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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Texto de autoria de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Eis que foi sancionada, com muitos vetos, pelo presidente da República e publicada na sexta-feira, dia 12 de junho, a lei 14.010/2020, que institui regime jurídico emergencial e transitório (RJET) das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia, em meio ao feriado de Corpus Christi, e no último dia do prazo assinalado para sanção1. O projeto era aguardado com notável interesse pela comunidade jurídica e sua tramitação fora acompanhada de perto pelos meios acadêmicos e instituições científicas dedicadas ao direito privado, que não deixaram de apresentar contribuições e sugestões de aperfeiçoamento de seu texto, resultantes de incansáveis debates em meio digital - para os quais certamente contribuiu o ambiente de isolamento social decretado para conter o avanço exponencial da Covid-19. Seus dispositivos, sob tais circunstâncias, eram já de todos conhecidos e, um por um, vinham sendo citados como embasamento de artigos científicos e, inclusive, como fundamentação de decisões judiciais2. Causou enorme perplexidade, portanto, o veto de nada menos do que 8 artigos no total de 21 que compõem a normativa transitória, ou seja, quase 40% do novo corpo legal. Certamente, a repercussão da extensão do veto, sua eventual derrubada pelo Congresso Nacional, e bem assim o conteúdo final sancionado, diante da relevância dos assuntos tratados, serão objeto de estudos aprofundados já a partir dos próximos dias. A coluna de hoje limita-se, no entanto, a apontar um grave problema associado à disciplina da prescrição (art. 3º) e a perda da chance de solucioná-lo ainda no âmbito do processo legislativo do RJET. Pontue-se que preocupação idêntica suscita a disciplina da suspensão dos prazos da usucapião (art. 10), mas seu desenvolvimento escapa aos lindes deste espaço. Diga-se ainda, em breve parêntese preliminar, que o tema da prescrição passou a ocupar posição de destaque no seio da responsabilidade civil contratual e aquiliana, seja pela gigantesca redução dos prazos operada pelo Código Civil, seja pela possiblidade de sua decretação de ofício pelo magistrado, seja pelas cambiantes interpretações do Superior Tribunal de Justiça em torno do prazo da responsabilidade negocial, dentre outras razões. A suspensão dos prazos nominados no parágrafo anterior em virtude da lastimável pandemia é medida de inegável acerto. Não se duvida disso, tanto assim que, de modo geral, foi muito bem recebida pela doutrina do direito civil em diferentes manifestações por todo o país. E, não à toa, repete o que se praticou em experiências estrangeiras que precederam o Brasil no rumo da evolução da peste (Portugal e Espanha, por exemplo, adotaram política legislativa análoga3). Mas, retomando, qual o problema com o teor do art. 3º (e do art. 10, também) se suspender prazos se revela, afinal, medida adequada ao quadro de calamidade pública subitamente instaurado? A rigor, nenhum. A suspensão projetaria seus efeitos a partir da data da vigência da lei e o faria até o dia 30 de outubro. Aqui, cumpre enfatizar que o problema não está na redação da lei em si, mas no tempo (longo, longuíssimo nas circunstâncias) de tramitação do processo legislativo. Sufragou o legislador a percepção de que a lei nova não poderia, por força de ditame pétreo (Constituição, art. 5º, XXXVI, c/c art. 60, §4º, IV), retroagir para alcançar direitos adquiridos representados (i) pela liberação do devedor beneficiado com a consumação do prazo prescricional e (ii) pela aquisição da propriedade em favor do possuidor que completa o tempo legal que lhe permite usucapir. De maneira que, não podendo agasalhar pretensões contra fatos consumados e situações estabilizadas antes de sua entrada em vigor, teria andado bem o legislador, numa primeira análise, em fazer coincidir o termo a quo da suspensão com o início de sua vigência. O problema só nasce - e, pior, se desenvolve para além do esperado - por conta da demora na tramitação do projeto no Congresso, em especial na Câmara dos Deputados, e na presidência da República, como já assinalado4. Dito fato superveniente afeta sobremaneira a posição jurídica de eventuais credores que, prejudicados com os efeitos da crise sanitária e suas medidas de contenção, não logram interromper o fluxo dos períodos extintivos/aquisitivos em seu desfavor. É de se supor que, de fato, a capacidade defensiva de seus interesses sofra restrições decorrentes da proibição de circulação nas cidades e da própria paralisação da atividade econômica, a influir na coleta de elementos probatórios, contratação de advogados, organização da tese jurídica, dedução de pretensões em juízo etc. Sem falar que, em meio ao surto pandêmico, acabe-se por priorizar, como natural, saúde e segurança em detrimento das relações patrimoniais. Decorre exatamente daí o problema da demora no curso do processo legislativo: é que, apesar de tudo, os prazos materiais continuavam a fluir, solapando direitos, potestades e pretensões. Escapou, no entanto, ao legislador a ideia de que o projeto pudesse tramitar em ritmo incompatível com a celeridade que seu próprio objeto se dispôs a consagrar, vale dizer, a implantação de regime jurídico emergencial e transitório para as relações privadas. Veja-se: os efeitos fáticos da pandemia e seu marco jurídico inicial, com decretação de calamidade pública, se iniciam a partir do mês de março de 2020. Então, da associação da demora da instituição do regime emergencial com o agravamento do ciclo da patologia poderão resultar (evitáveis) injustiças. A rigor, para evitar a iniquidade do deslocamento do termo inicial da suspensão para os idos de junho, poderia o Congresso ter lançado mão do expediente descrito a seguir neste artigo a fim de, ao menos, minimizar os danos produzidos pela excessiva demora para aprovação do comando normativo em questão. Até porque a postergação da vigência foi tornando paulatinamente mais tormentosa a questão, dada a quantidade, que se supõe expressiva, de prazos prescricionais que se consumavam no período de tramitação do projeto de lei. Por certo as pretensões já fulminadas pela prescrição nesse interregno não poderiam ser objeto do regime jurídico transitório, vez que se trata de direito adquirido, inalcançável retroativamente pela nova lei5. De outro giro, há as pretensões que surgiram antes ou durante a pandemia de Covid-19 e cujos prazos prescricionais ainda não se consumaram. Nesses casos, não se está diante de direito adquirido, mas de mera expectativa de direito, razão pela qual não há qualquer óbice à interferência legislativa para aumentar, diminuir ou suspender prazos6. À vista de tais fatores, o melhor caminho, nos parece, seria separar duas situações, quando do momento da vigência da lei nova: - prazos prescricionais em curso; - prazos prescricionais consumados. A solução que projeta efeitos a partir dessa perspectiva dual decorre das melhores teorias de direito intertemporal, de longa tradição no direito civil brasileiro (Clovis Bevilaqua, Eduardo Espínola, Luiz Carpenter, Reynaldo Porchat7), a sopesar, em lógica ponderativa, entre a segurança jurídica proveniente da lei antiga e a justiça que emana da melhor proposição normativa da lei nova (em sentido semelhante, na experiência europeia clássica, destacam-se as lições de Gabba, Roubier e Windscheid). Como resultado, não há fundamento jurídico que obstaculize se considerassem suspensos desde 20 de março os prazos não consumados na data da entrada em vigor da lei nova. Veja-se a dicção do texto em análise e compare-se com a proposta de redação: Art. 3º - Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020. Art. 3º (em hipotética redação) - Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, entre os dias 20 de março de 2020 e 30 de outubro de 2020, ressalvados os prazos consumados antes da vigência desta Lei. Como se vê, a elucubração aqui veiculada consiste, em síntese, na alteração do termo inicial dos impedimentos ou suspensões dos prazos prescricionais para o dia 20 de março de 2020, em lugar da contagem do hiato "a partir da vigência desta Lei". Com essa precaução se teria prevenido o significativo esvaziamento da utilidade prática da disposição em decorrência da morosidade do processo legislativo e maior número de interesses dignos de tutela teria sido preservado, assegurando tempo útil de atuação defensiva ao titular da situação jurídica afetada. Atenderia, assim, aos imperativos de justiça e isonomia substancial, levando em conta a explosão dos números de atingidos pela doença em todo o território nacional e as dificuldades mencionadas em termos de capacidade defensiva de direitos, a prejudicar ou impedir as ações de pessoas momentaneamente prejudicadas em virtude das medidas de enfrentamento da Covid-19. A alternativa sugerida para termo inicial do período suspensivo - 20 de março de 2020 - conferiria, inclusive, melhor sistematicidade às previsões legais, dado que a referida data é definida no artigo 1º, parágrafo único, como o termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus, e, ainda, encontra-se mencionada como marco temporal nos artigos 12, par. único; 14 caput e § 1º. A ressalva ao final, para conferir tratamento diferenciado aos prazos já consumados, é de todo necessária tendo em vista a garantia de direito adquirido do devedor beneficiado com o escoamento completo do prazo. *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado, pareceirista em temas de Direito Privado. __________ 1 Conforme se retira do ofício nº 549 do Senado Federal, do dia 21 de maio de 2020 e disponível aqui, nessa data o projeto de lei foi enviado à sanção presidencial. Desse modo, o prazo de 15 dias úteis para veto da presidência, previsto no artigo 66, § 3º, da Constituição encontraria seu fim em 10 de junho com a consequente sanção tácita do projeto de lei. Exatamente neste dia 10/6, o presidente da República sancionou a lei, vetando vários de seus dispositivos. 2 A título de exemplo, a 36ª Câmara de Direito Privado do TJSP afastou a possibilidade de a administração de condomínio edilício impedir a realização de obras em unidade autônoma, albergando-se, dentre outros fundamentos, no argumento de que o inciso I do artigo 11 do então projeto de lei restringia "a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação pelo coronavirus (Covid-19), mas respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos. Mais ainda, o parágrafo único do referido artigo dispõe que a vedação não se aplica às obras 'de natureza estrutural ou realização de benfeitorias necessárias', o que compreende as obras no interior das unidades autônomas". (TJSP, 36ª C.Dir.Priv., AI 2098717-18.2020.8.26.0000, Rel. Des. Abrantes Theodoro, julg. 19.05.2020). 3 Em Portugal, os prazos prescricionais e decadenciais suspenderam-se desde a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março de 2020, conforme previsão expressa de seu artigo 7º, item 3, que possui a seguinte redação: "A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos". Na Espanha, a suspensão dos prazos se deu a partir do dia 14 de março, com a publicação do Real Decreto 463/2020, que, em sua quarta disposição adicional estabelece: "Los plazos de prescripción y caducidad de cualesquiera acciones y derechos quedarán suspendidos durante el plazo de vigencia del estado de alarma y, en su caso, de las prórrogas que se adoptaren". 4 "Como se observa, a norma projetada não pretende ter efeito retroativo - e, (...), ao menos quanto à prescrição e a decadência, nem poderia tê-lo. Esse fato, associado à demora na aprovação do projeto de lei, faz temer que seu escopo acabe por se inviabilizar". (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Reflexões sobre direitos e pretensões, vistos do berghof: ou, prescrição e decadência na "Montanha Mágica" da covid-19. Disponível aqui). 5 "A proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada tem, no Brasil, status constitucional, na previsão expressa do art. 5°, XXXVI, já transcrito. Mais que isso, por sua condição de direito individual, constitui cláusula pétrea, insuscetível de supressão até mesmo por emenda constitucional (CF, art. 60, § 4º, IV). Como já assinalado, na maioria dos países esta garantia consta de legislação ordinária - o que admite sua derrogação por legislação superveniente - e não da Constituição. Isso significa, portanto, que a importação de doutrina e jurisprudência estrangeiras sobre o assunto deve ter o cuidado de observar essa diferença essencial entre os sistemas jurídicos". (BARROSO, Luís Roberto. Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. Disponível aqui). 6 Esse é o entendimento que se observa tanto na jurisprudência quanto na doutrina pátrias: "A prescrição em curso não origina direito adquirido, podendo seu prazo ser aumentado ou reduzido por norma posterior. No entanto, em prol da segurança jurídica, não se pode fazer com que o termo inicial do prazo prescricional reduzido retroaja para uma data anterior à vigência da nova lei. O quinquênio prescricional deve computar-se desde a vigência da Lei 8.240/92". (STJ, 3ª T, REsp 1085903/RS, Relª. Minª. Nancy Andrighi, julg. 20.08.2009). "O credor tem, desde o início, uma situação jurídica complexa, que é adquirida quanto à existência do crédito, mas não quanto à duração da pretensão, razão pela qual lei posterior pode introduzir nesta as modificações. Dito de outro modo, o devedor não tem direito adquirido a se tornar inadimplente a termo". (CORREIA, Atala. Prescrição e decadência: entre passado e futuro. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 122. 7 De acordo com Reynaldo Porchat, aplica-se à prescrição em curso "A lei nova que abrevia o tempo prescripcional estabelecido pela lei anterior, de modo que a prescripçao se completa uma vez decorrido o menor prazo estabelecido por aquella lei, computado, também por equidade, o tempo decorrido no domínio da lei antiga, salvo se fôr brevíssimo o tempo que faltar depois de publicada a nova lei, ou se, no dia da publicação, já estiver decorrido todo o prazo exigido por esta, pois, nestes casos, a prescripção poderia produzir surprezas que o direito não admittiria, e poderia dar-se mesmo o absurdo de realizar-se uma prescripção em um prazo menor do que o exigido pela lei vigente ao tempo em­ que ella se verificou". (PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp, 1909, pp. 51-52). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Michael César Silva, Caio César do Nascimento Barbosa e Glayder Daywerth Pereira Guimarães Com a crise mundial relativa à pandemia do Coronavírus, a maioria dos países vislumbrou como solução eficaz para contenção de novos casos da doença, a adoção de medidas de distanciamento social, quarentenas e lockdowns. Com locais públicos e privados interditados e aglomerações proibidas, um fenômeno mundial foi fortalecido nesses primeiros meses de 2020: as chamadas lives realizadas por intermédio das redes sociais. O formato não é inédito, sendo que, em verdade, estava em franca ascensão nos últimos anos. Contudo, com a premente necessidade de distanciamento social como forma de combate a pandemia, as transmissões ao vivo impulsionaram um sucesso de enormes proporções, denominado de "era das lives", para descrever estas manifestações em tempos de Coronavírus. Destaca-se, que são vislumbradas em diversas mídias sociais, sendo as mais populares, o Instagram e o YouTube. De acordo com a revista EXAME, as buscas pelas lives no YouTube cresceram 4.900% no Brasil durante o período de quarentena1, as quais se converteram em eventos diários, em que as pessoas passaram a acompanhar de forma pontual as transmissões ao vivo dos artistas, popularizando-as. O YouTube, inclusive, criou a campanha "Fique em Casa e #Cante Comigo", proporcionando uma coletânea de shows exibidos em tempo real, com diversos artistas. Os brasileiros são, em todo o mundo, a audiência que mais participou na era das lives, se sobressaindo no ranking das 10 maiores audiências de lives no YouTube, alcançando 7 de 10 posições2, sendo que a maioria conta com lives de cantores sertanejos. As lives sertanejas se demonstraram como meio altamente rentável, em que patrocinadores passaram a promover costumeiramente as mesmas, com a exibição de produtos ou serviços3, angariando, também, influenciadores digitais nas redes sociais para alavancar a promoção dos mesmos, conseguindo atrair público expressivo para estes "shows em casa". Na conjuntura posta, em que patrocinadores, agências, gravadoras e cantores uniram-se para viabilizar as transmissões ao vivo, a venda de produtos e serviços dos respectivos fornecedores aumentou, exponencialmente, bem como a popularidade dos cantores. Como exemplo, tem-se o caso do músico Gusttavo Lima, que alcançou a posição de cantor brasileiro mais seguido no Instagram após o sucesso de suas primeiras lives4, tendo maximizado sua notabilidade após episódio marcante, em abril de 2020, que culminou com a Representação Ética nº078/20 do CONAR, para análise das ações publicitárias envolvidas em suas lives. A Representação Ética nº 078/20 foi instaurada após dezenas de denúncias de consumidores ao CONAR, que, ao analisar, julgou pela necessidade de abertura por dois motivos: i) falta de identificação clara do público-alvo, uma vez que não possuía restrições a menores de idade; ii) influência ao consumo exagerado e irresponsável de bebidas alcoólicas, contrário ao anexo "P" do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP)5, que assevera a necessidade de responsabilidade social nos anúncios publicitários, que não devem induzir o exagerado ou irresponsável consumo de bebidas alcoólicas. O episódio foi suficiente para que o YouTube discutisse e reforçasse suas políticas de uso referentes às lives, atentando-se à sua responsabilidade civil como provedor de conteúdo sob a perspectiva do Marco Civil da Internet - lei 12.965/2014 - , atuando por meio da função preventiva, com intuito de mitigar eventuais ocorrências. Pouco tempo depois, a Representação Ética nº 81/20 foi instaurada em face da dupla sertaneja Bruno e Marrone, pelo motivo de influência ao consumo exagerado e irresponsável de bebidas alcoólicas. Nas referidas Representações, a patrocinadora das lives (AMBEV), também, fora acionada, pelo CONAR, contudo, se defendeu alegando não possuir qualquer responsabilidade em relação ao ocorrido, dado que os cantores sertanejos realizaram as condutas de forma volitiva, sem qualquer determinação da anunciante. O CONAR decidiu somente pela advertência aos cantores em ambos os casos, aceitando a alegação da patrocinadora de que os abusos ocorridos partiram de forma espontânea dos influenciadores, retirando-se uma questionável solidariedade dos anunciantes. Em razão dos eventos ocorridos, outros cantores redobraram a atenção necessária em relação a realização de novas lives. A Representação Ética nº 078/20 - relacionada a live do cantor Gusttavo Lima - apontou a necessidade de existência de responsabilidade social do cantor. Ao induzir o consumo desenfreado de bebidas alcoólicas, além de desrespeitar o anexo "P" do CBAP, o mesmo potencialmente induziu seus seguidores ao consumo exagerado (não foram raros, principalmente, no Instagram, "jogos" e "desafios" envolvendo bebidas alcoólicas durante as transmissões das lives), em uma época crítica em que a própria Organização Mundial da Saúde expressa preocupação pelo aumento do consumo de álcool nesse período em que as pessoas se encontram confinadas. A lei 9.294/1996, por sua vez, aponta uma série de recomendações que os anunciantes devem seguir na veiculação de publicidade que se refira a bebidas alcoólicas. Ainda que a época de promulgação da lei não existisse as mídias sociais, os dispositivos devem ser atualizados para o contexto contemporâneo, vez que as referidas mídias possuem forte apelo as crianças e adolescentes6. Constata-se, pelo estudo da temática, que a atuação dos referidos cantores/influenciadores apresenta-se nos termos do artigo 37, §2º, do CDC, como publicidade ilícita, especificamente, na espécie "abusiva", pois os mesmo produzem conteúdos nas lives, que podem induzir o público a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (pelo incentivo ao consumo imoderado de bebidas alcoólicas), bem como, ainda, atingir ao público hipervulnerável (crianças e adolescentes), em função da sua deficiência de julgamento e experiência. Neste sentido, os influenciadores digitais violam o princípio do consumo com responsabilidade social, que determina que a publicidade não deverá induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável. Não se atentando, também, a cláusula de advertência que preceitua que todo anúncio, conterá a referida cláusula, à qual refletirá a responsabilidade social da publicidade e a consideração de Anunciantes, Agências de Publicidade e Veículos de Comunicação para com o público em geral. Denota-se, ainda, que, apesar destes cantores assumirem posição de celebridades (renomadas em seu meio profissional), os fatores espontaneidade e liberalidade para criação de conteúdo - nas ações publicitárias pelas quais se veiculam em ambiente digital - demonstram-se como essenciais para a caracterização destes como influenciadores digitais. O CONAR nas referidas Representações entendeu nesse sentido e se utilizou da terminologia influenciador para se referir aos cantores, bem como a AMBEV afirmou, em nota, a espontaneidade e liberdade que estes cantores possuem em suas lives. Ao se tratar da responsabilidade civil dos influenciadores digitais pela publicidade ilícita na qual se vinculam, a doutrina defende a tese da imputação de responsabilidade civil objetiva7. No contexto das lives, a boa-fé objetiva e da função social dos contratos, se apresentam como parâmetros norteadores da atuação dos patrocinadores, agências, plataformas digitais, celebridades e influenciadores digitais no mercado de consumo digital. Evidencia-se a inegável força normativa dos referidos princípios no ordenamento jurídico brasileiro, enquanto normas de ordem pública e interesse social, que assumem papel fundamental no deslinde da controvérsia apresentada, no sentido de asseverar a responsabilidade dos influenciadores, que em não raros episódios, deixam de observar os preceitos ético-jurídicos, o interesse social e a promoção do bem comum nas ações de cunho publicitário. Nessa linha de intelecção, resta caracterizada a responsabilidade objetiva dos influenciadores digitais, tendo-se por fundamento que os mesmos: "a) fazem parte da cadeia de consumo, respondendo solidariamente pelos danos causados, b) recebem vantagem econômica e c) se relacionam diretamente com seus seguidores que são consumidores"8. Considerando a relação de credibilidade preexistente com seus seguidores e a liberdade que possuem para se comunicarem com estes, tais padrões devem ser reforçados, por meio do fornecimento de informações qualificadas (corretas, claras, adequadas e ostensivas) ao veicularem peças publicitárias que se atrelem a sua imagem ou boa fama. Nesse giro, relevante discutir ainda a possibilidade de danos sociais em episódios como ocorridos nas lives, vez que a conduta dos influenciadores repercute expressivamente em inúmeros de seus seguidores, que se espelham nestes e possuem relação de confiança e credibilidade, reforçando-se o caráter significativo de influência existente. Ao refletirem comportamentos voltados a indução a bebidas alcoólicas de forma imoderada, sem restrição à menores de idade, devem estes influenciadores assumir responsabilidade social, devendo promover conteúdos que não sejam considerados como capazes de rebaixar a qualidade de vida do público, vez que possuem expressivo e inegável potencial de induzimento a estas condutas. Logo, o referidos casos e os recentes acontecimentos, reforçam que estes influenciadores devem agir de maneira ética e socialmente responsável sob pena de serem responsabilizados. Conclui-se, portanto, que no contexto de uma sociedade hiperconectada, evidenciada pela era das lives, a atuação dos influenciadores digitais deve ser pautada pela responsabilidade social, sendo que, o estímulo ao consumo imoderado de bebidas alcóolicas não pode ser tolerado. A responsabilidade civil atribuída aos digital influencers demonstra-se como sendo objetiva, com fundamento na inobservância dos preceitos normativos da Boa-fé Objetiva e da Função Social dos Contratos, bem como, pela veiculação e promoção de publicidade ilícita (abusiva), que pode induzir o público a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, e, que ignoram a presença de hipervulneráveis nas lives, incentivando o consumo exagerado de álcool e expondo crianças e adolescentes a tais práticas. Por fim, a controvérsia em estudo se demonstra atual e necessária de análise, sendo, ainda, construídos os critérios objetivos para caracterização das condutas consideradas como reprováveis por parte de tais personalidades digitais, mas o horizonte indica haver a possibilidade de que ações de influenciadores sejam passiveis de responsabilização civil. *Michael César Silva é doutor e mestre em Direito Privado pela PUC-Minas. Especialista em Direito de Empresa pela PUC-Minas. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. Mediador Judicial credenciado pelo TJ/MG. **Caio César do Nascimento Barbosa é graduando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (curso Direito Integral). Integrante sênior do Grupo de Iniciação Científica "Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea" da Escola Superior Dom Helder Câmara. ***Glayder Daywerth Pereira Guimarães é graduando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (curso Direito Integral). Integrante sênior do Grupo de Iniciação Científica "Responsabilidade Civil: Desafios e Perspectivas dos novos danos na sociedade contemporânea" da Escola Superior Dom Helder Câmara. __________ 1 EXAME. Na quarentena, o mundo virou uma live. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020. 2 O GLOBO. Lives de 2020 são dominadas por brasileiros, com sete das 10 maiores audiências do mundo. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020. 3 VALOR ECONÔMICO. 'Lives' atraem patrocínio de marcas. Disponível aqui. Acesso em: 05 jun. 2020. 4 SOUSA JÚNIOR, João Henrique; RIBEIRO, Letícia Virgínia Henriques Alves de Sousa; SANTOS, Weverson Soares; SOARES, João Coelho; RAASCH, Michele. '#fiqueemcasa e cante comigo': estratégia de entretenimento musical durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. Revista Boca Boletim de Conjuntura. V. 2, n. 4, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 29 mai. 2020. 5 CONAR. Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2020. 6 Neste sentido, ver: DENSA, Roberta. A regulamentação da publicidade das bebidas alcoólicas e a proteção do adolescente no Instagram e Facebook. Disponível aqui. Acesso em: 08. jun. 2020. 7 BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade Ilícita e Influenciadores Digitais: Novas Tendências da Responsabilidade Civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. 8 GASPARATTO, Ana Paula Gilio; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; EFING, Antônio Carlos. Responsabilidade civil dos influenciadores digitais. Revista Jurídica Cesumar jan./abr. 2019, v. 19, n. 1, p. 84. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Raphael Carneiro Arnaud Neto Introdução Há temas no Direito Privado que são prodigiosos em promover o debate. Há, entretanto, os que façam mais que isso, provocam defesas veementes de posições arraigadas em um conjunto de valores culturais, vivências e traumas pessoais. A conjugalidade é um deles. Reunido à mesa, experimente você, caro leitor desta coluna, suscitar a hipótese de alguém ser condenando a indenizar o cônjuge pela prática de adultério, e comprove que o silêncio não mais terá lugar entre os presentes. Note, a partir daí, que todos já possuem, de largada, opinião formada sobre a matéria sem qualquer reflexão sobre ela. Ao jurista, contudo, exige-se o que Durkheim chamou de distanciamento científico. Estes brevíssimos escritos têm a intenção de questionar se os assim ditos "deveres conjugais", entabulados no artigo 1.566 e incisos do CC/2002, mantêm seu caráter de "deveres jurídicos", de forma a justificar uma reparação civil pelo seu não atendimento. A pergunta ganha relevo ante a aparente falta de consequência do seu inadimplemento, resultante do advento da EC 66/2010 e da mudança paradigmática evolutiva dela derivada. Saímos do antigo divórcio sanção - baseado na culpa de um dos cônjuges por "grave violação dos deveres do casamento que 'tornassem' insuportável a vida em comum", Conforme preleciona(va) o art. 1.572 - para o que hoje se conhece por divórcio fracasso, no qual não mais necessita haver razão culpável para o fim do enlace matrimonial, sendo suficiente a declaração unilateral, íntima e subjetiva de uma das partes, baseada simplesmente no rompimento do desejo de permanência do projeto de vida comum, que por qualquer motivo fracassou. Assim, traçado o roteiro entre a responsabilidade civil e o Direito de Família horizontal, pergunta-se se, de fato, existe uma ponte que liga os deveres conjugais à obrigação de indenizar. Notas curtas sobre a família matrimonial no século XXI Todo bom artigo de Direito de Família se inicia por uma longa exposição histórica das famílias de ontem e de hoje, geralmente vemos nesse tópico o esforço do autor para nos demonstrar, de maneira quase visual, a mudança do "modelo patriarcal de outrora" para a "família eudemonista do tempos atuais"; ou, a passagem da "família instituição", que desconsiderava o individuo isolado em homenagem do coletivo, para a "família instrumento", isto é, aquela que se propõe a ser o ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de todos e de cada um de seus membros. Sai o patriarcalismo, entra o solidarismo. O formato exíguo desses escritos, contudo, não permite que nos alonguemos por aqui, sob pena de não alcançarmos o ponto ao qual nos propusemos, assim, recomenda-se ao neófito no estudo das famílias, a leitura de qualquer manual familiarista para a compreensão histórica dessa mudança de paradigma. Partimos, portanto, das famílias da pós-modernidade, considerando a inegável posição de igualdade jurídica entre os cônjuges, de mesmo sexo ou não, e a inafastável "liquidez" dos tempos atuais. Entendemos que a permissão e posterior simplificação procedimental do divórcio - hoje possível sem processo judicial, inclusive - provocou consequências determinantes para o sistema familiar, passando o casamento a representar um instrumento para a realização de projetos individuais através de uma comunhão plena de vida, e, não mais, um assunto pertencente ao amplo universo dos parentescos de origem e acertos patrimoniais. A nova responsabilidade civil e o conceito de dano moral Se é indubitável que o Direito de Família mudou, merecendo de alguma doutrina até mesmo nova nomenclatura - Direito "das famílias" -, é igualmente verídico que houve alterações substanciais no estudo do "Direito dos Danos", como também é conhecida a responsabilidade civil. Passamos, em um curto espaço de tempo, da atenção exclusiva com o ato ilícito para a preocupação com o dano injusto, ou injustificado. Assim, a responsabilidade civil deixou de ser uma forma de punir o "culpado" e assumiu o papel de realizar a transferência das consequências danosas a um sujeito distinto do que as sofreu, se e quando existir uma razão jurídica que justifique esse deslocamento1. Se antes o lema era "nenhuma responsabilização sem culpa", agora a preocupação maior está voltada para uma possível irresarcibilidade do prejuízo suportado pela vítima. O que trouxe, também para o Direito das Famílias, hipóteses de responsabilidade civil objetiva, como a que se lê no artigo 932, I c/c o art. 933 do CC/2002. Apesar da constante evolução, não é incomum, de outra banda, que encontremos em diversos julgados a identificação do dano moral baseada na "lição de René Savatier", que, em 1939, afirmou ser dano moral todo sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária. É habitual, portanto, que nossos Tribunais qualifiquem como dano moral a "dor", "sofrimento", "constrangimento" e "vergonha" injustamente suportados pela vítima. Todavia, para os fins aos quais nos comprometemos, aplicamos o conceito de dano moral que nos parece mais adequado, derivado da corrente de pensamento capitaneada pela professora Maria Celina Bodin de Moraes, que, lastreada nos postulados filosóficos de Kant, dá aplicabilidade jurídica à proteção da integridade psicofísica, liberdade de autodeterminação e solidariedade familiar, na qual nos fiamos2. Reparação civil por quebra dos deveres conjugais Sabemos que são pressupostos da responsabilidade civil no Direito brasileiro: (a) o ato ilícito ou dano injusto decorrente da conduta humana, (b) o prejuízo suportado pela vítima e (c) o adequado nexo de causalidade entre o primeiro e o segundo elemento. Ao aplicarmos tais pressupostos ao âmbito das relações familiares horizontais, logo identificamos ao menos duas teorias conflitantes a versarem sobre a possibilidade de indenização entre cônjuges por quebra dos deveres derivados do casamento. A primeira posição defende que nas relações matrimoniais deve-se ter, por força do descumprimento dos deveres conjugais (art. 1.566 do CC/2002), a deflagração da responsabilidade civil, e, portanto, a consequente indenização pelo inadimplemento de um dever que, para os defensores desse pensamento, é jurídico e dotado de schuld e haftung. A segunda corrente é formada por aqueles que aceitam a responsabilização entre cônjuges, mas apenas e tão-somente nos casos em que haja ilícito absoluto, como previsto no art. 186 c/c art. 927 do CC/2002. Ou seja, apenas haveria conduta geradora do dever de reparar quando a desatenção aos deveres conjugais se qualificasse também como um ilícito civilm mesmo que inexistente a relação familiar. Assim considerado, o marido estaria obrigado a indenizar à esposa por "falta de respeito e consideração", não somente porque este é um dever dele para com ela (art. 1.566, V), mas, porque também o é frente a qualquer semelhante que igualmente mereceria ser respeitado e considerado, face ao dever geral a todos nós imposto de não causar dano a outrem - naeminem laedere ou alterun non laedere -. O olhar lusitano de Pamplona Corte-Real sobre a impossibilidade de indenização entre os cônjuges sustentada exclusivamente na quebra de um dever conjugal, ante a sua aparente falta de injuntividade, face às margens de álea e evolução do espírito de partilha conjugal. Analisando problema semelhante em sistema jurídico diverso, com o criticismo que lhe é inerente e subtitula sua obra, o professor Pamplona Corte-Real, ao examinar o conteúdo do art. 1792º do Código Civil daquele país, que prevê a possibilidade de indenização por danos não patrimoniais causados pelo cônjuge culpado, quando da aferição de culpa para o posterior divórcio, escreve: Perante o Código Civil, um sector da doutrina admitia mesmo que o artigo 1792º., que se reporta(va) à reparação de danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, não seria impeditivo da indemnizabilidade autónoma dos danos causados por cada situação específica de violação dos deveres conjugais, afirmando ainda que tal indemnizabilidade poderia ser solicitada ao tempo da violação, ou em concomitância com o pedido de divórcio. Argumentava dita doutrina (Duarte Pinheiro, Ângela Cerdeira, Hörster) que os chamados deveres conjugais, verdadeiros deveres jurídicos seriam, não obstante o seu caráter pessoal, e que por isso não seria suficiente o âmbito da reparação prevista no artigo 1792º - limitada aos danos morais conexos com a dissolução do casamento -, antes devendo operar a normal ressarcibilidade civil pela sua violação, a qualquer momento da vivencia conjugal. (...) Mas não era aceitável tal ponto de vista, por várias ordens de razões: em primeiro lugar, porque seria de elementar falta de bom-senso entrever a subsistência dum vínculo conjugal entrecortado com esses pedidos de indemnização de um cônjuge relativamente ao outro; em segundo lugar porque o artigo 1792º ., não obstante o cariz predominante da técnica do divórcio-sanção no Código Civil (vd. art. 1787º) era uma preceito (era) em boa medida sensível à ponderação do livre desenvolvimento da personalidade que o casamento sempre implicita, restrigindo, por isso, a carga patrimonialmente sancionatória, em homenagem à consideração de um mais livre exercício do direito ao divórcio e a reconversão da vida3. O professor português alega que os deveres conjugais se situam numa esfera particularmente autônoma de expressão de livre individualidade dos cônjuges e afirma categoricamente que "por mais que inserida num projecto a dois, não seriam recondutíveis tecnicamente a verdadeiros deveres jurídicos". Defende assim, a inexigibilidade jurídica dos referidos deveres, o que retiraria dos deveres conjugais o caráter de dever jurídico, ainda que assim nominados pela Lei, para qualificá-los apenas como "instrumentos de um projecto de vida em comum" com grandes margens de indeterminação e flexibilidade, por cada casal. É que para Pamplona Corte-Real, paradoxalmente à toda a solenidade legalmente imposta, "o casamento é o ato mais livre que há". Um projeto afetável por margens de álea imponderáveis que se traduziria em um acordo existencial com espírito de partilha de uma vida a dois. Parece, portanto, aproximar-se da segunda corrente por nós apresentada parágrafos acima, trazendo, entretanto, ideias ainda mais contundentes sobre a natureza não jurídica dos já tantas vezes aludidos deveres conjugais. Conclusões A aplicação das regras da responsabilidade Civil entre os cônjuges depende da ocorrência de um ilícito absoluto, devidamente comprovado. A simples violação de um dever conjugal não justifica a indenização de eventual dano moral, que qualifica-se pelo ferimento de um direito da personalidade, ligado à proteção da integridade psicofísica, liberdade de autodeterminação e solidariedade familiar. Aliás, como há tempos escreve Stefano Rodotà4, é justamente a solidariedade familiar, a norteadora das responsabilidades entre cônjuges. Assim, a prática de um adultério, isoladamente, não nos parece suficiente para gerar dano moral indenizável, não obstante o disposto no art. 1.566, I do CC/2002. Também não há que se falar, em nossa opinião, sobre a hipótese de débito conjugal, como qualificada parte da doutrina continua a insistir em pleno século XXI5. Em verdade, seguimos o pensamento de Pamplona Corte-Real. Também no Brasil, os ditos deveres conjugais perderam sua qualidade de dever jurídico. O próprio legislador abriu possibilidade legal para uma reconsideração, ao editar no Brasil a EC 66/2010, que altera o artigo 226, § 6º, CF, derrogando os artigos 1.572, 1.573 e 1.574, CC, que versam sobre as excepcionais possibilidades nas quais o divórcio podia ser consentido e o vínculo conjugal desfeito. O legislador esvaziou o último resquício de oponibilidade desses ditos deveres, o que também aconteceu em Portugal, por ocasião da Lei 61/2008. *Raphael Carneiro Arnaud Neto é professor de Direito Civil dos programas de graduação e Pós Graduação no Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP - Escola de Direito de Brasília - EDB e da Universidade Católica de Brasília - UCB; Professor de cursos preparatórios da Escola Superior de Advocacia - ESA/DF; Mestre e Doutorando em Direito e Ciências Jurídicas Civis pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. __________ 1 MORAES, Maria Celina Bodin de. (2006) Danos morais em família? Conjugalidade, Parentalidade e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Revista Forense. 2 Moraes, Maria Celina. (2003). Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 3 CORTE-REAL, Carlos Pamplona; PEREIRA, José Silva. (2011) Direito da Família -Tópicos para uma Reflexão Crítica. Lisboa: AAFDL. 4 RODOTÀ, S. (1964). Il problema della responsabilità civile. Milano: Giuffrè. 5 PINHEIRO, Jorge Alberto Caras Altas Duarte. (2004) O Núcleo Intangível Da Comunhão Conjugal - Os Deveres Conjugais Sexuais. Teses. Coimbra: Almedina. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Nelson Rosenvald e João Victor Rozatti Longhi "Social media is a virtual world that is filled with half bots, half real people"(Rami Essaid, fundador da empresa de cibersegurança Distil Networks) Influencers é uma palavra já incorporada ao nosso cotidiano. Antes restritos ao nicho das "celebridades", a cada momento a técnica de atrair a atenção das pessoas por meio das redes sociais altera a realidade em diversas profissões, trazendo a necessidade de se repensar o assunto em todo o mundo. Em tempos de pandemia, essa realidade se escancarou no cenário jurídico. Como se sabe, hoje produzimos uma quantidade de informação muito superior à que podemos consumir. Por essa razão, se a informação é abundante, a escassez reside em nossa capacidade de armazená-la e processá-la. Nessa contenda entre a digitalização em massa das informações e a "inteligência analógica" do usuário, a atenção, portanto, é a commodity dos novos tempos. As plataformas digitais competem pelo melhor modelo de negócio capaz de prender cada vez mais o usuário ao passo que a "moeda de troca" são nossos dados pessoais, já que é possível revelar precisamente nossas preferências a partir da perfilhação. É a chamada de economia da atenção, conforme relata Tim Wu1. Nesse caminho, aos poucos, muitas relações jurídicas vão paulatinamente se adequando a esse novo mundo. Se o que antes supostamente atestava a qualidade da opinião era a formação profissional ou a experiência em determinada área, paulatinamente vai se cambiando a notoriedade pela popularidade, através do critério numérico: "Quantos seguidores você tem?" Alinhada a essa nova realidade está a prática, hoje disseminada, de compra de "seguidores robôs", que dão "fake likes", tecem comentários e aumentam o chamado "engajamento", o que conduz a uma posição de liderança de mercado frente à concorrência. Afinal, uma audiência de massa - ou a ilusão dela - não apenas atrai novos seguidores (que assumem ser aquela pessoa importante), podendo ser monetizada por meio de incremento na venda de livros, contratação de aparições ou palestras remuneradas (inclusive on line), sem contar que o valor imaterial da "atenção" convida a parcerias com players que anseiam em transferir para si uma pequena fração daquele universo de seguidores. Em suma, o déficit ético daqueles que visam inflar os seus números nas redes sociais por via fraudulenta acaba incrementando riscos sistêmicos. Mas afinal, é licita a prática de quem "compra seguidores robôs", popularmente chamados de bots2? Em primeiro lugar, deve-se destacar que os termos de uso dos sites apresentam regras contratuais claras no sentido de que não se permite adulterações de identidade com a finalidade de induzir em erro outros usuários3. Além disso, os chamados perfis fake nem sempre são criados ou mantidos por robôs, pois podem ter sido criados por um usuário real para fins humorísticos ou mesmo pelo nome social de pessoas trans. Logo, seguidores robôs são essencialmente uma espécie de conta inautêntica criada com base na violação dolosa do contrato com as redes sociais com a finalidade de inflar artificialmente a quantidade de seguidores ou de interações entre o usuário e os bots, emulando seu engajamento. Apesar de ilícita contratualmente, é uma prática tão difundida nas plataformas4 que parece ser tolerada já que "seguidores" e suas "interações" geram cada vez mais dados, elemento essencial do risco-proveito de seus modelos de negócio. Em grande parte, os "bots" são relativamente fáceis de identificar. São marcados por contas com poucas imagens, nomes geralmente ininteligíveis, interações simples e, acima de tudo, na maioria das vezes zero ou quase nenhuma pessoa seguida pelo perfil e poucos "seguidores" (geralmente em maior número), denotando que são recentemente criadas com o propósito de realizar essas curtidas, postagens, enfim, "interações" fake. Quantificáveis, portanto, os fake passam a ser compreendidos como objetos de direitos e se tornam bens jurídicos, para todos os fins. O "efeito manada" é visível, pois mesmo profissionais talentosos e reconhecidos em seu meio acabam sucumbindo aos fake followers com receio de serem suplantados na corrida pelos números. 'Race to the bottom" é a expressão utilizada no direito de concorrência para descrever essa insana competição. A situação extrapola o campo individual e gera distorções do ponto de vista econômico na esfera privada e traz riscos à qualidade do debate no campo político, dentre outros problemas. Em nosso meio, a alta literatura jurídica é substituída pelo acesso a conteúdo visual produzido por "campeões de audiência", cuja performance elimina a necessária passagem pelo estudo e introspecção, elementos essenciais de empregabilidade no novo mercado da advocacia, onde outro segmento de robôs já realiza as tarefas para as quais a maior parte dos novos profissionais era contratada. Nas relações com os seus usuários, à míngua de legislação específica, há no mínimo uma flagrante violação da boa-fé objetiva consubstanciada em comportamento oportunista de quem celebra contrato de "compra de usuários", por meio de violações massivas aos termos de uso do site por terceiros, em afronta à função social dos contratos. A questão se agrava quando são envolvidos os chamados influencers, usuários de redes sociais que atuam profissionalmente ao impulsionar conteúdo publicitário. A prática abusiva da inflação de seguidores altera não somente a precificação nos contratos interempresariais de publicidade, mas, quando induzida, pode acarretar uma falsa impressão ao consumidor de aceitação do produto ou serviço, em clara hipótese de publicidade abusiva5. Do ponto de vista de terceiros, empresas que atuem no mesmo ramo podem se sentir vítima de concorrência desleal. Nos Estados Unidos, de forma pioneira, a procuradoria do Estado de Nova Iorque recentemente investigou e firmou um acordo contra uma empresa que mantinha as chamadas "fazendas de bots", fornecendo os serviços a anunciantes e influencers6. Na Nova Zelândia, por sua vez, o Facebook demandou contra uma empresa sediada no país acusando-a das mesmas práticas. O objeto da ação girou em torno de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) e a diretora jurídica da empresa, Jessica Romero, foi enfática: "[...], estamos enviando uma mensagem de que essa atividade fraudulenta não é tolerada em nossos serviços, [...]"7. No Brasil, de influencers mirins8 a perfis falsos em sites de relacionamentos9, a litigância sobre a Internet gera precedentes dia após dia. Mas à exceção de divulgação de imagens íntimas sem autorização (art. 20, Marco Civil da Internet), todas elas caem na regra geral do artigo 19 caput e parágrafo primeiro do MCI, o qual determina que somente após ordem judicial que contenha o link exato (URL), a Rede Social é obrigada a bloquear o conteúdo. Após a lei, o STJ consolidou a jurisprudência nesta linha10 e no STF o tema é objeto de repercussão geral, sub judice (Tema 987)11. Tim Wu, em outro artigo, analisa as consequências desse ambiente para a esfera pública e até mesmo para a democracia como um todo. O free speech foi engendrado quando atingir o público era difícil. Mas nas redes sociais é fácil falar, o difícil é ser ouvido. Logo, governos autoritários têm adotado a técnica de postar em massa nas redes sociais contrariamente à opinião de seus críticos por meio de bots, realizando uma censura que não impede ninguém de falar, mas abafa vozes em contrário. Uma censura reversa, portanto12. A mesma coisa ocorre no nicho do direito: notáveis professores e autores de obras de vulto postam conteúdo nas redes sociais, mas quase não são lidos ou ouvidos. Esta seria a chance de jogar o "sarrafo para cima" no espaço virtual. Todavia, a commodity da atenção é praticamente monopolizada por influencers jurídicos, neutralizando outras vozes. Essas e outras incongruências levaram Siva Vaidhyanathan a chamar as redes sociais de "redes antissociais"13. Resta saber se dependeremos da tolerância das plataformas ou se haverá lei que os obrigue a agir diferente, ao menos coibindo tais práticas. *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Professor do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil - Universitá Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic - Oxford University (UK-2016-2017). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Ibero-americano de Responsabilidade Civil. Membro do Comitê Científico da revista Actualidad Jurídica Ibero-americana (España). **João Victor Rozatti Longhi é defensor público no Estado do Paraná. Professor visitante de Doutorado e Mestrado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e de Graduação do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu (CESUFOZ). Pós-Doutor em Direito na UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP - Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ. WU, Tim. The Attention Merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova Iorque: Vintage Books, 2016. p. 6. __________ 1 WU, Tim. The Attention Merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova Iorque: Vintage Books, 2016. p. 6. 2 O termo bot vem do inglês robot. Para maiores aprofundamentos, V. THE NEW YORK TIMES, The Follower Factory: Everyone wants to be popular online. Some even pay for it. Inside social media's black market. NICHOLAS CONFESSORE, GABRIEL J.X. DANCE, RICHARD HARRIS and MARK HANSEN. JAN. 27, 2018. Disponível aqui. Acesso em 06 jun. 2020. 3 A exemplo do Instagram: Promova interações sinceras e significativas. Para nos ajudar a acabar com o spam, evite coletar curtidas, seguidores ou compartilhamentos artificialmente. Também evite publicar comentários ou tipos de conteúdo repetitivos ou entrar em contato com pessoas repetidamente para fins comerciais sem o consentimento delas. Não publique conteúdo que envolva, promova, incentive, facilite ou admita a oferta, a solicitação e o comércio de avaliações falsas de usuários. Não é necessário usar seu nome real no Instagram, mas exigimos que os usuários do Instagram nos forneçam informações precisas e atualizadas. Não se passe por outra pessoa nem crie contas com o objetivo de violar nossas diretrizes ou enganar outras pessoas. Disponível aqui. Acesso em 05 jun. 2020. 4 TILT. O canal sobre tecnologia do UOL. Estudo: quase metade das contas postando sobre Covid no Twitter são robôs. Disponível aqui. Acesso em: 06 jun. 2020. 5 Para maiores aprofundamentos, V. BARBOSA, Caio César do Nascimento Barbosa; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019 Disponível aqui. Acesso em: 06 jun. 2020. 6 NEW YORK STATE, Attorney General James Announces Groundbreaking Settlement With Sellers Of Fake Followers And "Likes" On Social Media. Settlement is First in the Country to Find that Selling Fake Followers and "Likes" Is Illegal Deception and that Fake Activity Using Stolen Identities Is Illegal Impersonation. Disponível aqui. Acesso em: 06 jun. 2020. 7 CNBC. Tech: Facebook is suing a New Zealand company and three people over fake Instagram likes Saheli Roy Choudhury 25 abr 2019. Disponível aqui. Acesso em 06 jun. 2020. 8 TJSP; Apelação Cível 1096977-67.2019.8.26.0100; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca (Pres. da Seção de Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Central Cível - Vara da Infância e da Juventude; Data do Julgamento: 14/05/2020; Data de Registro: 14/05/2020) 9 ANADEP -Associação Nacional dos Defensores Públicos - SP: Surpreendida com perfil falso com suas fotos e número de telefone em app de paquera, jovem procura a Defensoria e obtém determinação judicial para bloqueio da conta. ASCOM-SP. 05/06/2020. Disponível aqui. Acesso em 06 jun. 2020. 10 [...] 6. Na hipótese, conclui-se pela impossibilidade de cumprir ordens que não contenham o conteúdo exato, indicado por localizador URL, a ser removido, mesmo que o acórdão recorrido atribua ao particular interessado a prerrogativa de informar os localizadores únicos dos conteúdos supostamente infringentes. [...] (REsp 1694405/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2018, DJe 29/06/2018. Grifo Nosso) 11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. 12 Cf. WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geoffrey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 282. 13 Cf. VAIDHYANATHAN, Siva. Anti-social media: how Facebook disconnects us and undermines democracy. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 3. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Atala Correia Introdução Quase duas décadas após a promulgação do Código Civil, é possível desfrutar de certo distanciamento histórico para avaliar suas contribuições, o que, para os fins deste artigo, faremos sucintamente tendo em vista o tema da prescrição. Em 2002, a comunidade jurídica considerou bem-vinda a redução do prazo prescricional. Dizia-se que a dinâmica própria do século XXI impunha rapidez às relações privadas. Nada era mais apropriado do que deixar de lado o prazo vintenário que marcou a legislação anterior. Poucas vozes se levantavam contra essa tendência. Dentre elas, Silmara J. A. Chinellato destacava que a redução do prazo para as reparações civis "representa retrocesso por restringir o tempo que o lesado teria para pleitear a reparação respectiva"1. O tempo dá razão a essa crítica, permitindo visualizar três tendências claras para contornar a redução de prazos: (i) as decisões judiciais vêm socorrendo-se na teoria subjetiva da actio nata, para permitir que a pretensão e seu prazo corram desde o momento em que o lesado tomou conhecimento do dano; (ii) as causas de suspensão e impedimento passaram a sofrer alargamento, com autores defendendo o retorno de princípio denominado contra non valetem agere, para que os juízes recuperem uma faculdade perdida em 1916, qual seja, a de impedir o fluxo do prazo prescricional quando consideram injusta a fluência do prazo diante de impossibilidade de ação do lesado; (iii) as imprescritibilidades crescem para além das hipóteses reconhecidas por Agnelo Amorim Filho (i.e., ações meramente declaratórios e direitos potestativos não sujeitos a prazo). Preocupa-nos a imprescritibilidade ambiental. Vale lembrar, todavia, que a perpetuidade das pretensões vem avançando para alcançar não só os danos ambientais, mas também graves lesões, como tortura e homicídios promovidos pelo Estado, e mesmos questões previdenciárias. E há quem defenda a perpetuidade de qualquer pretensão advinda da lesão a direito fundamental. Imprescritibilidade de Danos Ambientais Dado esse cenário, foi sem grande surpresa que, no último dia 20/4/2020, o STF manteve o entendimento que já prevalecia na jurisprudência do STJ e na doutrina, fixando tese segundo a qual "é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental" (STF, RE 654833, Plenário). É preciso entender melhor o contexto deste caso. Inicialmente, o MPF ajuizou ação civil pública em face de particulares, objetivando a reparação de danos materiais, morais e ambientais, decorrentes de invasões em área indígena ocupada pela comunidade Ashaninka-Kampa, localizada no Acre, ocorridas entre 1981 e 1987. O TRF1 manteve a condenção de primeira instância. Para tanto, afastou a exceção de prescrição, considerando que "na vigência do CC/1916, era vintenário o prazo prescricional relativo à pretensão de obter indenização por danos (materiais, morais e ao meio ambientais) resultantes de invasão de terra indígena". No Recurso Especial, os requeridos postularam fosse reconhecida a prescrição quinquenal da ação civil pública (i.e., o prazo da ação popular que o STJ aplica à ação civil pública). O STJ destacou, na ocasião, que "o direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal", que "em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer , considera-se imprescritível o direito à reparação" e que "o dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental" (STJ, REsp 1.120.117). Análise O que esse caso nos revela? Não há em nossa Constituição Ferderal qualquer norma que estabeleça literalmente a imprescritibilidade dos danos ambientais. A jurisprudência trabalha, portanto, com uma construção valorativa segundo a qual os bens ambientais têm demasiada importância para estarem sujeitos a prazos prescricionais. Na doutrina, esse argumento é enriquecido. Seria impróprio transplantar à tutela dos direitos coletivos os prazos prescricionais próprios dos direitos individuais. Nelson Nery Jurnior e Rosa Maria Nery afirmam que não se aplicam às pretensões relativas ao dano ambiental as regras de prescrição, porque i) estas foram concebidas para sancionar a inércia do titular; ii) não se trata de direito de propriedade; e iii) não raro, o dano se perpetua no tempo, sem solução de continuidade, quando não se inicia o curso do prazo2. De fato, é razoável admitir que os interessados na tutela ambiental, Ministério Público e associações, tenham dificuldades de articular, em poucos anos, a verificação do dano. A imprescritibilidade aparece, portanto, como uma resposta dura contra a possibilidade de se aplicar a danos importantes prazos curtos, como o trienal ou quinquenal. Crítica A adoção de critério meramente formal que estabeleça, tout court, a imprescritibilidade da lesão a direitos fundamentais poderia levar, no rigor da lógica, à perpetuidade de praticamente todas as pretensões possíveis. O intérprete deve apresentar as razões pelas quais considera que apenas alguns desses direitos devem ser prestigiados com a perpetuidade. A tentativa de estabelecer direitos imprescritíveis tem sido feita sem método e, como resultado, não está em debate público qualquer critério qualquer que possa cumprir tal mister, salvo o puro e simples voluntarismo refratário a controles racionais. A prescrição funciona a partir da articulação das variáveis de tempo, dificuldades de memorização e de documentação, impondo preclusões. Há relevantes dúvidas sobre nossa capacidade de reconstruir o que se passou, em razão da limitação dos meios e da memória, e, se assim é, o esforço empregado para decidir não é isento de riscos. Quanto mais tempo passa, maior o risco de mal decidir. Existe um ponto para além do qual a tentativa de equidade redundará maior injustiça. Os direitos de personalidade, o direito de propriedade e todos os demais direitos absolutos, em regra, não estão sujeitos a prazo e vigoram erga omnes. Isso não significa, no entanto, que, havendo uma violação a eles, surja pretensão perpétua. O direito ao meio ambiente é, nesse sentido, absoluto, havendo uma constante pretensão geral de abstenção a nos lembrar que a poluição deve cessar. Ocorre que, em havendo a poluição, a pretensão de reparação ao dano ambiental, coletivo ou individual, deveria estar sujeita a algum prazo prescricional. Se uma pessoa natural perde um braço, tem violada de maneira perpétua a sua integridade física. A cada dia que passa a lesão permanece existindo. A integridade física é indisponível e foi perpetuamente lesada, mas não por isso a pretensão de haver reparação por danos morais é imprescritível. Se o triênio do art. 206, § 3º, V, CC, revela-se curtíssimo, o problema aí é legislativo, razão pela qual o correto seria majorar o prazo. A prevalecer a interpretação atual, podemos imaginar que, em algumas décadas, haverá um acúmulo de lesões ambientais não reparadas e não investigadas. A imprescritibilidade, ao longo do tempo, apenas escusa a incúria e desídia daqueles que deveriam zelar pela proteção ambiental. Se os titulares de ações coletivas, por força do sistema de representatividade adequada, não podem ser considerados omissos da mesma forma que uma pessoa natural, também é certo que deveriam ser estimulados a agir no menor prazo possível. No direito comparado não há uma opção clara pela imprescritibilidade. A Lei alemã de Proteção ao Meio Ambiente determina, por exemplo, que a pretensão reparatória dos danos ambientais seja regulada pelos prazos do BGB. O art. 2226-1, do Code Civil, na redação da Lei nº 1087, de 8.10.2014, estabelece que os danos ambientais prescrevem em dez anos desde a data em que se tornaram conhecidos. A Convenção de Lugano, de 21.6.1993, estabeleceu em seu art. 17 a prescrição trienal para a reparação ambiental, contado o prazo da ciência da lesão e de sua autoria. De todo modo, neste último sistema, as ações não podem ser ajuizadas após 30 anos, contados desde o último ato de lesão. O ministro Gilmar Mendes, em seu voto vencido, bem destacou que "sendo a existência de prazo prescricional a regra, e as hipóteses de imprescritibilidade a exceção, estando todas expressas na Constituição Federal", não é "viável interpretar a omissão da legislação ambiental como nova hipótese de imprescritibilidade. A lacuna deve ser suprida por meio da análise sistemática de nosso arcabouço normativo, ou seja das normas que regulam os casos de prescrição, não sendo possível a admissão de uma imprescritibilidade implícita, tal como sugerido pelo Superior Tribunal de Justiça" e que mitiga outros valores estruturantes do Estado Democrático de Direito (RE 654833). Conclusão Deve haver prazos maiores para direitos de maior relevância. Quando se estipulam prazos adequados, enfraquece-se a necessidade de perpetuidades. A imprescritibilidade dos danos ambientais é resposta adequada aos curtos prazos que poderiam ser aplicados. Entretanto, o dano ambiental estaria melhor tratado se sua reparação se sujeitasse a prazo vintenário, trintenário ou a lapso mais curto, desde que contado de termo inicial subjetivo. O tempo tem sido senhor da razão. Uma redução drástica dos prazos prescricionais revelou descompasso com as necessidades sociais, forçando a jurisprudência a flexibilizá-la. Por outro lado, a história é recheada de exemplos dos inconvenientes que cercam as imprescritibilidades. Justiniano concedeu prescrição centenária em favor da Igreja, facilitando o ambiente político para a invasão do sul da península itálica. Logo, inúmeros litígios surgiram, com falsificação de documentos para favorecer a litigância. Anos após, Justiniano voltou a estabelecer prazos mais curtos. Ao justificar o abandono da prescrição centenária, comparou a situação a cicatrizes que se reabriam, sendo inviável a cura em razão das evidentes dificuldades de produzir-se prova documental íntegra e testemunhal a respeito de disputas tão antigas3. As contingências diversas que levaram os romanos e bizantinos a abandonar a perenidade e abraçar a prescrição em prazos razoáveis servem de exemplo eloquente ao jurista contemporâneo. __________ 1 Da responsabilidade civil no Código de 2002 - aspectos fundamentais. Tendências do Direito Contemporâneo. In: TEPEDINO, G.; FACHIN, L. E. (Coords.). O Direito e o Tempo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 939-968 (v. em particular, p. 956). 2 Responsabilidade civil, meio ambiente e ação coletiva ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.) Dano Ambiental, prevenção, reparação e repressão. São Paulo: RT, 1993, p. 278-307, em particular, p. 291-292. 3 Nov. 111. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Fabiano Menke A pandemia do novo coronavírus colocou em ainda maior evidência a necessidade de os negociantes realizarem atos e celebrarem contratos pelo meio eletrônico. Desde o ano de 2001, com a edição da Medida Provisória nº 2.200-2 (MP 2.200-2), o Brasil consolidou o que se denomina Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira1, que tem por escopo garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, a partir da emissão de certificados digitais que identificam as pessoas naturais e pessoas jurídicas que pretendam acessar soluções virtuais ou se vincularem juridicamente a declarações de vontade no meio eletrônico. A denominada assinatura digital ICP-Brasil funciona, portanto, como mecanismo de identificação e como substituto da assinatura manuscrita. Esta equiparação legal2 à assinatura manuscrita foi realizada a partir da incorporação, pelo art. 10, § 1º, da MP 2.200-23, do art. 219 do Código Civil e foi possível porque a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira se vale de um conjunto de regras com arrimo em standards internacionais que buscam atingir os mais altos níveis de segurança. Dentre estes, vale destacar dois, de grande relevância no que toca a implicações jurídicas: 1) a identificação do titular do certificado digital se dá mediante a sua presença física por meio do comparecimento perante um terceiro de confiança, uma Autoridade de Registro vinculado a uma Autoridade Certificadora4; 2) o emprego da criptografia assimétrica, baseada no conceito de chave pública e chave privada. Quanto ao primeiro aspecto, a identificação do indivíduo por meio de sua presença física agrega um elemento de robustez à ferramenta que posteriormente será utilizada para a interação social, a prática de atos e a conclusão de contratos no meio eletrônico. Basta que se faça a comparação com os mecanismos que habitualmente se utilizam para a comprovação de identidade e de autoria nas interações e negócios virtuais. As redes sociais, instituições financeiras, sites de comércio eletrônico, entre outros tantos modelos de negócios, adotam comumente o login e a senha, sendo que, no mais das vezes, tanto um quanto o outro são criados e/ou alterados pelo próprio indivíduo, que poderá confeccionar um perfil falso e causar danos ao se passar por outra pessoa. Quanto ao segundo aspecto, a criptografia assimétrica agrega algo que implica em verdadeira guinada no que diz respeito à lógica das ferramentas de identificação, uma vez que segrega, o que poderia ser chamado de senha, em chave pública e chave privada. A chave pública, como a denominação indica, é de conhecimento e acesso geral. Mas a chave privada é armazenada em dispositivos seguros como tokens e cartões inteligentes, de onde não é exportada. Novamente, calha a comparação com login e senha, porquanto estes, além de serem conhecidos do titular que os criou, ficam armazenados nos bancos de dados dos fornecedores, de modo que, para efeitos de imputação jurídica ambos podem ser considerados, tanto titular quanto fornecedor. O compartilhamento da senha que existe no mecanismo de login e senha não se faz presente no emprego do certificado digital com criptografia assimétrica e chave privada. Na hipótese de danos causados no uso de login e senha e de outros mecanismos que não o certificado digital, pode-se cogitar de o site responder pelos prejuízos causados em virtude de fraudes na identificação, isto é, o fornecedor que disponibiliza a oportunidade de interação ou de fazer negócios, como as redes sociais, instituições financeiras e lojas e plataformas do comércio eletrônico. De outra banda, ao mesmo tempo em que os procedimentos e requisitos da emissão do certificado digital agregam maior confiabilidade e segurança para identificar pessoas online, e, consequentemente, diminuem as fraudes, resta alterada a distribuição dos riscos normalmente conhecida no que toca à responsabilização pelos danos causados. E estes riscos passam a ser alocados nos fornecedores de certificados digitais, quais sejam Autoridades Certificadoras e entidades a elas vinculadas5, bem como nos próprios usuários. Autoridades Certificadoras e Autoridades de Registro, como regra geral, responderão por eventuais erros na identificação, o que pode ocorrer a partir da apresentação de documentos falsos na ocasião em que o solicitante comparece mediante a sua presença física para obter o certificado digital, e é justamente por isso que todo o cuidado é pouco nesta atividade. Os usuários poderão ter de responder pelos danos que venham a experimentar, sem ter como imputá-los ao site ou à aplicação na qual o certificado digital foi utilizado, sempre que não tomarem as devidas cautelas na guarda do certificado digital que lhes tenha sido corretamente emitido6. Recorde-se: não se tem mais o argumento da utilização das senhas, sob a alegação de que possa ter vazado do banco de dados do fornecedor, pois aqui não se cuida mais de senha, mas sim de chave privada, que fica armazenada em dispositivo que é fornecido pela Autoridade Certificadora ao titular do certificado digital, e, a partir da geração da chave privada, que ocorre dentro da própria mídia de armazenamento que está na posse do titular, ela será de sua exclusiva custódia. O site ou aplicação não fornecem mais um importante elemento de identificação do usuário e de formalização de suas declarações de vontade, mas são "visitados" pelo titular do certificado digital, que o obteve perante outro fornecedor (Autoridade Certificadora e Autoridade de Registro). Há que se atentar, neste contexto, ao vocábulo "infraestrutura", contido na denominação Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, pois ele remete à ideia do que conceitualmente seja uma infraestrutura7, ou seja, o conjunto das instalações necessárias que disseminem uma funcionalidade para um amplo ambiente ou para um grande universo de interessados, de modo que qualquer usuário possa simplesmente acoplar-se a ele e dele fazer uso quando necessário, exatamente como ocorre nas infraestruturas de saneamento, de eletricidade, de transporte, entre outras. Em outras palavras, usuários da infraestrutura de identificação e de vinculação de negociantes do ambiente eletrônico passam a ser, além dos próprios usuários do certificado digital (pessoas naturais e pessoas jurídicas), os sites e aplicações das mais variadas atividades de interação social na medida em que optam pelos mecanismos de atribuição de identificação e de atribuição de autoria instituídos pela MP 2.200-2. A cada vez mais crescente migração da prática de atos e de negócios para o meio eletrônico, intensificada pela recente pandemia, faz com que se tenha de incrementar as rotinas de segurança das organizações, e, em muitos aspectos, como o relativo aos mecanismos de identificação e de comprovação de autoria, é possível se valer de alternativas como as da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira. Neste sentido, é oportuno o conhecimento acerca de conceitos e consequências jurídicas de sua utilização, como os expostos no presente artigo. *Fabiano Menke é advogado e professor da graduação e do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. __________ 1 O termo Infraestrutura de Chaves Públicas é tradução da expressão do inglês, public-key infrastructure (PKI). 2 A mesma equiparação legal feita no Brasil foi realizada em países como a Alemanha, que inclusive a previu em dispositivo específico de seu Código Civil, o BGB, a partir da inclusão do §126a com a Lei de Adaptação das Formas (Formanpassungsgesetz) do ano de 2001. Ver, sobre as formas eletrônicas no Código Civil Alemão bem como no direito brasileiro, em MENKE, Fabiano, Die elektronische Signatur im deutschen und brasilianischen Recht: Eine Rechtsvergleichende Studie, Baden-Baden: Nomos, 2009. 3 Determina o referido dispositivo: "§ 1o As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil". 4 O Comitê Gestor da ICP-Brasil editou a Resolução nº 170, de 20 de abril de 2020, que dispõe sobre o regime transitório de emissão de certificados digitais em face da pandemia do novo coronavírus, facultando que a identificação do interessado se dê por videoconferência, observando-se, todavia, que o prazo de validade máximo do certificado digital será não de três anos, mas sim de um ano. 5 As Autoridades Certificadoras poderão ser tanto pessoas jurídicas de direito privado quanto de direito público. As Autoridades de Registro são sujeitos de direito vinculados às Autoridades Certificadoras, e que na ponta final identificam os usuários. 6 No que toca às cautelas que devem ser tomadas pelo usuário, há farta jurisprudência valorando a sua conduta e os cuidados com a posse dos cartões de banco e senhas, que também podem inspirar o julgador nos casos que contemplem a certificação digital. Veja-se os seguintes exemplo: REsp 1.633.785/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 30/10/2017; AgInt no AREsp 1.305.380/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 18/02/2020, DJE 13/03/2020. 7 ADAMS; LLOYD. Understandig Public-Key Infrastructure: concepts, standards, and deployment considerations. Indianapolis: New Riders, 1999, p. 27-28. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Guilherme Magalhães Martins e João Victor Rozatti Longhi Nestes últimos dias, o tema da regulação do conteúdo na Internet envolvendo desinformação por meio de notícias falsas (popularmente chamada de Fake News) chamou atenção no capo jurídico. Primeiro, porque o STF determinou uma série de buscas e apreensões para averiguação especialmente de financiamento de ataques pessoais a ministros e à própria Corte realizados por meio de "disparos" massificados de postagens em sites de redes sociais e aplicativos de mensagens1. Segundo, porque, nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem Executiva (Executive Order) visando indicar a necessidade de alteração da Seção 230 do Communications Decency Act que, em linhas gerais, é a base para o sistema de responsabilização dos provedores de aplicação - dentre eles as redes sociais - e se baseia no chamado notice and takedown (notificação e retirada). Em suma, a legislação norte-americana faz parte do núcleo duro das regras sobre Internet em que se baseiam legislações de outros países e as cláusulas dos contratos em massa com tais sites, determinando, em suma que o provedor somente seria responsável civilmente pela ilicitude do conteúdo se sabe desse caráter ilícito, em meio a ser facilitado pelo próprio fornecedor do serviço - geralmente os populares links "denuncie aqui". O ideal é promover mecanismos arquitetônicos e normativos da Internet que promovam uma balanceamento entre a liberdade de expressão e de manifestação e o interesse de terceiros, encontrando-se o caminho do meio. A decisão do mandatário estadunidense ocorre após a rede social, baseada em suas próprias regras de conteúdo, inserir um link dizendo "informe-se melhor" em resposta a uma postagem do presidente insinuando que a votação pelo correio, permitida nos EUA, facilitaria fraudes eleitorais2. Em terceiro lugar, pela notícia de votação em caráter de urgência pelo Senado Federal brasileiro do PL 2630, de 2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), que institui a "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet", igualmente denominada "Lei das Fake News"3. Cada um dos fatos jurídico-políticos narrados leva a uma série de controvérsias institucionais que ganham corpo na esfera pública. São válidas as provas colhidas pelo Supremo Tribunal Federal em inquérito instaurado pela própria corte em decisão monocrática do Exmo. Min. Alexandre de Moraes? Uma ordem executiva do presidente norte-americano é capaz de alterar a legislação e toda uma gama de precedentes judiciais que reforçam a chamada "imunidade" do provedor por conteúdo inserido por terceiros? Mas a pergunta de fundo sobre a qual se pretende debater aqui, especialmente ante à iniciativa do Senado Federal brasileiro, é se uma legislação procurando coibir a desinformação não seria uma indevida intervenção na liberdade de expressão: é ou não é censura nas redes sociais? A questão diz especial respeito ao campo da Responsabilidade Civil por duas razões. Primeiro, pois, por um lado, há quem sempre levante a bandeira da liberdade de expressão independente do conteúdo do que é dito. Qualquer restrição seria censura e ponto. Criticando essa posição, tendo em mente o sistema americano, Mary Anne Franks chama de "fundamentalistas" da Primeira Emenda os que justificam queima de bandeiras, saudações nazistas, pornografia infantil virtual, videogames violentos, doações corporativas a políticos, pornografia de vingança, instruções de fabricação de bombas, vídeos de recrutamento de terroristas, teorias da conspiração, registros médicos hackeados, spam, vírus de computador e até impressoras 3D. Caso de alguma maneira se restrinja o conteúdo ou se responsabilize seu criador: "Censura. Censura em qualquer lugar"4. Além da compreensão do ilícito, há um outro ponto que diz respeito à responsabilidade civil. Trata-se da extensão do dano. Notícias falsas, especialmente quando sua divulgação massiva e sistemática é perpetrada por robôs mediante perfis falsos nas redes sociais extrapolam a esfera individual das consequências da conduta ilícita. O discurso do ódio, convém lembrar, implica abuso da liberdade de expressão, empregada esta em desvirtuamento da sua finalidade inspiradora. A situação é agravada quando tais práticas consistem em propaganda política, aprofundada em períodos eleitorais e ganha proporções alarmantes quando há indícios de que tenha sido arquitetado paralelamente aos meios oficiais de manifestação do pensamento legalmente protegidos. Portanto, salutar o dispositivo final do projeto que altera a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92) para prever no art. 11 a disseminação de desinformação. Não há menção, ao menos no texto originalmente apresentado, de menções ao Código Penal. Nesta esteira, o PLS que será votado pode introduzir novo episódio e redirecionar os rumos do debate na Internet. O texto define, dentre outras situações jurídicas importantes, desinformação, conteúdo, conta inautêntica, disseminadores artificiais, redes de disseminação artificial, rede social, serviços de mensageria privada (Art. 4º, PLS 2630/20). Ao dispor sobre a responsabilidade do provedor de aplicações de Internet no combate à desinformação, o artigo 5º veda expressamente "contas inautênticas (perfis falsos), disseminadores artificiais não rotulados, aqueles cujo uso não é comunicado ao provedor de aplicação e ao usuário bem como aqueles utilizados para disseminação de desinformação, redes de disseminação artificial que disseminem desinformação; conteúdos patrocinados não rotulados, entendidos como aqueles conteúdos patrocinados cuja comunicação não é realizada ao provedor e tampouco informada ao usuário". No parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, outro ponto alto do texto ao dispor que "as vedações do caput não implicarão restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural, nos termos dos arts. 5º, IX e 220 da Constituição Federal". Isto porque, ao contrário de muitas análises recentes sobre a possível Lei das Fake News, de que seria uma lei que promoveria censura5, esta afirmação não é verdade. Pelo contrário, estabelece vedações em seu art. 5º, em face de condutas como - contas inautênticas, disseminadores artificiais não rotulados redes de disseminação artificial que disseminem desinformação ou conteúdos patrocinados não rotulados(incisos I a IV). As responsabilidades de agir com transparência quanto ao conteúdo que circula nas redes são delineadas pela apresentação de relatórios (art. 7º), compartilhamentos de dados pessoais para fins de estatísticas, respeitada a LGPD (art. 8º), adoção medidas contra a desinformação, como a de informar os consumidores sobre o caráter patrocinado dos conteúdos (arts. 19 e ss.), com regras específicas aos provedores de aplicação que prestam serviços de mensageria privada (arts. 13 e ss.). As sanções, inclusive, não preveem crimes e vão, no máximo, à proibição ao provedor de aplicações de exercer atividades no país (art. 28 e incisos). Portanto, tampouco derroga nem expressa nem tacitamente o Marco Civil da Internet, também como tem sido dito6. Como traz deveres específicos aos provedores de aplicação de rede social, especialmente as de grande porte, remete os debates aos que dizem respeito ao artigo 19 do MCI, cuja constitucionalidade está sub judice no STF7, com repercussão geral (Tema 987)8. Rememorando o tema, sabe-se que o Marco Civil é um ponto divisório no regime de Responsabilidade civil por conteúdo inserido por terceiros. Conforme consolidado na jurisprudência do STJ, "anteriormente à publicação do Marco Civil da Internet, basta a ciência inequívoca do conteúdo ofensivo, sem sua retirada em prazo razoável, para que o provedor se tornasse responsável", porém, "a regra a ser utilizada para a resolução de controvérsias deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato lesivo" já que "após a entrada em vigor da lei 12.965/2014, o termo inicial da responsabilidade da responsabilidade solidária do provedor de aplicação, por força do art. 19 do Marco Civil da Internet, é o momento da notificação judicial que ordena a retirada de determinado conteúdo da internet"9. Desta feita, não altera a regra base do sistema adotado pelo Brasil, que repete a arquitetura norte-americana de "notificação para retirada" com a especialidade de que essa notificação deve ser judicial, diferente da Seção 230. Como visto, o sistema americano é alvo de críticas pela doutrina local, já que a imunidade dos provedores criou ao longo de décadas uma situação que incrementa riscos de discursos de ódio, desinformação, cyberbullying às vítimas. O decreto executivo de Trump, inclusive, também é duramente criticado pois declara ser "contra a censura", mas na prática representa uma vingança à rede social que, corretamente do ponto de vista jurídico, age para coibir a desinformação, a violência e busca zelar por um ambiente informacional sadio, mitigando riscos trazidos por conteúdos impróprios10. A Lei de Fake News brasileira pode ser um grande avanço nesse sentido, pois o Marco Civil, ao imunizar o provedor antes de ordem judicial nos termos do art. 19, deixa as vítima de ataques online em situação de vulnerabilidade agravada, pois põe sob seus ombros o dever de procurar a Justiça, indicar os links e aguardar o cumprimento de decisão judicial pelo provedor para retirar um conteúdo que lhe cause dano. Ao mesmo tempo, enaltece o poder privado dos provedores pois são eles que redigem unilateralmente as cláusulas contratuais de suas políticas de conteúdo, e têm ampla liberdade para retirar ou não determinado conteúdo, taxá-lo de violento, falso ou qualquer outro, mas, acima de tudo, lucrar com a publicidade advinda dos dados dele decorrentes sem se responsabilizar. Injuriar, humilhar, denegrir, disseminar ódio e mentiras, especialmente por perfis fake que prestigiam o anonimato e cada dia mais parecem agir de modo a induzir um ambiente hostil de ignorância estrutural induzida apenas evidenciam os riscos da atividade dos provedores de aplicação. Algo precisa ser feito e a iniciativa legislativa avança nesse sentido. O avançar dos fatos em câmera lenta, expressão do Ministro da Suprema Corte Argentina Ricardo Lorenzetti, permite demonstrar se houve ou não ou avanço, do ponto de vista valorativo, podendo justificar os limites, quando as inseguranças são muitas, e os riscos, grandes11. *Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital - RJ. Professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito - UFRJ. Professor permanente do Doutorado em Direito, Instituições e Negocios - UFF. Pós-doutorando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ. *João Victor Rozatti Longhi é defensor público no Estado do Paraná. Professor visitante do PPGD da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e de graduação do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu (CESUFOZ). Pós-doutor em Direito na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). __________ 1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. INQUÉRITO 4.781 - DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julg. 26/05/2020. Disponível aqui. Acesso 30 mai. 2020. 2 NEW YORK TIMES. Trump's Order Targeting Social Media Sites, Explained. The president wants to narrow legal protections for companies like Twitter after it began appending fact-check labels to his postings. Charlie Savage. May 28, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30. Mai. 2020. 3 BRASIL. Agência Senado. Senado votará na terça-feira projeto de combate a fake news, diz Davi. Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2020. 4 Cf. FRANKS, Mary Anne. The Cult of Constitution. Stanford: Stanford University Press, 2019. p. 181-182. 5 INFOMONEY. Senado quer aprovar às pressas uma lei que censura as redes sociais: Apesar de bem intencionado, projeto instituirá mecanismos de censura na internet brasileira. Por Pedro Menezes 29 maio 2020 13h51. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2020. 6 POMPEU, Ana. Entidades e empresas veem PL anti-fake news como um risco à liberdade de expressão Para elas, responsabilização de provedores incentivaria censura de conteúdos. PL está pautado no Senado no dia 2 de junho de 2020. In: JOTA. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2020. 7 EMENTA Direito Constitucional. Proteção aos direitos da personalidade. Liberdade de expressão e de manifestação. Violação dos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Prática de ato ilícito por terceiro. Dever de fiscalização e de exclusão de conteúdo pelo prestador de serviços. Reserva de jurisdição. Responsabilidade civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais. Constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e possibilidade de se condicionar a retirada de perfil falso ou tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente somente após ordem judicial específica. Repercussão geral reconhecida. (RE 1037396 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 01/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 03-04-2018 PUBLIC 04-04-2018) 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. 9 REsp 1694405/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2018, DJe 29/06/2018. 10 Sintetiza as críticas da doutrina e pontua a contradição do Decreto Executivo Mary Anne Franks: "And this is perhaps the most profound irony of the executive order: It criticizes the sweeping immunity provided to the tech industry by Section 230 of the Communications Decency Act, the controversial 1996 federal law that prohibits online intermediaries from being treated as the publishers or speakers of content posted by internet users. But the order doesn't address the core problem with the law that scholars and advocates have highlighted for years-namely, how its immunity provision not only fails to encourage online intermediaries to address harmful content but rewards them for indifference. Trump's order does not acknowledge the ways that this immunity has allowed online intermediaries to ignore, encourage, and profit from abuses-harassment, privacy invasion, deadly misinformation-directed at vulnerable groups, especially women and people of color. It does not recognize, in other words, the similarities between Twitter and Trump." THE ATLANTIC. Battle for the Constitution. The Utter Incoherence of Trump's Battle With Twitter: The president's executive order is opportunistic and Orwellian-but that was the whole point. FRANKS, Mary Anne. May 30, 2020. Disponível aqui. 11 Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.p. 118.
Texto de autoria de Carlos Frederico Barbosa Bentivegna Introdução Pretende-se com o presente artigo revisitar a jurisprudência recente do STJ acerca de instituto muito importante para a paz social e para a saúde mental das pessoas: o esquecimento. Trata-se de importante limite da mente humana e, a um só tempo, de uma estratégia de preservação da saúde mental. Recente decisão da Terceira Turma daquele sodalício, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva1, pôs novamente sob os holofotes da comunidade jurídica este importante direito, embora nem tenha sido a mais recente das decisões atinentes à matéria - ela é de 28 de abril de 2020, enquanto já há outra de 06 de maio transato (há 20 dias aproximadamente) exarada monocraticamente pelo relator Ministro Moura Ribeiro (REsp nº 1.637.397/SP, j. em 6/5/2020). Tal realidade demostra que o tema vem ganhando maior repercussão social e que a jurisprudência vem sobre ele se manifestando com frequência cada vez maior. Pode-se conceituar o direito ao esquecimento como a prerrogativa de não ser exposto indefinidamente aos prejuízos que podem advir da reiteração de publicações de uma notícia determinada; trata-se, assim, do direito de não se ver associado a fatos que, embora já tenham se revestido de interesse público, não justificam mais sua divulgação em razão da obsolescência causada pelo transcurso do tempo. Antonio Carlos Morato e Maria Cristina De Cicco, em artigo intitulado Direito ao esquecimento: luzes e sombras2 conceituam o direito ao esquecimento (diritto all'oblio) da seguinte forma: "de matriz francesa, tal é o direito de uma pessoa a não ver publicadas notícias, já legitimamente veiculadas, concernentes a vicissitudes que lhe dizem respeito, quando entre o fato e a republicação tenha transcorrido um longo tempo". Atualmente, invoca-se o esquecimento como um direito, para afastar uma lembrança de potencial ofensivo ou gravoso para algum aspecto da personalidade. Até mesmo, inclusive, em detrimento do sério risco envolvido, qual seja: aquele de se "apagar" a si mesmo ou, pior, o de criar um self diferente daquele real e que com ele concorra3. No entanto, ter seu nome apagado da história foi, no passado, uma pena e não um direito. A abolitio nominis era a grave consequência da damnatio memoriae da Roma antiga. Tratava-se de sanção a determinar a eliminação de qualquer traço de lembrança da pessoa proscrita a partir dessa condenação. A sanção era muito grave. Isso porque os antigos concediam à memória a imortalidade. Até mesmo Napoleão Bonaparte disse que "a imortalidade é a recordação que se deixa na memória dos homens". Seguiu-se também na Idade Média a prática de uma espécie de damnatio memoriae. Ao ponto de até mesmo um chefe da Igreja, o papa Formoso, ter sido alvo de uma condenação póstuma ao esquecimento, no ano de 897. Tendo ordenado o Vaticano fossem apagados todos os traços das obras e da biografia do pontífice4. De forma crescente, a doutrina do direito ao esquecimento vem ganhando força no Direito brasileiro e também no estrangeiro, sendo que, no Brasil, o tema mereceu o Enunciado n. 531 da VI Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho Superior da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, verbis: "A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento". Os detratores da teoria do direito ao esquecimento tecem contra essa tese - conforme resumo elaborado pelo ministro Luis Felipe Salomão (REsp n. 1.335.153-RJ) -, entre outras assertivas, as seguintes: a) aceitar o direito ao esquecimento seria atentar contra a liberdade de expressão do pensamento e de imprensa; b) fazer com que desapareçam dados acerca de fatos relacionados a uma determinada pessoa significa, também, afronta à história e à memória de toda a sociedade; c) a cogitação acerca do cabimento de um direito ao esquecimento seria um sinal de que a privacidade é a censura dos tempos atuais; d) o direito ao esquecimento faria com que desaparecessem registros de criminosos perversos e crimes de alta reprovabilidade, registros estes de grande interesse para a história social, judicial e policial; e) algo é lícito ou ilícito em face do ordenamento jurídico, não havendo como uma informação que já foi lícita transformar-se em ilícita apenas pelo decurso do tempo; f) quando uma pessoa se imiscui em fato de interesse coletivo, fica automaticamente reduzida a esfera de proteção de seus direitos da personalidade em benefício do interesse público, assim, a nova publicação, nada mais é do que a reafirmação de um fato já de conhecimento público; e g) que são "normais" e já "consagrados" os programas policiais que relatam acontecimentos passados, tanto no jornalismo brasileiro, quanto no estrangeiro. Uma a uma, as objeções lançadas em face do Direito ao Esquecimento foram sendo rechaçadas pelo STJ na série de decisões examinadas por ocasião desta pesquisa, como se verá adiante. Eventos do passado carregados de negatividade, com potencial destrutivo de reputações, equilíbrio mental e relações pessoais podem e devem ser relegados ao tempo em que tiveram de ser noticiados e comentados. Contemporaneamente à perda do interesse público por um determinado evento, deve ele ser enterrado para não mais causar efeitos deletérios. Situações há, no entanto, em que se renova o interesse social - e até mesmo histórico - pelo evento passado de forma reiterada. Esta a razão, precisamente, de ter-se de se proceder à análise casuística dos conflitos entre o interesse público (o direito informação, as liberdades comunicativas) e o direito ao esquecimento do indivíduo envolvido nos fatos, dedicando-se à ponderação entre os valores em presença do caso concreto para, só assim, ser possível definir qual o princípio a prevalecer naquela situação de colidência. Não há preponderâncias apriorísticas entre os interesses aqui discutidos quando colidentes. Haverá apenas aquele que, diante das circunstâncias fáticas específicas, deverá ter uma maior dimensão de peso - para ficarmos na expressão de Ronald Dworkin. É exatamente a esta ponderação de interesses conflitantes que se dedicou a jurisprudência recente do STJ, conforme se depreende dos casos dela extraídos e aqui noticiados: Cuidando de pedido de desindexação de dados fundado no direito ao esquecimento, decidiu o acórdão do Recurso Especial nº1660168/RJ (j. 08.05.2018, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T.) no sentido de que "há, todavia, circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados da busca, que não guardam relevância para o interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo". E prossegue afirmando que nestas situações excepcionais "o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca". Em acórdão anterior, num AgIn em REsp nº 1593873/SP (j.10.11.2016, rel. Min. Nancy Andrighi), a mesma 3ª Turma decidiu sobre a exata matéria que há "ausência de fundamento normativo para imputar aos provedores de aplicação de buscas na internet a obrigação de implementar o direito ao esquecimento e, assim, exercer função de censor digital". Depende, portanto, a tutela do direito ao esquecimento, em casos assim, da indicação por parte do interessado da página onde inserida a informação a ele atentatória. Examinando a questão da necessidade ou não de comprovação da má-fé das publicações jornalísticas que invadam o âmbito do direito ao esquecimento e, consequentemente, da proteção à personalidade, decidiu a 3ª Turma, no REsp nº 1369571/PE (j. 22.09.2016, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva), no sentido de que o direito ao esquecimento pertence à esfera da proteção da dignidade da pessoa humana e "a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem-se manifestado pela responsabilidade das empresas jornalísticas pelas matérias ofensivas por elas divulgadas, sem exigir a prova inequívoca da má-fé da publicação". No Brasil, houve dois casos emblemáticos e decisivos para o reconhecimento judicial da doutrina do direito ao esquecimento entre nós. Um deles foi o chamado Caso Aida Curi (STJ, REsp 1.335.153-RJ, cit.), em que a família - únicos irmãos vivos - da vítima (Aida) de homicídio praticado no ano de 1958 tentaram obter da Rede Globo de Televisão uma mitigação pelos alegados danos morais sofridos. Alegavam que a ré "cuidou de reabrir as antigas feridas dos autores, veiculando novamente a vida, a morte e a pós-morte de Aida Curi, inclusive explorando sua imagem, mediante a transmissão do programa chamado Linha Direta - Justiça". O curioso neste caso é que o Superior Tribunal de Justiça, em que pese ter chegado à mesma conclusão prática para os autores daquele caso concreto - a improcedência de seu pedido -, posicionou-se de forma diametralmente contrária, felizmente, aos argumentos esgrimidos pelas instâncias que lhe antecederam. O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, rebateu todas as teses que denotavam a resistência à aceitação da teoria do direito ao esquecimento e afirmou que: (i) o fato ser de conhecimento público não importava; (ii) que a existência de cobertura sensacionalista e abusiva à época não seria, agora, autorizativa de novo abuso; (iii) que a família tem sim o direito de ver esquecidos fatos que lhe causem dor e humilhação; e, principalmente, (iv) que os acusados, ou mesmo os condenados por crimes, têm o direito de, a partir de um determinado momento, ver esquecidas as informações quanto aos crimes pretéritos pelos quais já pagaram (principalmente os acusados absolvidos). O que se viu do voto do relator foi um libelo em defesa da doutrina do direito ao esquecimento. Numa passagem de seu voto, diz o relator que "a assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica". Lembra o ministro que o ordenamento é prenhe de situações em que confere ampla significação à passagem do tempo, exatamente para conferir "o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar". Dá como exemplos a prescrição no âmbito do Direito Civil; o prazo máximo de cinco anos para constarem em bancos de dados informações negativas a respeito de consumidores inadimplentes, já no âmbito do Direito do Consumidor; e o instituto da reabilitação penal do artigo 93 do Código Penal e do artigo 748 do Código de Processo Penal. Na mesma ocasião, em julgamento conjunto, examinou-se no STJ, também sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão - com fundamentação bastante semelhante, ou mesmo quase idêntica para ambos os acórdãos - o Recurso Especial n. 1.334.097-RJ, interposto pela Rede Globo de Televisão em face de condenação por danos morais, fundada no direito ao esquecimento, em ação movida por Jurandir Gomes de França. Muito resumidamente, já que os fundamentos jurídicos que importaram no reconhecimento do direito ao esquecimento são os mesmos, passa-se aos fatos discutidos neste caso específico, pois aqui o desfecho foi favorável ao autor, "indenizado" pela emissora, porquanto reconhecido como vulnerado seu "direito ao anonimato e ao esquecimento": Jurandir Gomes de França foi indiciado como coautor/partícipe da série de homicídios que passou para a crônica policial e se tornou tristemente célebre no Brasil como a "Chacina da Candelária", ocorrida em 23 de julho de 1993. Levado a júri popular, foi Jurandir absolvido por negativa de autoria pela unanimidade dos membros do conselho de sentença. Passados treze anos da data dos fatos, o mesmo programa da Rede Globo de Televisão, o Linha Direta - Justiça manifestou ao autor o interesse por uma entrevista, a que este último não aquiesceu, porquanto não pretendia ver seu nome relacionado àqueles fatos, mormente tantos anos depois e após ter sido absolvido da acusação de envolvimento no crime. Queria o autor permanecer anônimo e ser esquecido, mas o programa foi ao ar mencionando-o. Diante dessa conduta da emissora, o autor ajuizou ação indenizatória por danos morais mas o juízo da 3ª Vara Cível da comarca do Rio de Janeiro/RJ julgou improcedente o pedido indenizatório5. Apreciando o feito em grau de recurso, interposto pelo autor, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria de votos, reformou a decisão de primeiro grau (TJRJ, ApCív 0029569-97.2007.8.19.0001, rel. Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, 16ª CâmCív, j. 11.11.2008). Do acórdão do STJ, de lavra do ministro Luis Felipe Salomão, que manteve a decisão de segunda instância, condenando a emissora, lê-se que "muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, que, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado". Concorda-se, in totum, com o deslinde dado à causa, porquanto se se assegura ao condenado, ressocializado ou em processo de ressocialização, o direito ao esquecimento, com muito mais razão dever-se-ia garantir o mesmo direito àquele que foi absolvido da acusação por negativa de autoria. O que se deve ter em mente, de resto, como em todos os casos de princípios constitucionais postos em conflito, é que o direito ao esquecimento não é também um direito absoluto (como nenhum outro há) e que a ponderação entre ele e aquele que a ele se contraponha não pode ser feita in abstracto, deve sempre dar-se em vista dos dados da realidade fática a envolver o caso concreto. *Carlos Frederico Barbosa Bentivegna é mestre e doutorando em Direito Civil pela FDUSP. __________ 1 Recurso Especial nº 1.736.803/RJ, j. em 28.04.2020, 3ª Turma, que afasta a incidência do direito ao esquecimento sobre os fatos que norteariam a preponderância do interesse histórico e social legítimo em virtude das grandes violência e repercussão de crime a envolver pessoas notórias. Faz, no entanto, um apontamento de grande interesse que é a impossibilidade de, a pretexto de se mencionar o fato criminoso pretérito, explorar a reportagem a vida quotidiana atual das pessoas com ele envolvidas 2 MORATO, Antonio Carlos; DE CICCO, Maria Cristina. Direito ao esquecimento: luzes e sombras. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães (orgs.). Estudos em homenagem a Ivette Senise Ferreira. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 80. 3 GAUDENZI, Andrea Sirotti. Diritto all'oblio: responsabilità e risarcimento del danno, cit., p. 11. 4 SANSTERRE, Jean-Marie. Formoso (verbete). Enciclopedia dei papi. Roma: Istituto dell'enciclopedia italiana. v. 2, 2000. 5 PJRJ, 3ª Vara Cível da comarca da Capital, processo n. 2012/0144910-7. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Roberta Densa A arte tem nos ajudado a sobreviver durante o isolamento social. Nos refugiamos nos livros, na música, na poesia, no cinema e, certamente, não fossem os artistas, a vida teria ficado ainda mais difícil. Muitas foram as apresentações ao vivo (lives) em redes sociais de artistas, músicos, comediantes, tours virtuais em zoológicos, museus entre outras. Para que o artista tenha a merecida remuneração, alguns anunciantes patrocinaram as apresentações em redes sociais, aproveitando o espaço para estampar marcas e produtos durante as apresentações. Trata-se da técnica publicitária denominada "product placement", em que o fornecedor introduz a marca em conteúdos de entretenimento como shows, filmes, séries e jogos. É a estratégia utilizada, por exemplo, em todas as gravações do filme 007, em que o protagonista utiliza automóvel de determinada montadora e a marca é associada a astúcia do personagem. A essa altura o leitor já deve ter se recordado da marca do automóvel e é exatamente essa a reação esperada pelo anunciante: ser lembrado, ficar na mente do consumidor. A técnica não é regulamentada expressamente pelo Código de Defesa do Consumidor, apenas proibindo a publicidade que não pode ser identificada imediatamente pelo consumidor como tal (art. 36 do CDC). Nesse caso, basta que o consumidor possa, ao assistir ao filme, identificar a publicidade da marca do automóvel. Portanto, não se pode falar em proibição de colocação de marcas durante as apresentações artísticas em redes sociais, desde que haja o expresso cumprimento da regra estampada no art. 36 do CDC. A questão que se coloca diz respeito à publicidade de bebidas alcoólicas em apresentações de artistas veiculadas pelo Instagram. Vimos ao menos duas dessas apresentações em que os artistas consumiram algumas doses de bebidas1, e, em uma delas, o cantor pareceu ter dificuldade de fazer a apresentação por estar, aparentemente, embriagado2. Dito isso, pergunta-se: poderia haver publicidade em rede social de bebidas alcoólicas? É permitido o "product placement" em apresentações no Instagram ou Facebook? Pode o artista sugerir o consumo das bebidas nesses espaços? Em primeiro lugar, é necessário observar que o Instagram e o Facebook tem classificação indicativa para 13 anos de idade, razão pela qual muitos dos seus usuários são adolescentes e estão na fase em que há maior preocupação dos pais em relação ao uso de bebidas alcoólicas, cigarros e outras substâncias (lícitas, mas proibidas para essa faixa etária). Assim, por evidente, não podem referidas redes sociais simplesmente aderir aos apelos de mídia dos fornecedores das referidas substâncias, devendo seguir, em território nacional, as regras impostas aos demais meios de comunicação. A publicidade de bebidas alcoólicas sofre restrições pela lei 9.294/19963 e pelo Código de Ética Publicitário do CONAR. Dentre as principais restrições impostas pela Lei 9.294/1996, ressaltamos as que têm por objetivo a proteção da criança e do adolescente, quais sejam: i) a publicidade de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão somente poderá ocorrer entre as 21 (vinte e uma) horas e as 6 (seis) horas (art. 4o)4; ii) a publicidade não poderá associar o produto ao esporte olímpico ou de competição, ao desempenho saudável de qualquer atividade, à condução de veículos e a imagens ou ideias de maior êxito ou sexualidade das pessoas (art. 4o, § 1o); iii) os rótulos das embalagens de bebidas alcoólicas conterão advertência nos seguintes termos: "Evite o Consumo Excessivo de Álcool" (art. 4o, § 1o); iv) é vedada a utilização de trajes esportivos, relativamente a esportes olímpicos, para veicular a propaganda dos produtos (art. 6o). Em relação ao patrocínio, a lei expressamente prevê, em seu artigo 5º, que "para eventos alheios à programação normal ou rotineira das emissoras de rádio e televisão, poderão ser feitas em qualquer horário, desde que identificadas apenas com a marca ou slogan do produto, sem recomendação do seu consumo". Veja que a lei federal admite a inserção da marca nas apresentações (product placiment), sem recomendação do seu consumo, e determina expressamente horário de veiculação em rede televisiva. Ora, por óbvio, em 1996 não havia mídias sociais e não poderia ser possível inserir tal previsão para publicidade em meio digital. De todo o modo, parece claro que a publicidade deveria também seguir as mesmas lógicas de restrições, especialmente por se tratar de mídia com forte apelo entre os adolescentes. No mesmo sentido, o CONAR estabelece uma série de regras e princípios, deixando bem esclarecido que, por se tratar de produto de consumo restrito e impróprio para determinados públicos e situações, a publicidade deverá ser estruturada de maneira socialmente responsável, sem se afastar da finalidade precípua de difundir marca e características, vedados, por texto ou imagem, direta ou indiretamente, inclusive slogan, o apelo imperativo de consumo e a oferta exagerada de unidades do produto em qualquer peça de comunicação. Em relação à proteção de crianças e adolescentes, a publicidade não poderá ter esse público como alvo e, diante deste princípio, os anunciantes e suas agências adotarão cuidados especiais na elaboração de suas estratégias mercadológicas e na estruturação de suas mensagens publicitárias, observando as seguintes regras: i) "crianças e adolescentes não figurarão, de qualquer forma, em anúncios; qualquer pessoa que neles apareça deverá ser e parecer maior de 25 anos de idade; ii) as mensagens serão exclusivamente destinadas a público adulto, não sendo justificável qualquer transigência em relação a este princípio. Assim, o conteúdo dos anúncios deixará claro tratar-se de produto de consumo impróprio para menores; não empregará linguagem, expressões, recursos gráficos e audiovisuais reconhecidamente pertencentes ao universo infanto-juvenil, tais como animais "humanizados", bonecos ou animações que possam despertar a curiosidade ou a atenção de menores nem contribuir para que eles adotem valores morais ou hábitos incompatíveis com a menoridade; iii) o planejamento de mídia levará em consideração este princípio, devendo, portanto, refletir as restrições e os cuidados técnica e eticamente adequados. Assim, o anúncio somente será inserido em programação, publicação ou web-site dirigidos predominantemente a maiores de idade. Diante de eventual dificuldade para aferição do público predominante, adotar-se-á programação que melhor atenda ao propósito de proteger crianças e adolescentes; iv) os websites pertencentes a marcas de produtos que se enquadrem na categoria aqui tratada deverão conter dispositivo de acesso seletivo, de modo a evitar a navegação por menores". Há, ainda, outros princípios e regras que devem ser observados, que, de alguma forma, também tocam a defesa e a proteção da criança e do adolescente. 1) Princípio do consumo com responsabilidade social: a publicidade não deverá induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável. 2) Cláusula de advertência: Todo anúncio, qualquer que seja o meio empregado para sua veiculação, conterá "cláusula de advertência", incluindo, nas embalagens e nos rótulos, a reiteração de que a venda e o consumo do produto são indicados apenas para maiores de 18 anos (exemplo: beba com moderação). 3) Mídia exterior e congêneres: por alcançarem todas as faixas etárias, sem possibilidade técnica de segmentação, as mensagens veiculadas em Mídia Exterior e congêneres, limitar-se-ão à exibição do produto, sua marca e/ou slogan, sem apelo de consumo, mantida a necessidade de inclusão da "cláusula de advertência". Vale notar que, em alguns casos, a frase de advertência pode ser dispensada. Assim sendo, é possível afirmar que a publicidade em meio digital das bebidas alcoólicas deve obedecer todas as regras ora mencionadas, demonstrando o caráter de ilegalidade das "lives" especialmente por deixar de observar o princípio da responsabilidade social. Ainda que a inserção das marcas sejam permitidas durante a programação (product placement), mesmo que desacompanhadas da advertência, jamais poderia haver a sugestão de consumo por parte dos apresentadores. O desrespeito a esses preceitos coloca em maior vulnerabilidade os adolescentes expostos ao conteúdo publicitário, considerando que os aplicativos tem classificação indicativa de 13 (treze) anos, podendo ser discutida, em ação coletiva a possiblidade de compensação por dano moral coletivo. *Roberta Densa é doutora em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Professora de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). __________ 1 Gusttavo Lima leva apenas advertência do Conar por bebidas alcoólicas em lives. 2 Bruno bêbado, Marrone bravo? Os melhores momentos da live de Buno e Marrone. 3 É preciso esclarecer que, para os fins dessa lei, devemos considerar bebidas alcoólicas somente aquelas que contêm teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac, por essa razão, a publicidade de cerveja e outras bebidas consideradas de baixo teor alcoólico não está sujeita às restrições da lei. Por outro lado, a regulamentação do CONAR é restritiva para todas as bebidas alcoólicas, independentemente do teor alcoólico. 4 A restrição quanto ao horário de veiculação da publicidade está, de certa maneira, em consonância com a Portaria no 1.189/2018 do Ministério da Justiça, que trata do horário de veiculação de programas e sua classificação indicativa. O legislador entendeu que crianças e adolescentes não podem ser os destinatários da publicidade e restringiu o horário de sua veiculação para o horário noturno. As demais restrições são igualmente pertinentes para crianças, adolescentes e também a adultos. A publicidade contendo associação de bebidas alcoólicas a qualquer atividade esportiva deve ser considerada abusiva pois, subliminarmente, quer que o consumidor acredite que o uso do álcool é saudável assim como a atividade esportiva.
Texto de autoria de Daniel Bucar* No último dia 21 de maio de 2020, o Plenário da Câmara dos Deputados deliberou, em regime de urgência, acerca do Projeto de Lei 1397/20, o qual, proposto pelo Deputado Hugo Leal, recebeu a relatoria do Deputado Isnaldo Bulhões Júnior. Em suma síntese, o Projeto institui medidas transitórias, a vigorar até 31 de dezembro de 2020, cujo escopo é prevenir a crise econômico-financeira decorrente da pandemia de COVID-19, que atingiu certa categoria que denominou de "agentes econômicos". A Subemenda Substitutiva Global ao Projeto1, que reflete o texto final aprovado, acolheu em parte duas das quinze Emendas propostas e segue para deliberação do Senado Federal. A iniciativa legislativa demonstra a sensibilidade do Poder Legislativo aos efeitos da crise econômica, o que é demonstrado não apenas pelo substitutivo aprovado, mas também pelos outros três projetos de lei (PL's 1781/20, 2067/20 e 2070/20), os quais, apensados ao PL 1397/20, evidenciam a agilidade parlamentar para o tratamento da problemática. Breve Análise das Alterações Propostas Grosso modo, o texto aprovado apresenta diversas medidas para proporcionar uma reabilitação de executores da atividade empresarial, bem como evitar um assoberbamento da máquina judiciária para o tratamento dos efeitos da crise sanitário-econômica. Neste sentido, é a previsão de uma espécie de stay period geral e irrestrito (art. 3º, caput): durante o prazo de 30 dias contados a partir da publicação da lei (art. 5º, caput), todas ações executivas de obrigações vencidas após 20 de março de 2020 e respectivas ações revisionais ficam suspensas. Embora ao stay period não se submetam salários devidos e contratos pactuados ou renegociados após o 20 de março, não há dúvidas que se trata de providência de larguíssimo espectro, visto que não se aprecia a eventual e efetiva necessidade do devedor e coobrigados (art. 3º, §1º II, a). Independentemente, portanto, da atividade do devedor, é imposta a suspensão não apenas as ações judiciais, mas também a incidência de multas moratórias contratuais e tributárias (art. 3º, §1º, I, 'a' e 'b'), a excussão judicial de extrajudicial de garantias (art. 3º, §1º, II, 'a'), decretação de falência e (art. 3º, §1º, II, 'b'), e a resilição unilateral de contratos bilaterais e antecipação por vencimento (art. 3º, §1º, II, 'b'). Caso mantida no Senado Federal, uma suspensão desta envergadura não pode beneficiar, por outro lado, o devedor de atividade que sabidamente não foi atingida pelos efeitos da crise sanitário-econômica, cabendo, neste sentido, ao credor o ônus de demonstrar a não submissão de sua contraparte aos referidos efeitos. De toda forma, o stay period genérico ameniza eventual vulnerabilidade do devedor e lhe propicia um ambiente para renegociação extrajudicial de todas as suas dívidas, que é exatamente o escopo da suspensão2, como se pode extrair do parágrafo único do art. 5º3. Por outro lado, é bem-vindo o denominado procedimento de jurisdição voluntária da Negociação Preventiva. Trata-se de expediente dirigido a devedor que demonstre ter sofrido perda de 30% do faturamento4, em que ele poderá entabular sessões de renegociação com os credores de qualquer natureza, durante cujo período, de até 90 dias (art. 6º, II), fará jus a novo stay period (art. 6º I). Após este prazo, o devedor deverá informar o resultado das negociações ao Juízo processante, independentemente do sucesso da repactuação, acompanhado de relatório sobre os trabalhos (art. 6, IV). Embora seja facultativa a participação do credor (art. 6º, III), não se pode negar, neste ambiente, maior potencialidade no dever de renegociar, visto que eventual recalcitrância injustificada poderá configurar ato abusivo (art. 187, Código Civil) e, portanto, responsabilidade civil (art. 927, Código Civil), cuja sindicabilidade está na tentativa de haver do devedor valores além de sua capacidade e responsabilidade patrimonial (art. 391, Código Civil). O procedimento da Negociação Preventiva, ele próprio, também é facultativo. Significa dizer que o devedor poderá propor diretamente recuperação extrajudicial ou judicial, sendo certo que eventual pedido de prorrogação da Negociação Preventiva será tido como pedido de recuperação judicial (art. 8º, §1º). De toda sorte, aquele credor que tiver repactuado seu crédito na Negociação Preventiva fará jus à recomposição da garantia e do valor originais (abatidos o que já tiver recebido), caso o devedor venha a pedir posteriormente recuperação extrajudicial ou judicial (art. 8º, §2º). Trata-se de interessante medida ao fomento para a renegociação. No mais, o texto do Substitutivo do Projeto de Lei encaminhado ao Senado Federal traz alterações pontuais e transitórias (até 31 de dezembro de 2020) à Lei 11.101/05, entre as quais merecem destaque (a) a redução do quórum para a metade mais um dos créditos de cada espécie por ele abrangidos (art. 10, caput), (b) a inexigibilidade das obrigações em planos de recuperação homologados pelo prazo de 120 dias (art. 11), (c) a faculdade de apresentação de novos planos de recuperação por recuperandos em procedimentos em curso que já tenham, ou não, plano original homologado (art. 12), (d) não aplicação dos prazos impeditivos para submissão a novos pedidos de recuperação extrajudicial e judicial (art. 13, I), (e) majoração, para R$ 100.000,00, do valor mínimo para decretação de falência e (f) não convolação da recuperação judicial em falência por descumprimento de plano de recuperação judicial. Quanto aos empresários e sociedades que se enquadrem no conceito de microempresa (receita bruta anual até R$ 360.000,00 - art. 3º, I, Lei Complementar 123/13) e empresa de pequeno porte (receita bruta anual até R$ 4.800.000,00 - art. 3º, II), o regime excepcional proposto prevê um maior prazo do parcelamento, que passa a ser de 60 meses. Embora o texto do Substitutivo tenha afastado a incidência, no período transitório, do art. 72, parágrafo único, da Lei 11.101/05, que determinava a decretação de falência em razão de oposição de mais da metade dos credores quirografários, não estendeu o plano de recuperação especial para além dos credores comuns, cuja restrição vem marcando o insucesso da disciplina deste a edição da Lei 11.101/05. Necessidade de Aprimoramentos Entretanto, além das questões acima apontadas, dois aprimoramentos se fazem necessários para amenização dos efeitos da crise, para os quais deverá o Senado Federal dispensar especial atenção. (a) A Figura Excêntrica do Agente Econômico O Substitutivo do Projeto de Lei 1397/20 inova ao inserir como legitimado para acessar o Sistema de Prevenção à Insolvência a figura do agente econômico. Apesar de manter a restrição à recuperação extrajudicial e judicial a categoria de empresário e sociedade empresária (art. 8º), o substitutivo atentou, de toda sorte, para a necessidade de expandir as medidas preventivas a outros players endividados e incluiu no stay period geral e na Negociação Preventiva "a pessoa jurídica de direito privado, o empresário individual, o produtor rural e o profissional autônomo que exerça regularmente suas atividades" (art. 2º, §1º). Portanto, no que toca às pessoas jurídicas, o 'sistema' vai além das sociedades empresárias; ou seja, abrange associações, fundações, partidos políticos, organizações religiosas e sociedades outras que não exerçam atividades empresariais (art. 44, Código Civil). Quanto às pessoas naturais, abraça o empresário, o produtor rural5 e o profissional liberal, mas afasta, como se fosse factível, as demais pessoas. A inovação, embora bem-vinda, não anda bem quanto à tentativa de exclusão das pessoas naturais que não exercem atividades empresarial, rural e/ou profissional, o que lhe faz, por tal motivo, ser discriminatória, desatenta à realidade e, caso mantida, de tortuosa aplicação. Com efeito, de há muito carece ao ordenamento brasileiro uma disciplina própria para a reabilitação patrimonial de pessoas naturais. A solução expressa na legislação é a insolvência civil, tratada na única parte em vigor do Código de Processo Civil de 1973 (art. 748 a 786-A, conforme determinação do art. 1052 do CPC/15). Contudo, todos fogem da insolvência civil6. Se o procedimento, desde sua origem, nasceu anacrônico para pessoas jurídicas não empresárias, quanto mais o foi para a pessoa natural, haja vista a retirada de sua autonomia negocial (senão um morto civil, o insolvente é considerado um incapaz - art. 752, CPC/73). A bancarrota da insolvência civil é por todos conhecida e poucos procedimentos desta espécie são conhecidos na história forense brasileira. Para afastar a inclusão indiscriminada de pessoas naturais ao Sistema de Prevenção à Insolvência, cuja extensão, inclusive, foi objeto da Emenda nº 13 (rejeitada) de autoria da Deputada Soraya Santos, o relator, Deputado Isnaldo Bulhões Júnior, alegou que "os consumidores pessoas naturais já estavam excluídos na redação original do art. 2º do PL e serão tratados em proposição própria, que já tramita nesta Casa (PL nº 3515/2015 - que trata do superendividamento do consumidor7)". Contudo, para além do PL 3515/15 não ser destinado ao período excepcional, o tratamento de débitos restrito a relações de consumo ali proposto é aquém e atenta contra o princípio básico da unicidade patrimonial. Basta pensar que duas relevantes preocupações da doutrina e legislador em um período de pandemia simplesmente são ignoradas por aquela solução parcial: os alimentos e a locação. O patrimônio é único, garantidor geral dos créditos (art. 391, CC), e não se pode, portanto, buscar tratamento parcial para salva-los de débitos que simplesmente não possuem posição preferencial no ordenamento brasileiro, como é o oriundo de consumo. Por outro lado, a mesma unicidade patrimonial escancara a fragilidade de se fragmentar a responsabilidade das obrigações entre consumeristas e não consumeristas. Basta pensar no financiamento obtido por um profissional liberal, a quem se permite acessar o Sistema de Prevenção à Insolvência, cujo produto ele utilizou para aquisição de aparelhos destinados à sua atividade profissional e que também são utilizados para fins pessoais (mobiliário para home office, por exemplo): este débito, inadimplido, seria atingido pelo stay period8? Por outro lado, a barreira criada, inclusive de acesso geral a pessoas naturais a uma reabilitação patrimonial, acaba por fulminar, em certas ocasiões, o próprio empreendedorismo do sócio de responsabilidade limitada, pois, uma vez chamado a garantir obrigações sociais (prática quotidiana no mercado), acaba por não lhe ser possibilitado uma recuperação pessoal, até porque contra ele correm as dívidas originais que não tem o condão de serem novadas por eventual plano de recuperação9. Lamenta-se que subterfúgios classificatórios - não condizentes com a unicidade patrimonial e tampouco com a versatilidade da cadeia produtiva brasileira - criem um pseudo-obstáculo para a reabilitação do patrimônio de qualquer pessoa, o que, desprovido de argumentação sustentável, barre o alinhamento do ordenamento jurídico brasileiro à disciplina similar já amplamente difusa e adotada pelos Estados Unidos e por diversos países europeus10. Da mesma forma, não se compreende tamanha discriminação à reabilitação patrimonial a qualquer pessoa humana, cuja reiterada negação de acesso, inclusive, a todo sistema recuperacional não reflete o valor que a Constituição da República lhe outorga. Portanto, não há como escapar: qualquer pessoa que pertença à cadeia da economia é um agente econômico e a todos deve-se abrir, principalmente em um momento delicado de crise sanitário-econômica, a possibilidade de se reabilitar, adequando-se, no que couber e em especial, o procedimento da Negociação Preventiva11. (b) Imprescindível Fresh Start a Empresários na Falência Neste crítico momento, também perdeu a Câmara de Deputados a oportunidade de instituir um regime de fresh start - ou rápido recomeço - ao empresário que sucumba, em razão da crise sanitário-econômica, à falência. Apesar do espírito da Lei 11101/05 se preocupar em retirar o estigma do falido e atenuar o caráter castigante da falência, certo é que ainda pesa a mácula sobre ao empresário falido que empreende em nome e responsabilidade própria. Se mesmo ao sócio de responsabilidade limitada, aos controladores e administradores da sociedade falida podem se estender efeitos da falência (art. 82, da Lei 11.101/05), esta extensão é inerente às pessoas naturais empresárias que recebem, inclusive, sanção de inabilitação ao exercício de "qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingue suas obrigações" (art. 102). Como sabido, em decorrência das medidas adotadas pelo Poder Público voltadas ao isolamento social, a forte retração na cadeia de circulação de bens e serviços fez minguar o exercício da maior parte das atividades empresariais. Às pessoas naturais que executam tal atividade em nome próprio, a probabilidade de se ver em um estado falimentar se agrava ainda mais. Diante disto, por razões totalmente alheias ao exercício da empresa, não se apresenta viável a manutenção, no presente momento, da sanção indiscriminada de inabilitação. A persistência da pena significa dizer que ao empresário em estado falimentar, é-lhe facultado (a) sobreviver moribundo para manter sua atividade com inúmeras restrições, ou (b) buscar declaração de sua falência e receber a pena - além do sofrimento da própria pandemia - de ficar anos a fio inabilitado para empreender. A ideia de fresh start é longe de ser nova. Encontra-se largamente disseminada no direito concursal norte-americano e está intimamente relacionada à noção de que falir faz parte do ciclo econômico e não uma pecha pessoal a ser imputada a um agente relevante (que todos são) da economia12. Em suma síntese, a aplicação do fresh start se obtém mediante rápida (em menos de seis meses) extinção das obrigações que pendiam sobre o patrimônio do falido, as quais serão liquidadas por bens ou renda destinados a um trust que as liquidará. Com tal medida, ao falido será permitido uma rápida segunda chance, de forma a retornar a empreender. A experiência norte-americana do fresh start também se estende a sociedades e a adoção no Brasil, para tal categoria de devedores, merece maior reflexão e delineamentos dos critérios próprios. De toda forma, não se encontra obstáculo para que que se afaste, no regime transitório, a aplicação do art. 102 da Lei 11.101/05 a empresários e se deles sejam exoneradas as obrigações por meio, ao menos, de antecipação da tutela desoneratória do passivo (art. 303, CPC), desde que não imputada preliminarmente responsabilidade para a falência13. ______________ 1 confira aqui. 2 Importante notar que em doutrina a necessidade de impor uma renegociação prévia entre as partes nestes tempos de crise já é defendido por Marco Aurélio Bezerra de Mello, confira aqui. 3 Art. 5º (...) Parágrafo único. Durante o período de suspensão previsto no caput deste artigo, o devedor e seus credores deverão buscar, de forma extrajudicial e direta, a renegociação de suas obrigações, levando em consideração os impactos econômicos e financeiros causados pela pandemia de Covid-19. 4 "Art. 6º, §2º - (...) comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, o que será verificado e devidamente atestado por profissional de contabilidade." 5 Ao acolher o produtor rural, o Substitutivo se alinha a recente precedente do Superior Tribunal de Justiça, expressado em acórdão proferido pela 4ª Turma no Recurso Especial nº 1.800.032/MT, disponível aqui. 6 Neste sentido, é o recente pedido e deferimento da Recuperação Judicial da associação mantenedora da Universidade Candido Mendes, disponível aqui. 7 Conforme Parecer em Plenário, disponível aqui. 8 Não por outra razão, nem há como pensar na aplicação deste obstáculo para segregação dívidas de consumo assumidas por pessoas jurídicas e mencionado no Parecer citado na nota antecedente. 9 No sentido de segregar a novação da recuperanda em relação aos coobrigados, REsp 1333349/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 02/02/2015. 10 Para notícia do fresh start norte americano e o padrão europeu, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 127/166. 11 Como, por exemplo, o direcionamento de um pedido como tal a outro Juízo que não o empresarial, conforme a previsão do art. 6º, §1º. 12 Remeta-se, neste específico ponto, a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 128/133. 13 É de se registrar, neste sentido, decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais na Comarca de São Paulo (proc. nº 0042511-48.2016.8.26.0100), que, com menções ao fresh start americano, reabilitou sócio a quem se estendeu os efeitos da falência antes da comprovação do pagamento das dívidas tributárias, desarrazoadamente exigida pelo art. 191, CTN. ______________ *Daniel Bucar é Professor Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Advogado. Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Paulo R. Roque A. Khouri O Justiça em Números do CNJ divulgado em 2018 sobre o perfil das demandas em todo o Poder Judiciário revela que 5,43% de todos os processos em tramitação no País referem-se a ações de responsabilidade civil por danos materiais e morais. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, pedidos de danos morais chegaram a representar mais de 60% das demandas1. Apenas como comparativo, no mesmo período, as demandas relativas a direito tributário (dívida ativa, impostos federais/estaduais/municipais e contribuições previdenciárias) nas justiças estadual e federal representavam 3,68% de todo o estoque de ações e somavam 1.891.861 processos. Nos juizados especiais, as ações envolvendo apenas danos morais representavam 22,96% de todo o estoque de ações em 2017 - mais precisamente 1.819.905 processos. E observe que não se está a falar de todas as ações que envolvem relações de consumo. Segundo os dados mais recentes, 80% de todos os processos nos juizados especiais cíveis cuidam de relação de consumo. Segundo estudo da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor de 2015, "falhas na prestação dos serviços regulados são origem da maioria dos conflitos de consumo registrados no país"2. O estudo faz uma crítica a atuação das agências reguladoras, que têm falhado na fiscalização e punição das empresas pela má prestação dos serviços, levando consumidores a uma peregrinação demandante que começa nos PROCONS e termina na Justiça com as ações individuais. Em sintonia com o relatório da SENACON, estudo do IPEA em parceria com o CNJ3 revela que o que mais tem levado consumidores a baterem às portas do Judiciário pela via do juizado especial cível são as empresas de telefonia e instituições financeiras, as quais agrupam mais de 40% dos processos em todas as unidades da federação pesquisada. Observe, abaixo, três precedentes de temas comuns nos juizados especiais e que, não raro, ensejam a condenação por dano moral: Extravio de bagagem O extravio de bagagem, por si só, gera dano moral in re ipsa, porquanto encerra gravidade suficiente para causar desequilíbrio do bem-estar bem como sofrimento psicológico relevante. Analisadas as condições econômicas das partes, o valor arbitrado a título de danos morais deve ser fixado de forma a reparar o sofrimento da vítima e penalizar o causador do dano, respeitando a proporcionalidade e razoabilidade, não se limitando aos termos previstos nas convenções de Varsóvia e Montreal. (STJ, ARESP n. 1.363.894-MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 26.10.2018 - destacou-se) No julgado acima o STJ chega a sustentar que no caso do extravio de bagagem não só há dano moral, como o dano é in re ipsa, ou seja, uma espécie de dano automático que sobrevém com o mau funcionamento do serviço de transporte aéreo e, portanto, independe de comprovação. Espera na fila Responsabilidade civil. Longa espera em fila de agência bancária por tempo superior ao estabelecido em lei municipal. Dano Moral. Necessidade, demais, ainda que não se pudesse falar em dano imaterial, de prevenção de novos atos semelhantes, lesivos ao consumidor. Sentença de improcedência reformada. Ônus de sucumbência. Inversão. Apelação provida. (TJPR, APL: 15246414 PR, Ac. 1524641-4, Rel. Albino Jacomel Guerios, j. 02/06/2016, 10ª Câmara Cível, 28/06/2016 - destacou-se) Nesse julgado, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) entendeu, a exemplo de outros tribunais, que a espera na fila acima do determinado pela Lei Municipal gerava o direito do consumidor ao dano moral, como "consequência negativa do ato" violador do direito. Conforme trecho do julgado: o réu responde por que a espera na fila por tempo superior ao tempo razoável definido pela lei municipal e pelo senso comum causa dano moral, visto por ora - o dano imaterial - apenas como as consequências negativas do ato no espírito ou na psique do ofendido (...). Cancelamento de linha telefônica O condicionamento da rescisão contratual à quitação de débito inexistente, aliado ao martírio infligido ao consumidor ao tentar cancelar a linha telefônica, tipifica ilícito gerador de dano moral indenizável, cujo quantum deve assentar-se em critérios de razoabilidade e proporcionalidade, subsumindo-se em valor que, a um só tempo, não sirva de lucro à vítima, nem tampouco desfalque o patrimônio do lesante (...)(TJSC, proc n. 657404 SC 2009.065740-4, Rel. João Henrique Blasi, j. 03/12/2010 - destacou-se) Nesse julgado do Estado de Santa Catarina consta o seguinte: "o condicionamento da rescisão contratual à quitação de débito inexistente, aliado ao martírio infligido ao consumidor ao tentar cancelar a linha telefônica, tipifica ilícito gerador de dano moral indenizável". Pois bem. Nos três casos acima fica evidente que o ponto de partida que levou à condenação por dano moral foi o mau funcionamento dos serviços regulados, seja o transporte aéreo, o bancário ou o de telefonia. O Tribunal recebeu demandas que, na verdade, decorrem de um problema do baixo nível de fiscalização dos entes reguladores. Do mau funcionamento do serviço do ente regulado não decorreu uma sanção administrativa, mas uma condenação por dano moral. A questão que se coloca aqui é a seguinte: afastado qualquer juízo legítimo de reprovação pela má conduta do fornecedor, que tem reiterado de forma injustificável os casos de má prestação dos serviços, os julgados aqui trazidos tratam efetivamente de demandas nas quais cabe uma condenação por dano moral ou se trata propriamente de uma punição civil? Nos Estados Unidos não raro empresas que têm problemas reiterados com consumidores sofrem administrativamente sanções pecuniárias pesadíssimas dos entes reguladores, como Food and Drug Administration (FDA) e Federal Trade Commission (FTC), por violação reiterada de direitos dos consumidores. Exemplo disso ocorreu em caso da Herbalife, que aceitou pagar U$200 milhões de dólares administrativamente para evitar que o caso fosse para a justiça americana. É neste sentido, inclusive, a crítica constante de relatório da SENACON de que "falhas na prestação dos serviços regulados são origem da maioria dos conflitos de consumo registrados no país"4. As penalidades aplicadas contra os entes regulados por má prestação dos serviços acabam perdendo seu efeito prático de desestimular más condutas, seja por conta da demora para julgar os recursos interpostos no âmbito administrativo, seja por conta de questionamento das multas na via do Poder Judiciário. Veja que de cada R$1.000,00 aplicados em multas por 14 agências reguladoras e outros órgãos públicos, como o Bacen e a CVM, entre 2011 e 2014, segundo relatório do TCU5, apenas R$60,30 ou 6,03% são recolhidos de fato aos cofres públicos. É fato que as agências reguladoras, com seu poderio de sanção, com aplicação de penalidades pecuniárias mais elevadas, ajudariam muito a mudar o quadro de demandas por falhas dos serviços regulados na Justiça. Entretanto, há outros elementos importantes que poderiam acionar uma ação administrativa coordenada de todo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, liderado pela SENACON. Os relatórios anuais do SINDEC que apontam anualmente os principais problemas que levam o consumidor a demandar nos PROCONS de todo o país indicam também a reiterada reincidência de determinados fornecedores. Veja-se, nesse sentido, dados dos boletins de 2017 e 2018: Em verdade, a falta de uma ação articulada para desestimular essas reincidências acaba fazendo com que más práticas continuem a fazer parte da rotina das relações de consumo. Em linhas conclusivas, o que tem se observado hoje nos tribunais é uma clara tentativa de alargar o conceito do dano moral para incluir situações, sobretudo, em relação de consumo (nas quais, não obstante haja a demonstração de violações aos direitos dos consumidores, seja na má prestação dos serviços ou fornecimento de produtos) que não guardam nenhuma relação com a violação dos direitos da personalidade ensejadores da reparação do dano moral. O que se vê, portanto, é a utilização do instituto da responsabilidade civil para sancionar condutas antijurídicas sem qualquer demonstração efetiva do dano moral. Neste caso, jurisprudencialmente fala-se em indenização por dano moral, mas conceitualmente as condenações pecuniárias tratam propriamente do instituto da punição civil, que acaba sendo de fato aplicada sem qualquer previsão legal expressa. Sanciona-se a mera conduta antijurídica. Na origem dessas condenações, como igualmente demonstrado, estão inequivocamente faltas reiteradas dos fornecedores de produtos e serviços regulados por agências reguladoras. São situações que não chegariam ao Poder Judiciário, como demonstrado no Relatório da SENACON, se as agências reguladoras fossem efetivas em fiscalizar os serviços regulados. Na omissão do ente estatal fiscalizar, as ações judiciais pleiteando danos morais, sobretudo nos juizados especiais, acabam por servir de remédio punitivo contra os maus prestadores de serviços regulados. Na verdade, essa função deveria ser exercida, com esse fim, pelo poder de polícia das agências reguladoras. __________ 1 In: Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis. Acesso em 23 de abril de 2019. 2 Eficiência das agências reguladoras está em xeque. Acesso em 27 de maio de 2019. 3 Diagnóstico sobre os Juizados Especiais Cíveis. Acesso em 23 de abril de 2019. 4 In: Nota Técnica nº 1/2015/CGEMM/DPDC/SENACON. Acesso em 30 de maio de 2019. 5 Agências arrecadaram 6,03% do valor das multas aplicadas entre 2011 e 2014. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Marília de Ávila e Silva Sampaio O período de isolamento que vivemos se mostra propício a repensarmos algumas questões importantes da responsabilidade civil, a começar por seus fundamentos filosóficos, debate que tem sido deixado de lado no Brasil. A filosofia, para além do debate acerca dos limites e do papel da responsabilidade civil nos dias de hoje, busca a resposta para o porquê de responsabilizarmos aqueles que cometem ilícitos e sob que fundamentos. O debate clássico sobre os fundamentos filosóficos da responsabilidade civil sempre esteve ancorado em diferentes visões de justiça, desenvolvendo-se a partir de duas vertentes: o formalismo versus o funcionalismo. A primeira vertente que inspira o debate, a formalista, baseia-se numa ideia aristotélica de justiça corretiva, segundo a qual aqueles que praticam atos ilícitos devem ressarcir as vítimas para a recomposição da igualdade, restabelecendo-se um meio termo entre a perda e o ganho das partes envolvidas. No caso de dano, deve-se subtrair o excesso de ganho do ofensor, restaurando as quantidades originais. Antes de irmos além, é necessário que se esclareça que o sentido da expressão justiça corretiva não é unívoco. Nicola Abbagnano1 esclarece que em Aristóteles, a justiça corretiva, também dita comutativa, é uma das formas de justiça particular, ao lado da justiça distributiva. As expressões justiça "comutativa" e "corretiva" são usadas como sinônimas. Já na concepção de outros autores, a justiça corretiva é utilizada para restabelecer o equilíbrio entre duas partes, tendo como referência uma distribuição incialmente justa, quando tal equilíbrio é quebrado pela produção do dano e justiça comutativa é utilizada para resolver problemas de desigualdade resultante da troca de bens2. A primeira seria então afeta à responsabilidade civil e a segunda aos contratos. A noção de justiça corretiva que ampara a visão formalista da responsabilidade civil apresenta nuances. A definição aristotélica difere da visão tomista. Em linhas gerais, a primeira perspectiva define o justo como "o meio termo entre a perda e o ganho"3, correspondendo a uma igualdade aritmética (comutativa nas relações voluntárias e reparativas nas relações involuntárias), proporcional entre partes. Na responsabilidade civil, a justiça corretiva implica a busca de um meio termo entre o maior e o menor, ou seja, entre a perda e o ganho. É necessário saber quem cometeu o dano, qual a parte lesada e qual o montante do prejuízo. A justiça corretiva, sob a perspectiva aristotélica, pressupõe uma correspectividade no olhar entre o ofensor e o ofendido. A visão tomista de justiça corretiva pressupõe que as perdas sofridas por alguém em virtude de ato danosos possam ser reparadas, retificando-se o injusto enriquecimento de um em detrimento de outro4. Assim, no terreno dos danos, a visão tomista tende a favorecer a vítima, propondo repor a vítima ao status quo ante. Pela vertente rival, a funcionalista, parte-se da premissa de que o direito privado é instrumento para a obtenção de fins econômicos e sociais, externos ao próprio direito, seja por uma abordagem econômica na busca de eficiência, seja por uma abordagem jurídica com base em postulados de outros ramos do direito, principalmente do direito público. A compreensão da responsabilidade civil passa, assim, pela identificação das funções que ela exerce de modo a responder se ela deve ser utilizada como meio para compensar as vítimas ou como um meio de dissuadir comportamentos indesejados. Representante da corrente funcionalista, a análise econômica do direito toma como base a percepção de que as partes se guiam por comportamentos autointeressados de maximização de riquezas, eficiência e equilíbrio das transações, respondendo a desincentivos. Quando o direito impõe dever de reparar danos causados, ele envia um incentivo aos potenciais realizadores de ilícitos, gerando o efeito de diminuir o número das ações ilícitas, socialmente danosas. Sob essa visão, compreende-se bem que o dano moral assuma uma função punitiva, que tem como alicerce a desproporção da sanção, pois isso desincentiva comportamentos futuros equivalentes, com prevenção especial e geral. E o que dizer da justiça distributiva? Ela tem lugar no campo da responsabilidade civil? Tal pergunta demanda, assim como no caso da justiça corretiva, uma breve explicação acerca do que estamos chamando de justiça distributiva: se aquela baseada em seu sentido clássico aristotélico ou se é necessária uma releitura contemporânea do sentido e alcance da expressão. Na definição aristotélica, a justiça distributiva se concentrava primordialmente na distribuição de bens políticos (a capacidade de votar e ser votado), sendo a igualdade representada no fato de cada pessoa ser recompensada na proporção de seus méritos, de sorte que seria injusto que desiguais em méritos fossem compensados de maneira igual. Não havia, portanto, uma preocupação com a distribuição de bens materiais, mas essencialmente a distribuição de bens políticos. Na contemporaneidade, notadamente quando o mundo assiste perplexo uma pandemia de um vírus que tem diariamente exigido novas respostas do direito, pode se reconhecer, sem medo de errar, que a noção de justiça distributiva está a demandar novos contornos. Os pobres, menos favorecidos e aqueles em situação de vulnerabilidade social são merecedores do mesmo status social e econômico dos demais grupos da sociedade. Não se trata de caridade ou benesse, mas do reconhecimento do direito que têm os menos favorecidos de sair dessa situação, inclusive com a intervenção do Estado, como garantia de equalização de direitos e privilégios na proteção da igual dignidade de que todos os cidadãos são detentores. A Constituição brasileira de 1988 consagrou a justiça social como um de seus primados, na medida em que, em seu art. 3º, estabeleceu como objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. De igual modo, o art. 170 da CF/88 condicionou a ordem econômica à valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, como objetivo de garantir a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Neste contexto, a responsabilidade civil estaria pautada não só em parâmetros formalistas da justiça corretiva, guiada por uma lógica aritmética, mas também por fins distributivos, pois socialmente importantes e necessários. É nessa perspectiva que se permite falar em uma função social da responsabilidade civil, do arrefecimento da culpa como filtro da responsabilidade civil, de solidariedade e reparação integral da vítima e outros tantos temas que têm ocupado a centralidade dos debates da responsabilidade civil contemporânea. Um dos mecanismos distributivos na responsabilidade civil é, sem sombra de dúvida, a responsabilidade objetiva, pois, na medida em que há um deslocamento da avaliação moral da culpa do ofensor, para a avaliação ética sobre as consequências da ação assumida por quem detém o poder sobre certa atividade, em algumas circunstancias será mais justo determinar que o pagamento da indenização à vítima se faça por quem administra o risco da atividade. A responsabilidade civil objetiva retira o foco da sanção ao ofensor, colocando-o na tutela do ofendido. Se a responsabilidade sem culpa retira dos ombros da vítima o peso econômico da lesão que sofreu, ela favorece o criador do risco, que, num primeiro momento, por deter capacidade econômica, suporta o custos das indenizações, mas que, no longo prazo, distribui esse custo entre outros agentes econômicos (usualmente outros consumidores ou uma seguradora). Assim, a responsabilidade objetiva exerce a função de distribuir o grande prejuízo que desaba sobre os ombros da vítima para alocá-lo, em pequenas frações, no bolso de inúmeros outros agentes. Esse sistema favorece a flexibilização do conceito de causalidade na responsabilidade objetiva. Não importa tanto quem causou dano ao ofendido, mas quem tem capacidade de repará-lo e, após, distribuir os custos daí advindos. Em circunstâncias excepcionais, o causador do dano poderá ser demandado a reparar mesmo que não exista nexo causal entre sua atividade e o dano, havendo aí a coletivização da responsabilidade em certo setor da vida social. É fácil perceber, portanto, que diversas perspectivas de justiça convivem no campo de responsabilidade civil. Isso significa reconhecer que as escolhas legislativas não são totalmente aleatórias e voluntaristas, assim como não deve ser a atuação jurisprudencial. Num sentido amplo, em que a justiça equivale a todas virtudes somadas, justiça corretiva e distributiva não são antagônicas entre si, conquanto visem a objetivos diversos. Entender os mecanismos de justiça por trás de regras de responsabilidade objetiva e subjetiva é circunstância essencial para evitar que o equânime produza injustiças. Vale dizer que esse e outros temas têm sido objeto de análise pelos professores signatários no grupo de pesquisa que ambos conduzem no IDP, Instituto Brasiliense de Direito Privado. O Grupo de Pesquisa "Direito Privado no Século XXI" se ocupará do debate dos fundamentos filosóficos da responsabilidade civil e suas variadas vertentes durante o próximo ano. O grupo é aberto e todos os interessados podem se inscrever no site. Agradecemos, por fim, ao IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, por franquear esse espaço para debate. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). __________ 1 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo. Martins Fontes. 2012, p. 638. 2 FLETCHER, George, apud BARBIERI, Catarina Helena Cortada. Filosofia e Direito privado. A fundamentação da Responsabilidade Civil a partir da obra de Ernest Weinrib. São Paulo. Almedina 2019, p. 92. 3 Aristóteles. Ética e Nicômaco. Livro V. Os pensadores. Volume 2. Nova Cultural. São Paulo. 1991, parágrafo 1132, p.98. 4 BODENHEIMER, Edgar. A ciência do direito e metodologias jurídicas. Rio de Janeiro. Forense. 1966, p. 40.
Texto de autoria de Nelson Rosenvald Foi publicada a MP 966 que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19. De acordo com o Art. 1º: "Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I - enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e II - combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19". A despeito da MP contar com quatro artigos, fiz menção expressão ao dispositivo inicial pois o seu exame é prejudicial à própria consideração dos artigos subsequentes. A meu ver, em termos de responsabilidade civil a MP é inócua, sem que isto impeça a sua aplicação em termos de responsabilidade administrativa. Não se trata esse texto de uma discussão de inconstitucionalidade, porém, sem qualquer toque fúnebre, de um réquiem, derivado da constatação de uma equivocada fusão entre os requisitos e eficácias das responsabilidades civil e administrativa. Em princípio não há inconstitucionalidade em uma norma emergencial que prevê ação direta contra agentes públicos, com restrição à imputação subjetiva por ilícitos decorrentes de "dolo ou erro grosseiro". Ao legislador infraconstitucional é dada a possibilidade de modulação da gradação da culpa lato sensu, sobremodo em situações únicas como a de uma extraordinária pandemia, que requer de pessoas que exerçam funções estatais a tomada diuturna de decisões urgentes e, eventualmente, causadora de danos injustos a terceiros. Poder-se-ia discutir eventual inconstitucionalidade se o objetivo da MP 966 fosse o de afrontar diretamente os pressupostos do § 6º, art. 37 CF, em uma tentativa de imunizar o Estado da responsabilidade objetiva pelos danos que seus agentes causassem a terceiros em tempos do Covid, ou, estreitasse o direito de regresso do Estado perante os agentes públicos, reduzindo-o aos casos de "dolo ou erro grosseiro". Nestas hipóteses seria legítimo o debate sobre o retrocesso em uma conquista advinda desde a Constituição Federal de 1946, protetiva de direitos fundamentais do cidadão e da exigência de a administração pública agir conforme a boa-fé objetiva, prevenindo danos e garantindo a sua efetiva reparação. Insista-se: mesmo para os que visualizam na MP 966 uma burla à amplitude da previsão constitucional de regresso, a mitigação da esfera da culpa não seria uma certeza de inconstitucionalidade, mas apenas uma boa tese, pois não é de hoje normas infraconstitucionais asseguram a magistrados e membros do Ministério Público regimes especiais de responsabilidade por dolo ou fraude (arts. 143 e 181, do CP/15), jamais através de ação direta, mas tão somente pela via regressiva. Todavia, conforme insistimos, o propósito da MP 966 jamais foi o de ferir o mencionado dispositivo constitucional, na medida em que o art. 1. sequer faz menção à reparação por danos causados a terceiros. Parece-nos que o seu desiderato foi o de temporariamente promover uma adequação entre a segurança jurídica na tomada de opiniões técnicas de agentes políticos e servidores públicos e os limites de responsabilização que assumem por estas decisões. Ocorre que a ponderação não foi bem dosada, pois conceitos que se encaixam bem na responsabilidade administrativa não são necessariamente bem-vindos no mundo da responsabilidade civil. A MP 966 tomou por empréstimo para a esfera da responsabilidade civil o conceito jurídico indeterminado "erro grosseiro", já utilizado pelo art. 28 da LINDB (redação da Lei n. 13.665/18), que por sua feita tomou a expressão de decisões esparsas do STF, STJ e TCU. Ademais, a MP se valeu da exata definição que o § 1º, do artigo 12 do Decreto 9830/19 deferiu ao conceito de "erro grosseiro", para estipular no art. 2º que: "Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia". Fato é que o art. 28 da LINDB já havia sido criticado pela equiparação da referida expressão à ideia de culpa grave, que por sua vez, assemelhar-se-ia ao dolo, convertendo o enunciado da norma em um pleonasmo duplo, seja pela sinonímia entre as duas expressões como pela própria redundância em se responsabilizar um agente pessoalmente por dolo, pois há de nascer uma norma que imunize alguém para a intencional prática de atos lesivos contra outrem. Outra indevida paternidade que não pode ser atribuída a MP 966 é a redação do § 2º, do art. 1: "O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público". O legislador de plantão reproduziu ipsis litteris o § 3º do art. 12 do decreto 9830/19, no ponto em que regulamenta o artigo 28 da LINDB. Para além do evidente déficit redacional do "mero nexo de causalidade...", é certo que a responsabilidade do agente público é subjetiva, sendo o citado dispositivo uma dispensável circunlocução. Não obstante a atecnia que permeia a MP, cremos que, caso mantida, não terá qualquer impacto na responsabilidade civil de agentes públicos pois em agosto de 2019, em sede de Repercussão Geral (tema 940 - RE 1027633) o Plenário do Supremo Tribunal Federal sufragou a tese da "dupla garantia", assentando a ilegitimidade passiva de agentes públicos nas pretensões reparatórias, cabendo ao interessado demandar exclusivamente contra a pessoa jurídica de direito público e a de direito privado prestadora de serviços públicos por atos omissivo ou comissivos de seus agentes, por dolo ou culpa. Por razões teóricas e práticas que não cabem nesse espaço, criticamos a restrição à liberdade do particular de escolher contra quem quer demandar em um cenário de responsabilidade solidária. Contudo, fato é que a trilha adotada pelo STF é incompatível com o propósito de isenção de responsabilidade de agentes públicos por demandas diretas. Como a MP 966 não conflita com a teoria do risco administrativo - restando imunizado o acesso ao Estado com base na causalidade entre a conduta e o dano - indaga-se, o que se pretende de efetivo na Medida Provisória? A resposta está no próprio art. 1º. A norma transcende a sanção civil consequente à aferição do fato jurídico danoso, centrando-se no direito sancionador, permitindo que o Estado se volte contra o agente pela prática de um ilícito, independentemente de sua eventual eficácia ressarcitória, objetivando penalizar o agente público de modo a resguardar os interesses da administração. Há muito, PONTES DE MIRANDA já havia se debruçado sobre esta temática. A relação entre o ilícito e a responsabilidade civil é de gênero e espécie. "Há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar" (Tratado de direito privado, t. II, p. 201). A obrigação de reparar danos patrimoniais ou morais é uma das possíveis eficácias do ato ilícito. Em sua estrutura, o ilícito demanda como elementos nucleares a antijuridicidade (elemento objetivo) e a imputabilidade (elemento subjetivo) do agente. O dano não é elemento categórico do ilícito, mas a ele se acresce como fato gerador de responsabilidade civil (art. 927, CC). Esta especificação é particularmente significativa, pois esclarece que a noção de ilícito conserva um núcleo conceitual unitário mínimo, tendendo a se decompor em algumas categorias fundamentais de ilícito, que muitas vezes se destacarão do ilícito civil, como é o caso do ilícito penal e do ilícito administrativo. Com efeito, deve-se fraturar a clássica distinção entre o ilícito civil e o administrativo, aquele restrito à lesão da esfera jurídica patrimonial no âmbito de um interesse privado (situações jurídicas subjetivas), enquanto a reação ao ilícito administrativo visa proteger um interesse público. O caráter disciplinar da responsabilidade administrativa ressaí das sanções previstas no artigo 127 lei 8.112/90 e na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). No âmbito do direito sancionador, não se aplica a exigência constitucional de comprovação de dolo ou culpa em sentido amplo, pois é da essência das sanções punitivas a sua justificação por um comportamento extremamente reprovável. Assim, todas as garantias do direito penal são reconhecidas ao ilícito administrativo. Ocasionalmente, a exigência de uma culpa grave pode gerar distorções, pois erros grosseiros podem causar pequenos prejuízos, enquanto erros moderados podem gerar danos bilionários. Subjacente aos retóricos fins da MP 966, percebe-se aqui o receio da equipe econômica do governo (por isto a MP foi assinada pelo Ministro da Fazenda e não pelo Ministro da Justiça) com uma "disparada" de ações de improbidade administrativa contra agentes políticos pelas eventuais consequências deletérias de medidas "de combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19" (inc.II, art. 1º). Já se afirmava que o artigo 28 da lei 13.665/18 (LINDB) havia revogado o artigo 10 da LIA, no trecho em que permitia a responsabilização por ato de improbidade que causasse prejuízo ao erário apenas por culpa, mitigando o sancionamento do agente para as hipóteses em que apenas foi inábil no trato das regras de direito público. Essa interpretação é posta em xeque pelo próprio artigo 2º, § 2º da LINDB - "A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior", porém a especificação da culpa grave na improbidade administrativa espelha uma orientação jurisprudencial do STJ. A MP 966 procurou consolidar esse entendimento para um momento gravíssimo de forma a poupar de sanções administrativas o agente que se conduz no referencial de "administrador médio" ao ter avaliada a razoabilidade de seus atos. Ao indevidamente aglutinar responsabilidade civil e administrativa sem que se estabelecessem parâmetros específicos em suas funcionalidades ínsitas, a MP 966 culmina por demostrar a necessidade do refinamento de conceitos e de suas potencialidades práticas. O ato ilícito, explica MASSIMO BIANCA, não é a mera ocorrência de danos, mas um fato humano lesivo de interesses tutelados. Uma coisa é a relevância jurídica do fato como ilícito, outra, a injustiça do dano, que se coloca no plano da eficácia do ato ilícito, isto é, sob o plano de consequências que a norma remete a este e que se exprimem no juízo de responsabilidade. O ilícito se insere no plano da antijuridicidade, pois consiste pela sua natureza em um ato humano contrário ao direito (L'inibitore come remedio di prevenzione dell'illecito. In: Studi in onore di Nicolò Lipari, p. 136-137). Se o art. 1º da MP 966 se restringisse à responsabilidade administrativa poderíamos avançar em uma necessária discussão. Contudo, ao introduzir a responsabilidade civil, culminou por entorpecer conceitos que não lhe dizem respeito.
Texto de autoria Bruno Leonardo Câmara Carrá Quando grafei, no título desse artigo, a palavra pandemia, sabidamente um substantivo comum, em maiúsculo, não o foi necessariamente por desconhecimento da regra gramatical, embora até pudesse ter sido. O que quis, com isso, foi sugerir que a pandemia da covid 19, diante assoladora crise sanitária que provocou em todo planeta, traz consigo uma ideia tão particular de desolação, de estagnação, de enfermidade física, mas também econômica e social que merece ser considerada já um nome próprio. Como a Peste, a Pandemia projeta seus efeitos deletérios por todos os lados, muitos, lamentavelmente, ainda por conhecer. Quantos ainda haverão de perecer? Quantas mais vidas se afundarão mercê da debacle financeira por ela causada? Não há sequer resposta agora para isso. Tifão, o mais temido dos monstros da mitologia greco-romana, era capaz de impor grande pavor até nos deuses olimpianos e, abrindo os imensos braços, flagelar tanto o oriente como o ocidente. O novo coronavírus faz idêntico, disseminando toda forma de medo e dano por onde passa, sem nem mesmo precisar ter o tamanho bestial daquele titã. Ao longo das últimas semanas publicam-se escritos nos mais diversos ramos jurídicos para tratar do impacto da covid-19 nas várias situações da vida humana que o direito, por definição, tem a função de normatizar a fim de garantir uma convivência minimamente pacífica entre nós, indivíduos, que damos forma a esse grande corpo que é a sociedade. Nesse texto, pretendo abordar seus efeitos sobre um dos primeiros e mais fortemente contratos atingidos por ela: os de transporte aéreo. Por conta da Pandemia, parece ser inevitável uma crise sem precedentes na aviação mundial, a qual sempre trabalhou, como disse certa vez um famoso tenor de ópera, nos limites de seus agudos. Essa modalidade de transporte, com efeito, opera constantemente nos extremos de um tênue equilíbrio financeiro. Por outro lado, dado os antípodas dialéticos que o caracterizam, a saber, o risco natural para as pessoas e bens transportados, de um lado, e, por isso mesmo, a obrigação de segurança do transportador, que de longa data o caracteriza1, do outro, as regras de responsabilidade contratual no setor aéreo foram objeto, ao longo do século passado, de um constante aprimoramento a bem, via de regra, de seu usuário. No âmbito internacional, da Convenção de Varsóvia ao Protocolo de Haia; da Criação da IATA - International Air Transport Association à Convenção de Montreal, põe-se à evidência uma nítida evolução destinada a fixação de um modelo de responsabilidade objetivo, mais amplo, no sentido de considerar juridicamente protegidos um maior leque de danos sofridos sobretudo pelo passageiro e com maiores topes indenizatórios. Igual fenômeno foi visto, no âmbito do transporte aéreo doméstico, aqui no Brasil, onde ficou evidente o conflito entre as antiquadas normas do Código Brasileiro de Aeronáutica, lei 7.565/86 ainda em vigor, e a novel legislação de proteção ao consumidor, ou ainda em relação ao próprio Código Civil de 2002, o qual, não raro, possui disposições mais favoráveis ao transportado que o próprio Código de Defesa do Consumidor2. Sobre o assunto, por sinal, se há um caso onde o diálogo de fontes, para fazer referência à doutrina de Erik Jaime tão propagada no Brasil, tenha sido querido pelo legislador foi o contrato de transporte. Realmente, o Código Civil em seu art. 732 expressamente menciona a possibilidade de conjugação de suas normas com outras da legislação específica, gerando o fenômeno de complementação entre os vários diplomas legais que tratam do transporte, mais especificamente, do aéreo. A respeito do tema, por ocasião da IV Jornada de Direito Civil, aprovou-se, por proposta inicial do signatário, o enunciado 369, cuja redação foi substancialmente aprimorada pela intervenção de professores como Cláudia Lima Marques e Carlos Roberto Gonçalves entre outros. Se dúvidas, no entanto, ainda existiam no pertinente à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de transporte aéreos, elas desaparecem diante das teses que restaram definidas pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento, em 18/08/2016, do Recurso Especial 1469087/AC, tendo como relator o Ministro Humberto Martins. O acórdão cita a necessidade de diálogo entre as várias fontes normativas que tratam do transporte aéreo porquanto o "Código de Defesa do Consumidor não prejudica as normas do setor aéreo brasileiro uma vez que é um diploma que permite exemplarmente a aplicação conjunta de fontes para o equilíbrio das relações de consumo". É dentro desse intrincado contexto de mosaico normativo que chega a Pandemia. Já não fosse difícil, sob condições normais encontrar o equilíbrio necessário entre a sobrevivência das companhias aéreas e os direitos daqueles que se valem de seus serviços, o que é cada vez mais comum e essencial3, o que dizer, agora, diante de uma catástrofe sanitária que, como uma das primeiras consequências, pôs em terra, literalmente, a aviação mundial. Como sabido, o fechamento de fronteiras, internas e externas, foi uma das primeiras medidas de contenção ao vírus. A União Europeia a anunciou em 16 de março passado com efeito em todos os seus países membros. No Brasil, antes mesmo, a redação da lei 13.979, publicada em 06 de fevereiro deste ano, e ampliada pela Medida Provisória 926, de 20 de março, já previa o bloqueio fronteiriço, o que, de fato, tem sido aplicado, senão total, pelo menos parcialmente, tanto nos níveis federal como estadual. Na realidade, dois dias antes da mencionada MP, em 18 de março de 2020, já havia sido editada outra, de n. 925, a qual dispôs sobre "medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19" (art. 1º). A MP tem, na prática, apenas um artigo, o 3º, relacionado com o transporte aéreo. Nele é determinado que as companhias aéreas devem realizar o reembolso dos valores relativos à compra de passagens aéreas no prazo de doze meses, "observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente" (caput); logo em seguida, enuncia que "os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado" (§ 1º) e que tais disposições são aplicáveis aos contratos firmados até 31 de dezembro de 2020 (§ 2º). Como é possível perceber, a MP em questão assegura, em primeiro lugar, o direito à restituição, embora em doze parcelas e sem custos de remarcação para o passageiro. No âmbito normativo, tal regra, poder-se-ia dizer, constitui-se como exceção, razoável e, por isso mesmo autorizada nesses tempos atípicos que vivemos à regra do art. 740 do Código Civil que lhe garantiria, em teoria, "rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada". Na prática, se trata até de providência interessante e que pode favorecer em alguma medida o consumidor, pois, lamentavelmente, o citado art. 740 do CC nunca recebeu no âmbito do transporte aéreo de carreira, regulamentação em sua exata extensão. Portanto, parece que, nesse torvelinho de incertezas que a Pandemia nos trouxe, a MP, a exemplo da Lei Faillot em sua época, nos traz alguma luz de certeza e algum ponto de equilíbrio ao preconizar uma alteração na base do negócio jurídico, estabelecendo a devolução da passagem, eventualmente do frete, no transporte de carga, sob uma sistemática diferente, um pouco mais favorável ao transportador, é verdade, mas plenamente justificada pelo momento excepcional4. O ponto de inflexão, a exigir dos juristas, parece, uma maior atenção vem a ser o confronto entre a regra do caput do art. 3º e aquela que decorre de seu § 1º, ambas transcritas. É que a Medida Provisória oferta também a possibilidade do crédito para remarcação do bilhete para utilização no prazo de doze meses, aqui expressamente mencionando que aqueles que assim o fizerem ficarão isentos das penalidades. Pelas mesmas razões já apontadas, a providência, inclusive com a limitação temporal nela descrita, mostra-se, em princípio, dotada de razoabilidade, pois, uma vez mais, "se extrema é a doença, extremo deve ser o remédio", frase atribuída a ninguém menos que Hipócrates, pai da Medicina. Contudo, a leitura apressada das duas disposições pode revelar que apenas na segunda, a do § 1º, haveria o uso do crédito sem custos. Nesse caso, acredita-se, a resposta deve ser negativa. Contudo, antes de se adentrar no estudo propriamente dito do tema, uma advertência: há notícias de companhias aéreas que simplesmente estão ignorando até mesmo a norma do § 1º, do art. 3º, da MP 925/20. Aqui não há nem o que se conjecturar, cuida-se de prática abusiva e que pode ser objeto da devida reclamação pelo consumidor. Quanto ao ponto propriamente dito, a regência normativa múltipla do contrato de transporte impõe, por justiça contratual, que ambas as disposições sigam a mesma lógica, não se podendo impor ao consumidor o ônus de pagar taxas de cancelamento de um serviço que não foi realizado. Para tanto, há argumentos que podem ser sacados seja da legislação consumerista, seja a partir das regras gerais constantes do Código Civil sobre a resolução dos contratos, o uso dos institutos do caso fortuito e força maior5, além do enriquecimento indevido, chegando-se ao mesmo resultado prático quer se as aplique conjugada ou independentemente. É certo que, claro, o uso do crédito representa uma vantagem importante para as companhias aéreas, o que, numa situação de crise tamanha como a atual, pode ser um importante instrumento de soerguimento para elas; nada obstante, não compraz com nenhuma aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas relações privadas querer que tal ônus seja transferido ao consumidor. Para tanto, a fim de não cansar em demasia o leitor, não é necessário nem mesmo recorrer à legislação protetiva do consumidor como, por exemplo, os arts. 20 e 51, IX e XI, da lei 8.078/90. Partamos do que diz o Código Civil, que regulamenta as relações negociais partidárias. Incorporando regra que já existia desde o Direito Romano, em matéria de obrigações de fazer, prescreve a legislação civil: "se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos" (art. 248). Ora, essa vem a ser justamente a situação em comento. É certo, como antes também destacado, que não há culpa da companhia aérea no cancelamento do vôo, porém a consequência jurídica de tal situação não pode ser em hipótese alguma imposta ao passageiro dentro apenas de sua conveniência e interesse. Em tais situações, impossibilitada a prestação de fazer sem culpa do devedor, a obrigação resolve-se para ambas as partes e, com isso, retornam as partes ao status quo ante. A disposição, naturalmente, se encontra em perfeita harmonia e compatibilidade com a norma de Justiça e boa-fé objetiva que impõe o dever de restituição, por parte daquele que experimentou o ganho sem contraprestação, de devolver o que lhe foi adiantado para não incorrer em enriquecimento indevido na forma do art. 884 e seu parágrafo único, ambos do Código Civil. Até mesmo porque, em vários casos, não há mais para o consumidor interesse algum em realizar a viagem. Logo, não realizado o serviço, se por um lado parece lídima a regra de parcelamento da devolução, o mesmo não se poderia dizer de qualquer tentativa de nela inserir taxas de cancelamento. Para concluir, algo rápido, possivelmente polêmico, mas, sinceramente, de fácil resolução: cabem danos morais pela não prestação do serviço?6 Não, não os cabem. A jurisprudência mais recente do STJ deixa claro que em matéria de cancelamento de vôos, os danos morais resultantes não são in re ipsa, devendo o autor demonstra-los concretamente7. Basta isso, me parece, para referendar, pelo menos aqui, a disposição constante do art. 5º, da MP n. 948, de 08 de abril último. Por tudo o quanto se disse antes, nisso a princípio, as companhias aéreas se encontram plenamente justificadas. *Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal; doutor em Direito Civil pela USP; pesquisador visitante nas Universidades de Bolonha, Paris V e Oxford; professor da UNI-7. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). __________ 1 DE CUPIS, Adriano. I Fatti Illeciti. In: Trattado de Diritto Civile. Milano: Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi, 1961. vol. IV. p. 10; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 6 ed. universitária. Rio de Janeiro: Forense, 1994. vol. III. p. 208. 2 É o caso, por exemplo, do art. 735 do Código Civil que torna a responsabilidade do transportador de passageiros mais agravada que a do simples fornecedor de serviço constante do Código do Consumidor, na medida que exclui a alegação da culpa de terceiro. A despeito, a nosso sentir, da clareza legal, a questão é fonte de intenso debate na jurisprudência nacional. 3 Fato, por sinal, também devidamente consignado no precedente do STJ acima referido: "O transporte aéreo é serviço essencial e, como tal, pressupõe continuidade. Difícil imaginar, atualmente, serviço mais "essencial" do que o transporte aéreo, sobretudo em regiões remotas do Brasil". 4 A ironia reside justamente em usar um princípio de mutação (rebus sic stantibus) para preservar a imobilismo dos negócios privados (pacta sunt servanda). Sobre o assunto, cf.: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos. autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002. passim. 5 Em outra oportunidade, afirmei que seria mais apropriado recorrer à ideia de act of God e sua experiência jurisprudencial nos tribunais da Common Law. Cf.: Coronavírus, direito à saúde e danos extrapatrimoniais: qual a correlação? In: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; DENSA, Roberta. (org.). Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaiatuba: FOCO, 2020, v. 1, p. 313-324 6 Perdão aos mais puristas se não uso o termo extrapatrimoniais, agora de moda. 7 Dentre outros: REsp n. 1796716/MG, 3ª Turma, Relª. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019.
Texto de autoria de Tula Wesendonck A Responsabilidade Civil está em constante desenvolvimento acompanhando a evolução da sociedade no enfrentamento dos problemas que lhes são impostos a cada dia. Considerando os efeitos que podem surgir em virtude da Covid-19, esse universo pode ser ainda maior, pois as questões relacionadas à responsabilidade civil são muito difusas e amplas. Podem ser observados problemas relacionados à responsabilidade do médico, dos hospitais e dos fabricantes de medicamentos. Os reflexos jurídicos da pandemia do novo Coronavírus são incertos, pois ainda não é possível determinar com exatidão o que está por vir, ou prever todos os casos passíveis de incidência de responsabilidade ou de sua exclusão. Se não compreendemos bem os problemas, mais difícil é saber as respostas para esses problemas. Para auxiliar nessa tarefa é necessário perceber o atual estado da arte e da ciência no enfrentamento da crise. As observações preliminares indicam que não há estudos conclusivos sobre a doença, seja no que se refere ao tratamento, medicamentos, vacina... A única certeza que a ciência fornece é de que o vírus é muito contagioso, e que a doença por ele provocada pode ser muito agressiva e levar a complicações e até à morte para uma fração da população (principalmente pessoas idosas e/ou que apresentam comorbidades). Partindo dessa premissa, o propósito deste artigo é mais problematizar e formular perguntas sobre tarefas jurídicas que nos esperam do que apresentar soluções e certezas sobre a matéria. Para isso, parte-se dos requisitos da responsabilidade civil que podem ajudar a refletir sobre hipóteses ou situações de incidência de responsabilidade civil em virtude da Covid-19. A avaliação dos requisitos da responsabilidade civil, especialmente no que se refere ao nexo de imputação e à delimitação do nexo causal, é relevante em virtude dos efeitos da Covid-19, pois em meio à pandemia do coronavírus, e diante da necessidade de enfrentar os efeitos da Covid-19, ganha relevo a análise do exercício da atividade do médico, os procedimentos adotados pelos hospitais e as ações dos fabricantes de medicamentos. Nesse cenário, talvez seja prudente considerar a possibilidade de ressignificação do conceito de culpa no exercício das atividades médicas. Para imputar a responsabilidade ao médico a sua conduta deve ser valorada de acordo com a possibilidade de agir frente às adversidades no contexto atual. Nesse sentido, é preciso considerar problemas como a de falta de pessoal, equipamentos, leitos e materiais, que possivelmente irão acompanhar o atendimento médico durante a pandemia. Nessa direção, é possível notar algumas providências que modulam a atuação do médico. Algumas condutas que antes eram vedadas, ou que não eram recomendadas num cenário de normalidade, passam a ser admitidas e contribuem para flexibilizar as exigências em relação à atuação do médico. Por razões óbvias, isso não quer dizer que a pandemia por si só irá eximir a responsabilidade do médico na sua atuação, mas é possível afirmar, que a pandemia contribuiu para um relaxamento na exigibilidade de determinadas condutas. A lei 13.989, de 15 de abril de 2020 pode ser citada como flexibilização das exigências em relação à atuação do médico. A lei autorizou o exercício da telemedicina durante o período da pandemia, relativizando a essencialidade do contato presencial com os pacientes. É um exemplo da resposta do Direito à necessidade de adaptar a atuação do médico aos novos tempos. Outra providência que merece destaque na atuação do médico durante a pandemia é uso off label de medicamentos (medicamentos liberados pela Anvisa para outras indicações como por exemplo a Cloroquina ou Hidroxicloroquina) ou uso compassivo de medicamentos (medicamento ainda experimental que não está disponível comercialmente, não liberado pela Anvisa, como é o caso do Remdesivir - utilizado para o tratamento nos casos de infecção pelo vírus ebola)1. Em casos de doenças novas como a Covid-19, sobre a qual ainda não há tratamento disponível, a postura do médico no enfrentamento da doença também pode ser diferente. Em alguns casos será admissível atitudes mais arriscadas no intuito de salvar o paciente. Assim, o médico pode chegar à conclusão de que diante o risco de morte, e do desconhecimento sobre o caminho mais seguro, o médico possa decidir tomar uma atitude positiva em usar um medicamento não testado adequadamente ao invés de permanecer passivo e preso por standards de conduta que não são exigíveis nas circunstâncias atuais. A grande questão posta nesses casos é: como evitar que no futuro esse standard próprio de momentos de normalidade seja exigido em demandas futuras que questionam a atitude positiva de utilizar medicamentos off label ou compassivos? Não há como negar que a situação atual é extraordinária e pode admitir uma atuação do médico distinta da que adotava em tempos de normalidade. O cenário atual exige reflexão sobre a flexibilização e mudança dos padrões de conduta esperados. Nesse sentido, foi a posição do Conselho Federal de Medicina que no parecer n. 4/2020 concluiu que "Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da Covid -19"2. Destaque para a ressalva na conclusão do parecer, que considera a excepcionalidade da situação e restringe o uso do medicamento no período da pandemia. Além da modificação do patamar de exigência da conduta médica a situação excepcional, extraordinária e inevitável (caso fortuito ou força maior), afasta a imputação da responsabilidade ainda que se adote a teoria do risco, pela caracterização de sua excludente3. Imagine-se, por exemplo, a hipótese de um cidadão que vai a um hospital por outras razões que não a Covid-19 e é contaminado pelo coronavírus dentro do estabelecimento hospitalar. Imagine-se ainda, que se consiga fazer a prova de que essa contaminação efetivamente deu-se nas dependências do hospital. Seria possível responsabilizar o hospital? Qual é possibilidade efetiva de impedir que pacientes não sejam contaminados pelo vírus? Note-se que há estudos apontando que o vírus circula livre no ar, sendo mais frequente nas imediações de hospitais, e é por isso que as autoridades sanitárias fazem desinfecção das ruas e calçadas próximas4. Outro aspecto a ser ponderado é imputar responsabilidade por danos pelo uso de medicamentos e/ou vacinas para enfrentamento da doença. Seria possível responsabilizar os fabricantes de medicamentos e de vacinas pelos riscos do desenvolvimento? Mesmo para países que considerem essa responsabilidade viável, em que medida a situação emergencial que assola o mundo poderia influenciar nos contornos dessa responsabilidade? A excepcionalidade da pandemia exige dos fabricantes de medicamentos um agir rápido, e talvez apostas, na direção de uma cura ou vacina. E aqui cabe um alerta: a situação atual não se assemelha em nada a casos como o clássico caso da Talidomida5. Para concluir este artigo, propõe-se a necessidade de um olhar cauteloso do jurista, pois os contornos tradicionais da responsabilidade civil podem sofrer interferências significativas em virtude da pandemia do coronavírus. A abertura de novas alternativas no enfrentamento da crise pode consolidar novas soluções. Fica a dúvida se as novas soluções serão temporárias ou influenciarão irremediavelmente no futuro, algo que somente o decurso do tempo poderá revelar. __________ 1 GOLDIM, José Roberto, COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos, Bioética complexa. Acesso em abril de 2020 2 O parecer está disponível no site do Conselho Federal de Medicina, acesso em abril de 2020. 3 CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità Civile. Milão: Giuffrè Editora, 2018, p. 458-459. 4 Informação disponível no site. Acesso em abril de 2020. 5 A respeito do tema tratei na obra WESENDONCK, Tula. O regime da Responsabilidade Civil pelo fato dos produtos postos em circulação. Uma proposta de interpretação do Art. 931 do Código Civil sob a perspectiva do Direito Comparado. Livraria do Advogado, 2015, p. 166 a 202.
Texto de autoria de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho 1- Gradações de impossibilidade, requisitos e controle funcional da força maior Em tempos de crise, natural que as atenções convirjam para o momento patológico do negócio jurídico e, em especial, para as diferentes espécies de impossibilidade - tema, de resto, pouco desenvolvido, até a disseminação da peste, pela doutrina brasileira, salvo poucas exceções. Assiste-se, a partir de então, à proliferação de textos sobre variabilidades do descumprimento, nos quais se verifica certo consenso em torno da ideia de que os efeitos negativos provocados pela covid-19 nas relações contratuais não conduzem a único resultado. De fato, a depender da composição de interesses atingidos, no concreto programa contratual em análise, diversa será a qualificação do fato jurídico pandemia (a deflagrar, conforme o caso, hipóteses de resolução, resilição, revisão, redução, suspensão, sub-rogação, negociação, mediação etc). Em outras palavras, apenas tendo em mente a causa, a função negocial aferida no dinamismo da relação em concreto, é que se pode delinear o exato efeito do lamentável evento sobre a base do pacto em foco. Na prática, uma vez invocada a excludente pelo devedor que descumpre a obrigação, à indagação de a pandemia constituir força maior não se responde, como se vê, em unívoco. Claro que, dadas as dimensões superlativas do problema, os requisitos necessariedade e inevitabilidade muito provavelmente ter-se-ão por cumpridos (como se verá a seguir), algumas vezes por fato do príncipe. Porém, somente em concreto pode-se construir resposta adequada às circunstâncias de cada espécie, em especial levando-se em consideração a pluralidade de fatores vinculados ao deslinde do caso. A enumeração é aberta e as circunstâncias são indissociáveis de apreciação global, mas, para fins didáticos, apresento-os divididos aqui em três blocos: (i) suporte fático, (ii) regramento contratual e, em particular, (iii) disciplina legislativa emergencial. Quanto ao primeiro grupo, o intérprete deverá observar: o modo e o tempo em que os efeitos do ciclo epidêmico alcançam as prestações pactuadas; os possíveis meios alternativos de execução da prestação; os abalos do mercado em que se insere a atividade em análise; o eventual aumento do custo de insumos necessários à produção convencionada, ou sua possível substituição por equivalentes (cujo exemplo de destaque tem-se nas obrigações genéricas - art. 246, CC) etc. Do segundo, tomará em consideração a presença de cláusulas limitativas ou excludentes de responsabilidade; cláusulas de hardship; cláusulas de garantia; cláusulas de força maior; cláusulas penais; cláusula resolutiva expressa; cláusulas de mediação, conciliação e arbitragem; entre outras. Na síntese dialética fatualidade-normatividade (indissociáveis), o operador analisará os termos da estipulação contratual e sua natureza (contrato benéfico, paritário, de consumo), em meio às circunstâncias irrepetíveis que individualizam cada pactuação (eventual mora de uma ou de ambas as partes; os limites de sacrifício exigível do devedor), sem descurar da equação negocial no equilíbrio funcional do contrato. O itinerário se completa com um terceiro fator a ser levado em conta no processo interpretativo, particularmente relevante no período pandêmico. Regimes legislativos emergenciais têm formulado políticas públicas que aportam benefícios às relações privadas, tais como empréstimo subsidiado, flexibilização do ambiente regulatório, subvenção de capital público, isenção fiscal, ou mesmo indenização securitária. Nesse quadrante, saber-se se um dos contratantes recebeu vantagem direta ou indireta constitui variável sine qua non na apreciação funcional do caso, sob pena de enriquecimento sem causa (CC, art. 884) - situação ordinariamente normatizada em ordenamentos europeus que a denominam commodum de representação. Ainda no ponto de vista aplicativo, regra geral das hipóteses de caso fortuito e força maior no ordenamento brasileiro firma a isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos sofridos pelo credor decorrentes do incumprimento involuntário (CC, art. 393). Trata-se de causas de exoneração que - diferentemente da legítima defesa, do estado de necessidade e do exercício regular do direito, aptos a afastar a culpa - atuam no âmbito do nexo de causalidade, provocando seu rompimento, alheio à vontade do devedor, na cadeia normal de acontecimentos, razão pela qual caso fortuito e força maior mostram-se eficientes mesmo em ambientes de responsabilidade objetiva. Seja como for, para configuração das aludidas excludentes, o ordenamento brasileiro elenca dois requisitos a partir do comando normativo do parágrafo único do mesmo artigo 393. O primeiro requisito consiste na necessariedade e se relaciona ao modo de produção do fato impositivo em si, que deve ser externo em relação à situação subjetiva das partes contratantes, as quais não concorrem para sua configuração. A pandemia da Covid-19 parece preencher o requisito da necessariedade, vez que se trata de acontecimento superveniente de origem externa à relação jurídica travada. O segundo requisito, a inevitabilidade, sede de mais acirradas discussões, diz respeito aos efeitos da ocorrência superveniente na relação jurídica em concreto. Dessarte, havendo meios razoáveis e exigíveis de o devedor impedir que o fato necessário provoque efeitos prejudiciais na escorreita execução da prestação, deverá assim agir sob pena de inadimplemento. Como mencionado anteriormente, a pandemia da Covid-19 em princípio parece preencher também o requisito da inevitabilidade, dado que os efeitos se projetarão na relação negocial independentemente da atuação diligente das partes em evitá-los ou atenuá-los, ressalvadas circunstâncias avaliadas em concreto que indiquem o contrário. Isso não significa, no entanto, que eventual impossibilidade de prestação será sempre causa de extinção da obrigação. Em breve esboço de uma teoria, as impossibilidades de cumprimento parecem apresentar, no rigor técnico, diferentes graus de incidência na concreta relação negocial. Pondo-se em escala, em primeiro plano tem-se a impossibilidade subjetiva em obrigações fungíveis, a resultar em eventual desempenho da prestação por terceiro, substituto do devedor, às expensas deste (CC, art. 249); nas infungíveis, passo adiante, aflora o debate do limite de sacrifício/exigibilidade impostos ao devedor, à luz dos princípios contratuais contemporâneos. Em seguida, passa-se às impossibilidades temporárias, as quais, por atuarem como fatores de diferimento de eficácia, podem indicar redução da contraprestação, prorrogação de prazos, ou eventualmente suspensão de pagamento. Em nível mais avançado, encontram-se as impossibilidades parciais que, a depender da gravidade, à luz e em função do interesse útil do credor, podem sinalizar distintas consequências, desde a redução do programa contratual à parte aproveitável (CC, art. 184) até a revisão (CC, art. 317), ou mesmo a resilição, e a resolução dos contratos (CC, art. 478). E, finalizando a gradação, destaca-se a impossibilidade definitiva, apta a exonerar o devedor, libertando-o de quase todas as consequências do inadimplemento (CC, art. 393). O debate que aqui se trava, a rigor, para além do cumprimento estrito dos requisitos de deflagração das excludentes - necessariedade do fato e inevitabilidade dos efeitos - gira em torno do controle funcional do negócio em sua integralidade diante do grau da impossibilidade e da atuação das partes no mister de evitar ou minorar possíveis efeitos prejudiciais em cada situação jurídica subjetiva. Ganha relevo, em particular, a função de regra de conduta que emana do princípio da boa-fé objetiva, no controle dinâmico do processo obrigacional. 2- Força maior, autonomia privada e atividade legislativa de emergência A matéria de riscos, responsabilidades e sua gestão encontra-se no seio da autonomia privada, cabendo precipuamente às partes contraentes o modo pelo qual decidem se autorregular. A quem se imputarão riscos, a troco de que, é decisão que compete aos autores de cada negócio, na elaboração do concreto regulamento de interesses, e não ao legislador ou ao juiz. Tal processo, de todo modo, não se dá ao alvedrio absoluto das partes. O operador do direito não pode descurar aqui da natureza dos valores e interesses em jogo em cada negócio. Assim, precisará distinguir entre contratos paritários e desiguais; entre vulnerabilidade patrimonial e existencial; entre bens e direitos disponíveis e indisponíveis; entre titularidades públicas e privadas; entre pessoas jurídicas e naturais; entre contratos de adesão ou de livre negociação e assim por diante. Ademais, deve pautar-se pela observação das cautelas previstas em lei. Nesse sentido, o caput do artigo 393 do Código Civil, corolário dos princípios da boa-fé objetiva e da solidariedade social, exige que a assunção do risco de fortuito e de força maior seja expressa. A gestão não pode, também, afastar normas de ordem pública, como o Código de Defesa do Consumidor, que, com o fim de corrigir desequilíbrio existente na relação consumerista, reputa nulas cláusulas que "impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor". Em casos justificáveis e que o consumidor seja pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada (CDC, art. 51, inciso I e 25, caput). Acrescente-se, ainda, que apenas os riscos patrimoniais podem ser distribuídos pela autonomia privada, pois admitir que a vítima assuma potenciais riscos existenciais que fossem objeto de barganha durante a negociação representaria manifesta violação à dignidade da pessoa humana (CRFB, art. 1º, inciso III). Por fim, a imputação de riscos deve dar-se de molde a observar o equilíbrio funcional da relação em concreto, com fundamento na solidariedade social (CRFB, art. 3º, inciso I), à luz da complexidade da relação em sua inteireza e para além da caracterização econômica, cuja vertente mais comum diz respeito aos binômios clássicos preço-serviço ou preço-coisa. Desse modo, para que seja merecedora de tutela à luz dos valores do ordenamento, fundamental que a equação contratual que dela resulta, independentemente do mérito de se ter efetivado uma melhor ou pior negociação, atue no sentido de repelir o desequilíbrio disfuncional. A contingência do novo coronavírus, de outro turno, fez eclodir, tanto no plano interno como nas experiências estrangeiras, iniciativas legislativas a regular, no direito público e no privado, o problema da pandemia. No Brasil, vigora, desde 7 de fevereiro de 2020, data da publicação da lei 13.979/2020 (que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública), conjunto de dispositivos específicos acerca do problema, (o Decreto Legislativo nº 6, de 20.3.2020, reconhece estado de calamidade pública, para os fins do art. 65 da lei complementar 101/2000), havendo outros tantos em tramitação. O PL 1.179, de 2020, por exemplo, aprovado no Senado Federal e em trâmite na Câmara, institui regime jurídico emergencial transitório para o direito privado. Da louvável iniciativa parlamentar, colhe-se a preocupação do projeto e bem assim do substitutivo que lhe sucedeu em não revogar leis vigentes, mas tão só normatizar pontualmente relações de direito privado, no interior dos limites temporais assinalados. Com tal desiderato, destacam-se, de suas previsões específicas, a suspensão ou impedimento, conforme o caso, dos prazos prescricionais, assim como dos prazos de aquisição de propriedade por usucapião, a partir da vigência da lei até o dia 30 de outubro de 2020. O indigitado projeto cuida, ainda, dos temas da resilição, resolução e revisão dos contratos (arts. 6º e 7º). A proposta de exclusão, tout court, de revisão e resolução dos contratos em hipóteses de aumento da inflação, de variação cambial, de desvalorização ou de substituição do padrão monetário, embora calcada em posicionamentos que se extraem de decisões judiciais prevalecentes no âmbito do STJ, e de parecer tentar conter uma esperada hiper judicialização, esbarra no problema da inviabilidade de o legislador, em abstrato, classificar fatos futuros e definir aprioristicamente o que seja fator capaz de deflagrar revisão, resolução do negócio ou o que constitui caso fortuito ou de força maior. Como demonstrado, apenas à luz das circunstâncias do caso concreto será possível averiguar se a superveniência desses fatos se mostra capaz de preencher os requisitos previstos no artigo 478 do Código Civil a ensejar resolução por onerosidade excessiva, ou revisão judicial dos contratos (art. 317, CC), ou, ainda, caso fortuito e força maior (art. 393, CC). A preocupação em marcar a não retroatividade dos efeitos do fortuito e da força maior destina-se a evitar o aproveitamento oportunista da invocação das excludentes, o que de certa forma reforça a regra, relativa ao devedor moroso, da perpetuatio obligationis (art. 399, CC). Editada em 8 de abril, a Medida Provisória 948 dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura por conta do estado de calamidade. A dicção dos comandos normativos articulados pela MP privilegia e incentiva a realização de acordos entre fornecedores e consumidores - como a remarcação de serviços e eventos, e disponibilização de crédito para uso posterior. Enorme preocupação tem causado, no entanto, a dicção de seu artigo 5º, com a seguinte redação: "as relações de consumo regidas por esta Medida Provisória caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990". Trata-se de dispositivo de todo criticável. Em primeiro lugar, constata-se certa atecnia do texto ao estabelecer que relações de consumo "caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior". A relação jurídica, por definição, jamais constituirá caso fortuito ou força maior. Tais são qualificações de eventos supervenientes cujos efeitos em concreto projetam-se sobre a relação, como visto. Ainda mais grave, porém, é a inconstitucional tentativa de afastamento de direito fundamental à reparação de danos morais, por meio de Medida Provisória. A estapafúrdia previsão vai de encontro à tutela preferencial da pessoa humana e ao princípio da reparação integral. Enfim, a administração dos efeitos devastadores da crise mundial impõe pauta que tome a alteridade como chave da resolução de problemas, conforme os influxos da boa-fé objetiva, expressão da solidariedade constitucional, e preferencialmente por meio de soluções construídas entre as próprias partes, em processo de autocomposição espontâneo ou encorajado pelo Estado (nudge). Para as demandas não alcançadas pela incentivada desjudicialização, e em que se discuta a configuração da força maior e seus limites, o intérprete não deverá proceder de modo abstrato em busca de simples soluções apriorísticas, próprias dos raciocínios subsuntivos - não há mesmo como fixar em lei (ou, pior ainda, em medida provisória) o que seja evento de força maior. Na direção oposta, construirá sua convicção sobre a invocação da dirimente atento aos diferentes graus de impossibilidade da prestação, em função das circunstâncias e fatores que incidem, em concreto, na relação negocial em análise, à luz das previsões de seu próprio regulamento de interesses e dos valores do ordenamento jurídico brasileiro.
Texto de autoria de Nelson Rosenvald Basicamente existem duas razões pelas quais há uma tendência à substituição da clássica expressão "responsabilidade civil" por "direito de danos": a primeira se traduz no fenômeno da pavimentação da objetivação da imputação de danos, paulatinamente construída pela eliminação dos tradicionais muros de contenção à obrigação de indenizar, quais sejam: a necessidade da verificação de um ato ilícito, da culpa e em casos extremos, do nexo causal, mediante presunções de causalidade que atribuem a responsabilidade a um pagador, seja ele o agente, o protagonista de uma atividade de risco inerente ou um segurador (contratual ou legal). Desta maneira, a atividade preponderante do julgador nas pretensões compensatórias consiste em avaliar se há um dano injustificado, ou seja, uma lesão a um interesse digno de proteção, mediante um balanceamento entre as razões do lesante e do lesado. Todavia, chamamos a atenção para a segunda razão do deslocamento do eixo da responsabilidade civil para o fato jurídico lesivo: trata-se do sintoma da proliferação de danos. Vivenciamos um "big bang" de interesses merecedores de tutela, com uma fartura de novas etiquetas, sendo a maior parte objeto de importação jurídica, sem a necessária reflexão sobre a adequação do transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. É evidente que a fórmula binária adotada pela CF/88 (art. 5., V) é insuficiente para abraçar o perímetro da responsabilidade civil em 2020. Há 32 anos, o carimbo constitucional da dicotomia dano material/moral representou a consolidação de um avanço civilizacional perante a clássica objeção à indenizabilidade de lesões a situações existenciais, um vigoroso passo em direção à personalização do direito privado e a mais ampla tutela diante de vulnerações a direitos fundamentais. Nada obstante, é hora de avançar. Com efeito, o dano patrimonial transcendeu o esquema bifurcado dano emergente/lucro cessante, sendo abordado com maior rigor técnico. Lado outro, servirmo-nos dessas linhas para a elaboração de uma tipologia mínima do dano extrapatrimonial, partindo da premissa de que, mesmo na realidade de nosso sistema jurídico aberto - com espeque na cláusula geral do art. 186 do CC - já não é mais possível sustentar a sinonímia de dano moral e extrapatrimonial. A experiência revela que o princípio da reparação integral é ultrajado, diante da consideração genérica do dano moral em uma heterogeneidade de situações, sem o menor cuidado com a especificação sobre quais danos extrapatrimoniais são objeto de decisão. Ademais, a simples invocação de expressões genéricas sem que se outorgue apropriados contornos e argumente-se por quais motivos o seu emprego é pertinente no caso concreto não constitui razão válida para fundamentar uma sentença (art. 489, CPC). Para superar a abordagem tradicional do direito brasileiro pela qual dano moral e dano extrapatrimonial se equivalem - tal como dois lados de um mesmo quadrado -, doravante, para o direito civil pátrio sustento a existência de um gênero, o "dano extrapatrimonial", dividido em 4 espécies, quais sejam: dano à imagem; dano estético; dano existencial e dano moral. Não se trata obviamente de uma classificação exaustiva, pois diferentes rótulos fatalmente se estabelecerão ao longo de tempo, todavia cremos que o "Zeitgeist" aponta para uma classificação quadripartite do dano extrapatrimonial, definindo-se este, em sentido amplo, como uma lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela. Esta abrangência conceitual propicia três vantagens: a) abre ao magistrado espaço para a ponderação de bens conforme as peculiaridades de cada lide permitindo que a fundamentação constitua a resposta judicial à argumentação formulada pelas partes em torno das razões existentes para julgar em um ou outro sentido; b) permite que a doutrina conceba critérios objetivos para orientação judicial face às inevitáveis tensões entre direitos fundamentais; c) oxigena a cláusula geral do artigo 186 do Código Civil, tornando-a permeável aos influxos de consistentes argumentos que densificam normas constitucionais, tais como a indenização por omissão de cuidado nas relações familiares (art. 226, CF) e o dano derivado do direito ao esquecimento na sociedade de informação (Art. 220. § 1, CF). O dano estético não apenas se consolida como uma figura autônoma aos danos moral e patrimonial (Súmula 387/STJ), como também recebe uma atualização de conteúdo. Se em uma primeira fase era reduzido ao "enfeamento" da vítima em razão de cicatrizes e lesões provocadas por um evento lesivo, consolidou-se a partir da decisão do caso Lars Grael (AG Nº 638.763/RJ), em 2007, a abordagem do dano estético como uma transformação morfológica da vítima (no caso, a perna decepada do iatista), cuja indenização independe da verba de dano moral justificada pelo evidente abalo psíquico decorrente do grave dano à integridade física. Em uma perspectiva mais atual, o dano estético adquire um relevo funcional, percebido como um significativo desequilíbrio corporal infligido à pessoa. A perda de um baço, a cegueira e a surdez não representam um "enfeamento" ou mesmo uma alteração fisionômica, porém repercutem na funcionalidade do organismo, justificando uma compensação que ultrapassa o dano moral, aproximando o dano estético de um dano à saúde ou de um dano corporal. A Constituição Federal já conferia autonomia do dano à imagem perante o dano material e o dano moral. Contudo, parece-nos adequado classificar o dano à imagem como uma espécie de dano extrapatrimonial, que eventualmente repercutirá em termos econômicos (Súmula 403/STJ), sem que a projeção econômica da indevida utilização da imagem - seja pelo ressarcimento de danos ou restituição de ganhos ilícitos - desvirtue a sua essência. De fato, tratando-se de tutela de bem específico da personalidade, a captação não autorizada da imagem alheia é suficiente para desencadear o dano, independente de qualquer lesão à honra ou à vida privada da vítima. O precedente Maitê Proença (REsp 764735/RJ), evidencia a autossuficiência do dano imagem, pois a inconsentida publicação de fotos de sua nudez por veículo de imprensa representa um dano de "per si", a par da cumulação com uma condenação ao dano moral, caso houvesse comprovado abalo a sua credibilidade ou a imagem fosse captada em um contexto intimo. Em termos de positivação, o dano existencial é o mais recente membro da prole do dano extrapatrimonial. A reforma trabalhista (lei 13.467/17) trouxe o art. 223-B, explicitamente outorgando ao dano extrapatrimonial a condição de gênero, tendo como espécies o dano moral e o existencial. Este pode ser conceituado como uma modificação prejudicial relevante na vida de uma pessoa decorrente de um fato danoso. Basta imaginarmos um choque elétrico sofrido por operário de cabo com consequências graves e irreversíveis em seu cotidiano: dificuldades para se alimentar, vestir e realizar tarefas comezinhas da vida. Atrevo-me a dizer que a distinção entre o dano moral e o dano existencial é mais árdua que comparativamente ao dano à imagem e ao dano estético. Com relação a essas figuras, a dessemelhança é qualitativa: o dano moral opera por exclusão, impondo-se sempre que a lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela não ocorra nos territórios da indevida captação da imagem ou da funcionalidade orgânica. Assim, ofensas à reputação, privacidade e integridade psíquica ainda se inserem nas lindes do dano moral em sentido estrito. Nada obstante, a distinção entre o dano moral e o dano existencial é quantitativa: o dano moral resulta de uma violação à personalidade cujas consequências deletérias se circunscrevem ao evento; em contrapartida o dano existencial encontra a sua medida na permanência da eficácia danosa sobre a operosidade, dinamismo e qualidade de uma vida. Sob o viés dogmático, pode-se discutir a aplicabilidade do dies a quo do prazo prescricional trienal do código civil para as hipóteses de danos existenciais. Em termos pragmáticos, a distinção encontrará eco na desejável proporcionalização de montantes indenizatórios, justificando condenações em valores mais significativos nos casos de danos existenciais em cotejo com as hipóteses de incidência do dano moral, eliminando-se o indevido recurso à hipertrofia do dano moral pela via da adição de critérios punitivos (v.g. grau de culpa do ofensor, a sua capacidade econômica e/ou reiteração na prática de ilícitos daquela natureza) como forma de ampliação do montante compensatório, que deve sempre se limitar a perspectiva de reequilíbrio patrimonial da vítima à situação mais próxima ao estado pré-ilícito. Ademais, a demarcação das fronteiras da figura do dano existencial é pedagógica, realçando a impropriedade da aplicação da teoria da perda de uma chance para além do domínio das relações patrimoniais. Alguns poderiam acrescentar à descendência direta do dano extrapatrimonial as figuras do dano ao projeto de vida e o dano à vida em relação. Prefiro um pouco mais de cautela com o manejo destes auspiciosos modelos jurídicos. Parece-me que, nas vicissitudes do ordenamento brasileiro, tanto uma como a outra figura se acomodam como espécies de dano existencial e, via de consequência, descendem em segundo grau do dano extrapatrimonial. O dano ao projeto de vida concerne às opções e possibilidades de realização pessoal frustradas face a um dano de envergadura. Eloquente exemplo é o fenômeno da "desterritorialização" consequente do Distrito de Bento Rodrigues/MG, devastado pelo desastre ecológico promovido pela Vale do Rio Doce. Cada morador daquele local não sofreu apenas um dano moral, em verdades as suas vidas foram profundamente impactadas não apenas para o passado (nas memórias), mas a perda de referências representou um abrupto corte em trajetórias existenciais, que serão ressignificadas. Lado outro, o dano à vida em relação é a projeção do dano existencial na primeira pessoa do plural. Ilustrativamente, a alienação parental é um comportamento antijurídico (art. 6., lei 12.318/10) que desqualifica a figura de um dos genitores perante o filho, e, portanto, qualificado como dano moral (seja ao genitor alienado como ao filho). Entretanto, a reiteração da atividade ilícita ao longo dos anos pode resultar em uma síndrome de alienação parental. Mais do que um dano psíquico ao filho, tem-se aqui um dano à vida em relação, na medida em que resta frustrado o projeto de parentalidade. Enfim, os modelos do dano ao projeto de vida ("myself") e o dano à vida em relação ("ourselves") não exaurem as hipóteses de danos existenciais, mas simplificam sobremaneira o percurso argumentativo de inúmeras decisões sobre o tema. Nossa sugestão quanto a uma tipologia aberta do dano extrapatrimonial é apenas uma tentativa de mapear uma zona inóspita da responsabilidade civil brasileira, justificavelmente infensa à rigidez do "numerus clausus" (problema enfrentado pelo direito italiano), sem que isto impeça a doutrina de encontrar elementos comuns entre as inesgotáveis manifestações da subjetividade humana, para o delineamento de categorias capazes de oferecer um grau maior de previsibilidade às decisões judiciais. O objetivo de se erigir uma taxonomia é o de viabilizar, na medida do possível, uma reparação integral, evitando-se a transformação da amplitude da expressão "dano moral" em uma "guerra de etiquetas", a ponto de o dano extrapatrimonial ser qualquer coisa e qualquer coisa ser nada... ou melhor, como lembra Guimarães Rosa, "sussurro sem som onde a gente se lembra do que nunca soube".