COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
Recentemente o Conselho Nacional de Justiça mudou a forma de classificação dos processos envolvendo médicos no âmbito das tabelas processuais unificadas. O CNJ criou as Tabelas Processuais Unificadas (TPU) como instrumentos que uniformizam os temas das demandas judiciais e, assim, facilitam, a pesquisa e também fornecem subsídios para aferir elementos quantitativos das demandas judiciais. Desde então, a única profissão a qual era vinculado o termo "erro" era a Medicina. Inexistia "erro do advogado", "erro do engenheiro", "erro do enfermeiro", "erro do fisioterapeuta" ou "erro do juiz". Mas existia "erro médico".1 Essa situação mudou em 09 de janeiro de 2024, data em que o CNJ, por intermédio do Sr. Gabriel da Silveira Matos, Secretário de Estratégia e Projetos, anunciou a retirada do termo "erro médico" das Tabelas Processuais Unificadas (TPU) e a substituição deste termo por "danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde." É incontroverso que o termo "erro médico" é usado no meio jurídico e social para nomear desfechos desfavoráveis em atendimentos de saúde. Ocorre que desfecho desfavorável não é sinônimo de erro praticado por um profissional da medicina. É bem verdade, entretanto, que  alguns incidentes podem ser diretamente causados por ações negligentes, imprudentes ou imperitas de profissionais médicos; mas há ações negligentes, imprudentes ou imperitas praticadas por profissional de saúde não médico. E mais, independentemente de qual seja a profissão do especialista que causou o incidente, a configuração do erro só pode ocorrer após uma análise cuidadosa do comportamento em questão e a garantia ao direito ao contraditório e à ampla defesa. Vera Lucia Raposo adverte: Nem todo efeito adverso suscetível de ocorrer no âmbito de um ato médico traduz uma falta ética. O efeito adverso é um conceito muito lato, que pretende exprimir toda a ocorrência negativa sobrevinda para além da vontade do médico, que surja como consequência do ato médico e não do estado clínico que lhe deu origem, e que acaba por causar algum tipo de dano ao paciente.2 Genival Veloso pontua que o atual cenário de excessivo preconceito contra médicos gera uma análise prematura de que houve erro apenas em razão do resultado atípico e indesejado.3 A revisão do termo pelo CNJ se deu após provocação do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, órgão que utilizou o argumento acima para questionar o uso da expressão "erro médico" pelo CNJ e que destacava que o apontamento do suposto erro no ato da classificação da ação precede o trânsito em julgado da demanda. Ou seja, haveria - no uso do termo "erro médico" - um pré-julgamento da conduta enquanto culposa. Do ponto de vista técnico, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, a categorização de um incidente como "erro médico" é considerada inadequada e até injusta, pois a ocorrência de um erro envolve diversos fatores e nem sempre é exclusivamente atribuível a um médico. O referido pensamento é compartilhado por Ministério da Saúde, ANVISA e FIOCRUZ, por exemplo. Assim, ao usar termo contrário aos ditames da OMS, o CNJ alimentava a desinformação e a confusão:  ações judiciais proposta em face de odontólogos, fisioterapeutas, biomédicos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, educadores físicos, médicos veterinários, farmacêuticos, biólogos, assistentes sociais e estudantes de saúde eram categorizadas como categoria "erro médico". O próprio Judiciário e a imprensa usavam da expressão "erro médico" para noticiar casos que envolviam profissionais não médicos ou situações em que a culpa não restava comprovada.4 Considerando a manifestação da CBC, o CNJ, determinou que, a partir de agora, as ações que versem sobre "erro médico" sejam categorizadas como danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde. Se, por um lado, a retirada da expressão "erro médico" corrige uma grave violação à isonomia e uma injustiça normalizada, é necessário destacar ainda que a nova nomenclatura não se mostra adequada por dois elementos centrais: é restritiva e é possível que percamos um referencial quantitativo sobre judicialização relativa aos resultados adversos. Ocorre que o pedido não era a criação de uma nova categoria, mas sim que fosse seguido o padrão internacional de "resultados adversos em saúde". Assim, o CNJ - para suprimir a equivocada nomenclatura "erro médico"- cria uma nova nomenclatura  -   "dano moral e/ou material decorrente da prestação de serviço de saúde", acaba por excluir outros tipos de danos extrapatrimoniais como dano estético, dano existencial e dano temporal; e mais, prejudica a tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais, conforme já defendido por Nelson Rosenvald.5 Enquanto fenômeno de acionamento recorrente do Judiciário nas relações médico-paciente, por vezes, de forma banal, a judicialização da Medicina precisa ser quantificada. Se antes sabíamos que havia 35 mil ações categorizadas como "erro médico"6, agora, só teremos os indicadores de "danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde" como forma de mensurar o fenômeno. Nesse grupo, teremos uma infinidade de relações jurídicas judicializadas. A título exemplificativo, podemos ter ações de cobrança indevida, suposta má-prestação de serviços extramédicos, suposta má prestação de serviço paramédico e suposta má prestação de serviço médicos, todos englobados no tema destacado. Adotar a métrica de "danos morais e materiais decorrente da prestação de saúde" para há uma infinidade de relações jurídicas distintas importa em um prejuízo na mensuração do fenômeno. Já o uso da expressão adotada pela OMS de "eventos adversos em saúde" reduziria a discussão para desfechos desfavoráveis com dano em que se discutiria a assistência prestada. O espectro seria muito menor e, portanto, mais significativo. Sem dados, não há política a ser construída.  Muito se avançou em relação à adequação do item de pesquisa, mas ainda se pode melhorar ainda mais. O primeiro passo talvez seja a adequação da nomenclatura do CNJ à orientação da OMS. Isso adequaria a discussão sobre os tipos de danos na responsabilidade civil e ainda promoveria uma padronização internacional. __________ 1 CNJ. Consulta pública de Assuntos. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sgt/consulta_publica_assuntos.php   2 RAPOSO, Vera Lúcia. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.p. 14 3 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p. 58. 4 TJDFT. Clínica e dentista são condenados a indenizar paciente por erro em procedimento. Disponível aqui. G1. Polícia investiga caso de superdosagem de remédio que deixou jovem em estado vegetativo em Porto Alegre. Disponível aqui. 5 ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Disponível aqui. 6 BRASIL. CNJ registra quase 35 mil novos processos por erro médico no país. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2022.
As técnicas de reprodução humana assistida, na atualidade, se consolidaram como importantes alternativas para a constituição de famílias com diferentes formatos, quais sejam as que mantém o vínculo biológico, se houver uso de gametas oriundos dos demandantes do projeto parental, ou as que não são concretizadas por tal vínculo, quando houver decisão por uso de gametas ou embriões doados por pessoas que não possuem a intenção de procriação.  É justamente na doação de gametas, realizada sob distintas circunstâncias, que está o cerne dessa reflexão. A doação de células procriativas é, sem nenhuma dúvida, alternativa essencial à constituição de projetos parentais que vão desde a opção pela monoparentalidade programada (procriação por pessoas sozinhas), passando pela reprodução por casais do mesmo sexo, e chegam aos casos de diagnósticos relacionados à infertilidade, originados do homem ou da mulher, ou, ainda, de ambos. A primeira premissa jurídica que se deve atentar diante desse cenário é a ausência de legislação ordinária específica sobre reprodução humana no Brasil, ao contrário do que optou a maioria dos países europeus ocidentais por exemplo. Registre-se que o Código Civil apenas conferiu previsão à reprodução heteróloga (a constituída por doação de gametas) para estabelecer as regras de presunção de filiação, não apontando qualquer disciplina jurídica sobre as tantas questões que orbitam a sua realização. Cumpre-se, então, atentar para as consequências desse vácuo normativo ordinário: as constantes discussões que se originam da falta de disciplina legal especializada (e, portanto, com força normativa obrigatória) e da regulamentação deontológica pelo Conselho Federal de Medicina - CFM, que, por meio de suas câmaras técnicas, edita resoluções sobre temas de interesse dos seus profissionais. Os últimos 15 anos culminaram em variadas e constantes resoluções do CFM sobre reprodução assistida, onde, em muitas delas, constaram (e constam) previsões que expõem tensões com o ordenamento jurídico como um todo, já que comandos deontológicos não podem restringir direitos e são estritamente destinados à classe dos seus profissionais. A doação de gametas é recepcionada pelo Código Civil, que apenas preocupou-se em estabelecer regras para a presunção de paternidade decorrente. O uso de gametas doados foi regulamentado pela resolução CFM 2.320/221, que manteve inovação prevista pela resolução que a antecedeu, em 2021, qual seja a possibilidade de doação de gametas entre parentes, respeitadas as relações prévias de consanguinidade (irmão e irmã não poderão, por exemplo, gerar um embrião). Ressalvamos, então, que a doação de gametas pode ocorrer entre parentes; na modalidade compartilhada (quando uma mulher, em tratamento, doa óvulos excedentes à outra, também em tratamento, que contribuirá financeiramente com os custos da doadora); entre amigos, que contou com o silêncio do comando deontológico, mas que também acontece em muitos contextos, e, por fim, na modalidade de doação anônima. Fincamos a reflexão na doação anônima, ou seja, aquela que acontece mediante o uso de sêmen e de óvulos originados por doadores e doadoras cadastrados em centros de reprodução humana assistida, que  podem ser bancos de gametas, exclusivamente fornecedores de material germinativo, ou clínicas de reprodução assistida, quando detém, também, a função de coleta de sêmen e/ou óvulos para fins de doação.   Na doação anônima, a relação jurídica que se constitui envolve os demandantes da procriação (pacientes), a clínica de reprodução humana assistida e o banco de gametas, caso a clínica onde ocorrerá o procedimento não tenha seu próprio banco ou os pacientes queiram utilizar um outro em específico. Não há na legislação ordinária em vigência qualquer previsão sobre o procedimento do uso de banco de gametas (apartado ou pertencente à clínica de reprodução), tampouco a dimensão das obrigações e responsabilidades que podem envolver os sujeitos. O tema restou abordado pela Resolução de Direção Colegiada - RDC 771/22 da ANVISA e, em parte, pelo regramento deontológico CFM 2.320/22. A RDC mencionada define como Centro de Reprodução Humana Assistida - CRHA o "estabelecimento de saúde especializado, de natureza pública ou privada, destinado a selecionar, coletar, processar, armazenar, descartar, transportar e disponibilizar células, tecidos germinativos e embriões humanos para uso terapêutico, com vistas a uso próprio ou doação". Conclui-se, dentro dessa perspectiva, que a norma chama de "centro" a instituição que fará a coleta de material germinativo, incluindo bancos especializados e clínicas que tenham o serviço. A mesma RDC afirma que empresa importadora de células e tecidos germinativos é o "estabelecimento habilitado pela Anvisa e licenciado pela vigilância sanitária competente estadual, municipal ou do Distrito Federal, responsável pela importação de células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos de doadores destinados a CRHA para uso terapêutico"2. Para fins de doação e mediante autorização da Anvisa, as células também podem ser importadas pelos Centros de Reprodução Humana Assistida.  Em julho de 2023, a Anvisa concedeu autorização ao banco de sêmen Criobrasil Serviços Ltda, para desempenhar atividades essenciais de importação, transporte e distribuição de células germinativas, tecidos e embriões humanos no território brasileiro. A empresa apresentou documentos que demonstraram o cumprimento das disposições da RDC 771/22, devendo a autorização ser renovada a cada dois anos3.  O cerne da reflexão começa pela complexidade dos procedimentos que acoberta o uso de gametas doados. No Brasil, conforme as leis 9.434/96 e 11.105/05, pessoas não podem comercializar gametas e embriões, mas bancos e clínicas habilitadas o fazem quando demandados, pagando pelos custos da aquisição, que envolve a importação em significativos casos. Sêmen e óvulo são células doadas que não estão submetidas ao manuseio por pessoas físicas, já que, no Brasil, para que a doação ocorra no contexto da procriação medicamente assistida, há regras sanitárias e de biossegurança indispensáveis ao procedimento. Pode-se, assim, afirmar que os destinatários dos gametas (pacientes ou demandantes) não possuem ingerência no processo de manipulação, manuseio e transportes das células, o que deve descartar sua possível responsabilidade por atos dessa natureza.  A resolução CFM 2.320/22 determina, em seu item 10, que "a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões"4. Ao que parece, a intenção do comando deontológico foi afastar possíveis responsabilidades da clínica e do profissional assistente nos casos em que o paciente tenha optado por utilizar um banco de gametas não pertencente aos serviços prestados pela clínica.  Pois bem. Retomemos a regra de que pessoas físicas não podem manusear, transportar e atuar no processo de avaliação de gametas germinativos, logo, não podem ser responsabilizadas por quaisquer danos decorrentes de condutas em que não tenham concorrido para o resultado.  Na prática, o(s) paciente(s) que tem(têm) qualquer demanda por procedimento assistido de procriação busca, de início, uma clínica para consulta com médico especialista em reprodução, que considerará os fundamentos que justificam a procura (relacionados à infertilidade biológica ou às circunstâncias pessoais). A possibilidade de realizar um projeto parental com gametas doados é, na grande maioria das vezes, uma sugestão orientada pelo profissional especialista em reprodução da clínica que o paciente procurou. Assim, ao profissional assistente, cabe a sugestão pelo uso de gametas doados, bem como a orientação sobre o acesso ao material germinativo. Disso resulta, que os próprios profissionais especializados nas clínicas de reprodução conferem sugestões aos pacientes sobre os bancos que indicam ou já trabalham por conhecerem as regras. Na grande maioria dos casos, é a confiança na indicação do profissional médico que será adotada como critério pelo paciente na escolha do banco que fornecerá os gametas.   É certo que podem existir situações em que pacientes queiram escolher bancos de gametas não indicados pela clínica em que o tratamento será realizado. Disso decorrem algumas considerações. Ainda que a indicação não tenha sido feita pelo profissional que acompanha o paciente, a relação com o banco de gametas também envolverá a clínica onde o procedimento será realizado, ou seja, não é o paciente, pessoa física, que vai manusear, preparar e transportar o material germinativo para a clínica em que o tratamento será efetivado. Tendo em vista as normas de biossegurança e de natureza sanitária, assim deve mesmo ser feito.  Esse cenário nos remete à conclusão de que bancos de gametas e clínicas de reprodução (onde o procedimento será realizado) possuem responsabilidade no que concerne à coleta, manuseio, preparação, transporte e todas as condutas que envolvam a suas respectivas atuações em prol de que as células possam ser utilizadas para fins de procriação.  O uso de banco de gametas, indicado ou não pela clínica assistente, deve ser minuciosamente disciplinado no Termo de Consentimento Livre de Esclarecido - TCLE. O documento deve cumprir a sua real função, não apenas em prol de reduzir conflitos jurídicos futuros, mas como instrumento para concretizar a informação. O diálogo e a comunicação, bem como a clareza do conteúdo do TCLE, são fundamentais para que o paciente compreenda as regras que orientam o uso da doação anônima de gametas. Nesse diálogo, cabe ao profissional expor ao paciente as motivações que conduzem à indicação de determinados bancos de gametas, certamente, orientadas pela confiança em trabalhos previamente desenvolvidos e pelo conhecimento sobre o atendimento às regras sanitárias, tão importantes a esse tipo de relação. Uma das justificativas mais plausíveis é o alinhamento entre as tarefas e as responsabilidades que envolvem bancos e clínicas de reprodução, o que pode ensejar a construção de TCLE's não conflitivos (o TCLE entre clínica e paciente e o TCLE entre banco de gametas e paciente).  Juridicamente, sabe-se que o conteúdo do TCLE pode ser afastado, quando evidenciado flagrante violação de direito dos sujeitos envolvidos ou quando a conduta não encontrar respaldo pelo Direito. Aqui, é importante considerar que, independentemente de ter existido indicação pela clínica, trata-se de duas relações jurídicas distintas, o que demanda a construção de dois termos de consentimento livre e esclarecido também diferentes.  Cada TCLE (o assinado na clínica e o assinado no banco) deve aportar a medida de atuação das partes envolvidas, explicando o que compete a cada uma, considerando, inclusive, os limites do conhecimento científico. As questões que envolvem a seleção do fenótipo do doador, por exemplo, precisam ser minuciosamente explicadas, já que, mesmo que a semelhança entre doadores e receptores seja a priori observada, conforme os critérios de ancestralidade, cor da pele, cabelo e olhos, traços e outros, se a genética é probabilidade, não há qualquer obrigação em se garantir a semelhança exata entre quem doa e quem tem a intenção de procriar.  Uma das questões mais conflitivas que envolve a doação anônima de gametas são as doenças detectáveis, por exames específicos, originadas dos doadores e que, a partir da genética, podem ser transmitidas à futura prole. Somente a comunicação dialógica e o TCLE podem revelar com clareza quais patologias são detectáveis por exames (do ponto de vista das limitações da Ciência) e quais exames serão feitos (considerando os que são obrigatórios pela norma, como, recentemente, o cariótipo, e os que englobam a prestação daquele serviço de fornecimento dos gametas).  A negligência informacional culmina na responsabilidade dos bancos e/ou das clínicas, na medida em que não tenham observado, como obrigação decorrente desse tipo de contrato, o protagonismo da informação. Somente de posse do conteúdo informativo adequado, pacientes terão autonomia para decidir usar gametas doados e escolher bancos e clínicas para concretizarem o almejado projeto parental.  --------------------------- 1 CFM. Resolução CFM n. 2.320/2022. Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320_ 2022.pdf. Acesso em: 13 fev. 2024. 2 ANVISA. Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) n. 771. 22 de dezembro de 2022. Disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/5141698/RDC_771_2022_.pdf/816aa15e-ceba-4e12-b6669affe9d 66957 Acesso em: em: 14 fev 2024. 3 ANVISA. Anvisa habilita primeira empresa importadora de células germinativas e embriões no Brasil. Out. 2023. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202310/anvisa-habilita-primeira-empresa-importadora-de-celulas-germinativas-e-embrioes-no-brasil. Acesso em: 14 fev. 2024. 4 CFM. Resolução CFM n. 2.320/2022. Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320 _2022.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.
O livro Direito Marítimo e Portuário: Temas Controversos e aspectos polêmicos (Editora Juruá) foi desenvolvido com o objetivo de fornecer uma visão didática acerca do Direito Marítimo e Portuário, abordando problemáticas centrais em torno desses ramos do direito. A obra reúne os diversos aspectos práticos e atuais, abarcando questões como o transporte marítimo de passageiros, responsabilidade civil, relação com o Código de Defesa do Consumidor, incluindo uma abordem internacional por meio de tratados e convenções, inclusive algumas não ratificadas pelo Brasil, além de interpretações do Supremo Tribunal Federal, bem como temas específicos relacionados ao Direito Civil. Aborda a responsabilidade civil de acordo com os contratos marítimos de afretamento, evolvendo a problemática da responsabilidade ambiental objetiva integral por ato de terceiro, considerando poluidor direto e indireto. Ainda, a responsabilidade civil na remoção de destroços, considerando se tratar de um tema sensível à segurança da navegação e à prevenção da poluição marítima, além da responsabilidade administrativa e civil em casos de incidentes com óleo e poluição ambiental marítima. No que concerne à teoria da personificação do navio / embarcação, por meio de uma análise do Direito Comparado, com abordagem do Direito Português, demonstram-se os elementos que individualizam a embarcação, com destaque à nacionalidade, elemento de conexão para as relações desenvolvidas pelo navio no campo do direito. Considerando a necessidade de aproximar o Direito da realidade, diante dos problemas complexos da sociedade moderna, aborda a segurança cibernética e a proteção de dados no direito marítimo, considerando inclusive as relações de trabalho e as medidas de proteção que devem ser adotadas, de acordo com a legislação nacional e convenções internacionais. Com relação à segurança marítima, navegação de longo curso, analisa a pirataria marítima enquanto ameaça econômica, bem como sua possível caracterização como avaria grossa, o que repercutirá na responsabilidade civil, além da análise securitária da cobertura. Da mesma forma, são abordados temas como os direitos do trabalhador marítimo, legislação trabalhista aplicável ao tripulante, Convenção do Trabalho Marítimo, com destaque a princípios como o da força da gravidade, que tende a ser utilizado pela Justiça do Trabalho para estabelecimento da legislação trabalhista em embarcações em navegação de longo curso. Da mesma forma, a jurisdição penal que deve ser aplicada para crimes a bordo de embarcações mercantes, considerando a legislação penal brasileira e convenções internacionais, além do princípio do livre trânsito em território brasileiro. No que concerne ao processo marítimo, trata da competência e atuação do Tribunal Marítimo, ratificação de protesto marítimos, regulação e avaria grossa, procedimentos inclusive previstos no Código de Processo Civil, entre outros temas atuais. Portanto, o principal objetivo desta obra é debater pontos controversos do Direito Marítimo e Portuário, de forma acessível a todos os leitores, independente da área de formação e atuação. Acredita-se que a obra colabora com o aprimoramento do estudo do Direito Marítimo e Portuário, possibilitando que diversos temas sejam tratados de forma didática, permitindo ao leitor se atualizar e acompanhar matérias controversas da atualidade. Mesmo centrado em torno de duas grandes disciplinas, o livro consegue passar pelo Direito Público e Privado, de forma interdisciplinar, além de incluir nas análises a legislação nacional e estrangeira, permitindo sempre um conhecimento amplo da questão.
"Ao meu sentir, a causa principal do êxito da sustentação e do desenvolvimento da doutrina e da prática do dano moral no Brasil é encontrada na boa percepção que nossos magistrados tiveram do que seja juízo prudencial"José Osório de Azevedo Junior Resenha: Qual é a importância da jurisprudência brasileira na construção do sistema contemporâneo de responsabilidade civil? O que a sociedade pode esperar do Poder Judiciário em matéria de Direito de Danos? Deve o legislador confiar na capacidade de a Justiça bem equacionar a tutela de danos patrimoniais e extrapatrimoniais no terceiro milênio? São essas as questões que o presente ensaio procura apresentar, em especial à luz dos trabalhos de reforma do Código Civil, realizados pela subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa. No apagar das luzes do ano de 2023, lemos com satisfação o parecer apresentado pela subcomissão de juristas responsáveis pela revisão e atualização do Código Civil (Ato do Presidente do Senado Federal nº 11/23). No que toca à responsabilidade civil e ao enriquecimento sem causa, os resultados foram excelentes. Os ilustres juristas Nelson Rosenvald, Maria Isabel Gallotti e Patrícia Carrijo encaminharam aos relatores da Comissão de Reforma um valioso conjunto de profícuas sugestões.1 Souberam unir o rigor técnico que a academia exige à necessidade de concretização da Justiça, anseio pela qual clamam todos os que batem às portas do Poder Judiciário. Nesse brevíssimo ensaio, circunscrito à responsabilidade civil, pretende-se examinar e enaltecer o voto de confiança que se está a novamente creditar às Cortes de Justiça do Brasil. A reforma do Código Civil que se procura realizar com seriedade por um grupo de juristas de notória competência não significa que o Código em vigor não apresenta qualidade satisfatória. Em absoluto. O Código Civil é um diploma normativo notável, que recebeu as mais vivas reverenciais de juristas do Brasil e do exterior, nos seus vinte primeiros anos de vigência. Permeado por cláusulas gerais e atento ao que de melhor existe em termos de técnica legislativa, o Código Reale soube bem refletir os anseios da sociedade brasileira quando de sua promulgação. Sucede que tais necessidades não mais são presentes no ano de 2024.2 Mudam os tempos. Mudam os costumes. Mudam as leis. Nada desprestigia ou compromete, entretanto, o relevante papel exercido pelo Código Civil de 2002, que é o fruto de um processo legislativo iniciado no já distante ano de 1975 (Projeto nº 634/75).3 "A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de 50 anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos 2.000 anos de civilização", acentua a subcomissão na Exposição de motivos. A sistematização da responsabilidade civil demanda criteriosa intervenção dos reformadores. A prudência do legislador revela-se essencial para que o Código Civil continue a ocupar a centralidade do sistema infraconstitucional no tratamento do Direito de Danos. Para os trabalhos de reforma, três premissas (justificativas) foram eleitas como centrais.4 Primeiro, a busca pela linguagem clara, direta, compreensível a todos, como exige o princípio da operabilidade. Segundo, a necessária compatibilização entre as exigências da Constitucionalização do direito privado e o papel de coordenação dos diversos microssistemas de responsabilidade civil que exerce o Código Civil. Terceiro, a preocupação em cristalizar na lei muito do que se viu sedimentar na jurisprudência, estabelecendo critérios seguros de aplicação/realização na Justiça na responsabilidade civil. Segundo os membros da subcomissão em causa, quatro grandes eixos estruturam a reforma do livro de responsabilidade civil. Primeiro, a reorganização dos nexos de imputação, "concedendo-se racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar". Segundo, a organização do sistema de danos a partir da necessidade de "contenção normativa da proliferação de várias etiquetas a lesões a interesses merecedores de tutela". Terceiro, a sedimentação das funções compensatória, preventiva, punitiva e promocional da responsabilidade civil. Quarto, a disciplina legislativa de hipóteses específicas de reparação de danos, com a supressão de dispositivos legais ultrapassados, fiéis ao Código Beviláqua, mas distantes do panorama atual da ampla tutela dos bens jurídicos existenciais e patrimoniais. O ponto que se pretende vincar nessa breve reflexão, como sugere o título, reside no mérito de a subcomissão voltar os seus olhos a uma particularidade que se faz nítida na responsabilidade civil: "o fato de (a responsabilidade civil) ser um conjunto de normas precipuamente dirigida aos magistrados". De fato, como se percebeu, significativa parcela das demandas nas Cortes do Brasil diz respeito à responsabilidade civil, consoante levantamento do Conselho Nacional de Justiça.5 Daí porque a subcomissão defendeu que "se o que pretendemos é conceder segurança jurídica e mitigar a discricionariedade judicial, o primeiro passo consiste em oferecer critérios objetivos e claros para a contenção de ilícitos e reparação de danos". Por outras palavras, assinala a subcomissão, "reputamos essencial a harmonização entre cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando a atuação dos juízes e tribunais". Nas últimas décadas, a jurisprudência do Brasil foi sensível às exigências da sociedade no campo do Direito de Danos. Basta recordar que, também por força das decisões judiciais, a tônica da responsabilidade civil migrou da resposta estatal ao ato ilícito perpetrado pelo ofensor para a reparação do dano injusto causado à vítima.6 Basta registrar, ainda, que, inspirado pela Carta Constitucional de 1988, o dano moral ganhou ampla aceitação pela jurisprudência pátria, passando a ser compreendido com nitidez como a lesão aos direitos da personalidade a partir de sólida construção jurisprudencial. Não é demais recordar, nessa quadra, que o dano moral era algo incipiente na primeira metade do século XX, recebendo a sua força propulsora na posterior aceitação pelas Cortes de Justiça.7 Na atualidade, todo profissional com experiência forense tem conhecimento de que são raríssimas as pretensões indenizatórias nas quais não se vê, ao lado da reparação de danos patrimoniais, cumulativamente deduzido o pedido de indenização de danos extrapatrimoniais. É importante salientar que a confiança depositada pela subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa no Poder Judiciário decorre do fato de a sociedade brasileira ter reconhecido o valor da prudência judicial. Muito já se disse sobre a industrialização do dano moral, sobre a banalização do dano extrapatrimonial ou sobre a hipertrofia do dano moral. A despeito de pontuais excessos, a contenção dos magistrados no arbitramento de valores indenizatórios de danos morais é bem vista pela sociedade. Nos danos morais, não mais se negam as funções compensatória, preventiva, punitiva, pedagógica e promocional da responsabilidade civil.8 Mesmo diante dessa multiplicidade de funções, deve a sociedade confiar que o Poder Judiciário agirá com firmeza e moderação. Novos danos são permanentemente captados pelos magistrados nas suas fundamentadas decisões, tais como danos indiretos, danos por ricochete, danos por frustração de expectativas legítimas, danos existenciais e danos pelo desvio produtivo (pelo tempo perdido). Diante deles, a magistratura saberá caminhar pela estreita senda que separa a suficiência da condenação (ao ofensor) e a vedação ao enriquecimento indevido (à vítima). Também é digna de aplausos a proposta da subcomissão de responsabilidade civil e enriquecimento sem causa que pretende fixar critérios seguros para arbitramento dos danos morais, como colhe da proposta de redação do art. 9519, que corporifica o critério bifásico de arbitramento10, sustentado de forma pioneira no Superior Tribunal de Justiça pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino.11 Igualmente signa de registro é a fé q   eu se renova no Poder Judiciário em matéria de indenização social, a partir do que estabelece o parágrafo 5º do art. 951, segundo o qual, "respeitadas as exigências processuais e o devido processo legal, o juiz poderá reverter parte do acréscimo em favor de fundos públicos destinados à proteção de interesses difusos ou estabelecimento idôneo de benemerência".12 Para o aprimoramento das instituições, é fundamental que a sociedade continue a confiar na prudência dos magistrados, em matéria de responsabilidade civil, notadamente no que diz respeito ao dano moral. Com efeito, "o juízo prudencial está presente em toda problemática do dano moral. Como a vida está no corpo, ele está por inteiro no tema todo e em cada aspecto particular. Falar do juízo prudencial do dano moral acaba sendo falar do próprio dano moral".13 As eventuais insuficiências e os pontuais desvios são frutos das imperfeições que decorrem da própria falibilidade humana. Os excessos certamente serão corrigidos pela própria jurisprudência, que lhe dará os rumos adequados, em um sistema judiciário que se aproxima de um modelo de precedentes, como se pretende ver prevalecer a partir dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil. A realidade comprova que, em matéria de responsabilidade civil, o Poder Judiciário é suficientemente forte, não se mostra tímido, tampouco arrojado ao extremo. Mais se peca, se pecado houver, pela excessiva prudência, do que pelos abusos da função punitiva da responsabilidade civil. Daí porque bem age o reformador ao acentuar, no art. 926-A, que "as disposições deste Título (Da Responsabilidade Civil) são aplicáveis às funções preventiva, punitiva, e reparatória de danos". Enfim, em tempos de reforma do Código Civil, é momento de renovar a fé na Justiça do Brasil. É tempo de recordar a lição de José Osório de Azevedo Junior14. Segundo ele, passados mais de trinta anos da explosão do dano moral nas Cortes de Justiça do Brasil, a inicial preocupação da comunidade jurídica sobre como seriam os danos extrapatrimoniais tratados pela jurisprudência rapidamente cedeu ao bom trabalho dos julgadores. Houve, nas suas palavras, a "solidificação da boa doutrina sobre dano moral pela jurisprudência brasileira, que assumiu o desafio de julgar somente a partir de princípios, inexistentes regras legais particulares".15 Reformar um diploma legislativo da magnitude do Código Civil brasileiro é hercúlea tarefa que exige sabedoria, coragem, competência e prudência de todos os que nele estão envolvidos. Tudo o que é novo traz consigo temor, porque é próprio da alma humana temer o que se desconhece. Mas é também verdadeiro que o desconhecido nem sempre traz perdas; ao reverso, muito se pode ganhar quando se acredita, com otimismo, nas potencialidades do porvir. O amadurecimento da Ciência do Direito caminha ao lado de uma responsabilidade civil que atinge maturidade na jurisprudência. Que na reforma do Código Civil, prevaleçam o Humanismo e a dignificação do ser humano. Fico feliz pelos novos ventos que a reforma traz. __________ 1 A respeito, ver: ROSENVALD, Nelson. Breve exposição de motivos da reforma do Título IX - Da responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. 2 Para um estudo mais profundo a respeito das origens do Código Civil de 1916 e 2002, por todos, respectivamente, v. GOMES, Orlando. Origens históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003; REALE, Miguel. História do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. Ainda, v. GUERRA, Alexandre (coord.). Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. V. 1. Apresentação. Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. 3 A respeito, aqui. Acesso: 05.02.2024. 4 Para leitura completa do parecer, ver aqui. Acesso: 05.02.2024. 5 Ver aqui. Acesso: 05.02.2023. 6 Sobre a transposição do núcleo da conduta ilícita do ofensor para a reparação de danos injustos, ver:  GUERRA, Alexandre D. de Mello. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: EPM, 2022. Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. 7 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo, Saraiva, 1949, p. 193 ss. 8 Sobre as funções da responsabilidade civil, v. PIZZOL, Ricardo Dal. Responsabilidade civil. Funções preventiva e punitiva. Indaiatuba, Foco, 2020; ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. A reparação e a pena civil. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2022; MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). R. CEJ Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar.2005. Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. Ainda, sobre a salutar fixação de critérios legais, v. DRESCH, Rafael de Freitas Valle; LEAL, Eduardo Coelho. Função punitiva da responsabilidade civil: necessidade de fixação de critérios no novo Código Civil. Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. 9 Art. 951. Na quantificação do dano extrapatrimonial, observar-se-á: I - Em sua valoração, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de valores de indenização adotados por tribunais em casos semelhantes; II - Em sua extensão, as peculiaridades do caso, podendo a indenização ser fixada além ou aquém do valor relativo ao inciso I. § 1º. No caso do inciso II, serão observados os seguintes parâmetros: a) Nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar e/ou social, afazeres cotidianos e domésticos, dentre outros; b) Grau de reversibilidade; c) Grau de ofensa ao bem jurídico; (...) 10 V. GUERRA, Alexandre. O método bifásico de arbitramento da indenização por danos morais. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson; DENSA, Roberta (coords.). Responsabilidade Civil das relações de consumo. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 655-670. 11 Por todos, v. EMENTA: RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. CRITÉRIOS DE ARBITRAMENTO EQUITATIVO PELO JUIZ. MÉTODO BIFÁSICO. VALORIZAÇÃO DO INTERESSE JURÍDICO LESADO E DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO.  (...). Elevação do valor da indenização por dano moral na linha dos precedentes desta Corte, considerando as duas etapas que devem ser percorridas para esse arbitramento. 4. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes. 5. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo a determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz. 6. Aplicação analógica do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953 do CC/2002. 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. Recurso especial provido. (STJ, REsp n. 959.780/ES, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 26/4/2011, DJe 6/5/2011.). Disponível aqui. Acesso: 05.02.2024. 12 A respeito da indenização social, ver: GUERRA, Alexandre. Três lições de responsabilidade civil, de Renan Lotufo. In: GUERRA, Alexandre; MORATO, Antonio Carlos. MARTINS, Fernando Rodrigues; ROSENVALD, Nelson (coords.). PIRES, Fernanda Ivo (org.). Da estrutura à função da responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 315-330. 13 AZEVEDO JUNIOR, José Osório de. Juízo prudencial e dano moral. In: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo (coords). Responsabilidade civil bancária. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 187. 14 AZEVEDO JUNIOR, José Osório de. Ob. cit., p. 185-200. 15 Ob. cit., p. 196-197.
Em recente obra1, tive a oportunidade de refletir sobre os contornos peculiares que a responsabilidade civil do Estado passa a ostentar na sociedade da informação. Percebe-se a necessidade de revisitação da teoria do risco administrativo para que se possa tutelar situações geradoras de danos que desbordam dos exemplos clássicos, restritos ao mundo analógico. Nas origens do Estado contratualista, a frase "Public office is a public trust" (O cargo público pressupõe a confiança pública) indicava a imprescindibilidade da fidúcia depositada pelos cidadãos na atuação estatal. Na contemporaneidade, com a tendência irrefreável à adoção do autosserviço2, o que se nota é o efeito contrário: uma crescente dificuldade de se confiar em algoritmos3, especialmente naqueles que são como "caixas-pretas" (black boxes), em comparação com a confiança depositada na atuação dos agentes públicos para fins de responsabilização do Estado. Logo, questiona-se: pode o Estado ser responsabilizado pelos "ilícitos algorítmicos" derivados de falhas de sistemas que porventura utilize? Haveria o que se pode chamar de "algorithmic misconduct"4, para referenciar Teubner e Beckers? E mais: no apogeu da Internet das Coisas, também se pode dizer que há risco de que a própria rede se torne uma Internet de Ilícitos (Internet of Torts, como denota o trocadilho de Rebecca Crootof)5? Ora, o avanço tecnológico trouxe consigo uma série de desafios legais e éticos, e um tema cada vez mais relevante é a responsabilidade do Estado diante dos chamados "ilícitos algorítmicos", aos quais o risco é inerente6. O autosserviço é um dos pilares do Governo Digital, que busca oferecer serviços públicos mais ágeis, eficientes e acessíveis à população, reduzindo a burocracia e aumentando a transparência e a participação social. O objetivo é que os cidadãos possam realizar suas demandas com a administração pública de forma autônoma, sem precisar de intermediários humanos, o que reduz custos e tempo para a prestação dos serviços públicos. Na prática, o autosserviço pode incluir o acesso a informações, solicitação de serviços, envio de documentos e outras demandas por meio de plataformas digitais disponibilizadas pelos órgãos públicos7. Com a Lei do Governo Digital (14.129/2021), os órgãos públicos passaram a disponibilizar serviços digitais que sejam desejavelmente de fácil utilização e acessíveis a todos os cidadãos8, embora ainda exista acentuada assimetria em relação a isso. Na lei, o autosserviço é visto como uma das principais medidas para a implementação do Governo Digital no Brasil - tanto é que sua adoção é "preferencial" (art. 14, parágrafo único) desde 2021 -, e o que se busca é tornar a administração pública mais moderna e eficiente, facilitando a vida dos cidadãos e das empresas que precisam lidar com os serviços públicos9. Porém, a adoção do autosserviço no atendimento ao cidadão pode trazer alguns desafios e riscos que precisam ser levados em consideração pelos gestores públicos. Dentre os principais desafios, podemos destacar a exclusão digital de parte da população, a falta de capacitação e treinamento dos usuários para o uso de tecnologias, a falta de confiança nos serviços públicos on-line e o risco de incidentes de segurança com dados pessoais. Além disso, há uma relação intrínseca entre o autosserviço e os sistemas de inteligência artificial (IA) no contexto do Governo Digital10 e não se nega que tais sistemas possam ser usados para melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços públicos oferecidos por meio de plataformas de autosserviço11. Por exemplo, chatbots ou assistentes virtuais podem ser implementados para responder a perguntas frequentes e auxiliar os usuários na realização de serviços de forma mais rápida e eficiente. Algoritmos e sistemas de IA também podem ser usados para processar grandes volumes de dados e fornecer inferências úteis aos gestores públicos, permitindo a melhoria contínua dos serviços oferecidos. Além disso, sistemas de IA podem ser usados para personalizar a experiência do usuário em plataformas de autosserviço, oferecendo sugestões e recomendações com base nas preferências e no histórico de uso do usuário. Isso pode melhorar significativamente a satisfação geral e aumentar a adoção de serviços digitais pelo público em geral12, pois, por meio do autosserviço, torna-se possível acessar serviços que antes eram burocráticos, sem a necessidade de deslocamentos ou atendimentos presenciais, com longas filas e logística dificultosa, o que contribui para diminuir a perda de tempo e facilitar a resolução de demandas mais triviais. Tudo isso permite que o cidadão tenha maior controle sobre seus interesses na interação com o Estado e evite a espera em filas e a burocracia tradicional13. Isso não apenas economiza tempo, mas também promove maior eficiência na prestação de serviços públicos, proporcionando uma experiência mais satisfatória ao administrado e uma administração mais moderna e adaptada aos desafios do século XXI. A empolgação, contudo, parece ofuscar situações nas quais o Estado parece não ser responsabilizado in concreto pela simples invocação de excludentes causais em disputas regidas pela teoria do risco administrativo, que subjaz à norma definida no artigo 37, §6º, da Constituição da República. Os exemplos são abundantes e variam dos "megavazamentos" de dados - como o que ocorreu no início de 2021 e envolveu os números de CPF de todos os cidadãos do país14 - a situações mal explicadas como o episódio de indisponibilidade do Sistema ConecteSUS15, no auge da pandemia de Covid-19, e os diversos ataques de DDoS e ramsonware a sítios eletrônicos de tribunais brasileiros.16 Em todos esses casos, a invocação do fortuito externo - viável pela regência formal da responsabilização a partir do risco administrativo - se torna uma recorrente matéria de defesa nas contestações da advocacia pública, servindo como um pretenso "salvo conduto" para justificar a impossibilidade da condenação. Claramente, um cenário insustentável e injusto. Segundo Felipe Braga Netto, "ao analisar, teórica e criticamente, a responsabilidade civil do Estado, percebemos que há avanços realizados, e pontos por avançar. Certamente, hoje, o Estado responde civilmente por atos e omissões que durante boa parte do século passado, no Brasil, ele não respondia. Essas mudanças, sabemos, são lentas, e culturalmente complexas. (...) Avançamos lentamente. Essa parece ser a nota das mudanças sociais, e isso se mostra particularmente verdadeiro no direito, que - não por acaso - recebeu a pecha de ser conservador, de não apreciar mudanças que não contam com o apoio sereno dos (muitos) anos".17 A pergunta que se coloca é se o Estado pode ser responsabilizado por eventuais danos causados por esses sistemas algorítmicos falhos de autosserviço. De fato, o conceito de "algorithmic misconduct" de Teubner e Becker parece denotar alguma necessidade de averiguação fática de conduta dotada de ilicitude, pelo que tenho preferido me referir ao tema, na língua inglesa, pela nomenclatura "algorithmic wrongdoing"18, referindo-me mais particularmente à possibilidade de o Estado ser responsabilizado por danos decorrentes de algoritmos que falhem ao cumprir seus propósitos previamente definidos na escala de programação, ou que produzam resultados danosos injustificados. No contexto da crescente "Internet das Coisas" (IoT), a preocupação se intensifica, uma vez que a interconexão de dispositivos e a coleta massiva de dados ampliam a exposição a riscos. Com a possibilidade de sistemas automatizados controlarem carros, cidades inteligentes e outras infraestruturas críticas, a "Internet of Torts" passa a ser uma expressão de alerta19. Isso porque, se falhas algorítmicas ocorrerem em larga escala, podem resultar em prejuízos significativos para a sociedade, indo além dos danos individuais20. A responsabilização do Estado nos casos de "ilícitos algorítmicos" envolve aspectos complexos, como a definição de quem seria responsável por tais falhas, em última instância: os desenvolvedores dos algoritmos, os gestores públicos que os utilizam, ambos...? Além disso, é necessário estabelecer critérios claros para identificar o agir culposo que viabilize eventual discussão de regresso, bem como compreender a dificuldade de responsabilizar uma figura como o Estado por danos causados por sistemas automatizados incognoscíveis21. Por outro lado, argumenta-se que a responsabilização é imprescindível para garantir a accountability do Estado e a proteção dos direitos individuais e coletivos22. Nesse sentido, é importante buscar a transparência e a auditoria dos algoritmos, garantindo que as decisões automatizadas sejam justas, éticas, imparciais e sempre resguardadas pelas melhores práticas de segurança da informação. Nesse sentido, para além da Política Nacional de Segurança da Informação (decreto 9.637/2018), a definição de normas específicas para o uso de algoritmos pelo Estado pode ser uma solução para minimizar os riscos e aumentar a confiança na utilização dessas tecnologias em regimes de autosserviço. Ademais, é fundamental promover a conscientização sobre os possíveis reflexos negativos dos "ilícitos algorítmicos" e a necessidade de responsabilização nos casos de falhas. O desafio, como se vê, é homérico e não se tem uma solução clara... O que se reconhece é que encontrar o ponto de equilíbrio entre a promoção da inovação tecnológica e a proteção dos direitos fundamentais é um desafio que requer a atuação proativa. Somente a partir da maior colaboração entre a comunidade jurídica, especialistas em tecnologia e governos é que se poderá encontrar soluções adequadas para lidar com esse desafio crescente, pois a complexidade do tema exige uma abordagem criteriosa para que se estabeleçam as bases da boa governança voltada às tecnologias automatizadas. __________ 1 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Responsabilidade civil do Estado e tecnologia: uma releitura da teoria do risco administrativo. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 183-184. 2 Trata-se de conceito formal, definido no artigo 4º, inciso II, da Lei de Governo Digital (lei 14.129/2021) como sendo "o acesso pelo cidadão a serviço público prestado por meio digital, sem necessidade de mediação humana". 3 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Administração Pública digital: proposições para o aperfeiçoamento do Regime Jurídico Administrativo na sociedade da informação. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 135. 4 TEUBNER, Gunther; BECKERS, Anna. Responsibility for Algorithmic Misconduct: Unity or Fragmentation of Liability Regimes? Yale Journal of Law and Technology, New Haven, v. 25, n. 76, p. 78-100, 2023. p. 93. 5 Rebecca Crootof comenta: "Even as the potential for harm escalates, contract and tort law work in tandem to shield IoT companies from liability. Exculpatory clauses limit civil remedies, IoT devices' bundled object/service nature thwarts implied warranty claims, and contractual notice of remote interference precludes common law tort suits. Meanwhile, absent a better understanding of how IoT-enabled injuries operate and propagate, judges are likely to apply products liability and negligence standards narrowly, in ways that curtail corporate liability". CROOTOF, Rebecca. The Internet of Torts: expanding civil liability standards to address corporate remote interference. Duke Law Journal, Durham, v. 69, p. 583-667, 2019, p. 583. 6 Sobre o tema: "Talvez, caiba mais uma reflexão. Vivemos, atualmente, em sociedades de risco (a afirmação virou quase um truísmo). Em nossas atuais sociedades de risco, há - ou, melhor ainda, deveria haver - uma permanente (e democrática) discussão acerca de quais riscos são socialmente aceitáveis. E quem por eles deverá responder. O caminhar das décadas e dos séculos altera, por certo, nossas percepções acerca dos riscos. Não só isso. Altera também nosso olhar sobre quais riscos, hoje, o Estado (por exemplo) deverá responder, e quais estão sob a responsabilidade dos cidadãos. Trata-se de discussão democrática e necessária". BRAGA NETTO, Felipe; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A atividade estatal entre o ontem e o amanhã: reflexões sobre os impactos da inteligência artificial no direito público. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 457. 7 BEHN, Robert D. The challenge of evaluating m-government, e-government, and p-government: what should be compared with what? In: MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; LAZER, David (ed.). Governance and information technology: from electronic government to information government. Cambridge: The MIT Press, 2007, p. 215-238. 8 KREUZ, Letícia Regina Camargo; VIANA, Ana Cristina Aguilar. 4ª Revolução Industrial e governo digital: exame de experiências implementadas no Brasil. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, v. 5, n. 2, p. 267-286, jul./dez. 2018. 9 Cf. CORVALÁN, Juan Gustavo. Digital and intelligent Public Administration: transformations in the Era of Artificial Intelligence. A&C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 55-87, jan./mar. 2018. 10 BRAGA, Lamartine Vieira. Fostering e-government in Brazil: a case study of digital certification adoption. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 585-600, dez. 2017. 11 SANTANNA, Gustavo da Silva. Administração pública eletrônica: o caminho para a implantação de serviços públicos 4.0. Londrina: Thoth, 2022. p. 23-88. 12 Reduzindo-se a "perda de tempo" do administrado, torna-se pertinente eventual discussão sobre a lesão ao tempo (e seu afastamento). Com relação ao tema específico, conferir GUGLINSKI, Vitor Vilela. Da responsabilidade civil do Estado pela perda do tempo útil/livre do administrado. Boletim de Administração Pública e Gestão Municipal, Curitiba, v. 6, n. 54, p. 405-408, mar. 2016. Em linhas mais amplas, considere-se o conceito de lesão ao tempo e a ponderação bem contextualizada de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, "no exemplo genérico da injustificada perda do tempo na fila de agência bancária, é bem crível que, para além da questão extrapatrimonial, decorram do inesperado atraso efeitos de ordem patrimonial na vítima, como a perda de compromissos profissionais [...]". MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Lesão ao tempo: configuração e reparação nas relações de consumo. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 43, n. 141, p. 87-113, dez. 2016. p. 107. 13 Cf. VILLELA, João Baptista. Relação de consumo e responsabilidade civil do estado. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 9, n. 59, p. 59-71, maio/jun. 2009. 14 O fato foi noticiado pelo Migalhas, à época. Acesso em: 30 jan. 2024. 15 Em março de 2022, o tema foi analisado em interessante reportagem do Migalhas. Acesso em: 30 jan. 2024. 16 SALVADOR, João Pedro Favaretto; GUIMARÃES, Tatiane. O ataque ao STJ é mais um grito de socorro da segurança cibernética no Brasil. Migalhas de Peso, 10 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 jan. 2024. 17 BRAGA NETTO, Felipe. Manual da responsabilidade civil do Estado: à luz da jurisprudência do STF e do STJ e da teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 345. 18 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Responsabilidade civil do Estado e tecnologia: uma releitura da teoria do risco administrativo. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 125. 19 CROOTOF, Rebecca. The Internet of Torts: expanding civil liability standards to address corporate remote interference. Duke Law Journal, Durham, v. 69, p. 583-667, 2019, p. 666-667. 20 DEMPSEY, James X.; CATE, Fred H. Recommendations for Government and Industry. In: CATE, Fred H.; DEMPSEY, James X. (ed.). Bulk collection: systematic government access to private-sector data. Oxford: Oxford University Press, 2017. p. 423-432. 21 BARBOSA, Mafalda Miranda. Responsabilidade civil do Estado e sistemas autónomos. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 4, p. 640-668, 2022, p. 666. Comenta: "O desenvolvimento dos sistemas de inteligência artificial fica dependente do acesso a quantidades massivas de dados, através dos quais a máquina poderá «autonomamente» aprender, com base nas técnicas de machine learning e deep learning. Mas, para além desses dados, outros podem estar relacionados com os sistemas de IA. Na verdade, a tomada de decisão que se baseia em algoritmos inteligentes está diretamente relacionada com o tratamento que se possa fazer de dados dos sujeitos que serão afetados pela atuação da Administração". 22 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O Estado entre dados e danos: uma releitura da teoria do risco administrativo na sociedade da informação. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (coord.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 43.
O último dia 15 de dezembro representa um marco na gestão de risco e resposta a desastres no Brasil, tendo sido publicada a lei 14.755, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), discrimina os direitos das Populações Atingidas por Barragens (PAB), prevê o Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PDPAB) e estabelece regras de responsabilidade social dos empreendedores. O marco regulatório representa um divisor de águas tanto por prever referenciais legais para gestão de resposta de risco em face dos desastres com barragens quanto por determinar critérios e matrizes básicas para a reparação mínima dos atingidos. Este artigo busca tematizar pontos importantes do novo marco legal, inclusive para fins de sua problematização jurídica e descrição de margens de aplicação. A lei 14.755/23 possui como contexto socioambiental de existência, inegavelmente, os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho. Nessa linha, dois dos pontos principais discutidos nas ações judiciais reparatórias de ambos os desastres foram convertidos em obrigação legal. São eles o auxílio emergencial e as assessorias técnicas. O auxílio emergencial é verdadeira medida de cautelaridade reparatória. Quando ocorre um desastre, os atingidos ficam em situação de vulnerabilidade, perdendo por vezes as condições de subsistência. Não há esparçamento temporal para que o processo avance e somente no futuro ocorra a reparação. As necessidades são urgentes e devem ser custeadas pelo responsável pelo desastre. Assim, o auxílio emergencial se volta para assegurar a manutenção dos níveis de vida até que as famílias e indivíduos alcancem condições pelo menos equivalentes às precedentes ao desastre. Já as assessorias técnicas se configuram como apoio especializado para fins de suporte à população atingida, não se confundindo com as funções técnicas ou jurídicas dos órgãos e entidades públicas. A assessoria técnica atua, por exemplo, no mapeamento de necessidades e níveis de projeção dos danos ocasionados por um desastre a fim de orientar e esclarecer os atingidos a partir de diálogos internos. Embora a lei não teça maiores critérios, a fixação da obrigação é um marco no ordenamento jurídico brasileiro, cuja sistemática processual é pouco alinhada com a necessidade de respostas dotadas de níveis de celeridade e urgência no pós-desastre. Entretanto, um ponto antecedente demanda abordagem. Quem são os atingidos por barragens? Quais são as esferas objetivas de aplicação do novo marco regulatório? A lei 14.775 está ligada inerentemente à lei 12.334, de 20 de setembro de 2010, que trata da Política Nacional de Segurança de Barragens. Entretanto, essa ligação possui consequências de exclusão objetiva. Não serão todos os barramentos ou barragens que levarão à aplicação do diploma protetivo. Apenas as estruturas antrópicas que possuam enquadramento no artigo 1º da lei 12.334/10 é que sujeitam a aplicação do marco legal de proteção às populações atingidas. Nessa linha, por exemplo, uma estrutura de dique que não alcance 15 metros, tenha capacidade menor do que três milhões de metros cúbicos, não seja reservatório de produtos perigosos e não tenha categorização de dano potencial associado alto ou médio assim como categoria de risco alto, não será abarcada pela lei protetiva. Por outro lado, embora os desastres com barragens estejam muito associados às barragens de rejeitos de mineração, o marco legal protetivo abrange também outros tipos de barragens. Barragens para fins hídricos, hidráulicos, assim como para fins de disposição de resíduos industriais ou de rejeitos de minérios nucleares são também abarcadas pelo novo marco regulatório. Em relação à população atingida, há uma série de questões problemáticas que levarão a litígios e necessidade de integração hermenêutica na esfera da responsabilidade civil. Não há dúvida que a população diretamente impactada em termos físicos pelo rompimento da barragem é uma população atingida. Aliás, esse é o ponto de derivação como critério de partida de aferição dos danos sofridos. Entretanto, há categorias de atingidos com consequente diversidade de patamares protetivos e reparatórios possíveis. O artigo 2º do novel diploma legal estabelece como gênero de população atingida por barragens todos aqueles sujeitos a um ou mais dos seguintes impactos provocados pela construção, operação, desativação ou rompimento de barragens: perda da propriedade ou perda da posse do imóvel; desvalorização de imóveis em razão de sua localização próxima ou à jusante da barragem; perda da capacidade produtiva ou de recursos naturais geradores de renda; perda de recurso natural pesqueiro ou outro recurso natural de insumo; interrupção prolongada ou alteração da qualidade da água que prejudique o abastecimento; perda de fontes de renda e trabalho; impactos negativos em atividades econômicas e sujeição a efeitos sociais, culturais e psicológicos negativos derivados de remoção ou evacuação em situação de emergência; alterações no modo de vida de populações tradicionais e povos originários; interrupção de acesso a áreas urbanas e comunidades rurais Certamente, a situação de desvalorização de imóveis será uma das que mais celeumas desencadeará. Isto porque pelo marco regulatório não é necessário que haja a ruptura ou risco de ruptura da barragem para fins de configuração do fator reparatório. A simples potencialidade do dano já acarreta teor reparatório, configurado a partir da desvalorização. Embora o §1º do artigo 2º determine sua aplicação às Populações Atingidas por Barragens (PAB) existentes na região por ocasião do licenciamento ambiental da barragem ou de emergência decorrente de vazamento ou rompimento da estrutura, nos termos a serem fixados em regulamentação, torna-se complexo sustentar a não ocorrência do direito reparatório a todos aqueles hoje na situação de desvalorização prevista na lei. A motivação de veto do §3º, do artigo 1º, expressou o intento de delimitação temporal do marco regulatório. Ali se destacou que contraria o interesse público permitir interpretações divergentes sobre a temporalidade de aplicação da Lei, com incidência sobre casos já ocorridos ou licenciamentos ambientais em andamento, de forma a impactar na segurança jurídica e administrativa dos contratos e pactuações já existentes. Além disso, o §2º do artigo 1º da Lei estabelece que suas previsões se aplicam ao licenciamento ambiental de barragem e aos casos de emergência decorrentes de vazamento ou rompimento da estrutura, nos termos do regulamento a ser editado. Embora seja indicativo o intento de se restringir a reparabilidade da desvalorização da propriedade ou da posse de imóveis a casos futuros, com constante referência ao licenciamento ambiental, resta-se aberta a sustentação de dano por desvalorização já para as propriedades e posses existentes mesmo em áreas de barragens já licenciadas e em operação. A argumentação previsível em sustentação será a identidade de fatores de dano ou risco, que não podem desencadear tratamento diferenciado pelas matrizes de responsabilidade civil em função da época em que foi feito o licenciamento ambiental ou implementado o empreendimento por si só. Esse fator coliga-se ao fato revelador da sujeição dos imóveis às áreas de mancha das barragens, tendo em conta seu mapa de inundação. O mapa de inundação consiste no "produto do estudo de inundação que compreende a delimitação geográfica georreferenciada das áreas potencialmente afetadas por eventual vazamento ou ruptura da barragem e seus possíveis cenários associados e que objetiva facilitar a notificação eficiente e a evacuação de áreas afetadas por essa situação", conforme previsto no artigo 2º, inciso XI, da lei 12.334/2010, sob redação conferida pela lei 14.066/2020. A questão da área efetiva de inundação era em intensa parte desconsiderada no passado. É inumerável o quantitativo de pessoas que literalmente se descobriram em área de inundação após anos e mesmo décadas de implantação de barragens. Essa questão era simplesmente ignorada no passado. Em decorrência, a partir do momento em que foi "revelada" a situação de risco, as propriedades ou posses tiveram efeito econômico negativo em sua valoração imobiliária, independentemente da época da implantação ou licenciamento. Além do mais, o critério em si do mapa de inundação, em sua previsão legal, é redesenhado no ano de 2020 pela lei 14.066, ao que se somam os questionamentos sobre estudos que subestimavam, e por vezes ainda subestimam, as áreas de impacto. Por fim, soma-se outra articulação. O marco legal protetivo aplica-se ainda a todas as situações em que perdure a ausência de reparação plena e integral. Em decorrência, embora os desastres de Mariana e Brumadinho, dentre outros, sejam anteriores ao novel marco legal, a ausência plena de reparação integral configura situação de sujeição permanente aos efeitos do desastre. Se a situação de sujeição ao desastre ainda é existente, a configuração legal protetiva e reparatória prevista na lei 14.755/23 pode ser aplicada àqueles atingidos. Não há dúvidas quanto aos avanços normativos propiciados pelo novo marco de proteção das populações atingidas por barragens. Mas na mesma toada não há dúvidas quanto às polêmicas jurídicas e judiciais que se avizinham.
A histórica instituição da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil de 2002 Em setembro de 2023 (ano que marca o vintênio inicial de vigência do nosso Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406/2002), iniciaram-se os trabalhos da "Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil", criada pelo Ato do Presidente do Senado Federal (senador Rodrigo Pacheco) nº 11, de 2023 (ATS nº 11/2023).1 Sob a Presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e a Vice-Presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze, bem como a Relatoria-Geral do Professor Flávio Tartuce e da Professora Rosa Maria de Andrade Nery, a Comissão de Juristas se estruturou a partir de uma divisão interna em Subcomissões, cada qual liderada por um Relator Parcial.2 Teve início, então, em paralelo às reuniões ordinárias da Comissão, uma sequência de audiências públicas e de reuniões com instituições variadas, no intuito de se colherem da comunidade jurídica considerações e sugestões que pudessem ser compartilhadas em conformidade com o cronograma geral da Comissão e com o plano de trabalho de cada uma das suas Subcomissões. É digno de nota elogiosa, com efeito, o esforço da Comissão de Juristas para a realização de encontros que propiciassem a promoção de debates sobre um tema tão central para o nosso cotidiano - a revisão e atualização do Código Civil. Destaco, pela experiência mais próxima que tive a oportunidade de vivenciar, as mesas redondas públicas realizadas pela Subcomissão de Direito das Sucessões e pela Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa, em novembro e em dezembro de 2023, respectivamente, ambas na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),3 minha dileta alma mater. Por ocasião da mesa redonda para apresentação de sugestões à Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa, que contou com a honrosa presença de todos os seus membros - Professor Nelson Rosenvald (Relator Parcial), Ministra Maria Isabel Gallotti e Juíza Patrícia Carrijo -, ficou estabelecido que as considerações haveriam de se restringir à temática da responsabilidade civil, diante das naturais limitações de tempo. O profícuo andamento dos debates naquela ocasião - que serviu de verdadeira demonstração da franca abertura acadêmica da Subcomissão (bem como da inteira Comissão) -, propiciando uma alvissareira apresentação panorâmica acerca das proposições formuladas, me levou a acreditar que seria oportuno buscar contribuir com a reflexão acerca das propostas da Subcomissão tendo por referência especificamente a temática do enriquecimento sem causa, que me é particularmente cara. Eis o escopo fundamental do presente artigo, motivado, ademais, pela disponibilização pública (na esteira da transparência e da abertura ao diálogo características da inteira Comissão) dos Relatórios Parciais elaborados pelas Subcomissões,4 atualmente em fase de análise pelos Relatores Gerais.5 Novos passos rumo à almejada superação da "crônica de um instituto desprestigiado" No processo de pesquisa para a elaboração da minha dissertação de mestrado -desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, sob orientação do Professor Gustavo Tepedino -, tive a percepção de que "[a] análise das fontes nacionais sugere, então, que o desenvolvimento histórico da vedação ao enriquecimento sem causa no direito brasileiro poderia ser sintetizado como a crônica de um instituto desprestigiado".6 Com tal afirmação, busquei destacar a escassa atenção que tradicionalmente é dispensada ao instituto da vedação ao enriquecimento sem causa, bem como a corriqueira confusão conceitual na matéria. Felizmente, o cenário tem sido gradativamente alterado nessas duas primeiras décadas de vigência do Código Civil, e é possível perceber o contínuo crescimento da atenção dedicada por doutrina e jurisprudência nacionais à vedação ao enriquecimento sem causa, em suas mais variadas facetas.7 Faltava, então, um avanço também no plano legislativo, no intuito de se superarem lacunas e defasagens que caracterizam o tratamento do instituto desde a promulgação do Código Civil de 2002. Em boa hora, portanto, a comunidade jurídica é contemplada com o louvável labor da Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa, acrescido da perscrutante análise dos Relatores Gerais e dos demais membros da Comissão de Juristas. Antes de passar a enunciar alguns exemplos da preocupação da Subcomissão para com o aperfeiçoamento da disciplina do instituto da vedação ao enriquecimento sem causa, destaco o que vejo como êxito na busca geral pela "harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos" - objetivo deliberado da Subcomissão em questão, como se extrai do respectivo Relatório Parcial submetido à apreciação dos Relatores Gerais.8 Nesse sentido, cito, a título ilustrativo, as novas regras propostas para a definição do termo inicial da correção monetária e dos juros de mora incidentes sobre a obrigação restitutória, que tendem a propiciar maior previsibilidade no equacionamento dos conflitos envolvendo pleitos de restituição de enriquecimento sem causa. Ainda a título introdutório, vale ressaltar que, dos quatro pressupostos para a configuração da cláusula geral do dever de restituir - quais sejam, o enriquecimento, a ausência de justa causa, a obtenção à custa de outrem (até aqui falamos de pressupostos positivos) e a subsidiariedade (pressuposto negativo) -,9 o Relatório Parcial em exame formula proposições diretamente direcionadas a todos eles, salvo o pressuposto da obtenção à custa de outrem. Com efeito, tal pressuposto é preservado, com a sua tradicional fórmula "à custa de outrem", que já tem sido atentamente compreendida pela doutrina como uma exigência de vinculação causal, afastando-se de uma (inexistente) exigência de empobrecimento contraposto ao enriquecimento.10 Por se tratar de um ponto cuja adequada compreensão está relativamente consolidada, considera-se mais um acerto da Subcomissão a escolha de não propor alterações a esse respeito. Passo, então, a expor brevemente as principais alterações propostas pela Subcomissão em matéria de enriquecimento sem causa. Ausência de justa causa do enriquecimento O Relatório Parcial apresentado pela Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa contém duas principais sugestões de alteração do art. 884 do Código Civil. Em primeiro lugar, no âmbito do caput do art. 884, é proposta a alteração da locução adverbial "sem justa causa" pelo advérbio "injustificadamente",11 com vistas a aproximar "a norma da terminologia mais utilizada na doutrina contemporânea e direito comparado". A propósito, sem embargo da existência de variadas expressões de conteúdo potencialmente similar - como enriquecimento injustificado, enriquecimento injusto ou mesmo enriquecimento ilícito (sempre desde que compreendidas tais expressões à luz dos contornos próprios do instituto em comento) -, parece-me que seria benfazeja a manutenção do uso da expressão enriquecimento sem causa, especialmente pela ausência da constatação de maiores mazelas decorrentes de eventual má compreensão de tal pressuposto. Assim, acredito que a deferência ao uso consagrado pela tradição do nosso direito tenderia a mitigar o surgimento de novas dúvidas na matéria, além de facilitar a promoção da coerência interna do sistema, tendo em consideração o uso consagrado por doutrina, jurisprudência e legislação - vide, por exemplo, a menção a "enriquecimento sem causa" no atual art. 206, § 3º, inciso IV, do Código Civil e no próprio título do atual Capítulo IV (""Do Enriquecimento Sem Causa") do Título VII do Livro I da Parte Especial do Código Civil. Em segundo lugar, o Relatório Parcial da Subcomissão propõe importar para o parágrafo único do art. 88412 o conteúdo do atual art. 885. Com isso, a nova redação do parágrafo único do art. 884, que importa (e expande) a dicção do atual art. 885, tem o mérito de explicitar ainda mais o entendimento de que a ausência de justa causa (um dos pressupostos positivos da cláusula geral do dever de restituir) pode ser originária (como sucede, por exemplo, na hipótese de pagamento indevido por indébito subjetivo) ou superveniente (como sucede, por exemplo, na hipótese de pagamentos efetuados em cumprimento a um contrato que vem a ser anulado ou resolvido). Ou seja, pode ser que a ausência de justa causa se manifeste apenas após o momento inicial do enriquecimento, de modo que a atribuição patrimonial originariamente com justa causa passe a ser reputada sem justa causa em razão de acontecimentos posteriores - como, por exemplo, a anulação do negócio jurídico anulável ou a resolução do contrato por inadimplemento. Embora tal compreensão já pudesse ser extraída da redação originária do art. 885, a nova redação proposta pela Subcomissão tem o mérito não só de explicitar o adequado entendimento, mas também de positivar, de modo mais direto, o fundamento para a pretensão restitutória desencadeada pela resolução contratual. Com efeito, trata-se de ponto interessante, uma vez que em alguns casos de ausência superveniente de justa causa, como a resolução contratual, o Código Civil conta apenas com a cláusula geral de restituição (e não com regra mais específica) sobre o surgimento do dever de restituir.13 Termo inicial da correção monetária e dos juros de mora incidentes sobre a obrigação restitutória A redação atual do Código Civil não conta com previsão específica a respeito do termo inicial da correção monetária e dos juros de mora incidentes sobre a obrigação de restituição do enriquecimento sem causa. No capítulo próprio dedicado à cláusula geral do dever de restituir, apenas há previsão de que, por ocasião da restituição, deverá ser "feita a atualização dos valores monetários" (atual redação do art. 884, caput), sem qualquer indicação do termo inicial de tal correção monetária. Ademais, não há previsão específica acerca dos juros de mora incidentes sobre a obrigação restitutória. Diante de tais lacunas, apenas resta ao intérprete-aplicador do direito buscar uma solução nas regras gerais que disciplinam o inadimplemento das obrigações, com as dificuldades inerentes a esse processo. Tais dificuldades se agravam, sobretudo, pela consideração de que, a rigor, as normas contidas no Título "Do Inadimplemento das Obrigações" (atual Título IV do Livro I da Parte Especial do Código Civil) ordinariamente se ocupam muito mais do inadimplemento das obrigações negociais do que do inadimplemento das obrigações não negociais, sobretudo no que diz respeito às obrigações restitutórias.14 Diante desse cenário, é louvável a iniciativa da Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa no que diz respeito à proposição de uma nova redação para o caput do art. 885, segundo a qual "[o] valor da restituição será atualizado monetariamente desde o enriquecimento e acrescido de juros de mora desde a citação". Quanto à correção monetária, tem-se que a definição da sua incidência "desde o enriquecimento" é coerente com o escopo de recomposição do poder de compra da moeda. Já quanto aos juros de mora, tem-se que a definição da sua fluência "desde a citação" tende a propiciar maior previsibilidade, especialmente em comparação com eventual proposição que se pautasse indiscriminadamente na incidência dos juros de mora a partir da data do enriquecimento, em toda e qualquer hipótese.15 Regras especiais para a liquidação do enriquecimento restituível Outra preocupação louvável da Subcomissão se verifica em relação ao esforço de se determinar de modo mais analítico "o modo de liquidar a restituição do enriquecimento" (Relatório Parcial, p. 136). Para tanto, a Subcomissão sugere o deslocamento (com diversos ajustes) do conteúdo do atual parágrafo único do art. 884 para o art. 885, com a criação de novos parágrafos a serem adicionados a tal artigo.16 Nesse contexto, o novo § 1º do art. 885 retomaria a essência da parte inicial do atual parágrafo único do art. 884, ao tratar da denominada restituição in natura - "[s]e o enriquecimento tiver por objeto um bem determinado, quem o recebeu é obrigado a restituí-lo". Em complemento, o novo § 2º retomaria a essência da parte final do atual parágrafo único do art. 884, ao tratar da denominada restituição pelo equivalente pecuniário - se "o bem a ser restituído não mais subsistir, a restituição se fará pelo seu valor na época em que foi exigido, limitado ao benefício auferido" -, porém com uma importante inovação, consistente na limitação da restituição ao "benefício auferido" pelo enriquecido. Tal inovação se revela uma resposta bem-intencionada a um problema que, ao fim e ao cabo, decorre da inadequada aplicação da "teoria do duplo limite" no direito brasileiro - teoria segundo a qual a restituição haveria sempre de consistir no menor valor apurado a partir dos critérios do enriquecimento patrimonial e do empobrecimento real. Idêntica consideração aparentemente pode ser feita acerca do novo § 3º do art. 885 (sem correspondente direto na atual redação do Código Civil), que trata da restituição na hipótese de má-fé do enriquecido. Para além da conveniência de não reavivarmos os (felizmente já raros) redutos de relevância da má-fé no direito civil, parece-me que o caminho mais prudente seria superarmos os termos em que tradicionalmente posta a contraposição entre enriquecimento real e enriquecimento patrimonial. Como busquei sustentar em outra sede, apenas deveria importar para a análise do intérprete o incremento patrimonial efetivamente auferido pelo enriquecido, para o que se há de levar em consideração, sim, o valor do bem (e/ou da sua utilização) que havia sido indevidamente incorporado ao patrimônio do enriquecido, sem consideração a uma situação patrimonial hipotética orientada pelo malfadado enriquecimento patrimonial.17 Assim, superados os contornos da antiga distinção (entre enriquecimento patrimonial e enriquecimento real) que caracteriza(va) a teoria do duplo limite, alcançaríamos um cenário no qual sequer seria necessário cogitar de inovações como aquelas refletidas nos novos §§ 2º e 3º do art. 885. Por sua vez, o novo § 4º do art. 885 seria dedicado a equacionar hipóteses nas quais o bem objeto do enriquecimento sem causa tenha sido transmitido a terceiro. Segundo a redação sugerida, "[t]ambém é obrigado à restituição o terceiro que receber gratuitamente bem objeto do enriquecimento, ou, tendo agido de má-fé, recebeu-o onerosamente". Aqui, efetivamente, restaria mais justificada a preocupação com a boa-fé ou a má-fé do terceiro, já que aparentemente o dispositivo proposto seria concebido para enfrentar um problema de proteção do terceiro adquirente de boa-fé no âmbito de uma cadeia de transmissão que venha a ser afetada pela ausência da causa que justificaria em primeiro lugar a transmissão do domínio. Subsidiariedade da cláusula geral do dever de restituir Por fim, a Subcomissão propõe uma alteração da redação do art. 886, que trata do derradeiro pressuposto (negativo) da cláusula geral do dever de restituir - a subsidiariedade. Segundo a sugestão do Relatório Parcial, a parte final do atual art. 886 ("Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido") seria substituída pela fórmula "se a lei conferir ao titular outra pretensão restitutória". A par da benfazeja substituição de "lesado" por "titular" (que bem demarca a distinção funcional entre responsabilidade civil e enriquecimento sem causa), a sugestão efetivamente vai ao encontro das proposições doutrinárias contemporâneas que buscam restringir o escopo da regra da subsidiariedade à determinação da impossibilidade de cumulação de pretensões restitutórias diante da unicidade de situação fática. Em outras palavras: não se admite que, diante de uma mesma hipótese fática, o interessado postule cumulativamente uma pretensão restitutória com base na cláusula geral do art. 884 e outra pretensão, também de natureza restitutória, fundada em eventual norma específica que legitime o seu nascimento (pense-se, por exemplo, no direito do possuidor de boa-fé à restituição das benfeitorias necessárias e úteis, nos termos do art. 1.219 do Código Civil). E mais: a teor da subsidiariedade, não apenas se veda a referida cumulação, como igualmente se impede que o interessado invoque a cláusula geral do dever de restituir em detrimento dos requisitos próprios (ou mesmo do prazo prescricional próprio) que a legislação porventura associe a certa hipótese fática deflagrada da restituição. Por tais razões, merece aplauso o Relatório Parcial ao propor a alteração da redação do art. 886. Nessa mesma direção, levando em consideração a proposta que tenho desenvolvido com vistas à compreensão da subsidiariedade como um pressuposto negativo de configuração da cláusula geral do dever de restituir (ou seja, pressuposto negativo da cláusula geral, e não do inteiro instituto da vedação ao enriquecimento sem causa), acredito que poderia ser oportuno considerar uma proposta de redação do art. 886 em termos próximos aos seguintes: "Não caberá a restituição por enriquecimento sem causa com base nos arts. 884 e 885 deste Código, se a lei conferir ao titular pretensão restitutória com fundamento autônomo". Afinal, a rigor, é plenamente possível que de um único fato jurídico nasçam dois deveres de restituir com fundamentos distintos; o que se pretende evitar com a regra da subsidiariedade é tão somente o bis in idem na restituição. Considerações finais Para além das questões já endereçadas pelo Relatório Parcial da Subcomissão, destaco, a título de epílogo inconclusivo e sem qualquer caráter exaustivo, algumas outras questões que ainda mereceriam vir a ser endereçadas pela Comissão de Juristas, caso se entenda pela sua adequação ao escopo do atual movimento de reforma: (i) formulação de uma nova sistematização dos Atos Unilaterais; (ii) explicitação da incidência do prazo prescricional trienal do enriquecimento sem causa (previsto pelo atual art. 206, § 3º, inciso IV) para a generalidade das pretensões restitutórias (que não contem com prazo próprio), ainda que não decorrentes da cláusula geral de restituição; (iii) estabelecimento de parâmetros para a quantificação da restituição nas hipóteses de lucro da intervenção. Ficam os mais sinceros votos de que possam as sugestões render profícuos debates no âmbito das reuniões conclusivas da Comissão de Juristas, culminando com o mais seguro desfecho para a propugnada reforma do Código Civil. __________ 1 A Comissão de Juristas foi instituída "com a finalidade de apresentar no prazo de 180 (cento e oitenta dias), anteprojeto de Lei para revisão e atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (código civil)", como se depreende do art. 1º do ATS nº 11/2023, disponível no site do Senado Federal). Previsão similar consta do art. 1º do Regulamento Interno da Comissão de Juristas (também disponível no site do Senado Federal), in verbis: "Este Regulamento disciplina os trabalhos da Comissão de Juristas responsável por apresentar anteprojeto de proposição legislativa para revisão e atualização da Lei nº 10.406/2022 (Código Civil), instituída pelo Ato do Presidente do Senador Federal nº 11/2023 em 24 de agosto de 2023". 2 A composição final da Comissão de Juristas e das suas Subcomissões pode ser encontrada no site do Senado Federal. 3 A íntegra das reuniões está disponível no canal da Faculdade de Direito da UERJ no Youtube. 4 Os Relatórios Parciais estão disponíveis no site do Senado Federal. 5 O cronograma geral dos trabalhos consta do Anexo I do já referido Regulamento Interno da Comissão de Juristas. 6 SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil / Revista dos Tribunais, 2022 [1. ed. 2018], p. 25. 7 A título puramente ilustrativo do crescimento da atenção por parte da doutrina nacional, em sede de obras monográficas, a respeito de discussões que envolvem a temática do enriquecimento sem causa, v., em ordem cronológica de publicação e sem qualquer caráter exaustivo, NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa: o lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012; LINS, Thiago. O lucro da intervenção e o direito à imagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: JusPodivm, 2019; MORAES, Renato Duarte Franco de. Enriquecimento sem causa: e o enriquecimento por intervenção. São Paulo: Almedina, 2021. 8 Trata-se oficialmente do Parecer nº 1, de 15/12/2023, da Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento Sem Causa da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL). 9 A proposta de reconhecimento dos arts. 884-886 do Código Civil como a fonte de uma cláusula geral do dever de restituição (à semelhança do que se verifica com as cláusulas gerais de responsabilidade civil contidas no caput e no parágrafo único do art. 927 do Código Civil), bem como de identificação dos seus pressupostos positivos e do seu pressuposto negativo, foi desenvolvida em SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil / Revista dos Tribunais, 2022, capítulo 2. Vale ressaltar que a Subcomissão, em seu Relatório Parcial, incorpora expressamente a noção de "cláusula geral do enriquecimento sem causa". 10 Como elucida o Enunciado nº 35 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF): "A expressão 'se enriquecer à custa de outrem' do art. 886 [rectius: art. 884] do novo Código Civil não significa, necessariamente, que deverá haver empobrecimento". 11 Veja-se a redação proposta: "Art. 884. Aquele que, injustificadamente, se enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir o indevidamente auferido. (...)". 12 Veja-se a redação proposta: "Art. 884. (...) Parágrafo único. Também incide a pretensão restitutória quando a causa que justificou o enriquecimento deixar de existir, for inválida, ineficaz ou não se realizar, ou em razão de uma atribuição patrimonial injustificada que não corresponda à violação de um negócio jurídico ou à prática de um ato ilícito". 13 Como já se pôde ressaltar em SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Prazo prescricional da pretensão restitutória no direito brasileiro: o exemplo da restituição decorrente da resolução dos contratos de consumo. Revista de Direito do Consumidor, vol. 134, mar.-abr./2021, p. 336-340. 14 Subjaz a todo esse raciocínio a adesão à proposição teórica de tripartição funcional das obrigações: "Falar na diversidade de funções que desempenham as obrigações que acabamos de caracterizar como autônomas, é o mesmo que nos reportarmos à diversidade de interesses que são prosseguidos em cada uma delas. Assim, a tripartição entre obrigações negociais, de responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa constitui a divisão fundamental das obrigações, do ponto de vista dos interesses tutelados" (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 439)". A propósito, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Fontes das obrigações e regimes jurídicos obrigacionais gerais: em busca do papel da vedação ao enriquecimento sem causa no direito civil contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 36, dez./2019, passim. 15 Para o desenvolvimento da reflexão, especialmente no que diz respeito ao necessário esforço de observância do pressuposto geral da culpa para a deflagração dos juros moratórios em razão da mora no cumprimento da obrigação restitutória, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil / Revista dos Tribunais, 2022, p. 244-245. 16 Veja-se a redação proposta: "Art. 885. O valor da restituição será atualizado monetariamente desde o enriquecimento e acrescido de juros de mora desde a citação. §1º. Se o enriquecimento tiver por objeto um bem determinado, quem o recebeu é obrigado a restituí-lo; §2º. Caso o bem a ser restituído não mais subsistir, a restituição se fará pelo seu valor na época em que foi exigido, limitado ao benefício auferido. §3º. Se o enriquecido tiver agido de má-fé o valor da restituição será o maior entre o benefício por ele auferido e o valor de mercado do bem. §4º. Também é obrigado à restituição o terceiro que receber gratuitamente bem objeto do enriquecimento, ou, tendo agido de má-fé, recebeu-o onerosamente". 17 "(...) o direito positivo brasileiro direciona a sua atenção, em matéria restitutória, à vantagem patrimonial injustificada efetivamente auferida. Consagra-se, assim, a relevância genérica do que se poderia referir (sob o enfoque ora propugnado) por enriquecimento real, cujo verdadeiro conteúdo não se esgota no critério do valor médio ou objetivo do bem, abrangendo, isso sim, toda a vantagem patrimonial concretamente auferida pelo enriquecido. Não merecem prosperar, portanto, eventuais propostas de atribuição de relevância jurídica geral ao enriquecimento virtual da pessoa, assim entendido o enriquecimento que ela possível ou provavelmente viria a ter caso não houvesse ocorrido a concreta situação geradora de vantagem patrimonial injustificada. Justifica-se, assim, a invocação, com a devida cautela, das razões que conduzem a doutrina nacional, em matéria de responsabilidade civil, à rejeição da relevância negativa da causa virtual. Em suma, ressalvada a prerrogativa do legislador para estabelecer hipóteses específicas de relevância do aqui denominado enriquecimento virtual, a restituição no direito brasileiro há de se pautar no enriquecimento real" (SILVA, Rodrigo da Guia. Atributos do enriquecimento injustificado restituível: sentido e alcance das noções de realidade, patrimonialidade e certeza do enriquecimento sem causa. Revista IBERC, vol. 5, n. 3, set.-dez./2022, p. 132-133. Grifos do original).
A sub-rogação consiste na substituição de um dos polos do vínculo obrigacional por um terceiro, que, ao solver a dívida do devedor originário, doravante assume a posição de credor.1 Em outras palavras, um credor é substituído por outro, com todos os direitos do credor originário, podendo perseguir o cumprimento da obrigação em face do devedor. Na disciplina geral das obrigações, o art. 349 do Código Civil dispõe que "a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores". No âmbito do contrato de seguro, "paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano" (CC, art. 786). No seguro, a sub-rogação atende a múltiplas funções. Por um lado, prestigia-se o princípio indenitário, impedindo que o sinistro seja fonte de lucro para o segurado (o qual, em tese, poderia locupletar-se postulando a reparação, pela mesma lesão, ao mesmo tempo em face do segurador e do terceiro).2 Por outro lado, trata-se de medida que permite a melhor gestão fundo mutual pelo segurador, com a consequente redução dos custos da operação de seguros e o barateamento do prêmio.3 Além disso, no seguro, a sub-rogação também desempenha função relevante para a própria responsabilidade civil, evitando que o causador do dano deixe de responder pelos seus atos apenas porque a parte lesada foi indenizada pelo segurador. Se o segurado, de forma cautelosa, contratou o seguro, resguardando-se contra determinados riscos, não seria razoável que tal fato tornasse o terceiro, causador do dano, isento de responsabilidade.4 O segurador, ao pagar a indenização securitária, sub-roga-se na posição jurídica do segurado contra o terceiro, podendo valer-se de todas as prerrogativas que aquele detinha contra este. Caso haja, por exemplo, relação de consumo entre o segurado e o causador do sinistro, a seguradora sub-rogada beneficiar-se-á das normas de proteção do consumidor.5 A mesma premissa aplica-se à definição do prazo prescricional de que dispõe a seguradora para demandar o causador do sinistro em ação de regresso, que será aquele aplicável à relação jurídica originária.6 Pelo mesmo fundamento, na ação de regresso movida pelo segurador, o causador do sinistro poderá suscitar quaisquer defesas fundadas na relação jurídica originária, que pudessem ser opostas ao segurado (lesado pelo sinistro e credor originário do direito à reparação). Discute-se, contudo, se, além das defesas oriundas da relação originária, o causador do dano, demandado na ação de regresso, poderia invocar defesas fundadas no próprio contrato de seguro. A questão é controvertida e, no âmbito jurisprudencial, há, de um lado, precedentes reconhecendo, expressa ou implicitamente, a prerrogativa dos terceiros (causadores do dano) de alegarem, em sua defesa, quaisquer matérias que o próprio segurador poderia ter invocado, no âmbito da respectiva regulação de sinistro, para refutar a pleiteada cobertura securitária. Sustenta-se, nessa linha de argumentação, que, se o segurador honrou o pagamento da indenização securitária por mera liberalidade (quando poderia não tê-lo feito), não se operaria a sub-rogação, dado o caráter ex gratia do pagamento. Nesse sentido, eis os seguintes precedentes do TJSP:  APELAÇÃO - Ação de regresso - Transporte Marítimo - Carga avariada (...) PAGAMENTO EX GRATIA - Vigência do seguro que se esgotou antes da entrega da mercadoria em território nacional - Cláusula contratual que esclarece a necessidade de contratação de cobertura adicional de prorrogação de prazo de duração dos riscos - Ausência de demonstração de contratação desta extensão - Pagamento realizado fora do prazo de vigência do contrato de seguro - Mera liberalidade - Acolhimento da alegação - Recurso provido para afastar a prescrição e julgar improcedente a ação de regresso.7  APELAÇÃO. Ação regressiva de ressarcimento. (...) Pagamento de indenização à segurada que fez surgir, para a seguradora, a pretensão ao ressarcimento. (...) Ocasião que eximia a seguradora do pagamento de qualquer indenização à sua segurada, conforme expressa ressalva nos termos da apólice. Pagamento realizado por mera liberalidade que, portanto, não lhe garante o pretenso direito de regresso.8  AÇÃO DE REGRESSO - TRANSPORTE TERRESTRE - CONTRATO DE SEGURO - PRETENSÃO À REPARAÇÃO CIVIL - (...) INDENIZAÇÃO - SEGURADORA - PAGAMENTO DA COBERTURA DA APÓLICE - LIQUIDAÇÃO DE SINISTRO QUE NÃO OBSERVOU AS DISPOSIÇÕES CONTRATUAIS - MERA LIBERALIDADE - IMPOSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO REGRESSIVA CONTRA A TRANSPORTADORA.9  RESSARCIMENTO DE DANOS. AÇÃO REGRESSIVA. Contrato de seguro. Transporte marítimo de trigo a granel. Extravio de 252 toneladas no desembarque. Perda efetiva de 1,2029% do total transportado. Pagamento do seguro à destinatária segurada. Sentença de improcedência. Fundamento de que a seguradora não estava obrigada à cobertura do sinistro. Pretensão de reforma. Descabimento. (...) Exclusão objetiva de responsabilidade. Indenização indevida. (...) Recurso improvido.10  TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL DE CARGAS. AÇÃO DE REGRESSO. Ajuizamento pela seguradora em face da transportadora marítima, em razão de alegada avaria na carga transportada. Sentença de improcedência. Irresignação da parte autora. Descabimento. (...) Pagamento da indenização por alegada avaria durante transporte internacional que evidenciou, portanto, mera liberalidade da seguradora, na medida em que ausente nos autos prova de referida cobertura. Direito de regresso não evidenciado. Sentença mantida.11  RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS. (...) Pagamento da indenização securitária à segurada da autora realizada fora do prazo de vigência da apólice colacionada aos autos. Liberalidade que não conduz à seguradora nos direitos de regresso sua segurada.12 APELAÇÃO - Ação de ressarcimento - Regresso - Seguradora que reembolsa segurado de extravio da bagagem em voo internacional - Existência de relação jurídica entre a seguradora e o segurado, bem como comprovação do dano e pagamento da indenização - Apólice de seguro que não prevê cobertura securitária para o evento narrado nos autos - Seguradora que efetuou o pagamento por mera liberalidade - Impossibilidade da apelante sub-rogar-se nos direitos do segurado - Improcedência da ação mantida - Recurso desprovido.13  APELAÇÃO. Ação de regresso por sub-rogação. (...) Documentos nos autos que apontam que as datas de ocorrência dos sinistros são anteriores ou coincidentes às datas de início de vigência das apólices, tornando-se necessária a comprovação da condição de segurado por parte daqueles que supostamente suportaram os danos alegados. Telas sistêmicas apresentadas pela autora que por serem unilaterais, não têm força probatória. Documentos trazidos aos autos pela autora que não se enquadram nas hipóteses preconizadas pelo art. 758 do Código Civil, portanto não se prestam à comprovação a vigência dos seguros, nem demonstram a existência de vínculo jurídico que caracterize a seguradora como terceiro interessado para que se opere a sub-rogação. Não aplicação do art. 346, III do Código Civil. (...) Pretensão de reembolso, pela sub-rogação, que não deve ser acolhida com a confirmação da sentença prolatada.14 Como dito anteriormente, tal entendimento não é unânime. Em sentido contrário, sustenta-se que, nas ações de regresso movidas pelo segurador contra o terceiro causador do dano, não tem este a prerrogativa de discutir a exigibilidade ou não da obrigação (anterior) do segurador de indenizar o segurado. Sob essa perspectiva, não haveria qualquer importância em aferir se o pagamento da indenização securitária se deu ou não por eventual liberalidade do segurador, eis que o terceiro deve defender-se perante o segurador como se estivesse litigando contra o segurado. Nesse sentido, entenderam os seguintes julgados do TJSP:  Transporte marítimo de carga - Ação de regresso por indenização paga por seguradora em razão de contrato de seguro - (...) LEGITIMIDADE AD CAUSAM - Empresa seguradora sub-rogada dispõe de legitimidade ativa para ajuizar ação de regresso em face da transportadora, qualquer que seja a natureza do pagamento, mesmo que feito ex gratia, conforme alegado. (...)15  SEGURO. Regresso por sub-rogação. Transporte de coisas. Furto de carga. (...) Correção ou incorreção do pagamento da indenização securitária inquestionável pela parte ré. Defesa circunscrita à sua responsabilidade pelo que lhe é imputado. (...)16 Consoante observou o Relator do último julgado, em seu voto, "em demandas de regresso por sub-rogação fundadas em contrato de seguro, não cabe ao réu questionar a correção ou incorreção do pagamento da indenização securitária por exemplo, apontando cláusula de exclusão de cobertura existente na apólice firmada entre a autora e o seu segurado, imiscuindo-se em relação jurídica alheia, mas sim defender-se de forma a afastar a sua responsabilidade perante o segurado, quebrando o silogismo necessário à sua condenação".17 De fato, parece ser este o entendimento que mais se coaduna com o instituto da sub-rogação, o qual, como visto, significa tão-somente a mutação subjetiva do vínculo obrigacional originário, cujo polo ativo, após o pagamento da indenização securitária, passa a ser ocupado pelo segurador. Em última análise, a causa da sub-rogação é o próprio pagamento da dívida alheia.18 Segundo reconheceu o STJ: "A Seguradora assume o lugar de sua cliente, pois honrou integralmente com o pagamento da indenização devida. Nestes termos, recebe os mesmos direitos e deveres da sub-rogada, nos limites da sub-rogação"19. No âmbito da disciplina geral das obrigações, sublinha De Ruggiero, "a sub-rogação produz o efeito de fazer entrar o sub-rogado na posição jurídica do credor satisfeito; o crédito, com todas as suas garantias, bem como com todas as exceções que se podem opor ao credor originário, transfere-se para o sub-rogado (...)"20. Poderá o causador do sinistro (devedor da indenização), portanto, opor ao segurador sub-rogado quaisquer defesas que pudesse ter contra o segurado, credor originário do direito à reparação. Logo, não obstante a alteração no polo ativo do vínculo obrigacional (originalmente ocupado pelo segurado, lesado pelo sinistro e credor do direito à reparação e, após o pagamento da indenização, pelo segurador), os demais elementos da relação originária (seja ela contratual ou extracontratual) subsistem: exercido o direito de regresso pelo segurador sub-rogado, deve o causador do dano defender-se como se estivesse diante da parte lesada. Ao regular o sinistro, o segurador pode decidir honrar a cobertura securitária ainda que porventura possa haver alguma controvérsia quanto à sua exigibilidade (pense-se, por exemplo, em possível controvérsia quanto à incidência de certa cláusula de exclusão da cobertura securitária) ou mesmo quanto à extensão da prestação, devido à quantificação da lesão ao interesse segurado. Se o segurador decide prestar a cobertura, é porque, sopesando as circunstâncias do caso, entende, de boa-fé, que sua decisão é técnica e juridicamente sustentável. Com efeito, nos termos do art. 346 do Código Civil, "a sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: (...) III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte". Logo, o pagamento da indenização securitária dá ensejo à sub-rogação ainda que possa haver alguma discussão quanto à exigibilidade. Nesse sentido, já decidiu o TJSP: AÇÃO REGRESSIVA. RESSARCIMENTO. PERDAS E DANOS. DEMANDA DA SEGURADORA CONTRA O SUPOSTO CAUSADOR DO DANO. (...) AÇÃO REGRESSIVA. RESPONSABILIDADE CIVIL. PAGAMENTO POR MERA LIBERALIDADE POR EXCLUSÃO DO RISCO. INOCORRÊNCIA. (...) Nem pode a causadora do dano se esquivar de sua responsabilidade por meio de interpretação ampliativa de cláusula contratual restritiva do objeto do seguro, mesmo porque não se verifica qualquer ilegalidade ou violação à boa-fé por parte da seguradora, que comprovadamente indenizou a segurada.21 Irrelevante, pois, aferir se o segurador poderia ou não ter invocado qualquer circunstância inerente à relação securitária para negar-se a prestar a cobertura - a menos que, naturalmente, esse mesmo argumento possua relevância jurídica no âmbito da relação originária entre o segurado e o causador do dano. Pense-se, por exemplo, na hipótese em que a seguradora poderia eximir-se de cobrir o sinistro por conta de agravamento significativo do risco por fato imputável ao segurado (CC, art. 768). É possível que a conduta do segurado também produza efeitos não apenas no âmbito do contrato de seguro, mas também perante o terceiro a quem se pretende imputar a responsabilidade pelo sinistro. Tal conduta poderá, se for o caso, afastar ou atenuar a responsabilidade do terceiro, a depender do nexo causal. __________ 1 Segundo a lição de Clóvis Bevilacqua: "Sub-rogação é a transferência dos direitos do credor para aquele que solveu a obrigação, ou emprestou o necessário para solvê-la. A obrigação pelo pagamento extingue-se; mas, em virtude da sub-rogação, a dívida, extinta para o credor originário, subsiste para o devedor, que passa a ter por credor, investido nas mesmas garantias, aquele que lhe pagou ou lhe permitiu pagar a dívida" (BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 116). 2 Nesse sentido: "Atende-se, através da sub-rogação, múltiplas funções, repercutindo para a diminuição dos custos do seguro, evitando que os causadores de acidentes e lesões fiquem isentos dos efeitos das suas condutas, e valorizando o princípio indenizatório, fazendo com que o segurado não receba dupla indenização, uma da seguradora e outra do causador, de modo que o seguro se desvirtue para propiciar lucro, como se jogo e aposta fosse" (TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Roncarati, 2016, p. 201). 3 Segundo Angélica Carlini, "reaver valores por meio da sub-rogação pode tornar o valor do prêmio mais barato, o que permitirá um volume maior de contratações de seguro. O aumento do volume de contratações é favorável ao segurador, aos próprios segurados e a toda a sociedade (...)" (CARLINI, Angélica. Comentários ao art. 786 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago (Orgs.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 431). 4 Segundo Angélica Carlini, "(...) ao exercer contra esse mesmo terceiro o direito de ação e de recebimento dos valores indenizados ao segurado, o segurador não permite que o causador fique livre de suas responsabilidades em razão do fato de a vítima ser contratante de um seguro de danos. Em outras palavras, o cuidado do segurado em buscar a prevenção de danos causados por terceiros contra seu patrimônio não pode se constituir em benefício para o causador de ato culposo ou doloso. Não faria sentido que, tendo um indivíduo agido com cautela contra danos causados por terceiros, o causador se beneficiasse com a isenção de ter que assumir o resultado de seus atos" (CARLINI, Angélica. Comentários ao art. 786 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago (Orgs.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 432). 5 "Na hipótese dos autos, nota-se que o entendimento do Tribunal de origem está em conformidade com a orientação do STJ no sentido de que, sendo de consumo a relação entre a segurada e a concessionária, incide o Código de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora, que se sub-rogou nos direitos da segurada, e a concessionária" (STJ, AgInt no AREsp 1.968.998/MT, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 21/02/2022). 6 "Esta Corte Superior firmou posicionamento no sentido de que, ao pagar a indenização ao segurado, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, conferindo-lhe, inclusive, o prazo prescricional aplicável à relação originária" (STJ, AgInt no AREsp 1.305.024/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j. em 02/04/2019). 7 TJSP, Apelação n. 1113639-48.2015.8.26.0100, Rel. Des. Achile Alesina, j. em 31/01/2019, 38ª Câmara de Direito Privado. 8 TJSP, Apelação n. 1029574-92.2015.8.26.0562, Rel. Des. Roberto Maia, j. em 04/09/2017, 20ª Câmara de Direito Privado. 9 TJSP, Apelação n. 0029890-35.2010.8.26.0001, Rel. Des. Tavares de Almeida, j. em 20/10/2016, 11ª Câmara de Direito Privado. 10 TJSP, Apelação n. 0030756-77.2008.8.26.0562, Rel. Des. Erson de Oliveira, j. em 17/04/2013, 17ª Câmara de Direito Privado. 11 TJSP, Apelação n. 1011497-59.2020.8.26.0562, Rel. Des. Walter Barone, j. em 31/03/2022, 24ª Câmara de Direito Privado. 12 TJSP, Apelação n. 1001405-58.2017.8.26.0002, Rel. Des. Dimas Rubens Fonseca, j. em 21/11/2019, 28ª Câmara de Direito Privado. 13 TJSP, Apelação n. 1010700-51.2019.8.26.0002, Rel. Des. Irineu Fava, j. em 24/06/2020, 17ª Câmara de Direito Privado. 14 TJSP, Apelação n. 1002418-46.2022.8.26.0575, Rel. Des. Celina Dietrich Trigueiros, j. em 31/10/2023, 27ª Câmara de Direito Privado. 15 TJSP, Apelação n. 1053256-97.2021.8.26.0002, Rel. Des. Theodureto Camargo, j. em 04/07/2023, 37ª Câmara de Direito Privado. 16 TJSP, Apelação n. 0042246-43.2012.8.26.0114, Rel. Des. Gilson Delgado Miranda, j. em 09/10/2019, 23ª Câmara de Direito Privado. 17 TJSP, Apelação n. 0042246-43.2012.8.26.0114, Rel. Des. Gilson Delgado Miranda, j. em 09/10/2019, 23ª Câmara de Direito Privado. 18 "A sub-rogação pessoal legal [prevista no art. 786 do Código Civil] (...) tem por premissa o fato de alguém pagar dívida que deveria ser paga por outrem" (SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 500). 19 STJ, REsp 705.148/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 05/10/2010, DJe 01/03/2011. 20 DE RUGGIERO, Roberto. Instituições de direito civil, vol. 3. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 149. 21 TJSP, Apelação n. 1028674-12.2015.8.26.0562, Rel. Des. Artur Marques, j. em 27/11/2017, 35ª Câmara de Direito Privado.
Concluída a primeira etapa dos trabalhos da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para revisão e atualização do Código Civil, com a entrega dos respectivos relatórios, surgem algumas questões a serem enfrentadas pelos relatores gerais.1 Um dos problemas apontados pela doutrina especializada é a incongruência entre as propostas formuladas pelas Subcomissões de Direito das Obrigações e de Responsabilidade Civil, no que se refere à responsabilidade por danos indiretos ou mediatos. Outro problema correlato é a responsabilização dos partícipes e das pessoas que se beneficiam do ilícito praticado por outrem.2 A Subcomissão de Direito das Obrigações não sugere qualquer alteração ao art. 403 do Código Civil, segundo o qual o devedor responde somente pelos danos diretos e imediatos: Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. Por sua vez, a Subcomissão de Responsabilidade Civil propõe a ampliação do espectro de responsabilidade, a fim de abranger os efeitos diretos e indiretos do fato lesivo e de alcançar os coautores, os partícipes e aqueles que se beneficiarem do ilícito, mediante inclusão do art. 927-A e modificação do art. 942, parágrafo único, que passaria a ser o art. 941, § 1°: Art. 927-A. São reparáveis as consequências danosas que guardarem nexo de causalidade com o fato produtor do dano. Salvo disposição legal em contrário, indenizam-se as consequências imediatas e as mediatas que sejam previsíveis.  Parágrafo único. A responsabilidade contratual abrange as consequências que as partes previram ou poderiam ter previsto no momento da celebração do contrato. Em caso de dolo do devedor, a responsabilidade levará em conta também as consequências previsíveis no momento do inadimplemento. Art. 942 (redação atual). Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932. Art. 941 (redação sugerida). Os bens do responsável pela violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. §1º São solidariamente responsáveis com os autores, quem tenha concorrido à causação do dano e as pessoas designadas no art. 932, incisos V, VI, VII e VIII. É inegável a dissonância entre as propostas da Subcomissão de Direito das Obrigações e da Subcomissão de Responsabilidade Civil: uma propõe a restrição e a outra sugere a ampliação objetiva e subjetiva do alcance da responsabilidade civil. A questão, no entanto, é saber qual dessas propostas melhor se ajusta à sociedade em que vivemos, qual delas se alinha com a diretriz constitucional de tutela da pessoa humana e qual delas corresponde ao que vem sendo decidido pela jurisprudência em matéria de responsabilidade civil. Não se pode olvidar o papel desempenhado pela responsabilidade civil no que se refere à proteção dos direitos e garantias individuais e coletivos, notadamente dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade. É precisamente sob esse ângulo de visão que a responsabilidade civil se alinha ao texto constitucional, pois o tratamento de danos, envolvendo a prevenção, a mitigação e a reparação, está diretamente relacionado à tutela da pessoa humana e de sua dignidade.3 Disso resulta que a regra restritiva do alcance da reparação de danos, contida no art. 403 do Código Civil, encontra-se em conflito com a diretriz constitucional de tutela da pessoa humana, na medida em que vulnera o princípio da reparação integral, que se extrai do art. 5°, V e X, da Constituição e que se encontra expresso no art. 944, caput, do Código Civil. Por seu turno, as propostas de alteração aos art. 927-A e 942, parágrafo único, do Código Civil, formuladas Subcomissão de Responsabilidade Civil, que ampliam o alcance subjetivo e objetivo da responsabilidade civil, melhor se harmonizam com os objetivos constitucionais de tutela da pessoa humana, imprimindo efetividade aos direitos e garantias individuais e coletivos. Ao mesmo tempo, é preciso ter em conta as transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas ao longo da Era Moderna,  especialmente a partir da segunda metade do século XX. Não será demasiado lembrar que o art. 403 simplesmente repete a redação do art. 1.060 do Código Civil de 1916 que, por sua vez, reproduz com atraso de mais de 100 anos os art. 1.150 e 1.151 do Code Napoleon.4 Ou seja, a fórmula restritiva de responsabilidade civil contida nesses dispositivos foi pensada entre o final do século XVIII e o início do século XIX para um modelo de sociedade completamente diferente da sociedade atual. Não é por outra razão que o Código Civil argentino de 2014 dispõe, nos art. 1.726 a 1.728, que são reparáveis tanto das consequências imediatas quanto das consequências mediatas previsíveis do evento danoso, desde que estabelecido o nexo de causalidade.5 De igual modo, os Princípios Europeus de Responsabilidade Civil - PETL, no item 3.201 que trata da extensão da responsabilidade, dispõem que a imputação deve levar em consideração, entre outros fatores, a previsibilidade do dano, sua proximidade temporal ou espacial com a atividade causadora e sua relação com as consequências normais daquela atividade.6 Também é preciso considerar que, na sociedade contemporânea, a complexidade das relações humanas e empresariais possibilita a prática de condutas e atividades que, embora não sejam ilícitas em si mesmas, produzem ou contribuem para a produção de danos. A título exemplificativo, a jurisprudência tem se pronunciado a respeito da responsabilidade das instituições financeiras por danos causados por terceiros mediante prática de fraudes. Embora as atividades bancárias sejam absolutamente lícitas e conquanto essas instituições não tenham praticado as fraudes, o Poder Judiciário muitas vezes reconhece o dever de reparar danos sofridos pelos clientes/consumidores. Nesses casos, é possível afirmar que tais atividades criam uma "esfera de risco/responsabilidade", que fundamenta o dever de reparação dos danos nela inseridos.7 Em acórdão relatado pela Min. Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a responsabilidade de uma instituição financeira por danos causados por estelionatários, mediante aplicação do denominado "golpe do boleto" (STJ, Terceira Turma, REsp 2.077.278 /SP, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, J. 03 Out. 2023, v.u.). No corpo do acórdão são citados vários precedentes do próprio Tribunal, bem como a Tese do Tema 466 de Recurso Repetitivo, firmada com base nos REsp 1197929/PR e REsp 1199782/PR e a Súmula 479, originária desse julgamento: TEMA 466 de Recurso Repetitivo: As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. Súmula 479: As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. O fenômeno da terceirização ou quarteirização das atividades muitas vezes tem como finalidade blindar o contratante contra a responsabilidade por danos, como nos casos de quem realiza contrato com uma empresa que causa danos a terceiros, que causa danos ambientais ou que descumpre suas obrigações trabalhistas. Embora não tenha praticado conduta nem atividade ilícita, o contratante contribui, colabora e se beneficia da ilicitude praticada pela contratada. Esse tema tem sido objeto de ampla discussão no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho - TST que, modificando seu entendimento anterior (Orientação Jurisprudencial 191), firmou a tese de que "o dono da obra é subsidiariamente responsável por obrigações trabalhistas não adimplidas do empreiteiro que contratar sem idoneidade econômico-financeira" (TST, Processo TST-ED-IRR-190-53.2015.5.03.0090, acórdão SBDI-1, Incidente em Recurso Repetitivo, caráter vinculante, J. 09 Ago. 2018). A sociedade contemporânea é marcada também pela ocorrência de danos catastróficos, cujas causas podem ser múltiplas e cujas consequências individuais e coletivas se desdobram no ambiente natural e social, projetando-se inclusive sobre as gerações futuras. É imperiosa a necessidade de expansão objetiva e subjetiva do alcance da responsabilidade civil, em tema de danos catastróficos, a fim de possibilitar a responsabilização de todos os agentes que contribuem ou que se beneficiam da produção dos danos e de envolver não apenas os efeitos imediatos, mas também as consequências mediatas desses eventos.8 As principais inquietações dos doutrinadores quanto às propostas formuladas pela Subcomissão de Responsabilidade Civil são relacionadas à flexibilização do nexo de causalidade entre o dano e a conduta ou atividade do agente. Na tradição conservada pelo art. 403 do Código Civil, o agente só responde pelos danos que decorrem direta e imediatamente de sua conduta ou atividade. Ocorre que essa tradição tem servido mais à exclusão do que ao reconhecimento da responsabilidade civil, o que se mostra incompatível com as mais recentes formulações doutrinárias e jurisprudenciais que visam assegurar, tanto quanto possível, a reparação integral dos danos. Especialmente nesses tempos de tecnologias digitais, muitos danos são causados mediante fraudes a cada dia mais sofisticadas, que tornam impossível a determinação do nexo de causalidade sob os rigores das teorias tradicionais. Nos casos das instituições financeiras, fraudadores utilizam os sistemas para praticar golpes contra os clientes, os quais se veem completamente expostos e não têm condições de distinguir os golpistas. Isso significa que, para os danos que ocorrem na complexa sociedade contemporânea, a teoria do dano direto e imediato se mostra ineficiente, tanto que o art. 403 do Código Civil vem sendo simplesmente ignorado pela jurisprudência dos tribunais. É necessário enfatizar que a ampliação do alcance objetivo e subjetivo da responsabilidade civil não representa risco de desestruturação do sistema, uma vez que sempre será necessária a demonstração do dano e do nexo de causalidade com a conduta ou atividade danosa, tanto na responsabilidade subjetiva como na objetiva. A propósito, consta da ementa do acordão acima referido (REsp 2.077.278/SP) que a responsabilidade da instituição financeira pelo denominado "golpe do boleto" depende de comprovação da contribuição de sua conduta ou atividade para a produção do dano. Tanto isso é fato que, em outro processo sobre esse mesmo tema, o Superior Tribunal de Justiça afastou a responsabilidade de um banco porque os boletos falsos foram emitidos por terceiro sem movimentação do sistema operacional do banco. Confira-se o seguinte trecho da ementa: EMENTA CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. CONSUMIDOR. DEFEITO DE FUNDAMENTAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. EMISSÃO DE BOLETO FRAUDULENTO. RESPONSABILIDADE DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. AUSÊNCIA. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. INEXISTÊNCIA. FATO EXCLUSIVO DE TERCEIRO. (...) 7. No particular, o recorrido comprou um automóvel de um indivíduo, o qual havia adquirido o veículo por meio de financiamento bancário obtido junto ao banco recorrente. Em contrapartida, o recorrido assumiu o valor do financiamento que ainda estava pendente de pagamento e realizou a quitação via boleto bancário, recebido pelo vendedor através de e-mail supostamente enviado pelo recorrente. Entretanto, o boleto não foi emitido pela instituição financeira, mas sim por terceiro estelionatário, e o e-mail usado para o envio do boleto também não é de titularidade do banco. Sendo a operação efetuada, em sua integralidade, fora da rede bancária. Portanto, não houve falha na prestação dos serviços e a fraude não guarda conexidade com a atividade desempenhada pelo recorrente, caracterizando-se como fato exclusivo de terceiro. 8. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, Terceira Turma, REsp 2.046.026/RJ, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, J. 13 Jun. 2023, v.u.). Portanto, o elastecimento do nexo de causalidade não significa imputar responsabilidade de forma aleatória a quem não tenha nenhuma relação com o evento danoso, mas visa tão somente alcançar os reais responsáveis pelos danos causados, a fim de dar efetividade ao direito e cumprir a função da responsabilidade civil que emana da Constituição Federal. Para isso, é preciso ampliar o alcance da responsabilidade civil, conforme as propostas formuladas pela Subcomissão de Responsabilidade Civil, relativas aos art. 927-A e 941, 1º. Ao mesmo tempo, é necessário modificar a regra restritiva constante do art. 403 do Código, a fim de que a reparação alcance os efeitos mediatos e imediatos dos eventos danosos. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 04 Fev. 2024. 2 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O perigo das implicações sistêmicas provocadas por reformas legislativas: o exemplo da proposta de reforma do art. 942 do Código Civil. In: VII Boletim IDiP-IEC - 30/01/2024. Disponível aqui. Acesso em 04 Fev. 2024. 3 Consulte-se, por todos, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 117-128. Em sentido análogo, sublinhando o alinhamento da responsabilidade civil à proteção da vítima e à tutela da dignidade humana, consulte-se: TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos de direito civil, vol. 4: responsabilidade civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 2 e 5. 4 Article 1150: Le débiteur n'est tenu que des dommages et intérêts qui ont été prévus ou qu'on a pu prévoir lors du contrat, lorsque ce n'est point par son dol que l'obligation n'est point exécutée. Article 1151: Dans le cas même où l'inexécution de la convention résulte du dol du débiteur, les dommages et intérêts ne doivent comprendre à l'égard de la perte éprouvée par le créancier et du gain dont il a été privé que ce qui est une suite immédiate et directe de l'inexécution de la convention. 5 Artículo 1726. Relación causal Son reparables las consecuencias dañosas que tienen nexo adecuado de causalidad con el hecho productor del daño. Excepto disposición legal en contrario, se indemnizan las consecuencias inmediatas y las mediatas previsibles. Artículo 1727. Tipos de consecuencias Las consecuencias de un hecho que acostumbran a suceder según el curso natural y ordinario de las cosas, se llaman en este Código "consecuencias inmediatas". Las consecuencias que resultan solamente de la conexión de un hecho con un acontecimiento distinto, se llaman "consecuencias mediatas". Las consecuencias mediatas que no pueden preverse se llaman "consecuencias casuales". Artículo 1728. Previsibilidad contractual En los contratos se responde por las consecuencias que las partes previeron o pudieron haber previsto al momento de su celebración. Cuando existe dolo del deudor, la responsabilidad se fija tomando en cuenta estas consecuencias también al momento del incumplimiento." 6 Art. 3:201. Extensão da responsabilidade. Quando o nexo de causalidade tiver sido estabelecido de acordo com a Secção 1 deste Capítulo, se ou em que medida o dano deverá ser imputado a uma pessoa depende de factores como: a) a previsibilidade do dano para uma pessoa razoável no momento da actividade, tomando em consideração especialmente a proximidade temporal ou espacial entre a actividade causadora do dano e a sua consequência, ou a dimensão do dano em relação com as consequências normais daquela actividade; b) a natureza e o valor do interesse protegido (Art. 2:102); c) o fundamento da responsabilidade (Art. 1:101); d) os riscos normais da vida; e e) o fim de protecção da norma violada (Disponível aqui. Acesso em: 04 Fev. 2024). 7 BARBOSA, Mafalda Miranda. Direito da responsabilidade: uma disciplina jurídica autônoma. 1ª ed. Parede (Portugal): Principia, 2021, p. 196-198. 8 A respeito dos danos catastróficos, confiram-se: CARVALHO, Délton Winter; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, passim; FARBER, Daniel. Disaster Law and Emerging Issues in Brazil. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. v. 4. n. 1. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2012; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba/Porto: Juruá, 2018, passim.
Introdução Em 04 de setembro de 2023, iniciaram-se os trabalhos da comissão de juristas instituída pelo Senado Federal, presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão (STJ), com a missão de elaborar a proposta de atualização do Código Civil (lei 10.406/2022). Essa recente iniciativa do Poder Legislativo acendeu debates e reflexões importantes na sociedade, sobretudo nos ambientes acadêmicos. Nessa esteira, o objetivo deste artigo é identificar, sob o enfoque da análise econômica do direito, potenciais pontos de aprimoramento da legislação no que se refere à função punitiva da responsabilidade civil, cuja aplicação pelos tribunais ainda carece de critérios claros e segurança jurídica. A opção pela abordagem econômica se justifica pela sua ênfase na eficiência como parâmetro qualitativo de soluções jurídicas, o que em nosso entendimento contribui para a racionalização do direito e para o desenvolvimento social e econômico da sociedade brasileira. O regime da responsabilidade civil O tratamento dado ao regime da responsabilidade civil, no direito brasileiro, é proveniente de uma longa tradição do sistema romano-germânico, segundo a qual a indenização cível tem por objetivo, conforme ensinava Antunes Varela: "prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes" (Varela, 2008)1. O critério de avaliação do dano, por sua vez, nem sempre esteve atrelado somente a seu conteúdo econômico. Durante muito tempo, preponderaram nas civilizações antigas métodos rudimentares e violentos de reparação civil, calcadas na vingança privada e pessoal, consideradas uma "forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal". (LIMA, 1938, p.10)2. Essa mesma concepção de justiça e reparação fundamentou a histórica Lei de Talião, conhecida pela regra "olho por olho, dente por dente". Na Roma Antiga, em um ímpeto de inovação institucional, a noção de dano passou a se vincular estreitamente à lesão a interesses patrimoniais, especialmente sob a égide da "lex Aquilia", instituída no Séc. III a.c, que estabeleceu as bases para a responsabilidade extracontratual (conhecida hoje também pela denominação "responsabilidade aquiliana") Foi a partir disso que, com o tempo, foram-se delineando os conhecidos pressupostos da responsabilidade civil pelo triênio: ato ilícito, nexo causal e dano. Assim, o valor da indenização passou a estar relacionado ao prejuízo material sofrido pelo lesado, levando em conta a perda efetiva ou a diminuição do valor de seus bens. Herança dessa tradição romana, foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 944 do Código, a regra pela qual: "a indenização mede-se pela extensão do dano". A função punitiva e pedagógica Nos Estados Unidos, embora alguns estados proíbam a utilização dos punitive damages, como Massachussets e Washington, esse instituto foi positivado pelo §908 do Restatement (Second) of Torts 19793, principal regra instituidora dos princípios gerais da reparação civil no direito americano. Assim, o punitive damages foi conceituado como uma indenização de natureza distinta da reparatória/compensatória, que é imposta a uma pessoa com o objetivo de puni-la por sua conduta particularmente ofensiva e ultrajante, dissuadindo a ela e a terceiros a repetir práticas semelhantes (punishment e deterrence). No Brasil, por outro lado, a função punitiva da responsabilidade civil tem se desenvolvido a partir dos critérios de quantificação da indenização do dano moral pelos tribunais brasileiros, sobretudo a partir das mudanças promovidas pela Constituição Federal de 1988. Há, ainda, a defesa da aplicação da função punitiva como uma forma de lidar com certas situações, em que a reparação do dano não apresentaria resposta adequada, como nos casos em que o benefício econômico do ato ilícito para o ofensor não é neutralizado pela compensação financeira advinda da condenação, ou quando o ofensor é indiferente ou não substancialmente afetado pela penalidade que lhe é imposta4. Dados da jurisprudência Em um interessante estudo estatístico, Fabiana da Sila Colonetti e Daniel Ribeiro Preve analisaram seiscentos acórdãos provenientes dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em busca de dados concretos acerca da utilização da teoria da função punitiva da responsabilidade civil entre 2014 e 20175. Segundo os resultados da pesquisa, em cerca de 70% dos acórdãos do TJRS e TJSC foi identificada uma tendência em aplicar a função punitiva da responsabilidade civil, de acordo com critérios de intensidade do dano e situação econômica das partes envolvidas no litígio. A inserção da função punitiva da responsabilidade civil tem sido aplicada precipuamente na quantificação do dano moral, sendo bastante comum em demandas judiciais em que esse tipo de indenização é mais comumente utilizado, como litígios consumeristas e aqueles voltados à violação da honra pessoal (difamação e injúria). Por essa via, identificou-se uma preocupação dos tribunais em, além de se compensar o ofendido, inibir a conduta ilícita mediante a punição do ofensor. Ocorre que, apesar da utilidade social da função punitiva da responsabilidade civil, dado seu viés pedagógico, não há uma clara padronização dos critérios utilizados pelos tribunais na sua aplicação. Análise econômica da função punitiva da responsabilidade civil Kaplow e Shavell ensinam que a análise econômica do direito busca responder a duas questões básicas: (i) quais são exatamente os efeitos das regras jurídicas no comportamento dos agentes? e (ii) são esses efeitos socialmente desejáveis?6 Atendendo a essa perspectiva, deve ser adotado o individualismo metodológico como princípio para a reflexão, pois, conforme ensinam Mckaay e Rosseau: "todo fenômeno coletivo deve ser explicado a partir de comportamentos individuais".7 Em linhas gerais, a análise comportamental pressupõe que os seres humanos possuem ao menos alguma racionalidade, de modo que realizam exercício de ponderação de consequências na tomada de decisões. Isso significa que os indivíduos tendem a maximizar a sua própria utilidade em cada contexto, interagindo com as regras institucionais, que representam as "regras do jogo" na perspectiva da economia institucional e influenciam os comportamentos dos agentes em uma relação complexa, caracterizadora dos processos sociais.8   Experimentos realizados pelo psicólogo vencedor do prêmio nobel, Daniel Khaneman, demonstram que as pessoas, em sua maioria, são predispostas a evitar uma perda certa, do que a aceitar uma "aposta" entre um ganho futuro ou uma perda maior9. Transportando essa conclusão para o contexto debatido neste artigo, temos que o estabelecimento de critérios claros para a aplicação da função punitiva e pedagógica da responsabilidade civil pode contribuir para uma redução da litigiosidade. Isso porque, a promoção de uma maior segurança jurídica nas condenações judiciais reduzirá os custos de transação relacionados à litigância predatória ou oportunista, que aproveita a vantagem das atuais regras institucionais pouco previsíveis. Assim, uma maior certeza de uma perda, decorrente da padronização de critérios, torna mais eficiente o objetivo pedagógico da responsabilidade civil, potencializando a sua capacidade de dissuadir os indivíduos do cometimento de ilícitos. Em um sistema judiciário que, em 2023, superou a marca de 80 milhões de processos em tramitação, esse não é um problema pequeno10. As regras jurídicas de responsabilização civil, nelas incluídas a tendência punitivista identificada na Jurisprudência, possui nesse aspecto um papel relevante que não pode fugir à atenção do analista. Pois se os agentes do mercado preocupam-se com custos e riscos, a definição de critérios seguros racionaliza a análise de custo-benefício realizado pelos tomadores de decisão e contribui para a segurança no mercado, evitando-se custos improdutivos. Nessa esteira, entendemos ser uma necessidade de primeira ordem a realização de alterações no novo Código Civil, para que sejam estabelecidos, como critérios de quantificação de indenização por dano extrapatrimonial, elementos que permitam a padronização das decisões dos tribunais (como médias de condenação em casos semelhantes), além de considerações éticas sobre a natureza do bem jurídico violado, impacto na vida da vítima e grau de evitabilidade do resultado danoso, por exemplo. Somente assim consideramos ser possível o atingimento de uma finalidade verdadeiramente pedagógica/preventiva/punitiva sem o comprometimento da segurança jurídica. A comissão encarregada de atualizar o Código Civil tem a oportunidade, portanto, de definir critérios claros que efetivamente contribuam para o esclarecimento aos agentes do mercado acerca daquilo que caracteriza a reprovabilidade do ilícito. Um requisito básico para legitimar a ideia de desincentivo que fundamenta a função punitiva, preventiva e pedagógica e, assim, trazer segurança e eficiência para a sociedade e o mercado. __________ 1 Antunes Varela, João de matos. Das Obrigações em Geral. Vol. I. 10ª Edição. Almedina: 2008. p.904. 2 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938, p. 10. 3 "§908 Restatement (Second) of Torts 1979 (1) Punitive damages are damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a person to punish him for his outrageous conduct and to deter him and others like him from similar conduct in the future". 4 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Revista da EMERJ. v.9, n. 36, 2006, p. 136. 5 COLONETTI, Fabiana da Silva. A função punitiva e a responsabilidade civil e a sua aplicação nos Tribunais de Justiça de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (Re)pensando Direito, Santo Ângelo/RS. v. 09. n. 18. jul./dez. 2019, p. 123-146. 6 Kaplow, Louis; Shavell, Steven. Economic Analysis of Law (Chapter 25). Handbook of Public Economics. V. 3. Harvard Law School and National Bureau Economic Research (Elsevier Science B.V.). p. 1666. 7 Mackaay, Ejan; Rosseay, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Trad. Rachel Stajn. 2ª ed. São Paulo, Atlas, 2020. p. 41. 8 Hodgson, Geoffrey M. A Abordagem da Economia Institucional. In.: Economia Institucional: Fundamentos Teóricos e Históricos. Org: Teatini Salles, Alexandre Ottoni; Pessali, Huáscar Fialho; Fernández, Ramon Garcia. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 252-253. 9 Khaneman, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. p. 425. 10 Disponível aqui.
Em 15/12/2023 a comissão de responsabilidade civil, composta pelo sub-relator, Procurador de Justiça de Minas Gerais, Nelson Rosenvald, pela Ministra do STJ Isabel Gallotti e pela juíza do Tribunal de Justiça de Goiás Patrícia Carrijo, encaminha aos Relatores da Comissão de Reforma do Código Civil, o conjunto de sugestões referentes às alterações do Título IX do Código Civil de 2002. Ao longo de três meses de trabalho, os integrantes da comissão se dedicaram a um constante intercâmbio de ideias, tendo por base propostas discutidas com experts na temática da responsabilidade civil - doutrinadores, professores e magistrados. Cada diálogo ou seminário serviu como reflexão e aprendizado. Jamais ostentamos certezas ou um desenho apriorístico do projeto. Pelo contrário, iniciamos apenas com pistas e, paulatinamente, esboçamos uma sistematização da responsabilidade civil, tendo em vista o estágio atual da sociedade brasileira e aquilo que se pretende para os próximos anos, consolidando avanços jurisprudenciais e doutrinários do direito brasileiro e das melhores contribuições do direito comparado. A responsabilidade civil de 2023 se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Não se trata apenas de um hiato de 50 anos, porém de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos 2.000 anos de civilização. Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme. A final, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografia de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela não apenas abraça múltiplas e complexas situações patrimoniais, recebendo também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais e direitos da personalidade, da crise da parentalidade e conjugalidade e das recentes pressões oriundas das tecnologias digitais emergentes, cuja preocupação prioritária nos contextos europeu e norte-americano, volta-se às consequências lesivas do emprego das referidas tecnologias, em todos os níveis. Ao mesmo tempo que a pressão sobre responsabilidade civil cresce exponencialmente, constata-se que os 27 artigos do Código Civil de 2022 (artigos 927 a 954) em muito se distanciam daquilo que um Código Civil requer para um nivelamento com os instrumentos europeus mais recentes e com o elogiado Código Civil da Argentina de 2015. Com efeito, outros sistemas jurídicos funcionam como espelhos - vendo-se os outros, percebe-se melhor o que somos. Em acréscimo, a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações. Em cotejo com o seu antecessor, de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927) e na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944). Acresça-se a isto que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do direito civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos. Um sintoma do descompasso entre a legislação e a realidade da responsabilidade civil é constatado nas salas de aula de todo o Brasil. Professores de responsabilidade civil não lecionam a matéria com base no Código Civil. Pelo contrário, seguem a doutrina e os tribunais, referenciando o Código Civil na maior parte das vezes com críticas sobre importantes lacunas e ausência de sistematicidade. Em verdade, um Código Civil que pretenda modernizar a responsabilidade civil não necessita de um exaurimento normativo, sendo suficiente que os dispositivos sirvam como ponto de partida, deferindo critérios objetivos e claros para o necessário caminhar da doutrina e aperfeiçoamento das decisões de juízes e tribunais. Cada setor do Código Civil demanda um grau específico de reforma, maior ou menor, conforme as suas vicissitudes. Ao contrário do direito das obrigações, cujo traço é a permanência de normas técnicas e estáticas - com a necessidade de alterações minimalistas - a responsabilidade civil requer uma intervenção mais ampla, como condição necessária para que o Código Civil mantenha relevância normativa em nosso ordenamento. Neste sentido, a sistematização da responsabilidade civil encontra origem em três justificativas. Primeiro: É certo que de ponto de vista estilístico e linguístico, necessitamos de um Código Civil simples e compreensível a todos. Contudo, há uma particularidade na responsabilidade civil: o fato de ser um conjunto de normas precipuamente dirigida aos magistrados. A maior parte das demandas cíveis no Brasil - desde os juizados especiais até os tribunais - conecta-se ao tema da responsabilidade civil em sentido amplo. Se o que pretendemos é conceder segurança jurídica e mitigar a discricionariedade judicial, o primeiro passo consiste em oferecer critérios objetivos e claros para a contenção de ilícitos e reparação de danos. Segundo: Sem negar a centralidade da Constituição Federal em nosso ordenamento jurídico, é imperioso resgatar o papel de coordenação exercitado pelo Código Civil, no diálogo com outros sistemas de direito privado, como, ilustrativamente, o CDC, CLT, LGPD e um conjunto de leis que encontram referência nas cláusulas gerais e preceitos alocados ao longo dos livros do Código Reale. As leis mais recentes trazem aspectos que não são abordados no Código Civil, sobremaneira no que concerne ao direito de danos e a multifuncionalidade da responsabilidade civil. A reforma do Código Civil é um momento apropriado para consolidar de forma madura e criteriosa as transformações da responsabilidade civil e preservar a sua centralidade no direito privado. Inclusive, esse é o propósito da reforma da responsabilidade civil no Código Civil da França. Terceiro: Os que defendem uma reforma pontual e minimalista da responsabilidade civil argumentam que a jurisprudência caminhou bastante, atualizando as defasagens normativas e consolidando interpretações. Contudo, lembramos da primazia normativa dos sistemas das jurisdições do civil law. Não contamos com uma tradição de uma estabilidade de um sistema de precedentes, ao sabor do "chain novel" de Dworkin, no qual cada decisão remete a um diálogo com as que lhe precederam no trato de "hard cases", em um paulatino aperfeiçoamento sistêmico. Diversamente, a nossa jurisprudência, por mais que bem aplicada, é sempre um retrato pendular de um dado normativo situado no tempo. Nada melhor para os agentes econômicos do que um conjunto de normas in abstrato que sinalize as regras do jogo, com firmes parâmetros de julgamento. Diante de tais considerações, sugere-se uma reforma da responsabilidade civil concentrada em quatro grandes eixos, aqui brevemente apresentados: Primeiro eixo: organização dos nexos de imputação da responsabilidade civil, concedendo-se racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa. Some-se a isso a expressa inserção conceitual dos pressupostos da responsabilidade, tais como culpa e nexo causal. Segundo eixo: Organização do sistema de danos, tendo em vista a necessidade de contenção normativa da proliferação de várias etiquetas de lesões a interesses merecedores de tutela. Sugere-se um aperfeiçoamento do trato do dano patrimonial, como também a expressa inclusão de critérios de aferição da perda de uma chance. Seguindo recentes diretivas europeias, investe-se ainda no private enforcement, de forma a deferir aos demandantes maior autonomia para eleger entre a reparação de danos, a restituição de ganhos indevidos ou o valor que seria pago pela obtenção do consentimento. Relativamente à violação a interesses existenciais, formata-se o gênero do dano extrapatrimonial, como uma espécie de guarda-chuvas apto a conceder ampla tutela aos bens da personalidade. Por fim, aperfeiçoa-se o critério bifásico de indenização de danos extrapatrimoniais - desenvolvido no STJ pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino -, dotando-o de base normativa. Terceiro eixo: Mantém-se a primazia da função reparatória de danos da responsabilidade civil e do princípio da reparação integral. Todavia, na sociedade contemporânea - plural e complexa - danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e por vezes anônimos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, consideramos a necessidade de adequar a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido. Assim, para além de uma contenção de danos, há a necessidade de uma contenção de comportamentos antijurídicos, mediante a introdução das funções preventiva e punitiva, com seguros parâmetros de aplicação para a moderação de poderes judiciais, contrabalançados por uma função promocional aos agentes econômicos que investirem em governança e accountability. Quarto eixo: atualização da parte especial da responsabilidade civil, com hipóteses de incidência de danos que demandam especificidades, tais como aqueles relacionados à responsabilidade civil do Estado, pessoas jurídicas, médicos, proprietários e na fase pré-contratual. Simultaneamente, foram suprimidos dispositivos anacrônicos, com origem no Código Beviláqua, voltados a responsabilidade civil por esbulho, violação à honra e a liberdade pessoal, bens jurídicos já tutelados pelas regras gerais da responsabilidade civil. As justificações colacionadas a cada dispositivo inserido no renovado Título IX minudenciam essa parte introdutória, em seus quatro grandes eixos.  Por se tratar de uma reforma legislativa e não de um novo Código Civil, corroboramos as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade, tão caras a Miguel Reale. Temos em mente que um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. Outrossim, reputamos essencial a harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando  a atuação de juízes e tribunais.
Com base no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, a doutrina nacional - até bem pouco tempo de maneira quase unânime -, não vinha enxergando razão para a criação de outras categorias de danos extrapatrimoniais além da do dano moral para a proteção da esfera imaterial do ser humano. Assim, o dano moral era visto como figura abrangente e suficiente para radicar a proteção ao homem dispensada pelo ordenamento jurídico. Com o passar dos tempos, as inovações tecnológicas e o modo de vida cada vez mais arriscado ao qual se submeteram as pessoas, em razão do conforto, comodidade, rapidez e eficácia de resultados, além do prazer que eles produzem em benefício da vida humana, acelerou o processo de criação de danos até então desconhecidos, danos estes que se multiplicaram e ao mesmo tempo tornaram-se enormes1 com grande potencialidade lesiva e capacidade de atingir a sociedade de maneira difusa. Decerto, a tecnologia e o avanço do modo de vida dos seres humanos não podem ser facilmente por estes renunciados, todavia, cabe considerar que para todo avanço existe um custo efetivo e previsível e também decorrente de efeitos inimagináveis, bastando se chamar a atenção para o potencial ofensivo daquilo que se convencionou chamar - em mecanismos de dispositivos de inteligência artificial, de black box ou caixa preta - que seria a possibilidade de a própria tecnologia promover resultados não previstos e até imprevisíveis decorrentes de sua capacidade de autoaprendizagem. Com isso, os danos imateriais perpassam pela simplicidade que existia nos denominados "danos morais" agregando potencialidade danosa mais gravosa e duradora justamente pelo modo de vida humana com o qual acostumou-se a pessoa a coexistir em sociedade. Para uma efetiva e integral tutela da pessoa humana, mister é que se opere a análise das suas três esferas ou dimensões que comportam seu ser, isto é, 1 - a sua dimensão biológica; 2 - a sua dimensão psíquica; e, 3 - a sua dimensão noética. Portanto, a tutela humana integral pelo simples conceito de dano moral restar-se-ia prejudicada, como se tentará demonstrar a seguir. O professor Sessarego, no Peru2, preferiu a denominação "dano à pessoa" àquela conhecida por "dano moral" por entender que este último seria uma espécie de dano emocional ou subjetivo que resultava em consequências mais efêmeras, do que aquelas as quais resultariam dos próprios danos existenciais. Assim, partindo da concepção existencialista Sartriana de que o homem é um ser "condenado à liberdade" ou "a ser livre", o homem é os seus projetos de vida, donde se lhe conceber a proteção de uma liberdade ontológica (estática) e uma outra, qual seja, a fenomenológica (dinâmica), por meio da qual deveria se desenvolver em ser devir. A partir daí, refere-se aos danos psicossomáticos (quando decorrentes da lesão à sua esfera psíquica e somática) e os danos ao projeto de vida, ou seja, decorrentes da lesão à liberdade fenomenológica. Logo, de consequências bem mais graves do que aquelas geradas pelo dano moral, os danos existenciais devem merecer catalogação própria e uma maior reprimenda por parte do Estado. Aqui pretende-se ir mais além, já que na visão do psiquiatra e filósofo austríaco Victor Frankl, além de suas dimensões biológica e psíquica, o homem carrega entorno de si uma dimensão onde se desenvolvem os fenômenos noéticos3. Urge, pois, para além dos danos existenciais que interferem na vida de relação do ser vivente e nos seus projetos vitais, conferir-se proteção à sua liberdade espiritual, aquela que se é atingida quando, em virtude de dano de natureza complexa, provoca o vácuo existencial no indivíduo. Como então, à guisa de classificação dos danos não patrimoniais, distinguir os danos morais dos demais danos existenciais? Será que tal critério de diferenciação assume relevância entre os danos morais e os danos estéticos? E ainda, será que servirá para distinguir os danos existenciais entre si? Para tanto, imprescindível é operar a classificação dos danos à pessoa em danos de consequências predispostas no suporte fático da norma indenizativa e danos de consequência concreta ou provada. Tal categorização classificatória permitirá na prática forense a distinção de forma simples dos danos imateriais e imprimir relevância à uma maior resposta estatal concernente ao valor da reparação nos danos de consequências concretas. Para Maita Naveira4, o dano só pode ser definido em razão da utilidade do bem jurídico danificado para o ser humano; logo, o bem jurídico será tudo aquilo que poderá satisfazer uma necessidade do sujeito, podendo compreender coisas ou bens da personalidade. Já o interesse, ou sua utilidade, adviria da relação entre o sujeito que elege uma necessidade para um determinado bem. A lesão a tal interesse é que poderia se chamar, de uma maneira geral, de dano, o qual pode ser material ou imaterial. Destarte, o dano não poderia ser definido pela natureza do bem violado, porém, do interesse jurídico a ele ligado. O dano moral decorreria daquilo que o professor alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo5 definiu como lesão a direito da personalidade, nada importando as consequências mais gravosas para o ofendido e que, na linguagem do presente escrito, seria uma dano de consequências predispostas, bastando à vítima a prova da lesão ao seu direito subjetivo personalíssimo, e, em razão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais da personalidade, a simples lesão ao direito - ou interesse protegido -, já abarcaria as consequência no sentido da norma de reparação, engendrando a respectiva sanção indenizativa. Em suma, dano moral decorreria da lesão a interesse jurídico personalíssimo, não incumbindo à vítima a prova de qualquer consequência negativa em seus sentimentos, como dor, sofrimento, vexame ou humilhação, tal qual a concepção clássica estava a exigir. Por outro lado, os danos estéticos e os danos existências nas três categorias agora desenvolvidas seriam, lado outro, danos de consequências concretas ou provadas, devendo a vítima se desincumbir do ônus da prova de ter suportado as consequências mais gravosas na estrutura de harmonia de beleza do seu corpo (dano estético), na sua vida de relação, nos seus projetos vitais e na sua vontade de sentido (danos existenciais). Com essa construção, visa-se combater figuras criadas que estão em desacordo com a linha de raciocínio ora proposta, assim sendo, de que o dano é pressuposto indispensável da responsabilidade reparatória e sempre guarda em si as consequências que podem ou não lhe estarem predispostas por norma jurídica. Destarte, não há de se concordar com a divisão da figura danosa em "dano-evento" e "dano-consequência", do "dano in re ipsa" ou "prima facie evidence" - o que importaria mais para o estabelecimento de certas teorias acerca do nexo causal, máxime na seara dos acidentes de consumo - e do que hoje muito se popularizou daquilo que resolveu denominar de dano presumido. Concluindo o até aqui expendido, os danos à pessoa humana de natureza extrapatrimonial são de três ordens: a) o dano moral; b) o dano estético; e, c) os danos existenciais. Os danos morais provocam consequências mais ou menos efêmeras para homem, estando elas predispostas por norma jurídica, portanto, sempre existentes - levando-se em consideração o conceito jurídico até aqui desenvolvido e a natureza objetiva de proteção dos direitos mais fundamentais dos homens. Os danos estéticos, de sua ordem, são danos de consequências provadas pela vítima do evento danoso, valendo dizer que deve ela se desincumbir do ônus da prova de que seu estado de harmonia física e de beleza piorou com relação àquele existente antes do dano, considerando-se também apenas as consequências mais graves às linhas de harmonia corporal. Em razão disso, o valor da reparação compensatória deverá ser evidentemente maior do que aqueles dispensados às compensações dos danos morais. Por fim, nos danos existenciais, os quais são danos de consequências também provadas ou concretas, incumbe ao ofendido comprovar que, em razão da lesão grave a sua integridade física, psíquica, fenomênica ou à vontade de sentido, padece nos respectivos campos biológico, de relacionamento de vida, fenomenológico e noético. Da mesma sorte, a reparação aos danos de índole existencial deverá receber valor consideravelmente maior do que aquele determinado aos "simples" danos morais. Urge-se, pois, a tutela humana radicada em sua completude ontológica, fenomenológica e noética, pois inexiste "ser ai" ou "ser no mundo" sem o seu próprio devir e sem um almejar de sentidos para sua existência como um todo e, continuar a impor-se barreiras à reparação de consequências tão graves ao ser que existe, seria o mesmo que usurpar-lhe de uma existência a mais digna possível. Referências bibliográficas FRANKL, Viktor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Tradução de Bruno Alexander. Campina S/P: Auster, 2021. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista jus navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n.119, 31 de outubro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 de novembro de 2021. SANTOS, Romualdo Batista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018. SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível aqui. Pesquisado em 24 de novembro de 2024. ZARRA, Maita María Naveira. Concepto y requisitos del daño ressacible. Disponível aqui - 294145. Acesso em 23/05/2023. __________ 1 Sobre o assunto conferir a excelente tese: SANTOS, Romualdo Batista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018. 2 SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível aqui. Pesquisado em 24 de novembro de 2024, p.31-36. 3 Sugere-se a leitura, entre outras, da seguinte obra: FRANKL, Viktor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Tradução de Bruno Alexander. Campina S/P: Auster, 2021. 4 ZARRA, Maita María Naveira. Concepto y requisitos del daño ressacible. Disponível em http://vlex.com/vid/concepto-requisitos-ressarcible - 294145. Acesso em 23/05/2023, p. 1-4. 5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista jus navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n.119, 31 de outubro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 de novembro de 2021, p. 1 e 16.
Em muitos aspectos, a temática do Direito de Família interliga-se com a da Responsabilidade Civil. O que se busca neste ensaio é analisar o tema da adoção, em especial a desistência ou devolução da criança/adolescente, se ela gera ou não algum tipo de dano a quem perdeu a chance de ser adotado. O tema foi escolhido porque, além de uma necessária reflexão, no dia 21 de novembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, caso a desistência da adoção ocorra na fase do estágio de convivência, mesmo após significativo lapso temporal e com as ressalvas do caso apresentado, não configuraria abuso de direito. Assim, analisaremos aqui alguns aspectos a respeito da adoção, como a proteção da criança e do adolescente, o princípio da paternidade responsável e as recentes alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para então adentrarmos na questão da responsabilidade civil pela desistência da adoção ou devolução do adotado. A Constituição Federal traz uma tríplice proteção à criança e ao adolescente no Brasil, cabendo à família, sociedade e Estado zelarem por direitos básicos para seu desenvolvimento. Esses cuidados especiais decorrem do princípio do melhor interesse que a criança e o adolescente possuem, assegurados tanto em âmbito nacional como internacional. O referido princípio está previsto no artigo inaugural do ECA que, em suas disposições preliminares, afirma que o Estatuto dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. No mesmo sentido, o Código Civil trata, em seu Capítulo XI sobre "a proteção da pessoa dos filhos" - referindo-se à guarda nos Arts. 1583 - 1590.  Em âmbito internacional, esta proteção teve início em 1924 com a Declaração de Genebra ("necessidade de se dar proteção especial à criança"); em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prevê o direito a cuidados e assistência especiais às crianças; em 1959, com a Declaração Universal dos Direitos da Criança - determinando os "melhores interesses da criança"; em 1989 com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). Com essa evolução, criança e adolescente passaram a ser considerados titulares de direitos, considerados em suas peculiaridades, tendo proteção integral e o princípio do melhor interesse passou a ser vetor em diversas decisões do tema. Ademais, cabe destacar outros princípios, também vetores de interpretação: o da paternidade responsável e o do livre planejamento familiar, previstos no Art. 226, § 7 º. da Constituição Federal e Art. 1565, § 2º do Código Civil. Verifica-se que o Código Civil atual deu liberdade às famílias para tomarem decisões em seus atos de gestão, ao buscarem a comunhão plena de vida (Art. 1511) e o da mínima intervenção (Art. 1513). Porém, tal liberdade foi dada para ser usada de modo responsável, existindo mecanismos a serem acionados quando a paternidade responsável não for respeitada, ou seja, temos direito à liberdade de escolha nas relações familiares, porém, com responsabilidades e consequências dessas decisões tomadas. Sobre a adoção, Rubens Limongi França a conceitua como "(...) um instituto de proteção à personalidade, em que essa proteção se leva a efeito através do estabelecimento, entre duas pessoas - o adotante e o protegido adotado - de um vínculo civil de paternidade (ou maternidade) e de filiação." É o ato pelo qual se estabelece o parentesco civil (Art. 1593, CC), trazendo alguém para sua família e estabelecendo vínculos de filiação. Está regulamentada no ECA e deve ser deferida quando apresentar reais vantagens ao adotado e fundar-se em motivos legítimos (Art. 43, ECA). Para que ela seja efetivada, a criança ou o adolescente devem ser destituídos do poder familiar (salvo situações que envolvam multiparentalidade) e estar aptas a serem recebidas por uma nova família, via adoção. Por outro lado, a família também precisa estar habilitada para que possa recebê-lo. O ponto central deste trabalho é saber se, caso a família não mais aceite este pretenso filho ou resolva devolvê-lo, quais seriam as consequências e se existiria algum tipo de dano. Inicialmente cabe destacar a diferença entre desistência da adoção e devolução do adotado. A desistência ocorre durante o período do processo de adoção, enquanto a devolução ocorre após sua finalização (seria um novo ato de destituição de poder familiar).  Em regra, a devolução não poderia ocorrer, já que o Art. 39, § 1º. do ECA menciona que a adoção é medida irrevogável. No ano de 2017, no entanto, o ECA foi alterado e trouxe o Art. 197-E que trata sobre a habilitação dos pretendentes. Em seu § 5º, dispõe que: "A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação de renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das demais sanções previstas na legislação vigente." Ou seja, o dispositivo traz uma consequência para os pretendentes/pais no que se refere ao procedimento da adoção, de excluí-los do procedimento e vedá-los de nova habilitação. Porém, a reforma não trouxe nenhuma consequência com relação às crianças/adolescentes! Pecou em não avançar, talvez a parte mais importante da reforma. Atualmente, o período de convivência é de no máximo 90 dias (Art. 46, ECA). Se nesse período ocorrer a desistência, entendeu o STJ que este ato, por si só, não configura ato ilícito e que, portanto, não cabe nenhuma sanção para os pretendentes habilitados (STJ, Informativo 795). O caso analisado referia-se a uma desistência de adoção na fase do estágio de convivência, após significativo lapso temporal, porém, quando não havia ainda a previsão de 90 dias (que veio na reforma de 2017). Afirmou o STJ que a desistência da adoção nesse período do estágio de convivência não configura ato ilícito e não impõe sanção aos pretendentes. Analisando o caso, a corte entendeu que a criança sofria de uma doença grave incurável, os pretensos pais eram pessoas extremamente simples, sem condições financeiras, moravam longe de centros urbanos e a mãe biológica contestava o processo de adoção e pretendia ter seu filho de volta ou que lhe fosse concedido direito de visita. Diante do contexto trazido, entendeu-se pela justificativa da desistência e a não configuração do abuso de direito, considerando que a criança havia sido bem tratada durante o período do estágio de convivência, não havendo nada que desabonasse a conduta dos pretendentes. É importante ressaltar a finalidade do estágio de convivência, qual seja aferir se os pretendentes e o pretenso filho se adaptam para então estabelecer o parentesco entre eles. É justamente para isso, para se conhecerem. Por vezes, essa adaptação não ocorre. Por isso a adoção não deve se concretizar e, como consequência, isso não acarreta, por si só, um ato ilícito, conforme destacou a decisão do STJ. Em outra decisão (REsp n. 1689728/MS) julgada em 04/05/2021, o STJ entendeu que, devido às peculiaridades do caso (pais idosos de 55 e 85 anos e criança à época com 9 anos), os pais adotivos deveriam ter a destituição do poder familiar. Aqui foi um caso de insucesso da adoção em virtude da diferença geracional entre pais e filho. Houve uma falha nas instituições de controle que não se deram conta da peculiaridade do caso. Tal fato não eximiu a responsabilidade civil dos pais pelos danos efetivamente causados à criança ao insistir em devolvê-la ao acolhimento.  E, mesmo com a destituição do poder familiar e maioridade civil do filho, não isentou os pais do pagamento de pensão alimentícia ao filho devolvido. Em síntese, a recente decisão do STJ nos mostra que a desistência da adoção em fase de estágio de convivência não configura ato ilícito e não cabe indenização porque a finalidade do estágio de convivência é aferir o entrosamento e adaptação entre as partes, no período de 90 dias. Contudo, quando o ato ocorre após a sentença de adoção, dá-se a devolução da criança adotada, que pode ocorrer por diversos motivos - falha dos órgãos envolvidos ou por conta dos pais e filhos que não tenham se adaptado à nova família. O ato de receber um filho em sua família e depois "desistir" dele gera dano extrapatrimonial ao filho que, novamente, vai ter a destituição do poder familiar e, caso não tenha alcançado a maioridade, terá que ser acolhido institucionalmente. Cabe, ainda, o dever de prestar alimentos ao filho devolvido. Deste modo, o ordenamento jurídico, ao conferir liberdade e mínima intervenção nas relações familiares, traz a responsabilidade de estarmos atentos e protegermos os vulneráveis, destacando-se, aqui, a criança ou o adolescente que deixa de ser adotado ou que é devolvido. Como consequência da inobservância desses deveres, resta o cabimento do dever de indenizar e pagar alimentos ao filho devolvido após adoção. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: Constituição (planalto.gov.br) BRASIL. Lei 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: L8069 (planalto.gov.br) SILVA, Fernando Moreira Freitas da; MALINOWSKI, Carlos Eduardo. A responsabilidade civil pela devolução do filho adotivo. In: SENA, Michel Canuto de. Responsabilidade civil: aspectos gerais e temas contemporâneos. Campo Grande: Contemplar: 2020. p. 265-276. STJ. Informativo 795 de 21 de novembro de 2023. Disponível em: STJ - Informativo de Jurisprudência. STJ. REsp n. 1698728/MS, julgado em 04/05/2021. Disponível em: STJ - Jurisprudência do STJ. PAIANO, Daniela Braga. A família atual e as espécies de filiação: da possibilidade jurídica a multiparentalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. PAIANO, Daniela Braga; PAVIANI, Gabriela Amorin; Pavão, Juliana Carvalho. Estatuto da Criança e do Adolescente: uma homenagem aos seus 30 anos. Londrina: Thoth, 2021.
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Os termos de uso: você já leu?

A funcionalização do Direito Civil marca uma série de avanços e conquistas, fruto das relações sociais vivenciadas no século XXI. Especificamente no âmbito das relações contratuais, verifica-se uma gradativa mudança que foi se amoldando às necessidades prioritárias de cada época, sendo justamente a sua mutabilidade um dos seus traços mais marcantes. Nesse contexto, destaca-se a sua funcionalização - marcada pela função social dos contratos, pelos deveres de informação1, de transparência, de cooperação e da boa-fé objetiva, dentre outros. Muitas dessas conquistas, todavia, continuam obscurecidas quando se trata da imposição dos Termos de Uso dos aplicativos ou plataformas digitais, instrumentalizados por "nuvens virtuais" que ninguém alcança. Os Termos de Uso constituem verdadeiro contrato de adesão, gratuito, bilateral e atípico, geralmente sendo conhecidos como "termos de uso" ("terms of use"), "acordo do usuário" ("user agreement"), "condições de uso" ("conditions of use"), "avisos legais" ("legal notices"), "termos" ("terms") ou "termos e condições de uso" ("terms and conditions of use"). Referido contrato é geralmente apresentado ao usuário/consumidor no momento do acesso ou da utilização do serviço definido unilateralmente pelo provedor de aplicação, e seu objetivo é definir as responsabilidades, obrigações e direitos das partes envolvidas, não sendo possível ao usuário qualquer possibilidade de negociação. A cada aplicativo baixado ou site que se navega, as pessoas aceitam, expressa ou tacitamente, os Termos de Uso e as políticas de privacidade impostos pela plataforma para que possam ter acesso ao aplicativo, restando ao usuário/consumidor anuir com as avenças minuciosamente detalhadas, sob pena de não ter acesso à plataforma. De acordo com o site de pesquisas Delloitte, cerca de 90% dos usuários/consumidores aceitam os termos e condições de aplicativos sem sequer lê-los. Aqueles que os acessam, não o fazem na íntegra.2 Inúmeras são as razões que explicam tal fenômeno, dentre as quais, textos muito longos, dificuldades de acesso e a utilização de uma linguagem ininteligível. Nesse panorama, destaca-se o pitoresco e conhecido caso em que a loja de jogos online Gamestation.co.uk incluiu uma disposição nos seus Termos e Condições de Uso estabelecendo a transferência da alma do usuário para a empresa. No total, 7.500 usuários não clicaram na opção de "cancelar transferência de alma" disponibilizada pelo site.3 Referida clausula foi inserida nos Termos de Uso no Dia da Mentira como uma piada, mas o empresário  fez isso para deixar claro: "ninguém lê os termos e condições de compras on-line e as empresas são livres para inserir as cláusulas que quiserem nos documentos ".4 Nos Termos de Uso são determinadas as regras e condições que irão prevalecer entre uma empresa ou serviço e seus usuários, relacionando-se, basicamente: i) ao serviço prestado; ii) ao funcionamento do serviço e as regras aplicáveis a ele; iii) ao arcabouço legal relacionado à prestação do serviço; iv) às responsabilidades do usuário ao utilizar o serviço; v) às responsabilidades do provedor pelo serviço; vi) às informações para contato, caso exista alguma dúvida ou seja necessário atualizar informações e vii) ao foro responsável por eventuais reclamações caso questões deste Termo de Uso tenham sido violadas.5 Como se sabe, as condições de uso das plataformas são definidas unilateralmente pelo provedor de serviços, não possibilitando aos usuários qualquer forma de questionamento, aplicando-se de forma indiscriminada a todos. No que se refere à gratuidade, muitas são as críticas direcionadas às plataformas digitais. Quando se trata das gigantes de tecnologia - que supostamente não cobram pelos serviços prestados -, há uma "real ausência de gratuidade", conforme afirma Raimondo MOTRONI.6 A título de exemplo, veja-se o que se dispõe nos Termos de Uso do Meta: "Não cobramos pelo uso do Facebook ou de outros produtos e serviços cobertos por estes Termos, a menos que exista outra informação. Em vez disso, empresas, organizações e outras pessoas nos pagam para lhe mostrar anúncios dos seus produtos e serviços. Ao usar nossos produtos, você concorda que podemos mostrar anúncios que consideramos como possivelmente relevantes para você e seus interesses. Usamos seus dados pessoais para ajudar a determinar quais anúncios personalizados serão mostrados a você."7 Como se percebe, na medida em que a maior razão de existência dessas empresas é a geração do lucro, não faz sentido que uma plataforma desempenhe suas atividades sem que exista alguma forma de contrapartida por parte dos seus usuários.8 Conforme já manifestou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, "o fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo "mediante remuneração", contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor."9 Portanto, se há remuneração, ainda que indireta, evidencia-se que a pretensa "gratuidade" dos serviços dos provedores não passa de ficção, conforme esclarece Claudia Lima MARQUES: "A 'gratuidade' no mercado de consumo é muitas vezes ilusória, pois há remuneração indireta (e por vezes direta e conexa) do fornecedor pela prestação daquele 'serviço' na sociedade de informação".10 Um dos temas mais sensíveis atrelados aos Termos de Uso diz respeito à responsabilidade dos provedores, na medida em que se dispõe a estabelecer as isenções e limitações dos direitos dos usuários. Não raras vezes, as condições de fornecimento dos produtos ou serviços estabelecidas nos Termos de Uso relativizam a responsabilidade dos fornecedores em relação a possíveis danos ou prejuízos causados aos usuários, seja por meio de cláusulas de total isenção de responsabilidade ou, ainda, por via de cláusulas de limitação do quantum indenizatório a um valor simbólico. Nesse sentido, consultemos os Termos de Uso do Meta/Facebook, ao prever os limites da responsabilidade: Trabalhamos continuamente para fornecer os melhores Produtos possíveis e especificar diretrizes claras para todos os usuários. Nossos Produtos, no entanto, são fornecidos "no estado em que se encontram", e, na medida em que for permitido por lei, não damos nenhuma garantia de que eles sempre serão seguros, ou estarão livres de erros, ou de que funcionarão sem interrupções, atrasos ou imperfeições. No limite permitido por lei, também nos eximimos de todas as garantias, explícitas ou implícitas, inclusive as garantias implícitas de comerciabilidade, adequação a uma determinada finalidade, título e não violação. Não controlamos nem orientamos o que as pessoas e terceiros fazem ou dizem e não somos responsáveis pela conduta deles (seja online ou offline) ou por qualquer conteúdo que compartilham (inclusive conteúdo ofensivo, inadequado, obsceno, ilegal ou questionável).11 Outro exemplo, é a limitação de responsabilidade prevista na plataforma Youtube, conforme segue: O Youtube, seus afiliados, diretores, funcionários e agentes não serão responsáveis por qualquer perda de lucros, receitas, oportunidades de negócios, boa vontade ou economias antecipadas; perda ou corrupção de dados; perda indireta ou consequente; danos punitivos causados por: 1. erros ou imprecisões no serviço; 2. lesões pessoais ou danos à propriedade resultantes do uso do serviço; 3. qualquer acesso ou uso não autorizado do serviço; 4. qualquer interrupção ou cessação do serviço; 5. qualquer vírus ou código malicioso transmitido para ou através do serviço por qualquer terceiro; 6. qualquer conteúdo, seja enviado por um usuário ou pelo youtube, incluindo seu uso do conteúdo; e/ou 7. remoção ou indisponibilidade de qualquer conteúdo. esta disposição se aplica a qualquer reclamação, independentemente de a reclamação definida se basear em garantia, contrato, delito ou qualquer outra teoria jurídica.12 No que tange às cláusulas de limitação do quantum indenizatório a um valor simbólico, destaca-se a previsão contida nos Termos de Uso da Microsoft: Se você tiver alguma base para recuperar os danos (inclusive violação destes Termos), até a extensão permitida pela lei aplicável, você concorda que seu recurso exclusivo será recuperar, da Microsoft ou de qualquer afiliada, revendedor, distribuidor, Aplicativos de Terceiros e Provedores de Serviços e fornecedores, danos diretos até o valor equivalente ao valor pago por seus Serviços para o mês durante o qual ocorreu o prejuízo ou a violação (ou até USD$ 10,00 se os Serviços forem gratuitos).13 No Brasil, não se pode desconsiderar os avanços significativos na regulação da matéria, sobretudo a partir da Lei do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados. Ao tratar de dados sensíveis, a legislação nacional passou a exigir que as empresas insiram informações adequadas em suas "Políticas de Privacidade". Delas devem constar: informações sobre qual o tratamento dos dados pessoais realizados de forma automatizada ou não, e a sua finalidade; os dados pessoais dos usuários necessários para a prestação do serviço; a forma como eles são coletados; se há o compartilhamento de dados com terceiros, e quais as medidas de segurança implementadas para proteger os dados. Não se desconsidera que se trata de uma relação privada em que o usuário, exercendo a sua autonomia privada, aceita ou não as condições ao se cadastrar na plataforma. Assim como não se ignora o direito das empresas em estabelecer como o serviço será fornecido, assim como determinar de que modo o usuário deverá se comportar na sua utilização. Ocorre, no entanto, que as plataformas online detêm um alto grau de controle sobre o fluxo de informações na Internet, o que lhes garante uma posição de controle e de poder social em relação aos seus usuários, na medida em que "conseguem agregar, centralizar e compreender todas as informações do mercado, o contrato deixa de ser um instrumento de alocação recíproca de riscos e torna-se forma de dominação da parte mais forte - que detém o pleno conhecimento e, portanto, não se submete propriamente ao risco do negócio - sobre a outra".14 Por tais razões, analisando as privacy policies no contexto do sistema de justiça norte-americano, conclui o professor da Northeastern University, Ari Ezra Waldman: "O que é ainda pior é que nada disso é ilegal. Não só não existe lei contra os termos de privacidade das caixas de verificação, mas depois de décadas de hegemonia neoliberal e anti-regulatória, a conformidade legal performativa é o que se passa por governança pública. Precisamos de uma maneira totalmente nova de pensar e redigir os termos de privacidade, porque as Big Techs se tornaram muito boas em manipular leis baseadas em processos para seu próprio benefício.15 A vulnerabilidade dos usuários no ambiente virtual frente às empresas de tecnologia é de ser presumida, já a partir (mas não apenas) da assimetria informacional instrumentalizada pelos seus Termos de Uso. O desafio regulatório é imenso e de duvidosa efetividade.    __________ 1 DIAS, Daniel. Mais do que você precisa saber: o fracasso dos deveres de informação. Direito Privado no Common Law. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 2 Deloitte. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. Acesso em dezembro de 2023. 3 "By placing an order via this Web site on the first day of the fourth month of the year 2010 Anno Domini, you agree to grant Us a non transferable option to claim, for now and for ever more, your immortal soul. Should We wish to exercise this option, you agree to surrender your immortal soul, and any claim you may have on it, within 5 (five) working days of receiving written notification from gamesation.co.uk or one of its duly authorised minions." 7.500onlineshoppers unknowingly sold their souls. Fox News. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 4 Idem. Na época dos fatos, a empresa informou que não faria cumprir os direitos e planejou enviar um e-mail aos clientes anulando qualquer reivindicação sobre suas almas. 5 Rahman, K. S. Regulating Informational Infrasctructure: Internet Plataforms as the new public utilities. Georgetown Law Technology Review, pp. 235-250. Disponível aqui.  Acesso em dezembro de 2023. 6 MOTRONI, Raimondo. Gli scambi "a titolo gratuito" nelle reti telematiche. In: Ricciuto, Vincenzo; Zorzi, Nadia. Il contratto telemático. Padova: Cedam, 2002. 7 FACEBOOK. Termos de Serviço. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 8 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. 9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.444.008, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 25.10.2016. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1316921 RJ, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 26.06.2012, DJe 29.06.2012. 10 MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 11 FACEBOOK. Termos de Serviço. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 12 YouTube. Termos de Uso. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 13 ermos de Uso da Microsoft.  Limitação da Responsabilidade. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023. 14 FRAZÃO, Ana. A falácia da soberania do consumidor: Economia digital pode tornar o consumidor ainda mais vulnerável, dez. 2021b. Acesso em dezembro de 2023. 15 WALDMAN, Ari Waldman. How Big Tech Turns Privacy Laws Into Privacy Theater. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
Dispõe o art. 229 da Constituição da República de 1988, que "pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade." Crianças e adolescentes de um lado e, pessoas idosas de outro, representam, na sociedade, os mais vulneráveis. Os dois primeiros, porque ainda estão crescendo física, psíquica e emocionalmente; os últimos, porque já viveram e se encontram muitas vezes fragilizados em razão das comorbidades que insistem em aparecer, prejudicando o autocuidado, bem como daquele que se encontra em situação de carência financeira. Pelo texto constitucional antes transcrito, constata-se que nem pais nem filhos têm o dever de amar. Ambos têm, por lei, o dever de cuidar, o que é bem diferente. O fato é que o próprio STJ já decidiu nesse sentido, ao julgar em 24 de abril de 2012, o  REsp 1.159.242-SP,  de relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Nesta decisão ela foi acompanhada pelos Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, e Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo sido voto vencido o Ministro Massami Uyeda. Consta, aliás, do Informativo do STJ: (...) O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. A Min. Relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar - que é uma faculdade - mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. (...)Ressaltou que os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação. (Grifos Nossos)1 Diferentemente do que muitos pensam, portanto, nada tem a ver com o afeto que se esperaria que um pai teria por um filho, o fato de ele ser obrigado a dele cuidar. São duas coisas que deveriam andar lado a lado, mas que se sabe não acontece desse jeito. Transportando-se a decisão do STJ para o campo da pessoa idosa, tem-se que filhos que abandonam pais idosos também devem ser responsabilizados pela prática de ato ilícito, conforme previsto nos arts. 1862 e 9273 da lei civil.4 É, pois, na esteira dessa responsabilidade prevista no Código Civil, que está sob análise no Congresso, o PL 3.145/2015. Por ele o legislador propõe alterar os arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil, acrescentando em cada um deles um inciso V, pelo qual o ascendente poderá deserdar descendente e este poderá deserdar aquele, se houver abandono de um deles em "hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência e congêneres". Na justificativa do citado Projeto, lê-se: A presente proposta, portanto, pretende alterar o Código Civil para permitir a deserdação dos filhos quando eles cometerem abandono afetivo e moral em relação a seus pais. Não se usa o termo idoso, no projeto, apenas para conferir maior amplitude e generalidade ao dispositivo, embora se saiba que a larga maioria dos casos de abandono ocorre quando o pai já é idoso.5 Além desse Projeto, há um outro tramitando no Congresso, o de n. 4.229/20196, que dispõe sobre o direito da pessoa idosa à convivência familiar e comunitária, além de prever sanções para o abandono afetivo da pessoa idosa. Se aprovado, a lei 10.741/2003 - Estatuto da Pessoa Idosa - sofrerá mudança que será mais do que bem-vinda. Isto porque será possível responsabilizar o filho que abandona seus pais na velhice, na doença e/ou na carência. Muitos abusos que são vivenciados cotidianamente por todos os que militam na área do direito da pessoa idosa, poderão ser evitados. Uma das introduções previstas, corresponderá à inserção do art. 42-B: Aos filhos incumbe o dever de cuidado, amparo e proteção da pessoa idosa. Observe-se que o teor do texto antes transcrito se encontra em inteira conformidade com o disposto no art. 229 da Constituição da República, citado logo no início deste escrito, além de ser consoante à decisão do STJ sobre o dever de cuidado, não de amor. Mas a proposta legislativa formulada pelo Senador Lasier Martins prevê, ainda, um parágrafo único ao planejado art. 42-B:   A violação do dever previsto no caput deste artigo constitui ato ilícito e sujeita o infrator à responsabilização civil por abandono afetivo, nos termos do art. 927 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).7 Observa-se, aqui, um eventual futuro fundamento legal para que pais idosos possam propor ação por dano moral em face dos filhos que os abandonam sem motivo. Afinal, o abandono, seja de filho pelo pai durante a menoridade, ou deste por aquele, a partir dos sessenta (60) anos corresponde a um dos tipos de violência contra a pessoa idosa. Esta violência pode causar depressão, isolamento social, enfim, danos psicológicos imensuráveis, os quais poderão levar a pessoa já vulnerável à morte. A saúde, muitas vezes já fragilizada pela idade, poderá sofrer um grande revés em razão do abandono afetivo. E, de acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS -, saúde é vista por uma perspectiva holística, abarcando tanto o físico quanto o mental e o social.  Trata-se de garantir à pessoa idosa um envelhecimento saudável.8 A pessoa tem de ser vista como um todo. Interessante ainda mencionar, que o Estatuto da Pessoa Idosa, principalmente tendo em vista o princípio da dignidade humana, que rege todo ordenamento jurídico brasileiro, estabelece em seu artigo 3º., ser "obrigação da família, da comunidade e da sociedade e do Poder Público, assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde (...), à liberdade, à dignidade, ao respeito à convivência familiar e comunitária". Sendo assim, não é de se esperar que filhos abandonem seus pais idosos material ou afetivamente. Existe algo ínsito no ordenamento jurídico pátrio, que não tem sido muito explorado, mas que deveria, que é o Direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Quando ocorre o abandono afetivo reverso, isto é, o abandono da pessoa idosa pelo seu filho, ela deixa de ter garantido esse seu direito, uma vez que sua proteção como pessoa resta fragilizada. Não é à toa que Rodrigo Pereira Moreira, em brilhante monografia, sobre esse tema afirma: O desenvolvimento da personalidade garante a autonomia para a determinação de uma personalidade livre, sem nenhum tipo de ingerência injustificada, perfazendo um direito à individualidade (...).9 O livre desenvolvimento da personalidade da pessoa idosa, neste sentido, só será possível se minorada sua vulnerabilidade. Para isto, entre outras coisas, imprescindível que ela não seja abandonada, especialmente por seus filhos. Fato é que o Judiciário brasileiro tem garantido em vários casos o direito da pessoa idosa à reparação pelo abandono afetivo, por parte de seus descendentes. Mas, mais do que isso, essencial que os projetos de lei aqui referidos sejam aprovados pelo Congresso e, sancionados, entrando em vigor, imediatamente. Só assim, com leis protetivas em relação à pessoa idosa, poder-se-á buscar sua integral proteção. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 27 nov. 2023. 2 "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." 3 "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." 4 Além disso, faz-se necessário trazer à baila que o Estatuto da Pessoa Idosa -  lei 10.741/2003, em seu art. 98, já disciplina sobre o crime de abandono do idoso, mas desta feita, especificamente em "hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado." Este não é o ponto central do presente texto, por isso não se faz menção ao dispositivo ora citado. 5 Disponível aqui. Acesso em: 26 nov. 2023. 6 Disponível aqui. Acesso em: 28 nov. 2023. 7 Na justificativa do Projeto lê-se: "A alusão ao art. 927 do Código Civil tem por finalidade permitir que juízes apreciem, no caso concreto, os pressupostos que configuram a responsabilidade civil subjetiva, a saber, o descumprimento do dever de cuidado, o dano gerado no idoso (sentimento de isolamento, de solidão, quadros depressivos, entre outros), o nexo de causalidade e a existência de excludentes de ilicitude." Disponível aqui. Acesso em: 28 nov. 2023.  8 Disponível aqui. Acesso em: 29 nov. 2023. 9 MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade: Proteção e Promoção da Pessoa Humana. Curitiba: Juruá, 2016, p. 107.
O aumento das preocupações com a proteção ambiental e com as mudanças climáticas tem dado margem a um crescimento vigoroso do número de ações judiciais buscando responsabilizar instituições públicas e privadas pelas alterações dramáticas do sistema climático e por danos ambientais. Tem sido usual que a busca de reparação dos danos se faça com base no artigo 3º, IV da lei 6.938/1981 que define o poluidor como "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental", a partir da interpretação que foi dada pelo REsp 1.071.741 - SP que o caracteriza  como: "quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem." A decisão, muito embora não tenha efeito vinculante, tem sido considerada como um leading case da matéria. A decisão tem sido interpretada em relação às instituições financeiras como se elas fossem, automaticamente, responsáveis solidárias por danos ambientais causados por seus mutuários. Este artigo tem por foco o "quem financia para que façam". Muito embora a responsabilidade civil do poluidor direto seja objetiva1, parece claro que, no caso de  "quem financia para que façam" , a sua natureza é subjetiva. Inicialmente, deve ser recordado que a matéria tratada no REsp 1.071.741 diz respeito a obras irregulares em unidades de conservação [parque estadual] e a responsabilidade da administração pública no caso concreto, tendo sido decidido que, na hipótese tal responsabilidade é "solidária, objetiva, ilimitada e de execução subsidiária"2. A decisão, em momento nenhum, trata de instituições financeiras, ou de suas responsabilidades por danos ambientais. Ora, como se sabe, o Código de Processo Civil, em diversas oportunidades, determina que, ao se aplicar a jurisprudência e os precedentes, seja feita a distinção entre os casos; isto é, que a matéria de fato seja examinada para que se saiba se os precedentes são cabíveis na hipótese3. O problema jurídico central que se coloca em relação às instituições financeiras, em tema de responsabilidade ambiental, é o estabelecimento do nexo de causalidade entre o dano efetivamente causado ao meio ambiente e as suas ações ou omissões. Inicialmente, cumpre considerar que o conceito de poluidor indireto,  tal como definido pelo REsp 1.071.741, tem sido interpretado de forma abrangente e inconsistente com a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça [STJ] e da legislação aplicável, sendo fonte de inquietudes desnecessárias. O STJ, no Tema Repetitivo 957, deixou clara a necessidade da relação de causa e efeito para a imputação de responsabilidade por danos ao meio ambiente4. Logo, a definição de poluidor, seja ele direto ou indireto, necessariamente demanda a existência de nexo de causalidade claro e indiscutível. Vale lembrar que o artigo 3º, IV não define o que seja poluidor indireto, sendo certo que poluição tem um conceito normativo claro5. Hipoteticamente, poderíamos definir o poluidor indireto como alguém (Ticio) que contribuiu para a prática de um dano ambiental, muito embora não seja o seu causador direto (Mévio). Em tal circunstância não há uma relação de causa e efeito entre ação ou omissão e o dano causado, pois o dano foi causado por Mévio. Tício seria corresponsável se (1) soubesse dos designíos de Mévio para molestar o meio ambiente e, ainda assim, houvesse contribuído para o evento danoso, fornecendo o óleo para poluir o rio, e.g. Assim, houve uma contribuição fundamental, sem a qual o dano não teria ocorrido. Cuida-se, portanto, de uma responsabilidade subjetiva, pois sem o conhecimento do objetivo de Mévio, a responsabilização de Ticio seria arbitrária. A solidariedade não se presume, conforme disposto no artigo 265 do Código Civil Brasileiro [CCB]. No particular, não se pode deixar de observar que, o artigo 403 do CCB determina que a obrigação de indenizar perdas e danos 'só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato", mesmo que o devedor tenha, dolosamente,  dado causa à inexecução da obrigação. O Supremo Tribunal Federal em sua jurisprudência, desde longa data, tem entendido que: "Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.0606 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada"7 Ora, dado que a lei 6.938/1981 não define o que seja o "poluidor indireto" de forma clara e inequívoca, surge um problema relevante quando o imputado não é daqueles cuja "a atividade normalmente desenvolvida (...) impli[que], por sua natureza, risco para os direitos de outrem", conforme determinação do parágrafo único do artigo 927 do CCB. É pacífico que a atividade financeira não é de natureza a causar riscos ou danos para direitos de terceiros.8 Portanto, no caso de instituições financeiras, em princípio, a classificação genérica como poluidor indireto para  atividades por elas  financiadas - capazes de degradar o meio ambiente -  é uma verdadeira  presunção de responsabilidade, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, considerando-se que as atividades-fim das instituições financeiras não podem ser classificadas como degradadoras do meio ambiente9, somente lei específica pode incluí-las no rol dos poluidores indiretos. Observe-se que o direito brasileiro, na Lei de Biossegurança, determina que as instituições financeiras, ao conceder financiamentos, exijam, se for o caso, o Certificado de Qualidade em Biossegurança, sob pena de serem solidariamente responsáveis por danos ambientais causados por organismos geneticamente modificados.10 Na hipótese, cuida-se de responsabilidade subjetiva que tem por base uma conduta (1) dolosa ou (2) culposa por negligência, por exemplo. A lei 9.605/1998, em seu artigo 3º determina que as pessoas jurídicas, "jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade." Aqui, a lei exige uma conduta subjetiva e não meramente a relação de causa e efeito. É necessária uma decisão com a finalidade de atender interesse ou beneficiar a pessoa jurídica. Em relação às instituições financeiras, há também que se considerar que os danos devem ser diretamente causados em razão do financiamento concedido; em outras palavras, ele deve ter como causa direta e imediata os valores aportados pela instituição financeira para a atividade que tenha causado o dano ambiental.   A rarefeita jurisprudência nacional sobre o tema admite a tese de que a responsabilidade das instituições financeiras por danos causados por atividades que, eventualmente, tenham financiado é subjetiva.  O Ministro Ricardo Vilas Boas Cueva11 examinou uma interessante hipótese na qual uma disputa entre mutuário e o BNDES, relativa ao inadimplemento contratual, causado pela não obtenção de licença ambiental pelo mutuário. Firmou-se o entendimento que "seria impossível exigir do banco que se certificasse previamente sobre o preenchimento dos requisitos legais para a obtenção de licença ambiental, posto que as únicas autoridades legitimadas para tanto são o IBAMA e os órgãos ambientais estaduais e municipais, a depender do empreendimento e do impacto ambiental, conforme disciplinado na Resolução 237 do CONAMA. "A decisão deixa claro que à instituição financeira compete, única e tão somente, exigir do mutuário a documentação ambiental cabível; foge da atribuição legal da instituição financeira agir em substituição aos órgãos de controle ambiental. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região12, ao julgar uma disputa relativa à responsabilização de agências de controle ambiental, por conduta omissiva, em razão de danos causados a particulares por empresa de mineração, entendeu que "[a]s entidades de direito público responsáveis pela vigilância, controle e fiscalização da atividade mineradora, juntamente com a empresa extrativista, possuem legitimidade para responder como sujeitos passivos em ação de reparação por danos ambientais que se alega sofridos por particular em sua fazenda, os quais causaram crateras (dolinas) e a morte de animais, por contaminação da água". Em relação ao agente financeiro, no caso concreto o BNDES, a Corte afirmou que "o simples fato de ser ele a instituição financeira incumbida de financiar a atividade mineradora (...), em princípio, por si só, não o legitima para figurar no polo passivo da demanda." A natureza subjetiva da responsabilidade foi afirmada ao acrescentar que "se vier a ficar comprovado, no curso da ação ordinária, que a referida empresa pública, mesmo ciente da ocorrência dos danos ambientais que se mostram sérios e graves e que refletem significativa degradação do meio ambiente, ou ciente do início da ocorrência deles, houver liberado parcelas intermediárias ou finais dos recursos para o projeto de exploração minerária da dita empresa, aí, sim, caber-lhe-á responder solidariamente com as demais entidades-rés pelos danos ocasionados". A decisão, claramente, afirma que, no caso concreto, há a necessidade de que a instituição financeira (1) tenha ciência do dano ambiental causado e (2) apesar disso, prossiga concedendo ou liberando crédito já concedido. Trata-se, portanto, de conduta dolosa ou culposa, conforme deve ser apurado. Com relação à ciência do dano, evidentemente, ela tem que ser fruto de uma informação idônea e oficial, salvo as hipótese de fatos públicos notórios, pois os contratos de financiamento são sujeitos a cláusulas relativas ao fluxo financeiro que precisam ser observadas por ambas as partes contratantes. Em igual sentido vai a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª região13, ao decidir questão relativa a bens dados em hipoteca ao BNDES, havendo assentado que: "[m]algrado as referidas embarcações tenham sido dadas em garantia ao crédito objeto da execução, não há no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma que legitime o executado a compelir o exequente a adjudicar compulsoriamente um bem hipotecado." Acrescentando, ainda, que em relação à "específica alegação de risco ambiental, esta não é suficiente para alterar o entendimento acima exposto, eis que a responsabilidade pela manutenção dos bens hipotecados é da empresa agravante, assim como dos eventuais danos ambientais por ventura causados, fruto de sua deterioração, não podendo ser carreada a culpa ao BNDES". A decisão proferida no REsp 1.071.741 ao mencionar o "quem financia para que façam" deve ser compreendida à luz da jurisprudência que especificamente trata das relações entre instituições financeiras e danos ambientais causados por seus mutuários. Esta jurisprudência, com muita clareza, indica a natureza subjetiva de tal responsabilização. Justifica-se a posição jurisprudencial, pois não havendo lei específica para tratar da matéria, o intérprete há que se socorrer do parágrafo único do artigo 927 do CCB; ora, a atividade financeira não tem como "natureza" pôr em risco ou causar danos ao meio ambiente; portanto, não está sujeita à responsabilidade objetiva por esse fundamento. Em conclusão, é possível dizer que a responsabilidade das instituições financeiras relativamente a créditos que tenham concedido - os quais tenham financiado atividades degradadoras do meio ambiente - exige a (1) ciência inequívoca do fato danoso; a (2) continuidade dos financiamentos apesar da ciência dos danos causados; matéria de prova que deve ser feita pelo autor da demanda. __________ 1 Lei 6.938/1981. Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:....§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. 2 SÚMULA N. 652 A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária. 3 Por exemplo: Art. 489. São elementos essenciais da sentença: ....§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: .....II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; ....VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida ...§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.       § 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.        Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual: § 9º Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo. 4 As empresas adquirentes da carga transportada pelo navio Vicuña no momento de sua explosão, no Porto de Paranaguá/PR, em 15/11/200, não respondem pela reparação dos danos alegadamente suportados por pescadores da região atingida, haja vista a ausência de nexo causal a ligar tais prejuízos (decorrentes da proibição temporária da pesca) à conduta por elas perpetrada (mera aquisição pretérita do metanol transportado). 5 Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos; IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental; 6 Código de 1916, correspondente ao artigo 403 do CCB de 2002. 7 Recurso Extraordinário nº º 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves. 8 Lei 4.595/1964. Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual. 9 Lei 6.938/1981, artigo 3º, II 10 Lei 11.105/2005. Art. 2º As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos desta lei e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu descumprimento. .....§ 4º As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela CTNBio, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento desta lei ou de sua regulamentação. 11 STJ - Agravo em Recurso Especial: AREsp 1304424 PR 2018/0133582-2. 12 TRF-1 - AG: 36329 MG 2002.01.00.036329-1, Relator: Desembargador Federal Fagundes de Deus. Julgamento: 15/12/2003, 5ª Turma, Publicação: 19/12/2003 DJ p.185. 13 TRF-2 - AG: 201302010035645, Relator: Desembargador Federal Nobre Matta, Julgamento: 14/08/2013, 7ª Turma Especializada, Publicação: 22/08/2013.
quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Influenciadores digitais e responsabilidade civil

O mundo vivencia contínuas e aceleradas transformações, impulsionadas pelos avanços tecnológicos. Profissões que no passado recente sequer existiam, passaram a fazer parte do cotidiano, inclusive no setor de marketing. Se, antes, as empresas que desejavam promover os seus produtos, serviços e marcas utilizavam canais tradicionais e consolidados de comunicação, como a TV aberta, jornais e revistas de grande circulação nacional, hoje elas buscam novos meios com alcance amplo e variado, como são as redes sociais. Nas redes sociais, há pessoas que por variados motivos, despertam interesse no público em geral, que passa a segui-las e a interagir com as suas publicações. As publicações dessas pessoas contemplam informações ou imagens para inspirar e difundir ideias, tendências, produtos ou serviços, gerando engajamento com potencial para impulsionar negócios. Esse interesse do público-alvo que fará nascer um desejo de consumir, torna o influenciador digital e a sua rede uma desejável ferramenta de veiculação de publicidade, fazendo que essa nova profissão permita a capitalização do profissional que a exerce, pela possível monetização do seu conteúdo e influência. Assim, no cosmos do direito, os influenciadores ganharam espaço e por vezes tornam-se protagonistas em uma das diversas faixas da franca expansão do ambiente da responsabilidade civil, no mundo que avança pelos inimagináveis e amplos horizontes digitais. Nesse contexto, convém perguntar qual é o critério de imputação da responsabilidade civil dos influenciadores digitais que fazem propaganda nos seus canais tecnológicos de comunicação, fazendo com que, por vezes, os influenciados (seguidores-consumidores) experimentem prejuízos inesperados, notadamente quando os produtos ou serviços não existem, têm vícios ou são defeituosos. Doutrinariamente, há quem sustente que o influenciador pago responde objetivamente pelos prejuízos sofridos pelo consumidor, com base na aplicação da teoria do risco e do princípio da solidariedade. Outros afirmam que a responsabilidade seria subjetiva, pelo enquadramento dessa categoria no rol de profissionais liberais, pois o influenciador somente empresta a sua imagem e voz para terceiros1, como tem sido trilhado na responsabilidade por propagandas em geral e em meios tradicionais. Barbosa, Silva e Brito defendem que, uma vez sendo lícita a publicidade e com observância da lei, caso o produto ou serviço apresente vício ou defeito posteriormente, o influenciador não será responsabilizado, uma vez que não há vínculo com a publicidade lícita, devendo a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço ser analisada apenas em relação ao fornecedor2. Ody e D'Aquino prelecionam que o influencer exerce a sua liberdade de expressão em atividade que não é perigosa por si, e que a sua responsabilidade se amolda ao critério subjetivo de imputação, a exigir demonstração da prática de um ilícito para que seja responsabilizado3. Oliveira segue na linha da responsabilização subjetiva do influenciador, desde que este faça uso adequado de sua imagem, sem prejuízo da análise específica das circunstâncias que envolvem os expectadores do conteúdo anunciado e a verificação da capacidade de consumir dos mesmos, se é de forma consciente ou se apenas adquirirão pela opinião da pessoa que está divulgando e que, pela fama, exerce a influência4. Mas há inúmeras vozes a sustentar a responsabilidade objetiva do influencer. Entende-se que a solução da questão demanda ter em conta uma premissa essencial na conjuntura da propaganda digital: a confiança depositada pelos seguidores-consumidores nos seus influenciadores digitais e a utilização desse mote como terreno fértil ao exercício do poder de persuasão para realizar a atividade de divulgação, venda ou promoção de produtos ou serviços próprios ou de terceiros. O digital influencer profissional tenciona sugestionar, induzir e motivar determinados comportamentos por parte dos destinatários das suas atividades. Se o produto ou serviço é do próprio influenciador, este pode ser enquadrado conceito de fornecedor previsto no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), sujeitando-o aos ditames previstos no referido diploma legal, inclusive nos dispositivos que tratam da responsabilidade por danos sob critério objetivo de imputação. Se o produto ou serviço é de terceiro, a resposta pode ser distinta ou no mínimo personalizável conforme as circunstâncias concretas, incluindo a análise sobre o modo de veiculação e o conteúdo da publicidade levada a efeito pelo influenciador. Para tanto, será necessário tratar critérios comuns e outros específicos. Em comum, pode-se afirmar que o dever de informar deve estar presente tanto na atuação do influenciador, que é ao mesmo tempo divulgador e prestador de serviços ou fornecedor de produtos, quanto na atividade meramente publicitária. Tratando-se de produto ou serviço seu, a própria menção do influencer já é suficiente para que seja tratado como fornecedor (por exemplo, quando menciona "o serviço que eu executo" ou "o produto da minha empresa"). Nesse caso, as informações deverão dizer respeito ao produto ou serviço divulgado. Quando o produto ou serviço for alheio, é essencial a informação ao público de que se trata de postagem de cunho publicitário (conhecido no meio pela expressão publipost), acrescido de cuidado adicional quanto a uma averiguação que diga respeito a quem está contratando e qual é o conteúdo que deverá ser publicizado, como será visto no decorrer deste texto. A informação "visa a assegurar ao consumidor uma escolha consciente, permitindo que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas", como referiu a Ministra Nancy Andrighi no REsp n. 1121275-SP. Embora a publicidade não seja permeada pela neutralidade, não se pode admitir que o consumidor seja enganado ou levado a situações de prejuízo inadmissível, a ressaltar a importância do princípio da identificação da publicidade, expresso no art. 36, caput, do CDC, segundo o qual o consumidor "deve identificar fácil e imediatamente a publicidade veiculada". Com isso, "a legislação objetiva que o potencial comprador tenha em mente que há um evento publicitário, evitando-se que o divulgador venha a se valer de mensagem subliminar"5. O caminho é em dois segmentos, pois há o dever de informar, que se divide no dever de informar do fornecedor quanto ao produto ou serviço (que na propaganda é realizada por quem a faz) ou de quem faz a publicidade quanto ao fato de que a exposição ocorre em um contexto de propaganda, e, portanto, não se trata de um testemunho completamente desinteressado. Se em uma publicidade veiculada por um influencer em um comercial de televisão, essa informação explícita seria desnecessária, pelo contexto que permite a presunção de que seja interessada e paga; na propaganda do influencer em rede social isso não ocorre, porque há postagens na linha do tempo da sua página na rede social que são efetivamente desinteressadas mescladas com postagens financeiramente alavancadas, a prejudicar uma análise do próprio consumidor. Isso reforça a necessidade de que o destinatário da postagem saiba o que é efetivamente espontâneo e o que é patrocinado. Por isso, o influenciado, usuário da rede do influenciador, tem o direito de saber que o conteúdo que está consumindo diz respeito a uma publicidade paga e que o influenciador ali está em seu próprio benefício financeiro e em atendimento dos interesses do contratante da propaganda. Um dos meios mais utilizados para prestar a informação é o uso de hashtags indicativas (por exemplo, #patrocinado; #anúncio; #parceriapaga), segundo destaca a doutrina. Não sendo explicitado pelo influenciador que a sua atividade na rede foi executada com fins publicitários, será possível afirmar que a manifestação ocorreu como se estivesse falando em nome próprio, e poderá ser responsabilizado pelo dano que for causado ao consumidor, pelo produto ou serviço divulgado6. Essa responsabilidade pode ser solidária com o próprio fornecedor (conforme art. 7º, parágrafo único, do CDC sem prejuízo do que também dispõe o art. 942, parágrafo único, do Código Civil). Nesses casos, caso o influencer tenha indenizado a vítima quando a questão que diga respeito ao fornecedor, pode exercer seu direito de regresso. A respeito do tema, convém lembrar o texto do art. 37 do CDC, que considera como publicidade enganosa aquela total ou parcialmente falsa, "capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços", e das regras de soft law previstas no denominado Guia de publicidade por influenciadores digitais, publicado em 2021 pelo CONAR7, que orienta a aplicação das regras do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ao conteúdo comercial em redes sociais. Segundo o referido guia, em seus itens 1.1 e 1.1.1, o conteúdo publicitário "deve ser claramente identificado" como tal, "de forma ostensiva e destacada". E, se pelo contexto não for possível identificar a publicidade, "é necessária a menção explícita da identificação publicitária, como forma de assegurar o cumprimento deste princípio", a qual pode ocorrer por meio do uso das expressões 'publicidade', 'publi', 'publipost' ou equivalentes, "podendo tal menção ser feita em qualquer elemento das postagens, inclusive legenda, desde que a informação sobre a natureza publicitária seja visível de plano". Nas publicações em lives, que são transmissões em tempo real, igualmente emerge a necessidade de "identificação publicitária", a qual "deverá ser periodicamente repetida de forma que fique suficiente claro à audiência integral ou esporádica que existe conexão relevante entre o influenciador, o anunciante e a agência." O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária contém vários artigos sobre o tema, dentre os quais a previsão de que o anúncio deve ser honesto (art. 1º), "presente a responsabilidade do Anunciante, da Agência de Publicidade e do Veículo de Divulgação junto ao Consumidor" (art. 3º)8, sem interferir indevidamente no senso crítico do consumidor. Conforme dito em outra oportunidade, "entre os princípios gerais do referido Código, destaca-se o da honestidade que, em seu art. 20, refere que os anúncios não devem abusar da confiança do consumidor, se beneficiar da sua credulidade, tampouco explorar sua falta de experiência ou de conhecimento. E o princípio da identificação publicitária que refere, no art. 28, que a  publicidade deve ser facilmente identificada como tal"9. Esses deveres de cuidado e de informação se acentuam quando o canal de comunicação for acessível a crianças ou adolescentes, seres em formação e que podem ainda não ter discernimento suficiente para separar o que é real e efetivo e o que é superlativo e sugestionado por razões financeiras.  Por vezes, as próprias plataformas digitais trabalham no sentido de evitar problemas de uso publicitário dos seus canais. Nas políticas do Instagram, por exemplo, na parte de "Políticas de Conteúdo de Marca" da rede, consta que é proibida a publicidade de empréstimos, ofertas de moedas, de cigarros eletrônicos, vaporizadores ou afins, bem como produtos e suplementos não seguros10. Por vezes, são os conselhos de classe que regulamentam e restringem a publicidade de determinados setores, como o CFM e a OAB. A noção de acidente de consumo "que visa ao amparo da incolumidade psicofísica dos consumidores, protegendo contra defeitos de concepção, produção ou informação que viole a legítima expectativa, de forma a tutelar a saúde e a segurança no mercado digital"11 pode alcançar diretamente o produtor ou fornecedor e indiretamente o influenciador que apresentou o produto ou serviço sem as devidas cautelas, como se seu fossem ou sem indicar que a postagem é contratada. Essa resposta se acentua pela presunção de vulnerabilidade do consumidor, que abrange a técnica, jurídica e fática12 prevista no CDC, a qual é "especializada" na vulnerabilidade informativa, decorrente da pressuposta assimetria entre o consumidor e o fornecedor, que é quem detém maior conhecimento sobre o que oferece no mercado. Na prática, há inúmeros casos de responsabilização (por danos morais e materiais) do influenciador que divulga algum produto que o consumidor compra e não recebe. Jojo Todynho, Carla Diaz, Luiza Sonza, entre outros famosos, por exemplo, foram processados por propaganda enganosa de smartphone.13 Alguns influenciadores divulgaram um site falso da Shein no qual, supostamente, os consumidores seriam pagos se avaliassem roupas da referida plataforma on-line de vendas. A repercussão do fato foi tão grande que a própria empresa teve que ir a público mencionar que se tratava de um "golpe"14. Veja-se que, com isso, que não apenas consumidores, mas terceiros (empresas) podem ser envolvidos indevidamente e prejudicados na propaganda irregular de influencers. Em casos como esses, nos quais os influenciadores não tiveram cuidados mínimos na averiguação de que a publicidade contratada contém conteúdo que contempla conhecidas táticas de estelionato, é possível que o influenciador seja condenado a indenizar a vítima. A ilicitude está radicada na da conduta omissiva do influenciador, quanto a falha na possibilidade de identificar risco de danos que seriam constatáveis por qualquer pessoa que agisse com razoável cautela. Expostas sinteticamente as principais questões que cercam o tema, encerra-se com a sugestão de que seria importante que o Brasil, seguindo o caminho que vem sendo trilhado por países como Austrália e França, regulamentasse a profissão e estabelecesse limites ou requisitos à propaganda dos influenciadores digitais. __________ 1 SQUEFF, Tatiana Cardoso; BURILLE, Cíntia; RESCHKE, Ana Júlia de Campos Velho. Desafios à tutela do consumidor: a responsabilidade objetiva e solidária dos influenciadores digitais diante da inobservância do dever jurídico de informação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 140, p. 313-332, mar./abr. 2022. p. 319. As autoras inclusive referem que a simples menção de que se trata de campanha publicitária, não basta para informar adequadamente os consumidores. Brito  e Silva sustentam que, caso haja anúncio de um produto ou serviço defeituoso ou que contenha vício, haverá o dever de reparar, pois há um dever de diligência mínima quando o influenciador cede sua imagem para divulgação de tal empreendimento, visto que há um pagamento significativo para a divulgação publicitária. SILVA, Carlos Mendes Monteiro da; BRITO, Dante Ponte de. Há responsabilização dos influenciadores digitais pela veiculação de publicidade ilícita nas redes sociais? Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 133, p. 205-2011, jan./fev. 2021. p. 209. Sampaio e Miranda afirmam que a responsabilidade é objetiva, sendo importante destacar o princípio da lealdade que exige que o influenciador confira a veracidade das informações que divulgam, tendo em vista a enorme capacidade de alcance das publicações. SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva; MIRANDA, Thainá Bezerra. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais diante do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 133, p. 175-204, jan./fev. 2021. p. 181 e 184. Speranza refere que a responsabilidade é subjetiva, porque as celebridades não têm condições de conferir todas as informações, diante da falta de conhecimento técnico específico quanto a cada produto divulgado, exceto se elas utilizarem palavras de compromisso, como "eu garanto", o que atrairia a responsabilidade objetiva. SPERANZA, Henrique de Campos Gurgel. Publicidade enganosa e abusiva. Âmbito Jurídico, São Paulo, set. 2012. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-104/publicidade-enganosa-e-abusiva/. Tartuce e Neves prelecionam que a responsabilização objetiva das celebridades, artistas e atletas se justifica pela grande notoriedade que os envolve. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 6. ed. rev. São Paulo: Método, 2017. p. 222. 2 BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 01-21, maio/ago. 2019. Disponível aqui. p. 8. 3 ODY, Lisiane Feiten Wingert; D' AQUINO, Lúcia Souza. A responsabilidade dos influencers: uma análise a partir do Fyre Festival, a maior festa que jamais aconteceu. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, p. 01-18, 2021. Disponível aqui. p. 14.   4 OLIVEIRA, Stéphanie Assis Pinto de. Responsabilidade das celebridades em campanhas publicitárias de crédito consignado destinadas a idosos. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 10, n. 2, p. 495-504, jul./dez. 2010. Disponível aqui. p. 502-503. 5 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 73. No mesmo sentido: SPERANZA, Henrique de Campos Gurgel. Publicidade enganosa e abusiva. Âmbito Jurídico, São Paulo, set. 2012. Disponível aqui. 6 BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 2, p. 01-21, maio/ago. 2019. Disponível aqui. p. 11-12. 7 Disponível aqui. 8 SÃO PAULO. Código de Autorregulamentação Publicitária. São Paulo: Conselho de Autorregulamentação Publicitária, 2022. Disponível aqui. 9 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 77. 10 POLÍTICAS de Conteúdo de Marca. Meta, [s. l.], c2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2023. Veja-se, sobre o tema BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 75. 11 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 78. Vide também a respeito do tema: LEITE, Ricardo Rocha. A responsabilidade civil e os influenciadores digitais. Migalhas, [s. l.], dez. 2021. Disponível aqui. 12 MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de. (Org.) Direito do Consumidor: 30 anos do CDC. São Paulo: Forense, 2020. p. 233-258. p. 236. Também a respeito, veja-se:  SOARES, Flaviana Rampazzo; PASQUALOTTO, Adalberto. Consumidor hipervulnerável: análise crítica, substrato axiológico, contornos e abrangência. Revista de Direito do Consumidor. vol. 113/2017. p. 81 - 109, Set - Out / 2017. 13 RODAS, Sérgio. Influenciadora digital responde por golpe dado por loja que indicou. Consultor Jurídico, Rio de Janeiro, ago. 2021. Acesso em: 22 out. 2023 14 SILVA, Victor Hugo; CATUCCI, Anaísa; CASEMIRO, Poliana. Shein alerta para golpe em site promovido por influenciadores para ganhar dinheiro avaliando roupas: página fraudulenta induz seguidores a fazer pagamento e a informar dados pessoais e bancários. Influenciadores fazem publicidade divulgando plataforma golpista. G1, [s. l.], abr. 2023. Disponível aqui.
Introdução O atual texto do Código Civil brasileiro, pelo menos em uma hermenêutica literal, assevera que a Responsabilidade Civil depende da existência da constatação de um dano, quer patrimonial ou extrapatrimonial. Com efeito, na redação do art. 186 c/c 927 do C.C., depreende-se que o legislador afirmou que deve se verificar a existência de uma ação ou omissão, quer culposa ou dolosa, com violação de direito e causação de dano, para que o ofensor responda e, por consequência, repare o prejuízo que causou. Como se não bastasse, pelo art. 944 do C.C. é reafirmada a natureza reparatória da responsabilidade civil ao se prever que a indenização mede-se pela extensão do dano. Nesse quadro, vem à tona algumas indagações: sempre é possível reparar um dano? Não seria mais inteligente que o legislador dispusesse sobre uma responsabilidade civil preventiva, ou seja, a que evitasse o dano? Portanto, o problema que ora se enfrenta é: existe juridicidade na estipulação de uma responsabilidade civil preventiva na reforma do Código Civil ora em andamento? Por hipótese, afirma-se que o Código Civil na redação vindoura, deverá, atento ao estudo contemporâneo da Responsabilidade Civil, estabelecer que a função preventiva é fundamental para que se evite um dano, mormente aquele de difícil ou impossível reparação, como, comumente, é o dano ambiental. Não é difícil afirmar que a reparação ambiental da Baía de Guanabara, da Lagoa da Pampulha, da extinção de uma espécie animal, da devastação de uma espécie vegetal, da introdução equivocada de uma espécie animal desequilibrando um ecossistema são exemplos de danos de difícil ou impossível reparação. É perceptível a insuficiência dos critérios indenizatório e compensatório da responsabilidade civil em relação aos danos existenciais, tanto individuais como coletivos, ou metaindividuais, da impossibilidade da  restituto in integrum, pois não há como se retornar indene ou compensar integralmente a dignidade violada ou o projeto de vida interrompido, sendo a natureza reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, incongruente com a própria efetividade da responsabilidade civil. Objetiva-se, portanto, demonstrar que o texto atual do Código Civil é anacrônico, completamente dissociado do que a doutrina mais moderna sustenta e que uma sociedade lúcida espera, sendo, portanto, imperioso que o novo texto, para muito além de uma Responsabilidade Civil somente reparatória, preveja que é possível estabelecer uma resposta jurídica antes da ocorrência do dano, sobretudo para que se evite que degradações ambientais irrecuperáveis ocorram. Da responsabilidade civil ambiental preventiva Comumente os danos ambientais são de difícil ou impossível reparação. Pode-se, portanto, com tranquilidade, afirmar que seria muito melhor para a sociedade que almeja alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, intenção expressa na Constituição Federal de 1988 (art. 225), que tais danos não ocorrem. Por consequência, pouco importa se o Estado, quer pelo Poder Judiciário quer pelo Executivo, impute responsabilidade ao degradador se, em verdade concreta, não for possível a restauração original do ambiente degrado ou destruído. Afirma-se, portanto, que muito melhor seria se o dano não ocorresse e, de forma alvissareira, afirma-se que isso é possível através da adoção no ordenamento jurídico brasileiro, a função preventiva da Responsabilidade Civil. Nesse sentido, Nelson Rosenvald e Graziella Trindade Clemente: Diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil. A trajetória do modelo jurídico da responsabilidade civil, no século XXI, deixa de ser linear e estática tornando-se sensível e adaptável à nova realidade em evolução1. Em julgado paradigmático de 2017, das Seções Unidas da Corte de Cassação Italiana,2 considerou-se que "deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são a preventiva e a punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica".1 Sabe-se que nesta década, o Brasil, tristemente, assistiu a duas grandes tragédias ambientais que tiveram causas semelhantes, qual seja: o rompimento de barragem em área minerária. Tais fatos causaram, como se sabe, para além do evento morte humana, significativos danos ao meio ambiente natural e artificial, destruindo, para sempre, a dignidade das pessoas que com o luto sofrem, bem como, para todos que neste planeta vivem, diante da degradação de rios, mortandade de animais, devastação florestal e outros danos que sequer, anos depois das tragédias, ainda temos dimensão. Entre as categorias de riscos catastróficos, Christian Lahnstein2  destaca os riscos tecnológicos, estes que tanto se realizam em um acidente industrial como durante a difusão de efeitos negativos de uma tecnologia ou dos seus danos colaterais. Referidos riscos persistentes do futuro e os litígios épicos que acompanham a história de processos administrativos e judiciais envolvendo grandes corporações farmacêuticas e químicas, petrolíferas, mineradoras, entre outras, autorizam o desenvolvimento de medidas precaucionais e também de acompanhamento das populações atingidas em razão dos efeitos críticos tardios do acidente. O tempo está a demonstrar que as ferramentas dissuasórias não se apresentam eficientes quando se trata de atividades de riscos tecnológicos, diante da capacidade de grandes conglomerados econômicos internalizarem parcialmente as externalidades negativas, mantendo o lucro global das operações,  ou mesmo  transferirem o encargo e o próprio risco para a sociedade, tanto através de outras relações jurídicas quanto por novas operações financeiras ou de engenharia fiscal e compensatória não integral com o Estado. Com efeito, contaminações petrolíferas, catástrofes químicas e farmacológicas, inclusive a adição por opioides, rompimento de barragens de contenção de rejeitos minerários e a própria difusão descontrolada de tecnologias de inteligência artificial tem o condão de causar danos que não serão compensados e, por vezes, sequer serão indenizados pelas empresas degradadoras durante a sua vida útil. Mínimas são as perspectivas dissuasórias concretas que possam evitar o poluidor de continuar a atuar de forma predatória, pois, segundo Lahnstein ao trazer o comentário de um juiz inglês, a filosofia do mercado presume que é lícito obter lucro causando outras perdas econômicas ("the philosophy of the market place presumes that it is lawful to gain profit by causing other economics loss")3 Imagine que existisse em nossa legislação civil/ambiental a previsão de que o desastre ambiental, independentemente de suas consequências danosas, acarretasse à empresa uma multa milionária ou a cassação, por longo período, do direito de exercer sua atividade. Será que tragédias teriam ocorrido? E se existisse, no ordenamento jurídico uma previsão que a construção e manutenção de estruturas de risco acarretassem à empresa uma responsabilidade civil pela simples razão de colocar uma sociedade em risco para reduzir o custo empresarial, tragédias teriam ocorrido? Vidas teriam sido perdidas ou maculadas? O meio ambiente seria degradado? Enfim, os danos não seriam evitados? Afirma-se que a resposta para todas as perguntas acima é: os danos não teriam, provavelmente, ocorrido. Assevera-se, portanto, que se lei brasileira, dispusesse de modo preventivo que determinados comportamentos, independentemente da produção de resultados, já acarretassem a imputação de Responsabilidade Civil, muitos horrores não teriam ocorrido. Helita Barreira Custódio4 é incisiva ao advertir sobre tais problemas, apontando os riscos de um retrocesso nas técnicas reparatórias dos danos já causados e nas ações preventivas para os danos potenciais: A experiência tem demonstrado, reiteradamente, que as prejudiciais consequências da poluição ao meio ambiente resultam, geralmente, em danos irremediáveis e, quando remediáveis, a recuperação, a correção, a reposição ou a restauração dos recursos ambientais (naturais e culturais) degradados somente será possível a longo prazo, mesmo assim, mediante o emprego de técnicas caríssimas, ou de mecanismos ou processos complexos de elevadíssimos custos, notadamente socioambientais. O Código Civil brasileiro tem a eticidade como fundamento, como já preconizava desde de sua construção Miguel Reale, coordenador da comissão de juristas que o estruturou. Eticidade pressupõe que a conduta dos atores nas relações jurídicas esteja conforme o fundamento constitucional da preservação da dignidade da pessoa humana e tenha a sociedade como destinatária de sua proteção. Para tanto, critérios de correção da conduta na formação da obrigação jurídica passaram a ser essenciais para a verificação da responsabilidade civil, conduzindo a interpretação para além de sua versão clássica reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, a abarcar a preocupação social com a prevenção e repercussão do dano. Não alheio ao mandado constitucional de garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais, não perdendo de vista o princípio do neminem laedere, o legislador reconheceu aqui e ali no Código Civil, de forma tímida, a eficácia preventiva da responsabilidade civil, como quando previu a tutela contra ameaças aos direitos de personalidade (art. 12 do Código Civil), porém não aproveitou a oportunidade de sistematizar normativamente a responsabilidade civil preventiva e seu alcance. Imperiosa, pois, que a nova redação do Código Civil disponha sobre a função preventiva da Responsabilidade Civil sob pena de se reescrever um texto arcaico e, porque não dizer, muitas vezes inútil. Afinal, seria o mesmo que determinar que um destruidor repare um dano que causou, como se, por uma ridícula estupidez, pudéssemos admitir que morte de alguém que se ama é reparada por dinheiro. Conclusão Espera-se que a reforma do Código Civil expressamente inclua no seu texto que a Responsabilidade Civil, consagre definitivamente a tutela preventiva do ilícito, possibilitando que se iniba práticas potencialmente degradadoras, independentemente da ocorrência de danos. Somente assim, afirma-se com tranquilidade, que o nosso planeta para as presentes e futuras gerações não continuará a sofrer com verdadeiras devastações praticadas pelo homem que, sem nenhuma conotação pessimista, será a própria vítima de suas ações e omissões. O legislador civil brasileiro tem a obrigação de superar conceitos anacrônicos, há muito afastados por legislações estrangeiras mais evoluídas, prevendo expressamente que devem responder civilmente, antes mesmo da ocorrência de qualquer dano, mormente o ambiental, aqueles que optam por, ainda que potencialmente, colocar o ambiente que vivemos em risco. Não há qualquer justificativa para que se primeiro degrade para, posteriormente, como se possível fosse recuperar a vida, o Estado determine uma resposta jurídica, por mais severa que seja, imputando ao ofensor a óbvia obrigação de reparar o estrago que causou. Ora, por que não evitar o dano? Por que não evitar a morte? Por que insistir em uma reparação comumente inviável? Não existe resposta,com robustez jurídica, a essas perguntas. Sobretudo em matéria de dano ambiental, oxalá o Código Civil em gestação amplie ao máximo a legitimidade ativa para a propositura de ações judiciais e medidas administrativas que objetivem que os danos difusos oriundos da degradação ambiental não ocorram, requerendo-se imposições de providências que assegurem um resultado prático que efetivamente impeçam a ocorrência da degradação. Afirma-se, em conclusão, que o Código Civil vindouro deve reconhecer que a Responsabilidade Civil para muito além da primitiva tutela reparatória deve admitir, com realce, que a tutela preventiva é fundamental para que alcancemos o objetivo social de vivermos um meio ambiente ecologicamente equilibrado. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 8 nov. 23. 2 GUARDIA, Mariano José Herrador .Derecho de daños (cuestiones actuales).Lefebvre:Madrid 2020. P.  101 a 120. 3 Ob.cit. P.107. 4 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Responsabilidade Civil por Danos ao Meio Ambiente. Campinas: Millenium, 2006, p. 3.
Da sua origem de cura baseada na fé e no misticismo, a relação médico-paciente é marcada pela verticalização, onde o médico, detentor do conhecimento técnico, é quem definia (e muitas vezes ainda define) as melhores escolhas para o paciente. Ao paciente restava acolher a opinião técnica médica e cumprir as recomendações e prescrições para alcançar a cura ou melhorar seus sintomas. A comunicação, inicialmente utilizada como recurso de apuração de diagnóstico e de criação de conexão e confiança para envolver o paciente nos cuidados e tratamentos prescritos pelo profissional sem maiores questionamentos, foi relegada para um plano ainda mais secundário com o desenvolvimento de tecnologias, pois, os exames, por exemplo, se tonaram suficientes para trazer respostas sobre o que se passava com o corpo do paciente. Já não era preciso tanto diálogo para saber o que se passava com a saúde do enfermo e o objetivo da equipe de saúde era curar o paciente, salvar sua vida. No Direito, havia a mesma desvalorização do diálogo e o sistema de justiça alicerçado na perseguição da culpa e punição do culpado. É o sistema de justiça retributiva e, nas palavras de Howard Zehr:  A administração da justiça é uma espécie de teatro no qual os temas culpa e inocência predominam. O julgamento ou a confissão da culpa formam o clímax dramático, tendo a sentença como desenlace. Assim a justiça se preocupa com o passado em detrimento do futuro" (Zehr, 2008, p. 77)  O mesmo movimento de transformação das relações aconteceu e ainda acontece no Direito e na Medicina. No Direito, a troca de lentes para compreensão do conflito, da justiça e das relações ficam a cargo dos meios de gestão de conflitos, especialmente pautados na cultura da paz e do consenso, os quais objetivam a restauração das relações futuras. Na medicina, o surgimento do Direito do Paciente como ramo jurídico, com foco na proteção e na participação do paciente na ambiência clínica e na construção da horizontalização da relação médico-paciente (Albuquerque, 2023, p. 132), e a crescente valorização dos cuidados paliativos, os quais imprimem, na prática, condutas que efetivamente centralizam a pessoa humana nos seus cuidados e valorizam não apenas a via biológica, mas também a vida biográfica do indivíduo. Os movimentos que acontecem no Direito na Medicina convergem em diversos aspectos, mas substancialmente na valorização da pessoa humana, seus interesses, necessidades, valores e todo o aspecto subjetivo que envolve suas questões, reconhecendo-a como capaz de exercer sua autonomia e assumir o protagonismo da sua vida. Há um afastamento da postura combativa e adversarial em direção à colaborativa e o centro passa a ser o cuidado com a pessoa. Os médicos deixam de querer somente curar o paciente e o advogado defender o cliente. À cura e ao êxito na demanda, agrega-se a noção de cuidado (Fürst, 2022, p. 241). Como recurso principal para alcançar a centralização da pessoa tanto na solução de conflitos, como em seus cuidados em saúde, o diálogo contribui como o veículo de estabelecimento de relacionamento e troca de informações, tão fundamentais para o exercício da autonomia do paciente. Estima-se que a comunicação é causa direta de 90% dos conflitos e, nos 10% restante, atua de forma indireta para sua ocorrência. Ou seja, a comunicação ocupa relevantes papéis nas relações humanas e, como não poderia ser diferente, na relação médico-paciente. Compreender alguns desses papéis permite vislumbrar sua importância como meio de prevenção da crescente Judicialização na Saúde, especialmente em relação à ocorrência de eventos adversos que, muitas vezes, culminam em longos e dolorosos processos apuração e condenação de responsabilidade civil. No Relatório Justiça em Números 2023 (CNJ, 2023), disponibilizado em 01/09/2023 com ano base 2022, indica a crescente judicialização de ação de ressarcimento civil por erro médico de 2020 a 2023. Em 2020 houveram 6.926 processos novos/ano, em 2021 houveram 7.450 processos novos/ano, em 2022 houveram 8.499 processos novos/ano e em 2023, até 21/7/23, já haviam sido levantados 5.546 processos novos, com a observação que ainda restavam 6 meses para ser possível concluir o total de distribuições, cuja projeção seria a dobra desta quantidade.  É certo que a apuração da responsabilidade civil do médico deve preencher todos os requisitos legalmente estabelecidos como desencadeadores do dever de ressarcimento. Contudo, para o paciente, muitas vezes esses requisitos são relegados e, havendo um resultado diverso do esperado, passa a perseguir um culpado e, ainda que judicialmente sua teoria não seja reconhecida, passam-se anos e anos discutindo culpados e vítimas, em processos extremamente custos financeira e emocionalmente. A comunicação, principal recurso utilizado por meios consensuais de gestão e prevenção de conflitos, contribui firmemente para que as relações entre médicos-pacientes não avancem para demandas judiciais, especialmente de responsabilidade civil. O primeiro ponto da comunicação que deve ser considerada como forma de prevenir responsabilidade civil é que é impossível não se comunicar, afinal, tudo comunica. O dizer algo comunica, e o ficar em silêncio também comunica. Uma ação comunica, e a inércia também comunica. Porém, a impossibilidade de não se comunicar, não exime a necessidade de dizer algo. É clichê, mas o óbvio precisa ser dito, pois muitas vezes o silêncio diz aquilo que está na esfera de compreensões outro, que, em mais vezes ainda, não é a mesma de quem silencia. Cada indivíduo constrói em si as suas próprias percepções a partir das suas próprias experiências. É como se fosse um DNA: particular, único e individual. Deste modo, o caminho percorrido entre a mensagem emitida e recebida não garante que ambas sejam idênticas, o filtro das percepções influencia o conteúdo e a forma da informação e, dedicar-se a traduzir em palavras o que se pretende expressar é o meio mais simples e eficaz de alcançar a maior medida de semelhança entre elas. A comunicação transporta um conteúdo informacional, seja pelo que é verbalizado e escrito, seja na forma com que é conduzida, pois o comportamento também comunica. É o diálogo que reduz à menor distância entre o que é comunicado pelo emissor e o que é compreendido receptor. O médico detém o conhecimento técnico e experiência de tratamento da doença e o paciente é o titular, com exclusividade, do conhecimento do seu conceito de vida boa e o que é, para ele, experienciar aquela enfermidade. Essas informações precisam alcançar um ao outro para que juntos, de forma colaborativa e cooperativa, possam chegar à uma decisão e o paciente exercer plenamente sua autonomia e reduzir os riscos de danos e eventos adversos. Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, quando reduzidos a meros documentos formais que não imprimam verdadeiro processo informacional não se prestam aos fins pretendidos e, não raro, acabam gerando maiores conflitos que sua completa inexistência. Isto porque, a simples entrega de um documento pelo médico ao paciente para assinatura e cumprimento de um protocolo sem que a linguagem técnica e o que nele consta sejam verdadeiramente esclarecidos, para muitos, pode comunicar que a decisão compete ao profissional de saúde e, com ela, toda a carga de responsabilidade pelo sucesso e insucesso. E mais! Que aquele tratamento não passa de mais um protocolo, que aquele paciente não passa de mais um número desprovido de pessoalidade. Este é o segundo aspecto da comunicação que se pretende trazer como relevante: a comunicação estabelece os contornos da relação formada. É por meio da comunicação que se constrói conexão e confiança. O bom relacionamento entre sujeitos promove ambiente de resiliência e superação de falhas humanas, que reflete diretamente na prevenção de culpabilização e judicialização. Entre as expectativas do paciente e as condições técnicas do médico em proporcionar a cura ou o tratamento desejado existe um vazio. Não é o profissional que detém o poder de curar e salvar o paciente. O médico possui conhecimento e experiência técnica, que, nem sempre, são suficientes. A vida e a morte contemplam grandes complexidades que não são totalmente dominadas pelo homem e, nestas situações, a relação estabelecida entre médico e paciente permite o diálogo sobre esse vácuo, os limites de cada um, o acolhimento das frustrações e que juntos possam tomar as melhores decisões. O paciente é acolhido, empoderado e a ele são dadas condições para fazer suas próprias escolhas e, com elas, as responsabilidades são compartilhadas. O compartilhamento da responsabilidade não tem o objetivo simplório de eximir o médico da carga da decisão, mas sim manter o paciente como protagonista da sua vida, capaz de tomar suas decisões, valorizado-o enquanto condutor do seu destino e não o reduzido à figura de um doente incapaz. É a valorização da pessoa, a percepção de que a decisão também foi sua e tomada com base em farta informação sobre riscos e benefícios, acolhimento, encorajamento e reconhecimento que se pretende alcançar. Como reflexo da valorização e da participação ativa do paciente, em caso de frustração pelos resultados ou mesmo falhas, que se tenha a ciência de que nem sempre há um culpado e que existe limites não transponíveis ao médico para alcançar a cura, que o sentimento verdadeiro e genuíno de ter sido respeitado e bem cuidado sejam maiores que a atribuição de culpa, e todos os esforços do profissional para que projeto de vida do paciente fosse concretizado não sejam menores que sua eventual falha humana. Isso tudo somente é possível com a também verdadeira e genuína disponibilidade do médico nos cuidados com o paciente e a comunicação o seu veículo. A experiência da aviação em relação à gestão adequada e consensual de conflitos, divergências e adversidades promoveu significativa alteração do contextos de dano, revelação de falhas humanas e prevenção de acidentes e pode contribuir na ressignificação da relação médico-paciente, em especial na valorização do diálogo e de uma sólida relação. Por receio da atribuição de culpa, da sujeição em dolorosos e longos processos e, inclusive, do julgamento por seus pares, as falhas humanas na aviação deixavam de ser relatadas e, com isso, ora deixavam de ter suas causas resolvidas e ora suas pequenas consequências eram ocultadas e, por não solucionadas, ganhavam maiores proporções. Com a gestão adequada dos conflitos, especialmente com a implementação de processo comunicacional com o foco em solução e não de busca de um culpado, houve aumento significativo de relatos de falhas humanas e, com isso, redução do número de acidentes. A mesma dinâmica da aviação pode ser transplantada para a relação médico e paciente, que, quando há verdadeira conexão e confiança, propicia ambiente confortável pra que eventuais falhas sejam relatadas e resolvidas sem maiores consequências e danos, e eventuais mudanças de tratamentos sejam realizadas de forma conjunta. A comunicação, portanto, além de ser veículo para suprir o dever de informação do médico, que, se deficitário pode sim ensejar responsabilização civil, promove a construção de um relacionamento que, bem alicerçado, ainda que haja eventos humanos adversos, há incentivo de que sejam revelados pelos profissionais, os quais gozam de maior segurança e tranquilidade na condução do tratamento daquele paciente, prevenindo que danos de maior impacto e importância aconteceram. Por meio do diálogo, a postura colaborativa e cooperativa entre médico e paciente predomina onde a combatividade e adversaridade certamente prejudicaria o próprio tratamento, inibiria os cuidados médicos e incentivaria que pequenas divergências assumiriam maiores proporções com atribuições de culpa e responsabilidade civil. ______________  Albuquerque, A. (2023). Empatia nos Cuidados em Saúde: Comunicação e ética na prática clínica. (Manole, Ed.) Santana da Parnaíba, SP. CNJ, C. N. (2023). Justiça em Números 2023. Brasília, DF: CNJ. Acesso em 21 de 11 de 2023, disponível em https://painel-estatistica.stg.cloud.cnj.jus.br/estatisticas.html Fürst, O. (2022). Cuidados Paliativos Pediatricos e a Importância dos Processos de Diálogo. Em L. Dadalto, Cuidados Paliativos Pediatricos. Aspectos jurídicos. Indaiatuba, SP: Editora Foco. Zehr, H. (2008). Trocando as Lentes. Justiça Restaurativa para o nosso tempo. (T. V. Acker, Trad.) São Paulo, SP: Palas Athena.
O presente ensaio, dividido em duas partes sequenciais, busca apresentar critérios de interpretação que possibilitem melhor estruturar o contrato de seguro-garantia de forma a possibilitar o cumprimento de sua função promocional. Na Parte I, evidenciou-se que não há na legislação brasileira disciplina específica sobre os elementos estruturais do contrato de seguro-garantia. E, a partir do exame de algumas dificuldades observadas quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, recomendou-se a adoção preferencial da opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras. E, agora, na Parte II, serão objeto de análise os fatos supervenientes que podem acarretar a própria supressão da garantia nesse tipo de contrato de seguro. Diversos fatos surgidos durante a execução do contrato podem acarretar o agravamento do risco técnico e financeiro do contrato, agravamento esse que será refletido diretamente nas obrigações originariamente estabelecidas, uma vez que importam na modificação das premissas negociais que motivaram a formação do seguro-garantia. Cite-se, como exemplo de agravamento do risco, a hipótese em que o segurado, durante a execução do contrato, obtém acesso a informações privilegiadas sobre acidente envolvendo o despejo de produtos químicos ocorrido na região em que serão realizadas as obras, com potencial de substancial modificação do projeto originário e, deliberadamente, as omite do tomador e do segurador. No âmbito estrito das contratações privadas, o agravamento do risco é disciplinado pelos artigos 768 a 770 do Código Civil1. Particularmente no que se refere ao exemplo citado no parágrafo precedente, dispõe o art. 769 que o segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé. Ao estatuir essa regra, o objetivo do legislador foi o de perpetuar o dever de o segurado prestar informações relevantes associadas ao risco durante toda a fase de execução contratual, obrigação já estabelecida quando da formação do contrato, nos termos dos artigos 765 e 766 do Código Civil, e que deve ser observada durante todas as etapas contratuais2. A dinâmica própria da realidade social, notadamente em uma sociedade marcada pela crescente complexidade e por transformações cada vez mais velozes3, pode acarretar o surgimento de novos fatos que agravem o risco, fatos esses não previstos quando prestadas as informações iniciais que balizaram a formação do contrato. Dada a complexidade dos elementos sociais e econômicos produzidos pela sociedade contemporânea, que gera inúmeras novas situações de risco e o agravamento dos já existentes4, bem como tendo em vista a natureza específica do contrato de seguro, que pressupõe uma relação jurídica de trato sucessivo estruturada com base no princípio da boa-fé e em deveres informativos5, quaisquer fatos relevantes associados ao risco devem ser noticiados de forma contínua no âmbito da relação contratual. E a consequência jurídica pela não observância da obrigação estabelecida no caput do art. 769 do Código Civil é a perda do direito à garantia estabelecida no contrato. O dever de comunicação estabelecido nesse dispositivo relaciona-se a qualquer circunstância que possa agravar o risco6, mesmo que a nova circunstância seja externa e não se vincule diretamente ao segurado7. Se o segurado tiver ciência inequívoca, mesmo que não tenha contribuído para a sua ocorrência, deverá informar oportunamente o segurador. O silêncio do segurado em tal circunstância evidenciará a sua má-fé de forma a justificar a perda do direito à garantia. Nesse ponto, estabelece a Circular 662/22 da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP que, na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da alteração do objeto principal ao segurador, sua não comunicação, ou sua comunicação em desacordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, poderá gerar a perda da garantia se essa omissão agravar o risco e concomitantemente tiver relação com o sinistro ou estiver comprovado, pelo segurador, que o segurado silenciou de má-fé8. A referida Circular dispõe ainda que a não comunicação da expectativa de sinistro ao segurador, ou envio dessa comunicação em desacordo com as disposições contratuais, poderá igualmente configurar hipótese de agravamento do risco, ensejando a perda do direito pelo segurado à garantia caso esse fato impeça o segurador de mitigar os efeitos da inadimplência junto ao tomador9. Podem ocorrer, de igual sorte, atos intencionais imputáveis ao próprio segurado que importem no agravamento do risco. Essa hipótese é regida pelo art.768 do Código Civil que dispõe que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. No momento de formação do contrato, o segurado deve prestar todas as informações necessárias para análise de risco e, uma vez consolidadas, é possível dimensionar o risco concreto associado ao quadro fático-jurídico delineado por esse conjunto de informações. Esse mesmo quadro fático-jurídico deverá ser preservado durante a execução contratual, cabendo ao segurado, por um lado, prestar continuamente quaisquer informações relacionadas à alteração de circunstâncias que possam interferir na análise de risco e, por outro, abster-se de qualquer comportamento que possa agravar o risco10. A disciplina específica conferida pelo Código Civil à matéria, vedando expressamente o agravamento intencional do risco pelo segurado, funda-se igualmente na constatação de ser elevada a probabilidade de ocorrência desse tipo de comportamento nocivo no âmbito dos contratos de seguro11. Dado que a avença tem por pressuposto a cobertura de riscos predeterminados12, observa-se a existência do intitulado risco moral associado à própria natureza dessa espécie contratual. O segurado, ciente de que a cobertura do risco constitui uma obrigação assumida contratualmente pelo segurador, pode ser levado a reduzir as medidas de precaução que ordinariamente adotaria caso não houvesse formalizado o contrato de seguro, podendo, inclusive, atuar de forma negligente ou mesmo dolosa com o objetivo de receber a indenização resultante da ocorrência do sinistro13. Interfere o legislador, assim, de forma a coibir esse tipo de comportamento hostil por parte do segurado com o objetivo de assegurar, no plano singular, a higidez do contrato de seguro e, no plano macro, a preservação do mutualismo14. Como no seguro-garantia há uma relação tripartite sui generis, a questão que se coloca é saber se o agravamento do risco levado a cabo pelo tomador também pode ensejar a perda do direito à garantia. Embora não exista disciplina normativa específica sobre essa hipótese, a interpretação consentânea com o sistema normativo que rege os contratos de seguro é a que afasta a possibilidade de perda da garantia, uma vez que essa é prestada exclusivamente em favor do segurado, não havendo qualquer benefício auferido pelo tomador caso ocorra o sinistro. Como visto, uma das razões subjacentes à vedação da conduta que acarreta o agravamento intencional do risco associa-se ao denominado risco moral que, por sua vez, pressupõe a redução de medidas de precaução com o objetivo de receber a indenização resultante da ocorrência do sinistro. O tomador, no entanto, mesmo que deixe de adotar medidas preventivas que seriam ordinariamente exigíveis, não adota esse tipo de conduta no âmbito do seguro-garantia com o objetivo de receber indenização em razão da ocorrência do sinistro, não havendo, assim, sob a perspectiva teleológica, razão para aplicar extensivamente a regra estabelecida no art.768 do Código Civil à hipótese. Pode-se afirmar, no que diz respeito aos efeitos produzidos diretamente sobre o contrato de seguro, que a eventual negligência do tomador, sob o ponto de vista funcional, não seria abusiva, pois não busca ele, conforme acima destacado, criar uma situação específica em favor da ocorrência do sinistro que lhe favoreça15. A regra estabelecida no art.768 do Código Civil deve ser funcionalizada à luz do princípio da boa-fé, que orienta os negócios jurídicos de forma geral16 e possui especial relevância setorial na compreensão do contrato de seguro17, não se aplicando, de acordo com essa perspectiva, a consequência jurídica de perda da garantia na hipótese de negligência por parte do tomador18. Delineado, assim, o quadro de agravamento do risco nos contratos de seguro-garantia, é de se concluir que, em inúmeras situações concretas em que se observe agravamento, esse instrumento não será capaz de cumprir seu papel de assegurar o efetivo cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato principal. Ao revés, haverá perda da garantia nas mencionadas hipóteses de agravamento de risco, afastando-se, com isso, as alternativas legalmente previstas de pagamento de indenização ou de assunção direta das obrigações a cargo do tomador.           A partir do reconhecimento inicial de que o seguro-garantia faz-se capaz de mitigar problemas associados ao descumprimento de obrigações contratuais, buscou-se apresentar, nas duas partes que integram o presente ensaio, um panorama crítico dos contratos privados de empreitada e das contratações públicas envolvendo a realização de obras para, ao final, sugerir alguns critérios de interpretação que possibilitem assegurar maior efetividade a esse tipo sui generis de contrato de seguro, destacadamente no âmbito das contratações públicas envolvendo obras de infraestrutura. O percurso foi iniciado com a apresentação do quadro normativo existente de forma a identificar as diversas fontes legislativas e regulamentares, reconhecendo-se que não há disciplina específica em sede normativa sobre elementos estruturais do contrato de seguro-garantia. A seguir, foram apresentadas as características gerais do seguro-garantia e evidenciadas algumas vicissitudes observadas nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas envolvendo a realização de obras de forma a conjugá-las com a utilização do seguro-garantia. Nesse ponto, buscou-se dar ênfase a três especificidades observadas em contratos dessa natureza: (i) precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura; (ii) complexidade de arranjos contratuais em que a realização de obras é apenas um dos itens que configuram o objeto contratual; e, (iii) incompatibilidade com os percentuais legais estabelecidos para o alcance do seguro-garantia. A análise crítica dessas especificidades, por sua vez, revelou haver dificuldades substanciais quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, sugerindo-se, em razão dessa análise, um primeiro critério norteador para a interpretação e aplicação do seguro-garantia: a adoção preferencial da opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras, prestigiando-se a diretriz geral de pagamento em dinheiro estabelecida no art.776 do Código Civil.    Paralelamente, sugeriu-se que a previsão de assunção do cumprimento de obrigações pelo segurador em caso de inadimplência deve ser estabelecida apenas nas hipóteses em que: (i) seja possível a especificação de forma pormenorizada, segregada e objetiva da obrigação a ser cumprida; (ii) o projeto originário apresentar viabilidade técnica para ser executado continuamente; e, (iii) o remanescente da obra não ultrapassar os valores fixados como limites máximos pela legislação para a cobertura do seguro-garantia. Como etapa final, foi enfrentado o tema do agravamento do risco, apresentando-se as hipóteses em que deverá ocorrer a supressão da garantia, o que implicará na não aplicação das alternativas legalmente previstas de pagamento de indenização ou de assunção direta das obrigações a cargo do tomador. Advirta-se, por fim, que os critérios hermenêuticos apresentados deverão ser conjugados com inúmeras medidas concretas a serem tomadas pelos diversos atores envolvidos no contrato de seguro-garantia a fim de que seja ampliada a vocação desse instrumento para mitigar problemas associados ao descumprimento de obrigações contratuais. Dentre essas medidas, destacam-se as seguintes: (i) melhoria na estruturação dos projetos e efetiva avaliação de sua solidez pelo segurador; (ii) fortalecimento dos mecanismos de gestão e governança com ênfase no acompanhamento das etapas de execução contratual; e, (iii) maior detalhamento contratual das etapas de execução contratual e respectivas obrigações, bem como das circunstâncias específicas que evidenciem o inadimplemento. Assim, será possível utilizar o seguro-garantia como instrumento apto a mitigar com maior efetividade o descumprimento de obrigações estabelecidas em contratos privados de empreitada e de contratações públicas envolvendo a realização de obras, assegurando-se o cumprimento da sua relevante função promocional19. ____________       1 Para a análise mais acurada da disciplina conferida ao agravamento do risco, remetem os autores aos comentários por eles apresentados aos artigos 768 a 770 do Código Civil em obra coletiva que buscou abordar de forma sistemática e pormenorizada a disciplina normativa conferida ao contrato de seguro pelo Código Civil.  MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários aos artigos 768, 769 e 770 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 2 Úrsula Goulart Bastos classifica a obrigação estabelecida no art.769 do Código Civil como um dever de informar qualificado. BASTOS, Úrsula Goulart. O agravamento do risco no seguro de dano. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Temas atuais de Direito dos Seguros. Tomo I. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 521. 3 Bauman qualifica essa sociedade de "líquido-moderna". Conforme assinala o Autor "numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente". BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.7 4 Conforme adverte Beck, "na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos". BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 23. 5 Martins-Costa evidencia que "desde os mais arcanos tempos da História securitária tanto o princípio da boa-fé quanto a configuração de deveres informativos a cargo das partes tiveram no contrato de seguro um campo de especialíssimas relevância e função". MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 372. 6 Sobre a circunstância que deve ser reportada ao segurador, os autores já tiveram oportunidade prévia de esclarecer que, diferentemente do Código Civil de 1916, que também previa em seu art.1.455 a obrigação a cargo do segurado de comunicar qualquer fator que possa agravar o risco, o atual o atual Código qualifica esse incidente, relacionando-o apenas às hipóteses de agravamento considerável do risco. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários aos artigos 768, 769 e 770 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 7 Conforme esclarece Serpa Lopes "a causa do agravamento do risco pode decorrer de uma circunstância exterior, isto é, alheia à vontade do segurado". LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993. p. 413. 8 Art.11. (...)  § 2º Na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da alteração do objeto principal à seguradora, sua não comunicação, ou sua comunicação em desacordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso agrave o risco e, concomitantemente: a) tenha relação com o sinistro; ou b) esteja comprovado, pela seguradora, que o segurado silenciou de má-fé. 9 Art.17. (...)§ 2º Na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da expectativa de sinistro à seguradora, sua não comunicação, ou sua não comunicação de acordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso configure agravamento do risco e impeça a seguradora de adotar as medidas dos incisos II e III do artigo 29. 10 Nesse ponto, Serpa Lopes extrai da boa-fé não apenas o dever do segurado de prestar informações verdadeiras, como igualmente o dever de não omitir circunstâncias associadas à análise de risco: "Já assinalamos o aspecto moral da principal obrigação do segurado: é o dever de boa-fé nas declarações que prestar, quer no sentido positivo de dizer a verdade, quer no sentido negativo de não calar circunstâncias que, por influírem no risco, tinha o dever de informar". LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993. p. 412. Rosenvald  e Farias, por sua vez, enquadram a conduta do segurado no âmbito do chamado princípio do absenteísmo, constituindo o agravamento intencional do risco uma espécie de venire contra factum proprium: "Essas situações se consubstanciam no chamado princípio do absenteísmo, que, embora pareça óbvio, indica que quem quer prevenir riscos de danos patrimoniais ou existenciais perante um contrato de seguro, assim se conduz por absoluta ojeriza a um fato danoso previsível que se quer impedir que ocorra e, em sendo impossível, remediar. O agravamento intencional do risco é uma espécie de venire contra factum proprium por parte do segurado que manifesta um comportamento sucessivo contraditório, atuando decisivamente para a conflagração do dano que, inicialmente, desejou segurar". ROSENVALD, N.; FARIAS, C. C. Curso de Direito Civil - V.4 - Contratos. 11. ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2021. p. 1369. 11 Há mesmo quem sustente ser uma das funções da disciplina do agravamento intencional do risco a sanção ao ato doloso do segurado. Nesse sentido Miragem e Petersen apontam uma dupla função: a preservação da base econômica do contrato de seguro e a sanção ao ato doloso do segurado. MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Alteração do risco no contrato de seguro e critérios para sua qualificação: agravamento e diminuição relevante do risco. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Temas atuais de Direito dos Seguros. Tomo I. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 468. 12 A assunção de riscos pelo segurador só se torna possível a partir da análise técnica de referências de sinistralidade produzidas a partir das informações geradas pelo próprio universo de segurados, permitindo-se, com isso, a precificação do prêmio de forma mais consentânea com a realidade. Nesse ponto, Goldberg assinala que "a precificação da generalidade dos seguros dispõe de base estatística confiável, capaz de proporcionar ótimos níveis de assertividade por parte dos subscritores". GOLDBERG, Ilan. Reflexões a respeito do seguro garantia e da nova lei de licitações. Revista IBERC, Rio de Janeiro, v. 5, n.2 p. 66, maio/ago. 2022. Disponível em:    https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc. Acesso em: 4 set. 2023. 13 Esclarecem nesse ponto Miragem e Petersen que o conceito de risco moral (moral hazard) abrange "tanto a possibilidade de o titular do interesse adotar, ao longo da relação contratual, justamente por estar garantido pelo seguro, uma postura negligente, diminuindo seu grau de vigilância, de modo a facilitar a ocorrência do sinistro (comportamento culposo), como, até mesmo, uma conduta oportunista, visando o recebimento da indenização securitária ou do capital segurado (comportamento doloso)". MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 47. 14 Conforme assinalam Tepedino, Konder e Bandeira, "busca-se, a partir do princípio do mutualismo, diluir os riscos pela coletividade dos segurados, que contribuem em prol de fundo mutual, formado pelas reservas técnicas, que se destinarão ao pagamento das indenizações na hipótese de sinistro". TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, P. G. Fundamentos do Direito Civil: Contratos, v. 7. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 472. 15 Ao discorrer sobre o conceito de merecimento de tutela, esclarece Eduardo Nunes de Souza que representa ele o reconhecimento de que a eficácia de certa conduta particular é compatível com o sistema. Segundo o autor, trata-se de uma consequência necessária da constatação de que certo ato é lícito do ponto de vista estático ou estrutural e, em perspectiva dinâmica ou funcional, não é abusivo (não constitui o exercício disfuncional de uma situação jurídica). SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 58, p. 75-110, 2014. 16 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 17 Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes. 18 Conforme destacado por um dos autores do presente ensaio, nas nuances do caso concreto, cabe ao intérprete superar a análise meramente estrutural (o que é?), para privilegiar a funcionalização dos interesses irradiados (para que servem?), por meio de interpretação aplicativa dos comandos infraconstitucionais à luz da Carta Magna ou pela aplicação direta dos princípios e valores constitucionais. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Reflexões metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 9, p. 1, 2016. Na mesma direção, v. também: Rumos Cruzados do Direito Civil Pós-1988 e do Constitucionalismo hoje. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos Contemporâneos do Direito Civil: Estudos em Perspectiva Civil-Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 17-35. 19 Ao abordar a função promocional do ordenamento, Bobbio (2007, p. 15) destaca que a técnica do encorajamento visa não apenas a tutelar, mas também a provocar o exercício dos atos conformes, e, a introdução da técnica do encorajamento reflete uma verdadeira transformação na função do sistema normativo em seu todo e no modo de realizar o controle social. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manoele, 2007.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Novos paradigmas da responsabilidade civil ambiental

Assiste-se na atualidade a escassez de recursos naturais diante da busca desenfreada por crescimento econômico e consumo de massa. Conforme Ulrich Beck1 vive-se em uma "sociedade de risco" que coloca as origens e as consequências da degradação ambiental no centro das discussões na sociedade moderna. A deterioração dos bens ambientais atingiu patamar tão elevado que está a comprometer a qualidade de vida da humanidade, havendo prognósticos pessimistas para a natureza e o bem-estar das futuras gerações se não forem criados mecanismos para a proteção ambiental e efetivar os já existentes.  Desde a década de 1960, após a criação do Clube de Roma e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), iniciou-se o processo de emancipação do Direito Ambiental como meio de regulamentar as relações do ser humano com a natureza, abrangendo não apenas seu aspecto ecológico, mas também buscando o uso racional e sustentável dos recursos naturais de forma multidisciplinar. A medida em que aumenta a irracional degradação do meio ambiente natural, afetando negativamente a qualidade de vida da humanidade e colocando em risco as futuras gerações (princípio da equidade intergeracional), torna-se necessária uma maior e eficaz tutela dos recursos ambientais pelo Poder Público e coletividade. Nesse cenário e não omissa a essas questões, como forma de conter a degradação ambiental, a Constituição da República posicionou-se de forma exemplar ao prever no artigo 225, parágrafo 3º, que as "condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados". Portanto, a reparação ambiental está sujeita a tríplice responsabilização: penal, administrativa e civil. Especificamente no que concerne a essa última, vislumbra-se que atualmente, a tradicional responsabilidade civil conforme previsto na legislação privada, não possui instrumentos hábeis para proteger e concretizar o Direito Ambiental.  Tanto referido é verdade que Sérgio Ferraz2  e Nelson Nery Junior3  foram os pioneiros a demonstrar que as ferramentas fornecidas pelo Direito Civil não eram suficientes para a restauração do meio ambiente degradado, por serem bens tipicamente difusos. Essas discussões, aliadas à possibilidade de responsabilização objetiva prevista no art. 14, parágrafo 1º da lei  6.938/81 propiciaram um terreno fértil para a construção de um sistema autônomo com regras próprias para a reparação ambiental. De fato, o Direito Ambiental se especializou criando ferramentas singulares para sua efetivação. Além dos instrumentos estabelecidos para a realização dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente como zoneamento ambiental, avaliação de impacto ambiental, licenciamento ambiental, entre outros, estabelecidos no art. 9º da Lei n.º 6.938/81, a responsabilidade civil ambiental migrou da teoria do risco administrativo para a teoria do risco integral. A questão atual não é necessariamente fundamentar novos direitos, mas criar mecanismos para a proteção dos já existentes, como de forma muito pertinente justificou Norberto Bobbio4. Nos anos que se seguiram, a doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça percorreram um caminho autêntico, construindo um modelo próprio para a reparação dos danos ambientais, sempre tendo como referência os pressupostos da responsabilidade civil do direito comum. Ocorre que na contemporaneidade, em meio à sociedade de risco e à era do conhecimento, a adoção do modelo tradicional de reparação civil imporia limitações aos imprescindíveis avanços na proteção ambiental, especialmente considerando as novas e inimagináveis demandas ambientais que estão se apresentando ao Poder Judiciário. Cita-se, por exemplo, o rompimento da barragem em Mariana e Brumadinho, considerados como os maiores desastres ambientais brasileiros, verdadeiro leading case na jurisprudência nacional. Vislumbra-se que a defesa ao meio ambiente e por consequência, o Direito Ambiental, estão passando por constantes e aceleradas transformações. Diante das mudanças sociais experimentadas na sociedade de risco, talvez seja a responsabilidade civil um dos campos que sofrem, nas palavras de Jean-Louis Gazzaniga5, maior metamorfose na atualidade, não apenas acumulando experiências e conhecimentos, mas incorporando novos modelos de atuação o que, como se verá, trouxeram repercussões no Direito Ambiental. Se, por um lado, houve um aumento no número de ações judiciais em matéria ambiental6, por outro, a responsabilidade civil está sendo um importante instrumento para resolver disputas que antes eram previamente solucionadas por outros institutos jurídicos ou instrumentos legais. Significa dizer que o Direito de Danos, como vem sendo chamada a responsabilidade civil por Carlos Ghersi7, acaba por mudar completamente seu foco de estudo: o que tradicionalmente recaía sobre a pessoa do causador do dano, que por seu ato reprovável era punido, com a expansão das atividades econômicas da sociedade de risco deslocou-se para a tutela de garantia à vítima de ser indenizada pelo dano injusto. No caso da reparação civil por danos ambientais o foco passou a ser o da reparação in integrum, ou seja, preferencialmente busca-se "recuperar o meio ambiente degradado até sua restauração plena e imediata" (REsp 1.114.893-MG, julgado em 16/3/2010.), precisamente porque "o dano ambiental é multifacetário ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do vasto universo das vítimas, que vão desde o indivíduo isolado à coletividade às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si" (RESP 1.198.727, julgado em 14/08/2012). Justamente o despertar dessa consciência que fez com que o Superior Tribunal de Justiça tenha se tornado nos últimos anos referência internacional no campo do Direito Ambiental, de modo a apresentar soluções inovadoras e sólidas o suficiente para se transformarem em paradigmas, segundo reconhecimento de autoridades internacionais do setor8. Isto porque o dano apresenta-se de forma multifacetada9 e requer soluções inovadoras para sua proteção. De fato, com a complexidade e multidisciplinaridade dessas questões, somadas ao aumento significativo das demandas ambientais, inflação dos bens ambientais objetos de tutela e a emancipação de novos sujeitos de direitos potencialmente atingidos pelos danos ao meio ambiente demonstram que o modelo até então construído pelo STJ passa por uma nova metamorfose. Como então equacionar todas essas variáveis e tutelar de forma mais eficaz o meio ambiente, de forma a obrigar os responsáveis a repararem civilmente os danos ambientais na sociedade de risco? A resposta à pergunta acima não é simples, perpassando por diversas questões polêmicas e inúmeras indefinições. Bem da verdade a pós-modernidade tem (re)construído, sistematicamente, o modelo de responsabilização civil ambiental diante das novas demandas que estão chegando ao Poder Judiciário.   Na contemporaneidade assistem-se novos modelos sendo construídos e a propositura de novas soluções hermenêuticas. As mudanças se justificam diante da maior criatividade dos juristas em propô-las aliada a uma postura de vanguarda do Superior Tribunal de Justiça, que se tornou um dos protagonistas mundiais ao decidir as causas ambientais, o que resultou em recentes atualizações no ano de 2023 do "Jurisprudência em Teses" em matéria de "responsabilidade civil por dano ambiental"10. Para ilustrar o aqui exposto e demonstrar que está em curso uma nova construção dos paradigmas da responsabilidade civil tradicionais à luz dos danos ambientais, pode-se extrair da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça algumas conclusões: a) aplicação da responsabilidade civil objetiva na modalidade teoria do risco integral (REsp 1.114.398/PR) o que significa dizer que nessa hipótese não há excludente de responsabilidade civil a ser alegada (CR, art. 225 parágrafo 3º, combinado com art. 14 parágrafo 1º da lei 6.938/81). A esse respeito, importante esclarecer que o "reconhecimento da responsabilidade objetiva por dano ambiental não dispensa a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado" (AgInt no AREsp 1682237/RJ, julgado em 12/06/2023); b) reparação integral dos danos cabendo se falar em cumulação de recuperação de área degradada - obrigação de fazer ou não fazer - com a indenização pecuniária pelos prejuízos devidos (Resp 1.120.117 e Súmula 629 do STJ), independentemente dos danos serem individuais ou coletivos (REsp 1.373.788, julgado em 21/12/2013) ou mesmo de prévio licenciamento ambiental (REsp 1.354.356, julgado em 26/3/2014.)11; c) a mitigação do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental sob a alegação de que excepcionalmente pode ser dispensada a prova do nexo de causalidade para os casos de adquirentes de imóveis já degradados ambientalmente, imputando-se ao novo proprietário a responsabilidade pelos danos causados (REsp 1.056.540), o que mais precisamente se caracteriza como obrigação propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor" (Súmula n. 623/STJ)12; d) a impossibilidade de fato de terceiro excluir o dever de indenizar, de modo que não há excludente do nexo de causalidade nesse caso, como tradicionalmente ocorre na responsabilidade civil do direito comum, responsabilizando o degradador em decorrência do princípio do poluidor-pagador (REsp 1612887/PR, julgado em 28/04/2020); e) a aplicação da tese da inversão do ônus da prova aplica-se às ações de dano ambiental, contrariando a regra geral que o ônus da prova é de quem acusa (Súmula n. 618/STJ); f) vedação da intervenção de terceiros para garantir maior celeridade das ações de modo que aquele que reparar o dano deverá buscar seu ressarcimento por meio de ação própria (AgRe no Ag 1.213.458, julgado em 24/08/2010); g) aplicação do dever de solidariedade de todos os poluidores aos danos ambientais (REsp 604.725 e Resp 1.137354); h) responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão (Resp 1.071.741), sendo certo que a "responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária (Súmula n. 652/STJ);  i) reconhecimento do dano moral ambiental coletivo, diante da violação  massificada de inúmeros direitos da personalidade de pescadores impedidos de exercer a profissão (REsp 1.269.494, julgado em 24.9.2013,); j) imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de dano ambiental (conforme Repercussão Geral - Tema n. 999/STF); k) Não admissão da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental (Súmula n. 613/STJ); l) Não há direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio ambiente (REsp 1983214/SP, julgado em 14/06/2022); m) O termo inicial da incidência dos juros moratórios é a data do evento danoso nas hipóteses de reparação de danos morais e materiais decorrentes de acidente ambiental (AgInt no REsp 1990643/PR, julgado em 22/11/2022). Como se vê, as transformações sofridas pela responsabilidade civil ao longo dos últimos anos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça trouxeram como consequência o descarte ou mitigação dos tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, substituindo-os por novos critérios de forma a garantir a melhor proteção ambiental e o acesso ao meio ambiente como um direito fundamental de cunho intergeracional. Isso implica na reconfiguração de seus próprios paradigmas à luz da tábua axiológica constitucional, que orientam os valores fundamentais da sociedade e o momento da crise climática e ambiental que é vivenciada. Portanto, a evolução da doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, impulsionada pela crescente quantidade de casos apresentados para apreciação jurídica, tem revelado uma nova dogmática da responsabilidade civil ambiental, construída de forma coerente e adaptada às novas realidades socioambientais. Essa transformação aponta para caminhos que visam a proteção mais efetiva dos valores ambientais, sem comprometer a necessária segurança jurídica. _____________ 1 BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo: Hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Básica, 2002. 2 FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. Revista de Direito Público, São Paulo: 1979, p. 34-41. 3 NERY JUNIOR, Nelson. Responsabilidade civil por dano ecológico e a ação civil pública. Revista Justitia, São Paulo, v. 126, 1984, p. 168-189. 4 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª Edição. Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 17. 5 GAZZANIGA, Jean-Louis. Les métamorphoses historiques de la responsabilité. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. 6 Conforme divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, essa tendência foi revelada pela edição do "Justiça em Números" do ano de 2023. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf>. Acesso em 01 de novembro de 2023. 7 GHERSI, Carlos A. Teoría General de la Reparación de Daños. Buenos Aires: Ed. Astrea, 1997. 8 Conforme reportagem do site Consultor Jurídico. Disponível em . Acesso em 01 de novembro de 2023. 9 De acordo com o entendimento do STJ: "O dano ambiental existe na forma difusa, coletiva e individual homogêneo, este, na verdade, trata-se do dano ambiental particular ou dano por intermédio do meio ambiente ou dano por ricochete" (REsp 1641167/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 20/03/2018). 10 Disponível em . Acesso em 01 de novembro de 2023. 11 Conforme entendimento do STJ:  o "erro na concessão de licença ambiental não configura fato de terceiro capaz de interromper o nexo causal na reparação por danos ao meio ambiente" REsp 1612887/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 07/05/2020. 12 Com efeito, "Causa inequívoco dano ecológico quem desmata, ocupa, explora ou impede a regeneração de Área de Preservação Permanente - APP, fazendo emergir a obrigação propter rem de restaurar plenamente e de indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afetados, sob o regime de responsabilidade civil objetiva" (AgInt no REsp 1882947/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/03/2023, DJe 23/03/2023).
1. INTRODUÇÃO Já imaginou ter um encontro virtual com algum morto querido? Não apenas vê-lo, mas ouvir sua voz, conversar e até ter a sensação de tocá-lo? O aprimoramento de tecnologias que permitem a reprodução exata da imagem e da voz de pessoas já falecidas tem permitido a chamada "ressuscitação digital", que é feita por meio da manipulação digital dos registros de som e de imagem da pessoa que morreu. Essa realidade chama atenção para importantes questionamentos na utilização da imagem, da voz e dos dados digitais de pessoas falecidas que, em vida, não manifestaram consentimento para tal, seja para reprodução de falas e imagens seja para a criação de áudios e vídeos inéditos. A quem cabe o uso de dados pessoais de pessoas falecidas? Mesmo existindo consentimento para a utilização após a morte, há limite de uso? 2. DADOS VIVOS DE PESSOAS MORTAS Em comemoração ao dia dos pais, o Mercado Livre, em parceria com a Soundthinkers, exibiu uma propaganda com a recriação da voz de José Antunes Coimbra, pai do ex-jogador Zico, construindo uma frase nunca dita por aquele, em que pedia que o filho fizesse um gol em sua homenagem. O ex-jogador, postado no meio do campo, foi surpreendido pela voz de seu pai com o pedido, veiculado no sistema de som do estádio. Para que isso fosse possível, a Soundthinkers usou um vídeo do arquivo pessoal de Zico e um sistema de síntese neural, e criou um dicionário de voz personalizado e um novo texto com fala digitalizada. Esse caso aparentemente é inofensivo, o que não retira a dificuldade de justificá-lo juridicamente, em especial no que toca aos direitos da personalidade. Os aspectos que reduzem a problematicidade do evento vertem no sentido de que (a) Zico voluntariamente forneceu arquivos com a voz e a imagem do pai; (b) não houve violação da imagem-atributo1, porquanto a propaganda não distorceu a identidade socialmente construída; e (c) não se está diante de deepfake2, pois o comercial identifica a voz como construção de inteligência artificial. No entanto, além do problema de se "reviver" os mortos em contextos por eles não vividos, está-se diante da falta de consentimento do retratado para tal reconstrução. Os direitos da personalidade são intransmissíveis, logo o simples consentimento dos parentes próximos não importaria em validade do negócio jurídico. No entanto, na prática, nada disso é revolvido ou condenado se o ato não estiver atrelado a uma situação de contrafação ou deepfake.                 Ainda que o uso da imagem seja autorizado pelos parentes ou herdeiros, há que se questionar sobre a permanência do direito da personalidade à imagem propagada após a morte.  3. SOBREVIDA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE O tema em análise nos remete a pensar se há sobrevida dos direitos da personalidade. Em princípio, os direitos da personalidade pressupõem a existência da pessoa, em sentido jurídico. A personalidade jurídica termina com a morte. Com ela extinguem-se todas as situações subjetivas que lhe são inerentes, inclusive os direitos da personalidade. Além do mais, diz-se, comumente, que os direitos da personalidade não admitem transferência, só podendo ser exercidos por seu titular. Por várias vezes, todavia, o ordenamento protege o que aparenta ser uma "continuidade da personalidade do morto", como é o caso do parágrafo único do art. 20 do Código Civil. Como explicar direitos da personalidade de quem não é mais pessoa? A doutrina clássica estabeleceu que os direitos da personalidade seriam direitos subjetivos, isto é, comporiam relações jurídicas intersubjetivas, na posição de sujeito ativo, o detentor do direito, e sujeitos passivos determinados ou não, com o dever de se absterem de quaisquer atos lesivos à dignidade da pessoa. Mas, e o morto, como atribuir a ele direitos subjetivos? Haveria reflexos de direitos a justificar a tutela jurídica, uma vez lesada a imagem do indivíduo que ele foi? A teoria clássica da relação jurídica busca explicar a situação do morto por meio de um de quatro argumentos: a) não haveria um direito da personalidade do morto, mas um direito da família, atingida pela ofensa à memória de seu falecido membro; b) há tão somente reflexos post mortem dos direitos da personalidade, embora personalidade não exista de fato; c) os direitos da personalidade, que antes estavam titularizados na pessoa, com a sua morte passam à titularidade coletiva, já que haveria um interesse público no impedimento de ofensas a aspectos que, ainda que não sejam subjetivos, guarnecem a própria noção de ordem pública; e, por fim, d) com a morte, transmitir-se-ia a legitimação processual, de medidas de proteção e preservação, para a família do defunto3. Pela primeira opção (a), a família seria vítima em razão de ofensa à memória do morto. Não podemos concordar com o surgimento de um novo direito porque se encontra despido de qualquer conteúdo, criado, simplesmente, para satisfazer à fundamentação da tutela judiciária. Ao se dizer que há reflexos de direitos da personalidade (b), embora personalidade já não mais exista, pressupõe-se que pode haver consequência sem causa. Estamos a criar uma nova categoria de "reflexos de direitos sem direitos" ou, pior, "reflexos de direitos sem personalidade". Como terceira corrente, a noção de titularidade coletiva de direitos (c) nada mais é do que um lugar comum para se tentar justificar um paternalismo e uma posição funcionalista sem qualquer fundamentação. É estranho passar a titularidade de informações personalíssimas, definidoras da própria pessoa, a uma coletividade que não possui sequer os mesmos interesses. Por fim, apresenta-nos a ideia de que a legitimatio é transmitida aos parentes (d). Caio Mário da Silva Pereira chega mesmo a afirmar que o direito de ação é transferido a determinadas pessoas.4 O problema dos "direitos da personalidade do morto" resumir-se-ia a uma questão de tutela processual. No entanto, a legitimidade processual tem existência própria e distinta do direito material. Além do mais, há interesses e expectativas de direitos que podem proporcionar a alguém a atuação processual. É o caso dos legitimados referidos pelo parágrafo único do art. 20 do Código Civil. Dessa maneira, admitimos a existência de um interesse legítimo da família e, portanto, de alteração da legitimidade. Mas direito subjetivo não há. Ele se extinguiu com a morte. Resta agora um interesse, cuja legitimação processual é dada a certas pessoas. Em relação aos dados pessoais, por exemplo, direito realmente não há. Não há que se confundir direito subjetivo e interesse legítimo. O primeiro se traduz em um poder de atuação, guarnecido por diversas faculdades e por pretensão. Já o segundo, é uma situação que só pode ser reclamada judicialmente, pois não se concede um espaço de atuação extrajudicial, mas tão somente "uma pretensão razoável cuja procedência ou não só pode resultar do desenvolvimento do processo"5. O morto não tem direito aos dados pessoais, mas pode existir interesse legítimo da família na proteção dos mesmos. A proteção pode se dar inclusive contra a própria família. Isso ocorre porque o interesse não possibilita um campo de atuação, como é comum nos direitos subjetivos. Assim, a família não pode atuar sobre os dados da pessoa falecida, a não ser que esta, em vida, tenha expressamente concedido o direito de exploração da imagem manipulada. E, sendo assim, admitimos a existência de um direito subjetivo criado negocialmente pela outorga do titular. Sem o consentimento, à família se defere apenas a legitimidade processual na defesa da situação jurídica de interesse. Com o consentimento, haveria um direito a ser explorado, mas pautado em pressupostos de emissão de vontade válida, que incluem não somente a capacidade e a legitimidade material, mas também a idoneidade do objeto.                 A manifestação de vontade é necessária e validada por três princípios jurídicos: boa-fé, informação e autonomia. Como já dissemos em outra ocasião:  A boa-fé informa toda a construção interna da vontade e sua manifestação, pois exige que ambas as partes atuem segundo um padrão de lealdade e lisura, não gerando, no outro, falsas expectativas e procedendo com a segurança que a intervenção de saúde exige. A informação garante que a manifestação de vontade não se forme unilateralmente, mas dialogicamente, permitindo que as partes ponderem argumentos e alternativas. E a autonomia privada protege o livre desenvolvimento da personalidade pela satisfação de interesses críticos e experienciais na tomada de decisão, respeitado o grau de discernimento.6  O consentimento para a manipulação e o uso da imagem deve se dar por documento escrito, que explicite tal permissão no âmbito de limites temporais, temáticos e pessoais. Os limites temporais deverão ser fixados por meio de termo final ou de condição resolutiva, porquanto temerário seria o uso por tempo indeterminado. Os limites temáticos referem-se ao contexto em que a imagem será colocada ou à atuação fictícia que se imporá a ela. Logo, é improvável que a cessão ultrapasse os contornos da pessoalidade edificada em vida, configurada na imagem-atributo. Por fim, os limites pessoais vertem na determinação das pessoas a quem se concede a cessão de uso e manipulação da imagem. Como não há forma prescrita em lei, defendemos a necessidade de um documento escrito, particular ou público, podendo, inclusive, ser o próprio testamento.  4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Saudade, apego, medo da morte são sentimentos desde sempre experimentados pelo ser humano, que é confrontado com a inevitabilidade do fim. A ressuscitação digital dos mortos leva-nos à intransmissibilidade e à vitaliciedade dos direitos da personalidade. O uso da imagem manipulada pode não ter maiores consequências jurídicas se respeitados os limites impostos pelo titular. E exatamente por isso propusemos que a cessão se efetive por meio de documento escrito. Não se trata de cessão de direito da personalidade. Não existe direito da personalidade do morto. Com a morte, cessa a personalidade e, ato contínuo, os direitos da personalidade. Direito da personalidade é, tradicionalmente, considerado direito subjetivo, pois concede a seu titular um poder de atuação e de pretensão sobre aquele que o viole. A morte extingue este direito, que não é transferido para a família. A situação jurídica subjetiva a envolver o morto na proteção da imagem é de interesse legítimo. É nesse ponto que se instaura a confusão entre legitimidade processual e titularidade material. Não se trata de uma discussão nova, basta pensar nos direitos morais de autor. A repercussão patrimonial é transmitida, mas não a titularidade da obra. Quanto à imagem, o documento de cessão cria direito subjetivo de uso e manipulação para o cessionário, embora esse direito não se confunda com direito da personalidade. Tendo como pressuposto o documento em que o titular da imagem permite o uso desta após a sua morte, a violação do interesse legítimo dos familiares faz nascer uma pretensão indenizatória de que pode se valer algum herdeiro eventualmente excluído da decisão e do contrato de utilização de imagem do parente falecido. Da mesma forma, poderão os legitimados requerer indenização se houver extrapolação do objeto por parte do cessionário da imagem, tendo em vista os limites temporais, temáticos e pessoais estabelecidos contratualmente. Ainda há que se especular que a situação concreta pode conduzir o agente que explora comercialmente a imagem a obter ganhos maiores do que o dano suportado pelos herdeiros do falecido. Ou seja, como nos mostra Nelson Rosenvald e Bernard Korman Kuperman7, a função compensatória da responsabilidade civil pode se mostrar insuficiente diante de agentes racionais, "uma vez que, casos como esse, transmitem o sinal econômico que o ilícito não só se paga, mas remunera bem." Nesse caso é fundamental a pretensão restitutória que, pautada no enriquecimento sem causa, justifica a responsabilidade civil pela extrapolação lucrativa daquele que explora a imagem do falecido. ____________ 1 Imagem-retrato é a materialização audiovisual do indivíduo por meio de representação da personalidade. E imagem-atributo se relaciona aos aspectos de construção da pessoalidade, ali inseridos valores e construção de vida. 2 Deepfake é a imagem ou som que passou por processo de edição, por meio de inteligência artificial, com o intuito de gerar aparência de fato real. Com o uso da técnica de edição, se pode modificar o conteúdo da fala, inserir uma pessoa em um contexto, substituir uma pessoa por outra etc. 3 Tal divisão em quatro fundamentações se faz presente por razões didáticas, sem que, com isso, possamos afirmar a existência de correntes doutrinárias claras e bem definidas. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 20. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 243. 5 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 263. 6 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2021, p. 139-140. 7 ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017, p. 12.
A proteção de dados pessoais no Brasil tem uma história fascinante e ainda pouco conhecida pelo grande público. O tema está em alta em razão de muitos fatores: o trabalho monumental de Danilo Doneda na autonomização dessa disciplina em trabalho de décadas, a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), o reconhecimento deste direito na Constituição Federal e sua consistente interpretação no Supremo Tribunal Federal. Quando o primeiro projeto de lei sobre o assunto foi apresentado no Brasil, Doneda tinha apenas sete anos de idade. Muitas pessoas pensam que as discussões sobre proteção de dados pessoais no Brasil são novíssimas, iniciadas neste século. Engana-se quem pensa assim. Como argumentei com Doneda no ensaio Personality Rights in Brazilian Data Protection Law: a historical perspective, publicado em livro editado por Marion Albers e Ingo Wolfgang Sarlet pela editora Springer, as discussões sobre direitos da personalidade possuem raízes profundas, assim como a construção dos princípios fundantes da proteção de dados pessoais. Permita-me uma viagem ao tempo. Voltemos ao governo Ernesto Geisel, o quarto da ditadura militar brasileira. Em 1977, o Serpro - empresa pública criada em 1964, após o golpe, para alavancar a emergente economia de processamento de dados e modernizar a administração pública - estava sendo instrumentalizado pelos militares para lançamento do ambicioso Registro Nacional das Pessoas Naturais, o Renape. A ideia dos militares era organizar em um único sistema interoperável todos os registros de uma pessoa, como certidão de nascimento, registro geral, cadastro de pessoa física, registros trabalhistas e registros previdenciários. Dedicamos um episódio do podcast Dadocracia a este tema. Nem todos os militares apoiavam o projeto, que foi formulado de forma opaca, sem anúncios públicos, por cinco anos, com aval do ministro da justiça Alfredo Buzaid. Conforme descobri ao reler os principais jornais da época da década de 1970, o Renape foi criticado por alguns poucos militares dissidentes, que já sinalizavam para riscos e necessidade de novos direitos associados aos usos secundários de dados. Um deles, o coronel José Maria Nogueira Ramos, criticou publicamente o Renape em entrevistas concedidas ao Estado de São Paulo. Fiquei curioso e fui pesquisar mais a fundo sobre a vida do coronel Nogueira Ramos. Com a ajuda dos funcionários da Biblioteca do Exército do Rio de Janeiro, encontrei textos seus em exemplares da revista A Defesa Nacional sobre o assunto. Foi grande a minha surpresa ao observar que o coronel Nogueira Ramos não só alertava sobre as "potencialidades da informática" em termos de "segurança e dignidade do cidadão", como também defendia que qualquer política pública de identidade unificada deveria ser precedida da adoção de uma lei "sobre a proteção de dados pessoais". Pelo que pude apurar, o coronel Nogueira Ramos era engenheiro de telecomunicações formado no IME e havia exercido o cargo de engenheiro de projetos na União Internacional de Telecomunicações (UIT) entre 1970 e 1973. Provavelmente em razão de sua atuação internacional na UIT, teve contato com os debates de ponta sobre privacy and data protection que estavam sendo travados na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no início da década de 1970. Ele não só tinha contato com os famosos seminários de junho de 1974 em Paris sobre proteção de dados pessoais - encontro que reuniu figuras como Alan Westin, Stefano Rodotà, Arthur Miller e outros pioneiros dessa disciplina -, como mostrava conhecimento básico sobre os modelos de licenciamento de bancos de dados na Suécia, os novos direitos civis pensados na França e os princípios de informação justa formulados nos EUA (os famosos Fair Information Practices Principles, derivados do importantíssimo relatório Records, Computers and the Rights of Citizens). Por influência do pioneiro trabalho realizado de forma multissetorial pelo governo dos EUA em 1972 - envolvendo especialistas, membros de empresas de tecnologia, professores acadêmicos e cidadãos que pudessem manifestar opinião pública -, os FIPPs cristalizaram cinco princípios básicos, que formaram a espinha dorsal de muitas legislações de proteção de dados pessoais no século passado: (i) não deve existir um sistema de registro de dados pessoais secreto, (ii) deve existir uma forma pela qual alguém pode descobrir quais informações pessoais estão em um registro e como essas informações são usadas, (iii) deve existir uma forma de uma pessoa prevenir que uma informação utilizada para uma finalidade específica seja utilizada para outra, sem consentimento, (iv) deve existir uma forma alguém corrigir um registro de informação sobre uma pessoa identificável, (v) toda organização que realiza tratamento de dados pessoais deve garantir tratamento leal e prevenir usos abusivos dos dados. Nos principais círculos de cientistas da computação e de engenheiros de redes do Brasil, já existia preocupação com proteção de dados pessoais e suas relações com catalogação dos cidadãos e democracia. Em revistas como DataNews e Dados & Ideias, pessoas como Ivan da Costa Marques, Mario Dias Ripper, Ricardo Saur e Maria Teresa Oliveira promoveram debates iniciais sobre liberdades informáticas, o impacto do Privacy Act de 1974 nos EUA e os direitos de acesso debatidos no legislativo francês. Em uma das entrevistas que conduzi na pesquisa que deu origem ao livro A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil, publicado esta semana pela Editora Letramento, ouvi de Luiz Antonio Ewbank, marido da socióloga Maria Teresa Oliveira: "nós íamos para praia, no Rio, e discutíamos esses assuntos por horas, com Ivan e José Ricardo Tauile". Nessa época, este grupo de jovens lideranças que haviam estudado fora do país, introduziam preocupações comunitárias sobre privacidade e liberdade dentro de comunidades epistêmicas da CAPRE, do Serpro e da Associação de Profissionais de Processamento de Dados. Enquanto Tauilie realizou doutorado na The New School nos EUA, Ivan da Costa Marques doutorou-se pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Já Maria Teresa Oliveira estudou em Louvain, na Bélgica. Quando a implementação do Renape foi direcionada ao Serpro, iniciou-se uma crítica interna sobre riscos a direitos fundamentais em revistas especializadas que eram produzidas pela própria empresa pública. Essa era uma época pré-Internet e fóruns virtuais. Portanto, uma das formas de promover discussões relevantes dentro da comunidade de processamento de dados era por meio da revista Dados & Ideias. Foi lá que circularam os primeiros artigos que discutiram a lei sueca de proteção de dados (Datalagen de 1973), as críticas à centralização de dados e assimetrias de poder informacional e comentários sobre novos princípios para conter abusos no tratamento automatizado de dados por sistemas computacionais. Os técnicos responsáveis pela implementação do Renape também iniciaram uma estratégia de desaceleração do projeto a partir de argumentos que pudessem ser vistos como "técnicos" e não propriamente "políticos", como complexidades de arquiteturas de sistemas, problemas de interoperabilidade de dados e problemas de qualidade das bases de dados. Uma pequena comunidade de engenheiros e programadores com ideias liberais iniciou uma estratégia discreta de resistência democrática, "melando tecnicamente" o projeto, na expressão que ouvi de Mario Dias Ripper. Já na esfera pública, Raymundo Faoro, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, deslanchou uma série de críticas sobre problemas de legitimidade do Registro, seu caráter policialesco e severos riscos à autonomia e dignidade humana. Em uma matéria famosa do Estadão chamada "Um número para cada cidadão", discutiu-se à ameaça à privacidade individual e o "espírito de iniciativa empresarial". A construção de massa crítica que vai culminar no primeiro projeto de lei sobre proteção de dados pessoais no Brasil - o PL 4.365/1977, muito inspirado no modelo de licenciamento escandinavo e nos controles de finalidade - teve início na comunidade ligada ao Seminário sobre Computação na Universidade (SECOMU), criado em 1971 no Rio de Janeiro. Antes da fundação da Sociedade Brasileira da Computação em 1978, o SECOMU era um dos fóruns de encontros e trocas dos membros da emergente comunidade informática no país. Em 1976, pessoas ligadas à SECOMU e à Associação dos Profissionais de Processamento de Dados (APPD) anunciaram ser imperativa uma "ação coletiva" para evitar tentativas de manipulação do trabalho de processamento de dados para fins escusos. Em abril de 1977, um seminário técnico foi realizado e culminou em manifesto assinado por 150 líderes da comunidade informática. Este manifesto defendia a aprovação de uma lei federal para garantir ao cidadão (i) o direito de conhecer e corrigir as informações pessoais suas, contidas nos sistemas de informação, (ii) contabilidade (auditoria) do sistema e segurança contra má utilização das informações, (iii) consentimento toda vez que suas informações sejam utilizadas para fins diversos daqueles inicialmente definidos, (iv) proteção contra interligação de sistemas de informações contendo dados pessoais para fora do país, (v) controle da disseminação de arquivos com dados pessoais. Nota-se aqui um aspecto crucial de nossa história: as articulações da sociedade civil organizada para tentativa de afirmação de novos direitos fundamentais diante das transformações tecnológicas, reduzindo as assimetrias de poder produzidas pela concentração de poder e os riscos constantes de abusos. Fundamentalmente, esta é uma preocupação democrática e de dimensão coletiva, como observou Stefano Rodotà em seu clássico Elaboratori elettronici e controllo sociale. O PL 4.365/1977, do deputado Faria Lima de São Paulo, aprofundou essas recomendações ao propor a instituição de um controle de finalidade para bancos de dados, uma estrutura de fiscalização semelhante à Comissão Nacional de Liberdades Informáticas na França e claros direitos de acesso. O art. 10 do projeto dizia que qualquer cidadão poderia solicitar por escrito que lhe sejam informados os dados pessoais constantes em bancos de dados. No entanto, o órgão fiscalizador poderia impor duas limitações. Primeiro, cobrar pelo direito de acesso. Segundo, não prover informação caso o registro envolvesse infração à Lei de Segurança Nacional. Lembre-se que estamos falando de uma discussão durante o regime militar, em período de acirrada perseguição às lideranças de esquerda no país e de doutrina de segurança nacional. Portanto, são ideias liberais mobilizadas em um contexto autoritário e repressivo. Como argumento em A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil, é neste período histórico que começam a surgir no Brasil aquilo que chamo de "protoprincípios" de proteção de dados pessoais no Brasil. Eles não são tão elaborados como os princípios cristalizados no artigo 6º da LGPD, mas são construções iniciais, mais rudimentares, dos princípios básicos que temos hoje no direito brasileiro. Por exemplo, há um protoprincípio de "livre acesso", hoje concebido como "garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais". O direito de acesso era considerado um pilar de lutas na década de 1970 e havia forte influência do exercice du droit d'accès criado na lei francesa (todo cidadão tem direito de interrogar serviços responsáveis pela realizada de tratamento automatizado para saber se o tratamento diz respeito a informações nominativas que lhe digam respeito). A proposta de Faria Lima não qualificava o acesso como livre e gratuito, mas buscava instituir tal direito básico. Inclusive, ele chegou a propor uma Proposta de Emenda Constitucional para garantir o direito de acesso como liberdade informática básica - proposta derrotada no Congresso. Há também, neste período da década de 1970, um protoprincípio de "finalidade", conceitualizado hoje como "realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades". Por forte influência dos FIPPs (1972) e o modelo escandinavo de licenciamento, buscava-se alguma estrutura de controle e supervisão para atrelar certos tratamentos de dados pessoais a certas finalidades, buscando sempre um exame de razoabilidade e compatibilidade para usos secundários de dados - um dilema presente até hoje. Em um segundo texto, explicarei como esses "protoprincípios" são mobilizados em projetos de lei formulados por Cristina Tavares, José Freitas Nobres e José Eudes entre 1978 e 1985. São projetos interessantíssimos, que antecipam discussões que tivemos no Brasil sobre habeas data e sobre direitos de privacidade garantidos na Constituição Federal. O que se nota nesse movimento é uma inseparabilidade entre dimensões individuais e coletivas na origem da proteção de dados pessoais, algo que chamo de "dualidade constitutiva" desta disciplina. Voltarei a esses projetos de lei e este argumento de dualidade em momento oportuno. Por enquanto, deixo o convite a obra lançada e a investigação histórica que ela promove.
O seguro-garantia é apontado como um instrumento contratual auxiliar capaz de assegurar de forma mais satisfatória a gestão de riscos e fomentar a eficiência no cumprimento de obrigações estabelecidas em contratos, destacadamente em contratações públicas de infraestrutura. Muito embora haja previsão legal expressa autorizando a sua adoção em contratações públicas, não há disciplina específica em sede normativa sobre os elementos estruturais desse tipo sui generis de contrato de seguro, a exemplo da ausência de critérios associados ao agravamento do risco. A despeito da ausência de disciplina normativa específica, busca-se no presente ensaio, dividido em duas partes sequenciais, apresentar alguns critérios de interpretação que possibilitem estruturar o contrato de seguro-garantia de forma a possibilitar o cumprimento de sua função promocional.     Os contratos, como regra, geram a legítima expectativa de que as obrigações nele estabelecidas sejam espontaneamente cumpridas de acordo com a forma, prazo e local preestabelecidos1. No entanto, a relação contratual nem sempre observa uma desejável dinâmica linear em direção ao irrestrito e pontual cumprimento das obrigações. Durante o iter contratual, podem surgir inúmeros fatores capazes de acarretar o atraso ou mesmo o inadimplemento definitivo das obrigações, frustrando-se, com isso, os interesses das partes contratantes. Essas intercorrências são especialmente presentes em contratos privados de empreitada e contratações públicas envolvendo a realização de obras, pois são recorrentes as modificações ocorridas em projetos básicos e executivos de engenharia e arquitetura. No âmbito das contratações públicas, há, inclusive, preceito legal expresso autorizando a promoção de alterações unilaterais no contrato pela Administração Pública após a sua formalização, em virtude, dentre outras circunstâncias, de modificações: (i) no projeto ou especificações para melhor adequação técnica a seus objetivos; e, (ii) no valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto2. Esse quadro de modificações e de descumprimento de obrigações contratuais observado em contratos privados de empreitada e, em especial, em contratações de obras públicas e demais arranjos contratuais públicos que podem igualmente pressupor a realização de obras, a exemplo dos contratos de concessão e de parcerias público-privadas, gera, como regra, o atraso na conclusão de obras imprescindíveis à prestação de serviços públicos, tolhendo os indivíduos de uma forma geral da oportunidade de usufruir bens indispensáveis à manutenção das condições necessárias para uma existência digna.    Em termos estritamente econômicos, o não cumprimento tempestivo de obrigações em contratos de empreitada e congêneres públicos pode acarretar a indesejável elevação dos custos associados às obras que constituem o seu objeto e ensejar a ocorrência de danos de diversos matizes. Associe-se a isso, em termos macroeconômicos, o impacto negativo que o não cumprimento de ditas obrigações pode acarretar no desenvolvimento social e econômico3, afetando, por exemplo, a apuração de índices de desemprego e de crescimento econômico. Com objetivo de diagnosticar o universo de contratações públicas impactadas pelo descumprimento de obrigações contratuais, o Tribunal de Contas da União realiza atualmente o contínuo monitoramento de obras paralisadas envolvendo o dispêndio de recursos federais. No âmbito desse trabalho de auditoria, revelou o referido órgão de controle que, no ano de 2023, de 21.007 obras fiscalizadas, 8.603 se encontravam paralisadas, o que representa o preocupante percentual de 41% - quase metade do objeto da fiscalização4. Em tal cenário, o seguro-garantia desponta como um instrumento capaz de mitigar o problema associado ao descumprimento de obrigações contratuais, pois é apto a assegurar de forma mais satisfatória a gestão de riscos e fomentar a eficiência no cumprimento das mencionadas obrigações. Nos termos da norma geral que disciplina as contratações públicas, inclusive, é expressamente proclamado que o seguro-garantia tem por objetivo garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado5. Não há na legislação brasileira, contudo, disciplina específica sobre os elementos estruturais do contrato de seguro-garantia, a exemplo da ausência de parâmetros associados ao agravamento do risco, existindo apenas previsões normativas sobre a admissibilidade desse tipo de seguro em algumas situações pontuais. É o caso, por exemplo, da lei 6.830/80 que, em seu art.9º, inciso II, prevê a possibilidade de o seguro-garantia ser utilizado para garantir o cumprimento de obrigações resultantes de títulos que são objeto de execuções fiscais. De forma a ampliar a utilização do seguro-garantia para assegurar o cumprimento de obrigações advindas de processos judiciais em termos mais genéricos, o art.835, § 2º, do Código de Processo Civil, prevê que esse seguro se equipara ao dinheiro e à fiança na ordem preferencial de penhora. Para além do objetivo de assegurar o cumprimento de obrigações estabelecidas no âmbito de processos judiciais, a lei 8.666/93, norma geral sobre contratações públicas com vigência até o dia 30 de dezembro de 2023, enumerou o seguro-garantia dentre as garantias que poderão ser exigidas no âmbito dessas contratações. Dito diploma legal prevê que, ao contrário do que ocorre nos processos judiciais em que a garantia pode abranger o valor correspondente à integralidade da obrigação a ser cumprida, o seguro-garantia deve apenas se circunscrever ao percentual de 5% do valor das obrigações contraídas em contratações ordinárias, admitindo-se a elevação para o percentual máximo de 10% para obras, serviços e fornecimentos de grande vulto6. A lei 14.133/21, que revogará a lei 8.666/93 a partir do dia 30 de dezembro de 2023, por sua vez, manteve a previsão de utilização de seguro-garantia nas contratações públicas. E, com o propósito de fomentar ainda mais a utilização desse instrumento, elevou o percentual de cobertura para até 30% nas hipóteses de contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, assim como autorizou a criação de cláusula contratual de retomada, introduzindo no ordenamento jurídico a obrigação de o segurador assumir a execução do contrato de forma a concluir o seu objeto na hipótese de caracterização de inadimplência do contratado7. Ainda no âmbito das contratações públicas, a lei 8.987/95, que disciplina os contratos de concessão, não apresenta expressamente o seguro-garantia dentre as opções de garantia. A lei 11.079/04, que disciplina os contratos de parceria público-privada, autoriza textualmente a utilização do seguro-garantia para assegurar o cumprimento de obrigações estabelecidas nesses contratos, não dispondo, contudo, sobre os percentuais incidentes sobre os valores envolvidos na contratação, aplicando-se, na hipótese, os percentuais genericamente incidentes sobre as contratações públicas por força do que dispõe o art.186 da lei 14.133/218. No campo das contratações estritamente privadas, não há disciplina legislativa específica sobre o seguro-garantia. O Código Civil, como se sabe, estabelece as diretrizes incidentes sobre os contratos de seguro em seus artigos 757 a 777, a título de disposições gerais, e propõe regramento específico associado a duas categorias distintas: seguro de dano (artigos 778 a 788) e seguro de pessoa (artigos 789 a 802). Na esfera regulamentar, o tema foi inicialmente disciplinado pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP por intermédio da Circular n.º 477/2013, encontrando-se atualmente disciplinado pela circular 662/229. A norma regulamentar objetiva disciplinar conjuntamente as hipóteses de seguro-garantia destinadas às contratações públicas e privadas, valendo-se para tanto de inúmeras regras aplicáveis indistintamente a essa modalidade de seguro, a exemplo do estabelecimento de regras concernentes ao prazo de vigência, hipóteses de modificação, indenização e exclusão de riscos. Tal quadro normativo, no entanto, não é capaz de fornecer critérios objetivos sobre alguns pontos centrais ligados à aplicação do seguro-garantia, notadamente no que se refere às contratações envolvendo obras públicas, impondo-se a investigação da natureza desse instrumento contratual, assim como das características das obrigações que esse instrumento busca assegurar a fim de que haja a sistematização de critérios coerentes de interpretação à luz da legalidade constitucional. O seguro-garantia apresenta uma relação tripartite, nele figurando o tomador, o segurador e o segurado. No seguro-garantia vinculado a contratos privados de empreitada e contratações envolvendo obras públicas, o tomador é o responsável pelo cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato principal associadas à construção das obras e também pelo pagamento do prêmio do seguro. O segurado, por sua vez, é o destinatário final das obras especificadas no contrato principal e remunera o tomador como contrapartida pelo desenvolvimento dessas obras.  O objetivo do seguro-garantia nesses contratos é o de mitigar o risco associado ao descumprimento das obrigações contratuais a cargo do tomador, beneficiando-se, com isso, o segurado que tem nessa garantia a possibilidade de não ver comprometida a entrega das obras contratadas, o que se perfaz alternativamente pelo pagamento de indenização pelo segurador ou por intermédio da assunção direta da execução das obrigações pelo próprio segurador. Objetiva também o seguro-garantia gerar incentivos para que as obrigações estabelecidas no contrato principal sejam efetivamente cumpridas. Nesse ponto, o segurador poderá acompanhar a execução contratual, ter livre acesso às instalações físicas em que o contrato é executado, assim como acessar auditorias técnicas e contábeis e requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra10. O segurador adquire, nesse contexto, um papel de maior protagonismo na contratação principal, exercendo atividades que não lhe são típicas. Passa o segurador a figurar, inclusive, formalmente no contrato principal e eventuais aditivos como interveniente anuente e a praticar, de forma regular durante o curso do contrato, atos materiais tendentes à verificação do cumprimento de obrigações a cargo do segurado, podendo ainda ocorrer, na hipótese de inadimplência, a intervenção direta na execução das obrigações contratuais11. Esse cenário, em princípio, parece dotado de absoluta racionalidade negocial, pois a previsão de pagamento de indenização, a fiscalização permanente do cumprimento das obrigações contratuais e a possibilidade de assunção direta dessas obrigações pelo segurador em caso de inadimplemento pelo segurado, configuram situações aptas a mitigar os riscos associados à realização de obras. O seguro-garantia propiciaria, assim, a redução dos custos de transação nas relações negociais, o que, em última análise, resultaria em uma desejável melhora no ambiente de negócios e o incremento do desenvolvimento econômico no cenário brasileiro12. Contudo, os contratos privados de empreitada e as contratações envolvendo obras públicas apresentam especificidades que nem sempre permitirão que o seguro-garantia cumpra a função de mitigar substancialmente o risco associado ao não cumprimento de obrigações contratuais. Dentre essas especificidades, destacam-se os seguintes fatores observados em contratos dessa natureza: (i) precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura; (ii) complexidade de arranjos contratuais em que a realização de obras é apenas um dos itens que configuram o objeto contratual; e, (iii) incompatibilidade com os percentuais legais estabelecidos para o alcance do seguro-garantia. O primeiro fator que se apresenta crítico para a análise das potencialidades do seguro-garantia consiste na constatação de que os projetos de engenharia e arquitetura ensejam, como regra, modificações quantitativas e qualitativas supervenientes13, alterando-se, com isso, o panorama inicial de análise de risco, elemento central na estruturação e precificação do contrato de seguro14. Tal situação se mostra especialmente relevante no âmbito das contratações públicas, pois a Administração pode alterar unilateralmente os contratos de forma significativa sempre que houver modificação do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica a seus objetivos e quando for necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto15, oscilando o percentual de acréscimos e supressões de 25 a 50% do valor total da contrato a depender da natureza da obra a ser realizada16. Além disso, parte significativa desses projetos revela algum nível de insuficiência técnica, acarretando, de igual modo, modificações supervenientes nas obrigações contratuais inicialmente estabelecidas. Nas contratações públicas, em particular, a precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura se apresenta como fator que merece especial atenção, uma vez que a Administração Pública não possui, como regra, quadros técnicos que permitam a elaboração de projetos de qualidade satisfatória. Some-se a isso a dificuldade que os administradores públicos enfrentam para a especificação do objeto contratual, o que igualmente se reflete na confecção de projetos inadequados e insuficientes. Ditas circunstâncias acarretam não só a modificação das obrigações originariamente pactuadas, como igualmente podem acarretar o atraso no seu cumprimento ou mesmo o integral descumprimento em razão da dificuldade de se adimplir obrigações lastreadas em projetos técnicos inadequados. A título ilustrativo, o Tribunal de Contas da União, ao elaborar auditoria específica sobre obras paralisadas, apurou que, dentre os motivos para as paralisações, sobressai o percentual de 47% associado a projetos básicos deficientes17. O segundo fator crítico relaciona-se à complexidade das obrigações observada em modelos contratuais em que a realização de obras constitui apenas um dos itens que configuram o objeto contratual, a exemplo do que ocorre nos contratos de concessão de serviços públicos precedidos de obras públicas e nos contratos de parceria público-privada. Nesses contratos, há uma ligação estreita entre as diversas obrigações, uma vez que o financiamento é usualmente estruturado em conexão com diversos aspectos do projeto de concessão, não podendo ser tratado de forma isolada e sim em sua totalidade18. Esses contratos pressupõem, mais precisamente, um financiamento estruturado em que o fluxo de caixa gerado pela prestação de serviços é utilizado no pagamento de obrigações financeiras, não havendo, com isso, a possibilidade objetiva de segregação das obrigações associadas à realização de obras e das demais obrigações fixadas no contrato, dentre as quais as de natureza financeira19. E, por fim, o terceiro fator relevante associa-se ao percentual de cobertura do seguro-garantia. Enquanto nas contratações privadas não há limites associados à extensão da garantia, podendo alcançar o valor integral da obrigação a ser cumprida, o seguro-garantia nas contratações públicas deve apenas se circunscrever ao percentual de 5 a 10% do valor das obrigações contraídas em contratações ordinárias, admitindo-se a elevação para o percentual máximo de 30% nas hipóteses de contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto. Os três fatores abordados, que podem inclusive ser observados concomitantemente em um mesmo contrato, são potenciais inibidores do integral êxito do seguro-garantia. No primeiro caso, a precariedade dos projetos pode inviabilizar a assunção do cumprimento específico das obrigações já existentes pelo segurador, pois o projeto assim elaborado pode simplesmente se revelar imprestável, não se justificando a perpetuação de obrigações com base nele estabelecidas. Em apertada síntese, é possível afirmar que a possibilidade de cumprimento específico das obrigações é diretamente relacionada à qualidade dos projetos. No segundo caso, observa-se a dificuldade da segregação das obrigações fixadas no contrato associadas à realização de obras, havendo, assim, impropriedade técnica na sinalização de obrigações específicas a serem assumidas pelo segurador. E, no terceiro caso, a restrição quanto ao limite de cobertura do seguro-garantia pode igualmente dificultar a assunção do cumprimento específico das obrigações já existentes pelo segurador, destacadamente se o inadimplemento ocorrer na fase inicial de execução dos projetos em que, por um lado, a alocação de recursos é realizada de forma mais substancial e, de outro, a parte remanescente ultrapassará o percentual que constitui o teto legal. Em virtude dessas dificuldades quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, revela-se recomendável que se adote preferencialmente no seguro-garantia a opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras. Essa opção é, inclusive, a eleita pelo Código Civil ao fixar as diretrizes gerais atinentes ao contrato de seguro, dispondo o art.776, nesse esteio, que, como regra geral, o segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido20. A previsão de assunção do cumprimento de obrigações pelo segurador em caso de inadimplência deve ser estabelecida apenas nas hipóteses em que: (i) seja possível a especificação de forma pormenorizada, segregada e objetiva da obrigação a ser cumprida; (ii) o projeto originário apresentar viabilidade técnica para ser executado continuamente; e, (iii) o remanescente da obra não ultrapassar os valores fixados como limites máximos pela legislação para a cobertura do seguro-garantia. A Parte II do ensaio examinará, na sequência, como fatos supervenientes podem acarretar a própria supressão da garantia nesse tipo de contrato de seguro. ____________        1 Conforme preleciona Clóvis do Couto e Silva, o adimplemento atrai e polariza a obrigação. É o seu fim. Ao discorrer sobre o conceito de obrigação como processo, esclarece o Autor que a relação obrigacional deve ser compreendida como algo que se encadeia e se desdobra em direção ao adimplemento, à satisfação dos interesses do credor. COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.17. 2 Art.124 da Lei n.º 14.133/2021. O Código Civil também prevê hipóteses de modificação do contrato de empreitada em seus artigos 619, 620 e 621. O art. 619, em particular, prevê a hipótese de modificação em decorrência de alterações no projeto, muito embora a disciplina seja diversa das contratações públicas.  3 Conforme assinala Gilberto Bercovici, é necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como social, que são interdependentes, não há um sem o outro. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Almedina, 2022, p.126. 4 Relatório de obras paralisadas divulgadas no sítio eletrônico do Tribunal de Contas da União. Disponível em:. Acesso em: 17 set. 2023. 5 Art.97 da Lei n.º 14.133/2021. 6 Art.56, § 2º da Lei n.º 8.666/1993. 7 Art. 99 da Lei n.º 14.133/2021. 8 Art. 186. Aplicam-se as disposições desta Lei subsidiariamente à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, à Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010. 9 Disponível em:. Acesso em: 17 set. 2023. 10 Nesse sentido é o que dispõe o art.102, inciso I, da Lei n.º 14.133/2021 no que se refere às contratações públicas. 11 O já citado art.102, inciso I, da Lei n.º 14.133/2021 estabelece, no âmbito das contratações públicas, que o segurador deverá firmar o contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente. 12 A compreensão dos custos de transação pode ser sintetizada a partir das contribuições de Ronald Coase sobre o tema. Destaca o Autor que, ao realizar transações de mercado, há custos associados a atos que lhes são inerentes, a exemplo dos atos associados à formação e execução dos contratos, e que esses atos são usualmente extremamente custosos. COASE, Ronald. O problema do custo social. Journal of Law & Economics, Chicago, v. 3, out. 1960. Tradução: Francisco Kümmel F. Alves e Renato Vieira Caovilla. Disponível em:. Acesso em: 4 set. 2023. 13 É de ser aqui evidenciado que nem sempre será uma tarefa fácil delimitar com precisão os traços distintivos entre alterações qualitativas e quantitativas. Não só as alterações qualitativas podem pressupor modificações quantitativas no contrato, como também o incremento demasiado de alterações quantitativas poderá acarretar uma alteração qualitativa do objeto do contrato. 14 O risco é um dos elementos nucleares do contrato de seguro. Conforme sinalizam Miragem e Petersen, "é o estudo da noção de risco, que se apresenta como conceito nuclear da operação e explica sua função socioeconômica, assim como dos aspectos técnicos e operacionais da atividade desenvolvida pelo segurador, que revela, em sua completude, a realidade fática objeto do direito dos seguros, em suas dimensões institucional e material". MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 41. 15 Art.124 da Lei n.º 14.133/2021. 16 Art. 125 da Lei n.º 14.133/2021. 17 Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2023. 18 Ao discorrer sobre a ideia de aplicação do conceito de totalidade ao direito obrigacional, esclarece Judith Martins-Costa que esse conceito teve por efeito alargar o âmbito conceitual do adimplemento e, por consequência, do inadimplemento. MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro, Forense, 2003. 19 Conforme preleciona E. R. Yescombe, o financiamento estruturado, ou project finance, é o método empregado para viabilizar a obtenção de financiamento de longo prazo destinado a projetos de grande porte para que, por meio da técnica da "engenharia financeira", o fluxo de caixa gerado pelo próprio projeto seja empregado para pagar os valores levantados via financiamento e garantir o retorno do investimento. Ainda segundo o Autor, depende de uma avaliação detalhada das condições de construção do projeto, dos riscos operacionais e de receita, e da adequada alocação de riscos inerentes ao empreendimento entre investidores, financiadores e outras partes interessadas. YESCOMBE, E. R. Princípios do Project finance. Tradução de Augusto Neves Dal Pozzo. São Paulo: Contracorrente, 2022. 20 Art. 776. O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido, salvo se convencionada a reposição da coisa. Sobre esse preceito legal, destaca Walter A. Polido a simplicidade desse procedimento para a satisfação do interesse do segurado. Segundo o Autor, não suscita qualquer tipo de dúvida a universalidade do procedimento de pagamento da indenização em dinheiro, haja vista a simplificação operacional que a operação representa. POLIDO, Walter A. Comentários ao art.776 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p.350.
A proposta de reforma do Código Civil de 2002 O Código Civil brasileiro foi promulgado em janeiro de 2002, com vigência a partir de janeiro de 2003. É corrente a afirmação de que o Código já nasceu velho porque resultou do Projeto 634/1975, elaborado pela Comissão coordenada pelo professor Miguel Reale, que tramitava no Congresso Nacional desde 1975. Além disso, passados 20 desde a promulgação, é evidente a necessidade de sua reforma e atualização, em face das importantes transformações ocorridas ao longo desse período de quase 50 anos. Por essas razões, é extremamente oportuna a iniciativa do Senado Federal, por meio do seu presidente, o senador Rodrigo Pacheco, ao criar uma Comissão de Juristas para Revisão e Atualização do Código Civil, formada pelos mais eminentes estudiosos, especialistas em Direito Civil, tendo como presidente o Ministro Luís Felipe Salomão, como vice-presidente o Ministro Marco Aurélio Belizze e como relatores gerais o professor Flávio Tartuce e a professora Rosa de Andrade Nery.1 Em linhas gerais, a reforma consiste em eliminar eventuais inconsistências encontradas no texto legislativo e atualizar o Código em relação aos mais importantes avanços da ciência jurídica e, principalmente, em relação à jurisprudência construída pelos Tribunais Superiores ao longo destes anos. A Comissão está dividida em oito Subcomissões, de acordo com as matérias tratadas no Código: Parte Geral, Obrigações e Responsabilidade Civil, Contratos, Direito das Coisas, Direito das Famílias, Sucessões, Direito Digital e Direito Empresarial. A reforma sistema de responsabilidade civil Um dos capítulos a serem tratados pela Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil é aquele atinente à responsabilidade civil. No que se refere especificamente à responsabilidade extracontratual, o Código atual reproduz basicamente a cláusula geral de reparação de danos ex post factum, que remonta ao art. 1.382 do Code Napoleon, de 1804. De moderno, o Código de 2002 trouxe a unificação do conceito de ilícito (art. 186 e 188), como base para a imposição do dever de reparação do dano (art. 927, caput). Ademais, o Código inscreveu uma cláusula de reparação de dano decorrente das atividades de risco (art. 927, parágrafo único). Por essa razão, é imperiosa a necessidade de atualização do sistema de responsabilidade civil, em linha com as importantes transformações ocorridas na vida social e com os desenvolvimentos alcançados pela ciência jurídica em torno do tema. No que se refere às transformações sociais, chama a atenção a ocorrência cada vez mais frequente de danos catastróficos, em grande parte relacionados às mudanças climáticas e a fatores ambientais, mas em grande medida relacionados com as atividades econômicas, que são indispensáveis ao nosso modo de vida contemporâneo, mas realizam forte intervenção no ambiente natural e social, produzindo danos em larga escala.2 De outro lado, a ciência jurídica tem se ocupado do problema dos danos catastróficos, nos campos da responsabilidade civil, do direito ambiental e do direito dos desastres, especialmente com a incorporação dos deveres de prevenção e precaução ao sistema de tratamento de danos. Uma das principais compreensões a respeito dos danos catastróficos é que eles se relacionam com o nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas, uma vez que as atividades desempenhadas pelas corporações e pelo poder público se destinam ao atendimento das necessidades das pessoas. Por essa razão, seria impensável cogitar o encerramento da atividade minerária ou da atividade agropecuária, por exemplo, uma vez que essas atividades são indispensáveis ao atendimento das mais diversas necessidades inerentes à vida social. A questão, portanto, é saber como desempenhar tantas atividades, em escala cada vez mais elevada, com o menor impacto socioambiental possível. De outro lado, os danos catastróficos se caracterizam pela gravidade, multiplicidade e irreversibilidade das suas consequências, razão pela qual não se mostra suficiente tratar esse tipo de dano exclusivamente pelo prisma da reparação ex post factum.3 Precisamente por colocar em risco a existência da humanidade e das demais espécies animais, a questão dos danos catastróficos atingiu dimensões humanitárias e despertou a atenção dos organismos internacionais, ensejando a criação da Agência das Nações Unidas de Respostas a Desastres (United Nations Disaster Relief Office - UNDRO), em 1971, com a realização de três Conferências Mundiais sobre Redução de Riscos de Desastres Naturais, em Yokohama (1994), em Hyogo (2005) e em Sendai (2015), quando foi aprovada a denominada "Agenda 2030", com 17 objetivos e 169 metas para o desenvolvimento sustentável (ODS). Os danos catastróficos fazem parte da "Agenda 2030", cujos objetivos 11, 12 e 13 tratam das cidades sustentáveis, do consumo e da produção responsáveis e da ação contra as mudanças climáticas. Todos os Objetivos da Agenda 2030 estão relacionados ao desenvolvimento sustentável, mas os tópicos 11.1 e 13.1 tratam especificamente das catástrofes naturais e desastres, fixando como finalidades: garantir a redução dos riscos de desastres; identificar, avaliar e monitorar os riscos de desastres; empregar conhecimento, inovação e educação para una cultura de segurança e resiliência aos desastres; reduzir os fatores de riscos; fortalecer a preparação para respostas aos desastres. Esse alinhamento do problema dos danos com a temática dos direitos humanos perpassa o valor da dignidade humana, que é um princípio fundamental com assento na Constituição Federal de 1988 e que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro. A essa altura, é de suma relevância trazer para dentro do sistema de responsabilidade civil os deveres de contenção de danos potenciais, além do tradicional dever de reparação dos danos efetivos. A contenção de danos pode ser efetivada por meio dos deveres de prevenção, de precaução e de mitigação. Prevenir a ocorrência de um dano significa atuar positivamente para evitar a ocorrência de um evento que certamente ocorreria se não fossem adotadas as medidas preventivas. Precaver-se contra a ocorrência do dano significa preparar-se para um episódio danoso que conta com alguma probabilidade de ocorrer. Mitigar as consequências de um dano significa atuar positivamente para não agravar a situação danosa já instalada. A prevenção contra danos não é matéria estranha ao nosso ordenamento jurídico, a começar por dispositivos esparsos no Código Civil que impõem dever de adotar medidas para evitar que o dano aconteça ou o agravamento de suas consequências, em determinadas situações (art. 31, art. 96, § 3º, art. 696, art. 1.280). Não será demasiado lembrar que a novel legislação sobre proteção de dados, a denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD, impõe aos agentes de tratamento de dados (controlador e operador) uma série de deveres tendentes a evitar a ocorrência de danos para os titulares dos dados pessoais (arts. 46 a 51), sem prejuízo para a reparação dos danos que se efetivarem (art. 42). Ademais, o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, assim como o art. 2º da Lei 12.608/2012 dispõe que o poder público deve adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastres. A oportunidade que se apresenta para a Comissão de Juristas para Revisão e Atualização do Código Civil é de ampliar o alcance do sistema de responsabilidade civil, incorporando a função preventiva e precautória, sem prejuízo para a tradicional função reparatória. Diante das características dos danos catastróficos, os quais se relacionam ao nosso modo de vida e produzem consequências graves e irreversíveis, não se mostra possível tratá-los somente pelo prisma da reparação a posteriori, mas é necessário antecipar-se à sua ocorrência por meio de medidas de prevenção e de precaução. A tutela inibitória substantiva O enfrentamento dos danos potenciais pode se dar por meio de medidas de prevenção ou de precaução, a depender do grau de certeza que envolve a sua ocorrência. Para danos potenciais com elevado grau de certeza, são adotadas medidas de prevenção, sem as quais eles certamente se efetivam. Para danos potenciais com probabilidade de ocorrência, são suficientes as medidas de precaução. É certo que as atividades econômicas envolvem algum grau de risco de produzir danos, consoante o qual se impõe a necessidade de medidas de prevenção ou de precaução. As atividades com baixo grau de risco de danos podem ser tratadas pelo viés da reparação ex post factum, ao passo que aquelas que carregam elevado grau de risco de danos graves e irreversíveis só podem ser tratadas pelo prisma da prevenção e da precaução. A precaução contra danos pode se dar mediante a contratação de seguro de responsabilidade civil (securitização) e a constituição de fundos de reparação de danos (mutualização), em ambos os casos com vista à reparação dos danos que possam acontecer. Já a prevenção deve se efetivar por meio de ações positivas, amparadas pela técnica, com a finalidade de evitar que o dano se concretize.4 Assim, por exemplo, uma empresa de construção civil deve utilizar telas de proteção em volta do edifício em construção, a fim de evitar a queda de resíduos sobre os imóveis vizinhos. A tutela inibitória substantiva consiste na faculdade de exigir que a pessoa natural ou jurídica que desempenhe uma atividade de risco adote medidas de prevenção que, por definição, têm como finalidade evitar a ocorrência de danos.5 Exemplo de tutela inibitória substantiva pode ser encontrado no art. 1.280 do Código Civil, que confere ao proprietário ou possuidor de um imóvel a faculdade de exigir a demolição ou a reparação do prédio vizinho, quando ameace ruína, para evitar a ocorrência de um dano iminente. O próprio art. 20 do Código contempla uma hipótese de tutela inibitória substantiva para fazer cessar a lesão a direitos da personalidade, a fim de evitar a efetivação ou a continuidade de um prejuízo concreto. É importante lembrar que o Código Civil argentino, de 2014, contempla a tutela inibitória substantiva, por meio da denominada ação preventiva, prevista nos art. 1.710 a 1.713 daquele Código.6 A tutela inibitória substantiva não se confunde com o mecanismo previsto no art. 497 do Código de Processo Civil brasileiro, de cunho eminentemente processual, consistente em inibir a prática, a continuação e a reiteração do ato ilícito, com a finalidade de assegurar a efetividade das sentenças judiciais, independentemente da ocorrência de um dano em concreto.7 A tutela inibitória substantiva tem natureza de direito material e visa dar efetividade à função preventiva da responsabilidade civil, sem embargo da tradicional função reparatória, atribuindo a quem se encontre na iminência se sofrer um dano a faculdade de postular uma ordem judicial dirigida a quem esteja a cargo de uma atividade e tenha condições de agir para evitar o resultado danoso.8 Não é de hoje que se sustenta, no âmbito doutrinário, a autonomia dogmática da responsabilidade civil, enquanto sistema de tratamento de danos, envolvendo deveres diversos daquele tradicional dever de reparar os danos causados. Neste momento em que se apresenta a oportunidade de revisar e atualizar o Código Civil brasileiro de 2002, é necessário ampliar o alcance da responsabilidade civil, como sistema de tratamento de danos, para envolver os deveres de prevenção, de precaução e de mitigação dos danos potenciais, além do tradicional dever de reparação dos danos efetivos. Longe de ser uma revolução jurídica, trata-se de sistematizar a disciplina da responsabilidade civil, enquanto instituto jurídico autônomo que tem como objeto o tratamento de danos potenciais e efetivos, em linha com as necessidades do nosso tempo e do nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas.    Referências COMANDÉ, Giovanni. L'assicurazione e la responsabilità civile come strumenti e veicoli del principio di precauzione. In: COMANDÉ, Giovani. Gli strumenti della precauzione: nuovi rischi, assicurazione e responsabilità. Milano: Giuffrè, 2006. LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007. LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - artigo 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: RT, 2015. ROGER-LACAN, Cyril. Spécialité, gravité et anormalité dans la responsabilité sans faute. Revue Française de Droit Administratif, Paris: Ed. Dalloz, p. 333-338, mar./abr. 2012. SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba; Porto: Juruá, 2018. VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 22 Out. 2023. 2 A respeito das características dos danos catastróficos, confira-se: SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba; Porto: Juruá, 2018, p. 201-214. 3 COMANDÉ, Giovanni. L'assicurazione e la responsabilità civile come strumenti e veicoli del principio di precauzione. In: COMANDÉ, Giovani. Gli strumenti della precauzione: nuovi rischi, assicurazione e responsabilità. Milano: Giuffrè, 2006, p. 42 e 46; ROGER-LACAN, Cyril. Spécialité, gravité et anormalité dans la responsabilité sans faute. Revue Française de Droit Administratif, Paris: Ed. Dalloz, p. 333-338, mar./abr. 2012. p. 336. 4 VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006, p. 68-72. 5 Segundo Llamas Pombo, "podemos definir la inhibitoria como una orden o mandato dictado por la autoridad  judicial, a petición de quien tiene fundado temor de sufrir un daño, o de que se produzca la repetición, continuación o agravamiento de un daño ya sufrido, y que va dirigido al sujeto que se encuentra en condiciones de evitar tal resultado dañoso, mediante la realización de una determinada conducta preventiva, o la abstención de la actividad generatriz de tal resultado (LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007, p. 31. Ver também: LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010, p. 39-41.   6 ARTÍCULO 1710.- Deber de prevención del daño. Toda persona tiene el deber, en cuanto de ella dependa, de: a. evitar causar un daño no justificado; b. adoptar, de buena fe y conforme a las circunstancias, las medidas razonables para evitar que se produzca un daño, o disminuir su magnitud; si tales medidas evitan o disminuyen la magnitud de un daño del cual un tercero sería responsable, tiene derecho a que éste le reembolse el valor de los gastos en que incurrió, conforme a las reglas del enriquecimiento sin causa; c. no agravar el daño, si ya se produjo. ARTÍCULO 1711.- Acción preventiva. La acción preventiva procede cuando una acción u omisión antijurídica hace previsible la producción de un daño, su continuación o agravamiento. No es exigible la concurrencia de ningún factor de atribución. ARTÍCULO 1712.- Legitimación. Están legitimados para reclamar quienes acreditan un interés razonable en la prevención del daño. ARTÍCULO 1713.- Sentencia. La sentencia que admite la acción preventiva debe disponer, a pedido de parte o de oficio, en forma definitiva o provisoria, obligaciones de dar, hacer o no hacer, según corresponda; debe ponderar los criterios de menor restricción posible y de medio más idóneo para asegurar la eficacia en la obtención de la finalidad. 7 De acordo com Marinoni, "Quando se pensa apenas em direito à prevenção como fundamento da tutela inibitória, não se toma em consideração o mais importante, ou seja, o fundamento da tutela contra o ilícito. A tutela jurisdicional é imprescindível para inibir a prática do ato contrário ao direito e para remover os efeitos concretos derivados da ação ilícita. Num caso e no outro a tutela jurisdicional atua como norma que pode ser violada ou já foi violada. O verdadeiro fundamento das tutelas jurisdicionais inibitória e de remoção, assim, é o direito à tutela do direito" (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - artigo 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 60).  8 LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007, p. 31; LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010, p. 39-41.  
Atualmente, navegar no oceano de tecnologias emergentes na área da saúde requer mais do que a bússola da lei; é preciso a sensibilidade dos operadores do Direito e da Medicina para compreenderem a profundidade das transformações em curso na relação médico-paciente. É um mergulho num território ainda pouco explorado, onde o escalonamento de riscos é a âncora que mantém a autonomia do paciente como alicerce, sem se descuidar da ressignificação necessária do "dever de informação" e do "consentimento informado". Neste breve texto, propõe-se uma jornada por essas águas, onde o direito, a ética e a sensibilidade se entrelaçam, a fim de conduzir o leitor e a leitora à reflexão sobre "o que informar" e "como informar" o paciente, sobretudo quando estiver envolvido algum recurso tecnológico. Nas últimas décadas, doutrina e jurisprudência brasileiras vêm se firmando no sentido de que não será considerado válido o consentimento genérico (blanket consent) ou por meio de formulário padronizado, necessitando ser claramente individualizado.1-2 O consentimento deficientemente prestado acarreta a presunção de que o ato médico se realizou sem a aquiescência do enfermo.3 O inadimplemento do dever do médico de informar conduz à obrigação de indenizar. Para que se caracterize a responsabilidade civil pela falha na obtenção do consentimento, é preciso ser estabelecida a relação entre a falta de informação (ou incorreta) e o prejuízo final.4 O dano provém de um risco acerca do qual deveria ter sido avisado, para assim o enfermo deliberar sobre a aceitação ou não de determinado tratamento, por exemplo. Na prática, o mais dificultoso será determinar a exata medida da informação devida, ou seja, os benefícios, as alternativas terapêuticas e, especialmente, quais os riscos a serem objeto da informação prestada. Diante disso, é essencial a ponderação sobre o escalonamento de riscos e os níveis de complexidade do atendimento no contexto do consentimento à atuação médica. Como adverte Miguel Kfouri Neto: "quanto mais grave o risco, mais agudo o dever de informar e obter o consentimento plenamente esclarecido do paciente".5 Por meio da denominada "Teoria dos Riscos Significativos", o médico possui a obrigação de informar e explicar ao paciente a respeito dos riscos que o profissional da Medicina sabe ou deveria saber que são importantes e pertinentes, para o homem médio colocado nas mesmas circunstâncias. O risco será considerado significativo em razão de quatro (4) critérios: 1º) necessidade terapêutica da intervenção; 2º) em razão da sua frequência (estatística); 3º) de acordo com a sua gravidade; 4º) conforme as características/comportamento do paciente.6 Esses critérios são aferidos da seguinte forma, segundo Judith Martins-Costa: "(a) o fator da 'necessidade terapêutica' segue a equação: 'quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível pode ser a informação'; (b) no fator 'frequência de risco' a equação é: 'quanto mais frequente for a realização do risco, maior a informação'; (c) o critério referente à 'gravidade' indica: a gravidade de um risco, mesmo não frequente, conduz ao dever de comunicação. Os riscos menos graves não precisam ser informados'"7 Sobre os riscos com frequência significativa e os estatisticamente insignificantes, leciona Flaviana Rampazzo: "Os riscos com frequência significativa devem ser informados ao paciente, e nos de ocorrência insignificante, o dever de informação pode ser atenuado, embora riscos típicos médios ou graves, que são específicos de uma intervenção, de um tratamento ou da omissão de providências, devam ser repassados, mesmo quando forem estatisticamente insignificantes (por exemplo, o risco de tetraplegia em cirurgia de coluna, o risco de reversão espontânea de dutos após uma vasectomia) ou quando a sua ocorrência puder causar elevado prejuízo ao paciente, em suas diferentes dimensões (psíquicas, físicas, sociais, familiares, religiosas, laborais etc.)".8 Com apoio na Teoria dos Riscos Significativos que, recentemente, na minha atuação como assessora de Desembargador no TJPR, auxiliei em dois processos nos quais o tribunal considerou que, em ambos os casos, o médico não indicou um dos riscos mais comuns em determinada intervenção cirúrgica - e este risco, de natureza grave, veio a se concretizar. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi considerado inválido e o profissional condenado por violação ao dever de informação.9 Em um dos julgados,10 o paciente se submeteu à cirurgia de catara e algumas complicações decorrentes do procedimento levaram à sua cegueira. O TCLE não indicava os riscos intrínsecos ao procedimento cirúrgico para tratar a doença, dentre eles complicações que poderiam acarretar a cegueira, tal como a "ruptura de cápsula posterior". Embora seja rara de ocorrer, variando de 1,8 a 10,3%, a questão é que se trata da complicação mais frequente nestas cirurgias, de acordo com a literatura médica - e assim afirmou o próprio médico -, além de possuir natureza grave. Assim, foi reformada a sentença, para o fim de reconhecer a violação ao dever de informação. Outro ponto importante a ser considerado na avaliação do conteúdo da informação prestada é a "novidade do tratamento", pois quanto mais recente for um procedimento terapêutico ou diagnóstico, maior rigor deverá presidir à informação dada ao paciente.11 Nesse sentido, torna-se essencial a ponderação sobre os riscos e informações específicas que precisam ser repassadas/esclarecidas ao paciente quando submetido a cuidado de saúde apoiado em novas tecnologias, tais como cirurgias robóticas e sistemas de Inteligência Artificial. Em 2022, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução n. 2.311, que passou a regulamentar a cirurgia robótica no Brasil. Já no art. 1º, § 2º, indica-se o dever de o médico esclarecer adequadamente o paciente e elaborar um termo de consentimento com benefícios e riscos específicos ao procedimento robótico-assistido. O profissional precisa expor claramente quais as diferenças (benefícios e riscos) na adoção de uma cirurgia robótica em comparação à cirurgia convencional (aberta ou laparoscópica). É também importante a indicação da possibilidade de intercorrências no ato cirúrgico por falha do sistema ou de um instrumento da plataforma robótica, com a consequente transformação da cirurgia assistida por robô para uma convencional (aberta ou laparoscópica) - inclusive com outro médico a comandar o ato cirúrgico, que não aquele previamente acordado com o paciente. Imagine-se que um cirurgião, localizado num hospital em Londres, esteja realizando uma telecirurgia em um paciente no Brasil, no exato momento em que o sistema do hospital inglês sofre algum tipo de interrupção ou falha em seu sistema. Diante disso, o monitor - que passava imagens do sítio cirúrgico do paciente brasileiro - de repente, fica escuro, não sendo mais possível visualizar os movimentos reproduzidos pelo robô no Brasil. Necessariamente, a equipe do hospital brasileiro estará em prontidão, ao lado do paciente e, verificando qualquer falha no sistema ou movimento imprevisível do robô-cirurgião, deverá afastá-lo do paciente e, imediatamente, adotar as condutas emergenciais cabíveis, incluindo a transformação do procedimento cirúrgico em uma cirurgia convencional, sem a assistência do robô. Esse é um exemplo, dentre tantos outros, de que podem ocorrer situações nas quais o procedimento robótico-assistido precisará ser interrompido e substituído por uma cirurgia convencional, realizada pelas mãos de outro médico, sem interferência do aparato tecnológico - e, frise-se: esse risco deve ser informado ao paciente. Ainda, é imprescindível que o enfermo seja informado de que a conversão da cirurgia robótica pode ocasionar cortes maiores no seu corpo e maior tempo sob anestesia, o que gera mais riscos ao paciente. Certa vez, tive acesso ao TCLE de um hospital de SP, feito para pacientes submetidos às cirurgias robóticas naquela instituição. Observei, pela leitura do documento, a sua incompletude quanto ao risco supracitado, de natureza grave. Nessas condições, em eventual litígio, o médico pode vir a ser responsabilizado. A fim de se estabelecer o dever de indenizar, deve-se verificar o nexo causal entre a omissão de informação e o dano. O ofendido precisa demonstrar que o dano (no caso, cortes maiores no seu corpo) provém de um risco acerca do qual deveria ter sido avisado, a fim de deliberar sobre a aceitação ou não do próprio uso do robô para assistir à cirurgia.12 Além disso, tanto na aferição da violação ao dever de informação, bem como no momento posterior de quantificação do dano, é necessário ponderar sobre a época da emissão do consentimento. Nesse sentido, destaca-se recente julgado pelo STJ13 que, ao considerar a concepção de outrora sobre autonomia e consentimento e a substancial modificação da prática clínica nas últimas décadas, reduziu equitativamente o valor da indenização - de 50 para 10 mil reais para cada autor. Confira-se: "(...) não se admite o chamado 'blanket consent', isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação. (...) embora, atualmente, seja comum a prática de se obter o consentimento livre e informado do paciente, principalmente mediante documento por escrito, cujas informações sobre a terapêutica envolvida são prestadas de forma bastante pormenorizada, sobretudo em casos cirúrgicos, não há como ignorar que a cirurgia em discussão foi realizada em março de 2002, isto é, há mais de 20 anos, época em que não havia, ainda, a prática usual em relação à prestação de informação clara e precisa ao paciente. Nessa linha, fixar uma indenização tomando como base a realidade atual, no tocante à relação médico-paciente, para um fato que ocorreu há duas décadas, não se revela consentâneo com o princípio da razoabilidade." Ao trazer o debate para o caso das cirurgias robóticas, tive recentemente ciência de um caso que o paciente, com câncer de próstata, foi submetido à prostatectomia radical por meio de videolaparoscopia. Como há nervos e tecidos sensíveis ao redor da próstata, na hora que é feita a extirpação, há grande risco destes nervos serem atingidos e ocorrer incontinência urinária e/ou disfunção erétil - e ambos os riscos se concretizaram no paciente em questão. O médico não informou sobre a possibilidade e benefícios da utilização do robô para aquele caso clínico, tendo em vista inúmeros estudos científicos atestando o potencial da tecnologia robótica, devido ao grau elevadíssimo de precisão do robô, o que reduz expressivamente os riscos intrínsecos à prostatectomia radical. Diante disso, o paciente questionava o fato de não ter sido informado sobre todas as alternativas terapêuticas, isto é, a utilização do robô, para tratar de maneira mais adequada o seu quadro clínico.14 Caso essa demanda venha a ser judicializada, caberá ao julgador analisar as circunstâncias existentes ao tempo da emissão do consentimento, especialmente, se na época do procedimento cirúrgico já havia o amplo reconhecimento da técnica robótica pela comunidade médica brasileira. Em caso positivo, a princípio, o profissional poderá ser responsabilizado por violação ao dever de informação. Vale a ressalva de que a ressignificação do direito à informação do paciente, nos moldes apresentados, engloba uma espécie de "padrão ouro no tratamento", razão pela qual deve-se considerar as peculiaridades da situação concreta para aferir a possibilidade de exigir do médico determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o atendimento. Partindo-se para o contexto de sistemas decisionais automatizados para apoiar as decisões clínicas - diagnóstico, prognóstico ou propostas de tratamento -, em que pese as notáveis benesses do arsenal tecnológico, por outro lado, tem-se constatado os riscos inerentes à tecnologia - entre eles, a natural falibilidade algorítmica, os eventos imprevisíveis decorrentes da autoaprendizagem de máquina e o treinamento do algoritmo a partir de uma base de dados incorretos, incompletos ou inadequados -, que geram potenciais cenários de danos ao paciente. Em recente entrevista com Jessica Hamzelouarchive, professora de tecnologia e regulação da Universidade de Oxford (EUA), levanta-se a preocupação de que à medida que sistemas de IA começam a se infiltrar nos ambientes de assistência médica, podemos retroagir para um cenário de "paternalismo da IA" (AI Paternalism),15 pelo fato de os pacientes não serem informados sobre o envolvimento da tecnologia para apoiar a decisão dos médicos. Contudo, a doutrina vem defendendo que o dever de informação neste cenário, decorrente da boa-fé objetiva contratual, está intimamente relacionado com 2 (dois) princípios éticos próprios da Inteligência Artificial (IA): i) proteger a autonomia humana; e ii) garantir a transparência, explicabilidade e inteligibilidade.16 A transparência informacional deve existir sobre a própria indicação ao enfermo de que ele está diante de um sistema de IA, para que seja facultada a opção de decidir a favor ou contra a interação homem-máquina (princípio ético da autonomia humana).17 Além disso, o médico possui o dever de informar que não apenas utilizou um algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, como igualmente precisa explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de compreensão de cada paciente (princípio ético da transparência, explicabilidade e inteligibilidade), sob pena de ocorrer a denominada opacidade explicativa.18 O médico pode ser responsabilizado diante da falta de divulgação (disclosure) ou esclarecimento a respeito do sistema de IA empregado nos cuidados de saúde.19 A título exemplificativo, trago o caso hipotético que criei em uma recente publicação: "Imagine-se o mencionado exemplo do médico da paciente japonesa que utilizou o Watson for Oncology para apoiar o diagnóstico e proposta de tratamento oncológico. O profissional precisa dizer:  'Olha, Joana, a princípio, o seu quadro clínico indica que você tem um tipo de câncer X, mas tentamos um determinado tratamento quimioterápico sem sucesso. Por isso, Joana, vamos inserir os seus dados no Watson, pois ele fará um cruzamento com um imenso banco de dados e, ao final, pode nos demonstrar um quadro diagnóstico diverso, inclusive trazendo novas propostas de tratamento, classificadas por níveis de confiança. Mas veja Joana, o Watson, apesar de diversos benefícios R e S, tem um grau de falibilidade de X%, e possui outros riscos Y e Z'".20 Em que pese existir divergência doutrinária sobre a extensão do conteúdo da informação que deve ser repassada ao paciente para que o médico cumpra com o seu dever de informação, é essencial ponderar no caso concreto sobre o escalonamento de riscos e, nesse sentido, utilizar a "novidade do tratamento/da tecnologia" como ponto importante a ser considerado na avaliação do conteúdo da informação. Além disso, pela aplicação da Teoria da Alteração das Circunstâncias em decorrência dos reflexos do implemento cada vez maior de novas tecnologias na prática clínica,21 os médicos precisam compreender que o direito à informação adequada engloba ainda o consentimento para o uso do aparato tecnológico, a partir do conhecimento do paciente de seu funcionamento, objetivos, vantagens, custos, riscos e alternativas.22  Assim, há atualmente a exigência de nova interpretação ao princípio da autodeterminação do paciente: saímos do simples direito à informação e caminhamos para uma maior amplitude informacional, ou seja, há um direito à explicação e justificação.23 Como navegadores nesse oceano de possibilidades e desafios impostos por novas tecnologias no setor da saúde, somos lembrados de que, mesmo quando as ondas da inovação parecem agitadas, o equilíbrio entre o direito e a ética aponta o caminho para um novo horizonte, no qual a tecnologia otimiza a atividade médica e reduz a carga de trabalho dos profissionais, ao mesmo tempo permitindo que dediquem mais tempo à construção de um relacionamento sólido e humanizado com seus pacientes, em respeito à sua autonomia, por meio da tomada compartilhada de decisões clínicas. __________ 1 Nesse sentido, o entendimento apresentado em julgamento paradigmático pelo Superior Tribunal de Justiça: STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.540.580/DF, rel. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), rel. p/ acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02 ago. 2018. 2 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 275. 3 Sobre a anulabilidade do termo de consentimento genérico, cf.: SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 227-228. 4 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. v. 3. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 887-939. 5 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 289. 6 A Teoria dos Riscos Significativos é também aplicada em Portugal, como se observa na obra de André Pereira (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 394, 416). 7 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. Critérios para a sua aplicação. 2. ed. 3. tirag. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 597-598. 8 SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 227-228. 9 TJPR, Apelações Cíveis nº 0003343-28.2020.8.16.0019 e 0008922-19.2018.8.16.0021. 10 TJPR, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 0008922-19.2018.8.16.0021, rel. Des. Clayton De Albuquerque Maranhão, j. 13.03.2023. 11 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 437. 12 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados Unidos, União Europeia e Brasil). In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra; DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 173-203. 13 STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.848.862/RN, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 5 abr. 2022. 14 NOGAROLI; Rafaella. A prática da Medicina centrada na pessoa e o novo modelo de consentimento na cirurgia robótica à luz da Resolução n. 2.311/2022 do CFM. In:  SÁ, Maria de Fátima Freire de; ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles Araújo; NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; SOUZA, Iara Antunes de (coord.). Direito e Medicina: intersecções científicas. Relação médico-paciente. vol. II. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022, p. 215-232. 15 HAMZELOU, Jessica. Artificial intelligence is infiltrating health care. We shouldn't let it make all the decisions. MIT Technology Review, 21 abr. 2023. Disponível aqui. Acesso em 24 out. 2023. 16 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 201; 264-271. 17 FERREIRA, Ana Elisabete; PEREIRA, André Dias. Uma ética para a medicina pós-humana: propostas ético-jurídicas para a mediação das relações entre humanos e robôs na saúde. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. Indaiatuba: São Paulo, 2020, p. 1-19. 18 NOGAROLI, Rafaella; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Tripla dimensão semântica da opacidade algorítmica no consentimento e na responsabilidade civil médica. Migalhas de Responsabilidade Civil, 17 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 out. 2023. 19 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 264-271. 20 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 270. 21 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 262; 283. 22 NOGAROLI, Rafaella; DANTAS, Eduardo. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 23 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 205; 293.
A utilização de sistemas automatizados, que dispensam a participação ou revisão humana (human in the loop), se tornou uma tendência irrefreável. Isso tem levado à implementação de novas tecnologias na telemedicina, permitindo a realização de atendimentos remotos, encurtando distâncias geográficas e melhorando a celeridade dos serviços prestados na área da saúde. Embora a automatização de atendimentos tenha vantagens elogiáveis, como a realização de atendimentos remotos síncronos, via ferramentas de videoconferência e webconferência, substituir profissionais humanos por máquinas noutros contextos pode levar a situações que acirram riscos e elevam a possibilidade de danos aos pacientes1. Por isso, a regulamentação da inteligência artificial tornou-se uma demanda urgente, pois os sistemas algorítmicos são os mais desejados para a otimização de rotinas dessa estirpe, especialmente nos atendimentos e consultas iniciais, que podem ser compreendidos pelo conceito de "teletriagem", definido pelo Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n. 2.314/2022, como "o ato realizado por um médico, com avaliação dos sintomas do paciente, a distância, para regulação ambulatorial ou hospitalar, com definição e direcionamento do paciente ao tipo adequado de assistência que necessita ou a um especialista" (art. 11). Claramente, exige-se a participação humana para a realização do ato, o que evidencia a ilegalidade de tentativas de automatização da triagem inicial de pacientes por sistemas automatizados de interação por mensagens de texto (os famigerados chatbots). Fato é que, embora a telemedicina e a telessaúde não sejam assuntos absolutamente novos2, já se busca a reestruturação dogmática de suas premissas para permitir maior aproximação entre médicos e pacientes, utilizando-se da mobile health (mHealth) e da conexão 5G, bem como da ampliação do acesso a smartphones e da Internet das Coisas3. No Brasil, a Resolução CFM nº 1.643/2002 definiu e disciplinou a telemedicina. Esta norma, até mesmo pela época em que foi editada, quando a realidade tecnológica era diversa, se mostrava vaga e genérica. Posteriormente, o CFM regulamentou a matéria na resolução nº 2.227/2018, entretanto, esta foi revogada poucos dias após a sua publicação. Finalmente, em 05/05/2022, o CFM publicou a Resolução nº 2.314/2022 e reacendeu o debate sobre os desafios do atendimento remoto. Com a pandemia de Covid-19, novos desafios surgiram, e o distanciamento social fez com que aumentassem os atendimentos remotos, ainda que de forma relutante e contrariando as expectativas dos profissionais de saúde4. A utilização de smartphones para teleconsultas permite ao paciente "ver" o profissional que o atende, ainda que por vídeo, aproximando mais médicos e pacientes5. Cenário bastante diverso é o da automatização completa do atendimento de saúde. Isso porque se deve levar em conta as diferenças culturais de cada coletividade e as particularidades de cada paciente para garantir que sistemas de IA sejam utilizados de maneira ética e responsável na prestação de serviços de saúde. A inteligência artificial não deve substituir a atenção médica humana, mas sim complementá-la, possibilitando o acesso aos serviços de saúde em locais remotos e a otimização de recursos para atendimento mais ágil e eficiente. A definição de teletriagem, conforme estabelecida no já transcrito artigo 11 da Resolução n. 2.314/2022 do CFM, caracteriza-se como um ato médico que envolve a avaliação remota dos sintomas apresentados pelo paciente. Nesse contexto, a avaliação é conduzida por um médico, permitindo que a análise dos sintomas seja realizada à distância. O principal objetivo desse procedimento é direcionar o paciente para o tipo de assistência adequada, seja ela ambulatorial ou hospitalar, e identificar a necessidade de encaminhamento a um especialista. É essencial destacar que a teletriagem médica não deve ser confundida com uma consulta médica tradicional. Através desse processo, o médico realiza uma avaliação preliminar dos sintomas e da gravidade do caso, fornecendo uma impressão diagnóstica perfunctória. Portanto, é imperativo que o profissional médico ressalte que a avaliação realizada é uma orientação sobre o diagnóstico e a gravidade da situação. A autonomia do médico é um aspecto central nesse processo, permitindo-lhe tomar uma decisão preliminar quanto aos recursos médicos a serem empregados em prol do paciente. Ademais, no contexto da teletriagem médica, é fundamental que o estabelecimento de saúde ou sistema de saúde responsável pelo procedimento ofereça um sistema de regulação adequado para o encaminhamento dos pacientes que estão sob sua responsabilidade. Isso significa que, além da avaliação remota dos sintomas, o sistema deve garantir a efetivação das etapas subsequentes, como o encaminhamento para a assistência adequada e o direcionamento ao especialista quando necessário. Dito isso, mister anotar que a tutela da saúde apresenta contornos próprios e inegavelmente desafiadores no contexto da proteção de dados pessoais. Isso porque os dados relativos à saúde são considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709/2018 (art. 5º, inc. II), mas, embora haja base legal que lhes é especialmente direcionada (art. 11, II, "f", da LGPD), por vezes, será o consentimento a melhor opção para o seu tratamento6. Fato é que a telemedicina como um todo passou a contemplar a tendência de virtualização dos atendimentos de saúde, sendo robustecida pela automatização, por exemplo pela utilização de chatbots, que é inviável na teletriagem devido à exigência do Conselho Federal de Medicina de que a participação do médico - profissional humano -seja um componente fundamental desse processo. As razões para isso residem na imprescindibilidade da avaliação clínica criteriosa dos sintomas do paciente, a qual requer o julgamento clínico e a expertise que apenas um médico pode proporcionar. Os chatbots, por mais avançados que possam ser em termos de qualidade heurística, carecem da capacidade de compreender nuances complexas, considerar contextos individuais e tomar decisões baseadas em julgamentos médicos embasados e lastreados em conhecimento empírico e padrão de conduta ético. Logo, existem barreiras que devem ser consideradas, como a delimitação de deveres específicos e a responsabilização dos profissionais envolvidos, destacando a importância da confiança nas relações. A pertinência dos princípios da prevenção e precaução é importante para minimizar os riscos inerentes ou potenciais da telemedicina, pois todo "novo dano" acarreta suposições de aceitação social de novas tecnologias não testadas7. De outro lado, a aplicação de novas tecnologias tendentes à automatização de processos que dependem do processamento de grandes acervos de dados deve ser realizada com cuidado, considerando riscos de segurança cibernética e vulnerabilidades decorrente do implemento dessas novas tecnologias disruptivas8. A confiança nas relações é fundamental e deve ser considerada no desenvolvimento de novas tecnologias. O processamento de linguagem natural é uma habilidade cada vez mais requisitada para sistemas de atendimento automatizado, especialmente em telemedicina. No entanto, a compreensão do contexto de uma frase é um desafio para as máquinas, mesmo para aquelas que utilizam o método "Winograd Schema", desenvolvido na década de 1970. Assistentes pessoais como Siri, Cortana e Alexa operam com "tags", que são palavras-chave selecionadas pelo algoritmo para simplificar o processamento. No entanto, esse sistema não funciona para o "Winograd Schema", que depende de elementos como artigos e pronomes para deduzir o contexto9. Além disso, a riqueza semântica da língua portuguesa e a dicotomia entre gêneros podem tornar a tarefa mais viável em comparação com outros idiomas, como o inglês10. A participação humana (do médico) é indispensável para interpretar os dados fornecidos pelo paciente, compreender as informações nas entrelinhas e realizar avaliações mais aprofundadas quando necessário, pois a Medicina não se limita apenas à identificação de sintomas, mas também envolve a consideração de fatores psicossociais, histórico de saúde e outros elementos que podem não ser capturados adequadamente por sistemas automatizados como os chatbots. Além disso, a boa relação médico-paciente é essencial para estabelecer a fidúcia entre ambos e viabilizar orientações personalizadas que propiciem um ambiente de cuidado holístico, o que não é possível por um chatbot. Somente o médico, com experiência clínica e percepções sensoriais do contato com o paciente, poderá colher e analisar determinados detalhes. Isso representa uma barreira à delegação de certos atendimentos. Logo, embora a inteligência artificial explicável (Explainable AI, ou XAI) esteja em constante evolução, o médico ainda é indispensável para colher e analisar determinados detalhes da situação de saúde do paciente11. A doutrina estrangeira usa o termo "foreseeability" para descrever o elemento de previsibilidade em casos em que a teoria da culpa é aplicada, como na análise do comportamento negligente de um desenvolvedor de um sistema algorítmico. No entanto, já é reconhecido que é necessário ir além para atender à função preventiva da responsabilidade civil em abordagens nas quais o risco conduza à responsabilização objetiva. Portanto, quando se trabalha com algoritmos que são incapazes de assimilar o mundo em toda a sua complexidade, tornando-se propensos a erros, a parametrização de modelos-padrão pode ajudar a conciliar a responsabilidade civil com a nova realidade. Esses modelos-padrão são particularmente importantes devido ao potencial de que dados imprecisos e inadequados contaminem os resultados heurísticos. Isso oferece maior liberdade para o desenvolvimento de métricas autorreguladas para cada tipo de atividade, que podem ser comparadas para determinar a atuação em conformidade, com o risco equivalente aferido para o tipo de atividade algorítmica em questão. Logo, ainda que os chatbots sejam sistemas automatizados amplamente utilizados, seu processamento de linguagem natural ainda é limitado e pode levar a consequências jurídicas em caso de viés decisório na interação com o paciente, especialmente para fins de triagem preliminar12. Por isso, embora sejam úteis para a coleta de dados cadastrais e estruturação de respostas-padrão, não devem ser utilizados para atendimento médico, mesmo de anamnese. Além disso, a utilização desses sistemas para finalidades que pressupõem a aferição de circunstâncias casuísticas é inviável13, pois eles ainda não têm instrumental técnico suficiente para tomar decisões complexas. No futuro, caso esse cenário se modifique, talvez seja possível parametrizar deveres informados relativos ao desenvolvimento de software com o objetivo de sistematizar expectativas e consequências para o adequado implemento desses sistemas, até mesmo na teletriagem. Até lá, porém, a limitação imposta pelo CFM se revela zelosa e adequada, demandando boa curadoria de dados no antecedente (e em todo o processo algorítmico), que também deve ser auditável, para que danos não ocorram, no consequente, por enviesamento algorítmico. __________ 1 Conferir, por todos, SCHAEFER, Fernanda. Uso de healthbots para a triagem de pacientes em unidades públicas de saúde de urgência e emergência: pensar antes de implantar. In: EHRHARDT JR., Marcos; CATALAN, Marcos; NUNES, Cláudia Ribeiro Pereira (coord.). Inteligência artificial e relações privadas: relações existenciais e a proteção da pessoa humana. Belo Horizonte: Fórum, 2023, v. 2, p. 349-368. 2 Sobre o tema, conferir os estudos de: GOGIA, Shashi. Rationale, history, and basics of telehealth. In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 11-34; YENGAR, Sriram. Mobile health (mHealth). In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 277-294; JOHN, Oommen. Maintaining and sustaining a telehealth-based ecosystem. In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 127-144. 3 FONG, Bernard; FONG, A. C. M.; LI, C. K. Telemedicine technologies: Information technologies in Medicine and Telehealth. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2011, p. 171-195. 4 SCHAEFER, Fernanda. Proteção de dados de saúde na sociedade de informação: a busca pelo equilíbrio entre privacidade e interesse social. Curitiba: Juruá, 2010, p. 17. 5 TOPOL, Eric. The patient will see you now: The future of Medicine is in your hands. Nova York: Basic Books, 2015, p. 3-14. 6 FRAJHOF, Isabella Z; MANGETH, Ana Lara. As bases legais para o tratamento de dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2020, p. 85 et seq. 7 LATIFI, Rifat; DOARN, Charles. Incorporation of telemedicine in disaster management: Beyond the Era of the Covid-19 Pandemic. In: LATIFI, Rifat; DOARN, Charles; MERRELL, Ronald (ed.). Telemedicine, telehealth and telepresence. Cham: Springer, 2021, p. 53. 8 CAVET, Caroline Amadori; SCHULMAN, Gabriel. As violações de dados pessoais na telemedicina: tecnologia, proteção e reparação ao paciente 4.0. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 145-174. 9 Cf. WINOGRAD, Terry. Understanding natural language. Cognitive Psychology, Londres, v. 3, n. 1, p. 1-191, 1972.. 10 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Telemedicina e inteligência artificial: breve panorama de seus principais desafios jurídicos. In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. (coord.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 145-146. 11 NOGAROLI, Rafaella; NALIN, Paulo. Responsabilidade civil do médico na telemedicina durante a pandemia da Covid-19 no Brasil: a necessidade de um novo olhar para a aferição da culpa médica e da violação do dever de informação. In: PINHO, Anna (coord.). Discussões sobre direito na era digital. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2021, p. 682. Comentam: "(...) dada a complexidade do diagnóstico em consultas realizadas à distância, caso um litígio envolvendo discussão sobre erro médico em telemedicina venha a ser judicializado no Brasil, uma das maiores dificuldades para o magistrado será a análise do padrão diligente de conduta médica exigível no caso concreto". 12 GERKE, Sara. Health AI for good rather than evil? The need for a new regulatory framework for AI-based medical devices. Yale Journal of Health Policy, Law, and Ethics, New Haven, v. 20, n. 2, p. 433-513, 2021, p. 443-444. 13 PAGALLO, Ugo. The laws of robots: Crimes, contracts, and torts. Law, governance and technology series, v. 10. Cham/Heidelberg: Springer, 2013, p. 84.
Sistemas de IA e seus respectivos algoritmos influenciam uma grande parte das decisões públicas e privadas que afetam direta ou indiretamente nosso dia a dia. Algoritmos já são empregados para atividades tão variadas como o auxílio a diagnósticos médicos e a moderação da liberdade de expressão em redes sociais. Esses sistemas também influenciam decisões relevantes como a concessão de crédito, a avaliação de candidatos a emprego, a gestão de serviços estatais, como o acesso a benefícios sociais, o direcionamento da vigilância policial, o controle de fronteiras, e a administração da justiça, podendo afetar, inclusive, a privação de liberdade de indivíduos sujeitos à investigação criminal.  Embora as decisões, predições e recomendações dos algoritmos possam levar a uma maior eficiência e, por vezes, precisão, no desempenho das mais variadas atividades, a aplicação desses sistemas pode violar direitos individuais e coletivos, diante da inerente opacidade de determinados sistemas de IA, e seu potencial de discriminação de grupos já marginalizados socialmente. Tendo em vista os impactos sistêmicos que aplicações de IA e seus respectivos algoritmos podem gerar às relações sociais como um todo, mostra-se urgente o desenvolvimento de mecanismos regulatórios para que os riscos da inteligência artificial e da automatização sejam acessados e potencialmente mitigados, antes que essas tecnologias sejam implementadas e comercializadas. É neste sentido que mecanismos de prestação de contas de sistemas de IA têm sido propostos, sendo a avaliação de impacto algorítmico um destes instrumentos, conforme veremos em seguida. O que é a Avaliação de Impacto Algorítmico (AIA)? A avaliação de impacto algorítmico (AIA) é um instrumento que vem sendo cada vez mais recomendado por acadêmicos e formuladores de políticas públicas, no intuito de estimular uma reflexão sobre as consequências sociais e éticas dos sistemas de IA e promover uma aplicação segura e responsável dessa tecnologia. Embora ainda esteja em estágio inicial de formulação teórica e regulatória, a AIA vem sendo concebida como um instrumento essencial para avaliar previamente os riscos de sistemas algorítmicos aos direitos humanos e, assim, viabilizar uma prestação de contas por parte dos agentes responsáveis por seu desenvolvimento e sua implementação. Muito embora a AIA seja um instrumento regulatório recente, ela tem origem em processos de avaliação de impacto já desenvolvidos em outros campos, como a avaliação de impacto à proteção de dados e a avaliação de impacto ambiental, que também visam avaliar e mitigar, preventivamente, potenciais impactos negativos decorrentes da exploração de atividades de risco. É recomendável, portanto, que iniciativas de regulamentação e implementação prática da AIA possam aprender com os princípios, erros e acertos já verificados nessas áreas. Conforme enunciado por Selbst (2021), iniciativas de regulamentação da AIA devem ter dois objetivos principais: "(1) exigir que as empresas considerem os impactos sociais [de sistemas algorítmicos] antecipadamente e trabalhem para mitigá-los antes do desenvolvimento, e (2) criem documentação de decisões e testes que possam apoiar a aprendizagem de políticas futuras"1. No que se refere ao conteúdo da AIA, relatório desenvolvido pelo Instituto de pesquisa Data & Society (2021) esclarece que ela deve buscar responder três questões principais: "o que um sistema faz; quem pode fazer algo sobre o que o sistema faz; e quem deve tomar decisões sobre o que o sistema pode fazer"2. O objetivo da AIA é, portanto, prover transparência sobre o funcionamento e finalidades do sistema algorítmico, documentar os impactos e medidas de prevenção de danos, e identificar seus responsáveis, viabilizando posterior fiscalização pela autoridade competente e, desejavelmente, pela própria sociedade. Devido ao potencial da AIA em prevenir e mitigar ameaças futuras que sistemas algorítmicos possam causar aos direitos humanos, ela tem sido considerada como um elemento de governança essencial de um modelo de regulação de IA baseado em risco ("risk-based approach"), que vem sendo adotado por diversas jurisdições. A tendência, portanto, parece ser pela crescente inclusão da AIA, tanto em iniciativas regulatórias já em vigor, como é o caso da Directive on Automated Decision-Making (2019), do Canadá3, como em propostas ainda em discussão, como o AI Act, na União Europeia, e um dos projetos de lei (PL) brasileiro que tratam sobre o tema, o PL 2.338/2023, do qual trataremos a seguir.  O  PL 2.338 e o instrumento de avaliação de impacto algorítmico O PL 2.338/2023 é o resultado do trabalho da Comissão de Juristas responsável por subsidiar a elaboração de um substitutivo sobre inteligência artificial no Brasil (CJSUBIA), que foi constituída pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em fevereiro de 2022. A referida Comissão foi instituída para apresentar um substitutivo ao PL 21/2020, o primeiro projeto de lei no Brasil a propor um Marco Legal da Inteligência Artificial. Este PL, contudo, foi objeto de diversas críticas por parte da comunidade acadêmica e sociedade civil, dentre elas, sobre o seu texto majoritariamente principiológico, sem a definição de deveres e responsabilidades por parte dos fornecedores da tecnologia, e sem previsão de mecanismos fiscalizatórios, sancionatórios, coercitivos, e de governança. Diante da robusta proposta de substitutivo apresentada pela CJUSBIA, fruto do intenso trabalho da Comissão, o Senador Rodrigo Pacheco optou em converter o então substitutivo em um novo projeto de lei, que se tornou o PL 2.338/2023. O texto do referido PL pretendeu desmistificar o pretenso trade-off entre uma regulação que garante e protege direitos ou uma regulação que incentiva o desenvolvimento econômico e a inovação, a partir do estabelecimento de uma abordagem baseada em riscos e em direitos, por meio de regulação assimétrica. Isto é, conforme o nível de risco de um sistema de IA, maior será a carga obrigacional dos agentes regulados. O PL cria, portanto, dois níveis de risco de sistemas de IA: os de risco excessivo e de alto risco, reconhecendo também a existência de um terceiro grupo, de menor risco, não classificado nem como de risco alto nem como de risco excessivo. Dependendo da classificação do nível do risco, são definidas obrigações mais ou menos exigentes para cada um dos sistemas. Enquanto sistemas de risco excessivo são proibidos pelo PL, em consonância com o princípio da precaução, os sistemas de alto risco devem cumprir com obrigações de governança gerais (aplicáveis para todos os sistemas de IA, independentemente do risco) e específicas. Uma das obrigações específicas para estes sistemas de alto risco é justamente a avaliação de impacto algorítmico. Considerando as experiências internacionais em que se verifica o protagonismo da avaliação de impacto como ferramenta de governança e prestação de contas de sistemas de IA,4 o PL 2.338/2023 previu uma seção específica (Seção III do Capítulo IV) para sua procedimentalização mínima, destrinchada ao longo dos artigos 22 ao 26.O primeiro artigo sobre a AIA, o art. 22, estabelece que a sua realização será obrigatória para todos os sistemas que forem considerados de alto risco pela avaliação preliminar. Sobre este ponto é importante ressaltar a diferença entre a avaliação preliminar, indicada no PL em seu artigo 13, e a avaliação de impacto algorítmico prevista no art. 22 e seguintes. A avaliação preliminar se refere à análise prévia que deve ser feita pelo fornecedor antes de um sistema de IA ser colocado em mercado ou em utilização. Esta primeira avaliação visa apenas classificar o seu grau de risco, de acordo com as definições de IA de risco excessivo e alto risco previstas nos arts. 14 e 17, respectivamente, a fim de averiguar quais são as obrigações que deverão ser observadas pelo fornecedor. Como esta avaliação é, a princípio, uma atividade autorrealizada pelos próprios agentes regulados, o § 2º do referido artigo determina o registro e documentação da avaliação preliminar para fins de responsabilização e prestação de contas no caso de o sistema não ser classificado como de risco alto naquele momento. Inclusive, há a possibilidade de a autoridade competente determinar a reclassificação (§3º) e até a imposição de eventuais penalidades em caso de avaliação preliminar fraudulenta, incompleta ou inverídica (§4º). É por meio do compartilhamento da avaliação preliminar e, posteriormente, da AIA com a autoridade competente que esta tomará ciência sobre a existência de um sistema de alto risco (art. 22, parágrafo único). Assim, uma vez que o sistema de IA é enquadrado como de alto risco pela avaliação preliminar, surge a obrigação de elaboração da AIA, procedimentalizada no art. 24. O projeto prevê uma metodologia com, ao menos, quatro etapas, formada por: preparação, cognição do risco, mitigação dos riscos encontrados e monitoramento. O §1º elenca o conteúdo mínimo dessa avaliação, o que inclui uma explicação sobre a lógica de funcionamento do sistema; o registro dos riscos conhecidos e previsíveis à época em que o sistema foi desenvolvido, assim como os riscos que podem razoavelmente dele se esperar (em atenção ao princípio da precaução, reforçado no §2º, do art. 24); benefícios do sistema; probabilidade de consequências adversas (incluindo quantas pessoas poderiam ser afetadas) e gravidade destas consequências adversas. Como a AIA possui uma finalidade não apenas de avaliação, mas de prevenção de danos, o §1º determina que também sejam registradas as medidas de mitigação e testes adotados pelos agentes de inteligência artificial para prevenir riscos, especialmente àqueles relacionados a  "impactos discriminatórios".. Também devem ser registradas a realização de treinamento e ações de conscientização dos riscos associados ao sistema, bem como as medidas de transparência adotadas, no sentido de informar o público sobre esses riscos. Quando um sistema de alto risco gerar impactos irreversíveis ou de difícil reversão, a AIA deverá levar em consideração, também, as evidências incipientes, incompletas ou especulativas, em atenção ao princípio da precaução (§2º, do art. 24). Ou seja, é necessário um esforço adicional em elucubrar tais riscos, e indicar as medidas que foram e podem ser adotadas para mitigá-los. Não sendo possível eliminar ou mitigar de maneira substantiva os riscos identificados na AIA, o uso do sistema de IA será descontinuado (art. 21 § 2º). Caso seja identificado um risco inesperado a direitos de pessoas naturais de um sistema de IA já colocado no mercado, a autoridade competente e as pessoas afetadas deverão ser comunicadas (art. 24, §5º). No que se refere aos atores competentes para a condução da AIA, o projeto determina que ela deverá ser realizada por profissional ou equipe de profissionais que possuam conhecimentos técnicos, científicos e jurídicos, portanto, com perfil multidisciplinar, e com independência funcional (art. 23). A autoridade competente poderá regulamentar que a realização ou auditoria da AIA possa ser realizada por agentes externos ao fornecedor (art. 23, parágrafo único). É curioso que esta seja a única menção do PL sobre a possibilidade de realização de auditoria, considerando que esta tem sido uma medida recorrentemente defendida pela doutrina5 para realizar uma análise mais técnica de sistemas de IA, à luz dos princípios da transparência e prestação de contas. Apesar de o projeto de lei definir metodologia e conteúdo mínimo da AIA, alguns pontos ficam em aberto e dependerão de posterior definição pela autoridade competente, a ser designada pelo Poder Executivo (art. 32). Por exemplo, o §3º do art. 24 determina que a autoridade poderá estabelecer outros critérios e elementos a serem considerados na AIA, incluindo a participação de diferentes grupos sociais afetados, de acordo com o risco e porte econômico do fornecedor. Esse dispositivo chama atenção por duas questões principais: primeiro, a possibilidade da autoridade competente estabelecer obrigações adicionais na AIA para fornecedores de maior porte, aliviando a carga obrigacional dos de menor porte. Segundo, por levantar a necessidade de participação social nos processos de avaliação de impacto, o que, além, de ser uma exigência obrigatória em outras áreas, como na avaliação de impacto ambiental, vem sendo recomendada pela doutrina como uma forma de propiciar um controle social sobre esses sistemas e de permitir uma avaliação mais completa dos impactos, a partir de múltiplas perspectivas. No que tange às atribuições da autoridade competente, ela poderá não apenas estabelecer obrigações adicionais às já previstas no projeto, como também deverá regulamentar os procedimentos e requisitos para a elaboração da AIA (art. 32, VI, b), dentre eles, a periodicidade de atualização das avaliações de impacto (obrigação indicada no § 4º do art. 24 e reforçada pelo §1º do art. 25). Considerando que os sistemas de IA são complexos e com grande potencial evolutivo em curto prazo, é essencial que a AIA seja um processo iterativo contínuo, e realizado ao longo de todo o ciclo de vida dos sistemas, conforme determina o art. 25. De acordo com esse artigo, as atualizações periódicas são necessárias e devem contar com a participação pública, a partir de procedimento de consulta a partes interessadas, ainda que de maneira simplificada (§2º). Causa estranhamento, no entanto, o fato da participação ser exigida pelo projeto apenas na etapa de atualização da AIA, e não desde o início. Tal participação é essencial, especialmente quando o fornecedor do sistema for órgão ou ente do poder público, para que as avaliações tenham um caráter democrático, dotando o seu processo e resultado de legitimidade, permitindo a participação dos grupos potencialmente impactados, já que, em certos contextos, eles podem ser os mais adequados para relatar os  riscos reais do sistema. Ademais, dado o papel das avaliações de impacto enquanto ferramenta de prestação de contas, o PL 2.338 prevê a obrigatoriedade de publicação de um  conteúdo mínimo de suas conclusões, resguardados os segredos industrial e comercial (art. 26). Esta previsão é importante, pois aponta para a possibilidade de que os sistemas de IA de alto risco possam ser também avaliados e fiscalizados por toda a sociedade, que poderão acessar por meio da base de dados pública as informações sobre as IAs de alto risco e suas respectivas AIAs (art. 43). Contudo, a ressalva da proteção aos segredos industrial e comercial pode servir como uma barreira jurídica relevante para justificar que fornecedores deixem de compartilhar informações importantes sobre seus sistemas de IA, mantendo a caixa-preta fechada. A partir da análise realizada neste artigo, pudemos identificar os principais parâmetros indicados pelo PL 2338/2023 para a regulamentação da AIA no Brasil. No entanto, o projeto ainda possui um longo caminho legislativo a trilhar. Assim como ocorreu com outros projetos de lei que tratam de temas ligados à tecnologia, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e o Marco Civil da Internet, é importante que a proposta ainda seja objeto de debates e consultas públicas para amadurecer o seu conteúdo, além de contemplar outras perspectivas sociais, técnicas e culturais. Tendo em vista a importância da AIA para uma governança precaucionária e responsável da IA, espera-se que o texto futuramente aprovado possa efetivamente institucionalizar esse instrumento, de maneira a garantir uma devida avaliação de riscos, prestação de contas e mitigação de danos por parte dos agentes de inteligência artificial. __________ 1 Tradução livre do original: "An AIA regulation has two main goals: (1) to require firms to consider social impacts early and work to mitigate them before development, and (2) to create documentation of decisions and testing that can support future policy-learning". SELBST, A. D. An Institutional View of Algorithmic Impact Assessments. Harvard Journal of Law & Technology, v. 35, n. 1, 2021. 2 MOSS, Emanuel et. al. Assembling Accountability: Algorithmic Impact Assessment for the Public Interest. Jul. 2021, p. 5. 3 Disponível aqui. 4 Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre inteligência artificial no Brasil  (CJSUBIA). Relatório Final. Senado Federal, dez. 2022. p. 11 e 12. 5 Ver por todos: PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press, 2015.
As tragédias ambientais e humanitárias derivadas das barragens de mineração no Brasil, e especialmente em Minas Gerais, ficarão eternamente tracejadas na história, no Direito, na sociedade como um todo. Entretanto, o caráter dos desastres ambientais, que se sucedem e se colocam em um patamar múltiplo de risco, leva a um constante risco de gestão e análise. Este risco é justamente o esquecimento. O período de chuvas se aproxima, e a par dos desafios próprios do enfrentamento de vulnerabilidades sociais, técnicas, ambientais, deve-se relembrar e tematizar as vulnerabilidades jurídicas. As vulnerabilidades jurídicas são aquelas que contribuem para fragilidades sistêmicas que comprometem o processo de enfrentamento ao risco de desastres, seja em escala preventiva, seja quanto à resposta dos efeitos em si da ocorrência de situações de colapso ou risco de colapso de barragens de mineração. A sucessão de eventos de desastres, assim como de problemas político-sociais, ameaça de forma constante a densidade da discussão de fortalecimento em si de institutos jurídicos para se fazer frente aos desastres. Em outras palavras, ao se esquecer de continuar a refletir sobre o fortalecimento de institutos jurídicos em face do risco das barragens de mineração, o Brasil compromete negativamente situações que estão ligadas a vulnerabilidades jurídicas. Isso significa a fragilização de mecanismos normativos que contribuiriam seja para a prevenção, seja para a resposta aos desastres ligados a barragens de mineração. No ano de 2022, os Deputados Federais Rogério Correia, Helder Salomão e Padre João apresentaram o PL 2566. O PL visa alterar a lei 9.605/98, lastreando os recursos de multas ambientais decorrentes de desastres para com o próprio processo de resposta em face das situações de risco concretizado. A proposição sem dúvida fortalece o processo de gestão de risco e combate vulnerabilidade jurídica do sistema, a prever que a aplicação de no mínimo 90% (noventa por cento) de recursos oriundos de multa ambiental sejam destinados a fundo de aplicação na região atingida, sem prejuízo da obrigação de reparação integral. O projeto de lei foi apensado ao PL 6370, que trata das destinações gerais de multa ambiental, não tendo sido posto em tramitação posterior. Não há, pelo que se verifica, perspectiva de votação da salutar proposta. No ano de 2023, o Deputado Federal Pedro Aihara apresentou o PL 1425/23. O PL visa à adoção de medidas de impulso para que a gestão e análise de riscos, além de fiscalização, sejam efetivamente implementados em municípios que possuam barragens classificadas como de médio e alto risco ou de médio e alto dano potencial associado, ou mesmo ocupações em áreas de alto risco de desastres. Almeja-se que haja eficácia e contundência do Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil. A previsão fortalece a conjuntura de prevenção e gestão de risco, e, portanto, robustece o quadro jurídico de prevenção e controle de desastres. Entretanto, não obstante toda a relevância da previsão, o PL ainda aguarda designação de relatoria e andamentos na Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional. O resfriamento dos debates parlamentares, sem que sejam os projetos de lei em referência efetivamente levados à análise e votação, é preocupante em termos de redução de vulnerabilidades e contínua assimilação da tarefa protetiva em face da ocorrência de catástrofes. A Estratégia Internacional de Redução de Risco de Desastres - EIRD, elaborada no bojo da Organização das Nações Unidas, visa ao aumento da resiliência em face dos riscos além de fortalecer os planejamentos de redução e mitigação das vulnerabilidades. A configuração normativa brasileira, presente na Lei n. 12.608/12, prevê a gestão de risco com prevenção e mitigação de vulnerabilidades. O artigo 3º da lei, que rege a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC, estabelece ações necessárias de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação em face dos riscos e da concretização dos desastres. A lei passou por revisão de regulamentação, por meio do decreto 11.219/22 e pelo recente decreto 11.655/23. Este último, datado de 23 de agosto, estabelece que a análise técnica dos requerimentos de transferência de recursos para a execução de ações de prevenção será realizada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Os parâmetros para execução da análise técnica são o enquadramento da proposta como ação de prevenção em área de risco de desastres; a avaliação da relevância das ameaças e das vulnerabilidades que indiquem o risco de desastres; e o custo global estimado para a execução da proposta. Sem dúvidas, o aprimoramento e previsões expressas de base de transferência de recursos financeiros para gestão de riscos, redução de vulnerabilidades e execução de obras e serviços voltados a prevenir ou mitigar os riscos de desastres é um ganho estrutural. Entretanto, é necessário o fortalecimento de bases jurídicas de gestão do risco e mitigação das conjunturas sistêmicas que contribuem para as situações ligadas à ocorrência de catástrofes, tanto antropogênicas quanto naturais, mas com contribuição humana em seus níveis de efeitos. A estratégia de gestão de riscos no Brasil em grande parte se liga a uma perspectiva financeira de aplicação de recursos. Evidentemente, esta é uma face relevante da gestão de risco. Entretanto, é necessário pensar e refletir sobre as vulnerabilidades jurídicas e culturais que contribuem para com os desastres, por vezes imprimindo mecanismos de desalinhamento entre o princípio do poluidor-pagador, em suas faces econômica e jurídica, e os fatores que contribuem com práticas de fragilização seja da prevenção, seja da reconstrução. Fortalecer os dois elos da gestão de risco significa redução das vulnerabilidades jurídicas em prol da eficiente contenção de catástrofes e seus efeitos. Tematizar a vulnerabilidade jurídica e focar estratégias legislativas para sua redução implica fortalecer políticas públicas nos diversos elos do ciclo dos desastres. No Brasil, o Relatório da 1ª Conferência Nacional de Defesa Civil e Assistência, realizada em 2010, indica uma dupla tipologia de vulnerabilidades. Fala-se em cultura de riscos de desastres e cultura de desastres. A cultura de desastres possui uma abordagem passiva, coliga-se a respostas em face do desastre ocorrido, ao atendimento das vítimas ou atingidos e a medidas de reconstrução. Após treze anos, ainda se mantém forte a cultura desastres no Brasil. É preciso superá-la com a cultura de riscos de desastres. Nesta última, adota-se uma visão amplificada, correlacionando causas e consequências, dimensões normativas e sustentação das políticas públicas em suas diversas aplicações em cada uma das fases da gestão do ciclo. O quadro referenciado pela existência de projetos de lei pendentes de apreciação demonstra a existência de relevantes proposições voltadas para a gestão de riscos e redução de vulnerabilidades, tanto técnicas quanto jurídicas. É necessário que proposições de fortalecimento da cultura de risco de desastres sejam efetivamente integradas ao ordenamento jurídico brasileiro. A análise e o planejamento em face de riscos de desastres devem prosseguir continuamente. O distanciamento de tempo do último desastre é um risco cultural. Risco cultural que remete ao potencial de esquecimento quanto a ameaças e potencialidades de dano. É necessário que Poder Executivo, Poder Legislativo e a própria sociedade mantenham a continuidade de reforço de gestão quanto aos potenciais de vulnerabilidade que se alinham à ocorrência de desastres. Reduzir as vulnerabilidades, seja qual for sua categoria, é reduzir o risco de concretização de um desastre. O Brasil não pode (de novo) se esquecer de suas barragens.