturados pelas lawtech. Uma socialização às avessas, afinal, sob a pretensa alegação de fomentar e dar robustez às petições elaboradas por seus clientes, as lawtechs disponibilizam de forma onerosa as petições editáveis elaboradas por terceiros. Ora, se as petições são disponibilizadas de forma editável, então não há uma função utilitária, visto que não se propõe a reforçar argumentos ou de consultar a argumentação desenvolvida pelo jurista expropriado. Em verdade, esta disponibilização facilita e permite  que uma peça jurídica - que, por vezes, representa um trabalho intelectual árduo, precedido de horas de estudo e pesquisas - seja simplesmente copiada por um terceiro. E mais, essa facilitação e permissão são feitas por uma lawtech que nada contribuiu para o desenvolvimento da tese e que, ao monetizar em cima do trabalho intelectual alheio, em nada contribui para o exercício ético da advocacia. É importante evidenciar, ainda, que o caso aqui discutido é distinto dos inúmeros bancos de petições disponibilizados gratuitamente por advogados ou mediante remuneração dos próprios autores das peças: enquanto neste o próprio autor da peça decide autonomamente vender seu trabalho intelectual, naquele, um terceiro se apropria do trabalho alheio e aufere ganhos com ele. Exemplificativamente, aceitar esta prática das lawtechs seria a mesma coisa que aceitar que um terceiro poderia "comprar" um banco de petições e depois revende-las a preço módico, tolhendo o próprio autor da peça de ser remunerado por ela. Diante disso, há a necessidade de repensar a natureza jurídica da petição jurídica, notadamente, para proteger o profissional da advocacia dos interesses meramente financistas das lawtechs. Está-se, portanto, diante da flagrante vulnerabilidade imposta pela tecnologia. E, neste contexto, é imperioso que se reconheça a necessidade de remuneração do produto do trabalho/estudo do profissional da advocacia pois, a despeito da advocacia não ser considerada atividade mercantil, os honorários possuem natureza alimentar. Saliente-se, ademais, que o trabalho do profissional da advocacia não pode ser considerado uma mera junção de ideias ou um conjunto de frases soltas. O próprio estatuto da OAB estabelece que: Art.  3º-A.  Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei. Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Ou seja, de acordo com a norma deontológica da advocacia, o trabalho do advogado é técnico e singular, baseado em experiências, estudos, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica e outros requisitos relacionados. Por detrás de todas estas variáveis está o custo financeiro e o tempo de trabalho/vida, fatos ignorados quando uma lawtech simplesmente se apropria e cobra pelo acesso às referidas petições editáveis. Curioso notar que, recentemente, o STJ firmou posicionamento acerca da ilicitude da prática do clipping por desestimular a aquisição dos veículos de comunicação tradicionais (Informativo STJ nº 785, REsp 2.008.122-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 22/8/2023, DJe 28/8/2023). Analogamente, é possível estender tal entendimento para petições situação aqui analisada, pois a venda - por lawtechs -  de petições editáveis capturadas desestimula a contratação dos reais autores das obras; afinal, estar-se-ia diante de uma atuação parasitária dos usuários das lawtechs que oferecem este serviço pois estes, assim como os consumidores de clippings, objetivam receber um benefício em face do desestímulo do trabalho de outrem. De certa forma, tem-se, aqui, um comportamento típico de um free-rider, ou seja, um caroneiro que obtém ganhos não proporcionais a contribuição formalizada pelo efetivo autor da obra; pois,ois, em resumo, um jurista pode estabelecer que o valor da sua petição é de R$5.000,00 (cinco mil reais), enquanto o caroneiro pagará risíveis R$69,90 para um terceiro e obterá um benefício econômico desproporcional, antiético e imoral. Verifica-se, assim, que a aceitação de tal prática significaria aceitar que a proteção jurídica ao trabalho do advogado - profissional cuja função é, por expressa previsão constitucional,  indispensável à administração da justiça -, está condicionada à submissão destes profissionais ao arbítrio de empresas que se escondem atrás do mote da inovação para perpetuar uma prática milenar do capitalismo selvagem. Em conclusão: não se pretende, aqui, limitar a discussão jurídica ou defender a vedação de que advogados consultem petições de outros profissionais da advocacia. O que se pretende é o reconhecimento de que os contornos específicos trazidos pela exposição concatenada de fatos, doutrina, jurisprudência e do próprio uso da linguagem se traduzem como manifestação autoral cuja apropriação e venda por terceiros se mostra ilícita e caracterizam um enriquecimento sem causa. __________ *Agradeço ao professor Filipe Medon por ter compartilhado algumas de suas reflexões sobre o tema e contribuído, a partir dos debates, do desenvolvimento das ideias trazidas no presente texto.
Tomamos como ponto de partida a noção mais comum de imputabilidade, no sentido de capacidade de compreender o caráter ilícito da conduta que se pratica.1 A imputabilidade, assim, é tratada como elemento subjetivo do ato ilícito, ao lado da culpa, enquanto a antijuridicidade, entendida como contrariedade ao direito, constitui o elemento objetivo do ilícito. A imputabilidade em nosso sistema é atrelada à capacidade jurídica de exercício, que pressupõe a presença de sanidade e de maturidade. Tanto é assim que o Código Civil de 1916 não previu a responsabilidade civil dos sujeitos incapazes, deixando sob a exclusiva e integral responsabilidade de seus pais, tutores e curadores a obrigação de reparar danos causados. Já o Código Civil de 2002, avançando, ainda que de um modo particular, sob a influência de sistemas estrangeiros, previu no artigo 928 a responsabilidade subsidiária dos incapazes, mitigada pela fixação equitativa da indenização como previsto no parágrafo único.2 A doutrina, ainda longe de pacificar o assunto, debruçou-se sobre a nova norma com o intuito de compreender a natureza dessa responsabilidade. Para alguns, seria uma imputação objetiva, por entender ser impossível se cogitar para um sujeito sem discernimento a prática de um ato ilícito culposo, justamente por faltar o elemento subjetivo deste.3 Para outros, seria esta responsabilidade subjetiva, fundada numa culpa objetiva4, que remete à análise do erro de conduta independentemente das condições do sujeito, bastando-lhe o desvio objetivo de padrões/standards gerais de comportamento socialmente esperados em dadas circunstâncias. Foca mais na conduta causadora do dano do que no seu autor. A inimputabilidade, assim, simplesmente deixaria de ser um elemento necessário para a configuração do ato ilícito e não obstaria a própria responsabilidade subjetiva, porque ainda fundada na culpa. Essa concepção, todavia, esbarra nos limites da normativa brasileira, que pressupõe a inimputabilidade como consequência da incapacidade e, justamente por isso, não atribui a obrigação de indenizar diretamente, em primeiro plano, ao sujeito com o status de incapaz, mas apenas subsidiariamente. Se a intenção fosse adotar a culpa objetiva, desatrelada em absoluto da imputabilidade para atribuição geral da obrigação de indenizar nos moldes do sistema francês, não teria justificativa a subsidiariedade da responsabilidade do incapaz.5 Enfim, para o que podemos chamar de terceira corrente, a responsabilidade dos incapazes seria essencialmente fundada na equidade, para justificar a atribuição, mesmo a um sujeito inimputável, da obrigação de reparar, função esta primária da responsabilidade civil, lastreada numa ponderação entre os interesses da vítima e do autor do dano quando este tiver condições patrimoniais de arcar com a indenização sem prejuízo do que lhe é necessário ou necessário para aqueles que dele dependem.6 Em qualquer das três perspectivas, a inimputabilidade aparece indissociavelmente ligada à incapacidade jurídica de exercício. Mas todas chegam ao mesmo lugar, conferindo maior peso à antijuridicidade, para reconhecer a responsabilidade civil subsidiária e com indenização equitativa dos sujeitos incapazes. Claramente a responsabilidade civil destacou-se da imputabilidade, mantida, entretanto, a noção comum, posta por nossa doutrina dominante e jurisprudência, de inimputabilidade como produto da incapacidade, exatamente porque nosso Código Civil não prevê a responsabilização primária dos sujeitos incapazes. Apartamo-nos do sistema francês7 e das jurisdições da common law8, que estabelecem a plena e direta responsabilidade civil dos incapazes, a partir de uma concepção de culpa desprovida de nuances subjetivas, ou seja, da chamada "culpa objetiva". Aproximamo-nos dos sistemas italiano e alemão9, que afastam a responsabilidade em primeiro plano dos sujeitos inimputáveis.10 Mas nestes últimos ordenamentos, porém, não há uma expressa vinculação da inimputabilidade à incapacidade. De uma forma mais veemente, dispõe o Código Civil de Portugal: "Art. 489. 1. Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância. 2. A indemnização será, todavia, calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos". Não obstante a evidente aproximação com o parágrafo único do artigo 928 do Código Civil Brasileiro, o ordenamento português não se refere ao "incapaz", mas ao "não imputável". Cumpre-nos avaliar se atualmente ainda convém manter a inimputabilidade como reflexo automático da incapacidade no campo da ilicitude ou se cabe advogar uma fratura entre os dois conceitos e, havendo, qual seria sua repercussão e, ainda, se essa repercussão é congruente com a ordem constitucional vigente. Pois bem. Partindo primeiramente da literalidade da própria normativa aplicável, em nenhum momento o Código Civil de 2002 afirmou taxativamente que a pessoa incapaz jamais praticaria ato ilícito ou que seria sempre considerada inimputável. Sob uma perspectiva lógica inversa, tampouco afirmou categoricamente que a pessoa capaz deverá necessariamente sempre responder pelos danos por ela causados. O que se vê, em verdade, é que o código estabelece uma responsabilidade equitativa das pessoas incapazes em geral, implicitamente incluindo (a aí temos um problema) pessoas civilmente imputáveis, por reunirem condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que praticam e, por conseguinte, de autodeterminação, em hipóteses que deveriam ser, pensando bem, direcionadas àqueles que efetivamente não tinham essas condições.  Abre-se, assim, margem para uma interpretação favorável à tutela das vítimas, algo que não é apenas conveniente, mas necessário, à luz do princípio constitucional da solidariedade que informa o instituto da responsabilidade civil. Ora, o mundo real comporta a existência de pessoas incapazes, porém civilmente imputáveis e, inversamente, de pessoas civilmente inimputáveis, todavia capazes. A pretendida fratura entre inimputabilidade e capacidade implica que um sujeito capaz pode ser inimputável e, um sujeito incapaz, imputável. Com efeito, a capacidade está no plano da possibilidade de agir juridicamente, do exercício de atos jurídicos, traduzindo um conceito mais estático, ainda que comporte modulação, considerando-se a proporcionalidade da renovada curatela à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência.11 A imputabilidade, por seu turno, associa-se a uma capacidade natural, traduzindo um conceito mais dinâmico e pontual, como real ou concreta aptidão para responder ao tempo do fato danoso, aptidão esta que pressupõe a compreensão do ato lesivo praticado e de suas possíveis consequências. Assim, pode-se afirmar que, em se tratando de sujeitos incapazes, sob curatela, o direito brasileiro denota uma presunção de ausência de condições de autodeterminação no campo do agir danosamente em áreas reservadas à atuação do curador, ou seja, uma presunção de inimputabilidade. Todavia, parece-nos possível romper tal presunção mediante a comprovação de que o autor do dano compreendia, ao tempo do ato, o caráter lesivo de sua conduta, tornando-se diretamente imputável. Ainda que se mostre remota, tem-se aí uma possibilidade de responsabilização solidária do curatelado e do curador, sendo a responsabilidade do primeiro subjetiva, fundada no ato ilícito do artigo 186 do Código Civil, e, a do segundo, objetiva, fundada no artigo 932, inciso II. Abrimos parênteses para lembrar da ressignificação da curatela a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que implica o reconhecimento de campos de maior ou menor autonomia e enseja a modulação da incapacidade jurídica de exercício, o que, na perspectiva funcional, volta-se essencialmente à proteção da própria pessoa curatelada, sobretudo no tocante aos seus interesses patrimoniais, na medida de sua real necessidade.12 Em decorrência disso, nos casos em que há curatela constituída, a pessoa curatelada é presumidamente inimputável por danos decorrentes dos atos que estiverem dentro do campo de atuação do curador, embora ressalvada sua responsabilidade subsidiária e a indenização equitativa do artigo 928. Por outro lado, é o curatelado presumidamente imputável em relação aos atos danosos que não estejam na esfera de atuação do curador.13 A responsabilidade objetiva do curador é, assim, circunscrita à sua zona de atuação nos termos da sentença constitutiva da curatela.14 Enfim, não tendo a pessoa restrição de sua capacidade de exercício, isto é, não estando sob curatela, há uma forçosa presunção de capacidade, inclusive para pessoas com deficiência psicossocial ou intelectual, à luz da Convenção da Organização das Nações Unidas de 2007, da Constituição Federal e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e, consequentemente, uma presunção de imputabilidade. Parece-nos igualmente possível, entretanto, a comprovação de que ao tempo do ato o sujeito não tinha condições de compreender o caráter lesivo de sua conduta, sendo concretamente inimputável, apesar de juridicamente capaz.  A conveniência de se dissociar a imputabilidade da capacidade evidencia-se novamente, neste ponto não apenas para ampliar a tutela das vítimas, mas, igualmente, para reconhecer a autonomia da própria pessoa causadora do dano, impondo-lhe as consequências de suas condutas e escolhas. Isso porque - é sempre importante lembrar - a responsabilidade reafirma a autonomia, valor constitucional. Noutro giro, reconhecer em concreto a inimputabilidade de um sujeito desprovido de condições de autodeterminação quando da prática da conduta danosa, para afastar-lhe o rótulo do ato ilícito e permitir-lhe a aplicação da indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928, independentemente de seu status de sujeito juridicamente capaz, é uma medida de justiça. Em conclusão, a proposta é de repensarmos a imputabilidade de um modo dinâmico e sempre em concreto, consistente na reunião de condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que se pratica e, por conseguinte, de autodeterminação, que conformam uma autonomia suficiente para que a pessoa seja diretamente responsável por suas próprias escolhas e atos. Afinal, é justamente essa autonomia, e não a capacidade, o que autoriza e justifica a responsabilidade civil. __________ 1 Segundo explicita Guido ALPA, em tradução livre, a imputabilidade "é a capacidade do agente de compreender, estar ciente do que está acontecendo e saber o que fazer, bem como de querer e decidir o comportamento a ser realizado (a chamada capacidade de entender e querer). Esta incapacidade isenta de responsabilidade no sentido de que na ausência de imputabilidade não há ilícito e, portanto, responsabilidade" (ALPA, Guido. La responsabilità civile. Parte generale. Milano: Utet, 2010, p. 147). 2 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. 3 Na linha de pensamento de CALIXTO, Marcelo Junqueira, A culpa na responsabilidade civil - estrutura e função, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 49-55, a responsabilidade civil do incapaz seria objetiva, partindo do argumento de que não se poderia imputar um erro de conduta à pessoa desprovida de maturidade ou sanidade. A imputabilidade estaria aí atrelada à culpabilidade e à capacidade. 4 MULHOLLAND, Caitlin, A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual, in: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.), Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas - Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de inclusão, Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 645-648, defende que a responsabilidade do incapaz é subjetiva, fundada, assim como a responsabilidade subjetiva das pessoas capazes, no ato ilícito por culpa objetiva, conferindo menor relevância aos aspectos psicológicos dos sujeitos e ao discernimento e maior ênfase no erro de conduta devido à não observância de certos padrões de comportamento, standards cada vez mais concretos, fragmentados e especializados, em lugar da comum abstração do padrão médio de diligência do bonus pater familias ou reasonable man. 5 Entendemos, de fato, que a análise da culpa nos dias atuais é mais objetiva do que subjetiva, o que é reforçado pelo fenômeno denominado de "fragmentação dos modelos de conduta". Tal, porém, não significa que o sistema brasileiro teria adotado o modelo da culpa objetiva desatrelada em absoluto da inimputabilidade. Não se questiona o cabimento da análise objetiva da culpa quando se trata da responsabilidade civil dos sujeitos capazes, que gozam de uma imputabilidade presumida, automática, cuja análise é prescindível e habitualmente ignorada. Porém, no tocante aos sujeitos incapazes, a lógica do sistema brasileiro é inversa, pois a normativa expressa nos artigos 932 e 928 do Código Civil impede a atribuição de responsabilidade em primeiro plano a tais sujeitos, diferentemente do que se verifica nos sistemas francês e inglês. Assim, é forçoso reconhecer que no Brasil, a não ser que tivéssemos uma reforma legislativa, para os sujeitos incapazes estabeleceu-se uma inimputabilidade presumida, automática, que afasta a configuração do ato ilícito, mas que, à vista da antijuridicidade, numa acepção mais ampla, do resultado da conduta, poderá comportar, excepcionalmente, a responsabilidade civil mediante a indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928 do Código Civil.      6 Cf. NETTO, Felipe Braga, FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson, Novo tratado de responsabilidade civil, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 730, que sustentam que a responsabilidade do incapaz seria uma espécie de responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada, haja vista que "os menores não cometem ilícitos civis, em virtude de sua inimputabilidade. Podem, contudo, à luz da ordem jurídica vigente, ser civilmente responsáveis por determinados danos. Cabe sempre lembrar que ilicitude civil não se confunde com responsabilidade civil. A incapacidade civil produzirá duas ordens de efeito: (a) atrairá a responsabilidade objetiva dos pais, tutores ou curadores (CC, art. 932, I e II); (b) evidenciará sua própria responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada (CC, art. 928, parágrafo único)". 7 O Código Civil Francês prevê a responsabilidade direta das pessoas incapazes: "Celui qui a causé un dommage à autrui alors qu'il était sous l'empire d'un trouble mental n'en est pas moins obligé à réparation" (artigo 414-3 criado pela lei 2007-308). 8 De acordo com o Restatement third of torts: liability for intentional harm to persons, "a deficiência mental não se leva em conta para se determinar se uma conduta é ou não negligente, a menos que o autor seja um menor" (§ 11, c, 2010). The American Law Institute, disponível em: https://www.ali.org/publications/show/torts-liability-physical-and-emotional-harm/, acesso em: 30 set. 2023. 9 Com efeito, o artigo 2046 do Código Italiano dispõe que "não responde pelas consequências do dano quem não tem capacidade de entender e querer no momento de cometê-lo, a menos que o estado de incapacidade derive de sua própria culpa". E, segundo o parágrafo 827 do BGB, "quem causa um dano a outra pessoa em estado de inconsciência ou sofrendo de uma perturbação mental que lhe impede o livre exercício da vontade, não é responsável por ele". 10 Não obstante declarem a irresponsabilidade da pessoa inimputável e a consequente responsabilidade de seus curadores (ou guardiões, quando menores), estes ordenamentos permitem ao juiz, em atenção à equidade e tendo em conta as circunstâncias concretas das partes, impor ao causador do dano uma excepcional responsabilidade, notadamente quando aqueles sejam insolventes. 11 Conforme o Artigo 84, § 3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, "A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível". 12 Cf. ABREU, Célia Barbosa. A curatela sob medida: notas interdisciplinares sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo CPC. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016; ROSENVALD, Nelson. Curatela. Tratado de direito das famílias. 3. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018; e ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 13 A propósito, cf. SALLES, Raquel Bellini de Oliveira. A responsabilidade civil das pessoas com deficiência e dos curadores após a Lei Brasileira de Inclusão. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2021. Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/157. Acesso em: 2 mar. 2021. 14 Nesse sentido, o Enunciado 662 da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A responsabilidade civil indireta do curador pelos danos causados pelo curatelado está adstrita ao âmbito de incidência da curatela tal qual fixado na sentença de interdição, considerando o art. 85, caput e §1º, da lei 13.146/2015".
O desfecho da relação médico-paciente nos tribunais após a recusa terapêutica (ainda que por paciente civilmente capaz e competente) é uma realidade, e a instabilidade das decisões judiciais sobre o assunto levam à insegurança jurídica para a atuação prática do profissional de saúde, pois, acatando ou não a recusa terapêutica, o médico pode estar sob a mira da responsabilização ética, cível e até criminal. Há um panorama legal e deontológico posto que fornece diretrizes (algumas passíveis de críticas) sobre a possibilidade de o médico respeitar ou não a recusa terapêutica manifestada pelo paciente e sua consequente responsabilização. Entretanto, a tais normas são dadas diferentes interpretações que levam a decisões judiciais substancialmente divergentes, gerando insegurança jurídica e falta de tranquilidade à atuação do profissional frente a uma recusa terapêutica. Falar sobre responsabilidade médica na recusa terapêutica demanda delimitar quando a atuação médica deixa de ser uma conduta exigível e se torna passível de responsabilização. Na prática, nem sempre esse liame é bem definido. O exercício da medicina impõe aos profissionais da saúde o dever de tomar decisões, que podem se dar tanto em situações eletivas quanto no contexto de situações extremas, onde há risco iminente de morte. E a possibilidade de responsabilização civil do médico é uma preocupação. Por isso, o presente artigo pretende se debruçar sobre as seguintes questões: o médico que descumpre a recusa terapêutica, manifestada pelo paciente de forma livre e esclarecida, deve ser civilmente responsabilizado? E, ainda: o médico que cumpre a recusa terapêutica, manifestada pelo paciente de forma livre e esclarecida, deve ser civilmente responsabilizado? Em caso positivo, as excludentes de ilicitude civil se aplicariam? Para perquirir esse objetivo, foi realizado um estudo teórico-dogmático, que utiliza o método da revisão bibliográfica e legislativa. O panorama legislativo e deontológico de proteção ao direito do paciente de recusar tratamento médico é analisado a partir do fundamento constitucional do direito à liberdade, previsto no art. 5º, caput e incisos I e II, da CR/88. Além da Constituição da República, outras leis ordinárias trataram de assegurar a autonomia das pessoas em relação às suas escolhas médicas. É o caso do Código Civil que, em seu art. 15 determina que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida (sic), a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica".1 A interpretação e a aplicação do referido art. 15 podem ser problemáticas. O artigo, desacompanhado de uma leitura constitucional do direito à liberdade e da não hierarquização de direitos, leva à compreensão equivocada de que, não havendo risco de morte, as pessoas podem ser constrangidas a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica; o que não corresponderia ao exercício da liberdade fundamental do paciente que versa sobre a própria saúde ou o próprio corpo. Vale a pena lembrar que saúde não é considerada mais um dado aprioristicamente construído e universalmente aplicável a todos. Antes, o conceito de saúde como "um completo estado de bem-estar físico, mental e social"2 afasta o ideal de que ela é apenas a ausência de afecções ou doenças; o completo estado de bem-estar perpassa, antes de tudo, pela construção da pessoalidade,3  no exercício da autodeterminação do conteúdo do conceito de vida boa e vida digna. A priorização da vida em detrimento de qualquer outro direito fundamental não privilegia o pluralismo existencial que pressupõe a diversidade como possibilidade da igualdade.4 Desse modo, torna-se inconcebível admitir a imposição de qualquer tratamento ou intervenção médica de maneira forçada a pacientes competentes para a tomada de decisões médicas. No âmbito deontológico, o Conselho Federal de Medicina, desde a edição de 1988 de seu Código de Ética Médica veda a prática da realização de procedimentos médicos sem o consentimento livre e esclarecido do paciente, entretanto, sempre excepcionou os casos de iminente perigo de morte.5 Em decorrência de uma necessidade de regulamentação específica sobre o tema, o Conselho Federal de Medicina decidiu editar a Resolução n. 2.232, que foi publicada em 16 de setembro de 2019, que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. A referida Resolução, mais uma vez, prevê que a recusa terapêutica é um direito do paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, a ser respeitado pelo médico, entretanto, deixa claro que tal direito se limita "à terapêutica proposta em tratamento eletivo".6 Nas situações em que não é possível colher o consentimento livre e esclarecido do paciente (por exemplo, se este encontra-se em grave sofrimento ou desacordado), justifica-se a intervenção médica na ausência da colheita de seu consentimento. Entretanto, há situações excepcionais que são desprivilegiadas pela norma, tais como, a possibilidade dessa recusa ter sido manifestada em momento anterior, em diretivas antecipadas de vontade (DAV), portada pelo paciente no momento do atendimento. A discussão acerca da recusa de tratamento médico motivada por questões religiosas já bateu às portas do Supremo Tribunal Federal que reconheceu repercussão geral no Tema 1069.7 Entretanto, o Recurso Extraordinário  1.212.272/AL, que deu origem ao Tema 1069 sob repercussão geral, ainda se encontra pendente de julgamento permanecendo, até o presente momento, inalterada a situação de insegurança jurídica a respeito do tratamento que o Poder Judiciário concederá aos casos de recusa de tratamento médico.8 Enquanto a discussão a respeito do direito à recusa terapêutica não é sedimentada, observa-se nos tribunais brasileiros decisões díspares em casos similares: ora reconhecendo o direito do paciente à recusa terapêutica, ora negando-lhe esse direito9. E, nesse cenário de instabilidade jurídica, o profissional médico teme acatar a recusa do paciente e, também, teme o contrário em razão de sua possível responsabilização. Há fundamentos para se defender ambas as possibilidades de responsabilização civil do médico - este acatando ou rejeitando a recusa do paciente. Essa pode ser a justificativa pela qual há decisões tão díspares no poder judiciário de casos semelhantes sobre a possibilidade de recusa terapêutica. Entretanto, defende-se que a jurisprudência não pode estabelecer, aprioristicamente, hierarquia de direitos tal como a superioridade da vida em sua dimensão puramente biológica, em relação à vida enquanto construção biográfica. Há que se considerar que a vida não tem apenas uma dimensão biológica, mas também biográfica que deve ser respeitada. No âmbito de um Estado Democrático, o pluralismo existencial abre espaço para as mais variadas possibilidades de manifestações de vida e dos valores que determinam a concepção de vida boa de cada um, inclusive para o fim da pessoalidade. Nesse sentido, ser pessoa é ser livre para assumir a titularidade das coordenadas de uma pessoalidade construída com os outros. "Todo ser humano tem liberdade para ser pessoa na medida em que pode construir a sua pessoalidade".10 Assim, ainda que a consequência do exercício da autonomia do paciente, consistente em sua manifestação pela recusa do tratamento, seja sua morte, desde que essa manifestação de vontade tenha se dado por paciente competente (e não apenas civilmente capaz), de forma livre e esclarecida, não há como desconsiderar ou anular essa vontade manifestada. Nesse caso, a escolha pela possibilidade do resultado 'morte' terá sido aceita de forma consentida pelo paciente, no exercício de seu poder de autodeterminação, conforme os parâmetros de dignidade que o paciente elegeu para si. Dessa forma, conclui-se que o desrespeito à recusa terapêutica manifestada pelo paciente competente, após ter sido devidamente esclarecido dos riscos e possíveis consequências de sua decisão, é a única possibilidade capaz de ensejar a responsabilização civil da instituição e/ou do profissional que a desrespeita, quando aliada à conduta ilícita (consistente na execução do procedimento ao qual o paciente se recusou e que viola o direito à sua integridade física e moral; o direito de não ser submetido contra a sua vontade a intervenção médica; o direito ao próprio corpo; o direito à sua liberdade de autodeterminação), for verificada a existência de um dano (ainda que de ordem moral ou existencial), ao paciente ou, por ricochete, a seus legitimados (com fundamento nos arts. 186 e 927, do Código Civil). Lado outro, o cumprimento da recusa terapêutica manifestada pelo paciente está respaldado na vontade desse, em uma relação dialógica de gestão compartilhada dos riscos entre paciente e médico.11  Dessa forma, ainda que o resultado da escolha do paciente seja uma lesão grave ou mesmo a morte, não haveria abertura para a responsabilização do médico e/ou do hospital. Na ordem prática, importa dizer que é necessário ao médico que colha essa recusa do paciente de forma cautelosa, registrando em prontuário e, se possível, na presença de testemunhas, a fim de utilizar tais registros como provas em eventual tentativa posterior de responsabilização civil. E, não se olvide que, caso o médico não se sinta confortável em atuar, respeitando a recusa terapêutica, ele tem assegurado, nos limites das normas deontológicas e legais, a objeção de consciência. Concluindo pela possibilidade de responsabilização civil do médico em caso de desrespeito à recusa terapêutica manifestada por paciente competente (conforme acima fundamentado), passa-se a analisar as excludentes de ilicitude previstas no Código Civil e sua (in) aplicabilidade no caso. Preceitua o art. 188 do CC/02 quais são as possibilidades de exclusão da ilicitude do ato praticado pelo agente, sendo elas: os atos praticados em legítima defesa, os atos praticados no exercício regular de um direito reconhecido e os atos praticados a fim de remover perigo iminente.12 Em que pese não estar expresso na lei civil, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto,13 lembram que o ato praticado em estrito cumprimento de um dever legal também tem sua ilicitude afastada. Entretanto, entende-se que não se aplica nenhuma das hipóteses de exclusão de ilicitude do ato praticado pelo médico, na medida em que: a) Não se trata de ato de legítima defesa; b) A realização de tratamento médico, ainda que tenha o objetivo de livrar o paciente do risco de morte, não é um direito reconhecido ao médico (agente), mas sim um dever profissional. Esse dever profissional, no entanto, não pode suprimir a autonomia do paciente se esse decide, de forma livre e esclarecida, sobre a rejeição à terapêutica proposta. Ambas as situações (direito e dever) não se confundem e, por isso, não podem criar exceção que autorize um abuso do médico em suas atribuições profissionais; c) a autorização de lesão à pessoa a fim de remover perigo iminente, igualmente não se aplica, tendo em vista que o único legitimado no caso, a dizer se há lesão é o paciente. A ideia da morte como um perigo iminente e um dano a ser afastado, sem considerar a vontade do paciente, deve ser desconstruída pois, conforme visto anteriormente, a concepção de saúde e de vida boa só pode ser representada a partir de uma perspectiva pessoal e única de cada indivíduo; d) Não há nenhuma norma legal que determine como atribuição do médico salvar a vida do paciente, a despeito de sua vontade de dar continuidade ou aderir à terapêutica proposta. Não se pode admitir uma interpretação do art. 15 do Código Civil como uma autorização legal para o desrespeito à autonomia do paciente. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, com ou sem risco de morte. Sobretudo quando se tratar de paciente que manifesta sua vontade de forma livre e esclarecida, sendo competente, lúcido, orientado. O contrário disso é flagrante violação dos direitos da personalidade do paciente, constituindo-se, portanto, ilícito indenizável. Logo, nenhuma das hipóteses serviria de fundamento para afastar a ilicitude do ato médico que, agindo contra a vontade manifestada pelo paciente competente, impõe-lhe tratamento que expressamente rejeitou. __________ *Texto elaborado com base no artigo intitulado "Responsabilidade civil do médico, recusa terapêutica e as excludentes de ilicitude civil", no prelo para publicação.    **O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 1 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2023. 2 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nações Unidas Brasil: Saúde mental depende de bem-estar físico e social, diz OMS em dia mundial. 10 out. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 3 Pessoalidade é entendida como "a qualidade de ser pessoal" e "a possibilidade do indivíduo humano construir uma identidade, isto é, um horizonte dentro do qual ele é capaz de, livremente, tomar uma posição, e assim agir, ser responsável pela sua ação e buscar ser reconhecido por meio dela, em um universo intersubjetivo em que identidades se entrelaçam e processualmente se constituem e reconstituem". SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 51-52. 4 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 54. 5 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Rio de Janeiro, CFM: [1988]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.232 de 16 de setembro de 2019.  Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.  Brasília, DF: CFM, [2019]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Rio de Janeiro, CFM: [1988]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.232 de 16 de setembro de 2019.  Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.  Brasília, DF: CFM, [2019]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 7 Tema: 1069: Título: DIREITO DE AUTODETERMINAÇÃO DOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ DE SUBMETEREM-SE A TRATAMENTO MÉDICO REALIZADO SEM TRANSFUSÃO DE SANGUE, EM RAZÃO DA SUA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA. Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, inciso III; 5º, caput e incisos II, VI e VIII; e 196 da Constituição Federal, o direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa. 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 1212272/AL RG. 1. Recurso extraordinário. 2. Direito Administrativo 3. Direito de autodeterminação confessional dos testemunhas de Jeová em submeter-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue. Matéria constitucional. Tema 1069. 4. Repercussão geral reconhecida. Recorrente: Malvina Lúcia Vicente da Silva. Recorrido: União Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes, 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 9 A título de exemplo, indicamos a leitura das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais nos processos n. 1.0000.23.180081-4/001, n. 5156428-49.2019.8.13.0024 e n. 5022018-83.2021.8.13.0024  que diziam respeito à recusa de tratamento por pacientes capazes e conscientes, ambos motivados por questões religiosas, que tiveram desfechos totalmente diferentes, apesar da similitude das situações em julgamento. 10 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 59. 11 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Responsabilidade Civil do Médico: análises de casos a partir dos princípios normativos que justificam a formação do consentimento discursivo. In: OMMATI, José Emílio Medauar. SILVEIRA, Renato Marcuci Barbosa da. Teoria Crítica do Direito na perspectiva do Direito Privado. Belo Horizonte: Conhecimento, 2019. Coleção Teoria Crítica do Direito. v. 7. 12 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2023. 13 FARIAS, Cristiano Chaves de. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil - volume único. 4ª ed. rev. ampl. atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. p. 608.
Sempre que um fato público repercute na mídia, tem-se uma excelente oportunidade para revisitar alguns temas, e, neste momento, rever algumas visões sobre a responsabilidade civil. Nesse caso, justificável novamente debater a responsabilidade civil do condutor de veículo por atropelamento de pedestre. Trata-se de um tema complexo que envolve diversos aspectos legais, sociais e morais - e alguns prejulgamentos. Se por um lado, quem dirige deve fazê-lo com cuidado, por outro lado, é lugar comum a exigência de cautela por parte do pedestre. Esse assunto ganha novos relevos em razão da comoção causada pelo atropelamento do ator Kayky Brito. Em primeiro lugar, cumpre lembrar que o veículo a motor, automóvel, é um gerador natural de riscos. Veloz, dinâmico e metálico, é meio de conforto, segurança e desenvolvimento, mas também pode originar perigosos desdobramentos, acidentes com danos graves e óbito dos envolvidos. Não sem razão, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 29, parágrafo segundo, estabelece que os condutores de veículos devem respeitar a prioridade dos pedestres nas faixas de travessia e sempre cuidar destes: "respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres." A responsabilidade de quem dirige é a mesma de quem se utiliza de qualquer bem que, por sua natureza, gere riscos. Para que a responsabilidade civil do condutor seja configurada em casos como estes, é necessário que sejam atendidos os seguintes requisitos: o condutor deve ter agido de forma a causar o atropelamento do pedestre. Deve haver um dano efetivo causado ao pedestre, seja ele de ordem moral ou patrimonial. Os danos podem variar desde lesões físicas graves até danos psicológicos decorrentes do acidente. Ademais, deve existir uma relação direta entre a conduta do condutor e o dano causado ao pedestre. Em outras palavras, o atropelamento deve ser uma consequência direta da ação ou omissão do condutor. Uma vez configurada a responsabilidade civil do condutor, ele é obrigado a reparar os danos causados ao pedestre. Isso pode incluir o pagamento de despesas médicas, indenização por danos morais, ressarcimento por danos materiais (como avarias em objetos pessoais) e outros prejuízos decorrentes do atropelamento. Porém, unindo-se a circunstância especial com o pensamento geral, neste contexto, é usual a opinião doutrinária de que existe presunção da culpa em caso de abalroamento de pedestre, valendo citar o mais detalhado livro brasileiro sobre a matéria, Acidentes de Trânsito, Responsabilidade e Reparação, de Arnaldo Rizzardo: "Torna-se perfeitamente previsível que, em um momento ou em outro, alguém, imprudentemente ou com pressa, cometa algum desatino e ingresse na pista de rolamento. Por isso, coloca-se sempre o motorista em grau maior de responsabilidade pelos eventos que podem ocorrer envolvendo pedestres. Sua culpa é presumida."1 Deste modo, é necessário verificar a questão relativa ao atendimento de um dever objetivo de cuidado (culpa objetivada), no caso concreto, que veio a resultar em um atropelamento de pedestre, origem da mencionada presunção.2 Se em razão do mencionado dispositivo do CTB existe um dever de cuidado, este gera um standard de conduta a delimitar o que não é e o que é conduta culposa. O condutor de veículo, motorista, deve sempre ter cautela e cuidar de não abalroar. Mas será que há casos e casos? Da leitura dos veículos de imprensa,3 temos que o ator foi atropelado cerca de quatro horas da manhã, fora da faixa de pedestres, por veículo que trafegava em velocidade alta, porém dentro da faixa legalmente permitida. O motorista não estava alcoolizado, e trabalha com aplicativos de transporte. Aparentemente, pelas imagens, é possível verificar que o ator não atravessou de modo cauteloso. No entanto, é exatamente em casos nos quais, nas palavras de Rizzardo, um (possível) descuido do pedestre deve ser motivo redobrado para a cautela do motorista, especialmente de madrugada, em via ao lado da praia, que sempre tem pessoas e nunca está completamente vazia, a qualquer hora do dia ou da noite, no Rio de Janeiro. Nesta ordem de ideias não há no caso nada que afaste a presunção de culpa do motorista, que deveria ter sido mais cauteloso, visto que trafegava com baixa visibilidade, de madrugada, em local com pessoas. Há julgados a amparar tal visão, como por exemplo este, do Superior Tribunal de Justiça: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM RAZÃO DE ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA SOB ESTADO DE EMBRIAGUEZ. ATROPELAMENTO EM LOCAL COM BAIXA LUMINOSIDADE. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA INCONCLUSIVA SE A VÍTIMA ENCONTRAVA-SE NA CALÇADA OU À MARGEM DA CALÇADA, AO BORDO DA PISTA DE ROLAMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Em relação à responsabilidade civil por acidente de trânsito, consigna-se haver verdadeira interlocução entre o regramento posto no Código Civil e as normas que regem o comportamento de todos os agentes que atuam no trânsito, prescritas no Código de Trânsito Brasileiro. A responsabilidade extracontratual advinda do acidente de trânsito pressupõe, em regra, nos termos do art. 186 do Código Civil, uma conduta culposa que, a um só tempo, viola direito alheio e causa ao titular do direito vilipendiado prejuízos, de ordem material ou moral. E, para o específico propósito de se identificar a conduta imprudente, negligente ou inábil dos agentes que atuam no trânsito, revela-se indispensável analisar quais são os comportamentos esperados  e mesmo impostos  àqueles, estabelecidos nas normas de trânsito, especificadas no CTB. 2. A inobservância das normas de trânsito pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a culpa presumida do infrator, se tal comportamento representar, objetivamente, o comprometimento da segurança do trânsito na produção do evento danoso em exame; ou seja, se tal conduta, contrária às regras de trânsito, revela-se idônea a causar o acidente, no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior. 3. Na hipótese, o ora insurgente, na ocasião do acidente em comento, em local de pouca luminosidade, ao conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez (o teste de alcoolemia acusou o resultado de 0,97 mg/l - noventa e sete miligramas de álcool por litro de ar) atropelou a demandante. Não se pôde apurar, com precisão, a partir das provas produzidas nos autos, se a vítima se encontrava na calçada ou à margem, próxima da pista. 3.1 É indiscutível que a condução de veículo em estado de embriaguez, por si, representa o descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma segura, trazendo riscos, não apenas a si, mas, também aos demais agentes que atuam no trânsito, notadamente aos pedestres, que, por determinação legal ( § 2º do art. 29 do CTB), merece maior proteção e cuidado dos demais. 3.2 No caso dos autos, afigura-se, pois, inarredável a conclusão de que a conduta do demandado de conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez, contrária às normas jurídicas de trânsito, revela-se absolutamente idônea à produção do evento danoso em exame, consistente no atropelamento da vítima que se encontrava ou na calçada ou à margem, ao bordo da pista de rolamento, em local e horário de baixa luminosidade, após a realização de acentuada curva. Em tal circunstância, o condutor tem, contra si, a presunção relativa de culpa, a ensejar a inversão do ônus probatório. Caberia, assim, ao transgressor da norma jurídica comprovar a sua tese de culpa exclusiva da vítima, incumbência em relação à qual não obteve êxito. 4. Recurso especial improvido." (STJ - REsp: 1749954 RO 2018/0065354-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 26/02/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2019) Verifica-se que a baixa luminosidade foi usada como motivo para que houvesse responsabilização e, ainda, que foi considerada incidente a mencionada presunção de culpa. O standard é esse: dirigir para não abalroar. Há casos nos quais a culpa exclusiva da vítima pode romper o nexo de causalidade? Por exemplo, atropelamentos ocorridos em vias nas quais a circulação de pedestres é proibida, ou ainda em casos de travessias de vias nas quais logo acima existe passarela ou, logo abaixo, uma passagem subterrânea. Nada disso ocorreu na Avenida Lúcio Costa, Barra da Tijuca, ao tempo do atropelamento do aludido ator. Já houve julgados em tribunais brasileiros entendendo que deve ser responsabilizado quem tinha melhor oportunidade de evitar o acidente, e se entendeu que a oportunidade era do pedestre.4 Já houve até caso, curioso, aliás, no qual a pedestre foi condenada a indenizar, visto que constatou-se sua culpa exclusiva.5 Contudo, estes casos incomuns não devem nos desviar da visão, essa sim histórica e usual, do dever de direção defensiva, que deve acima de tudo respeitar o pedestre. O caso do ator, tão repercutido pela mídia, tem causado comentários que imputam ao referido desídia ou descuido, quase que como se tivesse se deixado atropelar, e foi mesmo matéria de debate em sala de aula em nossas aulas do LLM em Direito Civil e Processo Civil da Escola de Direito da FGV - Rio de Janeiro, o que ensejou este pequeno texto, no qual quis trazer ao lume, novamente, o fato básico que o dever de cuidado recai sobre o motorista. Neste momento inicial, não parece haver litígio entre o condutor e a família, que reconhece que este ter socorrido o atropelado foi fundamental para a sua sobrevivência. Possivelmente sequer teremos ajuizamento de ação de indenizar, de parte a parte. De qualquer modo, o caso nos serve, como dito de início, como boa oportunidade para revisitar estes pressupostos e, respondendo a pergunta inicial, não há nada de excepcional neste caso que justifique o afastamento da presunção de culpa do condutor, ou demais elementos que o responsabilizem. __________ 1 São Paulo: Gen, 12ª Ed, p. 164. 2 No mesmo sentido, Rosenvald, Farias e Braga Netto, Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1.437. 3 Disponível aqui. 4 "Ação de indenização decorrente de acidente de trânsito - Sentença de improcedência - Apelo do autor - Atropelamento de transeunte que tentou atravessar pista de rolamento destinada ao tráfego de veículos leves e de grande porte. Inegável, pelo que se tem nos autos, que a causa imediata ou direta, e que preponderou para a ocorrência do acidente, foi a conduta da vítima, que, de inopino, tentou atravessar via em local e momento inapropriado. Portanto, a vítima, e não o condutor do ônibus, como o autor quis fazer parecer crer, tinha a melhor oportunidade de evitar o acidente e, em linha de desdobramento causal, induvidoso que o causou, por adotar conduta por demais imprudente - Ausência de provas quanto à culpabilidade do condutor do veículo - Culpa exclusiva da vítima que exclui a responsabilidade dos réus de indenizar - Recurso do autor improvido. " (TJ-SP - AC: 10510103820158260100 SP 1051010-38.2015.8.26.0100, Relator: Neto Barbosa Ferreira, Data de Julgamento: 16/02/2022, 29ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/02/2022) 5 0314977-31.2017.8.24.0018, Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Dano indireto e contrato

A imediatidade, como elemento do dano, possui íntima conexão com o nexo causal, pois os prejuízos indenizáveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do fato gerador (art. 403, CC). Estabelecida a indenizabilidade dos prejuízos que forem consequência direta e imediata do evento danoso, passa-se a discutir a extensão da obrigação de indenizar no que concerne a outros prejuízos mediatos ou indiretos. Busca-se estabelecer um limite para os prejuízos indenizáveis, pois uma aplicação irrestrita do princípio da reparação integral poderia gerar uma situação absurda. A necessidade de fixação de limites fica bastante clara quando se analisam os danos indiretos ou mediatos, também chamados de prejuízos reflexos ou por ricochete.1 Deveras, sempre ressaltamos a tensão entre o princípio da reparação integral mediante a proteção jurídica dos bens do lesado, em oposição à necessidade de tutelar a liberdade de atuação do lesante, que merece harmonização não apenas na seleção de quais são os danos ressarcíveis e o seu valor, mas também o número dos titulares à compensação. A final, a vida em comunidade seria inviável se todos os prejuízos econômicos oriundos de contatos sociais fossem suscetíveis de indenização. Se a segurança jurídica clama pelo brocardo "the loss lies where it falls", a regra geral é que apenas são reparáveis os danos causados ao titular dos bens imediatamente atingidos pelo fato danoso, e não os de terceiros. Porém, como já se reconheceu em outro sistema, essa é uma asserção cuja concretização prática transporta especiais dificuldades. Por um lado, as que decorrem da natural imprevisibilidade do fato ilícito que não permite delimitar com facilidade os sujeitos que podem vir a situar-se em cada um dos polos da relação obrigacional; por outro as dificuldades atinentes à variabilidade das situações geradoras da responsabilidade aquiliana que impede a antecipação segura da natureza ou da amplitude das consequências danosas que lhes podem ser imputadas.2 No dano indireto, reflexo, ou por ricochete, ocorre um prejuízo em virtude de um dano sofrido por outrem. O evento não apenas atinge a vítima direta, mas, reflexamente, os interesses de outra pessoa. Daí a expressão ricochete, que significa o dano sofrido inicialmente por um, que acaba por repercutir em outro, pelo fato de haver alguma ligação entre este e aquele. De outro modo, PETEFFI DA SILVA conceitua o dano indireto ou reflexo como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.3 Por consequência, a lesão de uma pessoa comporta um potencial de afetação de bens jurídicos encabeçados por outras pessoas. Ou seja, uma lesão simultânea de posições jurídicas de várias pessoas aparece em primeira linha como ato consubstanciador de violação dos direitos da personalidade de uma delas (lesado direto). Contudo, tal violação pode ser acompanhada da violação de posições jurídicas de outras pessoas (lesados indiretos) em virtude do nexo juridicamente relevante que entre elas exista. No entanto, em virtude da proeminência do ataque ao bem jurídico pessoal daquele que sofre a lesão corporal, a violação dessas outras posições nem sempre mereceu destaque.4 Em uma perspectiva clássica e atomizada da responsabilidade contratual, a legitimidade para a invocação dos efeitos derivados do contrato é circunscrita às pessoas dos contraentes, como corolário da eficácia relativa ou da relatividade dos contratos. A síntese dessa compreensão se encontra nas regras relativas ao descumprimento contratual em sentido amplo, nos artigos 389 a 420 do Código Civil. Em princípio, por mais que da inexecução resultem danos para terceiros à relação obrigacional, estes estariam de mãos atadas, exceto nas hipóteses de obrigações impostas por normas imperativas ou razões de ordem pública, sendo uma das mais notórias a possibilidade de o consumidor lesado demandar contra fornecedores com os quais não pactuou diretamente.5 Dentre os titulares de deveres de proteção, incluem-se terceiros - estranhos à relação obrigacional - que estão expostos aos riscos de danos pessoais ou patrimoniais oriundos da execução de um determinado contrato. Seriam os "contratos com eficácia de proteção para terceiros", em que caberia ao terceiro, vítima, a percepção de uma indenização, não em razão de uma violação de algum dever de prestar advindo da relatividade contratual (pois este seria específico das partes), mas em virtude de ter sido ofendido em sua integridade psicofísica ou econômica, o que desencadeia a pretensão de reparação de danos, com fundamento no descumprimento de deveres laterais pelas  partes, consistentes na inobservância do necessário cuidado e proteção perante a sociedade que os circunda. Ao permitir que a responsabilidade civil englobe terceiros lesados pelo descumprimento de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato de cuja formação não participaram, devemos assumir que o princípio pelo qual os efeitos do contrato só se produzem inter partes deverá ser interpretado de forma que, no conceito de "oponibilidade obrigacional", incluam-se pessoas que não consentiram na formação do negócio jurídico, mas que estão sujeitas a ser por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social. A flexibilização do princípio da relatividade dos efeitos contratuais, propicia uma nova etapa de desenvolvimento teórico e prático de danos reflexos. As temáticas do "terceiro ofendido" e do "terceiro ofensor" foram exaustivamente referidas no capítulo alusivo à responsabilidade contratual. Danos indiretos irrompem em ambas as manifestações do princípio da função social dos contratos. No que tange ao terceiro ofendido, o devedor é o causador do dano e a vítima indireta é estranha à relação contratual. Isto ocorre cotidianamente quando a vítima falece em virtude de um erro médico, traduzido como inadimplemento do contrato de prestação de serviços médicos, estendendo-se à outras hipóteses de tutela externa do crédito. No tocante ao terceiro ofensor, no qual alguém estranho ao vínculo, causa o inadimplemento de contrato entre vítima direta e vítima indireta, também há espaço para desenvolvimento dos danos reflexos em situações onde a vítima indireta sofre prejuízos em decorrência do inadimplemento, motivado por ação ou omissão de terceiro, de um contrato que possuía com a vítima direta.6 Aqui, em linha complementar, indagamos se no espaço de autonomia privada que lhes é inerente em contratos simétricos, as partes podem pactuar pela exclusão do ressarcimento do "dano indireto", mediante cláusulas de limitação de responsabilidade, no bojo de relações civis e empresariais. Com PINTO MONTEIRO, em que medida esse dano é acessível ao acordo das partes? A final, tratar do problema da validade das cláusulas de responsabilidade civil requer indagar se ela poderá ser objeto de convenções antecipadas quando as pessoas que receiam poder a sua atividade vir a ser fonte de danos acordar previamente com os presumíveis lesados a disciplina de sua eventual responsabilidade.7 No horizonte brasileiro, examinando os três incisos do art. 421-A,8 a autonomia privada viabiliza que, em contratos paritários interempresariais e intercivis, os contratantes envidem uma gestão de riscos, precavendo-se contra eventuais vicissitudes ao longo do iter obrigacional, estabelecendo a equação econômica que fundamenta a correspectividade do contrato. A Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) revigorou a autodeterminação em termos de primazia de soluções consensuais em detrimento da heteronomia judicial, valorizando a alocação de riscos. Seguindo a noção de Enzo Roppo do contrato como vestimenta das operações econômicas, o art. 421-A captura um redimensionamento do sentido de contrato, que não mais se exaure no negócio jurídico bilateral que lhe deu origem, convertendo-se em uma "atividade contratual", realidade em permanente construção. Assim, é lícito às partes a delimitação consensual das esferas de responsabilidade para que possam se precaver contra eventuais vicissitudes. O contrato passa a ser tido como um instrumento jurídico posto à disposição das partes para a alocação de riscos economicamente previsíveis, para hoje e para o futuro. Com a gestão de riscos, as partes convertem a causa abstrata do contrato em uma causa concreta. Assim, mal ou bem gerido, o risco superveniente não ensejará intervenção externa sobre o que se convencionou. Diversamente da causa abstrata, consiste a causa concreta no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico, sendo esse um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta é correlata ao exercício da liberdade econômica. Se estivermos diante de bem jurídico de índole meramente privada e natureza disponível, o lesado poderá dispor de um eventual montante indenizatório. Isso significa que, se por um lado há vedação de convenções limitativas ou exoneratórias de responsabilidade por culpa grave e dolo, lado outro, pode haver restrição voluntária a indenização de danos indiretos inter partes. A determinação ex ante dos danos indenizáveis reduz os custos de transação ex post associados a dificuldade de qualificação e quantificação dos danos para litígios, somando incentivos ao cumprimento das obrigações pelas partes. Entretanto, se assumimos o conceito de dano indireto, como sinônimo de dano reflexo ou dano por ricochete, o contexto jurídico muda de figura. A final, na apuração da legitimidade de terceiros pleitearem indenização por danos causados em uma relação da qual não fazem parte, não faria sentido as partes delimitarem cláusula de exoneração de responsabilidade para danos indiretos, permanecendo resguardado o terceiro lesado pelo dano indireto, posto amparado na responsabilidade extracontratual. Ora, quando se cogita da exclusão de responsabilidade perante terceiros pelo dano indireto, não visualizamos lesão à direito de crédito pregresso, porém relação jurídica derivada da violação de um dever geral de abstenção, quadrante infenso à autonomia privada. __________ 1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 174-175. 2 GERALDES, Antônio Santos Abrantes. Temas da responsabilidade civil, Indemnização dos danos reflexos, Coimbra: Almedina, 2007. v. II, p. 15. 3 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul.-dez. 2012. 4 PEDRO, Rute Teixeira. Os danos não patrimoniais (dito) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco (coord.). Responsabilidade civil: cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 216. 5 Art. 18 CDC: "Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas". 6 Paradigmática neste sentido a decisão da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconhecendo-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos. 7 MONTEIRO, Antonio Pinto. Dano e acordo das partes. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil: 50 anos em Portugal e 15 anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 22. 8 Art. 421-A CC: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".
O Direito, de uma forma geral, evolui em movimentos pendulares e, dificilmente, estagna, como, na verdade, não poderia ser diferente. A vida é dinâmica e a sociedade está em constante movimento e o que se espera é que o Direito acompanhe essa cinesia. Importante frisar que essa evolução do Direito se dá não apenas por inovações legislativas, mas especialmente a partir de sua interpretação e aplicação. Isso porque, o estudo e a concretização do Direito se dão em um contexto social, político e econômico. Assim, é estabelecido entre a realidade social e a realidade normativa uma ligação de tal ordem que "a transformação da realidade social em qualquer dos seus aspectos significa a transformação da realidade normativa e vice-versa"1. Essa necessária e justificável dinamicidade do Direito, ao que parece, encontra terreno fértil no campo da responsabilidade civil. Especificamente no ordenamento jurídico brasileiro, é possível identificar duas fases bem demarcadas nessa evolução e uma possível terceira fase em curso. Em sua primeira fase, o instituto possuía uma função eminentemente sancionatória e moralizante, evidenciada especialmente pela adoção da culpa como fator principal de imputabilidade e a responsabilidade subjetiva como regra. Já em uma segunda fase, após um "giro conceitual"2, resultante da incidência da axiologia constitucional, especialmente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, inicia-se uma nova fase cuja função primordial é a reparatória. Essa segunda fase é evidenciada pela opção do constituinte em consagrar, como direito fundamental, o princípio da reparação integral dos danos (art.5º, X, CF/1988) e, em sede infraconstitucional, pela adoção do risco como outro fator de imputabilidade da responsabilidade civil, positivado como cláusula geral no Código Civil de 2002, além de ser o principal fator de imputabilidade no sistema de responsabilidade civil nas relações de consumo. Em síntese, a vítima passa a ser a protagonista do sistema de responsabilidade civil. A preocupação central, sob a ótica da função reparatória, desloca-se do ofensor e da sua conduta imoral e culposa para a vítima e o dano injustamente sofrido.  Cabe destacar que, em uma perspectiva constitucionalizada, o fundamento da teoria do risco é o princípio da solidariedade social3. Trata-se de fundamento constitucional para a desculpabilização da responsabilidade civil, à medida que o objetivo principal do instituto não é mais o de se buscar um culpado, mas sim o de proteger e amparar a vítima de um dano injusto. Ou seja, ultrapassada a concepção de reparação-sanção, o fundamento ético-jurídico da responsabilidade é reorientado pelo valor solidarista de proteção daquele que sofreu um dano injusto.  Seja como for, desde as presunções de culpa à adoção do risco enquanto fator de imputabilidade, todos os expedientes adotados figuraram como importantes instrumentos a favor da reparação da vítima. A responsabilidade objetiva, que no início era tratado como uma exceção, tornou-se a regra considerando o quantitativo das hipóteses abarcadas. Nesse sentido, afirma-se que o primeiro movimento pendular foi o da culpa em direção ao risco e, com isso, da função primordialmente sancionatória para a função eminentemente reparatória da responsabilidade civil. Ademais, em um contexto geral, o movimento da culpa ao risco é um nítido reflexo e reposta à revolução tecnológica. As consequências da revolução industrial impactaram diretamente a forma de produção econômica e a produção dos então denominados acidentes, responsáveis pela concretização de riscos. Como resposta, no âmbito da responsabilidade civil, a objetivação da reponsabilidade expressou a superação da temida prova diabólica da culpa, que recaía sobre a vítima que, não raras vezes, permanecia irresarcida em razão da impossibilidade de provar a culpa do lesante. No entanto, na contemporaneidade, o pêndulo parece estar iniciando um movimento reverso, indicando uma possível terceira fase em curso, evidenciada pelas novas hipóteses de responsabilidade subjetiva. Certamente, não se afirma um retorno à sua feição anterior, a primeira fase. Mas, a culpa e a responsabilidade subjetiva retornam ao cenário com algum destaque. E, por mais paradoxal que possa ser, esse retorno está ocorrendo novamente em razão de uma nova revolução tecnológica, a da era digital. Não se afirma com isso que o risco, enquanto fator de imputabilidade da responsabilidade civil, foi abandonado. Mas, em atenção às recentes leis que regulam relações impactadas por essa nova tecnologia, é possível verificar uma certa tendência, ou ao menos, propostas legais que não podem ser minimizadas, voltadas à adoção de culpa, enquanto fator de imputabilidade, para hipóteses relativas à transformação digital e tecnológica4. Trata-se de situações que, sob os olhares de poucas décadas atrás seriam qualificadas como sendo de risco, atraindo, por derradeiro, a responsabilidade objetiva. Consequentemente, há de se questionar qual é, na atualidade, a função primordial da responsabilidade civil ou, ainda, se a responsabilidade civil passa a assumir múltiplas funções. Dito de outra forma, se o pêndulo inicia uma trajetória regressiva, seria razoável supor a permanência da função reparatória como primordial ou seria o momento de afirmar um perfil multifuncional para a responsabilidade civil? Como já destacado em doutrina, "diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil"5. A rigor, além das funções punitiva ou sancionatória e reparatória, já referidas, evidencia-se uma terceira função para a responsabilidade civil, a função precaucional,6 atuando na inibição de atividades potencialmente danosas e/ou no condicionamento de tais atividades à observância de certos procedimentos visando a prevenção dos danos7.   Em uma sociedade de risco8, a função precaucional e preventiva da responsabilidade civil se mostra essencial e pode ser compreendida até mesmo como um reflexo necessário da própria mudança na percepção do risco o que, invariavelmente, alcança a responsabilidade civil. Isso porque, na contemporaneidade, a própria noção de risco é reformulada e dissociada da noção de perigo, sendo apreendida como decorrência de uma decisão9. Sendo assim, o dano decorrente de um risco também será aquele associado a uma decisão, de sorte que o impasse da sociedade contemporânea diz respeito à distribuição de riscos e a atribuição de responsabilidades pelos danos decorrentes das decisões tomadas. Nessa perspectiva, é possível concluir que as discussões sobre o risco e a responsabilidade por seus efeitos passam a ser políticas. E, como já referido, algumas inovações legislativas recentes que regulam relações impactadas por novas tecnologias adotaram a culpa enquanto fator de imputabilidade. Certamente que, dada a primazia do texto constitucional, tais opções não visam o abandono ou minimização da função reparatória da responsabilidade civil10, mas indicam a necessidade do reconhecimento de plúrimas funções para o instituto.   __________ 1 Perlingieri, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. 3. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.2. 2 Gomes, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: Di Francesco, José Roberto Pacheco (org.). Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 291-302. 3 Nesse sentido: "Já para o chamado direito civil-constitucional, como se sabe, não pode haver norma jurídica que não seja interpretada à luz da Constituição e que não se coadune com seus princípios fundamentais. Caberá, então, buscar o fundamento ético-jurídico na Constituição da República e lá será fácil identificar o princípio que dá foros de constitucionalidade, generalidade e eticidade à responsabilidade objetiva em todas as hipóteses em que ela se manifesta: é o princípio da solidariedade social". (Bodin de Moraes, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. In Tepedino, Gustavo e Fachin, Luiz Edson (coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas - Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 866). 4 Como exemplo, pode-se citar o modelo de responsabilidade civil instituído pelo Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). Soma-se ainda a controvertida divergência quanto ao regime adotado na responsabilidade civil no caso de violação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/18 ou LGPD), se objetiva, subjetiva (ver: ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023) ou até mesmo responsabilidade proativa (ver: BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD:  um novo regime de responsabilização civil dito "proativo". Editorial à Civilistica.com. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023). Visualiza-se também controvérsias em legislações que sequer foram aprovadas. A exemplo do Projeto de Lei (PL) n. 2338/23 que visa instituir um Marco Legal da Inteligência Artificial (IA). 5 ROSENVALD, Nelson., CLEMENTE, Graziella. A multifuncionalidade da responsabilidade civil no contexto das novas tecnologias genéticas. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023). 6 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 7 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 8 A partir de um debate travado no campo da sociologia e orientado para a tentativa de descrever as características mais marcantes da sociedade contemporânea, alguns autores identificaram no risco e na sensação generalizada de insegurança, o traço mais ressaltado da sociedade atual. (Ver: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997) 9 Acerca da noção de risco na obra de Niklas Luhmann, Anthony Giddens afirma que a mesma "se originou com a compreensão de que resultados inesperados podem ser uma conseqüência de nossas próprias atividades ou decisões, ao invés de exprimirem significados ocultos da natureza ou intenções inefáveis da Deidade". Em seguida, conclui  pelo acerto na distinção entre os conceitos, aduzindo que a discriminação entre risco e perigo "surge, essencialmente, de uma compreensão do fato de que a maioria das contingências que afetam a atividade humana são humanamente criadas" (GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 38 e 39).  10 Sobre a função reparatória da responsabilidade civil, ver: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.
"É bem verdade que, de certo modo, a Responsabilidade Civil talvez seja o instituto jurídico que mais se redefine a partir das mudanças sociais. O estudo [...] não evolui apenas através da acumulação de conhecimentos, mas também incorporando novos modos de percepção" (Farias; Rosenvald; Braga Neto, 2019, p. 25) Resenha Mistanásia traduz o contexto de exclusão social, ocasionando mortes de forma miserável, precoce e lenta de pessoas vulneradas, que dependem do atendimento de saúde pública. As mortes mistanásicas decorrem da situação de abandono social. Categorizando-as como danos existenciais, a obrigação de reparar o dano por parte do Poder Público, por meio dos entes federados, mostra-se indiscutível, pois os danos morais configurados devem ser reparados. As mortes recorrentes denunciam a precarização da saúde, a insuficiência de leitos hospitalares e o deficitário atendimento oferecido ao cidadão, enfim, a caótica condição dos hospitais e postos de atenção básica à saúde. Embora as verbas destinadas a este segmento da administração sejam expressivas, por diversas causas, não chegam às pessoas em situação de pobreza. Se, em virtude de comando constitucional do art. 6º e 196, o Poder Público tem o dever de promover saúde pública de qualidade e não o faz, incumbe-lhe criar mecanismos assecuratórios da efetividade do direito à reparação civil, objetivando a devida e justa compensação à morte em nível social de pessoas vulneradas, vítimas das mazelas da saúde pública, cabendo a nós, acreditarmos em um futuro melhor e nesse sentido fazer a nossa parte.  Introdução  A Mistanásia não é um fenômeno novo, deste momento, mas uma realidade que se tornou tão comum, que a violência em suas frequentes manifestações, nos grandes centros urbanos, em nada diferem das cenas da ficção. A morte indigna, em péssimas condições, com intermináveis agruras sempre me inquietou. No Brasil, as pessoas morrem muito mal e, talvez por esse motivo temam tanto o momento da morte, pois sabem que um dia, terão de enfrentá-la, pois ela virá, implacável, fria e desumana para a maioria. Por esse motivo, tenho estudado este fenômeno há mais de sete anos e, a cada dia, a situação se agrava; chegamos a perceber certa tendência à perpetuação, caso não sejam implementadas urgentes políticas públicas no sentido de resgatar a dignidade da população vulnerada. A propósito, quando utilizamos a expressão pessoas vulneradas, referimo-nos àquelas expostas a risco, pois o conceito etimológico da expressão vulnerabilidade significa expostas a risco, conforme leciona Amatriain (2017). Este artigo corresponde a um novo aspecto da pesquisa, pelo qual situamos na esfera dos novos danos as mortes decorrentes das más condições de saúde da população brasileira vulnerada. Assim, ao deitar luzes sobre a natureza dessas mortes, podemos enquadrá-las como lesão a direitos existenciais antes não apreciados na fina percepção desta especial categoria. Por isso, as mortes por causas sociais, às quais denominamos mistanásicas, estão albergadas nos danos existenciais, uma vez que decorrentes do descumprimento, pelo Poder Público, do dever de promover saúde de qualidade à população vulnerada.  Para situar a expressão no contexto da Bioética, Ricci, explica a Mistanásia como substantivo e mistanásica, como adjetivo, ou seja, é a morte adjetivada, pois a expressão mistanásica tem conotação ética, não natural nem normal, portanto, adjetivada (precoce e evitável), que produz transformações pessoais e sociais, enfatizando que no Brasil a desigualdade social expõe um exército de pessoas vulneradas a situações de risco (Ricci, 2015). Este exército se refere às centenas de milhares de brasileiros que morrem anualmente em razão de fome, miséria, desigualdade, falta de infraestrutura, violência nos centros urbanos e no trânsito, precarização no atendimento de saúde, dentre outras causas que se amoldam ao conceito de morte mistanásica.  Para efeitos do presente estudo, basta-nos compreender as mortes mistanásicas como aquelas caracterizadas pela ocorrência da Mistanásia em suas diversas manifestações. Não menos importante, torna-se categorizar Mistanásia na esfera dos novos danos, que são aqueles direitos clássicos, já existentes, mas que alcançou recente reconhecimento como prejuízo aos direitos existenciais, entendidos como aqueles inerentes à dignidade da pessoa humana. Uma vez albergadas nessa importante categoria de prerrogativas, as mortes mistanásicas passam a gozar de tutela com absoluta primazia, que impõe respeito erga omnes. Pois bem, nesse contexto, a tutela dos direitos existenciais exige observância e passa a atribuir reparação civil às violações referentes a essa espécie de dano. A noção de reparar o dano se inspira na observância do dever jurídico segundo o qual não devemos causar mal a ninguém, traduzido pela expressão latina neminem laedere. Nessa linha de ideias, a responsabilidade civil passa a desempenhar importante papel na proteção dessa classe de direitos, preconizando reparação à vítima pelo dano sofrido, tendo em vista, basicamente três funções, segundo os eminentes juristas Farias; Rosenvald; Braga Neto (2019, p. 61 e segs): a função punitiva (que condena o autor pela prática ilícita e lesiva); a reparatória (que visa recompor o ofendido quanto à sua perda); e precaucional (que visa desestimular o agente de cometer novos ilícitos). Então, no caso especifico da saúde, se identificados o ato ilícito (conduta antijurídica), o dano (prejuízo ao paciente) e o nexo de causalidade (liame entre a prática da conduta e o dano), teremos preenchido a tábua de pressupostos configuradores da responsabilidade civil, devendo o agente reparar o dano experimentado pelo paciente. Este é o desenho da responsabilidade civil no âmbito das mortes mistanásicas, cabendo ao Poder Público, nos limites de sua atuação, suportar o ônus advindo da reparação dos danos que os agentes públicos, nessa qualidade, causaram a terceiro (paciente) durante o atendimento, tratamento ou procedimento. Mistanásia: conceito, contornos e correlação com direitos existenciais Mistanásia é um neologismo cunhado na literatura bioética brasileira em substituição à clássica expressão "eutanásia social" que, na doutrina bioética internacional designa a morte em massa de pessoas vulneráveis. A necessidade de cunhar uma nova expressão se justificou pelo fato de que "eutanásia social" não corresponde à noção de mortes miseráveis, pois o prefixo "eu" é indicativo de "boa", sendo que a morte em nível social nada tem de boa: antes é indigna, em condições sub-humanas, lenta, precoce e ocorre sem que a pessoa seja capaz de completar o ciclo vital, então, por esse motivo a expressão não é apta a retratar a realidade das mortes mistanásicas. Alguns atribuem a autoria desta expressão que traduz o conceito de mortes indignas e miseráveis sob a nova designação a Marcio Fabri dos Anjos, ouros, a Leonard Martin, ao final da década de 1980. O conceito etimológico então seria uma derivação do vocábulo grego thanatus (morte) + mys (rato), significando morte como um rato, morte miserável, com dor e aflição. Estudando a Mistanásia, elaborei um conceito amplo e semanticamente aberto com o objetivo de abarcar as variadas hipóteses nas quais o fenômeno se manifesta: Mistanásia é a morte prematura, evitável, lenta e indigna de pessoas socialmente excluídas, em consequência da banalização da vida humana, devido a causas diversas que vão desde o abandono social e doenças a outros riscos naturais ou provocados a que estão expostas as pessoas vulneradas" (Cabral, 2020, p. 27). No mesmo sentido, "A morte miserável põe em xeque a dignidade do indivíduo em seu direito de viver e de morrer sem sofrimentos adicionais" (Santos et al., 2020, p. 2). Isso porque a Mistanásia em variadas formas de ocorrência, descortina uma realidade nefasta, qual seja, um número elevado de óbitos de pessoas da população brasileira de forma indigna, miserável, angustiante, que morrem em razão de pobreza, fome, miséria, tráfico de entorpecentes, feminicídio, violência doméstica e familiar, por diversas formas de violência urbana, falta de infraestrutura, saneamento básico, dificuldades quanto ao acesso à saúde, dentre outras situações degradantes. Essas pessoas (sobre)vivem à margem do sistema de atendimento público de saúde, por motivos tais como: não conseguem chegar aos postos de atenção básica, ou conseguem ser atendidas, mas vêm a óbito por falta de aparelhamento, de recursos humanos ou negligência, enfim, situações nas quais percebemos a marginalização. A consagração da dignidade como valor maior da CF, logo no art. 1º, como fundamento da República Federativa do Brasl, demonstra sua precedência não apenas topográfica, mas interpretativa, dotando-o de preferência em relação a qualquer outro princípio (Rosenvald, 2007): "A dignidade atuaria como cláusula aberta, legitimando a construção de direitos não expressos na Lei Maior, mas com ela compatíveis em razão de sua linha axiológica e principiológica" (Rosenvald, 2007, p. 51). Significa atribuir primazia à dignidade em relação aos demais princípios, convertendo-a em fio condutor das relações neste Estado Democrático. Assim, os direitos albergados no bojo da cláusula geral da dignidade da pessoa humana passam a gozar de tutela nunca antes verificada, com a correspondente reparação quando violada em quaisquer de suas manifestações. Por esse motivo, a Mistanásia e suas diferentes formas de ocorrência integram a órbita dos denominados novos direitos. Tratam-se de direitos de personalidade já existentes e consagrados, cuja violação não ensejava responsabilização civil, e só mais recentemente lhe foram conferidos o reconhecimento do dano decorrente da violação e o consectário lógico da responsabilidade civil: a reparação (Schreiber, 2013). Novos então não são os direitos, mas o reconhecimento dos danos e a consequência  natural, a responsabilidade civil. Nessa linha de intelecção, a Mistanásia não é um fenômeno recente, assim como os demais novos danos não o são, entretanto, até bem pouco tempo, a tutela dos direitos existenciais não era tão reconhecida, nem enfática a reparabilidade, pois foi ao conferir status de valor à dignidade da pessoa humana, que a responsabilidade civil alcançou a observância dos preceitos constitucionais e a efetividade da tutela dos direitos existenciais de forma imperativa (Schreiber, 2013).  Nesta perspectiva, a relação de direitos existenciais se amplia de forma desmesurada e, ao adotarmos a tese da personalidade como valor, tentar enumerar as novas espécies de danos, será uma tentativa falha, pois sempre haverá novas hipóteses (Bodin de Moraes, 2009). Conforme se amplia e se diversifica a cada dia, crescem as situações merecedoras de tutela desses direitos. As mortes mistanásicas no âmbito da saúde pública brasileira  A Mistanásia é uma realidade já emoldurada na periferia dos grandes centros, de forma que deixou de ser uma excepcionalidade para se converter em cruel rotina: A violência se tornou costumeira e até banal: as trágicas mortes que aconteciam na tela da TV extrapolam aquele universo distante e agora se avizinham, trazendo essa realidade para cada vez mais próximo de cada brasileiro. As extensas filas nos atendimentos de saúde, com pessoas morrendo nos corredores dos hospitais dos grandes centros urbanos ou à porta deles sem atendimento começa a se reproduzir de forma mais nítida nas cidades de médio porte (Cabral, 2020b, p. 24). À vista desses fatos, percebemos, em evidentes matizes, a forma como a Mistanásia tem assolado a população vulnerada e a necessidade, até mesmo urgência de adoção de políticas públicas a fim de operar uma transformação profunda e efetiva na realidade social brasileira, pois o maior bem jurídico violado tem sido a dignidade humana e o direito à saúde, como uma das principais prerrogativas da pessoa no que diz respeito à vida digna, por isso, o direito constitucional outorgado pelos arts. 6º e 196 da CF é de inegável magnitude e de obrigatória observância. Nesse viés, se, por um lado, o direito à saúde foi incorporado às garantias do cidadão brasileiro por força de comando constitucional, por outro, nasce um dever para a Administração Pública, que consiste na prestação positiva de promover saúde adequada à população, conforme disposição ipsis litteris: "A saúde é direito de todos e dever do Estado" (Brasil, CF, art. 196, 1988). Do descumprimento dessa garantia constitucional que causa lesão à população, nasce, para o Poder Público a obrigação de reparar o dano. A despeito da enorme soma de numerário destinada à saúde pública pelo Governo Federal, os recursos ainda são insuficientes. Santos et al., (2020) explicam que "No Brasil, investimos menos de 4% do PIB em saúde pública nos últimos anos, o que ocasionou importantes deficiências no sistema de saúde e aumento de desigualdades sociais". É realmente uma parcela pequena em face de tantas dificuldades enfrentadas. No mesmo sentido: O Brasil perdeu, nos últimos dez anos, mais de 41 mil leitos hospitalares no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2008, o total de leitos na rede pública era de 344.573. Em 2018, o total chegava a 303.185. [...] Os dados informam queda dos leitos em 22 estados e 18 capitais. A Região Sudeste apresentou a maior redução de leitos, com o fechamento de quase 21,5 mil em oito anos (LABOISSIÈRE, 2018). Os recursos não alcançam usuários das extremidades, que seriam os primeiros destinatários dos serviços públicos de saúde, pois são muitos os que se encontram excluídos do sistema: as pessoas que não conseguem uma vaga no leito de um hospital, as que esperam mais de um ano para o exercício do direito à determinada cirurgia, as que aguardam na fila para um exame oneroso há dez meses, as residentes em locais de difícil acesso e que continuam à margem do atendimento de saúde e das condições dignas de vida. A realidade revela uma crescente precarização no setor da saúde pública, revelando a ocorrência da Mistanásia de forma exponencial, com estatísticas estarrecedoras, a exemplo dos casos levados à análise pelo Poder Judiciário no que explicito abaixo, conforme registro na obra acerca da Mistanásia (Cabral, 2023): responsabilidade civil do hospital municipal decorrente da morte de paciente, pela comprovação de nexo causal entre a conduta culposa e o dano moral e pensão mensal vitalícia dos dependentes da vítima; ação de indenização por dano moral pela morte do filho devido à falha de diagnóstico de dengue hemorrágica e demora na internação em hospital estadual, constatando-se responsabilidade objetiva do Estado, por dano moral configurado; prestação de serviços médicos em que o deslocamento de paciente por UTI móvel demorou (três horas de espera) no encaminhamento do transporte, provocando a morte do paciente; paciente morre após esperar por atendimento, nos fundos do posto de saúde: uma vez demonstrado o nexo de causalidade, omissão e falha no atendimento; direito à saúde e dever do Estado, foi reconhecida a solidariedade entre os entes federativos quanto ao fornecimento de medicamentos de alto custo; ação civil pública, ajuizada pelo MP do Rio Grande do Sul, em razão de esgotos a céu aberto, consistente em obrigação de fazer a instalação da rede de esgoto já projetada, por violação ao art. 45 da lei n. 11.445/2007; estupro de vulnerável em circunstâncias desfavoráveis, em que houve aproveitamento da situação de miséria; falecimento de filho, aos 11 anos, pois o paciente ingressou em hospital da União Federal para transfusão de sangue e, contaminado pelo vírus HIV, veio a óbito, cabendo obrigação de reparar o dano; o autor foi contaminado com o vírus HIV nas dependências do Centro Previdenciário durante internação para tratamento de dengue, por falha do enfermeiro durante o procedimento, ao reutilizar utensílio descartável (seringa e agulha usadas anteriormente em doente com HIV), tendo o relatório de inspeção da Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado de Saúde realizada na instituição, um ano e meio depois do ocorrido com o autor, constatada a continuidade da prática de reutilização de materiais descartáveis. Percebemos nas situações citadas de forma exemplificativa, a seriedade dos direitos existenciais violados, havendo ainda tantas outras de semelhante teor. A ementa, o Tribunal e os dados de cada um dos mencionados julgados foram devidamente indicados na obra "Mistanásia: vidas banalizadas, mortes miseráveis" (Cabral, 2023). Observamos a existência de vários aspectos caracterizadores da morte mistanásica: vulnerabilidade, deficiência ou carência no serviço médico-hospitalar; morte sem atendimento nos fundos do posto de saúde; excessiva espera para deslocamento; falhas no diagnóstico levando a pessoa a óbito; paciente em estado grave conduzido sem as devidas cautelas; direito à saúde descumprido pelo Ente Público; estado de miséria e exclusão social; falta de infraestrutura (tratamento de água e esgotos); contaminação por material descartável reutilizado em hospitais e consequente óbito. Trata-se de uma realidade que precisa se tornar alvo de sérias, urgentes e eficazes políticas públicas, objetivando minimizar a ocorrência das mortes mistanásicas, a fim de podermos voltar a preconizar a dignidade e passarmos à implementação da humanização da medicina e do atendimento. A responsabilidade civil por mortes mistanásicas Pudemos observar que certos casos acima deflagram a atuação do Poder Judiciário (mediante provocação das partes legitimadas) para compelir a Administração Pública ao cumprimento do dever de promover saúde (art. 196 da CF): foi assim  em relação aos medicamentos onerosos que o cidadão não pôde custear e com a obrigação de fazer a instalação das redes de esgoto que já estavam previamente planejadas mas não se efetivavam e, em muitas outras hipóteses, decisão judicial liminar para realização de exames, procedimentos e cirurgias de pessoas com risco de morte na enorme fila de espera do Sistema Único de Saúde (SUS). Se por um lado, o teor dos julgados expostos demonstram a necessidade de atuação do Poder Judiciário para o acesso a medicamentos, atendimentos e intervenções nos hospitais para efetivar o direito à saúde, por outro, há decisões no sentido de reparar o dano experimentado pelos pacientes que foram a óbito vitimados pela omissão, o erro no diagnóstico, as falhas no atendimento, a morte por abandono, a negligência e outras espécies de prejuízos aos direitos existenciais, constituindo-se lesões morais do bem jurídico maior: a dignidade da pessoa humana, seguido do direito à vida, que por determinação constitucional é um direito inviolável. Então, ante as considerações deste breve estudo a respeito da obrigação de reparar o dano, torna-se indispensável a coexistência de três pressupostos configuradores da responsabilidade civil objetiva, que diz respeito à Administração Pública, aos hospitais e postos de atendimento (927 e segs do CC e art. 14, caput, da Lei n. 8.078, de 1990, o CDC)): ato ilícito (que é a conduta contrária à lei, que causa o prejuízo ou dano a terceira pessoa); dano (prejuízo experimentado por terceira pessoa, o paciente, que pode ser material ou moral) e o nexo de causalidade (que é o liame entre o ato ilícito e o dano, sendo indispensável que o dano tenha decorrido diretamente do ato ilícito praticado). No caso da responsabilidade civil dos agentes de saúde, como médico e demais profissionais da área, a responsabilidade civil será subjetiva, somando-se a esses três elementos anteriores (ato ilícito, dano e nexo causal), a culpa (os profissionais da saúde somente serão obrigados a reparar o dano se agirem  com culpa, por força do art. 186 do CC e do art. 14, § 4º da lei 8.078, de 1990, o CDC: "§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa"). Comprovada a culpa, eles responderão; em não havendo prova da culpa, resta à instituição hospitalar (ou congêneres) a obrigação de reparar o dano experimentado pelo paciente, eis que a responsabilidade civil objetiva o impõe. Pois bem, a partir dessa compreensão, todas as vezes que os hospitais e demais unidades de atendimento vinculadas a um ente federativo (União, Estados ou Municípios), por meio de seus agentes, praticam ato ilícito, nasce para a Administração Pública a obrigação de reparar o dano (essa obrigação subsiste em relação aos hospitais particulares, entretanto, eles não estão inclusos como objeto desta pesquisa). Se a Administração Pública é responsável pelos serviços de saúde oferecidos por meio dessas instituições, ela será obrigada a arcar com a reparação civil, conforme vimos na síntese dos julgados. À guisa de remate, uma vez demonstrada a importância dos direitos existenciais violados pela Mistanásia e a consequente obrigação de reparar o dano na seara dos novos direitos e novos danos, concluímos pela necessidade da correspondente reparação civil todas as vezes que os pacientes forem vitimados por lesão aos direitos existenciais. Nesse caso, deverão buscar, primeiramente, em seara administrativa, a composição de conflitos e, em face de não haver conciliação, buscarem a via judicial para ajuizar a competente ação de reparação civil em face do ente público legitimado para figurar no polo passivo da demanda. Conclusões  As mortes mistanásicas se caracterizam como novos danos na seara da responsabilidade civil, uma vez que a partir da valorização dos direitos existenciais, as lesões à dignidade da pessoa humana passam a compor um universo de direitos de primazia absoluta, os existenciais, decorrentes da dignidade da pessoa humana em todas as suas manifestações. A realidade é tão degradante, que se tornou conhecida pela doutrina bioética como morte em nível social, coletivo, em número tão elevado de pessoas cujas vidas são banalizadas, que levou Pessini a atribuir a esse fenômeno, a expressão "silencioso holocausto" (Pessini et al, 2015). Nessa esteira, mais de valores do que de direitos propriamente ditos, as mortes mistanásicas, reconhecidas como dano existencial, passam a merecer especial tutela, devendo o Poder Público, em cumprimento da função social, criar mecanismos capazes de garantir e assegurar a efetividade do direito, promovendo a responsabilização civil, a fim de que a imensa camada de pessoas vulneradas, obtenham a reparação que lhes cabe, em face do dano por elas experimentado, pois quanto a eles, jamais serão alcançados os objetivos da reparação civil, a restitutio in integrum (restituição integral do dano, de forma a restabelecer o equilíbrio ao ofendido), tampouco o status quo ante (que visa restituir ao ofendido o estado anterior à ocorrência da lesão). Trata-se de lesão passível de reparação, da espécie compensação, que visa tão somente atenuar os efeitos do dano, pois a rigor, é irreparável, por força da natureza intangível do bem jurídico violado, qual seja, vidas humanas. Precisamos crer em dias melhores, em um futuro promissor, no qual o volume de mortes mistanásicas se torne fato do passado, pois está nas mãos de nossa geração a possibilidade de acolhermos as obrigações como nossas e, como agentes transformadores, buscarmos viabilizar os valores e princípios da Lei Maior. E, aos que enquadram este sonho na categoria de utopia, concluo com a sabedoria de Pessini (2023, p. 20): "Então para que serve a Utopia? Podemos nos perguntar com Eduardo Galeano, e ele nos diz que 'a utopia está no horizonte. Caminho dois passos, e ela se distancia dois passos e o horizonte se afasta mais dez passos adiante'. Então para que serve a utopia, a não ser para caminhar? Então, caminhemos com esperança!" Ao que acrescento: e com muita fé! Referências  AMATRIAIN, Roberto Cataldi. Introducción a la bioética del siglo XXI. Buenos Aires: Hygea, 2017. BRASIL. CRFB, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível aqui. Acesso em 07.set.2023. BRASIL. Lei Federal n. 8.078 de 1990. Código de Proteção e Defesa do Consumidor, de 11 de setembro de 1990. Disponível aqui. Acesso em 07.set.2023. BRASIL. Lei Federal n. 10.406 de 2002. Disponível aqui. Acesso em 07.set.2023. CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Mistanásia: vidas banalizadas, mortes miseráveis. Campos dos Goytacazes-RJ: Encontrografia, 2023. CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Mistanásia em tempos de Covid-19. Campos dos Goytacazes: Encontrografia, 2020a. CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Mistanásia no Brasil: o silencioso holocausto do século XXI (p. 23-34). In CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat; Pontes-Ribeiro, Dulce Helena; PINHO, Leandro Garcia (orgs). Ensaios interdisciplinares em tempos líquidos - Homenagem a Zygmunt Bauman. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia, 2020b. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana - uma Leitura Civil Constitucional dos Danos Morais. São Paulo: Renovar, 3ª tir., 2009. 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Recentemente, houve ampla repercussão de comercial veiculado em rede nacional de televisão, o qual uniu virtualmente - com o emprego de recursos de inteligência artificial -, Elis Regina, falecida em 1982 e sua filha Maria Rita. No vídeo, cada cantora dirige uma Kombi, a primeira um modelo dos anos 1970 na versão clássica carburante representando a mãe e sua época e a segunda dos anos atuais, representando a filha e a nova geração do automóvel, em versão elétrica. "Como nossos pais" foi a música base escolhida para, cantada em dueto artificial por mãe e filha, exprimir que a passagem dos anos não seria capaz de modificar o modus vivendi e que certos elementos (como os carros) adquiririam perenidade.   O comercial exemplifica que, na contemporaneidade, o uso de recursos técnicos que permitem a manipulação de imagens e voz de forma realista (notadamente deep fakes) tornam grises os limites entre o real e o virtual. Se antes isso se restringia aos detentores de bons e caros mecanismos (notadamente a indústria cinematográfica), atualmente a disseminação tecnológica permite que isso seja feito em profusão nos mais amplos meios. O falecimento não mais impede a criação de novas imagens da pessoa, permitindo inclusive uma "carreira pós morte". Nesse contexto, adquire relevância o estudo da interface entre os direitos de personalidade e o desenvolvimento tecnológico, bem como a proteção jurídica do legado imaterial da pessoa. O tema envolve inúmeros debates, notadamente (sob o enfoque jurídico) quanto a legitimidade para disposição do uso da imagem1 de pessoa falecida e a eventual consequência que poderia advir desse emprego. O exemplo do comercial será utilizado como pano de fundo para este texto, que contempla uma avaliação hipotética de situações que, ao menos teoricamente, poderiam ensejar responsabilização civil e, nesse âmbito, o questionamento seria dirigido aos seguintes tópicos: (1) haveria alguma pretensão indenizatória (civil individual) a ser exercida? (2) Se positiva a resposta, quem seria legitimado a postulá-la? Para a averiguação da ocorrência de responsabilidade na criação de deep fake e uso desautorizado de imagem, é essencial apurar quem poderia ser juridicamente atingido pela conduta lesiva (a "vítima"), qual seria o evento lesivo e consequente dano enlaçado por um nexo causal. Nesse caso, é possível apontar que alguns dos familiares poderiam ser legitimados a reclamar pelo uso indevido de imagem caso o comercial tivesse sido veiculado sem o devido assentimento de quem fosse apto a permitir a exploração e a manipulação da imagem. O evento lesivo seria o uso não consentido da imagem ou em desacordo com o que pudesse ter sido autorizado e o dano poderia ser de duas ordens, quais sejam, o patrimonial (o preço da imagem no mercado ou o lucro da intervenção) e o extrapatrimonial (a violação da autodeterminação daquele que teria o poder de dispor da imagem e do direito de personalidade). O estudo do direito de imagem envolve as chamadas teoria dualista e a monista. A dualista, típica do common law, desdobra o direito à imagem em right to privacy e rigth to publicity, ambos autônomos entre si, o primeiro reputando a imagem como uma das expressões intangíveis da privacidade (dela derivada, não independente) e tutelando valores pessoais da personalidade nessa esfera, e o segundo, tratando da dimensão patrimonial da imagem, passível de exploração econômica. A monista (que é a adotada no direito brasileiro), atribui ao titular do direito não somente a possibilidade de defesa em face de ingerências alheias indevidas, como também o poder de disposição, com a viabilidade de obtenção de benefícios advindos da sua exploração econômica, aliando ao referido direito dimensões patrimoniais e extrapatrimoniais. O resguardo ao direito de imagem é objeto do artigo 20 do Código Civil brasileiro (CC). A proteção póstuma se consolida processualmente na atribuição de legitimidade ao cônjuge ou colateral (até o quarto grau), para exigir a cessação de ameaça ou lesão a direito de personalidade ou indenização por violação ao mencionado direito (conforme dispõe o parágrafo único dos artigos 12 e 20 do CC). O uso desautorizado de imagem, no Brasil, pode ensejar uma obrigação de indenizar, independentemente do propósito de obtenção de lucro e a proteção ocorre em vida ou após a morte. Assim, a averiguação da possibilidade ou não de uso da imagem alheia passa pelo exame de seu contexto (importância fundamental ou secundária do uso), a finalidade do uso da imagem (econômica ou altruísta - mas essa relevância se dá notadamente para arbitramento de eventual indenização), as circunstâncias em que a imagem foi obtida e em que foi veiculada (acidentais ou propositais), o objetivo da divulgação (de atingir negativamente a honra ou de preservar ou elevar a reputação da pessoa cuja imagem está sendo utilizada), o meio e o tempo de divulgação; a veracidade e a integridade da imagem e de outros elementos de informação que possam ser considerados relevantes em cada caso concreto2. A voz também recebe proteção equivalente a que é concedida à imagem3, a qual representa a identificação pessoal4, por ser a "assinatura" da fonação, caracterizada pelo som com características particulares que um indivíduo produz (cada voz tem a sua ressonância, projeção, qualidade, velocidade e ritmo), sendo certo que essa singularidade permite e cria uma associação imediata entre voz e pessoa5. O direito de imagem (incluindo a voz, como dito) expressa-se em duas vertentes, a primeira representando a autodeterminação pessoal quanto a exploração (reprodução, difusão ou publicação), que justifica as legitimas decisões pessoais, e a segunda manifestando-se como direito de defesa, para que outros não o explorem desautorizadamente6. O CC prevê que a "existência da pessoa natural termina com a morte" (artigo 6º). Mas, ainda que a pessoa falecida possa ser sujeito de relações jurídicas - pois fim da vida lhe retira a personalidade jurídica em sentido subjetivo -, resistem à morte os seus legítimos interesses jurídicos provenientes dos direitos de personalidade, os quais transcendem ao falecimento, subsistem, produzem efeitos jurídicos e podem influenciar e causar ingerências voluntárias ou involuntárias no curso social7. A sequência da produção de alguns efeitos jurídicos póstumos demonstra que não ocorre a extinção da personalidade em sentido objetivo (constituída pelos atributos pessoais essenciais), mas, sim, há a sua projeção "para além da vida do seu titular"8. O exercício de alguns direitos póstumos se dá com outra titularidade e com características específicas (por isso, constitui-se como uma titularidade extraordinária), porquanto as legítimas pretensões relacionadas aos direitos de personalidade da pessoa falecida (notadamente de defesa, de inibição, de mitigação do dano ou de indenização por danos) podem ser exercidas pelo "cônjuge supérstite, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau" (artigo 12, caput e parágrafo único do CC), conquanto não se desconheça a crítica feita à regra, que não refere o companheiro e que limita os legitimados extraordinários ao rol de herdeiros.  Quanto ao fundamento dessa titularidade extraordinária, alguns autores sustentam que ela teria sua gênese em teorias sobre deveres jurídicos gerais, outros que afirmam a ideia de uma personalidade jurídica parcial pós-morte. Há, ainda, teorias que vinculam esse interesse aos próprios afetados diretamente por condutas atentatórias à memória do falecido ou que consideram os herdeiros ou legatários fiduciários dos direitos de personalidade do extinto9. Sustenta-se que a tese mais adequada é a que encontra o fundamento na titularidade dos herdeiros ou sucessores em relação a exploração de determinados atributos da pessoa falecida reside na sucessão por "aquisição derivada translativa mortis causa de direitos pessoais"10. Quanto ao uso de imagem, nome e voz, seus usos dependem de autorização, com algumas exceções (por exemplo, se for necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, nos termos do artigo 20 do CC, por escopo científico, didático ou cultural), proteção essa que se estende à imagem de pessoa falecida11. A legitimação tanto para consentir com o uso de imagem de pessoa falecida quanto para postular indenização em caso de uso pós-morte indevido é atribuída, conforme o caso: (a) a quem for definido em testamento, (b) a quem for o titular de tal direito em razão de negócio jurídico regular, (c) ou a quem for legitimado por lei. O CC protege a imagem, o nome e a voz quanto ao uso por terceiros, mas nada dispõe sobre o uso por aqueles que ficam responsáveis pela administração desses direitos, no lugar do falecido. Pressupõe-se que, por uma questão de razoabilidade e boa-fé, aqueles que sucedem ao falecido, perenizando-o de certa forma, biológica ou juridicamente, tratarão de tais atributos com as cautelas admissíveis. Mas é necessário também pensar o que pode ser feito quando isso não acontece. Por precaução, convém que providências sejam tomadas ainda em vida pelo titular, pois a lei é silente e o falecido não tem mais ingerência efetiva sobre os fatos post mortem, dentre os quais o eventual uso desarrazoado ou abusivo. Nesse caso, haveria uma situação inusitada, na qual o "abusador", por autorizar a exploração econômica da imagem e voz, seria a mesma pessoa a quem a lei atribui legitimidade para frear situações de uso irregular, caracterizando conflito de interesses. Há limites naturais, por parte do titular, para preventivamente restringir as pretensões de futuros sucessores, em razão da perda de força efetiva de ação pós-morte, por determinação legal ou por manifestação de vontade do falecido, mas a manifestação prévia e escrita de vontade para reduzir o espectro de disposição daqueles que se tornaram "guardiões" de tais direitos ou das manifestações de tais direitos, é instrumento adequado a frear pretensões egoístas e distanciadas das legítimas intenções de seu titular, que pode consignar em que termos o uso de seus atributos de personalidade pode se materializar. A necessidade se acentua quando a imagem, a voz e o nome estão cercados de interesse pela notoriedade, pois sua importância se amplia na mesma medida da cobiça. Quem deseja preservar qualidades humanas positivas inerentes (inatas ou formadas no curso da vida) que constituem a sua própria honra do risco de serem trocadas por dinheiro, sem maiores cautelas, deve adotar uma postura ativa preventiva. Eventual ambição dos sucessores, aliada à ânsia curiosa da sociedade, pode se tornar uma armadilha cujo resultado tende a ser nefasto à pessoa falecida, trazendo a necessidade de que o titular do direito de imagem evite que esse atributo seja maculado por interesses meramente egoístas, ilegítimos ou distanciados de si, após o seu falecimento. Isso somente confirma o acerto do visionário ator Robin Williams, que, há aproximadamente uma década, por Living Trust, restringiu o uso da própria imagem após a morte12, em medida que representa conduta preventiva de danos. Tal fato ressalta a relevância da análise dos atos de disposição para o pós-morte nessa dimensão, relativa aos atributos pessoais, com índole extrapatrimonial direta e patrimonial indireta, porque permite duas abordagens relevantes: a primeira é a possibilidade de manter, na pessoa do titular, a disposição sobre o uso de sua imagem no período pós-morte, excluindo da seara do herdeiro essa prerrogativa e a segunda demonstra que o direito sucessório não tem conotação puramente material, servindo não apenas para tratar de questões relacionadas ao patrimônio, porque abre espaço para o tratamento de interesses de cunho existencial ou imaterial, evitando disposições indevidas de imagem. No entanto, isso não elimina o questionamento antes posto, no sentido de que falta especificar quem teria legitimidade para agir na defesa da vontade do extinto, caso o herdeiro não atenda às restrições de uso de imagem estabelecidas pelo falecido em vida, e a quem reverteria eventual indenização. __________ * Texto elaborado com base no artigo intitulado "Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos direitos de personalidade por meio do testamento" publicado originalmente na Revista Fórum de Direito Civil. RFDC n. 10. Ano 4, set.-dez./2015. 1 A expressão "imagem" é empregada em sentido amplo, abrangendo a representação visual pessoal, estática ou dinâmica, atual ou passada, hígida ou alterada, total ou parcial (independentemente da técnica de captação utilizada), sendo também passível de emprego quando se quer afirmar a proteção ao desenho ou figura assemelhada (tal como os robôs referidos no precedente do common law Wendt v. Host Intern. Inc.). A imagem é protegida pela Constituição Federal (CF), em seu artigo 5º, incisos V e X, os quais reconhecem a inviolabilidade da imagem pessoal e asseguram a possibilidade de postulação de indenização caso a mesma seja violada. 2 O exposto representa uma visão que é essencialmente personalista no que se relaciona aos direitos de imagem, nome e voz. Não se desconhecem, porém, as análises alternativas que são feitas sobre o assunto, e que tratam de uma possível restrição ao viés cultural popular coletivo por parte de quem explora direitos de publicidade, especialmente quando envolvem pessoas públicas. (MADOW, Michael. Private Ownership of Public Image: Popular Culture and Publicity Rights 81 Calif. L. Rev. 125, 178-238 1993, p. 205-215). 3 O artigo 90, § 2º, da lei 9.610/1998 protege explicitamente a imagem e voz do artista intérprete ou executante ("§ 2º A proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, quando associadas às suas atuações"), e o artigo 5º, XXVIII da CF estabelece a necessidade de proteção ("nos termos da lei"), da imagem e voz humanas, "inclusive nas atividades desportivas". 4 CIFUENTES, Carlos. Derechos personalíssimos. 3. ed. Buenos Aires: Astrea, 2008. p. 557-558; BRÜGGEMEIER, Gert, et. al. Personality rigths in European tort law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 245). No direito brasileiro, Szaniawski (SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 222) afirma que é possível encontrar, na jurisprudência, decisões de "outorga de tutela à própria voz de alguém, além do direito à própria imagem, estando assegurados, entre nós, a proteção de ambas aas manifestações da personalidade humana pela jurisprudência e pela doutrina". 5 A proteção jurídica abrange a voz profissional ou amadora, cantada ou falada, mas, na  jurisprudência californiana, o termo "voz" se aplica somente à voz real de uma pessoa, não protegendo os imitadores [conforme o precedente Midler v. Ford, 849 F.2d 460, 463 (9 Cir. 1988)]. No entanto, o right of publicity se aplica à proteção da voz da pessoa imitada, se a voz do imitador evocar a voz do imitado. Em Midler v. Ford afirmou-se que a voz seria tão distinta e pessoal como um rosto, apresentando-se como um dos modos mais palpáveis ??em que a identidade se manifesta: "um amigo é imediatamente conhecido por algumas palavras ao telefone" [Midler v. Ford, 849 F.2d 460, 463 (9th Cir. 1988)], disponível aqui. Esse caso trata da contratação de uma cantora que fez a imitação da voz da cantora Bette Midler, na música "Do You Want To Dance", em um comercial da Ford Motor Company, veiculado nos Estados Unidos da América em 1985]. Veja-se que não foi usado o nome ou a imagem de Midler, mas sim uma voz similar, fazendo com que as pessoas se confundissem. O fato de o público crer que a música era efetivamente cantada por Midler, foi entendido como uma conduta geradora de dano à cantora cuja voz foi imitada. 6 SILVA, Andréa Barroso. Direito à imagem: o delírio da redoma protetora. In: MIRANDA, Jorge, et. al. (org.). Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2012. p. 283. 7 SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 189, 193 e 194). Referido autor não menciona interesses juridicamente relevantes relacionados a pessoa falecida, ele menciona que a pessoa falecida teria personalidade física e moral como "bem jurídico", como "objeto dos direitos de personalidade". O cuidado que se deve ter com esse pensamento é o de reduzir os direitos de personalidade e suas expressões a um mero patrimonialismo que se vincula à expressão "bem jurídico".  8 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 25. 9 Vide, por todos SOUZA (1995. p. 364) e, quanto às divergências em relação a titularidade do direito violado, veja-se BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 132-136. 10 SOUZA, 1995. p. 367. Esse também parece ser o caminho trilhado pela jurisprudência brasileira, revelando-se interessante a perspectiva do Resp. n. 268.660, que trata da atuação da mãe na defesa da imagem e memória da filha (agindo em defesa "alheia"), ao mesmo tempo em que admite uma pretensão que seria da mãe, pelo dano moral próprio decorrente do uso indevido da imagem (agindo em razão de um interesse próprio): CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. REEXAME DE PROVA. DIVERGÊNCIA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM. SUCESSÃO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. HONORÁRIOS. 1. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem de quem falece, como se fosse coisa de ninguém, porque ela permanece perenemente lembrada nas memórias, como bem imortal que se prolonga para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair da mãe o direito de defender a imagem de sua falecida filha, pois são os pais aqueles que, em linha de normalidade, mais se desvanecem com a exaltação feita à memória e à imagem de falecida filha, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que possa lhes trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo. [...]. STJ. 4ª Turma. Recurso Especial n. 268660 / RJ. Relator Ministro César Asfor Rocha. J. em 21/11/2000. DJ 19/02/2001, p. 179. RSTJ, vol. 142, p. 378. RT, v. 789, p. 201. Em sentido contrário ao ora exposto preleciona SZANIAWSKI (2005. p. 221). 11 "Le droit à l'image persiste après le décès de la personne représentée, [.]". (MASSON, Jean-Pol. Le droit à l'image. In: RENCHON, Jean-Louis. Les droits de la personnalité. Bruxelles: Bruylant, 2009. p. 243). 12 No caso do ator mencionado, houve tutela dos denominados rigths of publicity. O ator utilizou a via do living trust para manter a sua imagem a salvo de exploração publicitária, incluindo a impossibilidade de uso de sua imagem (estática ou dinâmica), nome, voz e assinatura por um período de vinte e cinco anos, a contar da sua morte. Disponível aqui. A limitação pode considerar questões de tempo, espaço/território, finalidade, objeto, meio, etc. Estão fora dos limites de disponibilidade aqueles casos em que o uso da imagem, da voz e do nome não estiverem contidos na esfera de autodeterminação pessoal juridicamente aceitável, pois a circunscrição dos direitos de personalidade, nesse ponto, não é distinta daquela que se poderia traçar em vida (v. SOUZA, 1995, p. 196). Por isso, não se permite o ato de disposição pós-morte que, por exemplo, venha a tentar restringir a veiculação de imagens relativas a um acontecimento histórico, ou de interesse público relevante, havendo também restrição relativa a própria incompatibilidade entre a natureza do tipo de direito de personalidade em questão e os próprios pressupostos dessa espécie, tal como ocorre com o direito à vida. Devem ser respeitados os negócios jurídicos válidos firmados em vida pelo titular, ou mesmo expressões de criação que tenham caído em domínio público.
Resumo: Discute-se o uso inovador da biometria facial em eventos esportivos, com foco nas recentes implementações exigidas pela Lei Geral do Esporte (lei 14.597/2023). Explora-se como a substituição de métodos tradicionais de ingresso por sistemas de reconhecimento facial tem impactado a eficiência e segurança dos eventos, em cotejo com as exigências da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018) para o tratamento de dados pessoais sensíveis e quanto aos regramentos de responsabilidade civil definidos. No mais, o artigo aborda as preocupações éticas relacionadas à privacidade e ao uso indevido de dados biométricos.  A crescente integração de tecnologias emergentes de reconhecimento facial em diferentes setores tem estimulado discussões a respeito de seus benefícios e dilemas éticos1. No contexto dos eventos esportivos, a adoção da biometria facial como meio de acesso a estádios tem demonstrado vantagens significativas, incluindo agilização do processo de entrada e combate ao cambismo. No entanto, essa mudança não vem sem questionamentos sobre a proteção de dados pessoais e a utilização responsável de dados biométricos2. Recentemente promulgada, a lei 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte - LGE), visa aprimorar e regular diversos aspectos relacionados à organização e administração de eventos esportivos. Um dos pontos tratados na lei diz respeito à obrigatoriedade de implementação de sistemas de controle e fiscalização do acesso do público a arenas esportivas com capacidade para mais de 20.000 pessoas. Tal monitoramento deve incluir o uso de tecnologias de imagens para a supervisão das catracas, bem como a adoção de identificação biométrica dos espectadores por técnica de reconhecimento facial (art. 148). Ademais, o texto também prevê a obrigatoriedade da implementação de centrais técnicas de informações com a infraestrutura necessária para viabilizar a supervisão por imagem do público presente e a realização do cadastramento biométrico dos espectadores. Sabe-se que dados biométricos são considerados dados pessoais sensíveis3 pelo artigo 5º, inciso II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD (lei 13.709/2018)4, de modo que toda operação de tratamento (que envolve, por exemplo, a coleta, o processamento e o armazenamento) deve se embasar em alguma das hipóteses ("bases legais") do artigo 11 da lei, com a proteção do livre desenvolvimento da personalidade e do princípio da não discriminação, pois, "além de se realizar uma proteção mais ampla dos dados sensíveis, tal proteção também deverá ser observada nos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais"5, a denotar regime que se coaduna com o entendimento firmado no Enunciado 690, aprovado por ocasião da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, em maio de 2022, com os seguintes dizeres: "a proteção ampliada conferida pela LGPD aos dados sensíveis deverá ser também aplicada aos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais, tal como observado no §1º do art. 11 da LGPD". Havendo previsão expressa na Lei Geral do Esporte para a operação de tratamento de dados pessoais sensíveis pela coleta de biometria facial em estádios, é inegável a licitude da atividade, com lastro no cumprimento de obrigação legal (art. 11, II, "a", da LGPD). Eventual excesso, contudo, poderá acarretar eventual responsabilização (art. 42 da LGPD) e sanção administrativa (art. 52 da LGPD) aos controladores, que, no caso, são a organização esportiva diretamente responsável pela realização do evento esportivo e seus dirigentes (art. 149 da LGE). Embora o debate sobre a segurança nas arenas esportivas não seja novo, fato é que, três semanas depois da promulgação da nova lei, um fatídico óbito reacendeu as discussões em torno da responsabilização civil por atos de violência em estádios. A tragédia ocorreu enquanto Gabriela Anelli Marchiano, de 23 anos, aguardava na fila para entrar no Allianz Parque, estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo/SP. Um confronto entre torcedores de torcidas organizadas do time local e do Clube de Regatas do Flamengo eclodiu, levando à intervenção da polícia militar com o uso de gás de pimenta para conter a situação. Durante a briga, Gabriela foi atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa de vidro, resultando em ferimentos graves e, apesar de ter sido levada para o hospital e de ter passado por tentativas de reanimação, infelizmente, não sobreviveu. A confusão teve início nas cercanias do portão "A" do estádio, quando torcedores do Palmeiras perceberam a presença de torcedores flamenguistas6. Diante disso, os torcedores palmeirenses começaram a perseguir os torcedores rivais com a intenção de agredi-los. A ação da Polícia Militar, que utilizou gás de pimenta, acabou afetando não apenas os torcedores, mas também os jogadores em campo, resultando em interrupções na partida. A morte trágica de Gabriela Anelli e os eventos que a cercam suscitam questões cruciais sobre a segurança em eventos esportivos e a atuação das forças de segurança. A Polícia Civil, por meio da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), efetuou a prisão de um suspeito após utilizar imagens capturadas por uma emissora de televisão e pelo sistema de reconhecimento facial do Allianz Parque7, implementado em conformidade com a nova exigência do artigo 148 da Lei Geral do Esporte. O software utilizado no local8 foi desenvolvido por uma startup brasileira e é operado por sistemas algorítmicos que processam imagens a ponto de identificar até 80 pontos do rosto humano para obter alta precisão, mas jamais de modo infalível. Isso porque, via de regra, o reconhecimento facial é realizado por técnicas sofisticadas de captura de imagens em tempo real, com processamento algorítmico para a extração de recursos faciais relevantes e comparação com bancos de dados de rostos conhecidos (a denotar a razão peal qual a LGE determina a existência de infraestrutura para cadastramento prévio dos torcedores que ingressam nas dependências do estádio), mas, ainda assim, é possível que haja falhas. A título exemplificativo, pode-se categorizar as técnicas mais comuns de reconhecimento facial em quatro grandes grupos: (i) métodos baseados em características, pelos quais são extraídos traços do rosto, como olhos, nariz, boca etc. para comparação com um conjunto de características conhecidas a partir de métodos como Eigenfaces e Fisherfaces9; (ii) métodos baseados em modelos 3D, que utilizam informações tridimensionais do rosto para realizar o reconhecimento facial, com resultados mais robustos em relação a variações de pose e iluminação10, sendo geralmente baseados em Modelos Deformáveis de Superfície (SDM) e nos Volumetric Hierarchical Density-Adaptive Models (VHDAM); (iii) métodos baseados em aprendizado de máquina (machine learning), pelos quais se emprega algoritmos para treinar um modelo que pode identificar e reconhecer rostos a partir de Redes Neurais Convolucionais11 (CNNs) e Support Vector Machines (SVMs); (iv) métodos baseados em deep learning12, que se valem de redes neurais profundas para analisar representações faciais complexas e realizar o reconhecimento facial por modelos como FaceNet13 e as Multi-task Cascaded Convolutional Networks (MTCNN). A despeito da sofisticação técnica desses métodos, trata-se de situação preocupante, como anota Eduardo Tomasevicius Filho, pois "os algoritmos de inteligência artificial voltados ao reconhecimento facial trabalham com mecanismos de semelhança e não de exatidão, posto que se precisa encontrar a resposta com a máxima rapidez possível. Devido às experiências anteriores acumuladas pelo uso contínuo do software, no sentido de eliminarem-se as "pistas" erradas, chega-se ao resultado correto"14. No entanto, a questão da segurança dos dados permanece duvidosa, especialmente com a incerteza sobre os níveis de segurança informacional adotados para cumprimento dos deveres estabelecidos nos artigos 46 e 49 da LGPD, uma vez que, "devido ao fato de que algoritmos de inteligência artificial não são dotados da sensibilidade humana, decorrente das inteligências múltiplas, é possível a ocorrência de aprendizados equivocados a partir de dados mal coletados ou mal interpretados, gerando análises preconceituosas ou equivocadas, as quais podem levar a severas limitações de liberdades da pessoa e violações por danos patrimoniais e extrapatrimoniais, configurando violações ao direito à honra"15. Além disso, a utilização de outras tecnologias - como drones e scanners 3D - para a reconstituição do incidente destaca a importância de métodos investigativos modernos para esclarecer os detalhes dos acontecimentos16. Isso porque, inegavelmente, a triste ocorrência levanta preocupações sobre a violência associada a torcidas organizadas e a necessidade de medidas que promovam a segurança e o bem-estar dos torcedores nos estádios. No mais, convém registrar que a LGE define as condições de acesso e permanência dos espectadores no recinto esportivo, independentemente da modalidade de ingresso utilizada e, dentre as diversas condições especificadas, o inciso XII do artigo 158 estabelece a obrigatoriedade do cadastro no sistema de controle biométrico previsto no artigo 148 para espectadores com idade superior a 16 anos. Além disso, o parágrafo único do artigo 158 estipula que o descumprimento das condições estabelecidas no mencionado artigo implicará a impossibilidade de acesso do espectador ao local do evento esportivo ou, caso já esteja presente, o seu afastamento imediato do recinto. Esse cadastro é fundamental para assegurar a identificação e autenticação dos indivíduos presentes no evento esportivo e tem clara conotação de reforço da segurança e do controle do ambiente, mas a que custo? Não há dúvidas de que o impedimento de acesso do torcedor restringe seu direito social ao lazer (art. 6º, caput, CF) e limita o exercício de sua autodeterminação informativa (art. 2º, II, LGPD) em prol da almejada segurança. O §5º do artigo 178 estabelece uma disposição importante relacionada às torcidas organizadas17, pois prevê de forma categoria a responsabilidade civil objetiva e solidária pelos danos causados por qualquer um de seus associados ou membros no local do evento esportivo, em seus arredores ou no trajeto de ida e volta para o evento. Além disso, o §6º reforça o dever de reparação do dano estabelecido no parágrafo anterior, pois indica, explicitamente, que a responsabilidade pelo dano não recai somente sobre a torcida organizada, mas também sobre seus dirigentes e membros, solidariamente e com o próprio patrimônio. Em conclusão, a exigência do fornecimento da biometria facial nos eventos esportivos representa uma significativa transformação no acesso e na segurança desses ambientes. Enquanto seus benefícios são inegáveis, as implicações éticas e jurídicas não podem ser subestimadas. A busca pelo equilíbrio entre a otimização da experiência do torcedor e a proteção de sua privacidade exige uma abordagem cuidadosa e ponderada18, sustentada por normas regulatórias sólidas e práticas transparentes de gerenciamento de dados. A contínua discussão e a análise crítica dessas questões são essenciais para garantir que a adoção de tecnologias emergentes ocorra de maneira ética e responsável, e, nesse aspecto, o rigor das previsões da LGE em matéria de responsabilidade civil - que vai além das organizações responsáveis pelo evento e atinge diretamente dirigentes, torcidas organizadas e os membros dessas - revela a clara intenção de coibir a violência. Será importante acompanhar o processo de adequação de outras organizações esportivas que possuem arenas e ginásios com a capacidade mínima exigida a fim de que se possa aferir a conformidade com a LGE e com a LGPD, que devem convergir para a propagação de uma cultura de prevenção de ilícitos e para a mitigação de danos. __________ 1 No Brasil, por exemplo, tem-se em tramitação os Projetos de Lei 12/2015, 9736/2018, 11140/2018 e 4612/2019 - apenas para citas alguns. 2 OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de. Sorria, você está sendo filmado! Repensando direitos na era do reconhecimento facial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 105-113. 3 Segundo Chiara de Teffé e Mario Viola: "Os dados sensíveis necessitam mais do que nunca de uma tutela diferenciada e especial, de forma a se evitar que informações dessa natureza sejam vazadas, usadas indevidamente, comercializadas ou sirvam para embasar preconceitos e discriminações ilícitas em relação ao titular. Todavia, a mera proibição do tratamento de dados sensíveis é inviável, pois, em alguns momentos, o uso de tais dados será legítimo e necessário, além do que existem determinados organismos cuja própria razão de ser estaria comprometida caso não pudessem obter informações desse gênero, como, por exemplo, algumas entidades de caráter político, religioso ou filosófico". TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; VIOLA, Mario. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020. p. 37. 4 Prevê a LGPD: "Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural". Por tratar-se de norma que influenciou diretamente a LGPD brasileira, é sempre conveniente a transcrição de conceitos específicos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (Regulamento 2016/679/EU), e, sobre o tema, os europeus cuidaram de estabelecer definição específica para "dados biométricos" no artigo 4º, item 14, do RGPD: "dados pessoais resultantes de um tratamento técnico específico relativo às características físicas, fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular que permitam ou confirmem a identificação única dessa pessoa singular, nomeadamente imagens faciais ou dados dactiloscópicos". 5 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022. p. 39. 6 STABILE, Arthur. Palmeirense ferida em confusão de torcedores foi socorrida por ambulância do estádio e teve duas paradas cardíacas. G1, 10 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 7 ESPN. Como imagens da ESPN e sistema de reconhecimento facial do Allianz foram decisivos para prender suspeito de matar Gabriella Anelli. ESPN.com.br - Redação, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 8 CAPELO, Rodrigo. Reconhecimento facial no estádio do Palmeiras abre debate sobre benefícios e perda de privacidade. Globo Esporte, 17 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 9 WECHSLER, Harry. Reliable face recognition methods: system design, implementation and evaluation. Cham: Springer, 2006, passim. 10 PROESMANS, Marc; VAN GOOL, Luc. Getting facial features and gestures in 3D. In: WECHSLER, Harry; PHILLIPS, P. Jonathon; SOULIÉ, Françoise Fogelman et al (Ed.). Face recognition: from theory to applications. Cham: Springer, 1998, p. 287-309. 11 LAWRENCE, Steve; GILES, C. Lee; TSOI, Ah Chung; BACK, Andrew D. Face recognition: a convolutional neural-network approach. In: IEEE Transactions on Neural Networks, [S.l], v. 8, n. 1, p. 98-113, jan. 1997. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 12 ROSEBROCK, Adrian. Face recognition with OpenCV, Python, and deep learning. PYimagesearch, 18 jun. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 13 SCHROFF, Florian; KALENICHENKO, Dmitry; PHILBIN, James. FaceNet: A Unified Embedding for Face Recognition and Clustering. In: Proceedings of the IEEE Computer Society Conference on Computer Vision and Pattern Recognition 2015. Boston, MA, USA, 7-12 jun. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 14 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136. 15 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136-137. 16 MAGATTI, Ricardo. Polícia reconstitui morte de Gabriela Anelli, com drones e scanners 3D, e ouve novas testemunhas. Terra, 18 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 17 O §2º do mesmo dispositivo traz o conceito de "torcida organizada": "(...) §2º Considera-se torcida organizada, para os efeitos desta Lei, a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato que se organiza para fins lícitos, especialmente torcer por organização esportiva de qualquer natureza ou modalidade". 18 A esse respeito, permanece atual a lúcida ponderação de David Lyon: "(...) the reality is that 'privacy' often remains a privilege. Expressed within data protection law it stands as a necessary minimum requirement, but that hardly touches the deeper problem. Today's surveillance is carried out not only by government but also by large corporations, not only within the nation-state but in networks that transcend humanly created boundaries". LYON, David. The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, p. 195.
Embora corra o risco da redundância, a atual tratativa da privacidade e suas implicações possui conexão direta com a enorme expressão da virtualização das relações jurídicas. Uma parte significativa dos contratos migrou para plataformas digitais, onde o "aceite" está à curta distância de um clique, a um toque na tela ou a uma identificação facial. O reconhecimento de firmas desaparecerá logo mais, sendo substituído totalmente por assinaturas digitais. A burocrática ida ao banco, as cansativas filas de supermercado, de embarque, dos atendimentos a serviços públicos tendem a desaparecer. As relações sociais, dentre elas se colocam as relações de trabalho, entre amigos e até mesmo familiares, em sua maioria, estão mediadas por plataformas que utilizam nas suas performances complexas aplicações de inteligência artificial. O comércio mudou, o consumo mudou, a mercadoria mudou. E com isso, as visões de poder, de democracia, de relação entre pessoas e entre povos também se transfiguraram significativamente. Por medidas de segurança, as câmeras se multiplicam por todos os lados, dentro e fora de casa. Mais do que isso, as câmeras acompanham as pessoas a todo tempo por utilização de smartphones, os quais passam quase a ser extensão do próprio corpo. Obviamente que este movimento se acentuou, nos últimos anos, em razão das medidas de isolamento impostas pelas condições sanitárias advindas com a pandemia da COVID-19. Mas não é apenas isso, a praticidade e a "garantia de segurança" prometidas por tais mecanismos tecnológicos faz com que o consumo dos mesmos seja infinitamente mais célere e desproporcional comparativamente à discussão sobre as possíveis consequências que os envolve. As empresas (e por que não organismos governamentais?) vendem a ideia de que, quando o indivíduo se depara com as "políticas de privacidade", está entre escolher ser "bem servido" ou "mal servido". Como se o significado de privacidade se restringisse a ter uma melhor ou pior experiência de consumo. Sobre esse aspecto, será mesmo confiável que a recusa promovida por uma pessoa seja acatada por quem está do outro lado, seja ela inteligência humana ou artificial? As inúmeras publicidades direcionadas parecem desmentir o tal sigilo de informações e compartilhamento de dados. Está fora de questão duvidar do benefício que as novas tecnologias propiciam à proteção ao meio ambiente, aos avanços da medicina, ao bem-estar das pessoas, ao crescimento da sociedade. Por outro lado, em tempos de cliques, prints, encaminhamentos de mensagens, ataques promovidos por ransomwares etc., a vida privada encontra-se sob enorme risco, o que leva à necessidade de medidas de sustentabilidade e protetivas desse direito fundamental. Será que há espaço para a discussão sobre relativização ou diminuição do papel da privacidade? Ou quem sabe uma releitura da sua função enquanto direito fundamental? A resposta passa longe do aniquilamento desse direito ou até mesmo de sua diminuição. Conforme o pensamento de Giovanni Buttarelli¹, a privacidade deve ser compreendida não apenas como um direito individual, mas também como uma garantia da democracia. Segundo o autor: "os dados pessoais podem e devem ser utilizados de acordo com os interesses públicos, com os interesses gerais do Estado e da sociedade, porém não para vantagem de pequenos grupos ou individuais."² Em interessante retrato do movimento social, o Gabinete Oficial do Governo Japonês aponta que, após passar pela sociedade da caça (sociedade 1.0); sociedade agrícola (sociedade 2.0), sociedade industrial (sociedade 3.0) e sociedade da informação (sociedade 4.0), foi proposta, no 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia (2016), a sociedade 5.0, pautada na centralidade do ser humano, "que equilibra o avanço econômico com a resolução de problemas sociais por um sistema que integra altamente o ciberespaço e o espaço físico."³ O passo adiante nesse avanço de ideias é a concepção da sociedade do bem-estar, denominada como sociedade 6.0, a qual tem como pilar: uma sociedade ética, inclusiva e sustentável através da inovação e transformação digital", resultando em uma Sociedade Socialmente Sustentável e Responsável.4 Alcançar este estágio de desenvolvimento, no entanto, perpassa a discussão de como os tribunais brasileiros enfrentam e enfrentarão o grande desafio de reparar eventuais danos provenientes de violação da privacidade, ocasionados por incidentes cibernéticos, ainda que provenientes de atividades lícitas. Paradigmas como o da permissão de publicação de biografias não autorizadas não parecem ser os melhores conselheiros. Em que se cristaliza o pensamento: publica e depois se repara eventuais danos. O caminho mais equitativo da responsabilidade civil é aquele que acentua as suas funções preventivas e precaucionais, especialmente em preservação de princípios como a dignidade. Por outro lado, tratar de privacidade em rede traz um tortuoso caminho em delinear os danos provenientes da violação desse direito. Mais do que isso, surgem diversos outros questionamentos como a extensão dos danos; quantas e quais pessoas teriam seus dados expostos; possíveis responsáveis por violações. Em que pese a dificuldade na formulação de respostas, violações ao caro direito fundamental à privacidade não podem padecer de responsabilização. Para que não ocorra como outrora, em que, jurisprudencialmente, embora se reconhecesse a existência de danos morais, eles não eram reparados pela dificuldade da prova. Um caminho alvissareiro para tentar conter novos incidentes e trazer uma resposta à sociedade é o bom uso das tutelas coletivas, já que, como dito, a preservação da privacidade não resguarda apenas a esfera de um indivíduo, mas também protege a coletividade e, consequentemente, ampara a segurança democrática. __________ 1 BUTTARELLI, Giovanni. Privacy 2030: Una nuova visione per l'Europa. IAAP (International Association of Privacy Professionals). Publicado 18 set 2020. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023. 2 Tradução livre de: I dati personali possono e devono essere utilizzati per l'interesse pubblico, per gli interessi generali dello stato e della società anziché a vantaggio di singoli gruppi o individui. 3 Tradução livre de "that balances economic advancement with the resolution of social problems by a system that highly integrates cyberspace and physical space". Gabinete Oficial do Governo do Japão. Society 5.0. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023. 4 ZIZEK , Simona Sarotar; MULEJ, Matjaz; POTOCNIK Amna. The Sustainable Socially Responsible Society: Well-Being Society 6.0. In Sustainability 2021, 13, 9186. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023.
Recentemente foi promovido o I Congresso Carioca de Responsabilidade Civil em parceria entre o IBERC e o MP/RJ. Naquela oportunidade, como não poderia deixar de ser, o primeiro painel do dia tinha como objeto o debate acerca dos riscos em nossa sociedade ao tratar da "Responsabilidade Civil e Gestão de Riscos". Como se tem percebido ao longo das últimas décadas, o risco tem tomado conta do debate no âmbito da reparação dos danos, contaminando a análise dos chamados filtros da responsabilidade. Não é sem razão que este tema já foi objeto de inúmeras colunas neste espaço1 e é atualmente ponto central do debate da regulação das atividades perigosas. Diga-se, a propósito, que o principal debate que se coloca no mundo atualmente diz respeito à regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), cujos riscos são desconhecidos. Yuval Noah Harari em recente artigo para o The Economist2 nos alerta que, nos últimos anos, as ferramentas de IA ameaçam a sobrevivência da civilização em uma direção inesperada: a IA ganhou uma extraordinária habilidade de manipular e gerar a linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. Mais uma vez, os ditos riscos3. Tratado sob diversas perspectivas e áreas do saber e, muito embora o campo das ciências jurídicas tradicionalmente se valha do tratamento estatístico/matemático e econômico do risco, esta problemática vem acrescida de outras importantes áreas do saber, notadamente, da sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e ciências políticas4. Podemos tratar o risco, então, a partir das perspectivas tecno-científicas, definindo o risco como produto das probabilidades, muito utilizado no campo do seguro, ou a partir das perspectivas socioculturais, que se valem dos contextos social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado5. Como lidar com esses riscos? E de quais riscos está se tratando? O risco sempre esteve presente na humanidade, mas a mudança no tratamento dele é o que define os tempos modernos6. A partir do final do século XIX e início do século XX, o tema do risco ganha espaço, também, na cultura jurídica, culminando, no final do século retrasado, no debate acerca da responsabilidade pelo risco. Contudo, como afirmado anteriormente7, os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantêm um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. Contudo, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Podemos trazer alguns exemplos atuais da dificuldade de identificação do risco que compõe o círculo da atividade: em 2019 o TJ/MG condenou a Walmart em razão de uma consumidora, vítima de phishing (uso de site fraudulento, por terceiros, que imitava o site da Walmart), que adquiriu uma TV de um site que não era da empresa, mediante anúncio proveniente de um e-mail, mas cujo produto nunca foi entregue à consumidora. Na sentença de primeira instância foi constatado que a parte autora foi vítima de fraude, e, mesmo assim, a empresa ré foi condenada pois, segundo os "print's" das páginas, a consumidora adquiriu o produto em site que aparentava ser da parte ré, já que o site fraudulento usava a logomarca da ré, aparentando veracidade. O Tribunal, na apelação, alegou, dentre outros fatores, que (i) já havia notícias que fraudadores se valiam do site falso da empresa e nada foi feito pela Walmart, (ii) esta não manteve vigilância constante na internet para identificar o uso indevido de sua marca por meio de profissionais da área de tecnologia da informação e que, portanto, (iii) assumiu o risco de ter o seu nome usado nessas negociações fraudulentas no mundo virtual8. Em outra situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que o roubo por arma de fogo em estacionamento de lanchonete estaria fora do risco da empresa (fortuito externo)9, mas um ano depois, em caso análogo, entendeu que o assalto no drive-thru do estacionamento configura fortuito interno e, portanto, inserido no risco10. E o caso mais polêmico de todos? Prática de ato libidinoso contra passageira no interior de trem ou ônibus. É sabido que o tema foi objeto de julgamento pela Segunda Seção do STJ, na busca de uniformização de jurisprudência. Em 2021, no julgamento EAREsp 1.513.560/SP11, o STJ decidiu que o referido ato libidinoso no interior de vagão de trem metropolitano é fortuito externo por não guardar conexão com a atividade de transporte. Pois bem, o ponto é de que risco estamos falando? O que é o risco e como ele deve ser encarado pelas ciências jurídicas e qual o seu papel diante das novas tecnologias? Trata-se de tema espinhoso e de difícil conceituação12, não havendo unanimidade entre os autores na medida em que o risco é tratado a partir das mais variadas acepções e dentro das mais distintas áreas do saber, o que apenas torna mais difícil o trabalho do operador do direito na busca pela definição de uma teoria adequada para os tempos atuais. Ponto importante a ser compreendido é que a nova configuração social, especialmente a partir do final do século passado trouxe à luz a ideia de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais riscos assumir13. Como lembra Menezes Cordeiro, "o progresso industrial conduziu a um aumento quantitativo e qualitativo do risco"14. A noção de risco permeia a ideia de ações possíveis e tomadas de decisão. O que se pretende é antecipar contingências futuras e, assim, adotar a melhor ação possível a fim de reduzir perigos15. Dessa forma, os riscos são eventos futuros que podem ocorrer, e que ameaçam a todos nós. O risco é, portanto, a antecipação da catástrofe e o propósito de sua investigação é, justamente, a sua redução. Contudo, uma vez que ele tenha ocorrido, será necessário identificar a quem compete suportá-lo. Não se deve tratar o risco como um fato exclusivamente objetivo do mundo, independente do homem16. É certo que existem fatos aceitos como reais. É o exemplo da queda de um avião, da existência do câncer, de mortes prematuras de pessoas expostas a altos níveis de radiação etc. No entanto, se aceitamos que esses fatos não decorrem de causas mágicas, divinas ou cósmicas, mas, de causas específicas, é porque esses riscos decorrem da nossa compreensão e da construção do conhecimento a partir do mundo socialmente existente. Ou seja, o risco não existe independentemente do conhecimento humano, mas ele só é verificado e compreendido a partir da perspectiva humana. Logo, a construção social e a percepção cultural influenciam decisivamente o conteúdo do risco. A forma como o risco é encarado, percebido e experimentado deve ser considerado em sua análise. O risco não é um fato puro, desprovido de uma análise social; ele é reconhecido e discutido no meio social. Dito diversamente, os riscos são reais, embora permaneçam construções sociais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a assunção do risco com a consequente tomada de decisão decorre, também, de uma relação de confiança. Aquele que assume um determinado risco o faz baseado na sua percepção dos riscos quanto à tomada de decisão e na confiança despertada a partir do conhecimento científico construído na sociedade, e, também, da percepção cultural e social decorrente de experiências passadas, dos meios de comunicação, das instituições e de outras fontes variadas. A confiança acaba por se tornar elemento decisivo nas sociedades contemporâneas. O desenvolvimento tecnológico potencializou o desempenho de atividades perigosas, cujos processos são continuamente invisíveis e não transparentes aos sujeitos17 (ao menos àqueles que potencialmente suportarão os riscos). E a crença depositada no conhecimento técnico, assim como naquele colhido da experiência humana não técnica influencia a tomada de decisão, o que demonstra que o problema do risco é, também, um problema de confiança, pois esta última é o motor que permite a formação de um juízo adequado à tomada de decisão dentro de padrões legitimamente esperados dos riscos18. Assim a construção de um conceito de risco deve levar em consideração que: (i) existem determinados fatos no mundo que são objetivos, ainda que a relação de causa e efeito seja dotada de incerteza, mas cuja (ii) identificação, reconhecimento, entendimento, mensuração e tratamento são limitados pelas restrições sociais e cognitivas, e (iii) o reconhecimento de que a partir dessa tomada de decisão vigora uma incerteza relativa e perene a alguma característica do mundo que afeta a realidade humana existente. Diante do que foi exposto até então, é de se propor uma noção, para fins de imputação de responsabilidade civil. Nesse ponto, propõe-se que o risco da atividade seja compreendido como uma situação ou um evento legitimamente esperado, atribuível a uma decisão humana, comissiva ou omissiva, em que um interesse juridicamente protegido se encontra sujeito a uma lesão potencial, mas cujo resultado concreto é incerto.19 Este conceito tem uma premissa evidentemente realista, pois reconhece que o risco é real, ele é um fato dado no mundo que resulta da pressuposição de que algum resultado é possível, mas não predeterminado, o que demonstra inegavelmente a incerteza que circunda a noção de risco. Este ponto é relevante, pois expressa o entendimento de que o risco existe ainda que não seja possível percebê-lo com o conhecimento humano produzido ao tempo da tomada de decisão. Mas, ao mesmo tempo, identifica o risco a partir da construção social, pois exige, para a atribuição do dever de indenizar, que a situação seja legitimamente esperada, isto é, que seja apreendida e reconhecida no meio social como uma causa possível da tomada de decisão consistente na exploração da atividade perigosa. Isto permite que, futuramente, haja alterações na compreensão do risco, que não é estático, mas, antes, mutável e em constante transformação. Realmente, a noção de normalidade se altera à medida que despontam novos conhecimentos, o que permite uma revisão dos conceitos envolvendo os riscos de uma determinada atividade. Por fim, estabelece que o problema do risco só se coloca no campo da responsabilidade civil quando algum interesse juridicamente relevante está sujeito a alguma lesão real ou potencial, o que atrairá a incidência do dever de reparar. Parece que a proposta aqui formulada é suficientemente abrangente e maleável de modo a abarcar os mais diversos tipos de risco, sem engessamento do poder judiciário, a ponto de permitir sua adequação às mais variadas situações que existem ou venham a existir futuramente. Mas é delimitado o suficiente para permitir a construção de critérios científicos que permitam afastar eventual fato ou evento da esfera jurídica do tomador da decisão de modo que não exista qualquer obrigação de indenizar. Evidentemente que a proposta não é definitiva e não é capaz, por si só, de solucionar todos os casos como uma regra matemática. Contudo, ela traz contornos para construção de uma delimitação do risco de uma atividade, pois, afinal, nem tudo pode ser considerado risco da atividade.   Em conclusão, é importante destacar que o desenvolvimento tecnológico é imprescindível. Toda inovação traz uma série de riscos a reboque, mas, como afirma Anthony Giddens, se pretendemos ser uma sociedade inovadora, dotada de uma economia dinâmica, torna-se elemento nuclear a assunção de riscos. E, nesse ponto, é preciso ser ousado, em vez de cauteloso no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto20. __________ 1 Confira-se, por exemplo, "O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas", disponível aqui, "Considerações sobre a responsabilidade civil do Estado por danos ao meio ambiente", disponível aqui, "Revisitando o conceito de risco no CDC", "Programa de compliance e a mitigação de riscos no âmbito jurídico: a aplicação efetiva para a exclusão de responsabilidade civil", disponível aqui, "Responsabilidade de algoritmo de IA pelos fundamentos de autoaprendizagem", disponível aqui, "Personalidade, responsabilidade e classificação dos riscos na Inteligência Artificial e na robótica", disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 No caso dos sistemas de IA, o PL 233/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial, dedica um capítulo exclusivo para análise e gerenciamento dos riscos, nos arts. 13 a 18, Capítulo III. 4 Sobre o tema do risco, cf. VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023. 5 LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013, p. 27. 6 Bernstein, Peter L. Against the Gods: The Remarkable Story of Risk. New York: John Wiley & Sons Inc., 1998. (Locais do Kindle 152-154). Wiley. Edição do Kindle. 7 VIOLA, Rafael. O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas. Disponível aqui. 8 Apelação Cível nº 1.0000.19.020810-8/001. Numeração única 5000016-77.2017.8.13.0342, Des. Rel. Evandro Lopes da Costa Teixeira, 17ª Câmara Cível, julg. 08.08.2019. 9 REsp 1.431.606-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por maioria, julgado em 15.08.2017. 10 REsp 1.450.434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 18.09.2018. 11 EAREsp n. 1.513.560/SP, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 9/6/2021, DJe de 25/6/2021. 12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369. 13 KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11. 14 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil. X - direito das obrigações, garantias. Coimbra: Almedina, 2017, p. 82. 15 ROSA, Eugene A., et al. The risk society revisited. Social theory and governance. Philadelphia: Temple University Press, 2014, p. 2. 16 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 50. 17 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 44. 18 O ordenamento jurídico brasileiro, em diversas oportunidades, reconhece a relevância da confiança quando trata do risco. São exemplos disso, os arts. 12§ 1º e 14. § 1º, ambos do CDC e o art. 44, da LGPD, quando ressaltam os riscos legitimamente esperados. 19 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 67. 20 Giddens, Anthony. Runaway World (p. 35). Profile Books. Edição do Kindle.
Há uma frase comumente utilizada no discurso popular e que, ante a sua preciosidade afirmativa, convém ser o ponto de partida desta abordagem: "o dinheiro não compra tudo". Sempre que mencionada, é bem provável que esta afirmação considere que nem tudo na vida se resume a bens materiais, passíveis de precificação e, portanto, de compra e venda. Isto porque, ante um possível "consenso social" de que o importante, na vida, não são as "coisas" e sim os bens intangíveis, a conclusão por maior valoração ao que é imaterial se posiciona num grau de significados sensíveis à dignidade humana, tais como a felicidade, o amor, a presença de alguém, o tempo e a confiança. Também pode-se incluir, nesta conjuntura, a "vida social" e uma "reputação profissional" solidamente construída, gerando a possível percepção de uma ótima credibilidade que, no entanto, se questionada de forma amplamente acusativa em uma conjuntura de prejulgamento depreciativo, pode se fragilizar abruptamente, ensejando um contexto imediato de morte social do sujeito. Pode-se dizer que uma reputação profissional começa a ser construída desde o primeiro dia de um estudante na graduação. A postura adotada perante colegas e professores, as notas que alcança, as atividades extracurriculares que participa, os estágios que realiza, entre tantos outros parâmetros, já começam a ser indicadores, ao longo do tempo, de uma notoriedade profissional interessante. Nos dicionários brasileiros, é possível encontrar definições do termo "reputação" como "fama, opinião pública, favorável ou desfavorável"1, e "conceito em que uma pessoa é tida; bom ou mau nome."2. Neste sentido, é possível afirmar-se que se trata de uma definição abstrata, da ordem da opinião, dependente da percepção individual e subjetiva, no entanto, também apta a alargar-se a uma compreensão coletiva e potencialmente objetiva, na medida em que incluída em um propósito de divulgação ampla, que pretende a perfazer em concreta. Para isso, bastaria ser apresentada ao mundo social como verdade através de longo e frequente alcance, ainda que obtida por um julgamento antecipado, ilegítimo à esfera judicial. Assim, tal como a frase popular inicialmente trazida neste texto, pode-se refletir outra, atualmente também comumente utilizada, que é: "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade", famosa afirmação de Joseph Goebbels, ex-ministro da propaganda na Alemanha Nazista e que explica o atual fenômeno das "fakes News". A história de vida de um sujeito, neste sentido, é capaz de seguir uma linearidade de fatos enriquecidos por impressões causadas por suas condutas percebidas especificamente pelo meio social em que se insere, que podem ser valoradas, positivamente, em uma crescente. Contudo, pode também ser valorada negativamente, em um decréscimo abrupto, rápido e cruel, bastando uma manchete pública frequente, ausente de qualquer devido processo legal, apta a eliminar a carreira e a vida de um profissional. Na tentativa de aproximar o leitor à reflexão que se propõe, utiliza-se como exemplo o caso de um cirurgião pediátrico do estado do Piauí, cuja informação veiculada, em matéria jornalística, de modo deturpado e acusativo a respeito de um terrível evento adverso, no entanto, sem culpa, terminou por causar severa consequência. No início do mês de julho, no Brasil, houve uma grande mobilização por parte de entidades da classe médica, após a notícia de que esse cirurgião pediatra foi encontrado morto, por provável suicídio, pouco tempo após seu nome e foto terem sido veiculados amplamente, pela imprensa, com a seguinte manchete: "Médico é indiciado por morte de criança de 6 anos no Hospital Unimed em Teresina" e massiva acusação, em meios de comunicação diversos, pela instituição investigadora. Tratava-se de uma complicação descrita previamente em literatura médica, possível, embora obviamente indesejada, não proveniente de erro médico, decorrida durante a implantação de um cateter para tratamento de uma infecção que acometia a paciente, que cursava com insuficiência renal. E ainda que não se possa afirmar haver imediata relação de causa e efeito entre a veiculação da notícia e a morte do médico, necessário se faz refletir sobre como os meios de comunicação são capazes de ensejar prejulgamentos sociais, especialmente quando incluem nome e imagem do profissional, provocando severa angústia, embaraço e desespero ao acusado, à revelia de qualquer direito à sua prévia argumentação de defesa.  Neste caso em específico, a divulgação ampla nas redes sociais e televisivas afirmavam o discurso repetido pelos investigadores, alegando, sem o direito ao contraditório e ampla defesa, que o médico não teria utilizado adequadamente as técnicas de perfuração durante a aplicação do cateter, o que teria incorrido, por conseguinte, em suposta "imperícia" - esta que significa desconhecimento ou inobservância ao que preceituam as normas técnicas. De acordo com a resolução 2.330/23, do Conselho Federal de Medicina, para que um cirurgião pediátrico desenvolva a sua formação, no Brasil, são necessários seis anos de graduação em medicina, somados a mais três anos de estudos árduos em Residência em Cirurgia Geral, e a mais três anos de especialização em Cirurgia Pediátrica. De outro modo, poderiam também ser necessários, para além dos seis anos de graduação em medicina, se submeter à uma severa prova de títulos perante uma entidade especializada após, no mínimo, doze anos de atuação prática-profissional na área da Cirurgia Pediátrica. Conclui-se, portanto, que todo cirurgião pediátrico tem, no mínimo, doze ou dezoito anos de estudo e formação profissional, o que implica em uma reflexão sobre a sincera redução da possibilidade de cometimento de ato imperito. Trata-se, de todo o modo, de profissional que dedicou significativo tempo de estudo, que atendeu um razoável número de pacientes, que realizou um considerável número de procedimentos cirúrgicos, enfim, de um profissional que cumpriu todos os requisitos que o seu Conselho Profissional determina para o exercício legal da profissão de modo ultra especializado. No mínimo, há que se avaliar um necessário cuidado prévio à acusação de erro por atecnia, considerando a ocorrência de dano por questões alheias à adequada prática médica especializada. No exercício da medicina, ainda que a expectativa social construa um imaginário de modo diverso, por vezes é inevitável a ocorrência de complicações mesmo que condutas peritas, prudentes e diligentes tenham sido realizadas, excluindo-se, portanto, qualquer ponto de vista de exatidão matemática à sua prática. Ou seja, ao prestar cuidados à saúde de um corpo humano em sua perspectiva biológica e psicossocial, mesmo com o uso de todas as recomendações técnicas, ainda que seja observada a mais recente e atualizada literatura científica ou que o procedimento tenha sido realizado pelo melhor e mais renomado profissional da medicina, é possível a ocorrência de agravos indesejados não provenientes de culpa. De todo o modo, mesmo tratando-se de um contexto que, ao final, seja comprovadamente culposo, há que se refletir sobre o meio adequado de análise, produção de provas e aplicação razoável de possível condenação, o que destoa de qualquer julgamento fulminante social. Neste sentido, antevendo-se aos argumentos críticos inversos a esta análise que se apresenta, cumpre esclarecer: não se busca justificar ou defender eventual ocorrência de erro médico, mas sinalizar que, tanto é possível ter-se um dano não proveniente de erro, quanto que, mesmo havendo possível ocorrência, é necessária cautela e responsabilidade caso se pretenda noticiar investigação em curso, respeitando-se, inclusive, o princípio da inocência até prova em contrário. Embora a liberdade de imprensa seja imprescindível e indispensável ao exercício democrático do direito de informação à sociedade, não se trata de meio apto a tornar rarefeito o direito constitucional ao contraditório e ampla defesa, ou mesmo o direito à privacidade, que assegura a preservação de dados individuais e da honra, atributos intrinsecamente ligados à reputação profissional. Considerando que a imprensa é formadora de opinião, há que se avaliar a responsabilidade de quem informa fatos aos meios de comunicação, sob os seus pontos de vista, bem como o modo como estes meios prosseguirão com as suas transmissões à sociedade, considerando as repercussões possíveis. Parte-se, assim, do pressuposto de um dever de informar revestido de dever de esclarecimento de forma clara e honesta, especialmente quando o tema noticiado envolve uma análise eminentemente técnica, como é o caso da ocorrência ou não de erro médico. Na perspectiva do Direito Médico, o dano noticiado como proveniente de "erro médico", se analisado com critério e técnica, pode tanto ser real e efetivo, como, de outro modo, ausente de culpa, tal como uma "iatrogenia", um "acidente imprevisível", um "resultado incontrolável" ou, ainda, o que a doutrina reconhece como "erro escusável". A Iatrogenia é um ato não punível, caracterizada por dano inculpável, no corpo ou na saúde do paciente, consequente de uma aplicação terapêutica, isenta de responsabilidade profissional. A título de exemplo, pode-se citar a cicatriz que se converte em queloide, um processo de cicatrização exacerbada ocorrida após o corte em um procedimento cirúrgico.3 Por sua vez, o acidente imprevisível é aquele ato que provoca dano à integridade do paciente em razão de um acontecimento imprevisível e inevitável, tal como a ocorrência de um terremoto durante a realização de uma cirurgia de grande porte.  Por seu turno, o resultado incontrolável é o que ocorre em razão das limitações da própria ciência, isto é, independe da capacidade do profissional. O óbito em razão de doenças que ainda não tem cura, por exemplo. Por fim, pode-se citar o erro escusável, que se apresenta como ato que provoca dano, ainda que tenha sido praticado com perícia, prudência e diligência. Este último pode ser compreendido à luz do que usualmente se chama de álea terapêutica, isto é, da falibilidade da própria Medicina. Sendo assim, pode-se concluir que, além das notícias acusativas veiculadas não esclarecerem do que se trata um erro médico real e efetivo, também não apresentam outras possibilidades de ocorrências danosas, plausíveis à prática médica e sem culpa profissional. Diversos são os estudiosos da responsabilidade civil médica que alertam que nem toda complicação pode ser interpretada como um erro médico, sendo o principal deles o Ilmo. Professor Genival Veloso de França, que assevera:  [...] nem todo resultado adverso na assistência à saúde individual ou coletiva é sinônimo de erro médico. A partir dessa premissa, deve-se começar a desfazer o preconceito que existe em torno dos resultados atípicos e indesejados na relação profissional entre médico e paciente. Os órgãos formadores de opinião poderiam contribuir muito em fazer avançar a sociedade denunciando as péssimas condições assistenciais e a desorganização dos serviços de saúde em nosso país. Exige-se muito dos médicos, mesmo sabendo que sua ciência é inexata e que sua obrigação é de meios e não de resultados. Ainda que a vida seja um bem imensurável, a supervalorização desta ciência não encontrou uma fórmula mágica e infalível. Por isso não se pode concordar com a alegação de que todo resultado infeliz e indesejável seja um erro médico.4  A publicização acusativa irrefletida e desarrazoada de complicações médicas não errôneas, portanto, é capaz de gerar danos incalculáveis. Tal como afirmado em artigo publicado junto ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, é possível considerar-se, já há algum tempo no Brasil, a existência de um fenômeno intitulado "medicina-espetáculo". O autor reflete, ao se referir, neste trecho, ao meio televisivo:  Em outro canal é apresentado um caso de "erro médico". Pouco importa qual foi o fator determinante: imperícia médica, evento adverso, hiper-sensibilidade do paciente ou, talvez, a fatalidade. Não existe efetivamente nenhum interesse sério em nenhuma dessas questões. O tema é abordado com exemplar vulgaridade além de superficialidade e malícia impecáveis.5 [...]  Afinal, para que serve a Medicina-espetáculo? Promove a educação do povo? Induz a melhores hábitos de saúde? Melhora o conhecimento do corpo humano e suas debilidades? Prestigia a Medicina brasileira? Oferece aos aflitos e aos doentes uma luz, um caminho, talvez uma nova chance? A resposta, já sabida é não! Nos moldes em que vem sendo feita e apresentada, a Medicina-espetáculo é, salvo honrosas exceções, um frívolo insulto aos médicos e à inteligência do nosso povo.6  E arremata:  Não é o fim da Medicina-espetáculo que é ora sugerida: o que se propõe é a revisão do tema e uma tomada de consciência da relevância que o espetáculo pode encerrar em si mesmo.  Trata-se de um contexto de sérias repercussões, sendo importante uma revisão social sobre a forma de veiculação de fatos relativos à saúde. Mediante ampla punição social, a opinião pública desconhece, a título de exemplo, que ser "indiciado" por um delegado, não implica, necessariamente, em ser considerado "culpado" por um juiz. Contudo, fulmina sumariamente a reputação de um profissional médico indiciado, deturpando-se os cenários. Neste rumo, e ponderando que a veiculação de notícias acusando ocorrência de erro médico contém forte conceito apelativo, é possível também considerar-se a ocorrência da possível mercantilização de situações existenciais7. Diferente da opinião pública, aos juristas é devido considerar, no caso referido acima, que o cirurgião pediátrico não deveria ser considerado culpado "até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"8, por força do art. 5º, inciso LVII. Do mesmo modo, por força do art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aos juristas também é cediço que "todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."9 Neste sentido, faz-se importante refletir sobre a responsabilização de acusadores e meios de comunicação quando divulgadores ampla e inadvertidamente de notícias de suposto erro médico de modo acusativo, sensacionalista e descompromissado com a apuração das circunstâncias e pontos de vista. Necessário, pois, nestes casos, considerar o pleito de profissionais médicos ou seus familiares por reparação dos danos causados, sobretudo em ofensa à honra. Afinal, é interessante socialmente buscar-se o benefício do esclarecimento ou o malefício da desconfiança sobre a medicina? Trata-se de uma reflexão necessária, atual e premente. ____________ 1 "reputação", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2023, disponível em https://dicionario.priberam.org/reputa%C3%A7%C3%A3o. 2 "reputação", in Michaelis [em linha], 2023, disponível em https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=reputa%C3%A7%C3%A3o 3 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles, BARBOSA, Amanda Souza, Dano iatrogênico e erro médico: delineamento dos parâmetros para aferição da responsabilidade, Revista Thesis Juris, São Paulo, 2017 4 FRANÇA, Genival Veloso de.Direito médico. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.207 5 MORAES FILHO, Joaquim Prado Pinto de. A MEDICINA COMO ESPETÁCULO. REVISTA SER MÉDICO. Edição 28, 2004. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146 6 https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146 7 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limites das formas não pecuniárias de reparação. 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/28690. Acesso em: 27 jul. 2023. 8 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 9 Unesco. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf
Wittgenstein já escreveu que "os limites de minha linguagem significam os limites do meu mundo"1. De fato, o desenvolvimento de aplicações voltadas ao processamento de linguagem natural sempre foi um desafio, pois algoritmos capazes de "compreender" solicitações e demandas humanas com a sensibilidade que somente um outro humano consegue internalizar é algo que encanta, há décadas, pesquisadores de todo o planeta. Entretanto, até o momento atual, nunca se conseguiu desenvolver um programa sofisticado o suficiente para cumprir tal objetivo. Há quem se reporte à nomenclatura Artificial General Intelligence (AGI) para descrever o hipotético fenômeno transformador da singularidade tecnológica - em que tal propósito será alcançado -, especialmente a partir da pujança de técnicas mais avançadas, como o aprendizado profundo (deep learning), que fomenta sistemas ditos "generativos", porquanto baseados em redes neurais recorrentes (recurrent neural networks, ou RNNs) ou em transformers (modelos de linguagem de larga escala com aplicação no processamento de linguagem natural), o que torna essa realidade mais instigante, especialmente na análise de suas consequências, que são muitas - algumas empolgantes e desafiadoras - ao mesmo tempo que seus riscos representam grandes percalços para a Ciência do Direito. O que não se pode negar é que a mudança de paradigma2 vislumbrada desde o início deste novo período tem um substrato essencial: a informação. Tudo muda com Alan Turing e a famosa problematização (Entscheidungsproblem)3 que inspiraria suas investigações posteriores, a partir das quais buscava investigar o potencial de uma máquina para processar informações a ponto de gerar respostas da mesma forma que um humano o faria4. Em síntese, esperava-se que o processamento imbatível dos microprocessadores permitisse à máquina, eventualmente, se "emancipar" e, de fato, emular o comportamento humano. O que Turing não esperava era que os conceitos exatos e herméticos da matemática seriam incapazes de, no teste, permitir às máquinas ludibriar, mentir e dissimular, o que tornava fácil a detecção de respostas humanas em comparação às das máquinas. Não obstante, sistemas contemporâneos de inteligência artificial, com destaque para o Generative Pre-Trained Transformer (GPT), já se demonstraram capazes de superar o "Teste de Turing" (e muitos outros testes similares, como o Winograd Schema5) e até mesmo exames realizados por humanos, a exemplo de exames para o exercício de profissões como a de médico ou de advogado, nos Estados Unidos da América6. Se a informática marcou um novo estágio de poder computacional e de desenvolvimento de hardware, o acúmulo informacional foi o responsável por 'alimentar' esses novos equipamentos e fomentar o avanço de estruturas informacionais a partir do software. Nesse contexto, a solução para o Entscheidungsproblem passaria, necessariamente, pelo enfrentamento das principais objeções à proposta de que máquinas podem 'pensar'. Mais do que um teste, era preciso que se tornasse viável o que Turing batizou de "jogo da imitação"7: um cenário no qual determinada máquina se tornasse capaz de enganar um terço de seus interlocutores, fazendo-os acreditar que se trataria de um ser humano8. Estaria tal máquina 'pensando'? Esse único questionamento desencadeou diversas teorizações acerca da superação das diferenças entre humanos e máquinas (human-machine divide)9 e dos dilemas de desenvolvimento e evolução da inteligência artificial10. É possível dizer que, no atual estado da técnica, ainda não é factível a conclusão de que um algoritmo possa se tornar 'inteligente'11. Nos dizeres de Howard Gardner, "pode-se concluir que a habilidade lógico-matemática não é um sistema tão "puro" ou "autônomo" como outros revisados ??aqui, e talvez deva contar não como uma única inteligência, mas como algum tipo de inteligência supra ou mais geral"12. O exemplo do ChatGPT - que nada mais é que uma ferramenta comercial oferecida pela OpenAI para o processamento de comandos de texto (prompts) que acionam o modelo de linguagem de larga escala transformador - é apenas uma singela demonstração dos resultados que se pode atingir com a maturação de sistemas capazes de "se desenvolver", com rapidez, pela evolução propiciada pelo machine learning a partir de quantidades colossais de dados. Nesse cenário, o conhecimento da Ciência de Dados se torna relevantíssimo, pois é nesse campo multidisciplinar que se concentra o estudo de todos os aspectos dos dados, desde sua geração até seu processamento para convertê-los em uma fonte valiosa de conhecimento13 e de fomento à análise preditiva, que utiliza técnicas estatísticas14 e de aprendizado de máquina (machine learning) para "prever" resultados15. Isso pode ser útil em diversos contextos, tais como a análise de dados históricos, o mapeamento de decisões judiciais pretéritas para identificar padrões e estimar a probabilidade de sucesso de um caso, ou mesmo a análise de texto jurídico. De modo geral, com a Ciência de Dados, é possível extrair informações significativas de grandes volumes de textos jurídicos, como leis, regulamentos, contratos, pareceres e decisões judiciais e a análise desses conteúdos pode propiciar a identificação de tendências, a análise e interpretação de determinados termos legais e até mesmo a automatização de tarefas. No campo do Direito, tanto os analistas de dados quanto os cientistas de dados desempenham papéis importantes na análise e interpretação de dados jurídicos, permitindo uma compreensão mais profunda de questões complexas, avaliação de resultados e apoio à tomada de decisões fundamentadas. Noutras palavras, profissionais do Direito inseridos na complexa sociedade da informação que atingiu seu apogeu em pleno século XXI não costumam desenvolver tais competências e habilidades, ao menos não tradicionalmente16. Desse modo, almejando indicar algumas habilidades17 necessárias para o futuro18, pondera-se a necessidade de transparência e, desejavelmente, explicabilidade para que possa assimilar parâmetros extraídos da heurística computacional e das inferências causais de modelos de linguagem. Tais são conceitos relevantes para o Direito, pois ajudam a compreender e justificar decisões de forma mais transparente e fundamentada19. A transparência, pelo fato de explicitar a utilização de determinado conjunto de dados ou de uma técnica específica de processamento. E, de modo geral, a explicabilidade pelo fato de se referir à capacidade de "entender" e explicar como um modelo ou algoritmo de tomada de decisão chega a determinadas conclusões20. No Direito, a explicabilidade é essencial, pois os sistemas jurídicos são baseados no princípio da justificação. Assim, ao aplicar técnicas de Ciência de Dados, é importante que os resultados e as decisões geradas sejam compreensíveis e possam ser explicados de forma clara e acessível, tanto para os profissionais do Direito quanto para os cidadãos envolvidos no processo. É de se notar, nesse sentido, que transparência e explicabilidade (art. 3º, VI) são dois dos vários princípios definidos no texto do substitutivo da Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA)21, que realizou diversas reuniões e audiências públicas nos trabalhos de elaboração do substitutivo, que foi apresentado em dezembro de 2022 e inspirou o texto final do PL 2.338/2322. Se os algoritmos não são capazes de "pensar", mas são suficientemente avançados para tomar decisões "resultantes de uma combinação de inputs de programação não originária"23, ao menos uma leitura ampliativa do conceito de 'responsabilidade' poderá nortear a solução de problemas como "a opacidade decisória, a falta de explicação quanto aos critérios utilizados e a herança de inputs viciados, enviesados e preconceituosos, o que culmina na produção de discriminações injustificadas"24. Enfim, não se tem respostas definitivas para todos os desafios inaugurados pela profusão do acesso aos transformers (e outros modelos de linguagem de larga escala, como o ChatGPT), e o tema ainda suscitará muitos questionamentos, mas o avanço rumo à consagração da função precaucional da responsabilidade civil parece ser realmente necessário para a compatibilização do desenvolvimento tecnológico - galopante e irrefreável - com a necessária proteção aos direitos fundamentais (e a máxima prevenção dos vieses algorítmicos), especialmente a partir da proliferação de uma cultura de accountability. _____________ 1WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 2. ed. Londres: Routledge Classics, 2001, p. 68, tradução livre. No original: "The limits of my language mean the limits of my world". 2 Thomas Kuhn empregou a expressão paradigma no seguinte sentido: "um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma". O termo paradigma, nesta pesquisa, ganha conotação mais ampliada, não só no sentido de uma comunidade científica ou de determinada época, mas diz respeito às diversas mutações do pensamento ocidental. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 221. 3 Friedrich Kittler, se reportando ao "Teste de Turing" e ao poder da informação, destaca o seguinte: "Only in Turing's paper On Computable Numbers with an Application to the Entscheidungsproblem there existed a machine with unbounded resources in space and time, with infinite supply of raw paper and no constraints on computation speed. All physically feasible machines, in contrast, are limited by these parameters in their very code. The inability of Microsoft DOS to tell more than the first eight letters of a file name such as WordPerfect gives just a trivial or obsolete illustration of a problem that has provoked not only the ever-growing incompatibilities between the different generations of eight-bit, sixteen-bit and thirty-two-bit microprocessors, but also a near impossibility of digitizing the body of real numbers formerly known as nature". KITTLER, Friedrich. There is no software. CTHEORY.net. 18 out. 1995. Disponível em: http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=74. Acesso em: 16 ago. 2023. 4 TURING, Alan M. Computing machinery and intelligence. Mind, n. 236, 433-460, out. 1950. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433. Acesso em: 16 ago. 2023. 5 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Breves reflexões sobre os impactos jurídicos do algoritmo GPT-3. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 521-524. 6 VARANASI, Lakshmi. AI models like ChatGPT and GPT-4 are acing everything from the bar exam to AP Biology. Here's a list of difficult exams both AI versions have passed. Business Insider, 25 jun. 2023. Disponível em: https://www.businessinsider.com/list-here-are-the-exams-chatgpt-has-passed-so-far-2023-1 Acesso em: 16 ago. 2023. 7 TURING, Alan M. Computing machinery and intelligence. Mind, Oxford, n. 236, p. 433-460, out. 1950, p. 25. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433 Acesso em: 16 ago. 2023. 8 Cf. HARNAD, Stevan. The Annotation Game: on Turing (1950), on computing, machinery and intelligence. In: EPSTEIN, Robert; PETERS, Grace (ed.). Parsing the Turing Test: philosophical and methodological issues in the quest for the thinking computer. Cham: Springer, 2008. 9 WARWICK, Kevin. The disappearing human-machine divide. In: ROMPORTL, Jan; ZACKOVA, Eva; KELEMEN, Jozef (ed.). Beyond Artificial Intelligence: the disappearing human-machine divide. Cham: Springer, 2015, p. 9. 10 FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 3-13. 11 KAPLAN, Jerry. Humans need not apply: a guide to wealth and work in the Age of Artificial Intelligence. New Haven: Yale University Press, 2015, p. 3-16. 12 GARDNER, Howard. Frames of mind: the theory of multiple intelligences. Nova York: Basic Books, 2011, p. 168, tradução livre. No original: "(...) one could conclude that logical-mathematical ability is not as "pure" or "autonomous" a system as others reviewed here, and perhaps should count not as a single intelligence but as some kind of supra- or more general intelligence." 13 OHM, Paul; DOGAN, Stacey; BESTAVROS, Azer; SELLARS, Andy. Bridging the Computer Science-Law Divide. Boston: Boston University Press, 2022, p. 24.  14 CLEVELAND, William S. Data Science: An Action Plan for Expanding the Technical Areas of the Field of Statistics. International Statistical Review, Oxford, v. 69, n. 1, p. 21-26, 2001, p. 22. 15 DOMINGOS, Pedro. The master algorithm: how the quest for the ultimate learning machine will remake our world. Nova York: Basic Books, 2015, p. 6. 16 SUSSKIND, Richard. Transforming the law: essays on technology, justice and the legal marketplace. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 170. 17 LEHR, David; OHM, Paul. Playing with the Data: What Legal Scholars Should Learn about Machine Learning. U.C. Davis Law Review, Davis, v. 51, p. 653-717, 2017. 18 SUSSKIND, Richard; SUSSKIND, Daniel. The future of professions: how technology will transform the work of human experts. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 29. Anotam: "(...) the most efficient future lies with machines and human beings working together. Human beings will always have value to add as collaborators with machines". 19 KAMINSKI, Margot E. Understanding Transparency in Algorithmic Accountability. In: BARFIELD, Woodrow (ed.). The Cambridge Handbook of the Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 121. 20 PARENTONI, Leonardo. What should we reasonably expect from artificial intelligence? Il Diritto degli Affari, Florença, v. XII, n. 2, p. maio/ago., 2022, p. 195-196. O autor informa a distinção conceitual, mas detalha a proximidade entre os dois termos: "Although the notions of transparency and explainability are technically different, this section addresses them altogether since they are intimately connected. Roughly speaking, they mean that a human user is able to understand why an AI system generated a certain output and explain it to an ordinary user of that system. Transparency is undoubtedly a fundamental value provided in numerous legal standards, for both the public and the private sectors, worldwide. It is of paramount importance and should be respected according to the provisions of each legal system. Therefore, the bigger the transparency, the better". 21 BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA). Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2504 Acesso em: 16 ago. 2023. 22 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233 Acesso em: 16 ago. 2023. 23 FERREIRA, Ana Elisabete. Responsabilidade civil extracontratual por danos causados por robôs autônomos: breves reflexões. Revista Portuguesa do Dano Corporal, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, n. 27, p. 39-63, dez, 2016, p. 44. 24 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e responsabilidade civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 408.
Em nível mundial, emergiu o fenômeno denominado de "bancarização", o qual sob pena da pessoa ser passível de determinados tipos de exclusão social, induz a todos, mesmo para atividades simples, necessitarem ter conta bancária para conseguirem auferir determinados direitos e/ou cumprir obrigações, tudo sem ter de carregar moeda em espécie, o que traz insegurança. Propagada no mercado sob o atraente argumento de propiciar o acesso das pessoas aos contratos bancários, podendo incluir movimentações monetárias por meio de conta, cartão de crédito ou outras modalidades e, em especial, para concessão específica de empréstimos (crédito para consumidores), o fato é que esse tipo de contrato se popularizou1. Entretanto, essas práticas incluem muitos riscos à proteção dos direitos destes destinatários finais dos serviços. Note-se que não são apenas aqueles decorrentes das instabilidades da economia brasileira (insegurança jurídica, volatilidade com inflação e mesmo eventuais imprevistos como desemprego, doença, etc.), mas também pela complexidade dos contratos bancários que, atualmente, costumam incluir aspectos digitais, independente da carência ou não de educação específica do consumidor para essa área. E esse cenário é agravado pelo fator de que os maiores fornecedores nesse segmento atuam em regime de oligopólio (os quatro maiores bancos2 dominam 59% do mercado de crédito3), sendo que não hesitam em usar seu marketshare e, principalmente, seu marketpower na busca de influenciarem a regulação em prol de seus interesses. Não é por acaso ou só por competência que o retrospecto demonstra que as instituições financeiras compõem o único setor que exibe polpudos lucros, tanto nos períodos em que o país prospera, quanto nos de crise. E, em específico, ao exercerem domínio desse mercado, os bancos "ditam" arbitrariamente muitas práticas e cláusulas contratuais que as manifestações judiciais costumam declarar abusivas; e não demonstram se preocupar; afinal podem facilmente elevar a taxa média de juros do mercado que é considerada lícita pelos tribunais e desta forma repassar a "conta" para os consumidores. Assim, a realidade mostra que embora o consumidor possa escolher com qual banco deseja contratar, considerando que as práticas adotadas por esses fornecedores costumam ser idênticas, a esse destinatário final do serviço só resta resignar-se. Sob pena de exclusão, a manifestação da vontade do consumidor apesar de ser um requisito essencial, acaba se limitando a emissão de um assentimento (e não um verdadeiro consentimento informado, livre e desimpedido de condicionamentos ou constrangimentos). Outro detalhe: tendo em vista que, normalmente, quem passa a ter conta em banco segue assim no longo prazo, pode-se classificar esses contratos como cativos de longa duração. Então, em meio a práticas lícitas e outras muito questionáveis, como os instrumentos contratuais não apresentam diferenças substanciais e os bancos não concedem espaço para verdadeira negociação de cláusulas, o consumidor fica na opção de, ou quedar-se alijado desse mercado ou aceitar as condições impostas na contratação formulada pelo banco. Nesse contexto, sobressai, então, a geral pressuposição de vulnerabilidade do consumidor4, a qual, no caso dos idosos, é agravada, ou seja, trata-se de hipervulnerabilidade. Como expressou Andressa Jarletti: "E a Carta Magna reconheceu também que algumas pessoas necessitam uma proteção ainda mais especial como a pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes, que podem ser considerados hipervulneráveis. A proteção especial estabelecida para estas pessoas pode ser compreendida pela nova concepção de sujeito na pós-modernidade, que acolhe as distintas subjetividades e individualidades, observando que 'o (in)diví(duo), aquele que não era divisível na modernidade, se dividiu', reconhecendo-se as diferenças e permitindo a proteção dos vulneráveis a partir de uma ressignificação da igualdade, material. A proteção dos idosos (pessoas com mais de 60 anos) foi prevista no art. 230 da Constituição Federal, com inspiração nos princípios constitucionais da solidariedade e proteção, sendo reforçada posteriormente pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que reconhece sua vulnerabilidade e o dever do Estado, da família, da sociedade e da comunidade em a satisfação de seus direitos. A proteção legal da vulnerabilidade do idoso 'faz nascer um direito subjetivo personalíssimo e indisponível ao envelhecimento sadio, ao qual reponde uma multiplicidade de direitos e deveres para assegurá-lo'"5. Enquanto toda uma geração avançava na idade, as relações de consumo entre bancos e consumidores idosos foram se transformando, principalmente com o ingresso da internet nesse cenário. Ocorre que enorme contingente destes destinatários finais dos serviços não teve condições de se adaptar a essa nova realidade, ainda mais quando os bancos em busca de cortar custos com agências e funcionários, passaram a manejar meios para que o idoso adira ao autoatendimento6. Observe-se que esse tipo de cliente não é nativo digital e não foi treinado para ser funcionário bancário, além do que, quando comete qualquer equívoco devido a essa falta de habilidade, o banco logo busca atribuir-lhe responsabilidade (a causa do evento). A par disso, os riscos aumentam quando o banco utilizando os meios de que dispõe altera elementos ou práticas do que acontece durante a prestação dessa espécie de serviço. E isso tem sido algo rotineiro. Impressiona que esse é o único segmento em que o fornecedor, sem contato ou manifestação da outra parte, na prática modifica aspectos do contrato. Por exemplo, quando, no momento em que quer, cria e passa a debitar alguma taxa antes mesmo de qualquer permissivo por parte do Banco Central do Brasil (que só age reativamente) ou adota ou retira alguma função do cartão entregue ao cliente. Ora, essa liberdade não é facultada para nenhum outro fornecedor. Não há permissivo legal para, na vigência do contrato com o consumidor idoso, sem sequer solicitar a aquiescência deste último (a "seu bel prazer"), o banco modificar determinadas práticas que influem no conteúdo e no desenrolar de fatos que estejam relacionados com a contratação. Cláusulas nesse sentido são flagrantemente abusivas. E nesse contexto, em especial quanto ao relacionamento do banco com idosos, cabe chamar à atenção para algumas situações específicas que comumente acontecem no mercado; e assim poder-se analisar aspectos da respectiva responsabilidade civil. Práticas envolvidadas nas contratações bancárias com consumidor idoso e consequências quanto à responsabilidade civil No mercado de contratações bancárias com consumidores idosos, o primeiro exemplo de situação que desejamos pontuar consiste no que ocorre quando o banco deseja atrair o cliente e se vale das mais diversas estratégias, inclusive com marketing direcionado e possibilidade da contratação acontecer pela via eletrônica. Por evidente, se presencialmente já podem surgir dificuldades para o idoso, tal se acentua quando são utilizados meios virtuais. Normalmente, então, esmaece a qualidade da informação, bem como, torna-se rotineiro o banco fornecedor não avaliar ou até desconsiderar o perfil desse tipo de contratante para bem desempenhar a tarefa de lhe prestar informação adequada (clara, concisa e precisa). Ou seja, que inclua conteúdo entendível pelo destinatário, acompanhado de advertências e aconselhamentos7. E se for firmada a contratação, assegurar que esta conte com as cautelas protetivas pertinentes8. Sabe-se que há casos de idosos que não conseguem sequer decorar uma senha (necessitando carregá-la consigo de forma escrita para movimentar a conta ou usar o cartão de crédito), mas o banco, agindo descompromissado com seu dever de boa-fé objetiva, não toma cautelas específicas quando o contrato envolve meio que seja total ou parcialmente digital9. Tanto não alerta para os riscos dessa modalidade, quanto não busca formas de mitigar essas características do outro contratante, a fim de protegê-lo de possíveis danos quando do exercício dos serviços objeto da contratação (por exemplo: estabelecendo atendimento apenas presencial ou com liberação de valores ou crédito somente com utilização de biometria). Já um segundo tipo de irregularidade que se deseja dar destaque reside na prática do banco em, sem qualquer comunicação ou participação do idoso, alterar o limite de crédito para mais ou para menos. Nesta oportunidade não abordaremos as situações sobejamente tratadas pela doutrina de quando é para menos, ou mesmo da preocupante questão do superendividamento do consumidor quando tal ocorre para mais. Sendo mais explícito/específico: trataremos dos riscos e eventuais danos há que fica submetido o consumidor idoso quando o banco (com interesse em que a pessoa use o limite, afinal os juros são sua maior fonte de ganho), sem consulta e descumprindo regra do Banco Central, aumenta o limite do crédito sem ao menos avisar a esse último. Então, o que poderia parecer uma benesse na verdade prejudica ao consumidor, se por exemplo, for assaltado sofrendo consequências mais gravosas em razão de algo que não provocou ou concordou (aumento do limite). Essa falta de adequação na contratação e, principalmente de alertas e aconselhamentos ao consumidor para as consequências do que pode acontecer no contrato, se constituem em vício de fornecimento do serviço. Françoise Peellaert assevera que: "Pelo dever de esclarecimento ou de informação estabelece-se uma imposição moral e jurídica de comunicar a outra parte todas as características e circunstâncias pendentes do negócio jurídico e, assim, do bem jurídico que é seu objeto, por ser imperativo de lealdade entre os contraentes"10. E faz parte dessa lealdade, que em nome de um ganho de escala, o banco não priorize a instituição de rotinas gerais sem cuidar de proteger aqueles que, pela idade, possuem características diferentes. Pois bem, tanto no primeiro tipo de situação aqui descrita, quanto no segundo, quando da aferição da responsabilidade civil do banco, as citadas ocorrências que se ligam ao nexo causal, devem ser consideradas como fortuito interno por falhas que implicam em responsabilização do banco fornecedor. Em relações de consumo a responsabilidade civil é objetiva, mas, naturalmente, demanda análise do conjunto probatório e nas suas alegações, os bancos costumam tentar manejar em seu favor, o argumento de que em caso, por exemplo, de assalto ou furto de cartão de crédito, o acesso à senha por quem não consegue decorá-la se constitui em fato de terceiro ou de culpa exclusiva do consumidor. Ora, o fortuito interno representado pela conduta deficiente do fornecedor (modelo de contratação inadequada, casos de cartão com aproximação e, por exemplo, aumento não consentido de limite de crédito) constituíram a causa primária para que com o surgimento do crime - um fato que não é raro na realidade atual de insegurança - viesse em prejuízo do consumidor. Ou seja, considerada a hipervulnerabilidade do idoso, se o referido fornecedor não tomou as cautelas devidas e a modalidade de contratação (principalmente quando envolva total ou parcialmente meios virtuais) não assegura proteções que se compatibilizam com as características desse destinatário final do serviço, trata-se de fortuito interno e o banco deve ser responsabilizado. Note-se que existe para o fornecedor um dever de manter sua atuação permeada pela boa-fé objetiva, a qual precisa estar presente desde a aproximação para a contratação, devendo seguir no desenvolvimento desta e mesmo perdurar após o encerramento do contrato (período pós-contratual). O negócio jurídico de consumo entre o banco - poderoso fornecedor - e o consumidor idoso possui características próprias, com muitas especificidades que precisam ser consideradas para não resultar em desequilíbrio que prejudique o hipervulnerável e inclusive possa comprometer a função social do contrato. Contando com apoio em doutrina reconhecida, Ana Cláudia C. Z. M. do Amaral e Roberto Wagner Marquesi afirmam: "A atuação da boa-fé na relação contratual varia na inversa proporção do exercício da autonomia da vontade das partes, uma vez que, quanto maior o distanciamento socioeconômico entre os contratantes, menor será a livre atuação da autonomia da vontade delas, caso em que a presença da boa-fé objetiva deve se manifestar com ímpar intensidade, no intuito de minimizar o desequilíbrio concretamente existente (NALIM, 2001, p. 138). E a boa-fé, aqui, encontra correspondência com a ética, assim entendida como o comportamento que traduz o respeito à alteridade, é dizer, à figura da contraparte no contrato"11. Essa visão integra-se a concepção de contrato relacional. Como Ronaldo Porto Macedo12 expõe em doutrina que assim se descreve: atualmente, diante das exigências da pós-modernidade, esses contratos devem ser concebidos e praticados com fundamento na característica de serem acordos de solidariedade. Isto é, devem ser focados menos no aspecto exclusivo da noção de troca (fornecimento e pagamento) e mais sob o viés de instrumento de justa repartição dos ônus e benefícios que as partes vieram buscar na contratação13. Então, nos contratos bancários firmados com consumidor idoso impõe-se uma releitura direcionada a estarem em conformidade com os princípios constitucionais e, em específico, com os expressos no CDC. No sistema embasado na economia de mercado, certo é que há liberdade:  "Contudo, a autonomia privada não é um valor em si mesmo e, portanto, exige uma análise detida que permita compreender se o seu exercício está em conformidade com os preceitos presentes no ordenamento jurídico. A função social é certamente uma ruptura do modelo clássico de contratação. Pode-se afirmar que ela exprime o dever imposto às partes de perseguir, para além de seus interesses individuais, os interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos14. Faz parte do processo civilizatório que o domínio da relação contratual atraia obrigações de cuidado e solidariedade para com o outro contratante; e destas derivem as respectivas responsabilidades para o fornecedor poderoso.  Conclusão Assim, é de se afirmar como importante que seja adotada a concepção de que nas situações que aqui foram explicitadas, tem-se caracterizado o denominado fortuito interno de responsabilidade do banco, posto que se a prestação do serviço fosse realizada seguindo os princípios preconizados pela legislação, o problema do risco e/ou dano, na sua origem, sequer teria elementos para surgir. Somente grave ação ou omissão do consumidor para suscitar uma responsabilidade concorrente, porém sem jamais ficar restrita a conclusão de tratar-se de culpa exclusiva deste ou de terceiro. Quando na fonte, na nascente, o banco descumprindo deveres, arquitetou a contratação em forma desvirtuada e/ou arbitrariamente sem consulta ao consumidor, realizou alterações nos serviços durante o andamento do contrato, deu ensejo a fortuito interno de sua responsabilidade. Ser consumidor é ser um cidadão-econômico15", que merece inclusão nessa condição. Entretanto, quando de contratos bancários com idoso (de adesão e cotidianamente contando com meios digitais), mais do que o acesso, esse hipervulnerável necessita ter asseguradas as proteções preconizadas pelos princípios constitucionais, com especial destaque para as estampadas no sistema de proteção ao consumidor. __________ 1 Esse fenômeno (da "bancarização") que nos EUA e na Europa já se encontra mais avançado, prenuncia que no Brasil a tendência é de aumento. Observe-se que segundo dados de 2017, já havia 86,5% dos brasileiros com contas bancárias. FONTE BCB. Acesso: 14/07/23. 2 Por questões de metodologia para adequar ao que ocorre no mercado internacional, esse tipo de aferição que antes considerava a participação dos cinco maiores bancos (que em 2021 detinham 81,4%) passou a considerar apenas os quatro maiores que, como o visto, somados alcançam quase 2/3 desse mercado. Fonte: O Globo. Acesso em 14/07/2023 as 17hs.  3 Disponível aqui. Acesso em: 13/07/2023 às 19:00hs. 4 "A noção de vulnerabilidade no direito associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica. Nesse sentido há possibilidade de sua identificação ou determinação a priori in abstracto, ou ao contrário, sua verificação a posteriori, in concreto, dependendo neste último caso da demonstração da situação de vulnerabilidade. A opção do legislador brasileiro como referimos, foi pelo estabelecimento de uma presunção de vulnerabilidade do consumidor, de modo que todos os consumidores sejam considerados vulneráveis, uma vez que a princípio não possuem o poder de direção da relação de consumo, estando expostos às práticas comerciais dos fornecedores de mercado". (MARQUES, Claudia; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 162) 5 Oliveira, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário, Curitiba/Pr.: Rede do Consumidor, 2014, p. 59/60. 6 Sob o argumento falacioso de propiciar acesso ao serviço bancário em qualquer hora e de qualquer lugar, acontece esse tipo de trabalho não remunerado, consistente em levar o cliente a gastar tempo e disposição para fazer tarefas que competiam aos funcionários do banco. Mas os riscos são muito grandes para os idosos. 7 "A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informação-conteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informação-utilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço). A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão". Veja-se: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n° 586.316/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação. Relator: Min. Herman Benjamin, 17 de abril de 2007. Disponível aqui. Acesso em: 01 maio 2022. 8 Cite-se: de que adianta induzir para o idoso ser agente de seu autoatendimento se este não sabe manejar as máquinas específicas e precisa se socorrer de funcionários ou terceiros, correndo os riscos que são de conhecimento comum conforme enormidade de casos divulgados na imprensa. 9 Note-se os riscos para um idoso quando seu cartão de crédito funciona por aproximação, sendo que os bancos não costumam fazer as devidas advertências e aconselhamentos para esse consumidor poder fruir o objetivo do serviço em segurança. 10 Peellaert, Françoise. A boa-fé objetiva aplicada aos negócios jurídicos processuais, Londrina/Paraná: Engenho das Letra, 2023, p.62, 11 Ética nos negócios jurídicos, Org. Clodomiro José Bannwart Júnior, Elve Miguel Cenci e Luiz Fernando Belinetti, Londrina/Pr.: Engenho das Letras, 2020, p. 63/64. 12 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 123-124.  13 No mesmo sentido veja-se em: Princípio da solidariedade e a legitimação da responsabilidade civil objetiva: reflexões a partir do julgamento da adi nº 1.003/df, Revista IBERC, maio/ago. 2023, v.6, n. 2, p. 82-99. 14 Viola, Rafael. Risco e Causalidade (posição 8777, p. 419). Editora Foco. Edição do Kindle. 15 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime de relações contratuais, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 21.
Identificação do problema As relações comerciais e sociais que se desenvolvem hoje dentro de uma realidade jurídica globalizada faz surgir uma problemática relevante: a inconsistência do tratamento ofertado pelas sociedades anônimas de capital aberto perante seus sócios em um contexto internacional. As companhias abertas, enquanto entidades com personalidade jurídica própria, possuem obrigações inalienáveis em relação aos seus sócios que, quando ignoradas ou descumpridas, resultam na responsabilização da companhia, cuja magnitude pode variar de acordo com a jurisdição competente, e é justamente aqui que a problemática ganha contornos preocupantes. A governança corporativa prescreve que os sócios de uma mesma companhia devem ser tratados de forma igualitária. O que se tem observado, no entanto, é a disparidade na forma como os diferentes Estados nacionais tratam a responsabilidade civil das companhias abertas, a desrespeitar o primado do tratamento equânime entre acionistas. Em outras palavras, sócios de diferentes nacionalidades podem encontrar desigualdades de tratamento em caso de conflito. Dentre as principais razões para esse problema estão a ausência de regulação em âmbito internacional, a constante flexibilização e desrespeito a cláusulas arbitrais, instrumentos que deveriam servir para assegurar previsibilidade e segurança jurídica, além da costumeira falta de transparência por parte das próprias companhias abertas. A responsabilização civil das companhias abertas sob o prisma internacional torna-se, portanto, um tema de análise urgente e complexo. Exige-se uma avaliação aprofundada e criteriosa, com o objetivo de identificar e propor soluções para os desafios decorrentes das disparidades verificadas nesse ambiente. Governança corporativa e o tratamento equânime entre acionistas A Governança Corporativa, caracterizada pela sua versatilidade conceitual, pode ser definida através da tríade princípios-regras-ações, que concede um entendimento holístico ao instituto, pelo qual os princípios constituem a estrutura basilar que subsidia a elaboração das regras, as quais, subsequentemente, orientam as ações a serem executadas1. Quatro princípios são considerados fundamentais e estão presentes em diversos instrumentos, tanto públicos quanto privados, desde a Sarbanes-Oxley Act ao Código das melhores práticas do IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa2, são elas a transparência, a equidade no tratamento de acionistas, a prestação de contas confiável e a responsabilidade corporativa. A governança ganha papel relevante, sobretudo atualmente, vez que a regulamentação do mercado, em sua trajetória de democratização e universalização, tem carregado consigo um substrato de inovações normativas e adaptações culturais, dentre as quais se destaca o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, processo que representa uma expressiva alteração no paradigma jurídico, ao incorporar e refletir os princípios e direitos fundamentais expressos na Constituição nos diversos ramos do direito privado. Esta constitucionalização tem desempenhado um papel crucial na consolidação de um ambiente corporativo mais igualitário e transparente. Ao infiltrar-se na matriz das regulações tradicionalmente privadas, os princípios constitucionais têm a capacidade de influenciar e moldar as normas e regulamentações internas das corporações, promovendo uma harmonização entre os direitos e deveres dos diversos atores envolvidos no mundo corporativo. A par disso, a equidade entre os acionistas é elemento essencial que permeia todas as dimensões do direito corporativo e pilar indissociável da governança corporativa. A observância a esse princípio contribui para a manutenção da integridade e da justiça no ambiente corporativo, gerando confiança entre os acionistas e, por conseguinte, estabilidade no mercado financeiro. Tratar de forma equânime os acionistas implica garantir que todos eles, independentemente da quantidade de ações que possuam, sejam respeitados em seus direitos e obrigações. É assegurar que todas as decisões tomadas pela gestão da empresa levem em consideração o bem-estar de todos os seus acionistas, sem favorecer indevidamente um grupo em detrimento de outro, qualquer que seja a classe ou nacionalidade dos sócios. Essa equidade deve ser visível e palpável em todas as ações e decisões corporativas, desde a distribuição de dividendos até a divulgação de informações relevantes à empresa. O problema no cenário global e a necessidade de uniformização Em um mundo cada vez mais globalizado, sobretudo nas estruturas de mercados, torna-se mais complexa a garantia dos princípios da governança corporativa. No cerne dessa complexidade, a ilustrar a problemática, tem-se o caso da Petrobrás e todos os desdobramentos societários fruto dos escândalos envolvendo a operação Lava-Jato, que fornece um campo fértil para a discussão dos desafios inerentes a garantia de tratamento igualitário entre os acionistas na perspectiva multinacional. Com uma multiplicidade de demandas judiciais e arbitrais sendo conduzidas simultaneamente em diversos Estados, muitas delas confidenciais, percebe-se que a ideia de equidade e transparência se mostra esquiva, a escancarar a realidade de que estamos diante de uma violação sistemática dos pilares da governança corporativa. Não há regras uniformes sobre a vinculação dos acionistas à cláusula compromissória e transparência sobre o procedimento arbitral, tampouco coordenação sobre a aplicação das diferentes legislações nacionais no tratamento oferecido ao tema. Esta lacuna regulatória tem resultado em decisões, a bem dizer, heterodoxas, como a proferida pela Corte de Rotterdam, que recorreu ao critério de proficiência em português para determinar quem estaria submetido à arbitragem perante a CAM da B3. Tal situação demonstra uma desconformidade de tratamento que é flagrantemente inaceitável. Ao mesmo tempo em que acionistas brasileiros amargam anos a espera de uma reparação pelos danos sofridos, os titulares das mesmas ações adquiridas nos Estados Unidos já foram alcançados por acordo de responsabilidade e reparação civil, e os de outros lugares do mundo recebem tratamento condescendente oferecido pelo tribunal holandês. Essa situação real demonstra que, longe de ser um mero debate doutrinário, a questão do tratamento igualitário dos acionistas necessita de transformações práticas e tangíveis no mundo corporativo. Imperativo notar que o movimento em direção a uma maior democratização das relações intrassociais não pode ser contido por meros entraves jurídicos. Como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho, "as relações societárias equilibradas não se acomodam mais na vetusta fórmula que associa exclusivamente o tamanho do risco do aporte realizado no capital social"3. Não se pode mais considerar apenas a participação acionária como fator determinante no tratamento dos acionistas. Sob o impulso da governança corporativa e das reivindicações dos minoritários, é possível perceber mudanças nas legislações e regulações privadas sobre o tema que visam promover um ambiente mais democrático e inclusivo nas relações societárias, porém, ainda insuficientes e carentes de coordenação global. Conclusão A despeito dos avanços obtidos pela democratização das relações societárias e pela emergente constitucionalização do Direito Civil, persistem desafios significativos na efetiva garantia do tratamento equânime entre acionistas, transparência e responsabilidade corporativa. É evidente que a governança, com seus princípios de transparência, equidade, prestação de contas confiável e responsabilidade corporativa, desempenha um papel fundamental nesse cenário. Entretanto, sua efetividade é limitada em face à ausência de coordenação e uniformização global das regras e princípios corporativos. O caso da Petrobrás ilustra de forma contundente a complexidade desta problemática, evidenciando que as disparidades no tratamento dos acionistas não são mero fruto de uma análise doutrinária, mas realidades tangíveis que impactam diretamente a confiança e a estabilidade do mercado financeiro. Portanto, a necessidade de uma abordagem global e uniformizada para a responsabilização civil das companhias abertas é urgente. Torna-se imperativo um maior esforço de coordenação entre os diferentes estados nacionais, visando a implementação de regulamentações harmonizadas e a construção de um ambiente corporativo verdadeiramente democrático e equânime. __________ 1 Na construção da base teórica, utilizam-se as concepções de governança projetadas por: RIBEIRO, Henrique César Melo. Corporate governance versus corporate governance: an international review: uma análise comparativa da produção acadêmica do tema governança corporativa, UFSC, Florianópolis, v. 11, n. 23, p. 95-116, maio/ago. 2014; BOZEC, R. US Market Integration and Corporate Governance Practices: evidence from Canadian companies. Corporate Governance: An International Review, v. 15, n. 4, p. 535-545, 2007;  JESOVER, Fianna; KIRKPATRICK, Grant. The Revised OECD Principles of corporate governance and their relevance to non-OECD countries. Corporate Governance: An International Review, v. 13, n. 2, p. 127-136, 2005;  BAUWHEDE, H. V.; WILLEKENS, M. Disclosure on corporate governance in the European Union. Corporate Governance: An International Review, v. 16, n. 2, p. 101-115, 2008;  CORMIER, Denis et al. Corporate governance and information asymmetry between managers and investors. Corporate Governance, v. 10, n. 5, p. 574-589, 2010;  WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanisms of Governance. Nova York: Oxford University Press, 1996;  MONKS, Robert A. G.; MINOW, Nell. Corporate Governance. United States: John Wiley e Sons, 2011. 2 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das melhores práticas de governança corporativa. São Paulo: IBGC, 2015. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. "Democratização" das Relações entre Acionistas. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 46-55.
Por conta das privatizações, verificadas no país na última década do século XX, quando se concedeu uma série de serviços públicos à iniciativa privada, entendeu-se necessária a criação de agências reguladoras, que tratariam da relação entre o Poder Público - o poder concedente -, a concessionária e os usuários. Cabe a essas agências, como seu nome indica, coordenar o setor, estabelecendo regras e, eventualmente, punindo as concessionárias que falharem na prestação dos serviços a que se obrigaram.  O surgimento das agências reguladoras encontra-se atrelado a importantes mudanças, como a flexibilização dos monopólios estatais, admitindo uma nova dinâmica da economia, decorrentes, sobretudo, da alteração do paradigma econômico nacional1, que se afastou da concepção do Welfare State para se aproximar de um Estado Regulador.2 Com a concessão de serviços públicos à iniciativa privada, criaram-se, gradualmente, essas agências. Embora não as tenha previsto de forma expressa, o constituinte originário deu indícios de que entidades nos moldes das agências reguladoras seriam estabelecidas diante do teor do artigo 174 da Constituição Federal de 1988.3 Veja-se, por exemplo, que a Emenda Constitucional ("EC") nº 08/1995 alterou o artigo 21, XI, da Constituição Federal, a fim de determinar a criação de órgão regulador voltado para o setor de telecomunicações, a ANATEL.4 A EC nº 09/1995, por sua vez, modificou o artigo 177, § 2º, III, da Constituição, instituindo órgão regulador do setor do petróleo e gás natural, a ANP.5 Não obstante o regime jurídico das agências seja similar ao das demais autarquias,6 aquelas entidades gozam de uma característica específica relevante, que permite o exercício das suas funções de maneira mais eficiente. Trata-se do regime de autonomia reforçada,7 por meio do qual é assegurada a equidistância da agência em relação ao poder concedente. Nas palavras de Alexandre Santos de Aragão, "não é qualquer autonomia que caracteriza as agências reguladoras, mas apenas aquela reforçada, sobretudo pela vedação de exoneração ad nutum dos seus dirigentes".8 A Lei Federal nº 13.848/2019, conhecida como a "Lei das Agências Reguladoras", positivou o regime de autonomia reforçada das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro, dispondo, inclusive, sobre as suas características, quais sejam: o poder normativo técnico; a autonomia decisória; a autonomia econômico-financeira; e a independência político-administrativa.9 Em suma, a adoção de um modus operandi técnico confere maior segurança jurídica ao setor regulado. Como apontou o Ministro Luís Roberto Barroso, não há como olvidar que "as agências reguladoras tornaram-se peças fundamentais no ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos e de sua universalização, integrando ao consumo, à cidadania e à vida civilizada enormes contingentes mantidos à margem do progresso material".10 Como contrapartida da concessão de maior autonomia, surge, por conseguinte, uma fundamental responsabilidade quanto ao dever das agências de regulamentar e coordenar o setor para o qual foram concebidas, sob pena de prejudicar o poder concedente, as concessionárias e, sobretudo, os usuários. As agências reguladoras incorrem em omissão quando deixam de exercer o poder normativo que lhes é atribuído ou, alternativamente, nas hipóteses em que demoram, de forma exagerada, a deliberar sobre matérias sujeitas a processo administrativo.11 Essa omissão deve ser analisada à luz do silêncio administrativo, fenômeno descrito por Celso Antônio Bandeira de Mello como aquele que ocorre "se a Administração não se pronuncia quando deve fazê-lo, seja porque foi provocada por administrado que postula interesse próprio, seja porque um órgão tem de pronunciar-se para fins de controle de ato de outro órgão".12 Embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja mecanismos aptos a sanar tais omissões regulatórias e evitar a ocorrência do silêncio administrativo,13 eventual inércia das agências reguladoras podem acarretar danos ao Estado, às concessionárias e aos usuários do serviço público. A omissão das agências reguladoras pode ensejar a judicialização do tema, pela iniciativa da parte lesada com a inércia. Conquanto seja imprescindível à manutenção do Estado de Direito,14 a atuação jurisdicional acerca das controvérsias administrativas traz consigo a problemática da substituição das decisões das agências reguladoras pelo Poder Judiciário. Os riscos daí advindos são intuitivos. Com efeito, a ingerência do Judiciário pode prejudicar a função regulatória e o planejamento setorial, bem como gerar distorções nas esferas econômica e social, sobretudo porque, conforme leciona Sérgio Guerra, "[o] ato regulatório se fundamenta em critérios metajurídicos",15 que quase sempre extrapolam a competência técnica do magistrado.16 Nesse particular, Patrícia Sampaio e Alexandre Schiller explicam que "[a] substituição das agências pelos tribunais tem o condão de gerar uma série de consequências para os setores regulados, a começar pela perda de confiança e credibilidade nas agências reguladoras, avançando até a perda de harmonia e de equilíbrio do sistema, o que pode prejudicar a implementação das políticas públicas, gerando efeitos perversos para o mercado e para a sociedade."17 Por outro lado, a indesejada inércia, por vezes, torna necessária a intervenção do Judiciário, até mesmo de forma liminar, sob pena do agravamento do dano ilegal (ou mesmo de perecimento de direito). Avalia-se, nesses casos, qual seria o mal menor: a ingerência do Judiciário ou a permanência da omissão. Embora se possa discutir o grau de intervenção do Judiciário na esfera das decisões administrativas, não se questiona que o dano, comprovado o nexo causal entre a indevida omissão da agencia e a consequência, deve ser reparado.  "Tout le dommage, mais rien que le dommage".18 Como se sabe, vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da reparação integral. Qualquer pessoa, física ou jurídica, faz jus à tutela jurisdicional, a fim de obter a reparação por todos os danos ilícitos eventualmente sofridos em razão de atos - comissivos ou omissivos - cometidos por outrem, na medida de sua extensão.19-20 O artigo 37, § 6°, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, prestadoras de serviço público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.21 No mesmo sentido, o artigo 43 do Código Civil estabelece que "as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo." Não há dúvidas de que os danos causados pelas agências reguladoras aos usuários em virtude de seus atos omissivos devem ser indenizados. Cumpre destacar, contudo, haver divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a natureza da responsabilidade - se objetiva ou subjetiva. Nelson Nery Jr. e Rosa Nery se posicionam no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva.22 De outro lado, a Professora Marya Sylvia Zanella Di Pietro, acompanhada por Celso Antônio Bandeira de Mello23 e pela doutrina majoritária,24 entende que, "enquanto no caso de atos comissivos a responsabilidade incide nas hipóteses de atos lícitos ou ilícitos, a omissão tem que ser ilícita para acarretar a responsabilidade do Estado. Por essa razão, acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissão do Poder Público".25 Nas palavras de Rodrigo Santos Neves, "[d]iante de uma omissão do Estado, em especial de uma agência reguladora que cause danos a terceiros, deve-se provar que: a) houve o dano injusto; b) culpa da pessoa jurídica; e c) o nexo causal entre a omissão culposa e o dano".26 Esse elemento subjetivo da culpa pode ser aferido a partir da demonstração da falta do serviço (como, v.g., a ausência de fiscalização sobre a concessionária); da realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou da realização atrasada do serviço. Em outras palavras, a omissão deve ser reprovável para que seja apta a gerar a responsabilidade civil da agência reguladora.27 Ao longo dos anos, os tribunais endereçaram o tema de forma não linear. Por vezes, entendeu-se que condutas omissivas das agências reguladoras culminariam em responsabilidade civil objetiva.28 Por outro lado, parte dos tribunais entendiam que a responsabilidade do Poder Público em razão de omissão era verificada mediante caracterização de culpa, ou seja, subjetiva.29 De outro lado, em 30.03.16, o Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 37, §6º, da Constituição, em sede de repercussão geral, concluiu que, "configurado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a omissão do Poder Público em impedir a sua ocorrência - quando tinha a obrigação legal específica de fazê-lo - surge a obrigação de indenizar, independentemente de prova da culpa na conduta administrativa".30 Nesse sentido, restou sedimentado o entendimento de que a responsabilidade da administração pública, na hipótese em que o facere esteja consagrado como dever e a Administração Pública o transgrida, é objetiva e, portanto, independe da aferição de culpa.31 Convém, por oportuno, ressaltar que as agências reguladoras possuem personalidade jurídica e patrimônio próprios e, nessa medida, capacidade para se fazerem representar em juízo e responder por lesões causadas a terceiros. Assim, verificado um dano decorrente da omissão de determinada agência reguladora, cabe à parte lesada ajuizar ação indenizatória, de obrigação de fazer ou de não fazer diretamente contra a autarquia.32 Outro ponto relevante a ser abordado no âmbito deste tema consiste na aplicação do Código de Defesa do Consumidor ("CDC") nas ações movidas pelos consumidores em razão de danos incorridos em razão de ilícitos praticados pelas agências reguladoras.33 De fato, o CDC busca tutelar os direitos relativos à proteção ao usuário de serviço público decorrentes das permissões e concessões concedidas pelo Estado, sendo certo que o seu artigo 22 dispõe que os órgãos públicos e suas empresas, concessionárias e permissionárias são obrigados a fornecer serviços de qualidade, adequados, eficientes e seguros. Logo, o CDC se aplica de forma subsidiária aos serviços públicos, naquilo em que não for incompatível com a lei especial. A atuação regular das agências reguladoras é imprescindível ao bom funcionamento dos serviços de interesse público, administrados, em sua grande maioria, por entes privados. Na eventualidade dessas autarquias de caráter especial quedarem omissas em suas obrigações de coordenar o setor, subsistirá, além da eventual necessidade de intervenção do Judiciário - substituindo proativamente a agência para sanar a omissão -, a obrigação de indenizar os danos decorrentes dessa inércia, independentemente de outras responsabilidades verificadas na relação. Referências bibliográficas  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 417. CAMARGO, Sabino Lamego de. Agências Reguladoras e Fato do Príncipe. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 4, p. 191-204, Dez./2010. DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense, p. 829/834. EFING, Antônio Carlos. Agências Reguladoras e a Proteção do Consumidor Brasileiro. Curitiba. Ed. Juruá, 2009, p. 31 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 273. JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 4. Responsabilidade da agência por atos omissivos - 22. Responsabilidade civil das agências reguladoras In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010. JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 46). JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 8e éd. Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002. SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859. VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In:  Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. __________ 1 "Todavia, com o surgimento do Estado Regulador - decorrência do insucesso do Estado do Bem-Estar Social - necessário se fez repensar o modelo de Administração Pública brasileiro, situação que culminou com o aperfeiçoamento do modelo burocrático e a sua conseqüente 'evolução' para o modelo gerencial de Administração Pública." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). 2 Sobre o Estado regulador, Marçal Justen Filho leciona que "é, antes de tudo, uma organização institucional que se relaciona às concepções do Estado de Direito. Essa figura pressupõe não apenas o monopólio do Direito por parte do Estado, mas também a submissão deste àquele. Para compreender o Estado regulador, é necessário reconhecer a supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política." (Direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 46). 3 "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado." 4 "Art. 21. Compete à União: [.] XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; [...]"  5 "§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.  § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: [...] III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;" 6 "Pela necessidade de as entidades reguladoras serem titulares de interesses públicos, as Agências Reguladoras brasileiras têm natureza jurídica de autarquia especial, integrante da administração indireta do ente político titular da competência descentralizada." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 66) 7 "Essa autonomia reforçada constitui em verdade o núcleo das agências reguladoras independentes e é um plus ontológico que se agrega ao conceito tradicional de descentralização/autonomia, ou seja, o grau de razoável e efetiva autonomia outorgada a um órgão ou entidade para desenvolver suas atribuições e para que tenham um desemprenho mais ágil e eficiente, autonomia esta que rompe decisivamente a hierarquia." (CAMARGO, Sabino Lamego de. Agências Reguladoras e Fato do Príncipe. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 4, p. 191-204, Dez./2010.) 8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. 9 Art. 3º A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação. 10 BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 11 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. 12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 417. 13 Como exemplo, pode-se mencionar o inciso IX do artigo 3º da Lei Federal nº 13.874/2019, que instituiu a obrigação de a Administração Pública informar o prazo máximo para a análise de pedidos no âmbito de processos administrativos ou quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica, sob pena de caracterização de aprovação tácita. 14 Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. 15 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 273. 16 "Os conflitos entre uma indústria poluidora, uma outra indústria que usa a água poluída lançada no rio e os vizinhos que também consomem, quer-se que eles sejam julgados por quem entenda do assunto. Não alguém que entenda de Direito apenas (isto é, das técnicas de produção e hermenêutica normativa), mas que entenda do problema específico: quem saiba das dificuldades para compor harmonicamente o conflito, consiga dar a solução mais harmoniosa por equidade, baseando-se em critérios técnicos, etc." (SUNFIELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal. In: Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sunfield [org.]. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 30) 17 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Op. Cit., p. 84. 18 JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 8e éd. Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" 19 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano." 20 "A nova codificação vem, assim, consagrar a idéia que doutrina e jurisprudência brasileiras já imputavam à responsabilidade civil por meio do chamado princípio da reparação integral do dano. A idéia consiste em atribuir ampla proteção à vítima, empregando-se todos os esforços para fazê-la retornar ao status quo anterior ao prejuízo." (TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859) 21 "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [.] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." 22 JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 4. Responsabilidade da agência por atos omissivos - 22. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010. 23 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 447. 24 "Todavia, na responsabilidade do Estado por atos omissivos, a situação é diferente. A omissão somente é relevante, quando um órgão ou agente público tem o dever jurídico de agir e não o faz. Nos atos omissivos imputados ao Estado, haverá responsabilidade quando ocorrer uma falha no dever jurídico de agir dos agentes ou órgãos estatais. Ou seja, somente haverá responsabilidade extracontratual do Estado na hipótese de uma atuação omissiva ilícita da administração pública. Portanto, a ilicitude é um dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, devendo-se apenas estabelecer uma distinção entre atos omissivos e comissivos em que ela terá maior ou menos relevância." (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004) 25 DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense, p. 829/834. 26 "Para a caracterização do elemento subjetivo (da culpa) será necessário, tão somente, demonstrar: a) a falta do serviço; b) a realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou c) que o serviço foi realizado, mas com atraso - que provocou o dano. A omissão deve ser reprovável, ao que estivesse dentro das possibilidades de se fazer, mas não foi feito." (NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002). 27 "Se, por exemplo, a Anatel - responsável pela regulação dos serviços de telecomunicações - deixa o seu dever legal de proteger a livre concorrência e, por isso, uma determinada concessionária pratica abusos no mercado, impondo preços às outras concessionárias e aos consumidores, sendo configurado abuso do poder econômico, poderia a concessionária prejudicada ajuizar ação indenizatória em face da Anatel pelos danos causados à concessionária, provenientes do descumprimento do dever legal de a agência preservar a livre concorrência? A resposta a esta indagação nos parece positiva. Uma vez comprovado que o ato de imposição de preço de tarifas não ocorreria se houvesse uma efetiva e justificável fiscalização da agência, o nexo de causalidade estaria demonstrado, assim como a conduta culposa, pela falta do serviço. É evidente que caberá ação regressiva da agência em face da concessionária que causou diretamente o dano e contra o responsável pela fiscalização, não realizada." (NEVES, Rodrigo Santos. Op. cit.., p. 741) 28 "Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal abrange também os atos omissivos do Poder Público. Precedentes. 3. Impossibilidade de reexame do conjunto fático-probatório. Enunciado 279 da Súmula do STF. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão recorrida. 5. Agravo regimental a que se nega provimento." (STF, RE 677.283 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 08.05.12 - grifou-se) 29 "Responsabilidade civil do Estado - Falta do serviço - Corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente - Os investidores clientes de corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente não têm direito a indenização por omissão da fiscalização a ser exercida pela CVM, pelo Bacen, ou pela Bolsa de Valores em que opera, quando essa empresa praticou fraudes e apresentou balanço irregular. A responsabilidade do Estado, em casos de omissão de serviço de fiscalização, deve ser demonstrada com os requisitos do nexo de causalidade e da culpa" (TRF4, AC nº 95.04.520.94-4 - RS - 3.ª T. - Rel. Juiz Marcelo de Nardi - DJU 05.05.99, p. 408 - grifou-se)." 30 STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16. 31 "A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral." (STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16) 32 VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In: Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. 33 "Foi no contexto de valorização da regulação (que deixa as atividades econômicas fundamentalmente a cargo da iniciativa privada impondo-lhe padrões desejáveis de qualidade no fornecimento de produtos e serviços) que se editou a Lei 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor. A normatização das relações de consumo compõe o novo plexo de regulação moderna na economia, referindo-se a todo o mercado de consumo e atuando concomitantemente à regulação específica levada a cabo em cada setor pela respectiva agência reguladora." (EFING, Antônio Carlos. Agências Reguladoras e a Proteção do Consumidor Brasileiro. Curitiba. Ed. Juruá, 2009, p. 31).
Introdução  Ao pesquisarmos sobre o número de usuários de redes sociais no Brasil, a pesquisa revela as dez redes sociais mais utilizadas, com dados medidos em fevereiro de 2023.1 Sobre os dados trazidos, as máximas de experiência nos mostram que as redes são utilizadas com os mais variados objetivos: grupos de família, de amigos, publicidade de produtos e serviços; educação, como alguns poucos exemplos. Em momento anterior analisamos algumas decisões que discutiram a ocorrência de danos extrapatrimoniais com fundamento na denominada infidelidade virtual.2Daquele momento em diante evoluímos, estudamos mais profundamente a questão e, através destas breves linhas, indagamos: como efetivamente se caracterizaria o descumprimento do dever de fidelidade recíproca? Imagine o estudioso do tema as seguintes hipóteses: 1) a esposa flagrou seu marido tendo relações sexuais com outra pessoa; 2) A esposa ficou sabendo por uma amiga que viu seu marido em um restaurante, com outra pessoa, trocando olhares carinhosos, por vezes, de mãos dadas; 3) A esposa viu, por uma rede social, trocas de mensagens entre seu marido e uma pessoa, com o teor do diálogo revelando uma paixão, por exemplo. Como ficariam tais hipóteses à luz do suporte fático do descumprimento do dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil e, em especial, tais fatos ocorrendo em ambiente virtual? E mais: imaginemos que o juiz tenha julgado procedente o pedido de condenação por danos imateriais, pois, na sua convicção, caracterizada a infidelidade virtual. O réu, por sua vez, não se contentando com o resultado da ação, agora, perante Desembargadores em determinado Tribunal de Justiça de nosso país, pergunta ao magistrado através de seu advogado, advogada: "Como poderia alguém ser condenado à reparação danos imateriais tendo por base uma causa de pedir (infidelidade virtual) que sequer existe em nosso ordenamento, enquanto fato jurídico? Convidamos então o estudioso para tais reflexões, que serão enfrentadas a partir de agora.            Ilícito e o suporte fático e dever de fidelidade recíproca  Ato ilícito, segundo o entendimento de Sérgio Cavalieri Filho, resulta de uma conduta voluntária, violando determinado dever jurídico, devendo a culpa estar comprovada caso se trate de responsabilidade subjetiva.3 Pontes de Miranda, por sua vez, sobre o suporte fático da norma, ensina que:  A regra jurídica é sempre uma proposição, escrita ou não escrita, em que se diz: "Se ocorrem a, b e c (ou se ocorrem b e c, ou se ocorrem a e b, ou se ocorre a, ou se ocorre b), acontece d. A esses elementos chamam-se elementos fáticos. Se, todos estão juntos, ou se aparece o único que se exigia, o todo fático é como que carimbado pela regra jurídica. A esse todo deu-se o nome de suporte fático.4  O Código Civil prevê sobre o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges,5 dever que, segundo as lições de Paulo Lôbo: "A fidelidade recíproca sempre foi entendida como impedimento  de relações sexuais com terceiros".6 Nelson Rosenvald e Felipe Btaga Netto, por sua vez e refletindo sobre o tema, observam que aquele dever:  [...] participa da comunhão plena de vida formada pelo casamento - embora, é certo, o conceito de fidelidade posa variar de acordo com o casal, de seus valores, de seu modo de vida, de acordo com a história que construíram juntos".7  Por outro lado, o Código Civil, expressamente, nada refere sobre conseqüências de sua eventual violação. Mas há ainda outra situação relacionada com a infidelidade e que aguardaria o desfecho sobre o entendimento acerca da aceitação, ou não, da infidelidade virtual. Vamos imaginar a hipótese de o marido doar um bem à pessoa que vem se relacionando virtualmente. A esposa poderia pleitear a anulação com fundamento na regra do art. 550,8 do Código Civil?  Conclusão  Novos fatos, mas velhos Códigos; velhos, não em um sentido de ofensa ou desprestígio, mas tão somente por força do decurso do tempo. Contudo, a dignidade da pessoa humana em termos de sua proteção dá novos ares às interpretações fazendo com que a legislação mantenha-se atualizada. Atualmente, o dever de fidelidade recíproca, segundo leciona Paulo Lôbo, "[...] confinou-se ao plano da consciência moral, uma vez que destituído de conseqüências jurídicas".9 Talvez a responsabilidade civil, na atualidade e até com uma nova tendência na questão do dano extrapatrimonial envolvendo o ambiente virtual e o descumprimento do dever de fidelidade recíproca (naquele ambiente) comece a dar novos contornos aos meios em que a infidelidade venha a se caracaterizar. Meios enquanto antigos fatos (infidelidade) justamente como é o ambiente virtual. Afinal de contas, quando Miguel Rele nos ensina sobre as mais variadas acepções da palavra Direito, remete-nos o jurista à teoria tridimensional do Direito, ou seja, o Direito na seguinte análise: "[...] um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)".10 Sobre a indagação antes feita pelo réu em suas razões de sustentação oral, talvez a resposta do Tribunal para manter a condenação viria, também, com base no venire contra factum proprium. Afinal, objetivamente, mostrou pelo seu comportamento a intenção em estar com pessoa diversa a do seu casamento, mesmo na forma virtual. Contudo, alega a infidelidade na virtualidade como fato não jurídico, portanto, não enquadrado como violação ao dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil. Por isso também ressaltamos o título destas linhas na parte que apresenta a seguinte expressão e a pergunta: muda-se o meio, mas subsiste o suporte fático e a possibilidade de dano? Parece-nos que a resposta, pelo andar do comportamento dos integrantes da sociedade também no sentido de uma nova manifestação das relações entre casais passa pela virtualidade, sendo que o Direito, por sua vez, deve ficar atento à eventual responsabilidade civil como uma nova forma de violação de antigos deveres conforme aqui alertamos e defendemos. Referências ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020. __________ 1  Ranking: as redes sociais mais usadas no Brasil e no mundo em 2023, com insights, ferramentas e materiais: 1. WhatsApp (169 mi); 2. YouTube (142 mi); 3. Instagram (113 mi); 4. Facebook; (109 mi); 5. TikTok (82 mi); 6. LinkedIn (63 mi); 7. Messenger (62 mi); 8. Kwai (48 mi); 9. Pinterest (28 mi); 10. Twitter (24 mi). In: Resultados Digitais. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023. 2 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 148-152. 3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 25. 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998, p. 21. 5 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; 6 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 137. 7 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020, p. 1.609. 8 Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal. 9 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 138. 10 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 65.  
As correlações entre as normas de Direito Ambiental e as normas pertinentes a searas regulatórias setoriais, tal como relativas à energia, às águas, às telecomunicações e à radiodifusão possuem zonas de encontro, mas também limites de delimitação. As zonas de encontro e os limites de delimitação possuem conexão direta e expressa para com as competências constitucionais. A justificativa de vinculação indireta em cadeias ilimitadas de reflexo das normas setoriais ou regulatórias em bens ambientais não legitima a atuação da competência legislativa ambiental. O panorama acarreta consequências diretas em termos de responsabilidade civil ambiental. O Supremo Tribunal Federal veio a julgar a matéria em recente decisão, proferida na ADI 7.321/AL. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo firmou que é inconstitucional norma estadual que institui a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para a instalação de Rede de Transmissão de Sistemas de Telefonia e de Estações de Rádio Base (ERBs) e Equipamentos de Telefonia sem fio em seu território local. No caso, a lei 6.787/2006, do Estado de Alagoas, alterada pela lei 7.625/14, foi reconhecida não como uma norma de regulação ambiental propriamente dita, mas sim como uma norma de direito regulatório de caráter setorial. A linha assumida pelo Supremo está também presente nos julgados proferidos em ADPF 732; ADI 5.575; ADI 5.569 e ADI 3.110. Segundo o Supremo, "ainda que sob a justificativa de proteger, defender e conservar o meio ambiente local e seus recursos naturais, a lei estadual impugnada, ao criar uma obrigação às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações e estipular critérios para a instalação de infraestruturas a ele relacionadas, invadiu a competência da União para dispor sobre a matéria e interferiu diretamente na relação contratual formalizada entre o Poder concedente e as concessionárias". Em fato, a competência ambiental é competência concorrente, prevista no artigo 24, incisos VI, VII e VIII, ao passo que a competência regulatória quanto a energia, águas, informática, telecomunicações e radiodifusão é competência privativa, prevista no artigo 22, inciso IV, ambos da Constituição da República. Embora a União edite normas gerais e os Estados e Distrito Federal editem normas específicas em matéria ambiental, a competência regulatória setorial é privativa da União. Não pode o ente federativo estadual passar a exercer atividade normativa regulatória setorial sob a roupagem de reflexo indireto em bem ambiental. Caracteriza-se aqui verdadeira invasão de competência. O efeito sobre a responsabilidade civil é de implicação clara. Violações de concessionária de serviço público ou de atores de mercado como um todo em termos de legislação regulatória setorial não se caracterizam como infrações ambientais, afastando a responsabilidade administrativa, civil ou mesmo penal em termos de Direito Ambiental. Em consequência, se determinada pessoa jurídica viola normas regulatórias setoriais, o fato não legitima a lavratura de autos de infração ambiental e menos ainda a dedução de ações reparatórias ao argumento de responsabilidade objetiva pela teoria do risco integral por existência de potencial degradação ambiental. Estabelece-se assim um filtro prévio na análise de violação normativa que será determinante para a adequação do marco regulatório em infrações cíveis ou administrativas. Exemplificativamente, se a matéria envolve o marco regulatório de geração energética previsto na lei 9.074/95 e na lei 9.427/96, tal como no caso de especificação de finalidades do aproveitamento ou da implantação de usinas, não cabe a qualquer órgão ambiental atuar para imputação de responsabilidades no caso de violações legais, infralegais ou contratuais, seja de que espécie for. A relevância e o caráter interdisciplinar do Direito Ambiental não significam que ramos jurídicos cujos bens possuem multiplicidade regulatória ficarão absorvidos pela dinâmica regulatória da responsabilidade civil, administrativa e penal ambientais. É necessário delimitar os âmbitos de aplicação e exercício de competência. As legislações estaduais que passam a exercer normatização regulatória em matéria de energia ou telecomunicações, ao argumento de implicação indireta progressiva coligada a bens ambientais, revelam-se como inconstitucionais, pois invadem competências federais privativas. Além disso, em caso de violações normativas vinculadas a normas regulatórias setoriais, não se tem legitimidade de aplicação de autos de infração ambientais e menos ainda de ações civis públicas para reparação de danos ambientais. A solidez do Direito Ambiental depende de sua densificação em âmbito próprio, sem se transformar em mecanismo de regulação universal das relações jurídicas econômico-sociais.
O direito a proteção aos dados pessoais é um direito que abrange e dialoga com a privacidade1, mas, vai além2 e se relaciona com as próprias instituições democráticas3, por isso, tem proteção jurídica específica, inclusive constitucionalmente garantida como direito fundamental4. Na seara do direito privado, a sua proteção traz em si a necessária preocupação para com a prevenção dentro da responsabilidade por danos. É que em um caso de incidente de segurança ou vazamento de dados pessoais não há a possibilidade de retornar ao status quo5, ou seja, de recolher os dados que foram acessados por terceiros, sem a devida autorização. Equipara-se ao conto da fofoca. Neste conto, para punir um cidadão que gostava de espalhar fofocas da vida dos demais, o sacerdote da aldeia determinou que o cidadão subisse na torre da igreja, que era o ponto mais alto da cidade e levasse consigo um travesseiro de penas de ganso. Deste local, ele deveria abrir a fronha e deixar que as penas se espalhassem pela cidade. Feito isso, o cidadão retornou e o sacerdote solicitou então que ele recolhesse todas as penas que foram espalhadas e as colocasse de volta ao travesseiro. Ao tentar executar a tarefa, o indivíduo reclamou e afirmou que era impossível recolher todas as penas de ganso que foram espalhadas, pois o vento as levou para lugares distantes e que não saberia onde procurá-las. Portanto, seria impossível recuperá-las6. E da mesma forma são os dados. Após um vazamento, não há como saber quem ou quantas pessoas os acessaram. Também, não é possível ter o controle de que serão apagados ou não serão compartilhados para outras pessoas. Por isso, fala-se em prejuízos incomensuráveis7. O vazamento de dados em si se tornou uma preocupação mais evidente para os estudiosos do tema com a publicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018). Imaginava-se e especulava-se que haveria um incentivo para que a sociedade se preocupasse mais com os dados pessoais, próprios e de terceiros, desde o seu manuseamento até a implementação de procedimentos de segurança para evitar ou rapidamente agir quando do vazamento destes dados8. Neste período da vacatio legis, que durou efetivamente até 2020, foram adotadas medidas para responsabilizar, ao menos civilmente, as empresas que permitiam que os seus dados fossem acessados sem o consentimento do titular. Foi o que ocorreu na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, por meio da Comissão de Proteção de Dados Pessoais, em face do Banco Inter. Neste caso, após a instauração de inquérito civil público, constatou-se que, em razão de um incidente de segurança, houve o vazamento dos dados de mais de cem mil correntistas deste banco digital, por meio de um arquivo de 40 GB (quarenta gigabytes) criptografado e por isso, foi requerido o valor de R$ 10.000.0000,00 (dez milhões de reais) a título de danos morais coletivos. Durante o trâmite do processo, o Banco realizou acordo no valor de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), por meio do qual R$ 1.000.000,00 (um milhão) foi destinado a políticas públicas de combates aos crimes cibernéticos e R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) para instituições de caridade9. Outros casos de vazamentos foram investigados pela mesma comissão do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, com altos valores em danos morais10. Mas, nas cortes especiais, percebe-se um caminho inverso e uma interpretação menos rigorosa para defesa e efetiva proteção dos dados pessoais, o que pode ser verificado no que diz respeito aos valores das indenizações e, especialmente, nas ações individuais11. A preocupação para com os valores de reparação, especialmente diante do infundado receio de criação de uma suposta indústria de dano moral12, por muitas vezes fomenta a análise do custo-benefício pelo ofensor13. Surge, então, a pergunta, o que fazer para uma reparação que realmente impeça, isto é, tenha o caráter punitivo e preventivo e não seja mero fomentador da lesão ao direito a proteção dos dados pessoais? Uma possível solução seria a reparação por danos transindividuais, pois para estes casos não se aplicaria a preocupação para com o enriquecimento indevido da vítima14. Assim, há a necessidade em estudar a possível aplicação do dano moral transindividual15 para o caso de tratamento de dados, especificamente o seu vazamento. No que diz respeito ao dano moral para este sujeito coletivo, uma das possíveis restrições era pensar este tipo de dano como reparação apenas da dor ou sofrimento de uma pessoa identificada16, contudo, esta não é a posição atual que cada mais está desvinculada deste conceito pessoal e subjetivo de mágoa17. A percepção de se tratar de um dano considerado imaterial, isto é, sem características patrimoniais que "pressupõe a frustração de uma utilidade extrapatrimonial tutelada pelo direito"18, permite uma indenização/reparação coletiva. O dano moral transindividual está vinculado com a injustiça do dano, isto é, com a gravidade da ilicitude configurada que atinge bens de uma coletividade. Configura-se quando há lesão "a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável"19, assim como vinculado a uma ilicitude inescusável "de modo a não trivializar, banalizar a configuração do aludido dano moral coletivo"20. Portanto, se não houver lesão a valores considerados como fundamentais da sociedade ou que tenham sido decorrentes de forma injusta e intolerável, afastado será o dano moral coletivo21. Com isso, volta-se ao questionamento, para o caso de proteção de dados pessoais, pode-se tratar deste tipo de dano? Para isso, parte-se do pressuposto que a responsabilidade civil não pressupõe "a consumação de um suporte fático rigidamente previsto em um tipo legal"22 e a tutela de direitos " deixou uma órbita individual, a fim de alcançar um aspecto coletivo"23. Portanto, presume-se a possibilidade de tutela da lesão pelo viés da coletividade quando se está diante de um bem jurídico da coletividade. Fato que ocorre no caso do direito em questão. Isto porque é direito fundamental, previsto constitucionalmente no art. 5º, LXXIX, da Constituição Federal24, o que significa que a sua lesão pode ser considerada como uma ofensa a valores fundamentais de uma sociedade como um todo. Ainda, para o caso dos dados pessoais, o artigo 42 da LGPD25 prevê que o tratamento de dados pessoais possa ocasionar dano coletivo. Por isso, entende-se que estariam superados eventuais óbices para a sua configuração como dano moral transindividual, a partir deste contexto da relevância para a coletividade. Por outro lado, no que diz respeito a gravidade da ilicitude para sua configuração, apesar do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar caso sobre vazamento de dados, ter mencionado que se trata de "falha indesejável"26, é preciso que seja compreendida como conduta repudiada. A expressão utilizada não foi no sentido de analisar a ilicitude em si, mas sim a sua reprovabilidade e por isso, não contenha os melhores signos para a compreensão do significado desejado em caso de danos transindividuais. É que é imprescindível que se tenha um ambiente seguro e controlado27, para evitar incidentes de segurança28, assim como sejam adotadas medidas adequadas para quando da sua ocorrência com o intuito de minimizar os danos29, de acordo com a própria legislação e, portanto, qualquer conduta contrária significa ofensa literal a legislação, isto é, grave a ponto de ser considerada como ilicitude intolerável.  O último ponto a ser analisado é que o dano moral é in re ipsa e para o vazamento de dados, o mesmo julgado acima mencionado que poderia ter minimizado a ilicitude afastou o dano moral presumido30. Mas, no caso da presunção para o dano coletivo essa será diversa do dano individual. É que no coletivo, o dano decorre da violação do direito transindividual em discussão, "sendo o fato, por si mesmo, passível de avaliação objetiva quanto a ter ou não aptidão para caracterizar o prejuízo moral coletivo, este sim nitidamente subjetivo e insindicável."31 Assim, entende-se que é possível falar em dano moral transindividual para os casos de vazamentos de dados e essa indenização teria a possibilidade de permitir a prevenção e punição necessária para evitar que novos casos ocorram, uma vez que não é possível simplesmente retornar ao status quo, quando se fala em dados pessoais. E a reparação desse dano para além da função sancionatória, contém em si "o fulcro preventivo que desestimula o ofensor a reiterar a prática de ilícitos metaindividuais, bem como o aspecto pedagógico, de alerta a potenciais lesantes que se proponham à prática do mesmo comportamento reprovável"32. Pontos essenciais para casos como o vazamento de dados pessoais. __________ 1 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 98. 2 A proteção de dados pessoais tem um diálogo constante com a privacidade, "da qual é uma espécie de herdeira, atualizando-a e impondo características próprias. Mediante a proteção de dados pessoais, garantias a princípio relacionadas com a privacidade passam a ser vistas em uma ótica mais abrangente, pela qual outros interesses devem ser considerados, abrangendo as diversas formas de controle tornadas possíveis com o tratamento de dados pessoais." (DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei geral de proteção de dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 173). 3 FRAZÃO, Ana. Objetivos e alcance da Lei Geral de Proteção de Dados. In Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito brasileiro. Ana Frazão, Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva [coord.]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 100. 4 "Art. 5º. (...) LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais." (BRASIL. Constituição Federal. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023). 5 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1. p.436. 6 GONDIM, Glenda Gonçalves. A responsabilidade sem dano: da lógica reparatório à lógica inibitória. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023.  7 Pode-se tratar como "dano enorme", ou seja, uma lesão excepcional que atinge uma coletividade. Para este tipo de dano, consideram-se como requisitos: "a) que se trate de danos de proporções catastróficas que causem considerável clamor social; b) que tenham causalidade múltipla, difusa ou indeterminada; c) que se relacionem ao modo de vida moderna" (SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018, p. 204). 8 CARIOCA NETO, Miguel. FREITAS, Ana Carla Pinheiro. HOLANDA, Marcus Mauricius. Os impactos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no caso do Banco Inter S/A. Scientia Iuris. Londrina, v. 26, n. 1, p. 43-55, mar. 2022, p. 48. 9 Banco Inter: acordo destinará R$ 1,5 milhão para caridade e combate a crimes cibernéticos. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 10 MPDFT e Netshoes firmam acordo para pagamento de danos morais após vazamento de dados. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. Vazamento de dados leva MPDFT a ajuizar ação contra grupo que explora criptomoedas. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.758.799/MG (2017/0006521-9). Relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 12 de novembro de 2019, DJe 19 de novembro de 2019. 12 Sobre a indústria do dano moral, "(...) Embora a preocupação seja válida, sob o ponto de vista científico, o certo é que, no Brasil ao menos, sua importância não pode ser exacerbada, já que, na maior parte dos casos, o resultado das ações de danos morais é frustrante que efetivamente enriquecedor." (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 192) 13 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013. p.16-17. 14 VENTURI, Elton. VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. O dano moral em suas dimensões coletiva e acidentalmente coletiva. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 397-421, 2018, p. 406-407. 15 Para este presente estudo utiliza-se a nomenclatura do dano moral transindividual como aquele que possa abranger todos os direitos coletivos, tanto difusos, quanto coletivos e individuais homogêneos. 16 Em acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial no 598.281, foi considerada a impossibilidade de aplicar dano moral coletivo para a ideia de transindividualidade, por entender que o dano moral seria um dano relacionado com a dor e o sofrimento. Este acórdão foi alvo de diversas críticas. Neste sentido: "A decisão é criticável em sua associação do dano moral com a dor e o sofrimento, mas o julgamento, longe de revelar oposição à tutela dos interesses supraindividuais, demonstra uma crescente sensibilidade do Poder Judiciário para a distinção entre os interesses puramente individuais e aqueles que transcendem o indivíduo" (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.88-89). 17 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade Civil.4. ed. rev. atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 297. 18 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 29-51, 2018, p. 44. 19 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.643.365/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 05 de junho de 2018. Diário da Justiça eletrônico em 07 de junho de 2018. 20 Superior Tribunal de Justiça. Embargos em Recurso Especial n.º 1.342.846/RS. Corte Especial. Relator Ministro Raul Araújo. Julgamento em 16 de junho de 2021. Diário da Justiça eletrônico de 03 de agosto de 2021. 21 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.962.771/SP. Primeira Turma. Relator Ministro Gurgel de Faria. Julgamento em 08 de maio de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 19 de maio de 2023. 22 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 29-51, 2018, p. 37. 23 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito de danos a um direito das condutas lesivas. Atlas: São Paulo, 2012. p.11. 24 BRASIL. Constituição Federal. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 25 "Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo." (BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em 22 de jun. de 2023).  26 Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n.º 2.130.619/SP. Segunda Turma. Relator Ministro Francisco Falcão. Julgamento em 07 de março de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 10 de março de 2023. 27 Art. 52, § 1º, VIII, da LGPD. "Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela autoridade nacional: (...) § 1º As sanções serão aplicadas após procedimento administrativo que possibilite a oportunidade da ampla defesa, de forma gradativa, isolada ou cumulativa, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e considerados os seguintes parâmetros e critérios: (...) VIII - a adoção reiterada e demonstrada de mecanismos e procedimentos internos capazes de minimizar o dano, voltados ao tratamento seguro e adequado de dados, em consonância com o disposto no inciso II do § 2º do art. 48 desta Lei;" (BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em 22 de jun. de 2023) 28 Art. 46, caput, da LGPD. "Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito." 29 Art. 48. § 1º, VI, da LGPD. "Art. 48. O controlador deverá comunicar à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares. § 1º A comunicação será feita em prazo razoável, conforme definido pela autoridade nacional, e deverá mencionar, no mínimo: (...) VI - as medidas que foram ou que serão adotadas para reverter ou mitigar os efeitos do prejuízo. 30 Apesar da terminologia utilizada no julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça é preciso ressaltar que dano moral presumido e dano moral in re ipsa são diferentes. Sobre o tema ler: SOARES, Flaviana Rampazzo. Dano presumido e dano in re ipsa - distinções necessárias. Revista IBERC. v. 6, n. 1, p. IV-X, jan./abr.2023. 31 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 1.330.516/RN. Quarta Turma. Relator Ministro Raul Araújo. Julgamento em 17 de abril de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 03 de maio de 2023. 32 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 520.
Nas palavras da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, "o poder é a habilidade de não apenas contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva"1. Com esta frase se inicia a série documental "O caso Escola Base", lançada este mês, revisitando o caso histórico, ocorrido na década de 90, em que diversos erros por parte da polícia e da imprensa arruinaram as vidas dos donos da Escola Base, na Aclimação, em São Paulo. Não obstante as severas acusações de pedofilia imputadas aos acusados e o consequente linchamento a que foram submetidos perante a opinião pública, descobriu-se, ao final das investigações, que eles eram inocentes.2 Revisitar esse caso histórico nos convida a revisitar o próprio papel da imprensa e os deveres a serem observados pelos jornalistas em sua atividade, cuja inobservância pode acarretar responsabilidade civil. Não se questiona, por óbvio, o importantíssimo papel desempenhado pela imprensa no Estado Democrático de Direito.3 No presente artigo, pretende-se examinar apenas a responsabilidade civil em decorrência dos excessos praticados no exercício da atividade jornalística, à luz dos parâmetros que vêm sendo delineados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em julgados proferidos nos últimos anos a respeito da matéria. Segundo o STJ, há três standards de conduta a serem observados no exercício da atividade jornalística. Trata-se dos deveres de veracidade, pertinência e cuidado, cuja inobservância poderá ensejar responsabilidade civil, na hipótese de ofensa a direitos da personalidade de terceiros.4 Se, por um lado, seria temerário limitar o exercício legítimo da liberdade de expressão apenas à divulgação de informações tidas como irrefutáveis - o que poderia inibir injustificadamente a livre circulação de ideias, tão cara à democracia5 -, por outro lado, parece não só razoável como também necessário exigir, daquele que divulgar determinada informação, o dever de diligência na sua apuração (providência usualmente conhecida como fact-checking). Nesse sentido, em precedente proferido este ano, envolvendo a divulgação de notícia que imputava ao ofendido a possível prática de nepotismo, o STJ entendeu que o dever de cuidado impõe a prévia checagem das informações que vierem a ser divulgadas a respeito de outrem: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. (...) SINDICATO DOS SERVIDORES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL QUE, APÓS FAZER REPRESENTAÇÃO PERANTE O CNJ, A RESPEITO DA OCORRÊNCIA DE POSSÍVEL NEPOTISMO, VEICULA A DENÚNCIA EM REVISTA. MUNUS PÚBLICO QUE DEVE SER EXERCIDO COM RESPONSABILIDADE. INOBSERVÂNCIA, NO CASO, DO DEVER DE APURAÇÃO MÍNIMA QUANTO À VEROSSIMILHANÇA DOS FATOS QUE LHE SÃO INFORMADOS, SOBRETUDO QUANDO SE TRATAM DE PROVIDÊNCIAS ABSOLUTAMENTE SIMPLES E QUE SE ENCONTRAM AO SEU ALCANCE, AGRAVADA PELA VEICULAÇÃO DE TAIS FATOS EM PERIÓDICO DE CONSIDERÁVEL CIRCULAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO. 1. Sem descurar do indiscutível dever do Sindicato de levar ao conhecimento do CNJ qualquer fato supostamente ilícito de que tenha notícia, atrelado a esse munus, a ser exercido de modo responsável, está o dever de apuração mínima quanto à verossimilhança dos fatos que lhe são informados, sobretudo quando se tratam de providências absolutamente simples e que se encontram ao seu alcance, agravada pela veiculação de tais fatos em periódico de considerável circulação. 2. Mais do que a simples denúncia/requerimento feita ao CNJ para apurar um possível nepotismo - o que, em si, estaria dentro de suas atribuições -, o Sindicato fez publicar a correlata notícia em seu periódico de considerável circulação (nada menos do que dezoito mil exemplares), dando conta de que o Desembargador ali mencionado (cujo nome, embora omitido na matéria, seria, por evidente, internamente, de todos que trabalham no Tribunal de Justiça conhecido), como autoridade pública, permitia que a dita funcionária, embora remunerada pelo cargo comissionado, simplesmente não trabalhasse, apenas comparecendo de quinze em quinze dias. Tratou-se, como se verifica, de veiculação de notícia que não apenas atribuiu ao magistrado a incidência em nepotismo - de indiscutível gravidade -, mas também lhe imputou, claramente, crime contra a Administração Pública (de prevaricação, no mínimo). 3. Da publicação no periódico não constou, como seria de rigor - e aqui reside o dever inobservado pelo Sindicato de checar, minimamente, a verossimilhança de tais fatos, os quais estavam dentro, indiscutivelmente, do seu pleno alcance -, a relevante informação de que a indigitada funcionária faz parte do quadro de servidores efetivos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o que, como é de sabença, dá-se por meio da aprovação em concurso público. Cuida-se, em tese, de funcionária capacitada para o desempenho do cargo, na medida em que a Lei de regência reserva um percentual mínimo para que funcionários do Quadro efetivo do Tribunal exerçam o cargo comissionado em questão, tendo assessorado, inclusive, por longo período, outros magistrados. Não se tratou, pois, de uma nomeação de pessoa estranha ao quadro do Tribunal de Justiça, com fins exclusivamente pessoais e espúrios, como a matéria pretendeu evidenciar. 3.1 Também não se veiculou qualquer informação na "matéria jornalística" em exame, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, de que a aludida funcionária assessorava o Desembargador desde de 2007, quando ainda era juiz, em primeira instância. Ainda assim, fez constar, em termos peremptórios, que o Desembargador mantinha união estável com a irmã de sua funcionária - afirmação deveras temerária, e reproduzida na representação, a considerar os requisitos fáticos necessários à configuração dessa entidade familiar no Direito de Família -, a despeito de se tratar de fato, na ocasião, que ainda seria objeto de apuração pelo CNJ. 4. Embora a apuração devesse ficar a cargo do CNJ, a matéria jornalística em comento, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, exacerbando, por completo, do compromisso de simplesmente informar a ocorrência da denúncia feita, fez constar que o referido Desembargador permitia que a sua funcionária - pela matéria, em termos peremptórios, sua cunhada - recebia dos cofres públicos o salário, sem trabalhar, comparecendo no gabinete de quinze a quinze dias. Veja-se, a esse propósito, que uma diligência mínima levada a efeito pelo Sindicato poderia checar a frequência e a assiduidade dessa funcionária, providência que, embora de simples consecução, não foi levada a efeito pelo Sindicato como seria de rigor, sobretudo quando optou por divulgar (e até de fazer constar da denúncia ao CNJ) detalhes que não guardam verossimilhança mínima. 6. A partir do quadro fático insculpido na origem - imutável na presente instância especial -, tem-se que o proceder levado a efeito pelo Sindicato desbordou, por completo, do exercício responsável de seu direito de representação e, principalmente, de publicação de fatos (objetos, na ocasião, ainda, de apuração) que, sem guardar verossimilhança mínima, mereceriam maiores cuidados por parte de quem resolve divulgá-los, avançando, indevidamente, na honra dos autores, passível de ressarcimento. 7. Recurso especial improvido.6 Ademais, no presente ano, o STJ também teve a oportunidade de julgar o caso dos "palhaços do Linha Direta", no qual o programa de televisão, além de narrar determinada denúncia de crimes sexuais feita pelo Ministério Público à época, exibiu uma dramatização do ocorrido por atores profissionais. Conquanto as investigações penais ainda estivessem em curso à época, o programa teria sugerido, de forma peremptória, que os acusados teriam efetivamente praticado os crimes que lhes eram imputados. Muito embora, posteriormente, os acusados tenham sido definitivamente absolvidos na esfera penal, sua imagem na sociedade já havia sido fatalmente maculada.7 Nesse caso, a controvérsia submetida ao STJ dizia respeito à quantificação da indenização pelos danos morais suportados pelos acusados, que tiveram sua imagem injustamente atrelada à prática de crimes sexuais em rede nacional. Ao julgar a controvérsia, a Corte parece ter levado em consideração, em especial, o dever de cuidado no exercício da liberdade de imprensa. O voto vencedor, proferido pelo Min. João Otávio de Noronha, baseou-se na "inconsequência do programa da forma como foi feita"8. Em sentido semelhante, a Min. Maria Isabel Gallotti entendeu que, "quando faz um programa desse tipo antes do trânsito em julgado, antes de condenação definitiva, a emissora assume o risco de arcar com a responsabilidade civil, porque o resultado na vida dos envolvidos, daqueles que são encenados na pele de pastores e palhaços, sem que nunca tivessem sido nem pastores nem palhaços, e praticando atos execráveis, o prejuízo na vida dessas pessoas é incomensurável"9. Em ambos os precedentes do STJ examinados, houve graves violações à honra dos ofendidos, em virtude da divulgação de informações que lhes imputavam a prática de atos ímprobos e criminosos. A Corte, em contrapartida, impôs compensações pecuniárias, na tentativa de reparar os danos extrapatrimoniais causados pelos excessos no exercício da liberdade de imprensa. Cabe, contudo, uma advertência: a compensação pecuniária (pelos danos morais suportados) não deve exaurir os mecanismos de tutela do direito à honra do ofendido pela atividade jornalística. Além de medidas alternativas de reparação,10 como a retratação pública11 e o direito de resposta,12 discute-se se a iminência de violação aos direitos da personalidade pela imprensa poderia ensejar eventual tutela preventiva, de modo a obstar a sua materialização. Segundo precedente paradigmático do Supremo Tribunal Federal, os direitos da personalidade não podem inibir, ex ante, a livre circulação de ideias, devendo eventual excesso no exercício da liberdade de expressão sujeitar-se às consequências previstas no ordenamento, a posteriori.13 Seguindo esse raciocínio, o STJ já entendeu impossível a condenação de determinado jornalista a cessar a divulgação de determinada notícia, sob o argumento da vedação à censura prévia.14 A questão, contudo, não é pacífica. Se, de um lado, tal posição encontraria respaldo, em nossa cultura jurídica, no justificável repúdio à censura à atividade jornalística - duramente vivida na ditadura militar -, de outro lado, parece imprudente pretender hierarquizar os direitos fundamentais de forma abstrata, devendo o intérprete sopesar a liberdade de expressão com os demais direitos da personalidade envolvidos à luz das especificidades do caso concreto.15 Não se descarta, pois, a adoção, ainda que em casos excepcionais, de soluções mais enérgicas, que impeçam a circulação de informação inverídica que implique grave ofensa à honra de outrem. Nessa linha, sustenta-se, na doutrina, que "as situações jurídicas subjetivas não-patrimoniais merecem proteção especial no ordenamento nacional, seja através de prevenção, seja mediante reparação, a mais ampla possível, dos danos a elas causados"16. A propósito, no próprio art. 12, caput, do Código Civil, faculta-se ao lesado a possibilidade de "exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos (...)". A própria lei, portanto, estabelece diversos remédios, de natureza ressarcitória, repressiva e - por que não - inibitória.17 O caso da Escola Base e os demais precedentes julgados este ano pelo STJ, examinados ao longo deste artigo, nos convidam a refletir sobre os remédios existentes para tutelarem os direitos à honra e à imagem daqueles prejudicados pela divulgação de notícias inverídicas na imprensa. Em hipóteses severas como as aqui examinadas, limitar tal aparato remedial tão-somente à reparação pecuniária poderia amesquinhar os direitos da personalidade, cuja tutela, juntamente com a liberdade de expressão, é igualmente cara ao Estado Democrático de Direito. __________ 1 Chimamanda Ngozi Adichie, O perigo de uma única história. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 23. 2 Para um relato histórico do caso. 3 Sobre o tema, Owen Fiss demonstra que os cidadãos "dependem de várias instituições para informá-los sobre as posições dos vários candidatos a cargos governamentais e para relatar e avaliar políticas em andamento e as práticas do governo", concluindo que "a imprensa organizada, incluindo a televisão, talvez seja a instituição principal que desenvolve esta função, e, para cumprir essas responsabilidades democráticas, a imprensa necessita de um certo grau de autonomia em relação ao Estado" (FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão - Estado, regulação e diversidade na esfera pública [tradução de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto]. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 99). 4 "4. O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo. 5. A jurisprudência desta Corte Superior é consolidada no sentido de que a atividade da imprensa deve pautar-se em três pilares, quais sejam: (i) dever de veracidade, (ii) dever de pertinência e (iii) dever geral de cuidado. Se esses deveres não forem observados e disso resultar ofensa a direito da personalidade da pessoa objeto da comunicação, surgirá para o ofendido o direito de ser reparado" (STJ, AgInt no AREsp 2.090.707/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 17/10/2022, DJe 19/10/2022). 5 Segundo adverte o Min. Luís Roberto Barroso: "Para haver responsabilidade, é necessário haver clara negligência na apuração do fato ou dolo na difusão da falsidade. De fato, no mundo atual, no qual se exige que a informação circule cada vez mais rapidamente, seria impossível pretender que apenas verdades incontestáveis fossem divulgadas pela mídia. Em muitos casos, isso seria o mesmo que inviabilizar a liberdade de informação (...)" (STF, Rcl 22.328 MC/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. em 06/03/2018, DJe 10/05/2018). 6 STJ, REsp 2.036.582/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 25/04/2023, DJe 11/05/2023. 7 "AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LIBERDADE DE IMPRENSA. LIMITES. REPARAÇÃO POR DANO MORAL. PROGRAMA COM EXIBIÇÃO DE MATÉRIA OFENSIVA À HONRA E À DIGNIDADE. NOTÍCIA ALÉM DO CARÁTER ESTRITAMENTE INFORMATIVO. IRRESPONSABILIDADE CONFIGURADA. VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LIBERDADE DE IMPRENSA. VERBA INDENIZATÓRIA FIXADA. RESPOSTA AO DANO. SANÇÃO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A liberdade de imprensa deve ser exercida com responsabilidade social e individual, dentro de limites éticos e legais, de modo que eventuais excessos devem ser coibidos e caracterizam responsabilidade civil passível de indenização. 2. A irresponsabilidade da imprensa ao exibir, em rede nacional, programa que veicule matéria ofensiva à honra e à dignidade de cidadão enseja dano moral indenizável. 3. A indenização decorrente de exibição de matéria ofensiva à honra e à dignidade de cidadão deve não só considerar a reparação pelo dano moral causado mas também ser suficiente para a sanção da conduta praticada, de forma a coibir novos abusos. 4. Agravo interno desprovido" (STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023). 8 STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023. 9 STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023. 10 Enunciado n. 589 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retratação pública ou outro meio". 11 "O direito à retratação e ao esclarecimento da verdade possui previsão na Constituição da República e na Lei Civil, não tendo sido afastado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130/DF. O princípio da reparação integral (arts. 927 e 944 do CC) possibilita o pagamento da indenização em pecúnia e in natura, a fim de se dar efetividade ao instituto da responsabilidade civil" (STJ, REsp 1.771.866/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 12/02/2019, DJe 19/02/2019). 12 "1. A pretensão de impor ao ofensor o ônus de publicar integralmente a decisão judicial condenatória proferida em seu desfavor não se confunde com o direito de resposta, o qual, atualmente, está devidamente estabelecido na Lei 13.188/2015. 1.1 O direito de resposta tem contornos específicos, constituindo um direito conferido ao ofendido de esclarecer, de mão própria, no mesmo veículo de imprensa, os fatos divulgados a seu respeito na reportagem questionada, apresentando a sua versão da notícia ao público" (STJ, REsp 1.867.286/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j. em 24/08/2021, DJe 18/10/2021). 13 "(...) [A]s relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. (...) [A] Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa" (STF, ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, j. em 30/04/2009, DJe 05/11/2009). 14 "DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AMEAÇA DE VIOLAÇÃO À HONRA SUBJETIVA E À IMAGEM. MATERIAL DE CUNHO JORNALÍSTICO. TUTELA INIBITÓRIA. NÃO CABIMENTO. CENSURA PRÉVIA. RISCO DE O DANO MATERIALIZAR-SE VIA INTERNET. IRRELEVÂNCIA. (...) 2. O deferimento da tutela inibitória, que procura impedir a violação do próprio direito material, exige cuidado redobrado, sendo imprescindível que se demonstre: (i) a presença de um risco concreto de ofensa do direito, evidenciando a existência de circunstâncias que apontem, com alto grau de segurança, para a provável prática futura, pelo réu, de ato antijurídico contra o autor; (ii) a certeza quanto à viabilidade de se exigir do réu o cumprimento específico da obrigação correlata ao direito, sob pena de se impor um dever impossível de ser alcançado; e (iii) que a concessão da tutela inibitória não irá causar na esfera jurídica do réu um dano excessivo. 3. A concessão de tutela inibitória para o fim de impor ao réu a obrigação de não ofender a honra subjetiva e a imagem do autor se mostra impossível, dada a sua subjetividade, impossibilitando a definição de parâmetros objetivos aptos a determinar os limites da conduta a ser observada. Na prática, estará se embargando o direito do réu de manifestar livremente o seu pensamento, impingindo-lhe um conflito interno sobre o que pode e o que não pode ser dito sobre o autor, uma espécie de autocensura que certamente o inibirá nas críticas e comentários que for tecer. Assim como a honra e a imagem, as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação também constituem direitos de personalidade, previstos no art. 220 da CF/88. 4. A concessão de tutela inibitória em face de jornalista, para que cesse a postagem de matérias consideradas ofensivas, se mostra impossível, pois a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não pode ser aprioristicamente censurada. 5. Sopesados o risco de lesão ao patrimônio subjetivo individual do autor e a ameaça de censura à imprensa, o fiel da balança deve pender para o lado do direito à informação e à opinião. Primeiro se deve assegurar o gozo do que o Pleno do STF, no julgamento da ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 06.11.2009, denominou sobredireitos de personalidade - assim entendidos como os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa, em que se traduz a livre e plena manifestação do pensamento, da criação e da informação - para somente então se cobrar do titular dessas situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também formadores da personalidade humana. 6. Mesmo que a repressão posterior não se mostre ideal para casos de ofensa moral, sendo incapaz de restabelecer por completo o status quo ante daquele que teve sua honra ou sua imagem achincalhada, na sistemática criada pela CF/88 prevalece a livre e plena circulação de ideias e notícias, assegurando-se, em contrapartida, o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis e penais que, mesmo atuando após o fato consumado, têm condição de inibir abusos no exercício da liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento. 7. Mesmo para casos extremos como o dos autos - em que há notícia de seguidos excessos no uso da liberdade de imprensa - a mitigação da regra que veda a censura prévia não se justifica. Nessas situações, cumpre ao Poder Judiciário agir com austeridade, assegurando o amplo direito de resposta e intensificando as indenizações caso a conduta se reitere, conferindo ao julgado caráter didático, inclusive com vistas a desmotivar comportamentos futuros de igual jaez. (...) 10. O maior potencial lesivo das ofensas via Internet não pode ser usado como subterfúgio para imprimir restrições à livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, cuja natureza não se altera pelo fato de serem veiculadas digitalmente. Cumpre ao Poder Judiciário se adequar frente à nova realidade social, dando solução para essas novas demandas, assegurando que no exercício do direito de resposta se utilize o mesmo veículo (Internet), bem como que na fixação da indenização pelos danos morais causados, se leve em consideração esse maior potencial lesivo das ofensas lançadas no meio virtual. Para além disso, caso essas medidas se mostrem insuficientes, nada impede a imposição de sanções alternativas que, conforme as peculiaridades da espécie, tenham efeito coator e pedagógico mais eficientes do que a simples indenização" (STJ, REsp 1.388.994/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 19/09/2013, DJe 29/11/2013). 15 Enunciado n. 613 da VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A liberdade de expressão não goza de posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro". 16 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 117. 17 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 13.
1 Um recorte necessário para o enfrentamento do tema O WhatsApp que se destina ao compartilhamento instantâneo de mensagens de textos, imagens, vídeos e áudios é, atualmente, o aplicativo que mais é utilizado pelos brasileiros que querem se comunicar de maneira rápida e eficaz. Embora, esteja em grande nível de competitividade com outros aplicativos, tais como o Telegram, o Skype, o Messenger e o Instagram, o WhatsApp é utilizado por 99% das pessoas que utilizam smartphones no Brasil e segundo a pesquisa patrocinada pela Infobip, em agosto de 2022, 88% dos entrevistados afirmaram que entram no aplicativo todos os dias e outros 7% dizem se conectar a ele quase todos os dias.1 Dentro do aplicativo, o usuário pode enviar mensagens, fazer ligações, publicar status pessoal e participar de grupos. Considerando que o usuário pode receber mensagens de diversas linhagens, seja de trabalho, negócios, informação e entretenimento, a priori, três trilhas se vislumbram: a mensagem ser recebida pelo usuário e ser deletada; a mensagem ser recebida pelo usuário e se quedar estacionada no aplicativo seja por esquecimento ou inércia do receptor; a mensagem ser repassada adiante para outros novos destinatários. Quando se foca no conteúdo recebido, o seu teor, por sua vez, poderá apresentar duas fontes: a mensagem pode ter sido redigida e criada pelo próprio interlocutor da conversa ou a mensagem pode ter sido criada por terceiro e ter-lhe sido apenas "encaminhada". Dentro do quadrante que se propõe neste trabalho, investiga-se a mensagem que é criada e redigida por seu interlocutor e, sem a sua autorização, é encaminhada a terceiros como, por exemplo, uma trivial conversa entre colegas ou amigos, seja em grupo fechado de WhatsApp ou não, que é encaminhada por seu destinatário a terceiros. Assim, diante do recorte cogitado, é bom destacar que não se trata de estudo do tratamento a ser dado em relação às notícias falsas (fake news), mas tão somente perquire-se sobre a responsabilidade civil daquele que encaminha a mensagem recebida, sem autorização de seu interlocutor, a terceiros. 2. A inversão de uma lógica: a lembrança como regra Popularizou-se, no ano de 2004, a expressão Web 2.02 ao traduzir uma segunda geração da internet cujo objetivo era a participação ativa dos usuários como se dá, por exemplo, em redes sociais, blogs e wikipedia3.  Participação, colaboração e interação são as palavras de ordem no movimento da Web 2.0 que inaugura novos rumos para a Rede. O jurista italiano Stefano Rodotà destaca a importância desse movimento para a construção da personalidade das pessoas e relata que "in questa prospectiva, assume un nuovo significato la libertà di espressione, come elemento essenziale dell`essere della persona e della sua collocazione nella società."4 Tudo isso conduz a novas realidades, perspectivas e, inclusive, promove inversões comportamentais como, por exemplo, a necessidade que muitos apresentam de auto exposição, o que faz a palavra ocupar o lugar do silêncio e a lembrança ocupar o lugar do esquecimento. A inversão da lógica humana conduz à conclusão de que, na era digital, o esquecimento deixa de ser a regra e a lembrança passa a protagonizar o comportamento humano. Essa é a perspectiva abordada por Umberto Eco quando, adentrando à realidade pessoal de cada um, constata que "a tendência geral parece ser o desejo de ser visto e ouvido a qualquer custo para ter a sensação de existir."5 A grande questão que se levanta é como se sustentará uma personalidade forjada no desejo estéril de ser vista a todo custo em redes sociais que "a despeito de todas as suas promessas comunitárias, nos divide em vez de nos aproximar" e que faz a todos "mais desiguais que iguais, mais ansiosos que felizes, mais solitários que socialmente conectados."6 Fomentando essa realidade, em 2009, surge o aplicativo de mensagens instantâneas denominado de WhatsApp7 criado pelo ucraniano Jan Koum e Brian Acton, colegas que se conheceram dentro da empresa Yahoo. Em 2014, o Facebook pagou pelo aplicativo US$ 19 bilhões e, em 2018, o aplicativo de mensagens instantâneas chegou à marca de 1,5 bilhão de usuários. Embora, existam outros aplicativos com a mesma finalidade que pareçam mais funcionais e confiáveis como, por exemplo, o Telegram, prevaleceu para o usuário comum a ideia de que todo mundo pode ser encontrado no WhatsApp. Em verdade, os motivos do êxito do aplicativo foram a simplicidade e a ausência de publicidade, em virtude de seus idealizadores serem avessos a ela. Disso tudo decorreram efeitos colaterais que podem ser reduzidos a dois eixos: o de segurança e o de privacidade. Nessa senda foi que Brian Acton, depois de sair do Facebook e diante de aparente conflito pessoal com os rumos do aplicativo, desabafou: "eu vendi a privacidade dos meus usuários para um benefício maior. Eu fiz a escolha e um compromisso. E eu vivo com isso todos os dias."8 Em tentativa de driblar o problema de segurança do WhatsApp, nos termos de uso do aplicativo consta a informação de que as mensagens são protegidas por criptografia de ponta a ponta9, assim, haverá uma "cifragem de mensagens em códigos com o objetivo de evitar que elas possam ser decifradas por terceiros."10  Isso significa dizer que somente os usuários poderão ter acesso às informações ali contidas, de modo que, nem o WhatsApp pode ter acesso a elas.11 3. Casos concretos de compartilhamento de mensagens via WhatsApp sem a autorização do interlocutor Duas situações são apresentadas: (i) em um grupo de WhatsApp formado por oito  torcedores de determinado time de futebol que trocavam mensagens acerca de diversos assuntos e da insatisfação com a gestão da agremiação esportiva, em um dado momento, um de seus participantes se retira do grupo e passa a divulgar nas redes sociais e na mídia capturas de tela, "prints" de conversas do referido grupo, sem o consentimento dos demais participantes.12 (ii) uma pessoa que confidencia, via WhatsApp, à colega de trabalho a sua vontade de ser demitida e que, para tanto, envidaria esforços nesse sentido, ficando na empresa sem fazer nada, "sentada, de boa". Com o repasse da mensagem ao empregador, o resultado foi a demissão por justa causa da empregada que criou a mensagem.13 Em comum, os cases apresentam pessoa que recebeu mensagens escritas e divulgou a terceiros, sem a autorização de seu emissor. Em comum, tem-se a vulgarização do dever de sigilo e a consequente fragilização da privacidade de seus emissores. Em comum, condenações que decorreram da ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade, fazendo prevalecer esse último direito respaldado, sobretudo, na imposição de sigilo das comunicações, que encontra guarida na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII). Em comum, a expectativa de que a conversa não ultrapassaria os lindes impostos pela lealdade de seu receptor. 4. Conclusão A utilização de aplicativos como o WhatsApp em um mundo acelerado e ávido por soluções e respostas rápidas é um caminho sem volta. A ideia de que todos podem ser encontrados a qualquer momento é o argumento que seduz e que justifica a disseminação de tais meios de comunicação no planeta Terra. Em uma era de exacerbada auto exposição e exibicionismo em massa, a autorização do interlocutor para divulgação de mensagem enviada por esse, parece elemento absolutamente dispensável numa sociedade que tem pressa e toma decisões movidas por imediatismo e impulsividade. Quando se vê, a tecla "encaminhar" já foi apertada. A despeito das promessas de segurança que o aplicativo de conversas instantâneas WhatsApp apresenta, o que se constata é um risco latente de violação a direitos da personalidade, tais como a privacidade e o sigilo, bem como ofensa à legítima expectativa que o emissor da mensagem tem de ser lido apenas pelo seu destinatário, ao qual enviou a mensagem. Desse modo, salvo por ordem judicial, notório interesse público ou para defender direito próprio, expor opinião particular do emitente da mensagem encaminhada em conversa privada no WhatsApp configura conduta ilícita passível de responsabilização civil, se dela resultar dano. Para que o WhatsApp alcance a sua finalidade máxima de facilitação de comunicação, não se pode admitir a exportação de informações sem a autorização de seu interlocutor, invocando-se aqui a responsabilidade daquele que recebeu a mensagem em seu smartphone.  É necessário que a mesma sociedade que busca respostas rápidas para tudo se contenha do instinto, do desejo, da vingança ou da impulsividade de simplesmente "encaminhar" mensagem que lhe foi enviada, sob pena de nos consolidarmos como sociedade que vive verdadeiramente no modelo arquitetônico panóptico de Bentham14, expostos a todos os olhares e juízos de valor alheios. ____________ 1 Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box - Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em: https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023. 2 A expressão "Web 2.0" foi cunhada por Tim O'Reilly em "Web 2.0: Compact Definition?", disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023. 3 A wikipedia se manifesta como uma enciclopédia colaborativa em que os seus usuários inserem o seu próprio conteúdo. 4 RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti, RomaBari: Laterza, 2012. p. 320. Em tradução livre: "Nesta pesperctiva, a liberdade de expressão assume um novo significado, como elemento essencial do ser, da pessoa e do seu lugar na sociedade." 5 ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 39. 6 KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 77. 7 O nome WhatsApp se traduz em um trocadilho perfeito entre a palavra "app" e a expressão "what's up", que em tradução livre quer dizer "e aí" ou, no contexto do aplicativo, como "o que está acontecendo?", com a resposta aparecendo no status. 8 ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023. 9 A criptografia de ponta a ponta do WhatsApp protege suas conversas com outras pessoas no WhatsApp, garantindo que as mensagens e chamadas fiquem somente entre você e a pessoa com quem você está conversando. Ninguém mais pode ler ou ouvir suas conversas, nem mesmo o WhatsApp. As mensagens e chamadas são protegidas com um cadeado exclusivo e somente você e a pessoa que recebe a mensagem têm acesso à chave especial para destrancá-lo e ler as mensagens. Todo esse processo acontece automaticamente: não é necessário ativar configurações especiais para garantir a segurança de suas mensagens. Disponível em: https://faq.whatsapp.com/820124435853543/ Acesso em: 21/03/2022. 10 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007, p. 160. 11 No Brasil, a criptografia de ponta a ponta é objeto de análise pelo STF na ADI 5527 e ADPF 403 que discutem a possibilidade de suspensão do funcionamento de aplicativos de mensagens, após o WhatsApp informar que não poderia fornecer os dados requisitados por magistrado em virtude da segurança oferecida pela criptografia de ponta a ponta. 12 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1903273/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021. 13 Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº 1003332-05.2021.8.26.0007. 3ª Vara Cível do Foro Regional de Itaquera, em São Paulo. 14 O modelo arquitetônico de Jeremy Bentham, filósofo utilitarista inglês (1748 - 1832) se manifesta por uma construção de formato circular com uma torre central a qual teria a visão de todos. O modelo surgiria como solução ideal para as penitenciárias, pois o preso seria vigiado a todo tempo, sem ter domínio de quem o faz. A analogia se mostra pertinente pois qualquer mensagem enviada por WhatsApp, a priori, poderia ser submetida a apreciação de todos e não apenas de seu receptor, se não houver limites para a sua divulgação.  ____________ ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023. ECO. Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017. LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007. KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012. O`REILLY, Tim. Web 2.0: Compact Definition? Disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton: Princeton University Press, 2009. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. RomaBari: Laterza, 201 ____________ Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box - Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023. ____________ *Mônica Queiroz é doutora e mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Autora de obras jurídicas, palestrante e parecerista. 
INTRODUÇÃO Por serem os direitos fundamentais do homem relativos, e não absolutos como, a princípio, se poderia pensar, o seu exercício, consequentemente, não é ilimitado e, nesse norte, muitas são as situações nas quais um pretenso exercer de um direito legítimo e assegurado pela Constituição Federal acaba por se mostrar abusivo e demasiado ofensivo a um direito de terceiro. O notável aprimoramento dos veículos de comunicação de massa, fruto da tecnologia e da sociedade globalizada, se, por um lado, proporciona um maior volume de informações a serem noticiadas, e de forma muito mais veloz e dinâmica, não raro viabiliza a utilização desse aparato tecnológico para operar uma completa e total devassidão da vida íntima e da privacidade das pessoas. O quadro apresentado se torna mais facilmente perceptível quando se considera, por exemplo, a facilidade com que se pode atualmente "produzir" informação, dispondo-se tão somente de uma câmera na mão (presente hoje em qualquer celular) e da internet para sua posterior divulgação. Nesse cenário, como mesmo sugere o diretor Alfred Hitchcock em sua película "Janela Indiscreta", qualquer fato pode se transformar em informação, ainda que o conteúdo desta esteja muito distante do que se pode chamar de informação. Convém esclarecer que não é pretensão deste texto estimular qualquer revolta contra a tecnologia ou o progresso científico existente, especificamente no tocante aos veículos de notícias. O notável aperfeiçoamento tecnológico alcançado não somente pelos meios de informação, mas também pela ciência como um todo, em hipótese alguma, pode ser taxado de forma maniqueísta, como benéfico ou maléfico à sociedade, uma vez que isso depende também da maneira como são utilizados pelas pessoas, ou seja, do emprego que lhes é dado. Se o Direito visa tutelar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de toda e qualquer pessoa igualmente se porta quanto à liberdade de comunicação, garantindo a sua livre expressão, no que se mostrou cuidadoso o constituinte, naturalmente tendo em consideração o passado recente e autoritário do Brasil, fortemente marcado pela opressão e pela censura de natureza política, ideológica, artística e intelectual. Sendo ambas as normas em questão de caráter principiológico, o que permite avaliações flexíveis em seus espectros de incidência, estabelece-se uma incerteza acerca de qual seria o melhor método para solucionar esse conflito entre normas constitucionais, no caso, a liberdade de informar e de se informado, que constituem interesse público e coletivo, e o direito individual à intimidade. Em resumo, a questão impõe saber qual dos direitos em jogo deverá prevalecer sobre o outro, qual obterá êxito no caso concreto. O tema da liberdade de informação e direitos da personalidade é bastante polêmico, porque é muito frequente que haja colisão entre eles, por exemplo: quando um jornal publica uma reportagem que faz com que alguém se sinta afetado em sua honra ou quando uma emissora de televisão faz algum programa que invade a privacidade de alguém ou, ainda, atualmente, com as questões envolvendo as redes sociais, onde uma pessoa se manifesta e acaba compartilhando fotos ou informações, ou até mesmo falando mal de alguém, o que gera, por consequência, indignações de quem as recebe. Todas essas situações têm gerado processos judiciais numerosos no Brasil e que acabam, desse modo, sendo submetidos ao Poder Judiciário, que no fundo, não sabe muito bem como lidar com esses problemas diante da falta de uma orientação específica mais expressa do ordenamento, isso porque, não só os direitos da personalidade são tratados como expressão da dignidade humana e, portanto, tutelados pela Constituição Federal, mas também a liberdade de informação é protegida no artigo 5º da Constituição Federal, de modo que haveria uma colisão de direitos protegidos constitucionalmente. Por outro lado, partindo de um enfoque sociológico-jurídico abre-se caminho para solução desse conflito. Considerando-se que a imposição de limites à liberdade de informação jornalística converge com a definição de que os direitos fundamentais não são absolutos, é necessário, por conseguinte, que o exercício desses direitos se processe de forma harmoniosa e equilibrada, não se excluindo, portanto, a possibilidade de supressão de determinada norma constitucional. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS De início é relevante acrescentar breve explicação sobre as características dos direitos fundamentais. Não é decisivo, em face da Constituição, afirmar que os direitos são declaratórios e as garantias assecuratórias, porque as garantias em certa medida são declaradas e, às vezes, se declaram os direitos usando forma assecuratória (MIRANDA, 1990, p. 88-89). Por outro lado, questão conflituosa, que muita controvérsia gerou, é a que se refere à relação conceitual que se nota entre a intimidade e a privacidade. Questiona-se continuamente se os institutos realmente possuem o mesmo significado, se constituem, afinal, o mesmo instituto, sendo, no entanto, denominados por meio de expressões distintas. O direito à intimidade é constante e equivocadamente entendido como sinônimo do direito à privacidade. Conforme os dizeres do professor José Afonso da Silva (2006, p. 206), a privacidade é uma terminologia natural do direito anglo-americano (the right to privacy), enquanto intimidade, por sua vez, é o termo de predileção pelos povos latinos. Ao afirmar e reiterar a imprecisão da terminologia, o citado autor prefere utilizar-se da expressão direito à privacidade, como em um sentido amplo e genérico, de modo a abranger todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, relacionadas pela Constituição Federal. Para ele, privacidade consiste no "conjunto de informações acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições sem a isso poder ser legalmente sujeito" (SILVA, 2006, p. 206). De acordo com Luiz Alberto Davi Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2004, p. 56), "a vida social do indivíduo divide-se em duas esferas distintas: a pública e a privada". Entende- se por privacidade os relacionamentos sociais resguardados, que o indivíduo mantém oculto ao público em geral, dentre eles, por exemplo, a vida em família. Em outras palavras, consideram- se as relações confidenciais como conteúdo dessa esfera privada. Entretanto, os referidos autores pontuam que pelo fato da privacidade envolver relações interpessoais que se desenvolvem entre pais e filhos, irmãos, namorados, criam-se possibilidades de violação de direitos entre estas pessoas que convivem em conjunto. Nesse cenário, ganha importância e consideração o conceito de intimidade. Torna-se compreensível, portanto, a diferenciação entre intimidade e privacidade operada pela Constituição Federal (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2004, p. 56). Em síntese, a conclusão que se pode extrair da interpretação do dispositivo constitucional é que a vida social dos indivíduos, na verdade, não se limita a somente duas esferas, pública e privada, haja vista que, nesta última, opera-se uma subdivisão da qual resultam a intimidade e a privacidade propriamente dita. O que se quer dizer é que a constatação de um campo próprio à intimidade importa a subdivisão da esfera atinente à privacidade. Por sua vez, René Ariel Dotti (1980, p. 69) entende a intimidade como "a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais", definição interessante e não muito distante do que propugna Adriano de Cupis (1969, p. 115), que declara ser a intimidade (riservatezza) "o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma". Incontestável, no entanto, que essa necessidade de interpretação mais restrita não evita a proteção constitucional contra agressões desarrazoadas, desproporcionais e sem qualquer relação com a atividade profissional. LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA  Quando se defende a superação daquele antigo conceito de liberdade de imprensa, o que se quer dizer é que a liberdade de informação jornalística, consagrada na Contituição Federal, não mais se limita tão somente à publicação de veículo impresso. A informação jornalística engloba, ressalta-se, qualquer forma de propagação de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo de divulgação social. Essa liberdade configura não somente um direito fundamental do dono de empresa ou do jornalista de realizar essa atividade, mas também, e acima de tudo, um dever de informar ao público os acontecimentos e ideias de forma objetiva, condizente com a verdade e imparcial, sem modificar a verdade dos fatos ou destituí-los de seu sentido original. Como argumenta Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 45), cabe à imprensa "a função de investigar, noticiar, denunciar e fiscalizar, desempenhando um papel de suma importância para o regime democrático; é da carta de princípios da Inter American Press Association a seguinte frase: "sem liberdade de imprensa não há democracia.". José Afonso da Silva (2006, p. 247) entende com razão que a imprensa, de um modo geral, constitui um poderoso instrumento de formação da opinião pública, mormente com o desenvolvimento de satélites e outras tecnologias capazes de transmitir notícias, ideias, informações e doutrinas, e que, justamente em virtude desses fatores, deve-se considerar a ideia de que a imprensa exercita uma função social. Essa função social, por assim dizer, consiste no ato de expor às autoridades públicas o pensamento e a vontade do povo e de também compor defesa contra excessos de poder, oferecendo para tanto um robusto controle sobre a atividade político-administrativa. Considerada primeira e primária, a liberdade de expressão, da qual decorre a liberdade de informação jornalística, consiste no direito de livre divulgação do pensamento, de não ser impedido de se exprimir. A liberdade de expressão do pensamento, tomada, assim, como direito da personalidade, é de relevância para a concretização do princípio da dignidade humana. A liberdade de expressão, sob essa nova dimensão, adquire um caráter duplo: sendo uma vertente relacionada à esfera individual, pessoal, como a liberdade de exprimir seu ponto de vista; e outra, fundada nas relações sociais, no interesse público. Nesse exato ponto, conciliam-se a liberdade de expressão e a liberdade de informação jornalística. Considerando-se que a imposição de limites à liberdade de informação jornalística converge com a definição de que os direitos fundamentais não são absolutos, é necessário, que o exercício desses direitos se processe de forma harmoniosa e equilibrada, não se excluindo, portanto, a possibilidade de supressão de determinada norma constitucional, quando instaurado conflito entre normas constitucionais, em detrimento de outra. Observa Anderson Schreiber (2012, p. 247) que ao adotar a técnica da ponderação, que confia ao Poder Judiciário a seleção de interesses a serem protegidos, outros instrumentos podem ser utilizados para desencorajar "demandas frívolas" no sistema jurídico: o desenvolvimento de formas não monetárias de reparação desempenha um papel importante, amenizando a contradição da responsabilidade civil contemporânea, que reconhece o dano extrapatrimonial, mas oferece apenas uma solução monetária; recursos como retratações públicas e outras formas de reparação não pecuniária são necessários e muitas vezes mais eficazes na reparação de danos morais; repressão à litigância de má-fé e a rejeição do caráter punitivo das reparações são mecanismos adicionais para desencorajar demandas com motivações mercenárias. É preciso investigar, desse modo, quais as potencialidades que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta para solucionar esses conflitos. COLISÃO ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS Essa situação de conflito que não raro se estabelece entre normas é decorrência direta da própria carga valorativa inserida na Constituição Federal, que, por sua vez, incorporou os diversos interesses das diversas classes componentes de tal sociedade pluralista. Ocorre, que esses direitos, posto representarem as vontades políticas de classes antagônicas, acabam por não se harmonizarem em inúmeros momentos. Dessa pluralidade de concepções surge um duradouro estado de tensão entre normas constitucionais. Existem na Constituição Federal normas de caráter principiológico, em outras palavras, normas-princípios ou simplesmente princípios, com maior teor de abstração e com finalidade destacada dentro do sistema, e que podem, com assustadora frequência, colidir com outras normas, ou princípios, de idêntica natureza. É a situação que ocorre entre a liberdade de expressão ou do direito à informação e o direito à intimidade, tema deste texto. Considerando-se a elaboração clássica de Hans Kelsen (1991, p. 18), tem-se o ordenamento jurídico como um sistema hierarquizado de normas, que possuem diferentes valores entre si, e no qual se escalonam, formando um todo, um conjunto harmônico. Essas normas são funcionalmente interdependentes umas das outras, de modo que para que uma norma seja classificada como válida e aceita é imprescindível que sua validade seja solidamente alicerçada em norma superior. Em razão do modo hierarquizado como se escalonam as normas, e considerando-se que estas são princípios jurídicos, conclui-se, pela existência de hierarquia entre princípios. Este caráter hierárquico se demonstra com muita facilidade quando se consideram princípios constitucionais e princípios infraconstitucionais. Naturalmente, não há que se duvidar da superioridade hierárquica daqueles em face destes últimos. Reitera-se, portanto, que os princípios constitucionais constituem o fundamento de validade dos princípios infraconstitucionais (BARROSO, 1998, p. 141). Entretanto, a questão não é de todo simples e se complica demasiadamente em se tratando de conflitos entre princípios constitucionais, ou seja, de igual nível hierárquico. Não é crível nem razoável afirmar, utilizando-se de um critério axiológico, por exemplo, pela existência de hierarquia entre princípios constitucionais. Todavia, desconsiderando-se o critério axiológico em benefício de uma outra ótica jurídica, não há que se falar na existência de hierarquia entre princípios constitucionais. Todas as normas constitucionais possuem idêntico valor, motivo pelo qual não há, como assevera Canotilho (1998, p. 47), normas constitucionais meramente formais, tão pouco hierarquia de supra ou infra ordenação dentro do texto constitucional. Diante da inexistência de hierarquia entre normas constitucionais, surge a dúvida acerca de qual seria o melhor método para solucionar a situação de colisão entre normas constitucionais, no caso deste texto, a liberdade de comunicação ou de imprensa e o direito individual à intimidade. Possível citar, a princípio, prática normalmente exercida, qual seja, a interpretação valorativa de ambas as normas em colisão, procedendo-se, na sequência, à escolha daquela que, no caso concreto, seria a de maior relevância e significação. Para o deslinde da questão, algumas soluções foram elaboradas pela doutrina estrangeira, entre elas a concordância prática e a dimensão de peso ou importância, e que vêm sendo frequentemente utilizadas pelos Tribunais. Em ambas as soluções propostas figura o princípio da proporcionalidade como "meta-princípio" ou "princípio dos princípios", o qual visa resguardar a integridade dos princípios constitucionais em questão. A doutrina, que tem predileção pela concordância prática em detrimento da dimensão de peso e importância, sugere seja aplicada primeiramente a concordância prática, e, em seguida, não se obtendo os resultados esperados com a medida, experimenta-se a dimensão de peso e importância como solução para o confronto das normas constitucionais em questão, sacrificando-se, o mínimo possível, o princípio de "menor peso". Consequência lógica do princípio da unidade constitucional, o princípio da concordância prática ou da harmonização é uma hábil e eficiente ferramenta a ser utilizada em se tratando de colisão de direitos fundamentais. Antes de se adentrar no contexto do princípio da harmonização, contudo, importa breve, mas contundente definição do princípio da Unidade Constitucional. De forma resumida, o princípio da unidade constitucional disciplina que o Direito Constitucional seja interpretado de uma forma tal que se possa afastar contradições (antinomias e antagonismos) entre suas normas, e principalmente entre seus princípios jurídico-políticos. O princípio da Unidade obriga o intérprete a compreender a Constituição em sua totalidade, procurando atenuar as constantes tensões entre as normas constitucionais. Por esse motivo é que se diz que as normas constitucionais devem ser consideradas como preceitos num sistema unitário, e não como normas isoladas e dispersas (BARROSO, 1998, p. 147). Realizada a observação necessária acerca do princípio da Unidade Constitucional, dá-se prosseguimento ao trabalho com o estudo do princípio da concordância prática ou da harmonização. Com base nesse princípio, concebido por Konrad Hesse (1992, p. 49-50), deve- se buscar a harmonização dos direitos fundamentais, quando em confronto, por intermédio de um juízo de ponderação mediante o qual sejam preservados e concretizados os direitos constitucionais em jogo. A concordância prática, em outras palavras, pode ser compreendida como um princípio tendente a solucionar uma situação de colisão entre normas de hierarquia constitucional mediante a otimização desses direitos fundamentais em confronto. Isto importa dizer que a concordância prática procura equilibrar da forma mais sustentável possível as normas colidentes. Não se trata, porém, de um procedimento que visa estabelecer uma prevalência absoluta de uma norma sobre outra. Procura-se, na verdade, tornar compatíveis as normas, ainda que, no caso concreto, seja preciso a redução de uma das normas em detrimento da outra. O princípio da harmonização ou da concordância prática constitui, assim, uma alternativa para o magistrado para que, frente a uma ocasião na qual duas normas constitucionais estejam em rota de colisão, adote uma posição que possibilite a realização de ambos os direitos em questão sem, no entanto, negá-los. A concordância prática foi utilizada em um caso muito polêmico ocorrido na Alemanha, no qual um homem foi preso por ter sido acusado de crimes de grande repercussão social. Este homem, ciente que a imprensa tencionava divulgar amplamente a matéria, ingressou com uma ação em juízo pretendendo obstar a imprensa, alegando que a publicação ampla do caso iria ferir o seu direito à intimidade, de modo que, após tornado público o fato, não poderia jamais ter uma vida normal, caso fosse inocentado das acusações. Em uma situação de colisão entre o direito à intimidade e a liberdade de expressão, a Justiça Alemã, utilizando-se da concordância prática, decidiu que os veículos de notícias poderiam sim divulgar o fato, posto ser de interesse nacional, no entanto, não poderiam mencionar o nome completo do acusado tão pouco publicar foto de seu rosto, conciliando os dois princípios em jogo. O segundo instrumento que pode ser utilizado, na hipótese de a concordância prática não proporcionar os efeitos esperados, é o princípio da dimensão de peso e importância (dimension of weights), que foi idealizado por Ronald Dworkin (2002, p. 45). Segundo o professor da Universidade de Oxford, as regras jurídicas são aplicadas por completo ou não são de modo absoluto, aplicadas (dimensão do tudo ou nada). Dworkin (2002, p. 45-50) ressalta ainda que os princípios dispõem de uma característica que não é própria das regras jurídicas, qual seja a dimensão de peso ou importância. Nesse compasso, quando do combate entre vários princípios, cabe ao intérprete considerar o peso e a importância de cada um dos que estiverem em jogo para saber qual deles prevalecerá. Demonstrando a seriedade do estabelecimento da ponderação, Luís Roberto Barroso (2009, p. 334) compara a subsunção - incidência direta da norma - a um quadro geométrico com três cores distintas e bem nítidas. A ponderação, por outro lado, usando essa metáfora, será uma pintura moderna, "com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que as outras, mas formando uma unidade estética". Contudo, o ministro faz um alerta bem-humorado: "a ponderação malfeita pode ser tão ruim quanto algumas peças de arte moderna." Assim, a legitimidade da interpretação, informada pelo princípio da proporcionalidade, será preservada na medida em que se realize a harmonização. A especificidade, conteúdo e alcance próprios de cada princípio não demandam o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes reclamam a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima efetividade de todos eles. Em face de conflito entre normas constitucionais, não se fala em antinomia. Deve-se procurar a conciliação, a harmonização entre eles, objetivando-se uma situação final de equilíbrio entre as normas colidentes. É o que se chama de concordância prática, teoria formulada por Konrad Hesse (1992, p. 49-50). Por outro lado, não se obtendo os efeitos esperados, o conflito há de ser resolvido com o prevalecimento de um princípio sobre o outro, técnicas de Dworkin (2002, p. 45) e Alexy (2008, p. 96), considerando-se o peso e a importância de cada um no caso concreto. Corrobora, Anderson Schreiber (2012, p. 162), em não havendo regra de prevalência, ou não sendo possível sua aplicação ou adequação, caberá ao Poder Judiciário o mister de ponderar os interesses conflitantes e diante da situação concreta e à luz do ordenamento jurídico definir a relação de prevalência daqueles interesses. Portanto, em ambos os casos, o princípio da proporcionalidade deve figurar como meta, como princípio norteador na resolução do conflito. CONSIDERAÇÕES FINAIS A complexidade de preservar na seara privada assuntos e ações de trato íntimo se revela cada vez mais uma árdua tarefa para aqueles que detêm visibilidade ou dimensão pública. A essa dificuldade alia-se o direito a liberdade de informação. Por outro lado, tem-se a vida privada, a intimidade e a imagem das pessoas, sejam elas públicas ou não, cumprindo alguns dos direitos basilares do princípio da dignidade humana. O direito individual à intimidade e a liberdade de imprensa ou de informação jornalística, quando confrontados, revelam a dificuldade do operador do direito em encontrar possibilidades em limitar este em detrimento daquele. Essa limitação só se manifesta como viável em virtude da relatividade dos direitos fundamentais. Reitera-se, portanto, que muitas serão as hipóteses de confronto nas quais se estabelecerá a imperiosidade de relativizar direito ou alguns direitos que compõe o rol constante do artigo 5º da Constituição Federal. Para isso, o importante são desenvolver parâmetros para se ter uma segurança jurídica, de modo que é evidente que sempre haverá colisão entre direitos de igual hierarquia, sobretudo, no confronto entre privacidade e informação, situações que sempre nos convida a uma colisão entre direitos fundamentais. A contribuição deste estudo foi apresentar saídas para esse conflito por intermédio de parâmetros: a harmonização, objetivando-se uma situação de equilíbrio entre as normas colidentes (concordância prática) e a técnica de ponderação. Desse modo, colabora-se para o diálogo entre judiciário e academia, no sentindo de construir critérios que propiciem seguridade, uniformidade e igualdade no tratamento dessas questões. Porque casos concretos paralelos com tratamento diferente não só ferem a segurança jurídica, mas, sobretudo, a isonomia, a ideia da necessidade de ser dado tratamento igual a pessoa substancialmente em situações iguais. _____________ ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BASTOS, Celso Ribeiro. Os limites à liberdade de expressão na constituição da república. Rio de Janeiro: Revista Forense, ano 96, v. 349, p. 43-51, jan.- fev.-mar. 2000. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. CUPIS, Adriano de. Riservatezza e segretto (Diritto a). Novissimo Digesto Italiano. Torino: UTET, 1969. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 1980. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1990. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. _____________ *Daniel Marinho Corrêa é Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC, professor universitário, servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mediador judicial. Doutorando e Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Extensão em "Justice", curso de estudo oferecido pela HarvardX, iniciativa on-line da Harvard University. Bacharel em Direito pela UEL, pós-graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e especialista em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio. Autor de obras jurídicas e colaborador em projetos de pesquisa da UEL. 
1- Introdução: o que envolve atualmente o conceito de responsabilidade civil? As tradições de common law e civil law legaram ao instituto da responsabilidade civil traços estruturais distintos. Sob a perspectiva de common law, as hipóteses ocasionadoras de indenização foram sendo construídas de modo tópico, case-by-case, enquanto os países de tradição de civil law consolidam a visão de sistema, conceituando o ato ilícito e seus requisitos e o dano. O direito inglês e norte-americano buscaram a abordagem dos torts. São inúmeras as modalidades de torts, vinculados ao direito à honra, reputação, saúde mental, descumprimento contratual, privacidade, dever de cuidado, dentre outros.1 Já o direito francês, por exemplo, adotou uma lógica de universalidade, portanto, instituindo uma cláusula geral de responsabilidade em que se conseguiu enquadrar praticamente todos os torts.2 Merece registro a posição intermediária da Alemanha que optou por cláusulas de responsabilidade associadas a determinadas hipóteses legais previstas.3 A breve contextualização metodológica entre common law e civil law foi realizada com o propósito de se convergir com o termo liability, ou seja, a responsabilidade civil se restringia sob essas lógicas a se atestar a presença do nexo causal entre conduta e dano, resultando na imputação de uma reparação. Todavia, como afirma Nelson Rosenvald, "a liability não é o epicentro da responsabilidade civil, mas apenas a sua epiderme."4 A liability está associada ao dano, eclodindo a responsabilidade após esse evento e culmina como consequência em prol do reequilíbrio patrimonial. Essa configuração monolítica da responsabilidade não tem mais espaço na sociedade multifacetada em que se vive.  O palco da democracia e a ênfase à proteção dos direitos humanos, fundamentais e sociais clamam por outros papeis do instituto da responsabilidade. Emergem, nesse sentido, aspectos morais e novamente com Nelson Rosenvald, o termo responsibility  "é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro." Responsibility está centrada no necessário olhar prospectivo, ultrapassando a mera função indenizatória de viés retrospectivo, por isso, marcha rumo às funções preventiva e precaucional, afirmando-se a responsabilidade sem dano ou antecipando-se a ele. Parte-se da premissa que prevenção não se confunde com precaução e se embasa na doutrina de Thaís Pascoaloto Venturi, para quem a distinção "reside, fundamentalmente, no grau de possibilidade da efetiva ocorrência das consequências lesivas decorrentes da hipótese cujo risco se busca calcular."5 A prevenção se assenta nos riscos concretos e a precaução nos riscos abstratos.6 A pluralidade que permeia o conceito de responsabilidade civil resta alicerçada sob o campo dos papeis que ela deve desempenhar concomitantemente para que atinja um nível de transparência, informação e justificação em favor da sociedade. O binômio liability - responsability se agrega aos de accountability e answerability. A abertura para o exercício dessas atribuições, por meio das funções compensatória, preventiva, precaucional, punitiva e restitutória, vai ao encontro de uma sociedade que demanda respostas íntegras, resultados otimizados e condutas efetivas quanto aos conflitos de interesses apresentados, especialmente no campo da tutela coletiva e estrutural. 2- O PL 1641/21: ação coletiva e estrutural e as múltiplas funções da responsabilidade civil O PL 1641/21, em homenagem à jurista Ada Pellegrini Grinover, foi elaborado por meio de comissão de integrantes do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), cujo intento primordial residiu em colaborar com os Projetos de Lei 4441/20 e 4778/20 que já estavam em andamento na Câmara dos Deputados. Todos convergem para o aperfeiçoamento da ação coletiva - ação civil pública. Uma proposição legislativa desse quilate que abrange todo o sistema de tutela coletiva jamais poderia deixar de espelhar o caudal funcional do instituto da responsabilidade civil e, ainda mais que o processo deve estar voltado com o seu aporte de técnicas no direcionamento da realização do direito material. Como afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero, "o direito processual viabiliza - em termos de efetividade - a própria existência do direito material."7 A necessária simbiose entre o direito material e o processual expressa a accountability na sua vertente ex post, como leciona Nelson Rosenvald, pois ela "atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados."8 A tutela coletiva e atualmente as demandas estruturais não poderiam apenas exteriorizar uma mera reparação, indenização, fruto de liability. O PL 1641/21, em seu art. 2º, densifica o estatuto axiológico do panorama da tutela coletiva e, ao catalogar os princípios, solidifica essa interdependência entre a multifuncionalidade da responsabilidade civil e os caminhos judiciais ou extrajudiciais das ações coletivas e estruturais. Os núcleos da precaução, prevenção, reparação integral de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos; responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas9 (art. 2º, incisos V e VI) revelam a imperiosa ressignificação dos litígios coletivos e sobretudo estruturais, quanto ao que proporcionam que é o acesso à ordem jurídica justa10, em termos de consequências relativas às medidas empregadas. As tutelas coletiva e estrutural não podem ser estereotipadas sob o "véu" de um viés de responsabilidade, porque são vários os grupos de interesse, graus de postulação e níveis de repercussão. Para a defesa desses múltiplos direitos transindividuais, o processo deve estar na rota de recepção de qualquer espécie de tutela jurisdicional e de procedimentos que assegurem a efetividade da tutela11, compreendendo-se as 5 (cinco) funções da responsabilidade civil. À guisa de ilustração, questões de regularização fundiária, possessórias coletivas, desastres ambientais, direito à saúde, educação, trabalho escravo e degradante são algumas situações que não podem ser simplesmente resolvidas com pedido meramente indenizatório. Via de regra são problemas estruturais com diversos enfoques, soluções e que somente podem alcançar uma recomposição institucional se tiverem a pauta de tutelas que inibam a prática, reiteração ou continuação de um ilícito, ou seja, fundamental a remoção e, além disso, pena civil, indenização e outras modalidades de pedidos. Destaca-se, inclusive, o disgorgement como forma de restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente que visa uma reparação integral nesses litígios estruturais, e também uma eficácia preventiva, porque vai desestimular a prática ou a reiteração de tais infrações, seja por parte do agente, seja por parte dos players do segmento econômico. O leitor pode indagar-se que as reflexões feitas repousam sobre um projeto de lei que pode não ser convertido em lei e, com isso, a tutela coletiva permaneceria na sua zona de conforto tradicional sem considerar essas multifuncionalidades da responsabilidade civil. A metodologia a ser empregada nos processos coletivos e estruturais é a da visão do todo, portanto de um sistema em que as unidades que compõem esse universo dialogam e as lacunas vão sendo colmatadas, não importando se são leis gerais ou especiais. O Código Civil traduz os núcleos obrigacionais, responsabilidades, instituto do enriquecimento sem causa e o Código de Processo Civil com o amplo campo de técnicas se projeta a serviço do direito substancial. Não se tem mais espaço para déficits interpretativos, quando se trata de direitos fundamentais, sociais e humanos. Em decisão paradigmática assentada em interpretação sistemática, o Tribunal de Contas da União12 decidiu sobre a aplicação do disgorgement e entendeu que a restituição dos lucros ilegítimos tem fundamentação no principio da vedação do enriquecimento sem causa (art. 884 CC); ninguém pode beneficiar-se da sua própria torpeza (arts. 5º e 276 CPC); e efeitos retrooperantes da declaração de nulidade (arts. 59 da lei 8666/93 + 148 e 149 da lei 14133/2021). E imperioso extrair todos os sentidos e alcance do instituto da responsabilidade civil (funções compensatória, preventiva, punitiva, precaucional e restitutória) e se conjugar com o processo dotado de flexibilidade procedimental e que tem como norte a primazia do mérito, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana (arts. 4º e 8º CPC), visto que somente assim se caminhará rumo à perspectiva de mudanças comportamentais por parte dos lesantes e de toda a sociedade nos conflitos coletivos e estruturais. _________________ 1  Tort of libel, tort of slander, infliction of mental distress, inducing a breach of contact, invasion of rigtht of privacy, negligence. In LIMPENS, Jean. Liability for One's Own Act. Torts. In. International Encyclopedia of Comparative Law. Vol. XI. Tübingen: Mohr Siebeck, 1979, pp. 5 e 50 e ss. 2 Article 1240 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer (Todo ato do ser humano que causar dano a outrem, obriga aquela pessoa que incorreu em falta (culpa) a reparar o dano) (trad. livre). Acesso em 09 de maio de 2023. https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000006070721/LEGISCTA000032021486/#LEGISCTA000032021486 3 As posições do direito inglês, americano, francês e alemão foram alvo de análise, entre outros autores por MATTIACCI, Giuseppe Dari. Tort Law and Economics. Chapter 2. P. 01-44. Working paper Utrecht University, Institute of Economics, 2003. Acesso em 09 de maio de 2023  https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abid=347801 4 Funções da reponsabilidade civil. 4. ed. SP: Saraiva, 2022. Passim. 5 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva. SP: Malheiros, 2014. P. 250. 6 VENTURI, Thaís. Idem. p. 254 e ss. 7 Curso de Processo Civil. 6. ed. SP: RT, 2021. p. 29. 8 Curso de Processo Civil. passim. 9 Instituto do Disgorgement. Cf. ROSENVALD, Nelson. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/334280/o-disgorgement-nas-relacoes-contratuais-pelas-lentes-do-common-law. Acesso em 08 de maio de 2023. 10 WATANABE, Kazuo. Acesso a ordem jurídica justa. BH: Del Rey, 2019. 11 Art. 5º PL 1641/2021 12 Acórdão 1.842/2022 - Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia, j. 10/08/2022. _________________ *Gisele Fernandes Góes é Doutora (PUC-SP), Mestra (UFPA) e Professora de Direito Processual Civil (UFPA). Procuradora Regional do Trabalho 8ª Região.
Siempre imaginé que el paraíso era una especie de librería (Jorge Luis Borges).  1. Contextualização da discussão: O dano entre contratantes é necessariamente contratual? Doutrina e jurisprudência estabelecem frutífero debate sobre os requisitos para atribuição do dever de reparar1, assim como sobre os regimes jurídicos aplicáveis, com relevantes impactos. Entre as instigantes discussões, a distinção entre as chamadas "responsabilidade negocial" e "responsabilidade extracontratual" costuma ser associada aos seguintes aspectos: a-) ônus da prova; b-) exigência da culpa; c-) termo inicial para reparação; d-) possibilidade de contratar limitação ao dano ou ao dever de reparar; e-) prazo prescricional; f-) nexo de atribuição e solidariedade; e, por fim, g-) relevância da capacidade civil. Sob uma perspectiva crítica, é possível assinalar que o direito brasileiro não oferece uma distinção nítida entre responsabilidade negocial e não negocial, ao mesmo tempo em que a legislação, aparentemente, procurou diferenciar seus efeitos. Nessa linha, a distinção destes regimes, embora encontre grande eco na literatura jurídica, é objeto de relevante divergência, que desafia sua importância, utilidade e mesmo seu sentido2. Pontes de Miranda já assinalava: "É possível, portanto, esperar-se que se apaguem as distinções entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade negocial, de modo que se crie, por sobre elas, mais solidamente, outro sistema, unitário, de reparação fundada na culpa ou em equilíbrio material de posições jurídicas"3. Na fase atual dos debates, a classificação responsabilidade civil negocial e não negocial nem está superada por completo, nem está imune a inúmeras e duras críticas4, e até mesmo a propostas de outros regimes, como uma terceira modalidade, fundada na confiança5. Exemplar desta saudável discussão é a consagração do Enunciado n. 419 das Jornadas de Direito Civil da CJF, que estabelece: "O prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual". Esta linha interpretativa denota clara aproximação entre os regimes - e quiçá a superação de sua distinção, o que se repete no âmbito das relações de consumo6, por meio de institutos jurídicos como o abuso do direito e mecanismos de atribuição de responsabilidade, em consonância a uma ótica que "abala as estruturas da divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual"7. Até aqui, procurou-se, em poucas linhas, expor as divergências entre a distinção - ou mesmo a aproximação - entre os regimes da responsabilidade negocial e extranegocial.8 Este estudo não aprofundará este interessante debate. O escopo deste texto é mais singelo, busca-se refletir sobre os critérios para estabelecer a natureza da responsabilidade, vale dizer, negocial ou não, e principalmente sobre seus problemas.  2. A existência de relação contratual não é critério suficiente Desde logo, é preciso apontar que o critério distintivo não é a existência de um contrato. Não basta observar se a discussão envolve partes contratantes para extrair a conclusão de que a natureza da responsabilidade em caso de danos seja contratual. Igualmente, a recíproca também não pode ser tida como verdadeira. Eis o problema. É possível estabelecer uma grande lista de situações que não se encaixam na distinção entre o regime de reparação negocial e não negocial9, ou que trazem certo desconforto. Assim, nas relações de consumo, há acentuada preocupação com "grande número de pessoas que 'gravitavam' ao redor dos contratos e relações de consumo, sendo afetadas por eles, sem terem até há pouco status contratual ou vínculo obrigacional que as pudesse proteger"10. Dessa maneira, há o que se tem designado eficácia obrigacional transubjetiva. Em instigante caso, o TJSP considerou que a reparação do dano decorrente de explosão ocorrida em shopping de Osasco submete-se ao regime da responsabilidade extracontratual. Ao manter a compreensão do acórdão, o STJ sinalizou: "MARINHA estava frequentando o shopping para realizar compras. Não havia, portanto, uma relação contratual direta entre ela e aquela sociedade jurídica, não sendo possível afirmar, de outra parte, que os danos sofridos tenham decorrido de um descumprimento das obrigações reciprocamente estabelecidas. Assim, no caso dos autos, não há como ser afastada a responsabilidade extracontratual".11 Os danos associados à ruptura injustificada das negociações, tratados sob o "guarda-chuva" da responsabilidade pré-contratual12, embora sejam usualmente conectados com o descumprimento de deveres contratuais, como defende Antônio Junqueira de Azevedo13, para parte da doutrina estão vinculados à responsabilidade extranegocial, como propõe Vera Jacob Fradeira14. Conforme se pode notar, "a imputação do dever de indenizar em razão de fatos ocorridos em períodos que antecedem a constituição da relação obrigacional - por meio da chamada culpa in contrahendo, segundo expressão tributável a Jhering -, aparece como um dos primeiros sinais de insuficiência da clássica diferenciação entre a responsabilidade civil contratual e extra-contratual"15.   Na outra ponta, a responsabilidade após o fim do contrato, tutelada frequentemente por meio da pós-eficácia obrigacional, pode envolver a proteção com base em elementos não contratuais ou negociais. Ilustrativamente, a contratação de disposições sobre não concorrência, sinaliza um vínculo negocial; enquanto no caso do trespasse, independentemente de previsão contratual a habilitando, o Código Civil presume sua vedação (art. 1.147) - em um regime de opt out. Por sua vez, o uso indevido da imagem de um funcionário após seu desligamento, sem que haja contratação a respeito, constitui ilícito absoluto. Neste último caso, não há nenhum dever contratual violado, e a abstenção do uso do nome e/ou da imagem não tem como fundamento específico a relação contratual pretérita. Alguns exemplos sobre o caráter nebuloso da incidência da responsabilidade negocial ou extranegocial ajudam a percepção sobre como o sistema jurídico é contra intuitivo: (a) O atropelamento de duas pessoas na via férrea, uma pela queda durante o transporte, outra que caminhava próxima se desdobra, à luz da leitura tradicional, em sistemáticas distintas de reparação por danos. Em outras palavras, sob a ótica da jurisprudência: "A responsabilidade civil por danos causados por acidente ferroviário é, em regra, contratual quando o evento esteja relacionado com contrato de transporte previamente celebrado com a empresa responsável pela ferrovia, sendo extracontratual nas demais hipóteses em que não exista prévio vínculo contratual"16. Na esfera do direito laboral (b), considera-se que o dano existencial se relaciona à responsabilidade extranegocial, eis que não fundado na violação do contrato de trabalho.17 Assim também nos casos de morte do empregado. Na compreensão do STJ, "nos casos de reparação por danos morais reivindicada por familiares de vítima fatal de acidente, os juros de mora devem incidir a partir do evento danoso, nos termos da Súmula n. 54/STJ, porquanto se trata de responsabilidade extracontratual, não obstante a relação originária entre o de cujus e o causador do dano ser contratual"18. De modo próximo, (c) no âmbito do direito à saúde, colhe-se na jurisprudência do STJ diversos precedentes que consideram que "A responsabilidade civil por erro médico, na hipótese em que ocorre a morte da vítima e a reparação por danos morais é pleiteada pelos respectivos familiares, possui natureza extracontratual e, portanto, o termo inicial dos juros de mora é a data do evento danoso".19 Por outro lado, (d) a figura do terceiro cúmplice também desafia os limites da própria noção de inadimplemento contratual e de partes da relação, o que torna mais sofisticado o exame da natureza da responsabilidade civil nestas situações. Vistos pelo raciocínio indutivo, típico da tópica20, se por um lado nos casos em que falta assinatura em um contrato a inclinação para a responsabilidade extracontratual seja mais fácil de admitir, como lidar quando há nulidade na formação do negócio jurídico? Tome-se como referência recente acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais21, em que se discuta a contratação por uma pessoa analfabeta, sem a obediência às formalidades legais. O julgamento concluiu pela invalidez do contrato, e pela contagem dos juros moratórios dos danos constatados, na forma da Súmula n. 54 do STJ, a qual, como se sabe, estabelece que "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual".   Esse último exemplo busca ressaltar a falsa simplicidade em identificar uma relação negocial como elemento suficiente para definir o regime jurídico no direito de danos. Neste caso, o critério proposto por Tepedino, Terra e Cruz22 parece útil para entender a solução adotada pelo tribunal mineiro, na medida em que a diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual se funda, na leitura dos autores, não em observar qual o dever descumprido, mas ter em conta se existe uma relação contratual válida, cuja violação independe de afronta a um dever legal ou contratado. Como se pode observar, nem haver relação contatual é suficiente para definir que há responsabilidade negocial, nem a ausência de um contrato (celebrado ou negociado), é bastante para afastar esta modalidade. 3. Desdobramentos das discussões, os desafios estão postos O acolhimento pela jurisprudência da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial, da qual é um grande exemplo o enunciado da Súmula n. 54 do STJ, não pode ocultar os possíveis entrelaçamentos entre o direito de danos e a esfera contratual. Analogamente, o esmaecer da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial não pode esconder o acolhimento, habitual, de sua distinção na jurisprudência.   Para Catalan, o critério da culpa como distintivo dos regimes não faz sentido, e a diferenciação baseada no regime probatório mostra-se igualmente insuficiente e precária para legitimar uma classificação estrutural23. Aliás, o novo formato de ônus probatório estabelecido pelo CPC parece oferece mais um argumento em seu favor. Na prática, o que se observa na flexibilização24 ou aproximação de regimes, é uma clara insuficiência da compreensão atual, o que sugere a necessidade de repensar o tema de forma ampla, não apenas no momento de "enquadrar" as situações jurídicas, mas igualmente ao avaliar as respectivas consequências. Tais discussões exigem especial atenção diante dos efeitos de descumprimento de contratos que afetam terceiros, como no falecimento de um paciente, ou na hipotética falha na auditoria de uma grande empresa causando prejuízos aos seus acionistas minoritários25. Igualmente, cabe cogitar quais as consequências das situações disciplinadas pelo regime negocial sem que a parte seja propriamente um celebrante do contrato, ou mesmo um contratante, com inúmeros exemplos no âmbito das relações consumeristas. Sob outra perspectiva, é preciso recordar que os instrumentos contratuais podem ser empregados para alocação de riscos26 (e.g. Código Civil, arts. 49-A, parágrafo único e 421-A, inc. II), e estabelecer regimes diferenciados também em caso de descumprimento e mesmo danos. Dessa forma, no campo contratual, há possibilidade de definir-se disposições sobre a conduta das partes, sobre os efeitos da frustação de comportamentos esperados e mesmo em relação aos danos. Assim, apenas para lembrar alguns, é possível adotar mecanismos de garantia, estipulação de penalidades (e.g. por meio de multa); definir consequências pelo arrependimento (e.g. por meio das arras), pré-liquidação de danos (e.g. por meio de cláusula penal reparatória), entre tantas outras consequências práticas. A própria circunstância de que deveres contratuais não nascem apenas da vontade das partes, nem as partes podem limitá-los de forma irrestrita, torna problemático riscar uma fronteira entre as modalidades de responsabilidade civil27. Acrescente-se ainda a hipótese de que as partes contratem regras que reforçam o cumprimento de deveres já estabelecidos na legislação. Para retomar a frase da epígrafe, ainda temos muito o que cultivar neste tema. Em resposta ao questionamento central, se admitida a distinção entre os regimes, é possível que entre partes que em algum momento contrataram - ou são contratantes - haja danos submetidos ao regime extracontratual28, porém, como procurou-se se expor ao longo deste texto, essa resposta oferece mais problemas do que soluções. A possibilidade de haver danos decorrentes de violação contratual e da lei, de forma simultânea, enfraquece ainda mais a distinção de regimes, como neste exemplo: "Os apelantes assumiram a obrigação de não concorrer com os apelados na distribuição e venda mercantil de produtos da marca X na Região do Distrito Federal, mas descumpriram tal obrigação, incorrendo em descumprimento contratual e concorrência desleal que impõe a correspondente reparação pelos lucros cessantes amargados"29. Como se verifica, a responsabilidade negocial e não negocial, longe de serem ilhas, se não merecerem a unificação de regimes, estão ligadas por uma ponte cada vez mais robusta. Essas fronteiras borradas entre dois regimes frequentemente apresentados como bastante distintos estão associadas a várias circunstâncias, entre os quais: (a-) a possibilidade de danos, entre partes contratantes, sem relação direta com o contrato; (b-) a produção de efeitos anteriores à celebração do contrato no curso das negociações preliminares; (c-) a hipótese de danos após o cumprimento do objeto principal do contrato; (d) a eficácia da boa-fé, a qual impõe deveres independentemente da vontade das partes; (e-) a aplicação de deveres decorrentes da boa-fé como o duty to mitigate the loss pode apresentar distinções em matéria de responsabilidade negocial e não negocial; (f-) a possibilidade de as partes contratantes acordarem sobre certos efeitos em matéria de danos; (g-) a hipótese de danos decorrentes de violação contratual e legislativa ao mesmo tempo; bem como analogamente; (h-) a violação de contrato por força de violação de um dever legal. Sem enfrentar-se tais questões, permaneceremos em preocupante penumbra. ____________ 1 LÔBO, Paulo. Em busca do pressuposto comum das classes de responsabilidade civil. Portal Migalhas. 15.06.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/388213/em-busca-do-pressuposto-comum-das-classes-de-responsabilidade-civil 2 EHRHARDT JR., Marcos. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 136. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 275. BECKER, Anelise. Elementos para  uma  teoria  unitária da  responsabilidade  civil. In: NERY JÚNIOR, Nelson;  NERY,  Rosa  Maria  de  Andrade. Responsabilidade  Civil:  Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. CATALAN, Marcos Jorge. A morte da culpa na responsabilidade contratual: 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019. 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Direito das obrigações: fatos ilícitos absolutos, responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 2012, tomo LIII, p. 246. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Obrigações, 9. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 523. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Responsabilidade Contratual e Extracontratual: contrastes e convergências no direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2016 5 FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul.-dez./2012. Disponível em: https://civilistica.com/wp-content/uploads1/2015/02/Fritz-civilistica.com-a.1.n.2.2012-4.pdf. 6 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 116 e 277. 7  MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 279. 8 Para uma análise comparativa entre o direito alemão e brasileiro cf. RAMOS, André Luiz Arnt. Responsabilidade por danos e segurança jurídica - Legislação e jurisdição nos contextos alemão e brasileiro. Curitiba: Juruá, 2018. Propõe-se no presente texto tão-somente uma reflexão sobre o direito brasileiro. 9 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 915. 10 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 407. 11 STJ, AgRg no REsp: 1413995, 3ª. Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 31/08/2022. 12 MOTA PINTO, Carlos Alberto. A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos Contratos, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, supl. XIV, Coimbra, 1996. STEINER, Renata Carlos. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 264. 13 "A responsabilidade pré-contratual, resultante de prejuízos causados na primeira fase do processo contratual fase pré-contratual -, embora resulte de ato ilícito, provém de descumprimento de dever específico imposto pela norma da boa-fé; por isso, obedece às regras da responsabilidade contratual, antes que da responsabilidade extracontratual". AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, v. 90, p. 121-132, 1995. 14 FRADERA, Vera Jacob de. Dano pré-contratual: uma análise comparativa a partir de três sistemas jurídicos, o continental europeu, o latino-americano e o americano do norte. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 136, p. 169-179, 1997. 15 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade contratual e extracontratual: primeiras anotações em face do novo Código Civil brasileiro. In: NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 391-401. No mesmo sentido, STEINER, Renata Carlos. Reparação de Danos - Interesse Positivo e Interesse Negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 37. 16 STJ, REsp: 1479864 SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª. Turma, DJe 11/05/2018. 17 TST. RR n. 805-03.2013.5.04.0020, Rel. Min.: Lélio Bentes Corrêa, 1ª Turma, DEJT 02/03/2018. 18 STJ, REsp: 1377130, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. Turma, DJe 10/05/2021. 19 STJ. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.732.556/SP, Rel. Min.: Raul Araújo, 4ª. Turma, DJe de 18/6/2019. No mesmo sentido: STJ, AgInt no AREsp: 875512 MG, Rela. Mina. Maria Isabel Gallotti, 4ª, Turma, DJe 16/10/2018. STJ. REsp n. 1.698.812/RJ, Rela. Mina. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, DJe de 16/3/2018. 20 CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 259. 21 TJMG, AC: 50010403720228130352, Rel: Des. Habib Felippe Jabour, 18ª Câmara Cível, 06/06/2023. 22 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; CRUZ, Gisela Sampaio da. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 23 CATALAN, Marcos Jorge. A morte da culpa na responsabilidade contratual: 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019. 24 MARTINS-COSTA, Judith, Comentários ao novo Código civil. Do inadimplemento das obrigações. v. V, Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 98. 25 VIEIRA, André Guilherme. Americanas: Minoritários querem que PwC seja criminalmente responsabilizada por rombo. Valor Econômico. 20/01/2023. 26 ATIYAH, Patrick S. The Rise and Fall of Freedom of Contract. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 202. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 148. 27 Essa crítica se repete em outros sistemas jurídicos, confira-se: ROBERTSON, Andrew, On the Distinction between Contract and Tort. The Law of Obligations: Connections and Boundaries, Londres: UCL Press/Routledge-Cavendish, 2004, p. 87-109. 28 SIMÃO. José Fernando Simão. Contractual liability and tort liability - Distinctions -Statute of limitations for torts - Good faith -Duty to mitigate the loss (legal opinion). Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2016, v. 8, jul.-set.2016. 29 TJDF, 0708509-11.2017.8.07.0001, Rel. Des. ALFEU MACHADO, 6ª Turma Cível, DJE : 18/03/2021. Sobre o tema: BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de concorrência desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
O Estatuto do Idoso reconhece que a pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos merece proteção especial por ser presumidamente vulnerável, embora não tenha afetada a sua capacidade civil, de modo que envelhecimento e capacidade jurídica são conceitos dissociados e, justamente por isso, o respeito a ambos significa proteção à dignidade do idoso. Não obstante, é fato que, na atual sociedade de consumo, a preservação dessa dignidade, justamente pelo reconhecimento da plena capacidade civil do idoso, aliado à sua presumida hipervulnerabilidade, impõem um cuidado maior na busca de sua proteção integral, quando da análise de suas relações com as instituições financeiras, que têm empregado práticas abusivas e agressivas no fornecimento de crédito, nos moldes previstos no art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, gerando endividamento e até superendividamento, com exclusão social por dívidas de consumo, prevalecendo-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade. Considerando que todo negócio jurídico há que ser analisado a partir, em primeiro lugar, dos seus pressupostos de existência, seus elementos essenciais, depois, dos requisitos de validade e, por fim, da sua capacidade de produção de efeitos ou seus fatores de eficácia, possuindo, assim, três planos: de existência, de validade e de eficácia1, é possível analisar os planos de existência e validade dos contratos de empréstimo que têm sido ofertados aos consumidores idosos, sem qualquer preocupação com sua hipervulnerabilidade, com sua adequada informação e com sua compreensão acerca do negócio que está sendo realizado. Essa análise se mostra necessária na medida em que, nessas práticas de oferta claramente predatória, "as fragilidades desses consumidores hipervulneráveis têm sido indevidamente exploradas pelos fornecedores, que efetivamente desrespeitam sua dignidade humana e os levam ao superendividamento de maneira intencional."2 Tem se tornado voz comum nos tribunais pátrios relato da prática de instituições financeiras que, sem qualquer solicitação prévia do consumidor idoso, depositam quantia em sua conta-corrente, a título de empréstimo, e passam a descontar parcelas em seu benefício previdenciário, ou na própria conta bancária, impondo um mútuo, com pagamento consignado ou não, sem declaração de vontade da outra parte. Nesse ponto, cabe perquirir sobre a existência do contrato. Ora, se o consumidor não declarou a sua vontade no sentido de contratar o mútuo junto à instituição financeira, é inegável que o contrato não existe, pois falta a ele elemento essencial e, portanto, pressuposto do plano de existência, a vontade declarada do agente3. Não obstante, nem sempre a jurisprudência tem assim considerado. Essa prática é expressamente estabelecida como abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor, que dispõe, em seu art. 39, III, ser abusivo o envio ou a entrega ao consumidor, sem solicitação prévia, de qualquer produto, ou o fornecimento de qualquer serviço, estabelecendo como sanção ao fornecedor que assim age a equiparação do produto ou do serviço a amostra grátis, conforme parágrafo único do mesmo dispositivo. Isso decorre justamente do fato de que, para o consumidor, o contrato inexiste, mas o fornecedor deve ser punido pela abusividade de sua conduta, com o perdimento do produto. Conquanto se trate de previsão expressa, sem ressalva, a jurisprudência tem decidido que, quando se trata de fornecimento de dinheiro sem solicitação prévia, o consumidor deve devolver a quantia ao fornecedor, não se aplicando a sanção do art. 39, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, e isso tem fomentado a prática espúria dos fornecedores de crédito. Ocorre que não parecer vingar a alegação de que o uso da quantia importa em aceitação tácita e, portanto, em contratação, na medida em que quaisquer outros produtos ou serviços também serão utilizados se fornecidos sem solicitação e, para eles, o perdimento é aceito sem discussões. A título de exemplo, o TJMG é pacífico em não estender o conceito de amostra grátis à quantia em dinheiro fornecida sem solicitação prévia, entendendo ora "não se tratar de produto ou serviço stricto sensu"4, outras vezes confundindo a questão do fornecimento sem solicitação com empréstimo feito mediante fraude, situações diversas e que merecem tratamento diferenciado, se bem que as fraudes devem ser analisadas com cautela, pois quase sempre são inescusáveis aos bancos. Conquanto todos os demais tribunais pátrios também não estejam aplicando a equiparação do numerário disponibilizado sem solicitação a amostra grátis, o TJSP já decidiu pela equiparação mais de uma vez5, embora tenha várias outras decisões indeferindo esse pedido6, inclusive sob a alegação de que "os valores foram disponibilizados à autora na expectativa de regular contratação."7 No TJRJ, ao seu turno, para afastar a aplicação do art. 39, parágrafo único, já se afirmou que "tem-se, de fato, situação distinta do oferecimento de produto ou serviço, normalmente para difusão da atividade e incremento de clientela, pois é sabido que bancos e congêneres não disponibilizam ativos financeiros com esse fim."8 Se existente, o contrato de concessão de crédito ao consumidor idoso está sujeito a vicissitudes que podem atingir sua validade9, embora a capacidade civil não esteja relacionada à idade avançada da pessoa, não sendo o idoso incapaz. Fato é que, embora plenamente capaz para os atos da vida civil, o idoso é, conforme já afirmado, presumidamente hipervulnerável, estando mais suscetível a ser vítima de algum vício do consentimento ou vício social, chamados no Código Civil de defeitos dos negócios jurídicos. Além disso, o próprio Código de Defesa do Consumidor traz situações especiais de proteção ao consumidor idoso, que podem levar à invalidade do negócio ou de parte de suas cláusulas. Nesse sentido, o art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece como abusiva a prática de "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços", mas não estabelece uma sanção específica para o fornecedor que se utiliza dessa prática, justamente porque a mesma pode ocorrer em momentos diversos da relação, como na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual, demandado solução diversa e adequada a cada momento10. Ao impingir, na dicção legal, a contratação do empréstimo ao consumidor idoso, prevalecendo-se de sua hipervulnerabilidade, a prática abusiva se inicia na oferta e se prolonga à fase de formação do contrato, celebrado a partir de ardis implementados pelo fornecedor, que abusa do direito. Assim, o contrato pode ser inválido, se foi celebrado pelo consumidor a partir de ato doloso do fornecedor, situação bastante provável nessa prática, nos termos do art. 145 do Código Civil, gerando sua anulabilidade. O art. 54-C do Código de Defesa do Consumidor traz práticas vedadas na oferta de crédito e estabelece, em seu inciso IV, a proibição de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio", evidenciando um dever negativo, uma proibição, tratando-se de uma confirmação do que prevê o art. 39, IV, porém específica para concessão de crédito, e sujeitando o contrato a anulabilidade, além de outras sanções, conforme estabelece o parágrafo único do art. 54-D. O dever de informar também ganha contornos mais nítidos quando o consumidor é hipervulnerável em razão da idade, de modo que o art. 54-D, I, do Código de Defesa do Consumidor, prevê o dever de o fornecedor ter um cuidado adequado à idade do consumidor ao prestar a informação sobre contratação de crédito, revelando uma escolha pela atribuição do crédito responsável não apenas aos tomadores, mas também aos seus fornecedores. Nos termos do art. 54-D, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor. A análise do dispositivo legal revela que o descumprimento, pelo fornecedor, dos deveres de informação ao consumidor e, especialmente ao consumidor idoso, pode acarretar a aplicação de outras sanções, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e das possibilidades financeiras do consumidor, que serão analisadas em cada caso concreto, inclusive a atribuição do dever de indenizar. O fornecimento de empréstimos aos consumidores idosos, prática que tem movimentado o mercado de consumo e causado graves problemas de superendividamento, precisa ser, então, repensado à luz dos planos de existência e validade do negócio jurídico, e ir além, com a efetiva aplicação da responsabilidade civil pelos diversos abusos de direito cometidos nesta seara. De fato, o próprio assédio de consumo deve ser caracterizado como dano11, pois viola a boa-fé objetiva, confunde o consumidor, explora seus pontos fracos e, a partir de sua ocorrência, o idoso hipervulnerável tem sua tranquilidade efetivamente violada e muitas vezes contrata sem saber o que está fazendo, sem entender o que está aceitando, assina para se livrar da pressão, cai em situação de superendividamento. A responsabilidade civil na relação de consumo, em especial no consumo de crédito, surgida a partir da violação dos deveres objetivos de cuidado, do descumprimento da boa-fé objetiva e do desrespeito ao contratante hipossuficiente12, seja pelo dano patrimonial ou extrapatrimonial, decorrente do assédio de consumo ou da própria imposição de contrato, é objetiva, de modo que não se perquire a culpa, sendo seus requisitos o evento, o dano e o nexo causal, conforme resta estabelecido no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. E mais, essa responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual, não fazendo diferença alguma, já que a Lei nº 8.078/1990 unificou essa dicotomia, que restou superada, notadamente pela adoção do conceito de consumidor bystander, ou vítima do evento ou acidente de consumo, nos termos do seu art. 17. Mas de nada adianta estabelecer a responsabilidade civil dos fornecedores de crédito por suas práticas abusivas, desde a oferta predatória, até a imposição de um contrato não celebrado, se essa responsabilização não assumir as funções necessárias à coibição das práticas, fomentando a perpetuação das abusividades, mais lucrativas que o respeito à ordem jurídica.13 Enquanto a violação da tutela da pessoa humana for mais interessante, do ponto de vista econômico, do que o respeito à sua dignidade, as instituições financeiras continuarão a fazê-la, pois o lucro é que as move. Nesse sentido, as funções da responsabilidade civil nas relações de consumo precisam ser pensadas para além da eventual relação individual em questão, servindo para "reparar ou compensar o dano, punir o ilícito e prevenir o risco."14 A reparação ou compensação do dano tem um efeito especialmente evidente para o consumidor, de ver seu prejuízo reparado; a punição do ilícito destina-se mais especificamente ao fornecedor, como forma de penalidade em razão da ação ou omissão causadora do dano; por fim, a prevenção de riscos, como função preventiva15, tem como objetivo preservar a sociedade da reiteração de atos ilícitos, alcançando para além das próprias partes da relação. Portanto, a responsabilidade civil nesses casos não pode se limitar a reparar o dano causado ao consumidor, mas deve abarcar um papel maior, servindo de desestímulo a que as práticas que levam a esses danos sejam reiteradas pelos fornecedores de crédito16. Enfim, não se olvida que a legislação brasileira dispensa ao idoso proteção especial, no âmbito constitucional, bem como por meio da legislação ordinária, que busca, através da regulamentação de seus direitos, promover a realização de sua dignidade humana, através da garantia de sua liberdade, autonomia e plena participação social, o que se dá, inclusive, com sua manutenção no mercado de consumo. Contudo, também é fato que o oferecimento do crédito se tornou perigoso e tem levado vários idosos ao superendividamento e à exclusão social. Diante dessa conclusão, é imprescindível analisar as relações de consumo de crédito realizadas por idosos e, portanto, hipervulneráveis, com absoluta atenção, atendendo aos ditames legais que os protegem e, mais, à vontade constitucional que determina a tutela de sua dignidade, com prioridade, enxergando a inexistência de contratos em que sua vontade não foi efetivamente obtida, invalidando os contratos celebrados com violação dos deveres de informação clara e objetiva, direcionada à sua compreensão, e responsabilizando civilmente os fornecedores que insistem em desrespeitar as normas cogentes e de caráter social estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor.17 Além disso, fundamental é incentivar a tutela coletiva dos interesses dos idosos submetidos às práticas abusivas analisadas, devendo os legitimados do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 5º da lei 7.347/1985 promovê-la sempre que possível, já que se evidencia, em muitos casos observados, a existência de direitos difusos, coletivos e, ainda, individuais homogêneos, e essa forma de defesa de direitos mostra-se muito efetiva, na medida em que é capaz de coibir abusos contra consumidores indefesos e promover a correta responsabilização civil do fornecedor.18 __________ 1 Para Antônio Junqueira de Azevedo, são os três planos que a mente humana deve sucessivamente examinar para verificar se o negócio jurídico tem plena realização. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 24. 2 ARQUETTE L. N., Alinne. Crédito consignado: uma necessária análise sobre oportunidades, abusos e superendividamento dos hipervulneráveis. In: ANDREASSA JÚNIOR, Gilberto; OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Novos estudos de direito bancário. v. 2. Curitiba: Íthala, 2022a, p. 49-67. 3 No plano da existência, encontram-se os elementos essenciais do negócio, assim considerados seus pressupostos fundamentais, que são a vontade declarada, o objeto, a forma e a causa. (TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil. v. 1: Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 252). Faltando qualquer desses pressupostos, o negócio não existe ou, conforme Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, é um não-ato. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 597). 4 TJMG -  Apelação Cível  1.0000.22.276214-8/001, Relator(a): Des.(a) Vicente de Oliveira Silva , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/04/2023, publicação da súmula em 27/04/2023. 5 TJSP - AC: 10615602220208260002 SP 1061560-22.2020.8.26.0002, Relator: Roberto Mac Cracken, Data de Julgamento: 05/11/2021, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/11/2021; TJSP - AC: 10034098820218260047 SP 1003409-88.2021.8.26.0047, Relator: Roberto Mac Cracken, Data de Julgamento: 27/04/2022, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/04/2022. 6 TJSP - Apelação Cível 1010797-11.2021.8.26.0510; Relatora: Ana Catarina Strauch; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de Rio Claro - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/05/2023; Data de Registro: 15/05/2023; TJSP - Apelação Cível 1001316-05.2021.8.26.0484; Relator (a): Israel Góes dos Anjos; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro de Promissão - 2ª Vara Judicial; Data do Julgamento: 12/05/2023; Data de Registro: 12/05/2023. 7 TJSP - Apelação Cível 1008476-41.2021.8.26.0077; Relator (a): Fábio Podestá; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Birigui - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/05/2023; Data de Registro: 15/05/2023. 8 TJRJ - APL: 00317034520188190023, Relator: Des(a). GILBERTO CLÓVIS FARIAS MATOS, Data de Julgamento: 29/07/2021, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/08/2021. 9 Os requisitos de validade do negócio jurídico, previstos no art. 104 do Código Civil, são a capacidade do agente que declara a vontade, a licitude, determinabilidade e possibilidade material e jurídica do objeto e, ainda, a previsão legal ou não proibição em lei da forma usada para o negócio ((TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato, ob. cit., p. 253). Ausente algum requisito, o negócio é inválido, podendo ser nulo ou anulável, dependendo do requisito faltante. 10 ARQUETTE L. N., Alinne; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de. Contratação (in)válida de empréstimo por idosos hipervulneráveis - uma análise necessária em busca da preservação de sua dignidade. In: BOECHAT, Hildeliza; ARQUETTE, Alinne; SILVA, Karla Mello da (org.). Avanços e dilemas no vintênio do código civil principiológico. Livro eletrônico. PDF. Campos dos Goytacazes: Econtrografia, 2022b. Disponível aqui. p. 73. 11 Para mais aprofundamento, ver BASAN, Arthur Pinheiro. Do idoso sossegado ao aposentado telefonista: a responsabilidade civil pelo assédio do telemarketing de crédito; e também MARQUES. Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. Ambos In: RÊGO MONTEIRO FILHO, Carlos Edison et al. Responsabilidade civil nas relações de consumo. Foco: Indaiatuba, 2022. 12 Sobre o princípio da tutela do contratante hipossuficiente como concreção do princípio da igualdade material, tratei na obra A teoria contratual e o Código de Defesa do Consumidor, resultado a dissertação do mestrado cursado na UERJ. Mais recentemente, revisitei o tema em ARQUETTE L. N., Alinne. Crédito consignado: uma necessária análise sobre oportunidades, abusos e superendividamento dos hipervulneráveis, ob. cit. 13 Sobre a questão da banalização do dano moral e do mero aborrecimento, escreveram recentemente EFING, Antonio Carlos; BOZO, Aline Maria Hagers. O mero aborrecimento e a justiça defensiva: a tragédia do ilícito lucrativo em favor do alegado desafogamento do judiciário. In: Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 31, n. 4, p. 121-144, out./dez. 2022. Disponível aqui. Acesso em 16 maio 2023. 14 BASAN, Arthur Pinheiro, ob. cit., p. 650. 15 Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto denominam essa função de precaucional, diferenciando prevenção e precaução (p. 72) e concluindo que a prevenção está no cerne da responsabilidade civil contemporânea e é consequência inafastável da aplicação de qualquer das suas três funções (reparatória, punitiva e precaucional) (p. 79). FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. 16 Sobre os punitive damages, ver MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana - estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, mais especificamente o capítulo Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas, em que a autora faz uma crítica à adoção da função punitiva da responsabilidade extrapatrimonial, concluindo, ao final, que, em hipóteses absolutamente excepcionais, para situações potencialmente lesivas a um grande número de pessoas, como nas relações de consumo, a mesma pode ser admitida (p. 380). Ver também MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, jan./mar. 2005, p. 15-32. Disponível aqui. Acesso em 12 maio 2023. 17 Conforme art. 1º do CDC, "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias." 18 Sobre a eficácia da defesa coletiva dos interesses do consumidor, ver RIZZATO NUNES. A eficácia das ações coletivas para a defesa dos direitos dos consumidores. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em 15 maio 2023.
Sim, ainda se morre de doenças transmitidas por carrapatos no Brasil. Buscando as últimas atualizações do noticiário, apenas no interior do Estado mais rico da Federação, constatar-se-á a morte de quatro pessoas e a suspeita de contaminação de mais dezessete1 que, após participarem de dois eventos distintos em uma mesma fazenda na zona rural de São Paulo (próximo a Campinas), contraíram Febre Maculosa (FM). Pessoalmente, há tempos não ouvíamos falar dessa doença, muito menos que ainda matava no Brasil. Ela é considerada endêmica2 em várias regiões do país, no entanto. Entre 2013 e 2023 o Ministério da Saúde registrou 2059 casos em todo Brasil, sendo 1292 concentrados na região Sudeste. Destes, foram registrados 703 óbitos, sendo 623 na mesma região3. A Febre Maculosa é uma doença infecciosa de notificação compulsória4 e imediata, considerada de gravidade variável e elevada taxa de letalidade (acima de 20%, podendo chegar a 55%). A doença é provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii (Febre Maculosa Brasileira, mais grave), presente no norte do Paraná e nos Estados do Sudeste e pela bactéria Rickettsia parkeri (mais leve) registrada na Mata Atlântica brasileira (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Ceará)5. No país, os principais vetores são os carrapatos do gênero Amblyoma (carrapato estrela) infectados pela bactéria, mas qualquer espécie de carrapato pode, eventualmente, ser vetor da doença. O período de incubação varia de dois a quatorze dias, manifestando-se, muitas vezes, subitamente e evoluindo rapidamente. Os principais sintomas são febre, dor de cabeça intensa, náuseas e vômitos, diarreia e dor abdominal, dor muscular constante, inchaço e vermelhidão nas palmas das mãos e solas dos pés, gangrena nos dedos e orelhas e paralisia dos membros iniciando pelas pernas e chegando aos pulmões, manchas vermelhas nos pulsos e tornozelos que vão aumentando com a progressão da doença6. O diagnóstico precoce é difícil7 não só porque os sintomas iniciais se confundem com os de outras doenças, mas também porque exige amplo conhecimento médico sobre doenças recorrentes em dadas regiões (nem sempre viável para os turistas infectados atendidos em sua região de origem). Quando não é confundida com outras, a exemplo, da dengue, também endêmica em vários Estados. O médico poderá solicitar exames laboratoriais complementares8 para confirmação do diagnóstico e que serão realizados pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACENS), integrantes da rede oficial de vigilância em saúde. O tratamento oportuno visa impedir o agravamento da doença e é feito com antibiótico específico e, eventualmente, internação (a taxa de internação chega a 80%). O início do tratamento deve ser realizado imediatamente, mesmo antes dos resultados laboratoriais. A terapêutica, em regra, será ministrada no período de sete dias, sendo mantida em, no mínimo, três dias após o controle da febre. Por fim, o Ministério da Saúde indica como medidas a serem adotas em locais em que pode haver exposição aos carrapatos: usar roupas claras para ajudar a identificar o animal; usar calças, botas e blusas com mangas compridas ao caminhar em áreas arborizadas e gramas; evitar caminhar em locais com grama ou vegetação alta; usar repelentes de insetos; verificar se você ou seus animais de estimação estão com carrapatos ao sair das áreas; ao encontrar um animal usar pinça para removê-lo, puxando com firmeza; lavar a área da mordida com álcool ou sabão e água; após lavar suas roupas em água fervente para retirar os insetos remanescentes (Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT-SVS/MS). A frieza dos dados estatísticos causa não apenas o espanto com o não controle da doença, como também pela normalidade com que vinha sendo tratada. Daí, talvez, a surpresa demonstrada pela cobertura jornalística: as contaminações teriam ocorrido em eventos realizados em zona endêmica da doença. Pior, a sua existência e risco são considerados fatos notórios entre a população e gestores locais e, portanto, a depender da legislação processual brasileira, independentes de prova (art. 374 do CPC). Apesar disso, de todos os relatos, é possível observar que nenhuma advertência sobre o risco da doença ou sobre os cuidados preventivos foi feita nos convites/ingressos, bem como nenhuma orientação sobre eventuais sintomas foi oferecida aos participantes/consumidores daqueles eventos. Também não se relatou a recomendação dos cuidados profiláticos básicos e, surgidos os casos, o alerta de que poderiam se relacionar à doença. Diante de um cenário destes, então, seria razoável imaginar que caberia ao fornecedor algum dever de informação e, claro, responsabilização em caso de descumprimento? Podemos nos socorrer do interessantíssimo precedente do Superior Tribunal de Justiça que avaliou a responsabilidade de hotel pela ausência de advertência envolvendo o perigo de salto em piscina para afastar a excludente de responsabilidade da 'culpa exclusiva do consumidor' (Recurso Especial n° 287849/SP, julgado em 2001). Ainda que, no caso, possa ter havido a atribuição de um risco em razão de um dano injusto9, o fato é que - do ponto de vista negocial em sentido estrito - a ausência do completo adimplemento do dever de informação poderia atrair tal responsabilidade. Lá se tratou de caso em que jovem embriagado pulou em piscina, lesionando-se gravemente. Considerou-se que a existência de informação sobre o horário de funcionamento não seria suficiente, exigindo-se que fossem esclarecidos os riscos e o nível da água. Lembre-se, ademais, que o próprio Superior Tribunal de Justiça já considerou, em outro importante precedente, que a informação deve ser "correta (=verdadeira), clara (=de fácil entendimento), precisa (=não prolixa ou escassa), ostensiva (=de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa." (Recurso Especial n° 1.758118/SP, julgado em 2019). A questão a se saber, então, é em que medida o fornecedor (seja o organizador do evento, eventualmente seu patrocinador ou explorador comercial) se preocupou e colocou em ação medidas informacionais preventivas. Talvez, mesmo, fosse o caso de se indagar se foram tomadas medidas mais aprofundadas como a limpeza do espaço, a utilização de pesticidas adequados, etc. Os relatos não indicam, no entanto, a existência de medidas de advertência ou profilaxia. Este aliás é o cenário turístico brasileiro: mesmo em cidades com estrutura de acolhimento internacional, raramente se percebe este nível de preocupação na rede hoteleira, por exemplo (seja em relação à dengue ou à febre amarela). Poder-se-ia até argumentar que este padrão de informação seria extrapolar o nível do gerenciamento de riscos para algo irreal do ponto de vista da governança. Ousamos discordar, afinal o turista que retorna dos bem-organizados safaris sul-africanos relata, usualmente, a constante advertência sobre os riscos da malária. A questão prática a se saber é se o risco do empreendedor abrangeria riscos sanitários ou, ao menos, sobre a informação de sua existência. Em outros termos, qual a abrangência do art. 931 do Código Civil ou em que medida é defeituoso o serviço a partir do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Uma breve passagem de olhos na legislação consumerista parece indicar que tal 'cuidado' é dever: desde a informação sobre riscos inerentes ao serviço (art. 6º, I) e a efetiva prevenção do dano (art. 6º, VI) como direitos básicos do consumidor, assim como o dever de informação prévio sobre os perigos à saúde e segurança (art. 9º) e o dever de informação posterior ao conhecimento da concretização do risco (art. 10, §1°) atribuídos ao fornecedor. Os relatos colhidos pela imprensa não indicam, por exemplo, nem uma, nem outra informação. Deste ponto de vista, portanto, pode-se afirmar, então, que compõe a relação obrigacional do serviço turístico a informação adequada, clara, precisa e ostensiva sobre o risco a que aquele consumidor - especialmente vulnerável em razão do não conhecimento local - se sujeita ao contratar sua participação no evento. Não se tratava, portanto, de mero almoço em que - com certeza - deveriam estar destacados eventuais riscos alimentares (presença de glúten - Lei n. 10.674/03, por exemplo), mas de experiência mais ampla que envolveria a refeição, mas também, música e lazer. Em outros termos, a informação a ser prestada pelo fornecedor não se limitaria aos riscos alimentares, mas a todos os riscos a que aquele consumidor estaria exposto simplesmente por estar em ambiente rural. A eventual inexistência de medidas sanitárias efetivas adotadas pela Municipalidade poderiam impactar esta conclusão? Pouco provável que a ausência delas modificasse o quadro de violação do dever de informação. Então, ainda que eventualmente se pudesse afirmar que a morte das quatro pessoas seria decorrente de evento fortuito, excludente de responsabilidade, a ausência de informação sobre risco conhecido dos organizadores dos eventos por si só torna o serviço defeituoso, a exemplo do citado precedente do STJ. Assim, pode-se firmar que o fornecedor - neste caso - ao vender o ingresso para o evento gastronômico ao céu aberto e em fazenda não só precisaria indicar a composição dos alimentos, responsabilizar-se pelo caso de intempérie, como - também - por fatalidades decorrentes de doenças endêmicas. Sem sombra de dúvida, dentro da organização da atividade, potencializava-se o lucro pela experiência 'rústica'. Caberia a ele, ao menos, informar o seu consumidor da possibilidade de chuva e de se tratar de uma região endêmica para doenças específicas, isso para não falar em dificuldades de logística (estradas de terra ou falta de sinal de GPS) ou de acesso a serviços de emergência. Eventual falha da Administração local no exercício de sua fiscalização e regulação não afastariam esta responsabilidade, mas acrescentariam outro nível de responsabilização seja pela ausência das medidas em si (art. 7º, parágrafo único e art. 22 do CDC), seja pela ausência de cumprimento de seu próprio dever de informação (art. 10, §3° do CDC) e, na prática, criaria a solidariedade para eventual obrigação indenizatória (art. 25, §1° do CDC). Ainda que o número de casos notificados seja considerado quantitativamente baixo, devido à gravidade e alta letalidade da doença, o dever de informação se apresenta ainda mais relevante. Perceba-se que o próprio Ministério da Saúde reconhece o problema na Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT/SVS/MS10, de 7 de outubro de 2022. Nela, reafirma que se trata de doença prevalente na região Sudeste, com "frequente manifestações hemorrágicas e, consequentemente, altas taxas de letalidade (podendo chegar a 55%)". A transmissão ocorre em ambientes propícios ao carrapato vetor. Adverte o documento que "o risco de infecção para os humanos tem sido relacionado com fatores de exposição que favorecem o contato com os carrapatos, principalmente em áreas rurais (atividades de lazer, pescaria, contato com capivaras, atividades de fazenda e outras atividades que possam ser desenvolvidas em ambientes onde tenham presença de carrapatos)". Após a notificação dos casos (aqui noticiados) ao Ministério da Saúde, a Vigilância Sanitária municipal determinou à fazenda diversas medidas de adequação para que possa voltar a receber eventos, entre elas: sinalização e advertências aos usuários sobre a FM, limpeza de áreas, adequação de espaços com pisos que evitem o contato com a grama. O plano de mitigação de riscos11 da transmissão da doença foi entregue à autoridade sanitária no dia 16 de junho. O que se indaga é por que essas medidas não foram tomadas previamente como determinada pela Nota Técnica antes mencionada? Lembre-se que a transferência de risco inerente ao serviço ao consumidor é considerada abusiva. Destaca-se, ainda, que desde 2004 o Estado de São Paulo possui um Manual de Vigilância Acarológica, que prevê que o controle de carrapatos faz parte das atribuições da vigilância e controle de vetores. Em 2008, o Estado criou o Núcleo de Estudos de Doenças Transmitidas por Carrapatos com Ênfase na FMB, cujos trabalhos acabaram resultando na Resolução Conjunta n. 1, de 1° de julho de 2016, SEMA e SESA-SP, que determina que áreas classificadas como de risco ou de transmissão devam passar por manejo com o objetivo de reduzir o risco de circulação da bactéria. Estas conclusões acabam sendo reforçadas pelo fato de que, em 16 de junho de 2023, a Vigilância Sanitária de São Paulo, expediu o Alerta n. 1/2023, NDTVZ/CIEVS/DVE/DVZ/COVISA/SMS12, sobre a Febre Maculosa Brasileira, na qual indica como medidas recomendas reduzir a letalidade com a divulgação e orientação sobre a doença; reduzir danos, agindo de acordo com as características de cada local e reduzir focos, evitando que se estabeleçam situações propícias à transmissão da doença. O Alerta deixa claro, então, que entre as medidas preventivas está a intensificação do dever de informação atribuível ao fornecedor e à Administração. Referências ALTHEIM, Roberto. A atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro. Superação da teoria tradicional da responsabilidade civil. Dissertação, UFPR, 2006. Disponível aqui. BRASIL. Portaria n. 1.378/2013. Ministério da Saúde. Regulamenta as responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Disponível aqui. BRASIL. Portaria n. 1.061/2020. Ministério da Saúde. Revoga a Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020, e altera a Portaria de Consolidação nº 4/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir a doença de Chagas crônica, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Disponível aqui. RODRIGUES, Cláudio Manuel; GEISE, Lena; GAZETA, Gilberto Salles; OLIVEIRA, Stefan Vilges. Estudo descritivo de casos notificados de febre maculosa em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais entre 2007 e 2016.In: Cadernos de Saúde Coletiva, 2023; 31(2), p. 1-10. SILVA, Luiz Jacintho. O controle das endemias no Brasil e sua história. In: Ciência & Cultura, São Paulo, v. 55, n. 1, p. 44-7, jan./fev. 2003. __________ 1 Disponível aqui. 2 Segundo Luiz Jachinto da Silva, "convencionou-se no Brasil designar determinadas doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor, como 'endemias', 'grandes endemias' ou 'endemias rurais'. Essas doenças foram e são, a malária, a febre amarela, a esquistossomose, as leishmanioses, as filarioses, a peste, a doença de Chagas, além do tracoma, da bouba, do bócio endêmico e de algumas helmintíases intestinais, principalmente a ancilostomíase. Essas doenças, predominantemente rurais, constituíram a preocupação central da saúde pública brasileira por quase um século, até que diversos fatores, notadamente a urbanização, desfizeram as razões de sua existência enquanto corpo homogêneo de preocupação (SILVA, Luiz Jacintho. O controle das endemias no Brasil e sua história. In: Ciência & Cultura, São Paulo, v. 55, n. 1, p. 44-7, jan./fev. 2003). A endemia se caracteriza quando uma doença em uma determinada região apresenta número de casos significativos, frequentes e recorrentes, de duração contínua. O site da Prefeitura de Campinas reconhece que Campinas e região são áreas endêmicas para febre maculosa. 3 Dados extraídos do SINAN e SUSVS. 4 Vide Portaria n. 1061/2020, Ministério da Saúde. Disponível aqui. 5 A Portaria n. 1.378/2013, Ministério da Saúde, regulamenta as responsabilidades e define as diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (Disponível aqui).  6 Informações do Ministério da Saúde. Disponível aqui. 7 Apenas 6% dos casos suspeitos são confirmados por exames laboratoriais. "Há uma tendência de aumento anual do número de casos confirmados de FM quando analisada a série histórica, já apontada por alguns autores, o que está mais relacionado ao aumento da sensibilidade da vigilância e à utilização de técnicas de diagnóstico10, inclusive em investigações post-mortem, do que propriamente a mudanças do perfil epidemiológico da doença na área de estudo" (RODRIGUES, Cláudio Manuel; GEISE, Lena; GAZETA, Gilberto Salles; OLIVEIRA, Stefan Vilges. Estudo descritivo de casos notificados de febre maculosa em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais entre 2007 e 2016.In: Cadernos de Saúde Coletiva, 2023; 31(2), p. 1-10). 8 Testes laboratoriais para diagnóstico específico (padrão-ouro), segundo o Ministério da Saúde: "reação de imunofluorescência indireta (RIFI): detectam presença de anticorpos contra a bactéria, a partir de coleta de sangue; exame de Imunohistoquímica: detecta a bactéria em amostras de tecidos obtidas a partir de biópsia de lesões de pele; técnicas de biologia molecular - reação em cadeia da polimerase (PCR): realizada a partir de amostras de sangue, tecido de biópsia. Detecta o material genético da bactéria; isolamento da bactéria: O isolamento da bactéria é feito a partir do sangue (coágulo) ou de fragmentos de tecidos (pele e pulmão obtidos por biópsia) ou de órgãos (pulmão, baço, fígado obtidos por necrópsia), além do carrapato retirado do paciente. A bactéria irá crescer em um meio de cultura" (Disponível aqui). 9 Vale ressaltar a excelente dissertação de mestrado defendida por Roberto Altheim, em 2006, perante o PPGD da Universidade Federal do Paraná, que entende ter havido, neste caso, a atribuição de um risco (talvez por um critério econômico) a um dano que foi considerado injusto (a dissertação está disponível aqui) 10 Disponível aqui. 11 "De acordo com a [Fazenda] Santa Margarida, o plano foi desenvolvido com a colaboração de pesquisadores e especialistas em controle de doenças transmitidas por carrapatos e abrange seis aspectos principais: avaliação da situação - monitoramento constante do carrapato-estrela e identificação de possíveis áreas de risco na fazenda; equipe responsável - definição de um grupo com profissionais de manutenção e controle de pragas para dar andamento à estratégia; medidas de prevenção - manutenção adequada do terreno, criação de barreiras físicas e investimentos em sinalização e orientações; serviços contratados - contratação de especialistas no combate ao carrapato; autoridades e colaboração - colaboração constante com as autoridades de saúde locais; monitoramento e revisão - cumprimento do cronograma e avaliações das medidas" (Disponível aqui). 12 Disponível aqui.
Na terça-feira, dia 20/6/2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará o recurso de Regina Merlino Dias de Almeida e Angela Mendes de Almeida, que, na condição de irmã e companheira do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, pedem reparação por danos morais contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por comandar os atos de tortura que levaram à morte de Merlino durante a ditadura militar. Este caso coloca no centro da discussão o papel da responsabilidade civil na garantia do direito à verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura. A responsabilização criminal, já dificultada pela decisão do STF de 2010 de que atos de tortura estariam incluídos entre os beneficiados pela lei de anistia1, torna-se impossível com a morte dos torturadores. Já a ação de responsabilidade civil persiste contra o espólio, quando o réu falece durante o processo. Ustra morreu aos 83 anos, em 2015, sem ter sido judicialmente responsabilizado pela morte de Merlino. A ação que o STJ julgará na terça-feira 20.06 decidirá, portanto, de modo definitivo, sobre a possibilidade de imputar a Ustra seus atos e com isso impedir que a história de Merlino seja contada sem nunca termos a condenação judicial de quem o torturou e matou. Merlino desde os 17 anos de idade trabalhou com jornalismo. Foi preso na casa da sua mãe em Santos e levado ao DOI-CODI de São Paulo, onde de acordo com testemunhas foi submetido a cerca de 24 horas de tortura, e Ustra esteve presente. Muito machucado, com feridas graves nas pernas que gangrenaram, Merlino foi privado de cuidados médicos, até ser retirado do DOI-CODI desfalecido, e ser provavelmente conduzido ao Hospital do Exército. Ainda segundo testemunhas, funcionários do hospital telefonaram para Ustra, pedindo o contato de familiares que pudessem autorizar a amputação de suas pernas, mas decidiu-se por deixá-lo morrer. Documentos da ditadura reproduziram uma versão falsa sobre a causa da morte, de que esta teria decorrido de atropelamento. Merlino morreu aos 23 anos de idade em julho de 1971. Ao saber da morte, familiares dirigiram-se ao IML, onde foram informados de que o corpo de Merlino não estaria no local. Foi só graças a  seu cunhado, que era delegado de polícia e conseguiu ingressar no local e localizar o corpo, que se evitou que Merlino se tornasse mais um desaparecido político.2 Diante de requerimento feito pela família, em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Merlino.3 O relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, registra em seu capítulo sobre autoria que Ustra comandou o DOI-CODI de São Paulo entre setembro de 1970 e janeiro de 1974 - portanto estava no comando do DOI-CODI quando Merlino foi submetido à tortura que provocou sua morte -, e que nesse período aconteceram ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados por ação de agentes ligados a esse órgão.4 No trecho em que trata da morte de Merlino em seu volume 3, o relatório da CNV apresenta os testemunhos de Leane de Almeida e Eleonora Menicucci, que, torturadas no mesmo dia, confirmam que Ustra estava presente na sessão de tortura de Merlino. Apresenta ainda o testemunho de Ivan Seixas, que estava preso ao lado de onde Merlino foi torturado, e viu Ustra comandar a retirada de Merlino da sala e a limpeza do local, bem como o testemunho de Otacílio Cecchini, que viu um militar informar sobre o telefonema do hospital dirigido a Ustra, a respeito da necessidade de autorização para amputação. Ainda, transcreve o depoimento de Joel Rufino dos Santos, segundo o qual um torturador lhe contou que, depois da ligação do Hospital do Exército, Ustra fez uma votação entre os agentes do DOI-CODI "E venceu a ideia de deixar morrer".5  Em busca do reconhecimento em âmbito judicial da responsabilidade de Ustra, as familiares de Merlino moveram primeiro uma ação declaratória, que foi extinta pelo  Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2008, sob a justificativa de inadequação do meio processual.6 Outra ação declaratória contra Ustra - da família Teles - foi depois julgada procedente pelo mesmo TJSP, em decisão confirmada pelo STJ.7 Diante da extinção da ação declaratória pelo TJSP, as familiares de Merlino propuseram a ação de reparação por danos morais. Em 2012, a ação foi julgada procedente em primeira instância. De acordo com a sentença, "a prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial", em especial no que diz respeito ao comando e participação de Ustra na tortura e à decisão de não amputação diante do questionamento proveniente do hospital.  No entanto, em julgamento de 2018, o TJSP decidiu que o pedido de indenização das vítimas estaria prescrito8. A decisão se baseia, entre outros fundamentos, no argumento de que ao caso seria aplicável o prazo prescricional de 20 anos previsto na lei civil vigente à época dos fatos, cujo termo inicial seria a promulgação dos Atos e Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e que a imprescritibilidade prevista no texto constitucional seria aplicável apenas aos crimes de racismo e à ação de grupos armados civis ou militares. O objeto central do recurso que será julgado pelo STJ, portanto, é a prescrição de ações de responsabilidade civil relativas a crimes praticados por agentes da ditadura,  tema já enfrentado diversas vezes pela Corte. Desde 2009, o STJ tem decidido de forma reiterada pela imprescritibilidade das ações civis que visam reparar violações a direitos humanos e fundamentais da pessoa humana. Naquele ano, em sede de Embargos de Divergência destinados a pacificar a questão, a Primeira Seção decidiu pela imprescritibilidade da pretensão de reparação por danos morais e materiais. Nas palavras da relatora, Ministra Eliana Calmon, "reconhecer como imprescritível o pedido de indenização por danos, sejam morais ou materiais, decorrentes dos atos de tortura arbitrariamente ministrados por agentes do regime ditatorial brasiliero, é uma das formas de dar efetividade à missão de um Estado Democrático de Direito, assegurando proteção e, sobretudo, reparação à dignidade do ser humano".9 A questão já foi tratada também pela Segunda Seção do STJ, especificamente pela 3a. Turma, na decisão do Resp n. 1434498/2014, a respeito do caso da família Teles. Embora naquele caso se tratasse de ação meramente declaratória de responsabilidade civil, e não de ação condenatória como a que será decidida pela Quarta Turma na próxima semana, o acórdão consignou expressamente adesão à jurisprudência fixada pela Primeira Seção: "Conforme a jurisprudência do STJ, mesmo as pretensões reparatórias por violações a direitos humanos, como as decorrentes de tortura, não se revelam prescritíveis. Com maior razão, é imprescritível a pretensão meramente declaratória nesses casos". Nos anos seguintes, o STJ manteve este entendimento, o qual já era, portanto, predominante à época em que o TJSP julgou pela prescrição da pretensão indenizatória de Regina e Angela10. Em 2021, o tema foi consolidado com a edição da Súmula 647: "são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar". Dos precedentes que amparam a Súmula, especialmente dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 845.228-RJ/201011, é possível extrair os seguintes fundamentos jurídicos justificadores da imprescribilidade: i) a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, o que encontra amparo no art. 8, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; ii) a morte e a tortura são atentados à dignididade humana, de modo que a proteção desse valor pela Constituição deve perdurar enquanto subsistir a República Federativa; iii) a Lei 9.140/95 não estabeleceu prazo prescricional para propositura de ações indenizatórias relacionadas às mortes e aos desparecimentos forçados de pessoas que participaram ou foram acusadas de participar de atividades políticas durante o regime militar. O teor da Súmula 647 encontra respaldo na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) - a cuja jurisdição o Brasil se submete desde 1998. Há mais de 20 anos, a Corte tem o entendimento de que os Estados têm a obrigação internacional de investigar, instaurar processos de responsabilização e, se for o caso, punir violações graves de direitos humanos, e que prazos prescricionais e leis de anistia não podem servir de impedimento para que isso aconteça12. No caso do Brasil, tal entendimento deu base para as sentenças da CorteIDH nos casos Gomes Lund e outros (2010)13 e Vladmir Herzog (2018)14. No caso Órdenes Guerras vs. Chile (2018)15, a Corte IDH afirmou explicitamente que a imprescritibilidade, já reconhecida diversas vezes em sua jurisprudência com referência a processos criminais, se aplica também às ações civis de reparação. Os fundamentos  da decisão do TJSP estão, portanto,  à margem da jurisprudência da CorteIDH e da jurisprudência sumulada do STJ sobre a matéria. O julgamento do recurso contra esta decisão do TJ paulista é  uma oportunidade de o STJ reconhecer - mais uma vez - o comando das práticas de tortura por Ustra e reafirmar a tese da imprescritibilidade da responsabilização civil pela prática de tortura por agentes de Estado. A jurisprudência dominante do STJ é resultado de uma soma de julgados históricos sobre responsabilidade estatal, que, com sua firmeza, são o que há de mais correto e alinhado aos parâmetros de direitos humanos no tratamento dos horrores da ditadura pela justiça brasileira. Essas decisões têm como cerne o debate sobre a natureza do bem jurídico lesado (dignidade da pessoa humana) e a gravidade das violações (tortura enquanto violação extrema aos direitos fundamentais). Tal racional se aplica integralmente à reparação direcionada ao agente estatal que pratica ou comanda atos de tortura, sem qualquer distinção. Não se pode esquecer também da missão constitucional do STJ, de unificar a interpretação de lei federal. Assim, na linha do que prevê o art. 926 do Código de Processo Civil - "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" -, é injustificável a dissonância do TJSP em relação à jurisprudência do STJ sobre o tema, a qual resultou de um amplo e longevo histórico de julgamentos que certamente estão dentre os mais importantes já proferidos em toda a história da Corte Superior. Em pleno 2023, chega a ser uma violação em si a discussão sobre a possibilidade ou não de reparação às vítimas da ditadura militar, pois significa ignorar o direito das vítimas de serem vistas e escutadas pelo sistema de justiça em busca do mínimo de reconhecimento pela sua dor e sofrimento. De fazer prevalecer a verdade, que mesmo após tantos anos continua sendo rediscutida e relativizada. De se reafirmar que a tortura é inaceitável e quem a pratica deve ser responsabilizado. Como é amplamente reconhecido mundo afora, o debate sobre a reparação de vítimas de violência de Estado e de tortura é parte de um processo de transição democrática, e essa pretensão não pode simplesmente perecer. Nos casos das violações mais graves de direitos humanos, cuja prática e cujo esquecimento são organizados pelo Estado, a aplicação dos prazos ordinários para a propositura de ações judiciais obstaculiza a responsabilização e a reparação e favorece a repetição das violações. Assim, a escolha pela prescrição é perversa e desconsidera que as vidas de muitas famílias, especialmente de muitas mulheres, foram dedicadas a lutar por respostas. Como lembra a sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, Tatiana: "Dizer que a gente esperou 20 anos para entrar com a ação é muito cruel. Foram 47 anos de muita luta. E eu sinto muito minha avó ter morrido sem ter visto justiça"16. Esperamos que o STJ não repita o erro do TJSP e honre sua jurisprudência e a luta da família Merlino, que também é nossa, por memória, verdade, justiça e reparação de todas as vítimas da violência estatal. __________ 1 STF. ADPF n. 153/DF, Rel. Min Eros Grau, j. 29.04.2010.   2 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: mortos e desaparecidos políticos. Brasília: CNV, 2014, pp. 650 e ss.   3 BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Requerimento n. 0209/96, 23/04/1996, fls. 56. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de Merlino foi publicado no Diário Oficial da União em 25/04/1996.   4 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório, v 1. Brasília: CNV, 2014, p. 859.   5 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: mortos e desaparecidos políticos. Brasília: CNV, 2014, pp. 650 e ss.   6 TJSP. Ag n. 568.587.4/5-00, Rel. Desemb. Luiz Antonio de Godoi, j. 23.09.2008.   7 TJSP. AC n. 0347718-08.2009.8.26.0000 (994.09.347718-5), Rel. Desemb. ?Rui Cascaldi, j. 14.08.2012.). A decisão foi confirmada pelo  STJ em 2014, ocasião em que o tribunal estabeleceu pela primeira vez a responsabilidade de Ustra - um agente estatal da ditadura brasileira - pela prática de tortura, reconhecendo que cada vítima tem o direito de acionar o Judiciário para "buscar a plena apuração dos fatos, com a declaração da existência de tortura e da responsabilidade daqueles que a perpetraram" (STJ. REsp 1.434.498/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09.12.2014).   8 TJSP. AC n. 0175507-20.2010.8.26.0100, Rel. Desemb. Salles Rossi, j. 17.10.2018.   9 STJ.EREsp 816.209-RJ, Rel. Min.Eliana Calmon, j. 28.10.2009.   10 Até 2018, já havia no STJ outras  decisões que reafirmaram a imprescritibilidade do pedido de indenização por danos decorrentes de atos de tortura durante o período ditatorial. STJ, EREsp 845.228-RJ, Rel.Min. Humberto Martins, j. 08.09.2010. STJ. AgRg no REsp 1.392.941-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 26.11.2013.STJ, ??AgInt no REsp 1.590.332-RS, Rel. Min.Sérgio Kukina, j. 21.06.2016. STJ. AgInt no AREsp 711.976-RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 03.05.2018. STJ. AgInt no REsp 1.710.240-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 05.06.2018. STJ. AgRg nos EDcl no REsp 1.328.303-PR, Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 21.06.2018.   11 STJ, EREsp 845.228-RJ, Rel.Min. Humberto Martins, j. 08.09.2010.   12 Corte IDH. Caso Barrios Altos vs. Peru. Mérito. Sentença de 14 de Março de 2001. Série C No. 89.   13 Corte IDH. Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil. Exceções Preliminares. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de novembro de 2010, Série C No. 219.   14 Corte IDH. Caso Herzog e outros vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353.   15 Corte IDH. Caso Órdenes Guerra e outros vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29 de novembro de 2018. Série C No. 372.   16 DIP, Andrea. A ditadura julgada às vésperas das eleições. Agência Pública, São Paulo, 25 de outubro de 2018.Disponível aqui. Acesso em: 18.jun.2023.
Na contemporaneidade, houve verdadeira implosão dos pressupostos e requisitos tradicionais da responsabilidade civil em geral. Surgiram, então, os pressupostos específicos de cada classe de responsabilidade civil: da responsabilidade por culpa ou subjetiva, da responsabilidade sem culpa ou objetiva, da responsabilidade transubjetiva (por fato de coisa, de animal ou de outra pessoa), da responsabilidade por fato ou atividade lícita, da responsabilidade preventiva, da responsabilidade sem danos efetivos, da responsabilidade por ilícito lucrativo. Novos conceitos foram difundidos para conformação da responsabilidade civil: danos extrapatrimoniais, prevenção, precaução, atividade, risco, reparação punitiva, primazia da vítima, proteção, preservação, consolação ou satisfação da vítima para além da reparação. Se a culpa, a antijuridicidade, o dano efetivo, o nexo de causalidade e a reparação, qualificados como requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva, não constituem pressupostos abrangentes de todas as classes de responsabilidade civil, o que há de comum, ou seja, o que se encontra presente em todas elas? Por exemplo: na responsabilidade objetiva não há culpa; na responsabilidade por atividade lícita não há ilicitude ou contrariedade a direito; na responsabilidade preventiva não há dano (não ocorreu ou pode não ocorrer) nem reparação; na responsabilidade transubjetiva não há nexo de causalidade entre dano e comportamento de quem efetivamente o originou (a culpa presumida já não é explicação adequada). Não são mais comuns a licitude ou ilicitude do fato ou ato gerador, a existência ou não de dano real, a possibilidade ou não de reparação, a equivalência da reparação em razão da extensão do dano, o nexo causal entre determinado comportamento e o dano, a culpa do agente. A multiplicidade das espécies de responsabilidade civil e das próprias classes ante a crescente complexidade da vida desafiam a busca de pressupostos comuns entre elas. Esse quadro, aparentemente inseguro, abre amplas possibilidades para a reconfiguração da responsabilidade no direito privado que abranja tanto as obrigações decorrentes de fatos passados (consequências negativas ou repressivas), principalmente quando geradores de danos, quanto as obrigações de fazer em virtude de situações e posições jurídicas (consequências positivas ou promocionais), sem a camisa de força dos requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva. A afirmação dos direitos fundamentais, notadamente no mundo ocidental, duramente conquistada contra os despotismos de todos os matizes, de certa forma obliterou a compreensão dos consequentes deveres fundamentais, onde se insere a noção alargada de responsabilidade de cada pessoa humana. O predomínio exclusivo dos direitos fundamentais oponíveis ao Estado ou das liberdades públicas, de caráter negativo, apenas faz sentido em uma visão de mundo individualista e antropocêntrica, na qual o Estado, a sociedade e a natureza são apenas tolerados quando favorecem a realização individual. Os deveres fundamentais são necessariamente transindividuais, pois têm como destinatários a outra pessoa humana, a coletividade e os meios de vida digna das atuais e futuras gerações, implicando fins e futuridade. A reciprocidade é a tônica dos deveres fundamentais, pois cada pessoa humana é responsável pela outra, e ela é também responsabilidade das outras. Quando o art. 931 do Código Civil estabelece a responsabilidade das empresas pelos danos que o produto causou, dispensa o requisito da contrariedade a direito e concentra-se no dano em si, que deve ser reparado. A atividade empresarial é lícita, mas basta o fato de pôr em circulação os produtos - licitamente produzidos - para responsabilizar-se pelos danos decorrentes. Antes, justamente pela ausência de contrariedade a direito, a lei não admitia a reparação desse dano, que se entendia inserido nos riscos da vida social, ou o preço a pagar pelo progresso econômico. Consequentemente, há danos reparáveis que não dependem de contrariedade a direito ou de ilicitude. O dano causado por fato lícito é reparável, mas não é ilícito, o que também torna dispensável o pressuposto de nexo de causalidade da responsabilidade civil. O dano pode existir, mas o direito pré-excluir a ilicitude. O direito até admite que haja reparação do dano em alguns desses casos, mas não em virtude da ilicitude do ato causador. O dono de imóvel encravado em outro tem direito a servidão de passagem, mas há de indenizar o dono do imóvel serviente para que possa exercê-lo; o proprietário de imóvel tem direito a entrar no imóvel vizinho quando houver necessidade de reparos, limpeza, construção, mas assume a responsabilidade de indenizar os danos que provocar, ainda que sem culpa sua. Nesses casos, o dano não deriva de ato ilícito, e o dever de reparar independe de contrariedade a direito ou de existência de culpa, somente podendo ser excluído se houver culpa exclusiva da vítima, ou de terceiro, ou caso fortuito ou força maior. Pontes de Miranda já aludia a hipóteses excepcionais nas quais o direito dispensaria a ocorrência do dano: a) a cobrança de dívida ainda não vencida; b) a cobrança de dívida já paga. Em sendo assim, o dano não poderia constituir pressuposto da responsabilidade civil em geral, porque o pressuposto não admite exceção. Quanto ao nexo de causalidade, nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil subjetiva, em sua origem, não o contemplava, bastando a prova da culpa do ofensor e do dano. Não há consenso doutrinário sobre o tipo de causalidade que o direito brasileiro deve adotar (direta, ou adequada, ou eficiente, ou necessária) prevalecendo a causalidade direta ou do dano direto e imediato, em razão do art. 403 do Código Civil. O STF (RE 130.764), aplicando norma do Código Civil anterior, idêntica à do atual art. 403, afirmou que em nosso sistema jurídico "a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal", aplicando-se também à responsabilidade extranegocial, "inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das [demais]". A relativização do nexo de causalidade tem esbarrado em afirmações categóricas de sua imprescindibilidade, contrariando a evolução do direito brasileiro. Como exemplo, o STJ, para negar a responsabilidade civil de shopping center por tiros desferidos por uma pessoa em cinema nele instalado, fundamentou-se na ausência de nexo de causalidade (REsp 1.164.889). Contudo, o nexo de causalidade deve ser afastado ou expandido quando houver solidariedade passiva dos fornecedores de serviços e o dever jurídico de proteção de terceiros, como no caso. No plano filosófico é comum a relativização da causalidade e até mesmo sua negação. Por exemplo, Nietzsche, em A Gaia Ciência, afirma que a dualidade causa e efeito "não existe provavelmente jamais - na verdade temos diante de nós um continuum do qual isolamos algumas partes", na mesma linha que vem do pré-socrático Heráclito. Ocorre muito mais um processo, as causas sendo causadas por outras e os efeitos sendo causas seguintes. A vida é um fluxo eterno. A causalidade apenas existiria na linguagem, no pensamento. Por seu turno, a imputabilidade, na evolução do direito, desligou-se da culpa e da causa da responsabilidade pelo ilícito civil. A imputabilidade contemporânea diz respeito à atribuição da responsabilidade pelo dano, independentemente de ter havido culpa ou até mesmo participação no evento (exemplo, empregador pelo fato danoso do empregado). É simplesmente imputação de responsabilidade patrimonial extranegocial. Deslocou-se da causa do dano para os efeitos do dano, máxime com o crescimento das hipóteses de responsabilidade que têm na origem atos e atividades lícitas. Assim, a imputabilidade não mais está relacionada à capacidade delitual do agente, ou capacidade para praticar ilícito, salvo para os atos ilícitos referidos no art. 186 do Código Civil. O ato cometido pelo menor absolutamente incapaz, contrário a direito, é ilícito civil, ainda que ele pessoalmente seja inimputável; a imputabilidade é objetivamente trasladada para seus pais, que não participaram ou mesmo não sabiam do evento. Tende-se para a extensão da imputação da responsabilidade, para além do fato gerador do dano, como ocorre com o direito do consumidor, que alcança todos os que, direta ou indiretamente, participaram do fornecimento do produto ou do serviço no mercado de consumo, não bastando a relação jurídica imediata, recorrendo-se à solidariedade passiva de todos. O mesmo ocorre com relação às pessoas e entidades referidas no art. 932 do Código Civil. A reparação compensatória adquiriu autonomia própria, com a tutela dos danos extrapatrimoniais. A própria função reparatória da responsabilidade civil não é mais suficiente para abranger todas as suas dimensões contemporâneas. Exemplo é a incorporação do ilícito lucrativo entre as espécies de responsabilidade civil, como os estudos de Nelson Rosenvald apontam. A quase exclusividade da indenização ou reparação pecuniária cedeu também sua primazia para modalidades de sanção ou pena civil, nas obrigações de fazer e de não fazer: a legislação processual estabelece que a obrigação somente se converta em perdas e danos se for impossível a tutela específica ou a obtenção de resultado prático correspondente ao adimplemento, ou se interessar ao autor, e sem prejuízo da multa (CPC, art. 489). O juiz pode determinar a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva. Essas medidas produzem mais satisfação pessoal e social que a simples reparação em dinheiro. Atualmente, retoma-se com força a ideia de conjugação de reparação e de pena, na responsabilidade civil (principalmente em situações de danos extrapatrimoniais), enquanto no ilícito criminal cada vez mais assiste-se a substituição da pena de prisão por "penas alternativas", de natureza civil, como obrigações de fazer ou obrigações de dar. Sem o acréscimo da pena civil, a sociedade e outras pessoas ficam vulneráveis a novas violações dos direitos da personalidade, quando o valor econômico suplanta o valor jurídico, na apreciação de custo e benefício. Mas, nenhuma pena civil pode ser considerada sem previsão legal. Neste ponto, a responsabilidade civil atual retoma a diretriz fundamental da pena criminal, como requisito do estado de direito: nulla poena sine lege. Há muito mais espécies e classes de responsabilidade civil de que nossa vã teoria é capaz de unificá-las a partir dos requisitos tradicionais. Comuns são os pressupostos de cada classe em relação às suas espécies. Apesar dessa constatação, haveria ao menos um pressuposto comum a todas elas? Assumindo-se a complexidade irredutível da vida contemporânea, podemos afirmar que sim: a imputação legal da responsabilidade a alguém de obrigação pecuniária ou não, em face de determinado fato jurídico lícito ou ilícito.
Introdução A interpretação do artigo 246 da lei 6.404/1976 ("Lei das S.A.") tem sido objeto de intensos debates desde que o Superior Tribunal de Justiça ("STJ") decidiu, no âmbito do Conflito de Competência nº 185702/DF1, que o ajuizamento, pela própria companhia, de ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador causa a perda de objeto da ação de responsabilidade civil ajuizada anteriormente pelo acionista minoritário. Segundo o artigo 246 da Lei das S.A., acionistas que representem 5% ou mais do capital social - ou que prestem caução das custas e honorários de advogado, caso detenham uma porcentagem menor - podem propor, em nome da companhia, ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador por danos causados por abuso de poder de controle. A decisão do STJ determinou que, caso a companhia decida, por deliberação de sua Assembleia Geral, ajuizar a ação diretamente, a ação anteriormente ajuizada por acionistas minoritários perde o objeto. Na esteira da discussão, Nelson Eizirik publicou artigo2 em que sustentou, essencialmente, que a legitimidade de acionistas para o ajuizamento de ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador da companhia, nos termos do artigo 246 da Lei das S.A., depende da demonstração de prejuízo indireto. Ambos os entendimentos parecem advir de uma má compreensão do espírito do artigo 246 da Lei das S.A. Conjugando-os, chegar-se-ia às seguintes conclusões: (i) somente os acionistas que detinham ações à época do ilícito podem ajuizar a ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador da companhia; e (ii) caso a Assembleia Geral aprove o ajuizamento da ação, a eventual propositura da ação pela companhia causa a perda de objeto de demanda em curso proposta por acionistas minoritários. As duas conclusões são incorretas e incompatíveis com a regra disposta no artigo 246 da Lei das S.A., pelas razões que se passa a expor. Desnecessidade de demonstração de dano indireto pelo acionista Quanto à necessidade de demonstração de prejuízo indireto pelo acionista minoritário para fins de comprovação de sua legitimidade, tal requisito não existe por dois motivos. O primeiro motivo é que o prejuízo indireto não é indenizável no direito brasileiro (art. 403 da lei 10.406/2002) e, portanto, não pode ser utilizado como requisito de legitimidade ativa. A legitimidade depende da relação entre o resultado da demanda e a esfera de direitos da pessoa3, de modo que a existência de dano indireto - que não é indenizável - não pode ser utilizada como requisito para sua aferição. O segundo motivo é que a ação do artigo 246 da Lei das S.A., muito embora seja proposta por acionistas, tem como objetivo, necessariamente, o ressarcimento de prejuízos sofridos pela companhia como decorrência do abuso do poder de controle4. A legitimidade do acionista nesse caso é extraordinária, resultante de substituição processual5. Se a ação busca o ressarcimento de danos sofridos pela companhia, não há que se falar em demonstração de dano indireto pelo acionista para que seja comprovada a sua legitimidade extraordinária. Eventual exigência de demonstração de dano indireto, além de descabida, representaria um ônus excessivo e desnecessário às ações de indenização contra o acionista controlador, criando custos e ineficiência ao funcionamento do mercado6. Além disso, caso se admitisse a necessidade de verificação de dano indireto do acionista para fins de demonstração de sua legitimidade, criar-se-ia situações que a Lei das S.A. nem mesmo previu. Por exemplo, como seria tratado o caso do acionista que possuía ações à época do ilícito, alienou-as no mercado e voltou a adquirir participação posteriormente? No critério proposto por Nelson Eizirik, esse acionista hipotético teria legitimidade, por ter sofrido um "dano indireto" com as ações que foram posteriormente vendidas? Ou o acionista não teria legitimidade, em função de o seu "dano indireto" estar vinculado a ações que foram alienadas? A Lei das S.A. não oferece resposta a esses questionamentos, pois não é essa a lógica e a racionalidade da ação de responsabilidade prevista no artigo 246 da Lei das S.A. Em defesa de sua regra, Eizirik afirma que a demonstração do dano indireto pelo acionista seria necessária para evitar a proliferação de "strike suits", que, segundo o autor, foram muito adotadas nos Estados Unidos. No entanto, sabe-se que o sistema de responsabilização societária nos Estados Unidos tem as suas próprias peculiaridades7, as quais impedem uma comparação direta com as ações de responsabilidade societária brasileiras. Fora isso, embora o artigo 246 da Lei das S.A. encontre-se em vigor com a mesma redação há várias décadas, desde 1976, não se conhece qualquer estudo que demonstre haver uma proliferação de ações contra acionistas controladores. Muito pelo contrário: o problema geralmente apontado pelos estudos da área é de baixa efetividade dos mecanismos de responsabilização de administradores e acionistas controladores8. O argumento dos "strike suits", portanto, é falacioso. E, ainda que esse risco de fato existisse, a possibilidade de pagamento de honorários sucumbenciais, que se impõe ao próprio acionista no caso de insucesso da demanda9, seria um fator inibidor das demandas frívolas. Perda de legitimidade do acionista por decisão superveniente da Assembleia Geral Quanto à perda de legitimidade pelo acionista no caso de aprovação de ajuizamento da ação pela própria companhia pela Assembleia Geral, nos termos da decisão do STJ no Conflito de Competência nº 185702/DF, parece haver um erro de premissa que contamina a conclusão. A premissa incorreta é a de que o legislador foi silente ao dispor sobre a questão da legitimidade da companhia no artigo 246 da Lei das S.A., o que autorizaria a analogia como o artigo 159 da mesma lei10. O artigo 159 da Lei das S.A. prevê a ação de responsabilidade contra administradores da companhia e estabelece uma complexa sistemática que comporta a existência de legitimidade primária da companhia e legitimidade derivada (extraordinária) dos acionistas. A legitimidade primária da companhia nasce na hipótese de aprovação, pela Assembleia Geral, do ajuizamento de ação de responsabilidade contra o administrador (artigo 159, caput, da Lei das S.A.). A legitimidade derivada do acionista se configura em duas hipóteses: (i) caso a companhia deixe de ajuizar a ação no prazo de 3 (três) meses da deliberação da Assembleia Geral, cabendo legitimidade, nessa hipótese, a qualquer acionista (artigo 159, § 3º, da Lei das S.A.); ou (ii) caso a Assembleia Geral delibere por não ajuizar a ação de responsabilidade, hipótese na qual os acionistas que representem ao menos 5% (cinco por cento) do capital social poderão ajuizá-la em nome da companhia (artigo 159, § 4º, da Lei das S.A.). A doutrina em geral qualifica a ação de responsabilidade pela companhia como ut universi e a ação proposta pelos acionistas como ut singuli, havendo substituição processual derivada no caso da aquisição de legitimidade pela omissão da companhia e substituição processual originária no caso da aquisição de legitimidade por reprovação do ajuizamento da ação pela Assembleia Geral11. Percebe-se que toda a sistemática da ação de responsabilidade civil disposta no artigo 159 da Lei das S.A. tem início em uma decisão assemblear. A Assembleia Geral deve, necessariamente, deliberar previamente sobre o ajuizamento da ação. No caso da ação prevista no artigo 246, no entanto, não há qualquer previsão de uma decisão da Assembleia Geral. Não se trata, contudo, de uma lacuna a ser preenchida com analogia ao artigo 159, mas sim de um silêncio eloquente12. Na sistemática da ação de responsabilidade civil contra o controlador, o legislador quis afastar a legitimidade originária da companhia, privilegiando a substituição processual originária pelo acionista. E o fez por um motivo muito simples: a companhia lesada é controlada, justamente, pela parte que lhe causou dano. Caso se admita que a companhia possa ajuizar a ação de responsabilidade diretamente, a condução da demanda e toda a estratégia processual será definida por administradores eleitos pelo réu da ação, isto é, o acionista controlador. Por esse motivo, na lógica do artigo 246 da Lei das S.A., "a ação cabe aos acionistas da sociedade prejudicada, em qualquer caso"13. Cumpre reproduzir a análise de Modesto Carvalhosa sobre a legitimidade ativa na ação de responsabilidade contra o acionista controlador14: A legitimidade dos minoritários é nata e originária. Assim, transformam-se os minoritários em órgão da sociedade para o específico fim de ingressar em juízo contra a controladora. E, assim prescrevendo a lei, configura-se ação social ut universi, na medida em que a controlada faz valer o seu direito à reparação civil junto à controladora, ingressando ela mesma em juízo, através do órgão especial criado para tal fim: os minoritários. A legitimação dos minoritários independe de prévia autorização de qualquer outro órgão da companhia. Os minoritários, portanto, corporificam a vontade da controlada em juízo, representando-a organicamente. [...] Temos, assim, que a legitimidade, para a propositura da ação de reparação de perdas e danos, é exclusivamente dos acionistas minoritários, em grupo, ou mesmo individualmente, mediante prestação de garantia. Nota-se, assim, que a deliberação superveniente da Assembleia Geral aprovando o ajuizamento da ação de responsabilidade contra o acionista controlador pela própria companhia não tem o efeito de causar a perda de objeto da ação proposta pelo acionista minoritário, pois o legislador pretendeu afastar a legitimidade originária da companhia, conferindo-a exclusivamente aos acionistas minoritários, que atuam como seus substitutos processuais. Não se defende, aqui, a posição de Modesto Carvalhosa no sentido de que os acionistas minoritários atuariam, nesse caso, como órgãos da companhia. Até porque, no caso de insucesso da ação, são os acionistas, e não a companhia, que deverão arcar com os custos. Além disso, a legitimidade não cabe apenas aos acionistas minoritários, na medida em que não se vislumbra qualquer óbice à propositura da ação por um novo acionista controlador, no caso de troca de controle. O que há, no artigo 246 da Lei das S.A., é uma substituição processual originária exclusiva, utilizada pelo legislador como instrumento para impedir que o acionista controlador, por via transversa, seja capaz de manipular o resultado da ação que visa à sua responsabilização. Conclusão Os mecanismos de proteção dos acionistas minoritários previstos na Lei das S.A. são insuficientes e frágeis. O acionista controlador, alçado à posição de "dirigente supremo" da companhia15, recebeu poderes demasiadamente amplos, podendo, com poucas restrições, orientar os negócios da companhia da forma que desejar. O cenário de excessivos poderes e poucas restrições é evidentemente desfavorável aos acionistas minoritários, que muitas vezes se sujeitam ao arbítrio do controlador. Um possível sintoma dessa disfuncionalidade da governança estabelecida pela Lei das S.A. é a proliferação, nos últimos anos, de companhias brasileiras que buscam mercados estrangeiros para abrir o seu capital, muito embora continuem a recorrer ao mercado nacional para obter liquidez dos seus títulos por meio de certificados de depósito. Esse fenômeno pode ser explicado pela literatura especializada, que aponta a existência de um "prêmio" para companhias que se sujeitam a ordenamentos com proteções mais robustas aos acionistas minoritários16. Ao fragilizar a ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador prevista no artigo 246 da Lei das S.A., aplicando-o de forma contrária aos interesses de acionistas minoritários, os recentes movimentos de reinterpretação do dispositivo podem exacerbar a disfuncionalidade do sistema de governança da companhia brasileira, reduzindo ainda mais a sua atratividade aos olhos dos investidores. __________ 1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, CC 185702 / DF, Segunda Seção, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22/06/2022. 2 EIZIRIK, Nelson. Usos e abusos do artigo 246 da Lei das S.As. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 3 Ela [legitimidade ad causam] depende sempre de uma necessária relação entre o sujeito e a causa e traduz-se na relevância que o resultado desta virá a ter sobre sua esfera de direitos, seja para favorecê-la ou para restringi-la. Sempre que a procedência de uma demanda seja apta a melhorar o patrimônio ou a vida do autor, ele será parte legítima; sempre que ela for apta a atuar sobre a vida ou patrimônio do réu, também esse será parte legítima. Daí conceituar-se essa condição da ação como relação de legítima adequação entre o sujeito e a causa" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 309). 4 Neste ponto, vale ressaltar o ensinamento do próprio professor Nelson Eizirik: "Trata-se de ação social, uma vez que objetiva a restauração do patrimônio da companhia lesada pela atuação de seu controlador. Verifica-se, nessa hipótese, a substituição processual, pois a ação judicial é proposta pelo acionista, em nome próprio, mas no interesse da sociedade" (EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. v. 3. p. 369. 5 "Trata-se, pois, de legitimação extraordinária autônoma e concorrente, como por excelência o é a resultante da substituição processual (CPC, art. 18), e, mais do que isso, cuida-se de hipótese de legitimação originária, ou primária (adotando-se, para tanto, a tradicional classificação prevalente no estudo dessa matéria)" (ADAMEK, Marcelo Vieira von. A legitimação extraordinária concorrente do acionista para propositura de ação de responsabilidade contra o controlador: modo de lidar com a superveniente iniciativa da companhia. In: FRAZÃO, Ana; CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; CAMPINHO, Sergio. Direito empresarial e suas interfaces: volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 535). 6 Neste sentido, vide: SETOGUTI, Guilherme. O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 7 Vide, neste sentido: MAFRA, Ricardo. A responsabilidade civil da companhia aberta perante investidores por violação do seu dever de informar: análise à luz do funcionamento eficiente do mercado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 328 e seguintes. 8 GORGA, Érica. Culture and Corporate Law Reform: a case study of Brazil. University of Pennsylvania Journal of International Economic Law, Filadélfia, v. 27, p. 803-905, 2000. p. 896-900. 9 A questão dos honorários sucumbenciais foi também ressaltada por Setoguti. SETOGUTI, Guilherme. O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 10 Confira-se o seguinte trecho do voto do Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze (páginas 45 e 46): "A lei 6.404/1976 tratou de forma pormenorizada a respeito da responsabilização dos administradores, em seu art. 159, o qual, de acordo com autorizada doutrina e com esteio em julgados desta Corte de Justiça, comporta aplicação extensiva à responsabilização dos controladores (prevista no art. 246), ainda que se possa estabelecer algum temperamento, considerada as suas particularidades e finalidades". 11 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A e as ações correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 367-373. 12 Nesse sentido, vide o voto do Diretor João Accioly no Processo Administrativo CVM nº 19957.007423/2021-12. 13 LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A Lei das S/A - pareceres. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. v. 2. p. 213. 14 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas - arts. 243 a 300. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 71. 15 "A formação do bloco de controle modifica de fato - e de modo importante - a estrutura de poder na companhia: o poder político, que cabia aos acionistas durante as reuniões da Assembleia Geral, passa a ser exercido - de modo permanente - pelo acionista controlador; e os administradores ficam subordinados a esse acionista , que exerce - de fato - a função de dirigente supremo, ainda que não ocupe cargo dos órgãos da administração, e pode tomar decisões sobre os negócios da companhia independentemente da reunião da Assembleia Geral porque tem a segurança de que serão formalmente ratificadas pelo órgão social" (LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A Lei das S/A - pressupostos e elaboração. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. v. 1. p. 66). 16 COFFEE JR., John C. Law and the market: the impact of enforcement. University of Pennsylvania Law Review, Filadélfia, v. 156, p. 229-311, 2007. p. 233.