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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
O primeiro ponto que parte significativa dos especialistas têm debatido acerca do dito "Projeto de lei das Fake News"1 é se há ou não uma intromissão indevida - e, portanto, uma inconstitucionalidade - no sistema de proteção constitucional da liberdade de expressão. Em choque há duas concepções diversas de liberdade de expressão. Por um lado - especialmente com raízes norte-americanas -, a ideia de que liberdade de expressão guarnece todo o tipo de manifestação inclusive os chamados discursos extremos, ensejando concepções ditas libertárias, baseada em uma utopia de "independência da Internet", em que a regulação é vista sempre com desconfiança, senão com ceticismo. Mary Anne Franks, professora da Universidade de Miami, em recente livro intitulado "O culto da Constituição" (2019), conclui que tal visão é fruto de uma concepção distorcida do que deveria ser o exercício da liberdade de expressão, legitimando racismo, misoginia e mais recentemente a desinformação.  Os provedores, por sua vez, encontram-se, segundo a autora, em posição vantajosa, uma vez que não são responsabilizados pela ilicitude de conteúdo inserido por terceiros antes da notificação, nem pela retirada unilateral de conteúdo com base em suas próprias cláusulas contratuais (FRANKS, 2019, p. 169). Ao fim e ao cabo, criou-se um ambiente do que denomina de "moral hazard", especialmente por três razões: 1. Dificuldade na identificação de quem posta conteúdos ilícitos; 2. Assimetria de poder entre os grandes provedores e outros players na Internet; (talvez o pior deles) 3. Escala, ou seja, a velocidade e voracidade com que criminosos - via de regra, dolosamente - publicam informações maldosas, inverídicas promove um ambiente nocivo nas redes sociais (FRANKS, 2019, p. 166). Ao final, ressalta a autora que o sistema de imunidade dos provedores "é um dos mais poderosos instrumentos destrutivos para esta excepcionalidade da Internet". (FRANKS, 2019, p. 174). A visão absoluta da liberdade de expressão se baseia em uma leitura distorcida do que é o exercício das liberdades públicas e influenciou sobremaneira a normativa norte-americana, os termos de uso dos contratos das plataformas digitais - já que concebidos neste ambiente normativo - e direcionou usuários e produtores de conteúdo ao ambiente em que vivemos hoje, em que, essencialmente, cada vez mais conteúdo tóxico, ilícito e criminoso é despejado online e distribuído conforme as "preferências do usuário". Chegou-se à situação extrema em que há inegáveis riscos à nossa privacidade, à democracia e mais recentemente à saúde pública e à vida da população. Mas, contrariamente à tendência da responsabilidade civil de aumento das hipóteses de responsabilidade objetiva, o risco é criado, mas quem deveria não o assume para fins de responsabilizar-se civilmente. Diferentemente deste caminho foram os rumos na Alemanha. Em 2017, o país adotou uma legislação contra o discurso de ódio (NETZDG) na mesma linha da legislação francesa (antes de ser esvaziada pelo Conselho Constitucional). Entretanto, corajosamente, a Alemanha neste ano de 2020 endureceu o sistema, determinando às plataformas, além do dever que já tinham de retirar conteúdo sabidamente criminoso, ajudar a criar base de dados sobre os autores de postagens retiradas nos termos da legislação.  Em que pese o medo do "overblocking" (EIFERT, 2020) e análises precipitadas com argumentos ad terrorem, os relatórios de posts deletados mostram, em resumo, que não transformou a Alemanha em mau exemplo para fins de proteção da liberdade de expressão. Pelo contrário, a lei é baseada em visão de democracia militante, onde se assume que nenhum direito é ilimitado e se assume posição política de atribuir responsabilidade às plataformas, que no fundo foram imunizadas de responsabilidade quando eram empresas incipientes e a legislação atuou para fins de promover a inovação. Mas, agora, os tempos são outros e pela posição dominante que os transformaram em verdadeiros "impérios da comunicação" (WU, 2012). Portanto, não há que se falar em censura, mas em reconhecimento de responsabilidade à altura do risco criado pelos provedores de aplicação, que, dolosamente ou não, lucram com ao ódio, a desinformação e as falsidades que circulam na Internet. Risco cujos efeitos começaram a se descortinar como a ponta de um Iceberg desde o caso Cambridge Analytica. Aos que sustentam a inconstitucionalidade do projeto, soma-se a linha de argumentação sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet, que em seu caput, traz como função da norma a proteção da liberdade de expressão e vedação da censura, hoje sob questionamento perante o STF com repercussão geral reconhecida. Não obstante, os limites do legítimo exercício da liberdade de expressão são constantemente testados no âmbito das redes sociais e da Internet como um todo. Bem como as hipóteses em que seu exercício é visto como ilegal, abusivo e, portanto, deve ser coibido contratual, legislativa e jurisprudencialmente. No Marco Civil, está fora do sistema de notificação judicial, por exemplo, a pornografia de vingança (art. 21, MCI). E esse é mais um risco desse ambiente. Porém, por opção legislativa, restringiu-se a imunidade dos provedores neste caso, sendo este o momento de se assumir que pornografia de vingança não é o único. A esfera pública nacional vem se deparando - sem alterar sensivelmente a lógica legislativa do art. 19, MCI - sobre outras questionáveis formas de ilicitude supostamente guarnecidas por esse gigante direito fundamental, a exemplo das Fake News e do discurso de ódio e outros conteúdos tóxicos. O caput do art. 10 do PL das Fake News prevê a guarda dos registros (metadados) das mensagens veiculadas em encaminhamento em massa pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade e conteúdo das mensagens: A segunda parte do dispositivo resguarda a privacidade/conteúdo das mensagens. Sendo assim, por mais que seja realizada uma operação de tratamento de dados, tal operação não é ilegal, nem viola o fundamental o direito à privacidade. Ressaltando-se que o conteúdo das mensagens é resguardado, ou seja, só ficam guardados os metadados, preservando-se o conteúdo das mensagens encaminhadas em massa. Nesse contexto, poderia ser perguntado se a prática fere o sistema de criptografia ponta-a-ponta, que é a forma tecnológica achada por aplicativos de mensageria privada para proteger a privacidade das pessoas.  Trata-se de temor precipitado. A norma não viola a alma do sistema de criptografia ponta a ponta, pois a conversa "de ponta a ponta" se trata de quando o usuário manda mensagem para outro usuário ou para um grupo em que está inserido.  Ou seja, a determinação legal será para mensagens enviadas para mais de mil usuários, em que o provedor deverá guardar apenas os metadados acerca das mensagens que são encaminhadas (Art. 10, §4º, PL 2630). Isso, na verdade, é feito porque a ratio da legislação não é procurar esse ou aquele conteúdo que seja ilícito, mas, sim, combater as fake news, por meio do reconhecimento de um comportamento típico de propagação de desinformação. Despiciendo destacar que a obrigação de guarda de metadados não é inovação do projeto de lei, já que há outras legislações nesse sentido no Brasil, com especial destaque para o Marco Civil da Internet (art. 15) e a lei 12.850/2013 (art. 17) que preveem períodos muito maiores para a guarda de dados para fins de investigação. Outro ponto interessante do projeto é o art. 12, que estabelece verdadeiro "devido processo" para a exclusão de conteúdo das redes sociais pelo próprio provedor, ou seja, independentemente de ordem judicial. A liberdade de expressão é um direito fundamental inalienável, sendo certo que a noção de que a proteção aos direitos fundamentais não se restringe ao direito público, cabendo tal aplicação a relações particulares - como aquela entre provedor de aplicação de internet e usuário -. Cabe mencionar o famoso precedente do STF no RE 201819/RJ, proferido no caso de exclusão de sócio excluído da União Brasileira dos Compositores (UBC) sem que lhe fosse garantido o devido processo legal. O STF confirmou a reintegração, sob os auspícios de que a inobservância do direito fundamental ao devido processo legal restringiu a liberdade do sócio, não prevalecendo a tese da entidade no sentido de que as associações privadas possuiriam o direito de se organizar livremente.  Por isso, a lei traz a obrigação ao provedor de garantir minimamente em suas cláusulas contratuais mecanismos eficientes para o contraditório e a ampla defesa, antes de decidir definitivamente pela retirada do conteúdo supostamente ilícito. Os parágrafos do art. 12 descrevem como deverá ser esse procedimento. Sobre esse procedimento, importante destacar que o §2º traz as situações em que se dispensa a notificação do usuário, onde o risco de dano é alto. O dispositivo tem especial relevância em situações extremas, já que insere mais uma norma de ordem pública nas cláusulas dos termos de uso dos sites de redes sociais. O dispositivo é importante, mas peca por não incluir um dos temas mais sensíveis quando se trata das polêmicas envolvendo a liberdade de expressão na internet: o discurso de ódio. Sendo assim, caberia a inclusão do hate speech no rol taxativo do §2º. Ademais, tendo-se em vista o art. 21, MCI, sugere-se a inclusão da divulgação de imagens íntimas sem autorização da vítima (pornografia de vingança). Outro dispositivo nevrálgico para a responsabilidade civil diz respeito ao reforço nos standards de conduta referente aos comportamentos legitimamente esperados dos fornecedores de serviços pelo futuro Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet (COTRI), a ser criado pelo Congresso Nacional nos termos do art. 25, consistente no Código de Posturas (inciso II). O Código de Conduta, como salienta a norma, terá de tratar de pontos obrigatórios como "desinformação, discurso de incitação à violência, ataques à honra e intimidação vexatória". Trata-se de um conjunto de normas que, sob a ótica da responsabilidade civil, ajudam a construir os confins das legítimas expectativas dos usuários de serviços de redes sociais e de mensageria privada. Ou seja, o usuário que baixa um aplicativo, anui com os termos de uso, passa a consumir um serviço e, por essa razão, é legitimamente esperado que o fornecedor assuma o risco pelos danos a que está exposto na plataforma. Práticas como racismo, misoginia, discursos de ódio de toda a sorte e, em especial como alvo deste texto de lei, as notícias falsas como veículo da desinformação, seguem uma lógica de publicidade e propaganda. No concernente à publicidade, a simbiose entre normas associativas e autorregulamentares é sempre citada pela doutrina de direito do consumidor quando se invocam as decisões - especialmente - do Conselho de Autorregulamentação Publicitária como fonte de critérios sólidos para a compreensão dos limites entre lícito e ilícito, abusivo, enganoso etc. Nesse sentido, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 22, que tratava da inconstitucionalidade pela ausência de legislação pela publicidade de cigarros e bebidas, julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela suficiência das regras do CONAR para trazer parâmetros aos que realizam publicidade. Ressalta-se que, no âmbito da regulamentação da Internet em especial, o Comitê Gestor da Internet é aquele responsável pela edição de normas orientativas e interpretativas dentro de suas atribuições e, em que pese as muitas perspectivas sobre a natureza jurídica do órgão, é certo que o modelo multistakeholder acaba por democratizar suas decisões frente aos players envolvidos na Internet, razão por que goza de ampla legitimidade. Como o órgão tem caráter mais de execução de políticas para a Internet, além de sempre contar com a expertise para a realização de pesquisas e ser ouvido em decisões estratégicas sobre a Internet no Brasil (como a Neutralidade da Rede - art. 9º, p.ú, Marco Civil da Internet; Diretrizes para o Poder Público na Internet - art. 24, II, MCI; Composição do Conselho Nacional de Proteção de Dados - art. 58-A, LGPD). Portanto, a composição do órgão, que privilegia o pluralismo de ideias ao abarcar representantes dos diversos setores, legitima as normas vindouras, estabelecendo por lei parâmetros mínimos para o estabelecimento de parâmetros capazes de desnudar os confins do lícito e ilícito exercício da liberdade de expressão, trazendo elementos mínimos como "desinformação,  discurso de incitação à violência, ataques à honra e intimidação vexatória." (art. 25, parágrafo único, inciso II). Os parâmetros não derrogam nem conflitam com o art. 19 do Marco Civil da Internet. Muito menos agridem a liberdade de expressão, mas trazem determinados conteúdos que merecem ao menos atenção redobrada a determinados conteúdos e que, caso não haja condutas satisfativas por meio dos provedores, poderá haver responsabilização. Mas, ainda, expressamente não há nada fora da sistemática do notice and takedown adotada pelo MCI. Contudo, a exemplo do art. 12, o dispositivo também peca por não mencionar o discurso de ódio no rol dos fenômenos a serem tratados pelo código de conduta, razão por que se sugere pontual inserção. Último mecanismo legal que merece destaque sob a ótica da Responsabilidade Civil é o artigo 30, que propõe um modelo contemporâneo de regulação de atividades econômicas, consistente, em suma, no fomento à criação por parte das próprias empresas  de "instituições de autorregulação" às quais, em suma, guardarão sua certificação no Próprio Conselho de Regulação e Transparência (art. 25, p. ú., inciso  X).  Trata-se do mecanismo previsto no artigo 30 do PL 2630, a chamada autorregulação regulada (CAMPOS; ABBOUD, 2020) Acertadamente, a lei procura distribuir os deveres de proteção aos direitos fundamentais atribuindo aos players privados a necessidade de se envolverem na produção de tais regras, induzindo a autorregulamentação em um papel em que o poder público caminha lado a lado, instituindo padrões mínimos, como o de desinformação, ataques à honra, etc.   Em caminho inverso ao do art. 19 do Marco Civil da Internet, o qual relegou ao juiz o papel central de determinar a retirada de conteúdo com necessidade de indicação da URL. Tal situação, ao fim e ao cabo, imunizou os provedores para além até mesmo da legislação americana e, por outro lado, deixou sem proteção a vítima - que tem de procurar a justiça para que sejam bloqueados um ou mais links quando milhares ou milhões podem ser replicados em questão de segundos - e toda a sociedade, pois não levou em conta os potenciais danos sociais da desinformação. Inclusive, relega ao Judiciário a decisão atomizada sobre a licitude da informação quando na verdade a desinformação se dá em grande escala e exige soluções que superem o paradigma binário da judicialização (MARANHÃO; ABRUSIO; CAMPOS, 2020).  Apenas como sugestão, incitando o debate, dada a nobreza do dispositivo sob análise, questiona-se se não seria o momento de tornar sua adoção obrigatória para os provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada de grande porte sem que isso implique necessariamente a compulsoriedade da filiação a entidades de fact checking, o que implicaria em violação da liberdade constitucional de associação.  *Guilherme Magalhães Martins é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Professor adjunto de Direito Civil (licenciado) da Universidade Candido Mendes-Centro. Professor visitante (2009-2010) do mestrado e doutorado em Direito da UERJ. Diretor do Instituto Brasilcon. Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro. **Gabriel Oliveira de Aguiar Borges é mestre em Direito pela UFU/MG. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Professor de Direito Civil e membro do Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro Universitário do Triângulo (UNITRI/MG). Advogado militante na área contratual, empresarial e digital. ***João Victor Rozzati Longhi é defensor público no Estado do Paraná. Professor visitante de doutorado e mestrado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e de graduação do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu (CESUFOZ). Pós-doutor em Direito na UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ. __________ 1 BRASIL, Câmara dos deputados. Projeto de lei n. 2630/10. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Disponível aqui. Acesso em31 ago. 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil   
Uma das diversas alterações do Código civil de 2002 consistiu na inserção da figura da transação no plano contratual. No código civil de 1916, a transação foi incluída entre os modos extintivos das obrigações. A opção adotada pelo Código Civil de 1916 possuía sustentação na doutrina oitocentista1: tinha por fundamento a noção de que, na transação, sobressaía o objetivo de extinção das obrigações e não a concepção de instituir deveres e obrigações recíprocas entre as partes.  Ao incluir a transação entre os contratos, o Código Civil atual vincula-se à orientação doutrinária que a qualifica como um contrato, visão predominante na doutrina clássica e contemporânea2. A circunstância de ela conduzir à extinção das obrigações constitui-se em apenas um dos seus efeitos possíveis - não seu traço essencial. O artigo 840 do Código Civil explicita, ainda, a ideia de que a transação é um contrato sinalagmático: as partes devem realizar concessões mútuas. Sobressai a noção de que a transação possui uma causa: as partes estabelecem relações jurídicas com o propósito de compor um litígio. Nesse contexto, se os particulares ajustam conflitos jurídicos, justifica-se a solução do Código de 2002 que, em relação aos efeitos da transação, suprimiu a disposição existente no código anterior, de que a transação produzia entre as partes o efeito de coisa julgada. A coisa julgada tem fundamento de ordem pública, na medida em que tem por finalidade resguardar a autoridade da sentença, em essência, um ato estatal. Aqui, a diretriz do Código Civil de 2002 harmoniza-se com a solução de outros países, merecendo destaque o fato de o Código civil francês, em reforma de 2016, haver precisamente alterado o regime da transação. Ao mesmo tempo em que suprimiu a referência à coisa julgada, contida originariamente no artigo 2.052, fez constar, no artigo 2.044, que as concessões recíprocas são elemento de existência do contrato de transação. Mas o que ocorre se a parte, após à transação, invoca a existência de danos supervenientes ao acordo e pretende nova indenização por prejuízos surgidos posteriormente? O Superior Tribunal de Justiça teve, recentemente, a oportunidade de apreciar a matéria, em decisão de 20 de abril de 2020, pela 4ª Turma, relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, Agravo Interno no Recurso especial nº 1833847 - RS. A questão envolvia acidente sofrido pela parte recorrida. Feito o acordo, sobrevieram danos posteriores: verificou-se que a vítima precisaria realizar um amplo tratamento odontológico, de modo que os seus prejuízos alcançariam valor muito superior à quantia aceita. Ingressou, portanto, com ação pleiteando nova indenização, que foi deferida na esfera estadual (Ap. Civ. nº 70080886732, 11ª C. Civ., TJRS, j. 03.04.2019, Rel. Des. Katia Elenise Oliveira da Silva) No âmbito do STJ, decidiu-se pela "possibilidade de nova ação para complementação da verba recebida"3. Sobressai como fundamento para o caso "o curto espaço de tempo entre o acidente sofrido pela parte e assinatura do acordo, de um lado, e, de outro, a circunstância de a parte desconhecer a integralidade dos danos". A questão é oportuna porque permite, em rápida análise, pontuar a natureza da transação - figura dotada de riqueza dogmática no âmbito contratual e muito presente na praxe forense - e ao mesmo tempo associá-la com questões estruturais da responsabilidade civil. Em primeiro lugar, se não se invoca a coisa julgada como efeito da transação, a fim de salvaguardar os seus efeitos, pode-se indagar acerca da necessidade de nova regra a respeito ou se é suficiente ter presente o seu caráter contratual, vinculante das partes. Pode-se perfeitamente ponderar que o efeito preventivo de novos litígios pela transação é imanente ao seu sistema, na medida em que as partes precisam acertar sobre a situação controvertida - tanto assim que expressiva corrente doutrinária sustenta a sua definição como negócio jurídico de acertamento. No direito civil francês, porém, sentiu o legislador a necessidade de explicitar esse efeito, na reforma realizada em 2016. Ao alterar a redação do aludido artigo 2052, suprimindo a referência à coisa julgada, fez constar que "a transação constitui um obstáculo ao ingresso ou prosseguimento de uma ação judicial entre as partes"  (La transaction fait obstacle à l'introduction ou à la poursuite entre les parties d'une action en justice ayant le même objet).   Observe-se que a redação dada pelo direito francês é ilustrativa da dificuldade existente para superar a transação realizada. Em harmonia com a Corte estatual, o STJ teve o cuidado de expressar a excepcionalidade de sua decisão, precisamente porque a transação se constitui em um obstáculo para uma nova ação, pois, em princípio, houve a autocomposição da lide - valor reconhecido e preconizado em nosso ordenamento. Sendo, porém, a transação um contrato, e sobretudo um contrato sinalagmático, pode-se indagar se as concessões recíprocas devem ser equivalentes e se as partes poderiam invocar as situações de vício de vontade. Quanto à primeira indagação, muito embora a ausência de regra expressa e a existência de precedentes restritivos na jurisprudência do STF, ao tempo do Código civil de 1916 (RE 72.675/GB, rel. Min. Oswaldo Trigueiro, 1ª Turma, j. 23/11/1971), há que se considerar que o extremo desequilíbrio entre as prestações implicaria o esvaziamento da reciprocidade, elemento de existência do contrato. No que diz respeito ao segundo ponto suscitado, o direito brasileiro possui posicionamento inequívoco sobre a matéria: o artigo 849, do Código civil, dispõe que "a transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa". Ressaltou, portanto, o caráter restritivo das hipóteses de vício de vontade, tendo, ainda, omitido expressamente a lesão como fundamento para invalidar a transação. A solução é distinta em outros ordenamentos: na aludida reforma ocorrida no direito francês, afastou-se o regime específico para os vícios de vontade no contrato de transação, ao suprimir-se a redação original do artigo 2.052, de modo que à transação incide o regime geral de invalidade do direito civil francês. O modelo do Código civil brasileiro não se mostra, em essência, equivocado, na medida em que favorece a segurança jurídica. Admitir a possibilidade de invocação da lesão pela parte conduziria a uma potencial judicialização, precisamente o contrário do que se pretende atualmente. Observa-se, porém, que a opção pela exclusão da figura da lesão do quadro de causas de anulabilidade da transação não implica dizer que não se possa verificar se o elemento de existência desse negócio jurídico - concessões recíprocas - está efetivamente presente. Vislumbra-se que a referência à existência de erro essencial quanto à coisa controversa, muito embora seja um tema dificultoso para a parte, permite à ela suscitar que, desconhecendo a existência de danos supervenientes, não se pode reputar válida a transação ou, ao menos, para utilizar-se a redação dada pelo legislador francês, ela não se constitui em obstáculo para a obtenção de indenização quanto a danos supervenientes, e especialmente expressivos, sobre cuja existência a parte não poderia supor. Com efeito, se a transação envolve a existência de concessões recíprocas, poder-se-ia reputar presente a existência de erro quando a parte, leiga, não tem consciência da extensão das suas lesões4. Em última análise, há que se ponderar também sobre a possibilidade de invocação do princípio da boa-fé à transação, quando uma parte pretende aferrar-se a acordo realizado, flagrantemente desconforme à extensão dos prejuízos configurados no caso5. Nesse sentido, o exame da decisão do Superior Tribunal de Justiça revela a preocupação em salientar o caráter excepcional de sua decisão, ao destacar que admitia a possibilidade de uma nova ação, particularmente em face da circunstância de a parte não possuir as condições de ciência sobre o surgimento de danos supervenientes. A esse respeito, a orientação dada no caso sub judice está em harmonia com decisões existentes na jurisprudência nacional - como serve de exemplo julgado do Tribunal de Justiça do RS (Ap. Civ. nº 70082908427, j. 23.06.2020, 11ª C. Civ. Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello). Em terceiro lugar, atentou a decisão da Corte especial para um tópico relevante à matéria debatida: ao considerar que houve, no caso, "curto espaço de tempo entre a assinatura do acordo e o acidente", pretendeu  ressaltar a dificuldade de a parte avaliar, no interregno decorrido entre o fato e a transação, todos os prejuízos que lhe poderiam advir. Aqui, a decisão do Superior Tribunal de Justiça valoriza a necessidade de nexo causal direto e imediato entre os danos supervenientes e o acidente sofrido pela vítima, em atenção ao disposto no artigo 403, do Código civil. Muito embora a preocupação externada por setores autorizados da doutrina quanto ao critério adotado, tendo em vista o risco decorrente para a segurança jurídica6,  é certo que apesar de a decisão do Superior Tribunal de Justiça não contemplar todo o aparato dogmático relativo à matéria, ela não se dissocia da disciplina relativa ao tema. Em essência, cuida-se de orientação que dialoga com a moldura teórica do contrato de transação, que, dotado de peculiaridades técnicas, autoriza à parte, em casos excepcionais, superar o conteúdo do acordo realizado. Está em consonância, também, com os precedentes presentes nas cortes estaduais. Por fim, mas não menos importante, reconhece o indispensável valor da justiça material e da reparação do dano integral em nosso ordenamento. *Fábio Siebeneichler de Andrade é professor titular de Direito civil da PUC/RS. Professor do programa de pós-graduação da PUC/RS. Doutor em Direito pela Universidade de Regensburg - Alemanha. Advogado. __________ 1  Cf. OERTMANN, Paul. Der Vergleich im gemeinen Civilrecht. Berlim: Heymann, 1895, p. 37. 2 FRAGA, Affonso. Da transação ante o Código Civil brasileiro. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1928. p. 42; PRATO, Enrico del. La Transazione. Milão: Giuffrè, 1992. p. 28; LOOSCHELDERS, D. Schuldrecht - Besonderer Teil. 13ª ed. Munique: Franz Vahlen, 2018, p. 406. 3 "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO NO JULGADO. INEXISTÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ACORDO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO PARA COMPLEMENTAÇÃO DA VERBA RECEBIDA. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla, fundamentada e sem omissões, deve ser afastada a alegada violação ao art. 1.022, I e II, do Código de Processo Civil de 2015. 2. O caso dos autos - curto espaço de tempo entre o acidente e a assinatura do acordo e desconhecimento da integralidade dos danos - constitui exceção à regra de que a quitação plena e geral desautoriza o ajuizamento de ação para ampliar a verba indenizatória aceita e recebida. 3. Agravo interno a que se nega provimento". 4 Exemplo nesse sentido na jurisprudência francesa: FRANÇA. Code Civil. Edition Limitée 2016. 115. ed. Paris: Dalloz, 2016. p. 2613. No original: "est dépourvue de tout effet juridique une transation conclue par la victime d'um accident avant son examen par um médecin-expert, allors qu'elle ne connaissait ni la gravité de ses blessures et s'est ainsi méprise sur la nature et l'entendue de ses droits". (Decisão em Gazette du Palais, 1977, 1.68). 5 A invocação do princípio da boa-fé quanto à transação em casos de desequilíbrio é referida na doutrina alemã. Cf. LOOSCHELDERS, D. Schuldrecht, op. Cit., p. 407; MEDICUS, D.  Schuldrecht I, Munique: Beck, 2004, p. 145. 6 Cf.  Silva, Felipe Tavares da. Responsabilidade civil, autocomposição e segurança jurídica: primeiras impressões a partir do precedente AgInt no REsp nº 1.833.847/RS, in Migalhas de Responsabilidade Civil, 23/7/2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil. 
Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.Friedrich Nietzsche As demandas indenizatórias, normalmente, fluem a partir de um evento de grande impacto pessoal. Uma cicatriz, uma amputação, uma pessoa que não mais está entre os seus. A responsabilidade civil, até porque pautada em um dano, envolve, de uma forma ou de outra, uma perda. E, dentre as variadas funções que tocam à responsabilidade civil temos a busca por se reconstruir o que se decompôs (função ressarcitória), seja por meio do poder devolutivo da indenização, seja pela força amenizadora da compensação. Esta busca está diretamente vinculada ao tempo do processo, visto que a solução da questão que se apresentou no mundo dos fatos, nem sempre, virá de um acordo, demandando todo o trâmite perante o Judiciário, por vezes durante anos ou mesmo décadas, até que se tenha o trânsito da final decisão meritória. Este tempo causa dois graves efeitos sobre as partes: de um lado, mantém acesa a dor do fato danoso e, de outro, desgasta o valor final obtido, quando a resposta não se dá através da reparação específica. O primeiro efeito apontado, que não se apresenta como objeto destes escritos, é extremamente nocivo e corrosivo, visto que alimenta a dor pontuada pelo fato, nutrindo uma história, no mais das vezes, triste. O processo, todos os dias, rememora, machuca e faz doer, uma dor que para além de aguda, parece não ter fim. Isto poderá ser, um dia, objeto de uma conversa, mais sociológica do que jurídica. Aqui, cabe-nos analisar o segundo efeito, a corrosão deletéria do quantum indenizatório/compensatório. Este efeito, se não for estancado, estimula fortemente o suposto autor do dano a buscar um sem-número de mecanismos processuais que possuem um fim específico que é ganhar tempo e, com isto, provocar pressão sobre a vítima para que esta, desiludida com a demora e não suportando a dor da lembrança, aceita acordos prejudiciais para se ver "livre" da demanda, que se torna um peso tão difícil de suportar quanto o próprio fato danoso sofrido. É um labirinto que prende ambas as partes, num embate que em muito lembra o discurso do estudante e do soldado, quando Dom Quixote busca descobrir que é o mais pobre e nos lega a fantástica conclusão de que no hay ningum más pobre em la misma pobreza, porque está atenido a la miseria de su paga" (Miguel de Cervantes. Don Quijote de la Mancha, Barcelona: Edimat Libros, Parte Primera, Cap. XXXVIII). Para minorar este efeito, o sistema jurídico pátrio apresenta dois elementos fundamentais, de conhecido uso popular, os juros e a correção monetária. De antemão, é importante diferençar ambos em razão de sua natureza jurídica e, com isto, apontar as funções diversas que apresentam em relação ao valor do processo. Primeiro, em relação aos juros, tem-se uma categoria que se conhece por clássico exemplo de frutos civis. E, qualquer uma de suas manifestações vai resguardar esta mesma natureza. Assim é, porque há juros moratórios e juros compensatórios (se os diferenciarmos quanto à função) e juros contratuais e juros legais (se apartados em razão da causa proximal). Os juros moratórios possuem como função desestimular a demora no adimplemento, podendo decorrer tanto de um acordo contratual, uma obrigação não contratual oriunda do consenso (como o acordo de alimentos) ou mesmo frente ao ressarcimento do ilícito civil (objeto de nosso atual interesse). Por seu tempo, os juros compensatórios, também com a mesma natureza de frutos, são o valor que se paga pelo uso do dinheiro de uma pessoa. São a compensação pela indisponibilidade do uso por parte do seu titular e devem ser pagos por aquele que fez uso do dinheiro no apontando interregno. Como se pode observar, em ambos os casos os juros são devidos em razão da apropriação de dinheiro alheio, ou, atualizando lição conhecida, seriam os juros o preço devido pela obtenção do potencial de uso do capital alheio. Enfim, enquanto os juros moratórios decorrem de uma obtenção não consentida, os compensatórios surgem do prévio consentimento no uso do dinheiro. Em guinada e focando na causa próxima, notamos que os juros convencionais se aplicam a partir da previsão das partes, restando ao legislador, de forma subsidiária, prever juros aplicáveis no silêncio das partes, denominados juros legais. Os juros são, em derradeira afirmativa, o custo do dinheiro. Margeando o conceito de juro e lhe antecedendo na aplicação, a correção monetária tem natureza de produto, visto que, objetivando manter o poder aquisitivo do valor, sendo colhida (percebida) implicará na redução do capital. Note a distância de tal conceito para o de juro, que, mesmo retirado, manterá intacto o capital de que adveio. Mesmo os juros compostos, conhecidos como juros sobre juros, não perdem tal natureza, mas não interessam a estas breves linhas, visto que a capitalização somente é reconhecida em nosso sistema nas obrigações contratuais e nos interessa, agora, um diálogo sobre as obrigações decorrentes de ilícitos variados (ou mesmo atos lícitos que envolvam o dever de indenizar). Deixando este primeiro ponto fixado, podemos perceber que o dinheiro tem um custo, que todo valor tem um ônus, e este custo é de relevante papel nas demandas indenizatórias, diante do fático delongar das ações. Sobre isso, passamos a conversar. A demora processual já é mais conhecida que preço do chuchu na feira. Disto não há quem discorde. Quando o assunto é a razão desta demora, aí há um universo de posições, ideias e justificativas. Não cabe aqui debater esta origem, por isso tomaremos como um dado que o processo demora, muito ou pouco, mas demora. De quem é a culpa? Desnecessário apurar, pois será, para nós, um fato da natureza. Tendo isso claro, podemos perceber que a demora processual poderia corroer o valor a ser recebido, sacrificando, ainda mais, a vítima. De modo a impedir (ou, ao menos, tentar) esta situação, a lei e as Cortes Judiciais conceberam um sistema de anteparos para que guarnecida ficasse a (ao menos parcial) intangibilidade do crédito indenizatório/compensatório. Iniciemos a análise pela correção monetária. Como mecanismo de manutenção do poder aquisitivo de um valor nominal pecuniário, a aplicação da correção precede a incidência dos juros. E é fundamental observarmos que a sua incidência irá variar de acordo com a natureza do dano. Para os danos materiais temos a incidência da correção a partir do efetivo prejuízo, conforme o Enunciado 43 da Súmula do STJ - Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo. Note que não há variação em decorrência de se tratar de responsabilidade contratual ou extracontratual. Por outro lado, quando a questão posta envolve danos morais, a aplicação da correção monetária se dá a contar do arbitramento do valor, conforme o Enunciado 362 da Súmula do STJ - A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento. Já quanto aos juros, a sistemática é diferente. Aqui não importa a natureza do dano, mas sim a origem da responsabilidade. Em se tratando de responsabilidade extracontratual, a incidência de juros se dá a partir do evento danoso, como asseveram o art. 398, do Código Civil e o Enunciado 54 da Súmula do STJ. Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou. Súmula 54 STJ - Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual. Sendo fato decorrente de responsabilidade contratual, há variação da aplicação conforme se trate de obrigação líquida ou ilíquida. Vale lembrar que líquida é a obrigação certa quanto a sua existência e determinada quanto ao seu objeto, segundo antiga, mas sempre atual, lição. Sendo líquida a obrigação contratual inadimplida, os juros correrão a partir do vencimento da obrigação (como o que detectamos na mora ex re), diante da previsão do art. 397, do Código Civil: Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. E, sendo ilíquida a obrigação de indenizar decorrente de responsabilidade contratual? Neste caso os juros contam-se a partir citação, nos termos do art. 405, do Código Civil: Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Este sistema demonstrado, garante, se não uma completude da função ressarcitória (já que esta depende da própria estipulação do quantum originário) ao menos, que o valor fixado não se dilua, enormemente, ao longo tempo. Sabemos que toda a estrutura funcional da Responsabilidade Civil é pensada para que não ocorra o ilícito; caso este ocorra, que se faça a reparação específica; e em sendo impossível esta, que se tenha uma justa indenização/compensação. Compreender toda esta densidade aceitando a ocorrência do ilícito como algo normal, é banalizar a própria utilidade do Direito Civil. Para além da punição, interessa ao Jus Civile equilibrar as relações privadas, orientar as decisões particulares e promover a paz social. A sanação do dano é apenas a ponta de um iceberg, vez que a Responsabilidade Civil, em que pese focar-se sobre o amanhã, tem crucial interesse no ontem. E, na caminhada em favor de uma sociedade em que o neminem laedere se conceba como uma cláusula instransponível, ao menos quanto aos atos dolosos, a devida correção e atualização dos valores é fator primordial. Que os desejos, assim, se tornem realidade. *Wagner Inácio Freitas Dias é mestre em Direito, diretor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Ubá, professor de Direito Civil, advogado. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 
1. Introdução Certo dia, um dileto amigo me ligou e, atônito, me disse: - Recebi uma citação em uma ação reivindicatória envolvendo um imóvel de cem milhões de reais, que, por algum erro, estava em nome de um parente meu. Ninguém me contatou antes. Se tivessem falado comigo antes, eu cederia, pois não tenho interesse algum no bem nem acho que eu teria direito sobre ele.  O amigo, após relatar já ter contratado um advogado apenas para concordar com o pedido inicial, finalizou indagando: - Eu terei de pagar 10% de honorários sucumbenciais (leia-se: 10 milhões de reais)? Eu posso pedir o reembolso do que paguei de honorários contratuais (algo em torno de 10 mil reais)?1 Não estamos a falar de quantia de somenos importância. Numa análise mais apressada, alguém diria que já poderíamos preparar um Réquiem em razão do inevitável passamento financeiro do meu amigo, pois o art. 90 do Código de Processo Civil textualmente sentencia: "Proferida sentença com fundamento em (...) reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que (...) reconheceu". Esse mórbido arauto do iniludível2 talvez anunciasse que essa morte poderia ser 50% menos trágica com base no § 4º do art. 90 do CPC: "Se o réu reconhecer a procedência do pedido e, simultaneamente, cumprir integralmente a prestação reconhecida, os honorários serão reduzidos pela metade". Reduzir para 5 milhões os honorários sucumbenciais à luz dessa gentileza legal não obstariam o sepultamento financeiro desse amigo. Os 10 mil reais de honorários "gastos" com a contratação do advogado, apesar de, isoladamente ser um grande prejuízo, tornam-se uma simples "gorjeta" diante do assombro daquela quantia milionária. Entendemos, porém, que o vaticínio açodado acima não prospera. Alguns fundamentos de Responsabilidade Civil e de Teoria Geral de Direito têm o condão de "virar a mesa", transformando o temor da morte financeira em uma celebração da vida. 2.  Fundamentos do dever de pagar/indenizar honorários sucumbenciais e contratuais  Os honorários contratuais são os valores pagos pela parte ao seu advogado a fim de este patrocine seus direitos em juízo. Na hipótese de vitória no processo, indaga-se: a parte derrotada teria ou não de indenizar a parte vencedora pelo dano material sofrido com esse desembolso? Esse dever de indenizar representa uma discussão de Responsabilidade Civil, pois envolve uma pretensão reparatória. Em Responsabilidade Civil, ao contrário do que muitos inadvertidamente propalam, não é por que alguém sofreu um dano que terá direito a ser indenizado. Há necessidade da presença de um requisito essencial: a ilicitude do ato causador do dano3. A responsabilização civil decorre, em regra, de um ato ilícito! A exceção corre à conta apenas das hipóteses legalmente previstas de responsabilidade civil por ato ilícito4. Nesse sentido, podemos invocar a autoridade do professor Flávio Tartuce5 bem como dos professores Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe P. Braga Netto6, além dos professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho7 e do professor Paulo Roque Khouri8. Diante disso, indaga-se: há ou não ato ilícito em propor uma ação judicial contra outrem sem prévia tentativa de negociação na hipótese em que o réu reconhece o pedido na sua primeira manifestação nos autos? A resposta virá no próximo capítulo. Em relação aos honorários sucumbenciais, eles nascem por força do CPC como uma obrigação da parte sucumbente em favor dos advogados da outra parte. Formalmente, nos moldes em que foram talhados pelo CPC, os honorários sucumbenciais não é uma indenização (Responsabilidade Civil), e sim uma obrigação (Direto das Obrigações) nascida em favor do advogado. O requisito essencial para o nascimento dessa obrigação é apenas um: o princípio da causalidade. Quem tiver dado causa à ação judicial tem de indenizar. A pergunta de um milhão de dólares é: quem dá causa a uma ação judicial na hipótese de esta ter sido proposta sem prévia tentativa de negociação prévia e de o réu reconhecer o pedido na contestação? Essa e a anterior pergunta são o alvo do próximo capítulo. 3. Dever de negociação e sua repercussão na questão dos honorários As duas perguntas lançadas no capítulo anterior se resumem nesta: quem tem de, no final das contas, suportar financeiramente as despesas com honorários contratuais e sucumbenciais na hipótese de ação judicial proposta sem tentativa prévia de negociação e na qual o réu reconhece o pedido na sua primeira manifestação nos autos? A resposta, ao nosso sentir, decorre, ainda que indiretamente, do conceito de dever jurídico de renegociar (ou de negociar), desvelado pelo talento do jurista Anderson Schreiber na tese que lhe alçou a catedrático de direito civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ9. A paradigma tese do genial civilista carioca atapeta diversas frentes de estudos e, inclusive, ilumina a questão em pauta. Entre vários artigos inspirados no conceito de Schreiber, chamamos a atenção para a brilhante reflexão do professor carioca Marco Aurélio Bezerra de Melo acerca do dever de renegociar como uma condição de procedibilidade de ações revisionais ou de resolução contratual10. No que importa a esse texto, temos que é viável extrair do conceito acima que há um dever jurídico, sustentado na boa-fé objetiva, de que o titular de um direito adote condutas cooperativas para tentar uma composição antes de adotar a medida drástica da propositura de uma ação judicial. Trata-se de um dever jurídico, cuja violação configura um ato ilícito. Contra esse ato ilícito o ordenamento jurídico dispõe de remédios11 e, entre eles, estão o dever de indenizar e, em âmbito processual, as consequências de ter sido o causador de uma demanda judicial. Enfim, entendemos que, na hipótese de alguém ajuizar ação judicial sem prévia tentativa de contato com o réu (de modo a permitir que este renegocie ou, ao menos, apresente sua rendição incondicional), se o réu reconhecer o pedido na sua primeira manifestação nos autos, o autor da ação, apesar de vitorioso no feito judicial, terá incorrido em ilícito civil a credenciar a sua condenação: (1) a indenizar o dano material suportado pelo réu com os honorários contratuais12; e (2) a arcar com os honorários sucumbenciais por ter sido o causador da demanda, tudo à luz do princípio da causalidade que guia a obrigação de pagar as verbas sucumbenciais. É claro que esse entendimento não se aplica a hipóteses de comprovada inviabilidade de tentativa de composição extrajudicial (ex.: indisposição expressa do réu em conversar, inviabilidade de localizar o réu etc.). Essa é adequada interpretação do art. 90 do CPC. Em relação aos honorários sucumbenciais, reforce-se: vitória na ação judicial não significa direito a honorários sucumbenciais! É viável que o vencedor seja condenado a pagar os honorários sucumbenciais se tiver causado a ação, a exemplo do caso da Súmula nº 303/STJ13. No caso de a Fazenda Pública ser a ré em ação judicial, tendo em vista o seu engessamento extrajudicial por conta das regras de Direito Administrativo, o legislador, com a bênção da jurisprudência, preferiu isentar ambas as partes de suportar os honorários sucumbenciais na hipótese de reconhecimento do pedido pela Fazenda na sua primeira manifestação nos autos14. Não discutiremos aqui eventual viabilidade de contemporização dessa interpretação, porque o eixo da discussão mudaria do art. 90 do CPC para outro dispositivo (o art. 19, § 1º, I, da lei 10.522/2002). 3. Conclusão Há esperança para o meu dileto amigo. Os 10 mil reais que ele desembolsou com a contratação de advogado para reconhecer judicialmente o pedido têm de ser indenizado pelo açodado autor da ação milionária. E, principalmente, diante do fato de que esse precipitado litigante causou a demanda, o terror fantasmagórico dos 10 milhões reais de honorários sucumbenciais será exitosamente exorcizado pelo Judiciário e se transformará em um passaporte para Pasárgada, Eldorado, Shangri-la, Uqbar, Atlântida, Maracangalha15 ou algum outro paraíso lendário com o qual Umberto Eco, Alberto Manguel e Gianni Guadalupi16 nos fazem sonhar. Ao menos, é o que esperamos17. *Carlos Eduardo Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília - UnB -, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF.  Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/parecerista. Ex-advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB).  __________ 1 Para fins didáticos e de preservação do anonimato, fiz alguns pequenos ajustes na história. 2 Manoel Bandeira, no seu belo poema "Consoada", nominava de "iniludível" o evento futuro e certo que, em algum momento, nos recolherá. 3 Nesse aspecto, defendemos que a dúvida jurídica razoável pode ser uma excludente (ou um atenuante) de responsabilidade civil por afastar ou "mitigar" a ilicitude (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais. Disponível aqui. Publicado em 10 de abril de 2020). 4 Exemplos: (1) danos causados a terceiros em estado de necessidade ou legítima defesa ocasionadas por alguém (arts. 929 e 930 do Código Civil - CC); e (2) responsabilidade objetiva (ex.: art. 927, parágrafo único, CC). 5 "O ato ilícito que interessa para os fins da responsabilidade civil, denominado por Pontes de Miranda como ilícito indenizante, é o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica violando direitos e causando prejuízos a outrem. Diante da sua ocorrência, a. norma jurídica cria o dever de reparar o dano, o que justifica o fato de ser o ato ilícito fonte do direito obrigacional". (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 356-357). 6 "(...) conceituamos a responsabilidade civil como a reparação de danos injustos resultantes da violação de um dever geral de cuidado. (...) Diga-se, por necessário, que o núcleo da. responsabilidade civil reside no inexorável pressuposto do dano injusto que possa ser imputado a uma pessoa. (...) a obrigação de indenizar é somente uma das eventuais consequências de um ilícito civil" (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016). 7 "(...) a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar)" (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 39). 8 Ao se tratar de hipóteses de responsabilidade objetiva do consumidor (um exemplo de responsabilidade civil por ato lícito), é icônica a obra do nobre professor (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2013). 9 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. 10 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Disponível aqui. Publicado em 27 de abril de 2020. 11 Em cativante palestra no IDP/DF em agosto de 2019, o jurista Nelson Rosenvald explicitou uma classificação de atos ilícitos e de remédios empregada no direito britânico com base nas obras de Peter Birks. Tivemos a oportunidade, de com adaptações e com base nas obras desse jurista britânico e de James Goudkamp, elencar os ilícitos civis e os remédios neste artigo: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida Jurídica Razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, pp. 1-19, jan. abr/2020 (Disponível aqui). 12 Não ignoramos que a tendência do STJ, em regra, rejeitar indenização por honorários contratuais com fundamento na ausência de ilicitude por haver exercício regular de direito e por já existirem os honorários sucumbenciais (STJ, EREsp 1.155.527, 2ª Seção, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 28/06/2012). Apesar de termos ressalvas quanto a esse entendimento e - nesse ponto - reportamo-nos a artigo do professor Atalá Correia (Disponível aqui. Publicado em 7 de dezembro de 2015), o fato é que a situação tratada neste artigo é TOTALMENTE DIFERENTE da enfocada naqueles julgados. Aqui estamos a cuidar de açodadas ações judiciais sem prévia tentativa de diálogo. 13 Súmula nº 303/STJ: "em embargos de terceiro, quem deu  causa  à constrição indevida deve arcar com os honorários advocatícios". 14 Veja este julgado do STJ: "O STJ, por ocasião do julgamento do AgInt no AgInt no AREsp 886.145/RS, DJe 14.11.2018, firmou a seguinte compreensão: 'De acordo com a atual redação do inciso I do § 1º do art. 19 da lei 10.522/2002, que foi dada pela Lei 12.844/2013, a Fazenda Nacional é isenta da condenação em honorários de sucumbência nos casos em que, citada para apresentar resposta, inclusive em embargos à execução fiscal e em exceções de pré-executividade, reconhecer a procedência do pedido nas hipóteses dos arts. 18 e 19 da Lei 10.522/2002'" (STJ, REsp 1815764/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 10/09/2019). 15 Em homenagem ao perpetuamente mestre Dorival Caymmi. 16 Umberto Eco foca em lugares que não teriam sido "inventados" na sua obra "História das Terras e Lugares Lendários", à diferença de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi no seu "Manual dos lugares fantásticos". 17 O STJ ainda não enfrentou especificamente o argumento ora defendido neste artigo, mas apenas casos em que realmente o art. 90 do CPC seria aplicáveis (aqueles em que se frustrou ou era inviável uma tentativa extrajudicial prévia de composição) ou em que, diante do limitado efeito devolutivo do recurso especial, a parte não suscitou o argumento ora alinhavado. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil   
Recente decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso Especial n° 1.815.796, reconheceu a exigibilidade de importante dever implícito em contrato de prestação de serviços de saúde celebrado por mulher acometida de câncer de mama. Enferma aos trinta anos de idade, a beneficiária do plano de saúde, alertada pelo médico de que o tratamento a que se submetia poderia impedir uma futura gravidez, recorreu ao Poder Judiciário para que a operadora custeasse o procedimento de criopreservação, por meio do qual congelam-se os óvulos para que se mantenha a capacidade reprodutiva após as sessões de quimioterapia. Em primeiro grau, julgou-se procedente o pedido formulado, havendo a sentença sido confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com condenação em danos morais no valor de R$ 10.000,00. A requerida, desde a contestação, sustentou a tese de que o procedimento em questão não estaria contemplado pelo rol de cobertura obrigatória, nos termos da Resolução Normativa n° 387/16 da ANS, por se tratar de inseminação artificial. De fato, a inseminação artificial não é elencada como procedimento que deve ser mandatoriamente coberto pelo plano de saúde. Contudo, o pedido não versava sobre inseminação, mas sim a respeito de prevenção das sequelas da doença, com o objetivo de se preservar a fertilidade da paciente. A prevenção, aliás, encontra amparo, como bem apontado no acórdão do Tribunal carioca, no art. 6° da Constituição Federal, que apresenta a proteção à maternidade como direito social. O relator no STJ estava inclinado a reverter a decisão das instâncias inferiores, tendo chegado a proferir voto, em 19 de maio, no sentido de dar provimento parcial ao recurso da operadora do plano para excluir da condenação a cobertura dos procedimentos de reprodução assistida posteriores à "punção dos oócitos." Sucede que a Ministra Nancy Andrighi proferiu voto-vista na semana seguinte, provendo o recurso especial em maior extensão para reconhecer a responsabilidade do plano em "custear a criopreservação dos óvulos até a alta do tratamento de quimioterapia prescrito à recorrida para o câncer de mama", fazendo com que o relator retificasse seu voto para acompanhá-la. Em sua fundamentação, o Ministro Sanseverino menciona com absoluta adequação um princípio consagrado na Medicina1 e com inegáveis reflexos jurídicos. Trata-se do princípio da não-maleficência ou do primum non nocere, através do qual os médicos se comprometem, ao prescreverem determinado tratamento, a evitar danos e a não prejudicar o paciente, reduzindo ao máximo a ocorrência de efeitos adversos ou indesejáveis. No caso sob exame, o corpo médico, ao indicar a uma paciente jovem tratamento quimioterápico, ciente de que poderia lhe ocasionar uma falência ovariana prematura com a consequente superveniência de esterilidade, tem, em primeiríssimo lugar, o dever de lhe informar do potencial dano a ser experimentado e do meio de que se dispõe para evitá-lo, qual seja, o congelamento dos óvulos. Nessa linha, se o plano de saúde, por força contratual e infralegal - esta última através das disposições da Agência Nacional de Saúde Suplementar - deve custear a quimioterapia, é também obrigado a arcar com os custos de tratamento para evitar danos que podem vir a ser configurados. Ora, a desejada cura do câncer através da quimioterapia pressupõe o dever - com os consectários no campo da responsabilidade civil dele oriundos - de primum non nocere, ou, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, o "dever de prevenir, sempre que possível, o dano previsível e evitável resultante do tratamento médico prescrito." Note-se, a esse respeito, que a atenção ao "dano previsível e evitável" não é, em absoluto, desprezada pela doutrina ou pelo regramento de Direito Privado. Ao contrário e por todos, menciona-se um dos coordenadores da presente coluna, para quem o protagonismo da reparação dos danos nos últimos dois séculos dará lugar doravante à prevenção2. Parece-nos evidente que um beneficiário que se disponha a contratar um plano de saúde, faça-o, em que pesem as limitações de cada qual em função da contribuição mensal, esperando por uma cobertura ampla, sobretudo em casos graves como os de um câncer. Contudo, a decisão do STJ não impôs à operadora o dever de custear indefinidamente a criopreservação dos óvulos, ao considerar que o período de fertilidade de uma mulher, como aponta o IBGE, compreende, em regra, a faixa dos 15 aos 49 anos de idade. No mesmo contexto, afigura-se ainda possível que a paciente, após a conclusão do tratamento, venha a engravidar de modo natural sem a necessidade de manejo dos óvulos congelados, constituindo mais um motivo para não atribuir dever sine die ao plano de saúde. Como já se mencionou, o relator pretendia eximir a recorrente da cobertura dos procedimentos de reprodução assistida posteriores à "punção dos oócitos", entendida como a retirada dos oócitos (os óvulos são oócitos em fase final de maturação) dos ovários após a ministração de medicamento. A Ministra Nancy Andrighi, entretanto, revelou preocupação com a delimitação da responsabilidade da operadora nos termos descritos já que o oócito simplesmente fora do corpo humano, sem que seja submetido à criopreservação, deixa de ser apto à futura transferência embrionária, não se atingindo, portanto, o objetivo de prevenir a infertilidade. Por outro lado, deve-se considerar que a resolução n° 2.168/17 do Conselho Federal de Medicina estabelece que a idade máxima para as candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida é de 50 anos. Excepcionalmente, a paciente com idade superior pode se submeter ao tratamento se houver critérios técnicos e científicos fundamentados pelo médico a respeito da ausência de comorbidades da mulher e após dar-lhe ciência sobre os riscos que podem ser experimentados por ela e seus descendentes. Se a autora da ação, com 30 anos de idade, congela os óvulos em virtude da possível sequela oriunda da quimioterapia, seria irrazoável atribuir à operadora, por 20 ou mais anos, o dever de custear a sua preservação. A solução encontrada, portanto, foi a de limitar essa responsabilidade até a alta do tratamento da quimioterapia. Por uma questão de simetria, se a obrigação da operadora do plano de saúde finda com a conclusão do tratamento indicado para combater o câncer de mama, também os custos envolvidos na criopreservação dos óvulos se submetem a esse marco temporal. Por essa razão, a decisão do Superior Tribunal de Justiça prestigia, sem dúvida alguma, dentre outros, os princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato, cujos efeitos são amplificados por tratar-se de relação de consumo. Como é sabido, ambos os princípios podem apresentar viés hermenêutico, socorrendo o intérprete do contrato sem ignorar as circunstâncias fáticas que envolvem seu desenvolvimento e execução, podendo flexibilizá-lo, bem como podem limitar o exercício de direitos subjetivos, coibindo-se eventuais abusos e evitando distorções contratuais com origem na vontade das partes ou em fatores externos independentes  da vontade dos contratantes3. A boa-fé contratual, no caso particular apreciado pelo STJ, é indissociável da legítima expectativa da beneficiária, adimplente quanto às mensalidades do plano de saúde, de que, não obstante a possível superveniência de infertilidade não seja o objeto central do tratamento para a cura do câncer, essa potencial sequela seja igualmente coberta. Por sua vez, quanto ao princípio da função social, já o dissera o Professor Junqueira que tem como objetivo integrar os contratos em uma ordem social harmônica, como meio de impedir aqueles que prejudiquem a coletividade, a exemplo de contratos contra o consumidor, e também os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas, como as vendas das distribuidoras "atravessadoras", objeto da consulta que lhe foi formulada na ocasião4. Não dispondo o Estado de condições de atender todas as necessidades médicas da população em um nível satisfatório, os que detêm maior poder aquisitivo naturalmente procuram celebrar convênios através das operadoras de planos de saúde. Há um indiscutível objetivo social nessas espécies contratuais, fato que não importa em uma atividade filantrópica das operadoras, as quais devem ser adequadamente remuneradas e geridas, sob pena de novos episódios como o da Unimed Paulistana. Essa realidade, todavia, não é incompatível com os benefícios sociais que devem ser espraiados, mormente quando se considera que a proteção à maternidade, como se ressaltou, é direito social constitucionalmente consagrado. Irreprochável, portanto, o acórdão de lavra do Ministro Sanseverino, com grande contribuição da Ministra Nancy Andrighi. Espera-se que os seus frutos sejam amplamente colhidos em outras lides como forma de prestigiar a dignidade dos pacientes que se submetem a tratamentos tão penosos. *Caio Morau é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela USP, com um ano da graduação cursado na Universidade de Paris. Professor de Direito Civil, Direito Empresarial e Prática Cível da Universidade Católica de Brasília. Diretor da Comissão de Assuntos Legislativos da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Parecerista da Revista de Direito de Família e das Sucessões. Assessor jurídico no Senado Federal, advogado, árbitro (CAMES) e consultor jurídico. Associado titular do IBERC. __________ 1 "O princípio da beneficiência refere-se à obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. O profissional deve ter a maior convicção e informação técnica possíveis que assegurem ser o ato médico benéfico ao paciente (ação que faz o bem). Como o princípio da beneficência proíbe infligir dano deliberado, esse fato é destacado pelo princípio da não-maleficência. Esse estabelece que a ação do médico sempre deve causar o menor prejuízo ou agravos à saúde do paciente (ação que não faz o mal). É universalmente consagrado através do aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos ou indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas no ser humano." Disponível aqui. Acesso em 10 ago. 2020. 2 Cf. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, Volume 3. 2.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19. 3 Cf. ZANETTI, Andréa Cristina; TARTUCE, Fernanda. Atualização do CDC: Boa-fé, Superendividamento e Proibição da Arbitragem de Consumo. Revista de Direito do Consumidor, vol. 106, jul.-ago. 2016, p. 11-12. 4 Cf. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado - Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento... [Parecer]. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 87, n. 750, p. 116, 1998. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil   
1 A morte e os rituais de despedida Despedidas e rituais fúnebres são um direito? Ao levantar essa questão, não podemos deixar de mencionar Antígona,1 obra clássica de Sófocles, que traz o embate entre direito natural e direito positivo. Antígona, filha incestuosa de Édipo e Jocasta, enfrenta a tirania, opondo-se às razões do Estado, ao cuidar dos despojos do irmão, apesar da determinação do rei Creonte, que proibiu que lhe fosse dado sepultura. Segundo Antígona, as leis humanas (direito positivo) deveriam se submeter às leis divinas (direito natural). Na contemporaneidade, não é necessário invocar normas prescritas por imortais aos mortais para justificar direitos tão ligados ao fim da existência humana. Nos últimos séculos, a função do direito natural se esvaiu com as declarações dos direitos humanos, a positivação e a constitucionalização desses direitos e, por fim, a construção da categoria dos direitos da personalidade. Os rituais de sepultamento nos ajudam a "domesticar a morte". Mas, como viver o luto em tempos de pandemia, quando não se pode preparar os corpos ou velar os mortos como a cultura determina? Quantas tradições apareceram na tentativa de superar o luto, mas também no intuito de manter a memória. No Brasil, no Alto do Xingu, quando alguém do povo indígena Kuikuro morre, seu corpo é preparado para entrar no mundo dos mortos. No ritual, há que se abraçar o morto, adorná-lo e pintar seu corpo com desenhos ancestrais. A solenidade da despedida é necessária para que quem partiu continue sendo respeitado na outra vida. A não realização do ato tem, como consequência, uma vida de vergonha no outro mundo.2 Em País continental, são muitas as maneiras de dizer adeus aos mortos: sentinelas, o choro das carpideiras, missas, cultos, cerimônias de cremação ou enterro. Sem os rituais da despedida, resta-nos trazer aqui uma expressão muito trabalhada pelos estoicos: Memento mori. Lembremos de que somos mortais, lembremos de que vamos morrer, lembremo-nos da morte. Nesse novo tempo tão exigente, o desafio é ressignificar a morte, repensá-la e elaborá-la. 2. O direito de dizer adeus: um novo direito da personalidade O Código Civil de 2002 foi a primeira norma legal brasileira a disciplinar explicitamente os direitos da personalidade, dedicando-lhes os arts. de 11 a 21. Isso não significou a introdução dessa categoria de direitos subjetivos na ordem jurídica nacional, porquanto já era reconhecida a partir da principiologia civilística e constitucional e, ainda, mediante leis esparsas. A construção doutrinária dos direitos da personalidade se antecipou à sua positivação no Código Civil de 2002. No entanto, não há uniformidade entre os juristas na tarefa de classificá-los. Analisando as classificações de Adriano De Cupis, Orlando Gomes, Antônio Chaves, Pontes de Miranda e Francisco Amaral, o direito de dizer adeus encontra eco3. Adriano De Cupis, Orlando Gomes e Francisco Amaral expressamente incluem, nas suas classificações, o direito ao cadáver; Antônio Chaves menciona o direito à liberdade de consciência e de religião e Pontes de Miranda afirma o direito à integridade psíquica como direito da personalidade. Quando frustrado o direito de dizer adeus, é desrespeitado o direito ao cadáver, que não foi velado, segundo cultura e religião familiar; o exercício do direito à liberdade de consciência e de religião é mitigado e, por fim, o não viver o luto pode trazer sérias consequências para a integridade psíquica dos que ficaram. Mas, como compatibilizar o direito da personalidade de dizer adeus com a necessidade de observar as prescrições de proteção à saúde pública? Durante a pandemia e no período pós-pandemia, pode tornar-se comum a judicialização de conflitos, nos quais concorrem o direito social à saúde e o direito da personalidade de dizer adeus. Recentemente a mídia veiculou a notícia4 de que, em Belo Horizonte, os familiares de um idoso que faleceu em razão de problemas respiratórios (pneumonia, com suspeita da Covid-19), pretendem propor ação judicial em face do hospital e do Município, por não terem velado o morto. Segundo relato da família, a pneumonia decorreu de aspiração por sonda nasal, sem qualquer ligação com a contaminação pelo coronavírus. Ainda assim, a instituição hospitalar aplicou ao paciente o mesmo protocolo para as pessoas infectadas. Dois exames foram feitos, cujo resultado negativo somente se tornou conhecido após o sepultamento. A possibilidade de judicialização remete à análise do tema na perspectiva da responsabilidade civil, o que exige o enfretamento da concorrência de dois direitos voltados à proteção da dignidade da pessoa humana. 3.  A reparação civil e a concorrência entre o direito da personalidade de dizer adeus e o direito social à saúde Durante muito tempo o sepultamento era visto como questão religiosa, familiar e cultural. Hoje é, sobretudo, uma questão sanitária, que justifica a edição de normas pelo Estado. Diante do elevado número de funerais, o Ministério da Saúde elaborou Protocolo denominado Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus - COVID-19, contendo as recomendações de como devem ser realizados os funerais, o manuseio do cadáver nos hospitais, em domicílio e em espaço público, com o objetivo específico de orientar as equipes de saúde de medicina legal e funerárias. As pessoas que falecem em decorrência da covid-19, ou por suspeita dela, podem ser enterradas ou cremadas, mas há restrições relativas aos velórios e funerais de pacientes. São elas: durante todo o velório o caixão deverá permanecer lacrado para evitar qualquer contato com o corpo; a cerimônia de sepultamento deverá ocorrer em lugares ventilados e, preferencialmente, abertos; somente poderão permanecer na cerimônia fúnebre no máximo dez pessoas, respeitando a distância mínima de, pelo menos, dois metros entre elas, assim como outras medidas de isolamento social e de etiqueta respiratória; deverá ser evitada a permanência de pessoas que pertençam ao grupo de risco, quais sejam: idade igual ou superior a sessenta anos, gestantes, lactantes, portadores de doenças crônicas e imunodeprimidos. Ademais, outra restrição dolorosa para os familiares é não poder sequer aproximar-se do corpo morto para fazer o reconhecimento que, a depender da estrutura existente, deve ocorrer por meio de fotografias, evitando contato ou exposição. Em tempo de pandemia, a saúde pública tem prioridade e limitações são legítimas. O direito de dizer adeus, enquanto direito voltado para a proteção da dignidade da pessoa humana, é um direito da personalidade. Mas como direito, o dizer adeus deve conformar-se com a ordem jurídica, concorrendo com outros, sobretudo aqueles que, como ele, visam a dignificar o ser humano. Não há, no entanto, a priori, prevalência do direito social à saúde sobre o direito da personalidade de dizer adeus. Partindo do caso relatado, investigamos a possibilidade de reparação civil pela vulneração do direito da despedida, diante da morte. No direito brasileiro, a responsabilidade do médico é sempre subjetiva (art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor), de modo que se exige a conduta culposa do profissional da saúde. Outra é a solução quando se analisa a responsabilidade das instituições hospitalares: o hospital é prestador de serviço, e, não, profissional liberal, de modo que se configura a hipótese do caput do art. 14 do CDC, em vez do seu § 4º. A distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é igualmente relevante: na primeira, o devedor se obriga a atingir ou alcançar determinado fim, ao passo que na segunda, o devedor se vincula ao emprego de determinado meio, sem prometer certo resultado. Na obrigação de meio basta que a parte contratada seja o mais diligente possível para tentar alcançar o resultado almejado pelo contratante. Na obrigação de resultado o contratado assume o dever de atingir um resultado certo e determinado. Para além da atuação técnica voltada para o enfrentamento da covid-19, a atuação do médico envolve os deveres anexos, fundamentados na boa-fé objetiva, dentre os quais o dever de respeitar o direito - tanto do paciente como das pessoas de seu convívio familiar e íntimo - do último momento juntos: o direito de dizer adeus. Feitas essas considerações, pode-se delinear os contornos da reparação civil pela violação de direito de dizer adeus: trata-se de responsabilidade contratual, de natureza subjetiva, imputada ao profissional liberal (médico), pelo descumprimento de obrigação de meio e pela violação de dever anexo fundado na boa fé objetiva. Ocorre, portanto, violação positiva do contrato. Cumpre destacar que o médico somente será compelido a reparar os danos diante da comprovação de sua conduta ilícita e culposa, além do nexo causal entre o ato e o dano. O dano, no caso, é de natureza extrapatrimonial (gênero), na espécie dano moral, por violação a direito da personalidade5. Focando no caso concreto - que aqui não se pretende solucionar, mas, a partir dele, problematizar - importa investigar a hipótese de erro de diagnóstico e, consequente aplicação de procedimentos inadequados ao caso, assim como a própria relação médico-paciente (ou familiares do paciente), pois é dever de conduta do médico ouvir, antes de decidir sobre diagnósticos, fazer prognósticos e implementar medidas. Pela notícia, aparentemente havia espaço para o diálogo: a filha do idoso chegou a apresentar um laudo do geriatra que apontava a "aspiração por sonda" como a causa da pneumonia. No entanto, a decisão final - que não veio do médico que atendia o idoso, mas da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar - foi contrária à expectativa da família, o que não significa, necessariamente, que houve antijuridicidade no ato decisório. A responsabilização civil, como já enfatizado, vai depender de estarem presentes todos os seus elementos. Essa reflexão lançada, em meio a pandemia da covid-19, busca pontuar as consequências jurídicas que podem advir dos óbices aos rituais de sepultamento e despedida dos mortos. Nem sempre a faticidade vai se acomodar à juridicidade, o que pode ser suficiente para ensejar conflitos merecedores da intervenção do Estado-juiz, ora para reconhecer a necessidade de prevalência do direito social à saúde, ora para atribuir responsabilidade civil, quando, na concorrência de direitos, há motivos para abrigar a legítima expectativa de compatibilização entre duas categorias de direitos tendentes a dignificar o ser humano. ________ *Maria de Fátima Freire de Sá é Doutora (UFMG) e Mestre (PUCMinas) em Direito. Professora da PUCMinas. Membro do IBERC. Pesquisadora do CEBID. *Taisa Maria Macena de Lima é Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Professora da PUCMinas. Desembargadora do Trabalho. _______ 1 - SÓFOCLES, A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2011. 2 - JUCÁ, Beatriz. O coronavírus está quebrando a nossa crença, o luto imposto aos povos indígenas na pandemia. EL PAÍS. São Paulo. 11 jul. de 2020. Disponível aqui.. Acesso em: 11 jul. 2020. 3 - Sobre todas as classificações: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes, 2017. 4 - RONAN, Gabriel. Família não vela idoso por suspeita de COVID-19, exames dão negativo, e caso pode parar na Justiça. Disponível aqui. Acesso em 29/07/2020 5 - ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020. ________ JUCÁ, Beatriz. O coronavírus está quebrando a nossa crença, o luto imposto aos povos indígenas na pandemia. EL PAÍS. São Paulo. 11 jul. de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 11 jul. 2020. NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes, 2017. ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 jun. 2020. SÓFOCLES, A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2011. ________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de Giuliano Máximo Martins, Michel Canuto de Sena e Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos 1. A dimensão fático-jurídica do abandono afetivo sob o prisma da afetividade O conceito de abandono afetivo não está previsto em lei. É concebido pela doutrina como o desrespeito por parte dos pais da afetividade para com os filhos e da dignidade humana destes, tendo em vista sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento1. Os pais não são obrigados a amar os filhos. O amor é um sentimento cujo subjetivismo impede a obtenção de um valor jurídico. O destaque para conceituação do assunto está no dever dos pais para com seus filhos, nomeado afetividade, a qual está atrelada à convivência e cuidado, e que se não for exercida de maneira adequada pode gerar ofensa a direitos personalíssimos da criança e do adolescente, pessoa em fase especial de desenvolvimento2. A reforçar este entendimento está o princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, que indica que o exercício da paternidade e maternidade é um bem indisponível no Direito de Família, sendo que sua ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias diante das quais a ordem jurídica deve fornecer amparo, sob pena do Direito ser inexigível3. O argumento, portanto, de que a o abandono dos pais em relação aos filhos não constitui ilicitude perde força na medida em que a própria Carta Maior indica princípios e obrigações na relação paterno-filial, não sendo possível a interpretação singela de que o mero distanciamento afetivo não leva ao dever de indenizar4. 2. O dano no abandono afetivo como pressuposto da responsabilidade civil Na seara civilista, o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil. Pode ter cunho patrimonial ou extrapatrimonial. O primeiro está relacionado com a possibilidade de se determinar um valor monetário de prejuízo ou lucro cessante, ao passo que o segundo diz respeito às ofensas a direitos da personalidade5. A distinção que se faz entre os danos morais e os patrimoniais não deve se pautar no tipo de direito ou na norma violada, mas no interesse tutelado pela norma ou na natureza da vantagem afetada. Isso porque todo direito procura fomentar um interesse6. Violado o direito, violado estará o interesse. Todavia, a natureza do interesse violado não precisa ser coincidente com a do direito, de modo que podem existir prejuízos de ordem moral quando se lesiona um bem jurídico econômico, ou então a lesão a um bem jurídico extrapatrimonial acarretar danos materiais7. Um fato é a violação a um direito da personalidade, outro são as consequências que essa violação traz, de modo que muitas vezes somente se pode chegar à conclusão da violação do dano através da comprovação de suas consequências. Quando se fala em tristeza, angústia, depressão, humilhação, rejeição, etc. 3. O dano moral como consequência imediata da prova do ato : dano in re ipsa  Cavalieri Filho, um dos defensores dessa tese, argumenta que "o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum"8. Essa teoria trabalha com o panorama da prova do ato ilícito para se concluir, de maneira geral e abstrata, que o dano moral está configurado, utilizando-se para tanto de argumentos também genéricos de regras de experiência. Parcela da jurisprudência tem decidido pela presunção do dano moral9. O Superior Tribunal de Justiça tem alguns julgados pela presunção judicial do dano moral para situações específicas, que colocam a pessoa em uma exposição pública negativa. Existem precedentes que concluem que a inscrição indevida em cadastro de inadimplentes, atrasos em voos, diplomas sem reconhecimento e equívoco administrativo levam à presunção do dano moral, bastando a prova do fato ilícito10. 3.1 A necessidade de prova do dano moral por um dos meios de prova admitidos em direito  O dano moral não decorre diretamente do fato ilícito. Precisa ser provado por qualquer meio admitido em direito, é o que defende esta segunda corrente sobre o assunto11.  De acordo com esse posicionamento é curial a prova do dano moral, sob pena da ação judicial ser julgada improcedente12. Para essa corrente, as regras de experiência não acarretam como consequência imediata o dano. Ao contrário, todos os casos devem ser analisado individualmente De uma maneira geral, é esse o posicionamento adotado por parte da jurisprudência quanto ao abandono afetivo13. Uma das modalidades de prova que trazem maior credibilidade para a prova do dano moral é a perícia por profissional da área da saúde, psiquiatra ou psicólogo, para detectar o envolvimento subjetivo do ser com o ato de abandono afetivo. 4 O auxílio da Psicologia para caracterização do dano e sua comprovação  Se no campo das Ciências Jurídicas fica muito difícil de se visualizar um dano na pessoa que não teve o acompanhamento e o cuidado de seu pai ou mãe no decorrer de sua vida ao longo do período inicial de sua vida, no campo da moral14 e da Psicologia é possível concluir que essa omissão pode trazer sérias consequências ao desenvolvimento. A perspectiva psicológica indica, assim, que a família é de extrema importância para qualquer ser humano. É de conhecimento comum que a criança precisa de adultos para guiar seus passos por um determinado período, cujo interação se mostra essencial. É no ambiente familiar em que se deve encontrar esta interação, que se conhece como estrutura social básica, integrada por pessoas que convivem em uma interrelação recíproca com a cultura e a sociedade dentro da qual o indivíduo vai se desenvolvendo15.  5 O afastamento da presunção judicial na caracterização do dano moral por abandono afetivo na relação paterno-filial com utilização das regras de experiência: relação com o direito material.  Máximas de experiência são as noções de senso comum que refletem o reiterado perpassar de uma série de acontecimentos, o que permite, por raciocínio indutivo, fazer previsões gerais e abstratas para o futuro. Parte-se do individual para se chegar ao geral, utilizando-se como parâmetro o que normalmente acontece na sociedade naquelas circunstâncias16. Como sustenta respeitada doutrina17, uma das funções das máximas de experiência é a de tomar conhecimento de um fato, que, no caso ora tratado, é o dano moral por abandono afetivo. Para a investigação, portanto, partir-se-á de um ato ilícito, o qual deve estar provado nos autos, para se chegar a um dano presumido. Ocorre que, pelas regras de experiência, do que normalmente se observa na sociedade, é possível concluir que o filho cresça e se desenvolva em patamares adequados de formação psicológica, moral, social e individual mesmo sem a presença de um dos pais, seja pelo próximo acompanhamento do outro pai, seja pela substituição da figura do pai por outra pessoa, como do padrasto por exemplo, seja pela existência de outros fatores que lhe oportunize situação mais vantajosa no aspecto subjetivo18. *Giuliano Máximo Martins é juiz de Direito TJ/MS. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. **Michel Canuto de Sena é professor de Direito Civil. Especialista, mestre e doutorando pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). ***Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos é professor visitante da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestre e doutor em Educação pela PUC. __________ 1 AZEVEDO, Laura Maciel Freire de. Abandono afetivo: do foco do problema a uma Terceira solução. Revista da Esmape. V. 14, n. 30, p. 247/278, jul-dez/2009, p. 251; CASSETTARI, Christiano. Responsabilidade dos pais por abandono afetivo de seus filhos: dos deveres constitucionais. Revista IOB de Direito de Família. São Paulo, nº 50, v. 09, 10/2008, p. 97. 2 TARTUCE, Flávio. O princípio da solidariedade e algumas de suas aplicações ao direito de família - abandono afetivo e alimentos. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, n. 30, 10/2012, p. 05/34. 3 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade civil no Direito de Família. Coord. Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa. São Paulo: Atlas, 2015, p. 401. 4 É o que se defende no julgado: TJRS, Apelação Cível n. 0087881-15.2017.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em 31/05/2017, DJERS 06/06/2017. Vale destacar ainda que o sistema jurídico já prevê outros tipos de sanções para os pais e mães omissos em seu dever, como o crime de abandono de incapaz (Código Penal, art. 133, §3º, II), que se dá por um ato omissivo prolongado, e pela própria infração administrativa, que é o descumprimento doloso ou culposo dos deveres decorrentes do poder familiar (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 249), os quais não afastam a responsabilidade civil no Direito de Família (Cf. DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017). 5 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil - Doutrina e Jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1629/1635; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva nas relações entre pais e filhos: além da obrigação legal de caráter material. Disponível aqui. Acesso em 20 de setembro de 2019. 6 CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil Português - vol. II. Direito das Obrigações. Tomo III. Coimbra: Almedina. 2010, p. 513. 7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - 7º vol. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 93. 8 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 97. 9 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Processo 70053921193 - 5ª Câmara Cível - Rel. Des.  Jorge Luis Lopes do Canto, j. 24.04.2013. 10 Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Agravo 1.379.761/SP, de 02.05.2011, Relator Ministro Luis Felipe Salomão; Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Agravo 1.410.645/BA, de 07.11.2011, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino; Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 631.204/RS, de 25.11.2008, Relator para o acórdão Ministra Nancy Andrighi; Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 608.918/RS, de 20.05.2004, Relator Ministro José Delgado. 11 ZULIANI, Ênio Santarelli. Direito de Família e responsabilidade civil. Revista do Advogado. São Paulo. 07/2011, p. 30/39; COSTA, Maria Isabel Pereira da. A responsabilidade civil dos pais pela omissão do afeto na formação da personalidade dos filhos. Revista Jurídica Sapucaia do Sul. N 368, vol. 56, 06.2012. 12 TARTUCE, Flávio. Da indenização por abandono afetivo na mais recente jurisprudência. Disponível aqui. Acesso em 20 de setembro de 2019. 13 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 3004256572009826, Relator Desembargador Caetano Lagrasta, 8ª Câmara de Direito Privado, j. 25.10.2011; Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível 408.550-5, 7ª Câmara Cível, Relator Juiz Unias Silva, j. 29.04.2004; Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul - Rel. Des. Dorival  Renato Pavan - Processo 0002795-96.2011.8.12.0029 - 4ª Câmara Cível, j. 29.01.2013; Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 0006195-03.2014.8.26.0360, Acórdão nº 9689092, Mococa, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Desembargador J. B. Paula Lima, julgado em 09.08.2016, DJESP 02.09.2016; Superior Tribunal de Justiça, REsp 1087561/RS - Relator Ministro Raul Araújo - 4ª Turma - j. 13.06.2017. 14 O Papa Francisco em sua obra sobre a família denominada "Amoris Laetitia - sobre o amor na família" bem delinea a necessidade de acompanhamento dos pais: "Os pais necessitam também da escolar para assegurar uma instrução de base a seus filhos, mas a formação moral deles nunca a podem delegar totalmente. O desenvolvimento afetivo e ético de uma pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança. Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o testemunho, gerar confiança nos filhos, inspirer-lhes um respeito amoroso. Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação pore le, isto cria feridas profundas que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento. Esta ausência, este abandono afetivo provoca um sofrimento mais profundo do que a eventual correção recebida por uma má ação". 15 MARTINS, Regiane Dias Máximo. Vivências de crianças e adolescentes destituídos do poder familiar em situação de acolhimento institucional. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Campo Grande, 2014. 16 As regras de experiência constituem mecanismo de hermenêutica do sentido, na medida em que expressam o interpretar de um fato, traduzindo um determinado significado dentro do seu campo histórico-social, diretamente atrelado ao seu empirismo. Porém, todo o trabalho de explanação da regra de experiência deve ser cuidadosamente indicado para se chegar a uma conclusão adequada. Nos exatas lições de Maurício Martins Reis e Rafael Corte Mello: "As regras de experiência, num sentido geral, conglobam as observações subjetivas do julgador acerca daquilo que ordinariamente acontece; nelas aportam, conseguintemente, as convicções próprias do órgão julgador. Entretanto, demanda-se do juízo ato de convencimento intelectual a se investir de fundamentar racionalmente, perante arena pública das razões, a procedência da decisão subministrada. Ou seja, apesar da genealogia de subjetividade, a máxima de experiência priorizará, para fins de legitimidade, a elaboração argumentative explicitada aferível dos manifestos processuais, mormente da decisão final propriamente dita" (REIS, Maurício Martins; MELLO, Rafael Corte. O Novo Código de Processo Civil e as (re)definições dos fatos independentes de prova e das máximas de experiência. In: Direito Probatório. Coord. Fredir Didier Jr. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 1101/1122). 17 AROCA, Juan Montero. La Prueba en el Proceso Civil. 6ª ed. Pamplona : Thomson Reuters. 2011; ALVIM, J. E. Carreira. Comentários ao novo Código de Processo Civil: Lei 13.105/15: volume 5 - arts. 330 a 388. Curitiba: Juruá, 2015.   18 KAROW, Aline Biasuz Suarez. Abandono Afetivo. Valorização Jurídica do Afeto nas Relações Paterno-Filiais. Curitiba : Juruá, 2012, p. 225. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil  
Texto de autoria de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk A responsabilidade civil contemporânea não mais se limita ao desempenho da função de compensação pelos danos decorrentes de ato ilícito. As transformações sociais e econômicas ocorridas nos dois últimos séculos demandaram uma redefinição tanto das hipóteses de responsabilização civil (expressa, por exemplo, na consagração e ampliação progressiva das hipóteses de responsabilidade objetiva) quanto de suas funções, o que guarda congruência com as transformações estruturais e funcionais dos próprios sistemas jurídicos, sob o influxo de Constituições que deixam de ser apenas normas definidoras do Estado e de seus limites, passando a ser verdadeiras Constituições da Sociedade. Nessa linha, a mais refinada doutrina tem demonstrado - com base, inclusive, no que há de mais consistente e atual no Direito Comparado1 -, que as funções da responsabilidade civil não mais se exaurem na expressão compensatória, mas se estendem, ao menos, a uma função restitutiva, a uma função preventiva e a uma função sancionatória. Esse diagnóstico, que recolhe o avanço da disciplina no (re)delinear de suas fronteiras, aponta para desafios que se impõem aos estudiosos da responsabilidade civil. Entre esses desafios, está o de estabelecer os limites e possibilidades dessas novas fronteiras da disciplina, no influxo dessa inexorável múltipla expressão funcional. É na seara dessa reflexão que se apresenta a relevância da liberdade individual como critério a balizar os limites de uma renovada responsabilidade civil, que se expande para atender aos ditames de um ordenamento unitário centrado na Constituição, mas que, como destinada primordialmente às relações interprivadas, não pode abdicar da racionalidade que lhe é própria. Com efeito, a constitucionalização do Direto Privado, com a afirmação de um ordenamento unitário, não significa a supressão da autonomia do Direito Civil nem, tampouco, da supressão da racionalidade própria da disciplina das relações entre particulares, como algo que demanda construção normativa diversa daquela que é levada a efeito sob a ratio própria do Direito Público. A Constituição não mais se sujeita à qualificação de norma de Direito Público, estando acima e além da distinção clássica. Trata-se de norma, simplesmente, de Direito (ou seja, nem apenas público, nem apenas privado), aplicável, pois, tanto às relações entre particulares, como às relações próprias de Direito Público. Daí porque a constitucionalização do Direito Civil não é uma publicização da disciplina. Em outras palavras: o ordenamento, como conjunto normativo centrado na Constituição, é unitário, mas as relações sociais que demandam a incidência dessas normas são distintas em suas características, de modo que demandam construções normativas também distintas, e que sejam adequadas a um perfil funcional que a elas é próprio. Se o sistema não mais se estrutura sobre a dicotomia das normas de Direito Público e de Direito Privado, isso não implica afirmar que, sob a perspectiva metodológica - notadamente, de aplicação/interpretação das normas - a distinção estaria superada. O redivivo Direito Privado - e a nova responsabilidade civil - que emerge da constitucionalização conserva autonomia metodológica, o que determina seu perfil estrutural e seus limites funcionais. O Direito Privado constitucionalizado permanece como dotado de características próprias, haja vista ser ele destinado, essencialmente, às relações entre particulares, ainda que isso não signifique, sob a perspectiva da qualificação das normas integrantes do sistema, a manutenção da vetusta clivagem que exilava as Constituições ao campo do Direito Público, e definia o Código Civil como "constituição do homem comum". É da compreensão do Direito Privado constitucionalizado que emergem, a um só tempo, a expansão das funções da responsabilidade civil e os limites que a elas se impõem. A liberdade individual, nessa seara, continua a ser o marco distintivo que define os baldrames em que se situa esse renovado Direito Privado, e que, nessa medida, é princípio cardinal para a compreensão dessa também renovada responsabilidade civil. A liberdade individual, porém, é também aquela que encontra assento na Constituição da República, como garantia jusfundamental. Essa liberdade constitucional não se exaure na autonomia privada clássica, sendo possível afirmar que a liberdade relevante para o Direito Privado, na contemporaneidade, é conceito mais amplo. A liberdade não é estranha aos fundamentos clássicos da responsabilidade civil. É sobre, ao menos, uma de suas expressões que se assenta, por exemplo, a responsabilidade subjetiva, como resposta jurídica ao agir culposo ou doloso que, no mau uso da liberdade, enseja danos, impondo ao agente o dever de repará-los. Sem a culpa, prevaleceria a liberdade centrada no interesse individual, sem que se materializasse o dever de indenizar. Ocorre que as transformações da responsabilidade civil (inclusive a expansão de hipóteses de responsabilidade objetiva) não estão, necessariamente, na antítese da liberdade. Se é certo que a ampliação dos danos indenizáveis implica ampliação também da coerção - o mesmo se podendo dizer sobre o reconhecimento de uma função sancionatória da responsabilidade civil -, é necessário reconhecer que esses fenômenos também podem vir em proveito da proteção à liberdade individual, quando se trata, notadamente, da liberdade da vítima de atos lesivos. Com efeito, a liberdade, como princípio jurídico, pode ser compreendida a partir de ao menos três perfis que integram seu conteúdo normativo (a par da própria expressão formal da liberdade, expressa no texto constitucional). O primeiro, e mais elementar - mas, nem por isso, menos importante, é a liberdade negativa, como espaço para a ação humana no qual há ausência de coerção. A ação humana que não é imposta ou proibida é livre. O segundo conceito é a liberdade positiva, que constitui verdadeiro poder de definição dos rumos da própria vida. Não se trata, apenas, da faculdade de agir em espaço de não coerção, mas o poder de ser senhor de sua própria existência2. Na esfera existencial, de modo especial, a liberdade positiva se materializa como verdadeira "liberdade vivida". Um exemplo de expressão relevante dessa liberdade positiva para a responsabilidade civil é o dano ao projeto de vida3. Não se trata de dano que se materializa como coerção indevida, mas, sim, como concreta inviabilização do exercício desse poder definição dos rumos da própria vida, tolhendo radicalmente as escolhas existenciais da vítima. Quando a responsabilidade civil acolhe o dano ao projeto de vida como indenizável, bem como assume uma expressão preventiva de sua violação, está a tutelar essa relevante dimensão da liberdade humana. A liberdade substancial, a seu turno, também pode ser tutelada pela responsabilidade civil, seja por meio de uma função compensatória, seja por meio das funções preventiva e sancionatória. Liberdade substancial não é simplesmente o poder de definir os rumos da própria vida, abstratamente assegurado. Define-se como possibilidade concreta, efetiva, de se realizar o que se valoriza4. No exemplo do dano ao projeto de vida, não apenas a liberdade positiva pode ser tutelada pela responsabilidade civil, mas, também, a liberdade substancial, haja vista que se trata da supressão, em concreto, da possibilidade de exercício dessa liberdade positiva. A ofensa à liberdade substancial é relevante para a responsabilidade civil quando as condições objetivas de exercício concreto do agir não proibido ou da definição dos rumos da própria vida são indevidamente solapadas da vítima5. De outro lado, se a responsabilidade civil pode servir para a proteção da liberdade, prevenindo sua violação ou impondo a compensação no caso de consumação do dano, é certo que a liberdade também pode e deve ser compreendida como limite à expansão da responsabilidade civil. Tendo seu lugar no Direito Privado, a responsabilidade civil deve ter em sua dimensão funcional a necessária conservação de um espaço de liberdade individual que permita evitar sua conversão em instrumento de controle social. Os juízos sobre merecimento de tutela que determinam quais são os danos indenizáveis devem sempre levar em consideração que a coerção exercida pelo direito por meio das funções próprias da responsabilidade civil somente se justifica nos limites da função mais ampla, de conservação, exercício e incremento de liberdades. Isso implica uma necessária cautela no emprego dos instrumentos da responsabilidade civil em matéria do que não raro se denomina de "novos danos", como escudo a evitar uma ampliação da coerção - e consequente redução do espaço de liberdade negativa - que implique um afastamento da responsabilidade civil de seu locus essencial. O mesmo se diga sobre a necessária cautela na utilização da responsabilidade civil como instrumento regulatório de comportamentos não lesivos, ainda que ilícitos, que, sem embargo, deveriam ser objetos de atuação do Estado-Administração, e não do Estado-Juiz, provocado pelo particular. Estimular o particular à judicialização de demandas que possam lhe trazer benefícios patrimoniais, mesmo sem a caracterização de efetivo dano a expressões da personalidade merecedoras de tutela, significa substituir uma função de preservação e promoção da liberdade individual por uma função de controle do agir, que pode ser de difícil compatibilização com a ratio própria ao Direito Privado. Por fim, o mesmo cuidado deve ser empregado no âmbito dos chamados danos morais coletivos. A par da objetiva dificuldade de identificação de um dano propriamente dito a um ente abstrato (uma vez que a ofensa à dignidade das pessoas humanas se dá na concretude de suas individualidades), o emprego dessa consagrada figura jurídica não pode se converter em instrumento de coerção à expressão do pensamento, sob pena de ir de encontro a uma condição de possibilidade da própria democracia, que, ao lado da liberdade individual, integra os pilares fundamentais da ordem constitucional. As tarefas metodológicas são, portanto, relevantes para a definição tanto das possibilidades como dos limites da nova responsabilidade civil, na afirmação do lugar que lhe é próprio, sendo a função como liberdade(s) um critério possível para informar a consecução desses afazeres. *Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito pela UFPR. Advogado. Árbitro. Membro do IBERC. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil - A Reparação e A Penal Civil - 3ª Ed. 2017. 2 Adotando o conceito de liberdade como poder, HANDLIN, Oscar; HANDLIN, Mary. As dimensões da liberdade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, p. 22-23. 3 Sobre o tema: SESSAREGO, Carlos Fernandez. Existe un daño al provecto de vida?. 4 Adota-se o conceito de Amartya Sen, para quem "se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (i.e. todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade dessa pessoa - as reais oportunidades - de ter bem-estar". SEN, Amarthya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32. 5 Exemplo colhido na jurisprudência, que revela dano à liberdade substancial de exercício do trabalho pela pessoa com deficiência, é o julgado assim ementado: RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. PROTEÇÃO JURÍDICA E ACESSO AO TRABALHO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. DIREITO ÀS ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS. OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO PERANTE A SOCIEDADE INTERNACIONAL. SISTEMAS DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. DECLARAÇÃO SOCIOLABORAL DO MERCOSUL. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO ÀS RELAÇÕES PRIVADAS. PERSPECTIVA CONSOLIDADA PELA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, DE 2007, APROVADA NO ÂMBITO INTERNO COM EQUIVALÊNCIA A EMENDA CONSTITUCIONAL E PELA LEI Nº 13.146/2015 - LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA) . RESPONSABILIDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA. DISCRIMINAÇÃO POR IMPACTO ADVERSO. (TST - RR - 1076-13.2012.5.02.0049 - Rel. Min. Claudio Mascarenhas Brandão - DJ: 03/05/2019) No caso concreto, a não adaptação do ambiente de trabalho às necessidades do trabalhador com deficiência suprimiu a efetiva possibilidade de exercício da atividade laboral, gerando dano à liberdade substancial. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de Luiza Lourenço Bianchini No momento em que escrevo esta coluna, o Brasil já ultrapassou a marca de 100 mil mortos pela Covid-19 e 3,3 milhões de infectados. Os números são possivelmente maiores, considerando a subnotificação de casos. A pandemia ainda dá poucas mostras de diminuir o ritmo de contágio, apesar de muitas regiões já terem avançado no processo de flexibilização das regras de isolamento social. Ao impacto sanitário de proporções inéditas, somam-se os efeitos econômicos catastróficos, que recaem, principalmente, sobre as populações mais vulneráveis. Nesse contexto de muita incerteza, as esperanças centram-se no desenvolvimento de uma vacina, estando em curso diversos estudos, alguns já avançados. Recentemente, foi noticiado que existem 21 vacinas, concebidas a partir de técnicas variadas, que já estão no estágio de testes em seres humanos1. Duas delas seriam testadas também no Brasil e poderiam ser produzidas aqui em escala maior. O processo é, entretanto, lento. Vacinas eficazes e seguras exigem pesquisas científicas que perpassam diversas etapas, o que - por mais acelerados que sejam os esforços - demanda tempo. A torcida pelo surgimento de uma vacina contra a Covid-19 traz a reflexão sobre a responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento. A sociedade tem urgência na criação de uma vacina contra o coronavírus, mas se sabe que elas podem ter efeitos colaterais, muitas vezes imprevistos. Ainda que os laboratórios sigam todos os protocolos de pesquisa científica recomendados, a vacina pode revelar efeitos colaterais apenas num segundo momento, após o uso por uma população mais vasta e o decurso de maior tempo. Nessa hipótese, sobre quem deve recair a responsabilidade pelos danos? Os riscos do desenvolvimento se mostram quando um produto é colocado no mercado em conformidade com o nível mais avançado da técnica naquele momento ("estado da arte"), mas, posteriormente, com a evolução do conhecimento, constata-se que ele é capaz de provocar danos antes imprevistos. O caso comumente referido é o da Talidomida, medicamento que, consumido por grávidas para aliviar os enjoos da gestação, provocou o nascimento milhares de crianças com deformidades físicas. Há, infelizmente, outros exemplos mencionados pela doutrina, como o fármaco DES - prescrito para evitar aborto ou parto prematuro e que depois se mostrou ligado ao desenvolvimento de cânceres nas gerações seguintes - e o anticolesterol MER-29, que acarretou graves problemas oftalmológicos a seus usuários, dentre outros2. No Brasil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento é controvertida, não havendo dispositivo legal expresso a respeito. Parte significativa da doutrina entende que a responsabilidade deve recair sobre os fornecedores. Embora com ligeiras variações, a argumentação baseia-se, em geral, na ideia de maior proteção da vítima, que - por não auferir os lucros da atividade empresarial - não deveria suportar os seus ônus. Vozes autorizadas, entretanto, defendem o contrário, orientando-se no sentido de que os riscos do desenvolvimento excluem a responsabilidade do fornecedor3. Não há jurisprudência consolidada sobre o assunto, mas, num processo julgado em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça posicionou-se a favor da responsabilidade do fornecedor pelos riscos do desenvolvimento. O caso dizia respeito ao medicamento Sifrol, prescrito para o tratamento do Mal de Parkinson. Posteriormente ao lançamento do produto no mercado, constatou-se que um dos possíveis efeitos colaterais do remédio consistia em desencadear comportamento compulsivo. Na hipótese tratada, a autora comprovou que apresentou dependência patológica de jogos - doença classificada como tal no nível internacional - exclusivamente durante o uso do fármaco, e isso resultou na dilapidação do seu patrimônio, bem como na perda de seu emprego. Vale destacar que a bula não indicava esse específico efeito colateral, embora contivesse a advertência de que o medicamento era novo e que poderiam ocorrer reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. O STJ decidiu responsabilizar o laboratório pelos prejuízos sofridos pela autora. Entendeu que os riscos do desenvolvimento não configurariam causa de exclusão de responsabilidade, pois se trataria "de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno"4. Em sentido contrário a essa orientação, afirma-se comumente que a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento poderia desestimular o avanço da ciência, pois a indústria ficaria temerosa de lançar no mercado produtos que pudessem, no futuro, vir a causar danos pelos quais seria responsável. Tal argumento, contudo, não vem acompanhado de qualquer comprovação empírica, mostrando-se meramente retórico. Na realidade, seria mesmo possível dizer o oposto: responsabilizar a indústria por esses riscos pode funcionar como incentivo para o avanço da ciência, uma vez que estimula a descoberta de produtos mais seguros, que gerem menos riscos para a sociedade. A omissão legislativa não ajuda a solucionar a controvérsia, em que pese o ordenamento jurídico apontar, em regra, na direção de se proteger a vítima. Sem dúvida, afigura-se mais equânime e consentâneo com o direito brasileiro que os fornecedores - que auferem os lucros da colocação do produto no mercado - absorvam os riscos envolvidos nessa atividade, responsabilizando-se pelos danos incorridos pelas vítimas. É, inclusive, o que parecem indicar os arts. 927, parágrafo único, e 931 do Código Civil, sendo certo, ainda, que o art. 12, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor não arrola os riscos do desenvolvimento como causa de exclusão de responsabilidade. Entretanto, a responsabilidade civil no âmbito do direito do consumidor exige que o produto seja considerado defeituoso. E, de acordo com o art. 12, § 1º, III, do Código de Defesa do Consumidor, produto defeituoso é aquele que não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em conta "a época em que foi colocado em circulação". Diante do teor dessa norma, não é desarrazoado o entendimento no sentido de que o produto não pode ser reputado defeituoso, se, na época em que foi colocado em circulação, o risco era desconhecido. Em razão disso, essa corrente defende que deve ser afastada a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento. Mas, ainda que se venha a adotar posição contrária à responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, vale insistir que esses riscos abarcam apenas aqueles que não poderiam ser conhecidos pelo fornecedor conforme o grau mais avançado da técnica. Se forem conhecíveis (de acordo com o estado da arte), não devem ser considerados como riscos do desenvolvimento (e, portanto, aptos a excluir a responsabilidade do fornecedor para parte da doutrina), ainda que eventualmente possam não ter sido conhecidos de fato pelo fornecedor. E, na impossibilidade de se saber se os riscos eram ou não conhecíveis, deve-se presumir a sua cognoscibilidade. Sendo o caso de hipossuficiência do consumidor, deve operar o mecanismo processual de inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII), atribuindo-se ao fornecedor o ônus de demonstrar que os riscos eram incognoscíveis segundo o estado da arte. Não se desincumbindo desse encargo probatório, a presunção de cognoscibilidade dos riscos milita em favor do consumidor. Além disso, uma vez que o fornecedor passe a conhecer os riscos envolvidos (ainda que incognoscíveis num primeiro momento), tem o dever de comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, o que, se descumprido, atrai também a sua responsabilidade civil (CDC, art. 10, § 1º). Tais circunstâncias ampliam o espectro de responsabilização do fornecedor, independentemente de uma tomada de posição específica acerca dos riscos do desenvolvimento. A bem da verdade, as hipóteses de risco do desenvolvimento devem se limitar a casos bastante excepcionais, nos quais há prova efetiva de que o fornecedor não poderia ter conhecimento da possibilidade de causação de danos, levando-se em conta o mais avançado estado da técnica. A categoria deve, portanto, ser considerada residual. Voltando-se à vacina contra a Covid-19, o problema aqui se mostra ainda mais complexo: será que a situação emergencial poderia afetar os contornos dessa responsabilidade5? É fato que a pandemia exige ações rápidas, mas se tende a acreditar que essa circunstância não deve afrouxar a responsabilidade dos fornecedores. Perdoe-se o trocadilho, mas a corrida pela vacina não pode significar uma imunidade aos seus fabricantes, isentando-os da responsabilidade pelos eventuais danos. Até porque uma orientação nesse sentido poderia transformar o Brasil num gigante fornecedor de cobaias, em benefício do mundo inteiro (em especial dos países mais ricos, onde se localizam os principais laboratórios farmacêuticos). De todo modo, já é mais do que hora de o legislador enfrentar expressamente a controvérsia relativa aos riscos do desenvolvimento. Já com relação ao coronavírus, espera-se que essa questão venha a se mostrar uma mera elucubração doutrinária, sem relevância prática, pois ausente a demonstração de qualquer risco. Enfim, torçamos por uma vacina rápida e segura, no presente e no futuro, sem significativos efeitos colaterais. *Luiza Lourenço Bianchini é mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e juíza Federal. __________ 1 Corrida por vacina contra Covid-19 já tem 24 delas na fase de testes em humanos. 2 Esses e outros casos são detalhadamente relatados em WESENDONCK, Tula, O regime da responsabilidade civil pelo fato dos produtos postos em circulação: uma proposta de interpretação do artigo 931 do Código Civil sob a perspectiva do direito comparado, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015. 3 São diversas as obras sobre o tema, dentre as quais: PASQUOLATTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro de vida?, in Revista de Direito do Consumidor, volume 78/2011, p. 11-20, abr./jun. 2011; REINIG, Guilherme Henrique Lima; CARNAÚBA, Daniel Amaral, Riscos do Desenvolvimento no Código de Defesa do Consumidor: a responsabilidade do fornecedor por defeitos não detectáveis pelo estado dos conhecimentos científicos e técnicos, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 124/2019, p. 343-392, jul./ago 2019; KROETZ, Maria Cândida Pires Vieira do Amaral; SILVA, Luiz Augusto da. Um prometeu "pós"-moderno? Sobre desenvolvimento, riscos e a responsabilidade civil nas relações de consumo, in Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set 2016; CATALAN, Marcos. O desenvolvimento nanotecnológico e o dever de reparar os danos ignorados pelo progresso produtivo, in Revista do Direito do Consumidor, vol. 74/2010, p. 113-153, abr./jun. 2010; MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito dos danos na sociedade das incertezas: a problemática do risco de desenvolvimento o Brasil. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set./2012, disponível em: , acesso em13.7.20.; CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento, in Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 21, jan.-mar 2005, p. 53-93; WESENDONCK, Tula, O regime da responsabilidade civil pelo fato dos produtos postos em circulação: uma proposta de interpretação do artigo 931 do Código Civil sob a perspectiva do direito comparado, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015; TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade civil por acidentes de consumo na ótica civil-constitucional. In: Temas de direito civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 277-295; BARBOSA, F. N. Pessoa e mercado: a distribuição de encargos decorrente dos riscos do desenvolvimento. In: Joyceane Bezerra de Menezes e Francisco Luciano Lima Rodrigues. (Org.). Pessoa e mercado sob a metodologia do direito civil-constitucional. Santa Cruz: Essere nel Mondo, 2016, v. 01, p. 109-117. 4 REsp 1.774.372-RS, 3ª Turma do STJ, Min. Relatora NANCY ANDRIGHI, julgamento em 05.5.20, publicado em 18.5.20. 5 A questão é formulada por TULA WESENDONCK na coluna publicada em 07 de maio de 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de Flaviana Rampazzo Soares e Romualdo Baptista dos Santos Inegavelmente, o setor do transporte aéreo foi grandemente impactado pela epidemia do coronavírus. Trata-se de um setor que tem grande importância na economia além de ser mercadologicamente estratégico, e que, por isso, tem merecido atenção em diversos países. Cada um deles procura enfrentar o problema ao seu modo. Portugal optou com adquirir substancial parte da participação societária da TAP. A Alemanha adquiriu participação societária na Lufthansa, além de injetar capital que lhe permite a opção de conversão em participação acionária adicional. Noticiou-se que a Air-France receberá em préstimo e auxílio financeiro por meio de fundos garantidos pelo Estado. Caminho semelhante é trilhado pela KLM e pelo governo holandês, bem como pela Alitalia e o governo italiano. No Brasil, o tema é candente. Enquanto boa parte dos países optou por auxiliar as companhias aéreas, o Brasil seguiu caminho distinto, ao menos até o momento. De acordo com a política econômica liberal adotada pelo atual governo, endossada pelo Poder Legislativo, foi publicada a Lei n. 14.034, de 05/08/2020, fruto da conversão da Medida Provisória 925/2020,que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19. O texto da referida lei demonstra que a opção brasileira para reduzir ou amenizar os prejuízos das companhias aéreas foi a de impor a sua absorção, ainda que parcial, ao usuário, contrariando toda a lógica da legislação editada nos últimos tempos a respeito da matéria. O consumidor que comprou passagens aéreas, segundo a lei, indiretamente passou a financiar o setor, porque a retenção dos seus recursos nos cofres das companhias tornou-se permitida pela lei (!), as quais contam com um prazo de um ano para devolver parceladamente as quantias recebidas. Trata-se de um "bom negócio" para as companhias aérea se para o governo brasileiro: para as primeiras porque passam a ter um crédito já recebido e barato, se comparado ao custo do dinheiro no mercado; e para o governo porque reduz as chances de recuperações e falências no setor. Em uma recuperação judicial, todos os credores seriam chamados ao concurso, enquanto que a nova lei imputa apenas ao consumidor o recebimento de seu crédito no prazo de um ano. Ou seja, o "financiamento" ocorre às custas do cliente das companhias. Não obstante essas observações iniciais de índole extrajurídica, cabe traçar algumas palavras a respeito do conteúdo da lei,embora desde já deva-se esclarecer que aqui não será abordada a sua constitucionalidade, mas apenas o seu teor e os seus impactos imediatos nos contratos de transporte aéreo firmados com consumidores e nas ações judiciais correspondentes, de forma necessariamente superficial, em razão dos limites de espaço desta coluna. Em síntese, a lei contempla duas possibilidades relativas às situações de cancelamento de voo e desistência de voo. A primeira, que trata da situação de cancelamento de voo ocorrido entre 19/03/2020 e 31/12/2020, especifica a necessidade de supressão das cobranças de parcelas vincendas de pagamento do preço, e permite três opções: de reembolso, de crédito ou de mobilidade. 1ª. De reembolso do valor da passagem, atualizado pelo INPC, que ocorrerá em doze meses, contados da data do cancelamento do voo. 2ª. De recebimento de um crédito, cujo montante seja igual ou superior ao da passagem aérea, o qual pode ser usufruído pelo cliente ou a quem designar, para adquirir produtos ou serviços oferecidos pela companhia aérea, pelo prazo de até dezoito meses,contados de seu reconhecimento (art. 3º, § 1º da Lei). Essa opção, de acordo com o texto da lei, "poderá ser concedida ao consumidor" (ou seja, aparentemente seria uma faculdade conferida à companhia de oferecer essa opção). 3ª. De mobilidade,mediante o oferecimento de reacomodação em outro voo, próprio ou de outra companhia; de remarcação da passagem aérea, sem ônus, mantidas as condições aplicáveis ao serviço contratado (art. 3º, § 2º da Lei). A segunda possibilidade (art.3º, § 3º da Lei)é para o caso de desistência do consumidor com voo marcado entre 19/03/2020 e 31/12/2020, situação na qual este pode exercer uma das seguintes opções: de reembolso ou de crédito. 1ª. De reembolso do preço da passagem, atualizado pelo INPC, que se efetivará em até doze meses, contados da data do cancelamento do voo, com a diferença que, nesse caso, terá o desconto de penalidades contratualmente especificadas em seu contrato. 2ª. De recebimento de um crédito, equivalente ao da passagem aérea, a ser utilizado em até dezoito meses, sem a possibilidade de imposição das penalidades contratuais. O art. 3º, § 6º da lei não permite a segunda possibilidade aos clientes que desistirem de voar antes de sete dias da data de embarque,desde que assim decidam em até 24h do recebimento do comprovante de compra.Para esses clientes, subsistirá o contido nas condições gerais "estabelecidas em ato normativo da autoridade de aviação civil". Vale referir que, embora a lei refira às opções sempre como "valor da passagem" (sic), esclarece-se que, como nem sempre o consumidor terá realizado o pagamento integral ao tempo do exercício da opção de desistência ou ao tempo do cancelamento do voo, em nome da boa-fé, deverá ser considerado o montante pago, e não o "valor da passagem". Um ponto que ensejará muitos debates é o da eficácia intertemporal da Lei, aos casos nos quais houve desistência do cliente durante a pandemia, mas antes da vigência das regras mencionadas. Tanto o art. 5º, XXXIV,da CF, que resguarda o ato jurídico perfeito, quanto o art. 6º da LINDB, que prevê a vigência das leis com efeito imediato e geral, e reitera a necessidade de respeito ao mencionado ato jurídico perfeito, poderão ser invocados por eventuais prejudicados, para assegurar a possibilidade não incidência da leia os seus casos, com o objetivo de solicitarem o reembolso integral e imediato do que lhes seja devido, tão logo seja solicitado, a considerar as circunstâncias concretas para definir o seu quantum. No entanto, chamam a atenção as alterações introduzidas no Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, cujo Título VIII trata da responsabilidade civil no âmbito do transporte aéreo. As disposições do CBA sempre foram alvo de críticas pela doutrina porque estabeleceram limites para as indenizações de acordo com a modalidade de dano sofrido pelo passageiro: morte, lesão corporal, atraso do transporte, perda, destruição ou avaria da bagagem ou da carga (CBA, art. 257, 260, 262).1 Além disso, as disposições que excluem a responsabilidade do transportador aéreo nos casos em que a morte ou lesão resultar de caso fortuito (externo) ou de força maior, ou que decorra exclusivamente do estado de saúde ou de conduta imputável ao passageiro (CBA,art. 256, § 1º), soam despiciendas por se enquadrarem na hipótese de exclusão do nexo de causalidade, já abrangidas pela teoria geral da responsabilidade civil. A nova lei evidencia uma tendência atual do legislador brasileiro no sentido de excluir a responsabilidade do causador do dano, tendência esta já manifestada por ocasião da Medida Provisória 966/2020, que restringe a responsabilidade dos agentes públicos aos casos de "erro grosseiro".2 Esta é uma propensão que vai de encontro ao princípio de responsabilidade, que permeia todas as áreas do direito e segundo o qual aquele que causa dano a outrem tem o dever de reparar. Toda a ordem jurídica se estrutura no sentido de atribuir responsabilidade e de não desamparar a vítima,ao passo que a nova lei referida, assim como aquela Medida Provisória 966/2020(antevista pela denominada "Reforma trabalhista"), assume contornos voltados ao afastamento ou a mitigação da responsabilidade do causador do dano. No caso do transportador aéreo, o legislador elimina a sua responsabilidade se restar comprovado que, em virtude de caso fortuito ou de força maior, tornou-se impossível a adoção das medidas necessárias, suficiente se adequadas para evitar o dano (CBA, art. 256, § 1º, II). Para este fim, a lei passou a contemplar como situações de caso fortuito ou de força maior quadros fáticos que, na jurisprudência,seriam classificados como fortuito interno e que ensejariam o dever de indenizar. A lei refere a restrições de pouso e decolagem por falta de condições meteorológicas, por indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária (!), por determinação e responsabilidade do poder público e por decretação de pandemia (CBA, art. 256, § 3º). A disposição causa espécie porque trata o que não é como se fosse. O caso fortuito ou de força maior compõem uma cláusula geral de exclusão de responsabilidade, a ser preenchida nos casos concretos sem limitação (CC, art. 393). O legislador, no afã de reduzir a responsabilidade do transportador aéreo, restringiu as causas de exoneração às situações tipificadas no art. 256, § 3º. Diante disso, cabe indagar se haverá responsabilidade para outras hipóteses não tipificadas. A lei (que acrescentou o art. 251-A ao CBA) exclui a responsabilidade de concessão de indenização por dano extrapatrimonial in reipsa, exigindo a "efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro". A nova lei, promulgada com a finalidade de adotar"medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia daCovid-19", especifica normas restritivas de caráter permanente, inclusive a prevista no citado art. 251-A, em conhecido e reprovável estratagema legislativo. A lei passa a exigir que a pessoa atingida por um dano extrapatrimonial prove a ocorrência tanto do evento lesivo quanto do "prejuízo e sua extensão", ou seja, para uma situação de dano moral subjetivo, passa-se a exigir prova do quanto um determinado evento lesivo comprovado prejudicou o seu estado de ânimo (além de um "mero aborrecimento"), ou a via crucis que levou o demandante a afirmar ter ocorrido uma situação de desvio produtivo, por exemplo, que também poderia ensejar uma indenização por dano moral. Em última análise, coloca um peso sobre as costas do Poder Judiciário e a própria vítima,a exigir prova sobre questões muitas vezes óbvias para os casos designados comode prejuízo in re ipsa. Sob o critério dos prejuízos sofridos pela vítima, os danos patrimoniais, produzem consequências mensuráveis, tanto que a lei condiciona a reparação à comprovação de sua existência e extensão (CC, art.944, caput), ao passo que, nos danos extrapatrimoniais, a lesão atinge interesses imateriais relevantes e juridicamente protegidos que, por definição, não comportam representação econômica imediata,de sorte que a reparação é sempre compensatória e equitativa. De outro lado, a possibilidade de reparação de danos extrapatrimoniais tem a sua gênese na tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, que desaguou na denominada despatrimonialização ou repersonalização do direito privado.3 Em que pese a evolução do gênero designado danos extrapatrimoniais e a especificidades das suas espécies, não há homogeneidade no tratamento da matéria, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Em muitos casos, tem se admitido que o dano moral seja apreciado objetivamente, mediante apreciação equitativa das situações que evidenciam ofensa evidente a um interesse jurídico extrapatrimonial juridicamente tutelado, considerando-se muitas vezes como dano in re ipsa, e assim o é pela evidência quanto a sua ocorrência (assemelhando-seao tratamento processual dado aos fatos notórios, por exemplo) e a sua extensão,porque é ínsita ao próprio evento lesivo a configuração da violação ao direito da pessoa como, por exemplo, no REsp n. 1.059.663/MS, no qual o STJ reconheceu como in re ipsa o dano moral experimentado pela mulher vítima de violência doméstica. No que se refere especificamente ao atraso e cancelamento de voos, é farta a jurisprudência do STJ sobre indenização por dano moral por atraso prolongado ou de cancelamento injustificado de voo,independentemente da comprovação específica, por considerá-lo in re ipsa. Percebe-se, pois, que a nova lei claramente tem o objetivo de reduzir significativamente o número dessas ações de reparação de dano extrapatrimonial. Em resumo, a novel legislação indica uma tendência atual do legislador de afastar e restringir a responsabilidade das companhias aéreas, notadamente por danos extrapatrimoniais. Levando-se em conta a natureza e a estrutura do dano extrapatrimonial, condicionar a reparação à demonstração de efetivo prejuízo e da extensão do dano pode se aproximar de uma situação de negativa de compensação. Ultrapassar essa situação exigirá do intérprete e do aplicador uma visão ampla e dialógica do direito, e o uso efetivo de normas de natureza material e intertemporal, e, em especial, de instrumentos processuais previstos na legislação, para trazer efetividade ao processo, tais como as regras de divisão e de inversão do ônus da prova; de definição dos pontos controvertidos do processo; de inexigibilidade de prova impossível ou da prova negativa. Por fim, Tom Jobim, no "Samba do avião", canta: "Rio de sol, de céu, de mar; água brilhando, olha a pista chegando; e vamos nós pousar". A lei chegou e é a nossa pista de aplicação prática. Veremos como todos nela pousarão. Flaviana Rampazzo Soares é Doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul. Advogada.Professora em cursos de pós-graduação em direito lato sensu Romualdo Baptista dos Santos é Doutore Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Contratual e Direito de Danos pela Universidade de Salamanca - USal.Ex-Procurador do Estado de São Paulo. Advogado. Professor em cursos de Pós-Graduação em Direito lato sensu. __________ 1- Tais disposições estariam em desacordo com a Constituição e com o CDC, que não impõem limite para areparação de danos, além de afrontar o princípio da reparação integral ou da justa reparação (GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 311-316; CAVALIERI FILHO,Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 394-397). 2- A respeito das inconsistências da Medida Provisória 966/2020, confira-se: DIAS, Fernando Barboza. MP 966/20 e (ir)responsabilidade jurídica de agentes públicos. Disponível aqui. DELGADO, Mário Luiz; SANTOS,Romualdo Baptista dos; SILVA, Bruno Casagrande e. Medida provisória 966/20: Inconstitucionalidade e erros sistêmicos em sede de responsabilidade civil. Disponível aqui; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SOUZA, Iara Antunes de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Razões técnicas para a inconstitucionalidade da MP 966/2020. Disponível aqui. Em meio a tantas críticas doutrinárias, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar, acolhendo parcialmente as ações diretas de inconstitucionalidades, para atribuir interpretação conforme a Constituição à MP 966/2020. 3- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução dodireito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2002. p. 33-34;FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica dodireito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 78 e 216. ___________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de João Vitor Penna Os danos extrapatrimoniais são um campo de conflito constante. Sua incerteza, amplitude, os deveres a ele vinculados e, especialmente, a relevância jurídica e quantitativa que tomaram nos últimos tempos levam esta categoria de danos à condição de alvo de diversos movimentos de restrição e ampliação de seu escopo. Em um contexto de crise, como o já instalado em razão da pandemia da COVID-19, uma retração na expansão da proteção jurídica contra os danos morais1 parece inevitável. Neste breve texto, queremos levantar algumas preocupações e notas críticas sobre uma possível manifestação deste fenômeno. A recém aprovada Lei nº 14.034/2020 corresponde à conversão em Lei da Medida Provisória nº 925 que cuidou de dispor sobre medidas emergenciais para o setor da aviação civil em razão da pandemia da COVID-19.2 Durante o processo legislativo, porém, decidiu-se introduzir algumas alterações no Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA, especialmente quanto à responsabilidade civil do transportador aéreo. Inicialmente planejadas como medidas emergenciais e temporárias em razão da pandemia, as alterações foram convertidas em permanentes e agora fazem parte do nosso sistema de responsabilização civil. São duas as frentes de modificação legislativa: a comprovação do dano extrapatrimonial indenizável e as excludentes de nexo de causalidade. Com relação à primeira - que é o foco de nossa análise neste texto -, a nova Lei introduziu no CBA o art. 251-A, com a seguinte redação: A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga. O artigo parece inofensivo em um primeiro momento, repetindo obviedades, mas ele possui um alvo muito evidente: o dano moral in re ipsa (ou dano moral presumido). A jurisprudência brasileira tem afirmado - com intensa controvérsia, inclusive - que, ao menos algumas modalidades, a comprovação dos danos morais pode ser derivada do próprio ato lesivo, ou seja, a mera existência da ofensa presume em si a existência do prejuízo. Seria, portanto, possível presumir a existência do dano extrapatrimonial pela mera ocorrência do ato praticado contra a vítima. Tal raciocínio não é sem motivo. Como é próprio da natureza dos danos extrapatrimoniais, nem sempre é evidente ou sequer é possível identificar elementos materiais que demonstrem a existência de um dano, embora ele exista. Considerar tal comprovação de forma rígida seria equiparar danos morais à dor e sofrimento, paradigma superado em termos de conceituação desta modalidade de dano. Por sua vez, o novo art. 251-A do CBA, impõe à vítima - geralmente consumidora - o ônus probatório quanto à dois elementos: a existência do prejuízo extrapatrimonial e a sua extensão. Assim, em análise estrita, a vítima deverá desenvolver a tarefa hercúlea de encontrar elementos que materializam os danos alegados e que permitam não apenas identificar que o prejuízo de fato existiu, mas também qual foi sua extensão, na perspectiva de medir seu impacto. É bem verdade que as vítimas reais e legítimas, em processos bem instruídos, nunca se furtaram a demonstrar estes elementos e nisto resta o sentimento de obviedade da redação do artigo. Porém, não devemos subestimar os efeitos que esta singela mudança pode gerar na satisfação de danos legítimos. Por que uma nova norma? Mesmo tendo a Lei nº 14.034/2020 tratado de medidas emergenciais e temporárias para o socorro do setor aéreo, cuidou também de fazer introduções permanentes no regramento da responsabilidade civil do transportador aéreo. O que justifica estas medidas terem deixado de ser temporárias? O que justifica esta preocupação específica com os danos extrapatrimoniais? Em consulta ao processo legislativo, o Parecer Preliminar de Plenário, de relatoria do Dep. Arthur Maia (DEM/BA), assim dispõe sobre a introdução do art. 4º (que altera o CBA e introduz o art. 251-A, em discussão) naquela que se tornaria a Lei nº 14.034/2020: Sendo assim, endosso os fundamentos que justificam a proposta ministerial, de modo a reconhecer que uma das principais críticas ao atual ambiente de negócios é a excessiva judicialização nas relações de consumo. Em 2017, de acordo com dados divulgados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), as condenações judiciais decorrentes de ações ajuizadas por passageiros representaram aproximadamente 1% dos custos e despesas operacionais das empresas aéreas brasileiras. Esse custo, equivalente a R$ 311 milhões, é resultado de mais de 60.000 processos ajuizados contra as empresas aéreas nacionais. Em um setor altamente competitivo e com margens reduzidas, trata-se de quantia relevante.3 Observa-se que o responsável por esta preocupação especial de mudança legislativa é a "excessiva" judicialização dos conflitos de consumo, muitas vezes chamada de "indústria do dano moral" - um diagnóstico muito comum sobre a situação geral da responsabilização civil por danos morais, mas nunca devidamente comprovado e explicado. Buscando uma conceituação desta ideia, formulada dentro de um senso comum entre juristas, Flávia Portella Püschel afirma que a indústria do dano moral é "a percepção segundo a qual haveria no Brasil um excesso de ações judiciais propostas por supostas vítimas, as quais estariam, na verdade, interessadas em lucrar com o recebimento de altos valores concedidos pelo Poder Judiciário a título de reparação por danos morais"4. Não nos cabe aqui questionar a existência ou a pertinência de preocupar-se com esta "indústria"5, mas sim o quanto ela serve efetivamente como justificativa para a alteração legislativa implementada. O que é realmente atacado? Obviamente, lida de boa-fé, a introdução do art. 251-A no CBA visa servir como desincentivo a demandas por indenizações extrapatrimoniais aventureiras e sem embasamento. Não pode, portanto, ser usada para restringir ou dificultar a satisfação do direito de consumidores que realmente sofreram prejuízos extrapatrimoniais. Porém, ousamos sugerir que a chance não é baixa de que este tiro erre o alvo e acerte as demandas legítimas. Temos que nos questionar, antes de tudo, o porquê de existir um artigo de lei específico barrando o dano moral in re ipsa para - apenas - o transporte aéreo, já que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ tem sido bastante convergente no sentido de que não cabe presunção do dano moral neste tipo de demanda6. Não é um assunto novo e a introdução do art. 251-A em si não inova demais na apreciação do tema. A resposta é que, a partir de agora, a análise do magistrado está enclausurada e constrangida na avaliação do caso por uma norma de ampla abstração, que define de forma muito vaga a necessidade de "demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo" e da extensão deste dano. O juiz não está mais, em princípio, comprometido com uma ratio decidendi formulada por um tribunal superior e rica de elementos concretos que podem, por analogia, ser avaliados em conjunto. A abstração da norma limita o julgador que - somado ao contexto de crise econômica - tende a assumir o discurso de relativização e diminuição da força do dano extrapatrimonial como categoria de tutela da pessoa humana. Isto é, abre-se a oportunidade que paulatinamente retornemos ao paradigma de exigir materialidade na demonstração da existência de um dano moral, como nos paradigmas que equiparam esta categoria à dor e do sofrimento. Ilustrando: é permitir que pessoas que tiveram voos injustificadamente cancelados e que perderam várias horas ou até dias de suas, mas que não conseguem comprovar que perderam um evento importante ou uma outra viagem de férias, possam receber a reparação pelas lesões extrapatrimoniais sofridas. A consequência planejada, por sua vez, deve ser garantida com sucesso. A paulatina tendência de restrição às demandas indenizatórias extrapatrimoniais deve levar a uma redução dos processos e das condenações. Assim, ataca-se uma possível cultura de indenizações ilegítimas afetando as demandas legítimas. Reforça-se o que já disse Anderson Schreiber sobre a dita "indústria do dano moral": O que não parece admissível, contudo, é que se ataque o objeto pelo uso que se lhe dá. Vale dizer: diante de um número razoavelmente contido de casos de casos esdrúxulos, a comunidade jurídica - e especialmente a comunidade advocatícia - tem apontado suas armas contra a própria expansão do dano ressarcível7. Portanto, a mudança na Lei representa, em nossa visão, um primeiro aceno positivo da legislação brasileira à precarização dos serviços que ocorrerá na tentativa de reconstrução dos setores econômicos e que tende a se manter, inclusive, após uma futura reestabilização da economia e do transporte aéreo. Uma proposta interpretativa Diante do contexto discutido, resta-nos propor uma interpretação do art. 251-A do CBA que faça com que esta norma não se torne um fator de fragilização de demandas legítimas e ataque apenas aquelas que podem ser consideradas demandas exageradas e cujo prejuízo à seara jurídica do indivíduo não se consiga observar. Para isso é sempre bom reforçar que na avaliação do que conta como "demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo" não se deve cair na armadilha da exigência de materialidade física do dano ou da prova deste dano. Este é o risco mais grave que a redação abstrata da norma pode levar na interpretação dos casos concretos. A dor e o sofrimento físico são há muito reconhecidos como consequências não necessárias do dano extrapatrimonial, mas não são os danos em si. É inevitável que, no caso de direitos mais abstratos violados como honra ou integridade psíquica, lance-se mão de algumas presunções, permitindo-se reconhecer que a partir de algum elemento existente na relação danosa (como um longo período de atraso de voo ou cancelamento injustificado, somado com comunicação frágil e assistência pobre) se possa concluir pela existência do prejuízo efetivo, embora não se consiga estritamente comprová-lo senão recorrendo ao próprio ato danoso. Assim, não é possível abrir mão completamente de presunções e regras da experiência para avaliação da ocorrência dos danos, mesmo renunciando ao caminho de objetivação da avaliação dos danos extrapatrimoniais diante da introdução do art. 251-A no CBA. O trabalho probatório da vítima, portanto, deve ser de demonstrar que houve violação a um direito de natureza existencial através de elementos estabelecidos na relação com a transportadora aérea. Nem sempre estes elementos de prova estão com a vítima, em sua subjetividade e em seu sentimento, mas própria relação estabelecida. Recorrendo à jurisprudência do STJ sobre o dano in re ipsa no transporte aéreo já podemos vislumbrar algumas referências do que poderá ser provado para garantir a demonstração do prejuízo efetivo (ou seja, da violação a direito existencial): Sem dúvida, as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros.8 Estes indicativos ajudam a observar onde podem estar as linhas de demonstração da ocorrência dos danos, visando blindar as demandas em que existam de fato violações que carecem de responsabilização. Raciocínio parecido deve dar-se com a questão da comprovação da extensão do dano como elemento necessário para a garantia do direito à indenização. Uma possível dificuldade de demonstração não pode ser tida como motivo para negar ou para diminuir o direito à indenização, visto que esta incerteza faz parte da própria natureza do dano extrapatrimonial. Exigir prova da extensão de um dano extrapatrimonial em todas as suas hipóteses é, em certo sentido, impor ao autor verdadeira "prova diabólica", impossível de ser precisamente produzida. A redação da nova norma, porém, não abre para relativizações, dando a entender que inexistindo prova da extensão do dano, ele não será indenizado. Com isso, aplica-se um remédio que trata a doença matando o doente. *João Vitor Penna é mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA. Professor da Faculdade FACI (Belém, Pará). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado. ___________ 1- indo mão do excesso de apuro técnico, evitaremos a distinção estrita entre danos extrapatrimoniais e danos morais, tratando-os como sinônimos. 2- Os impactos da pandemia sobre o transporte aéreo já foram abordados nesta coluna por Bruno Carrá, tratando, inclusive, dos benefícios das medidas adotadas pela MP e agora convertidas em lei, além de alguns apontamentos críticos. Cf.: CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. A Pandemia e o contrato de transporte aéreo: breves notas. Disponível em:Clique aqui. 3- Disponível em: Clique aqui. 4- PÜSCHEL, Flavia Portella. O problema da "indústria dos danos morais": Senso comum e política legislativa. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Pensar o Brasil: problemas nacionais à luz do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 390. 5- Em outro texto tivemos a oportunidade de contestar a pretensa "indústria do dano moral". Cf.: VERBICARO, Dennis; SILVA, João Vitor Penna e; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. O mito da indústria do dano moral e a banalização da proteção jurídica do consumidor pelo judiciário brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 26, p. 75-99, 2017. 6- Como exemplos, citamos os recentes julgados: STJ, REsp n. 1796716/MG, 3ª Turma, Relª. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019; e STJ, REsp 1584465/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018. 7- SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 186. 8- STJ, REsp 1584465/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018. ______________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald Hoje celebramos o dia do advogado. 11 de agosto coincide com a criação dos primeiros cursos de direito no Brasil, em 1827. Em razão da pandemia, de forma inédita, a tradicional prática do "pendura" não estará à disposição de advogados e estudantes dos cursos jurídicos. Dependendo do humor do proprietário do estabelecimento, afora a repercussão penal, aquilo que seria uma comemoração se converte no primeiro contato de alguns colegas com uma ação de reparação de danos. Segundo recente aferição do Migalhas, com 210 milhões de brasileiros e 1,1 milhão de advogados (número que dobrou desde 2008), a proporção aproximada de causídicos no país é de um para cada 190 cidadãos, levando-se em conta apenas os advogados inscritos na Ordem, desconsiderando estagiários e suplementares. Dentre os profissionais que abraçam o direito, vários possuem experiência com demandas de responsabilidade civil, em seus mais variados setores. Isto se deve basicamente a um senso comum: grande parte das demandas na justiça cível, sobremaneira nos juizados especiais, tem como objeto uma pretensão de reparação de danos, com primazia em lides envolvendo indenizações em contratos e reparações por danos morais, sobretudo em relações de consumo (CNJ - Justiça em números) Em função da cultura de litigância, caráter repetitivo de demandas, excesso de trabalho e necessidade de cumprimento de prazos, não há um estudo aprofundado e multifacetado da prática da responsabilidade civil, seja pelo advogado, seja pelo próprio magistrado. Fórmulas e jargões são repetidos exaustivamente, assumindo o tema uma feição mecânica e superficial, que passa ao largo da complexidade teórica da temática e das suas múltiplas potencialidades, negligenciando-se inegáveis repercussões práticas para o advogado que busca aprimorar a sua atuação ou descobrir novos nichos de trabalho. O aperfeiçoamento e a sofisticação não são mais meras opções para quem quer verticalizar o estudo da responsabilidade civil, pois cada vez mais os robôs desempenharão as tarefas repetitivas e menos densas. O Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC é o primeiro grupo brasileiro exclusivamente dedicado à pesquisa, debate e aperfeiçoamento dessa fundamental área do direito das obrigações, nos moldes de institutos congêneres há muito estabelecidos na Europa, Estados Unidos e países da América do Sul. Desprovido de finalidades lucrativas ou partidárias, o IBERC é um espaço criativo e democrático destinado ao desenvolvimento da responsabilidade civil. O Instituto foi criado em 2017 e, nestes três anos de existência, já acumulou uma série de feitos, dentre os quais podemos destacar a realização de vários congressos no Brasil e no exterior, a edição de sete obras coletivas sobre os mais diversos campos da responsabilidade civil (pela Editora Foco), além da publicação aberta ao público de oito edições de nossa revista quadrimestral - totalizando 84 textos, divididos em doutrina nacional/estrangeira, comentários de jurisprudência e resenhas. Também dialogamos com o público por meio de seminários jurídicos pela internet - já realizamos 17 transmissões de webinar - e constante atualização nas redes sociais, por via de lives semanais e produção mensal de news sobre o universo da responsabilidade civil. Uma visão bem ampla de nossas atividades e do conteúdo da revista do IBERC pode ser obtida no site. Essa vibrante produção científica se deve basicamente à alta qualificação de nossos 285 associados brasileiros. Um grupo que mescla advogados (públicos e privados), docentes, tabeliões, membros do ministério público, defensoria e magistratura, tendo em comum uma sólida base na responsabilidade civil, com 90% dos membros com grau de doutorado e produção nos mais distintos setores da responsabilidade civil: partindo de seus pressupostos, funções e interações com as demais fontes de obrigações, direitos reais e família e, transcendendo o direito civil, espraiando-se em toda a sua interdisciplinaridade, compreendendo as fronteiras com o processo civil, direito societário, empresarial, médico, tecnologia, biodireito, consumidor, ambiental, administrativo, criminal, filosofia do direito, enfim, revelando a responsabilidade civil em toda a sua pujança. Estreamos esta nossa coluna Migalhas de Responsabilidade Civil há cerca de 4 meses e já publicamos 35 artigos sobre diversos temas, tendo em comum o compromisso com a atualidade das discussões e sua repercussão prática para o advogado que nos acompanha e prestigia. Imbuídos dessa ideia, lançamos aqui neste espaço, sempre às terças e quintas-feiras, muitos textos acerca dos impactos da pandemia nas relações jurídicas em geral e, mais especialmente, no campo da responsabilidade contratual e extracontratual, a satisfazer assim o interesse da classe dos advogados na resolução dos novos problemas práticos suscitados e auxiliando-os a superar desafios inéditos e de proporções gigantescas que a agenda da Covid-19 impôs1. Tudo isso sem nos descurar dos assuntos centrais da disciplina da responsabilidade civil, como seus fundamentos e funções2, bem como dos temas de direito de danos que o legislador inseria no ordenamento e das decisões que o STF e o STJ tomavam a cada giro, objeto de algumas edições extraordinárias da coluna, mantendo, deste modo, os leitores sempre bem informados das novidades legislativas e judiciais do país3. Diante deste sumário relato, não é difícil perceber que a jovem coluna vem cumprindo relevante papel de instrumento de aproximação da teoria à práxis. Escrita exclusivamente pelo qualificado quadro de associados do IBERC, antes referido, a coluna logra associar dinamismo e verticalidade no tratamento de matérias, as mais palpitantes da ampla disciplina da responsabilidade civil, que se acham na ordem do dia, como se vê da singela amostra do parágrafo anterior. ​Produto de seu tempo, a coluna se vale de ferramentas que as novas tecnologias permitiram incorporar à rotina do advogado do século XXI. Da finalização do texto pelo autor à edição final que o leitor encontra divulgada gratuitamente na Internet medeia um átimo, o que, encurtando o itinerário convencional das publicações de artigos jurídicos, proporciona que a informação aprofundada circule célere e alcance a outra ponta, nosso público consumidor, just in time. Acreditamos, verdadeiramente, que a qualificação técnica do advogado seja a mola-mestra da melhor administração da justiça, afinal, em seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social, na fórmula consagrada do Estatuto da OAB4. Como se sabe, é justamente da criatividade dos causídicos que surgem a maior parte das soluções que se cristalizam na jurisprudência e as muitas teses que não tardam a receber consagração legislativa. Na célebre lição imortalizada por Francesco Carnelutti, "o advogado é o primeiro juiz da causa". Na data de hoje, então, registramos nossos cumprimentos e felicitações a todos os advogados do país, os quais, em sua luta cotidiana pelo implemento da justiça em cada caso prático, nos termos da Constituição de 19885, revelam-se verdadeiros pilares da democracia e essenciais ao acesso à ordem jurídica justa, em especial na temática do dano e sua reparação. A cada um deles, rectius, a cada um de nós, já que todo operador do direito é antes de tudo um advogado, dedicamos a presente coluna. *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular e ex-coordenador do Programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado, pareceirista em temas de Direito Privado. **Nelson Rosenvald é professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 Dedicados aos problemas da pandemia publicamos os seguintes artigos, em ordem cronológica: Força maior e descumprimento de contratos na pandemia; A responsabilidade civil na esfera médica em razão da covid-19; A pandemia e o contrato de transporte aéreo: breves notas; A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives"; Prescrição e RJET (Lei 14.010/2020): surgimento de um problema e perda da chance de sua solução; Cláusula penal em tempos de pandemia; Responsabilidade civil e autonomia em tempos de pandemia e de automação; Fato do príncipe, responsabilidade civil e pandemia; A força maior como excludente de responsabilidade no contexto da pandemia; O que as funções da responsabilidade civil podem nos ensinar no período de pandemia e de pós-pandemia?; Reparação não pecuniária de danos extrapatrimoniais e covid-19. 2 Voltados aos aspectos centrais da responsabilidade civil lançamos os textos que se seguem, obedecendo a cronologia das respectivas publicações: Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais; Considerações sobre os fundamentos filosóficos da responsabilidade civil: formalismo x funcionalismo; Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais; A alocação dos riscos na utilização da assinatura digital; Imprescritibilidade ambiental 18 anos após o Código Civil; Seguidores falsos, comentários e curtidas fake: ilícitos do mercado de fakes nas redes sociais; Responsabilidade civil e a aparente incoerência da manutenção dos "deveres conjugais" ante ao advento do divórcio fracasso; A responsabilidade civil do tabelião e a prática de atos eletrônicos; Effusum et deiectum: entre a causalidade e a imputação; Reparabilidade dos danos à autodeterminação do paciente: uma perspectiva bioética; Revisitando o conceito de risco no CDC; Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização; "Teilrechtsfähigkeit": uma proposta alemã para a responsabilização civil na IA. 3 No que tange às recentes decisões judiciais e às recentes proposições normativas produzimos os ensaios abaixo, que seguem na ordem em que publicados: A responsabilidade civil no âmbito da MP 966; O regime jurídico transitório da recuperação judicial, extrajudicial e falência (PL 1.397/20): uma breve análise e dois aprimoramentos necessários; A regulamentação da publicidade das bebidas alcoólicas e a proteção do adolescente no Instagram e Facebook; Direito ao esquecimento e a jurisprudência do STJ; Fake news vs. liberdade de expressão: uma análise favorável ao PL 2.630/20 do Senado Federal; Segurança alimentar e responsabilidade civil em tempos de pandemia - reflexões iniciais sobre a Lei 14.016/20; A LGPD e o fundamento da responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados pessoais: culpa ou risco?; A especial responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados; Responsabilidade civil pela perda de água no novo marco legal do saneamento básico; Direito à saúde e responsabilidade civil: ainda o caso do tabaco; Responsabilidade civil, autocomposição e segurança jurídica: primeiras impressões a partir do precedente AgInt no REsp n.º 1.833.847/RS. 4 Confira-se o teor do artigo segundo do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (lei 8.906, de 4.7.1994): Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça. § 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social. § 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público. § 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei. 5 Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. @iberc.brasil
Texto de autoria de José Luiz de Moura Faleiros Júnior e Fabiano Menke O debate em torno da ascensão dos algoritmos de Inteligência Artificial, em decorrência da evolução das técnicas de machine e deep learning, tem produzido impactos jurídicos variados1. A Internet das Coisas, a implantação da tecnologia 5G e o chamado Big Data são alguns dos fenômenos que propiciam essa mudança de paradigma. Fato é que, quando o debate transcende a ficção científica - e não mais se imagina uma rebelião de androides (ou a emancipação de algoritmos, como numa Skynet2 contemporânea) - e passa a permear a dogmática jurídica, inúmeros desafios são introjetados pelos institutos jurídicos tradicionais. A responsabilidade civil, por óbvio, não deixa de apresentar suas particularidades quando analisada nesse novo universo3. E, não por outra razão, a União Europeia sinalizou, em 2015, propensão regulatória voltada ao tema. No Draft Report with recommendations on civil law rules and robotics (2015/2103) já eram notadas algumas preocupações quanto aos danos causados por máquinas, e foi a partir deste documento que, em 16 de fevereiro de 2017, o Parlamento Europeu aprovou uma Resolução ("Disposições de Direito Civil sobre Robótica") que, expressamente e em caráter prospectivo, prevê em sua diretriz 59, "f", o seguinte: 59. Insta a Comissão a explorar, analisar e ponderar, na avaliação de impacto que fizer do seu futuro instrumento legislativo, as implicações de todas as soluções jurídicas possíveis, tais como: (...) f) Criar um estatuto jurídico específico para os robôs a longo prazo, de modo a que, pelo menos, os robôs autónomos mais sofisticados possam ser determinados como detentores do estatuto de pessoas eletrónicas responsáveis por sanar quaisquer danos que possam causar e, eventualmente, aplicar a personalidade eletrónica a casos em que os robôs tomam decisões autónomas ou em que interagem por qualquer outro modo com terceiros de forma independente4; Mais do que nunca, propostas para a parametrização de marcos regulatórios aplicáveis à robótica reverberam os anúncios de uma nova era no cenário jurídico. Com inspiração nas clássicas três leis da robótica de Isaac Asimov5 - delineadas no terceiro conto ("Círculo Vicioso") de sua coletânea "Eu, Robô" - o norte-americano Jack Balkin especificou também três proposições para o enfrentamento jurídico da questão: (i) operadores algorítmicos devem ser fiduciários de informações em relação a seus clientes e usuários finais; (ii) operadores algorítmicos têm deveres para com o público em geral; (iii) operadores algorítmicos têm o dever público de não se envolver em incômodos algorítmicos6. Em proposta subsequente, Frank Pasquale sugeriu o acréscimo de uma quarta lei: (iv) um robô sempre deve indicar a identidade de seu criador, controlador ou proprietário7. O núcleo fundamental da discussão envolve, ainda, saber se já estamos vivendo o momento da singularidade tecnológica - para referenciar a expressão de Vernor Vigne8, posteriormente explorada por Ray Kurzweil9-, em que o biológico e o tecnológico se manifestam em verdadeira simbiose, impondo reconfigurações da usual distinção entre humanos e máquinas, na medida em que estas serão capazes de suplantar o clássico 'Teste de Turing', avançando rumo à efetivação do 'jogo da imitação'10. A resposta parece ser negativa quanto ao atingimento da singularidade, embora o aprimoramento constante dos algoritmos indique uma evolução acelerada rumo a esse cenário11. E essa afirmação é possível em razão do fato de não se ter, no atual estado da técnica, máquinas dotadas de discernimento moral, capazes de olhar para si mesmas e de adotar posturas responsáveis e baseadas em reflexões que ultrapassam a mera predição estatística. Se é certo que a capacidade dos processadores, potencializada pelo processamento descentralizado da Internet das Coisas, ultrapassa (e muito!) a dos seres humanos para o processamento de informações, também é possível asseverar que a criação de nexos de imputação para a responsabilização civil dos robôs, quando causarem danos, é uma precipitação. A proposta da União Europeia sinaliza, como primeira alternativa, a criação de um regime de seguros obrigatórios e a limitação de responsabilidade para o proprietário ou utilizador que para ele contribuir12. Outro caminho, seria o reconhecimento da autonomia jurídica dos próprios robôs, instigando reflexões sobre a eventual natureza subjetiva ou objetiva desse regime de responsabilidade civil baseado na pretensa "personalidade eletrônica". Henrique Sousa Antunes pondera que "a opção por uma responsabilidade subjetiva, dependente de um juízo de culpa do lesante, encontraria assento nesse patamar em que se descobrem no robô capacidades superiores às do ser humano", ao passo que, quanto à responsabilidade objetiva, "a superação das capacidades humanas advoga em sentido contrário à previsão de um dever de indemnizar sem culpa"13. Esta também é a posição de Mafalda Miranda Barbosa, que ressalta a necessidade de estruturação de um futuro regulamento em torno dos princípios da precaução, da reversibilidade, da segurança e da responsabilidade14. No Brasil, esta visão é compartilhada por Gustavo Tepedino e Rodrigo da Guia Silva15 e, também, por Eduardo Tomasevicius Filho - este descreve como nonsense a intenção de se atribuir personalidade jurídica aos robôs16. Mas... haveria um 'meio-termo'? A doutrina alemã parece sinalizar que sim. E a ideia é, no mínimo, curiosa. Estudo pioneiro de Jan-Erik Schirmer, publicado em 2020, se reporta a escritos de Eugen Ehrlich (1909) e Hans-Julius Wolff (1930) quanto à Teilrechtsfähigkeit para indicar uma terceira possibilidade de atribuição de personalidade jurídica17. O termo indica uma atribuição 'parcial' de personalidade jurídica a um agente que produza interações com o meio18. A proposta é extremamente peculiar, e, segundo o autor, poderia ser considerada para a atribuição de personalidade jurídica a robôs em cenários específicos, com aquisição paulatina de direitos e obrigações. Explicando a diferença, Schirmer descreve a personalidade jurídica ostentada por humanos como um 'pote de doces' que está cheio desde o começo; o pote representaria a personalidade jurídica e os doces simbolizariam direitos específicos, logo, um pote cheio de doces indicaria a personalidade em sua plenitude: ou se tem o pote cheio, ou não há pote algum. Na Teilrechtsfähigkeit, a diferença adviria da atribuição de personalidade, mas sem direitos pré-concebidos pelo ordenamento; o pote existiria, mas estaria inicialmente vazio de doces, sendo preenchido, pouco a pouco, em sintonia com a própria evolução da personalidade, até que se tornasse plena19. A partir dessa teoria, seria possível aos tribunais, por exemplo, a definição casuística dos cenários em que os robôs pudessem passar a ostentar, um a um, eventuais direitos (e obrigações), sempre de forma justificada e transcendendo, mediante análise concreta, a dicotomia binária entre os sujeitos que são e os que não são dotados de personalidade jurídica. Não se partiria mais da presunção abstrata de que a personalidade jurídica implica, necessariamente, a titularidade de direitos e obrigações previamente existentes no ordenamento, o que, para robôs, faz toda a diferença no atual estado da técnica, pois: Pelo menos por enquanto [os robôs] não agem em seu próprio interesse. O trabalho deles é fornecer apoio a pessoas físicas e jurídicas. Um carro autônomo não dirige por dirigir, ele dirige para transportar seu ocupante para um determinado destino. Um algoritmo de negociação não é negociado por conta própria, mas por conta da pessoa que o implanta. Em outras palavras, estamos analisando a típica "situação do servo-mestre", na qual o servo age de forma autônoma, mas ao mesmo tempo apenas em nome do mestre. Assim, agentes inteligentes devem ser dotados de personalidade, na medida em que esse status reflita sua função como servos 'sofisticados'20. A sobredita 'sofisticação' que um robô poderia ostentar dependeria do seu aprimoramento algorítmico e permitiria, ainda segundo Schimer, a responsabilização do 'mestre' (proprietário ou utilizador), uma vez que toda a atuação se dê em seu exclusivo interesse, seja para a conclusão e execução de contratos, seja para a prática de atos potencialmente ilícitos (e danosos)21. Foi com base nesse aspecto assistencial ou de prestação de mero suporte pelo robô que Gunther Teubner sugeriu, em 2018, a implementação de uma regra de responsabilização (digitale Assistenzhaftung22) baseada na equação 'servo-mestre' e escorada nas decisões do agente efetivamente inteligente (atualmente, o humano/'mestre', mas, aos poucos e à medida em que a singularidade se aproximar, também ou exclusivamente o robô/'servo'). Para Teubner, a atribuição de personalidade para agentes não humanos não tem relação com a capacidade de pensar ou com a inteligência artificial "real". O critério decisivo, segundo Teubner, está localizado nas interações sociais nas quais as funcionalidades algorítmicas participam, quer dizer, a aptidão de produzir uma sequência completa e autônoma de comunicação recursiva é que constitui o algoritmo como pessoa, como artefato semântico, ao qual se atribui uma subjetividade plena ou limitada. Interessa, portanto, a especial participação na comunicação das relações sociais23. E no que diz respeito à sugestão da regra de responsabilização denominada Assistenzhaftung, Teubner a diferencia da responsabilidade em virtude do risco, uma vez que os fundamentos desta se baseiam no risco inerente à coisa ou atividade, enquanto que a regra especial de responsabilidade civil que sugere teria como fundamento a antijuridicidade da conduta do robô, no que denomina de perigo da autonomia das decisões digitais24. O ponto fulcral dessa proposta, portanto, está na criação de novos elos para a cadeia causal: a noção de Teilrechtsfähigkeit significaria apenas que um agente inteligente deve ser tratado como um ente dotado de personalidade jurídica parcial até que se atinja o ponto de indistinção, em que seja capaz de romper tal cadeia causal, realizando, por si e de forma autônoma, um ato danoso. Dessa capacidade, é claro, não se segue que o agente inteligente sempre interrompa a cadeia e, por exemplo, o programador de software ou o passageiro de um veículo autônomo nunca sejam responsabilizados. A subjetividade jurídica parcial simplesmente fornece uma linha de argumento diferente para a interpretação da sucessão de eventos que conduz a averiguação do nexo de causalidade em etapas, permitindo a gradação da personalidade em ritmo consentâneo com a maturação computacional. Embora essa solução pareça atraente do ponto de vista doutrinário e encontre sustentáculos jurídicos no direito civil alemão, ainda nos parece uma proposta extremamente complexa para modelos como o brasileiro, uma vez que tem um ponto fraco inevitável: a necessidade de ação negligente do robô (ou 'servo', como no raciocínio de Schirmer). Isso porque um ato negligente exige a violação de um dever de cuidado que, por sua vez, para permitir a constatação de um comportamento do agente inteligente, deve ser comparada a um padrão de cuidado razoável, ou seja, o agente inteligente, no mínimo, deve apresentar um 'desempenho' inferior ao de outros agentes inteligentes comparáveis. Para ações humanas, isto é possível; para robôs em constante evolução e sem bases comparativas, é muito difícil. Schirmer diz que a maioria dos casos careceria do pré-requisito da negligência e, portanto, a responsabilização do 'mestre' não poderia ser concretizada. Em suas conclusões, o autor ainda assume as incertezas da adoção de um conceito como a Teilrechtsfähigkeit, mas assevera a principal vantagem de sua consideração e eventual adoção: ganhar tempo25. Sendo inevitável e irrefreável o avanço tecnológico galopante, chegará o momento da singularidade descrita por Vigne e Kurzweil. O quanto o direito civil terá se modernizado até lá, é uma incógnita, mas a antevisão das consequências dessa evolução impõe a todo jurista o dever de se dedicar à exploração de conceitos que produzam resultados mais imediatos. A Teilrechtsfähigkeit oferece justamente isso. Inexistente instituto assemelhado na legislação brasileira, talvez sua estrutura lógica permita, ao menos, o florescimento de proposições que visem otimizar a responsabilidade civil sem que sejam abandonadas as suas clássicas formulações. *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado. **Fabiano Menke é doutor em Direito pela Universidade de Kassel, Alemanha. Mestre em Direitos Especiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto de Direito Civil no Departamento de Direito Privado e Processo Civil e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro fundador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA UFRGS-PUCRS). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado. __________ 1 Para uma compreensão de todos esses conceitos, confira-se: GOETTENAUER, Carlos Eduardo. Algoritmos, inteligência artificial, mercados. Desafios ao arcabouço jurídico. In: FRAZÃO, Ana; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (Coords.). Empresa, mercado e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 271-274. Ademais, para aprofundamento teórico, sugere-se as seguintes leituras: FLASIŃSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 15-22; KELLEHER, John D.; MAC NAMEE, Brian; D'ARCY, Aiofe. Fundamentals of machine learning for predictive data analytics: algorithms, worked examples, and case studies. Cambridge: The MIT Press, 2015, p. 1-16. 2 A referência é colhida do sistema de inteligência artificial que antagoniza a série de filmes O Exterminador do Futuro e a série As Crônicas de Sarah Connor. Ainda na ficção científica, há que se relembrar do clássico Blade Runner, de Ridley Scott, em que um grupo de androides persegue o seu criador humano em busca do prolongamento da vida que está prestes a acabar por ter duração programada. 3 BARBOSA, Mafalda Miranda. Inteligência artificial, e-persons e direito: desafios e perspectivas. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, ano 3, n. 6, p. 1475-1503, 2017, p. 1475-1476. A autora, investigando se "faz ou não sentido conferir personalidade jurídica aos entes dotados de inteligência artificial", justifica que "já não se consegue, hoje, dar uma resposta líquida no sentido de incluir na categoria apenas as pessoas singulares e as pessoas coletivas", o que conduz a reflexões sobre "a construção daquilo que vem conhecido por robot law, por um lado, e, por outro lado, o bloqueio que a juridicidade poderá impor ao avanço tecnológico". 4 PARLAMENTO EUROPEU. Resolução de 16 de fevereiro de 2017. Disposições de Direito Civil sobre Robótica. Disponível aqui. Acesso em: 21 jul. 2020. 5 São elas: "(i) um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; (ii) um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei; (iii) um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis". Recomenda-se, ademais, a leitura da obra, que possui tradução para o português: ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. Tradução de Aline Storto Pereira. São Paulo: Aleph, 2014. 6 BALKIN, Jack M. The three laws of robotics in the age of Big Data. Ohio State Law Journal, Columbus, v. 78, p. 1-45, ago. 2017. Acesso em: 20 jul. 2020. 7 PASQUALE, Frank. Toward a fourth law of robotics: Preserving attribution, responsibility, and explainability in an algorithmic society. University of Maryland Legal Studies Research Papers, Baltimore, n. 21, p. 1-13, jul. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 jul. 2020. 8 VIGNE, Vernor. The coming technological singularity: How to survive in the post-human era. In: Interdisciplinary Science and Engineering in the Era of Cyberspace. NASA John H. Glenn Research Center at Lewis Field, Cleveland, 1993, p. 11-22. Disponível aqui. Acesso em: 20 jul. 2020. 9 KURZWEIL, Ray. The age of spiritual machines: When computers exceed human intelligence. Nova York: Viking, 1999. 10 Os estudos de Turing sobre o Entscheidungsproblem (dilema da tomada de decisão) foram publicados em um artigo, intitulado "On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem", de 1937, no qual se demonstrou que uma "máquina computacional universal" seria capaz de realizar qualquer operação matemática concebível se fosse representável como um algoritmo. Ele passou a provar que não havia solução para o problema de decisão concernente à interrupção da atuação de uma máquina. Confira-se: TURING, Alan M. On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem. Proceedings of the London Mathematical Society, Londres, v. 42, n. 1, p. 230-265, nov. 1936. 11 Sobre o tema, confira-se: PASQUALE, Frank. Data-informed duties in AI develpment. Columbia Law Review, Nova York, v. 119, p. 1917-1940, 2019; TOPOL, Eric; LEE, Kai Fu. It takes a planet. Nature Biotechnology, Nova York, v. 37, p. 858-861, 2019. 12 Veja-se: "a) Criar um regime de seguros obrigatórios, se tal for pertinente e necessário para categorias específicas de robôs, em que, tal como acontece já com os carros, os produtores ou os proprietários de robôs sejam obrigados a subscrever um seguro para cobrir os danos potencialmente causados pelos seus robôs; b) Garantir que os fundos de compensação não sirvam apenas para garantir uma compensação no caso de os danos causados por um robô não serem abrangidos por um seguro; c) Permitir que o fabricante, o programador, o proprietário ou o utilizador beneficiem de responsabilidade limitada se contribuírem para um fundo de compensação ou se subscreverem conjuntamente um seguro para garantir a indemnização quando o dano for causado por um robô". PARLAMENTO EUROPEU. Resolução de 16 de fevereiro de 2017. Disposições de Direito Civil sobre Robótica. Disponível aqui. Acesso em: 21 jul. 2020. 13 ANTUNES, Henrique Sousa. Inteligência Artificial e responsabilidade civil: enquadramento. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 1, p. 139-154, 2019, p. 153-154. 14 BARBOSA, Mafalda Miranda. Inteligência artificial, e-persons e direito, cit., p. 1501-1502. 15 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Desafios da Inteligência Artificial em matéria de responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 21, p. 61-86, jul./set. 2019, p. 79. 16 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Inteligência Artificial e direitos da personalidade: uma contradição em termos? Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, v. 113, p. 133-149, jan./dez. 2018, p. 142. 17 No direito alemão, adota-se o conceito de Teilrechtsfähigkeit, por exemplo, para explicar a figura do nascituro, reconhecendo-lhe a titularidade de alguns direitos. WOLF, Manfred; NEUNER, Jörg. Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts. 12. ed. Munique: C.H. Beck, 2012, p. 682-683. 18 SCHIRMER, Jan-Erik. Artificial Intelligence and legal personality. "Teilrechtsfähigkeit": A partial legal status made in Germany. In: WISCHMEYER, Thomas; RADEMACHER, Thomas (Eds.). Regulating Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2020. p. 134. Esclareça-se que o termo Rechtsfähigkeit (capacidade jurídica), no direito alemão, é tradicionalmente equivalente ao termo Rechtspersönlichkeit (personalidade jurídica), havendo, como no Brasil, pelo menos para os que se filiam à corrente de Pontes de Miranda, uma identificação conceitual entre "personalidade jurídica" e "capacidade jurídica". Para um apanhado dos conceitos de personalidade jurídica e capacidade jurídica na Alemanha, inclusive referindo parcial modificação na equivalência entre os conceitos após mudança legislativa ver, por todos, LEHMANN, Matthias. Der Begriff der Rechtsfähigkeit. Archiv für die civilistische Praxis, Tübingen, v. 207, n. 2, p. 225-255, abr. 2017. 19 SCHIRMER, Jan-Erik. Artificial Intelligence and legal personality, cit., p. 135. 20 SCHIRMER, Jan-Erik. Artificial Intelligence and legal personality, cit., p. 136, tradução livre. 21 SCHIRMER, Jan-Erik. Artificial Intelligence and legal personality, cit., p. 137. 22 TEUBNER, Gunther. Digitale Rechtssubjekte? Zum privatrechtlichen Status autonomer Softwareagenten. Archiv für die civilistische Praxis, Tübingen, v. 218, n. 2, p. 155-205, ago. 2018. Há que se observar que a análise de Teubner, nesse texto, leva em consideração e aborda expressamente as restrições das regras de responsabilidade civil extracontratual alemãs, e as consequentes dificuldades de responsabilização pelos atos danosos dos agentes, no que denomina de lacunas de responsabilização. 23 Em coerência com o viés sociológico que permeia a obra de Teubner. 24 De acordo com Teubner, a tese seria a seguinte: "Não uma responsabilidade pelo emprego lícito de equipamentos perigosos, mas sim uma responsabilidade por comportamento antijurídico da máquina que decide autonomamente". TEUBNER, Gunther. Digitale Rechtssubjekte, cit., p. 29, tradução livre. 25 SCHIRMER, Jan-Erik. Artificial Intelligence and legal personality, cit., p. 136. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Texto de autoria de Jorge Cesa Ferreira da Silva Se, no plano social, a pandemia de Covid-19 ensejou consequências das mais diversas ordens, no plano jurídico, especialmente no contratual, ela teve como um dos seus mais perceptíveis efeitos a colocação do conceito - ou, se se quiser, dos conceitos - de caso fortuito e força maior no centro das discussões. O caso fortuito ou de força maior, a seguir tratados como sinônimos sob a sigla CF/FM, tem utilização rotineira em nosso Direito, seja em contratos, seja pelos tribunais. No entanto, acabou recebendo limitado foco doutrinário no Brasil, ao menos desde a publicação, na década de 1930, do hoje clássico "Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão", de Arnaldo Medeiros da Fonseca1. Com a pandemia, a situação se alterou, pois o CF/FM, por corresponder a uma das possíveis respostas jurídicas a fatos supervenientes ao nascimento do vínculo, passou a ser lembrado como fonte dos mais diversos efeitos, desde a tradicional liberação do devedor, até a errônea (porque infundada) revisão contratual. Por isso, faz-se aconselhável retornar mais uma vez ao tema, de modo a rememorar ou a mais bem compreender os contornos conceituais de CF/FM2. O foco deste artigo será a culpa que, por diversos ângulos, circunda o conceito. Dois desses ângulos serão abordados. O primeiro é a confusão, muitas vezes visualizada, entre, de um lado, CF/FM e, de outro, a ausência de culpa. Esse ângulo pode ser tido por "externo", pois não aborda os elementos do conceito. Ao lado dele, tem-se uma perspectiva "interna", na qual a culpa exerce papel relevante na caracterização do suporte fático do CF/FM, conforme previsto no art. 393 do Código Civil. I. CF/FM como excludente de responsabilidade civil: a confusão entre CF/FM e ausência de culpa Com frequência, encontram-se certas confusões entre as noções de "culpa" e de "causalidade". Sobretudo na linguagem comum, costuma-se dizer "culpado" aquele que "causou" o evento, ainda que o agente não tenha, tecnicamente, agido com culpa para o efeito danoso. Ou seja, pode ter dado causa ao evento por motivos outros que não a sua conduta negligente ou imprudente, mas, mesmo assim, é tido por "culpado". Essa confusão, presente na linguagem comum, é auxiliada pela tradição jurídica, que teve na culpa o principal fundamento da responsabilidade civil. Nesse contexto, havendo reponsabilidade, haveria culpa e, portanto, também causalidade, de sorte que delimitações finas entre esses dois conceitos não se mostravam necessárias à solução de, pelo menos, a maioria dos casos concretos. Consequentemente, culpa e causalidade foram tidas como tendo grande proximidade e, em alguns casos, como se se confundissem. No que respeita ao tema sob análise, o reflexo dessa confusão encontra-se na visão do CF/FM - uma excludente do nexo de causalidade - como uma excludente de culpa. Em síntese, o argumento seria assim formulado: se a responsabilidade civil decorre da culpa e se, quando há CF/FM não há responsabilidade civil, ergo, quando há CF/FM não há culpa. Em certa medida, a conclusão faz sentido, pois, se o fato é caracterizável como CF/FM, também é verdade que o fato não foi causado pelo devedor e, portanto, não é fruto de sua culpa. No entanto, o argumento peca pela formulação tanto da premissa maior quanto da premissa menor. Quanto àquela, há outros fundamentos da responsabilidade civil distintos da culpa. Quanto a esta, há outras hipóteses de afastamento do nexo causal para além da ausência de culpa. Autores relevantes vincularam a existência de CF/FM à ausência de culpa, como se ambas as circunstâncias tivessem correspondências perfeitas. Na expressiva afirmação de Eduardo Espínola, "onde cessa a culpa, começa o caso fortuito" (ESPÍNOLA, Eduardo. Systema do Direito Civil brasileiro. v. II, t. I. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912, p. 361). Assim também Agostinho Alvim, segundo o qual: "Estudemos, agora, a questão da distinção entre ausência de culpa e caso fortuito. Para alguns, as duas noções se confundem, de sorte que a prova da ausência de culpa resulta na existência de um caso fortuito, e vice-versa. A esta corrente nos filiamos." (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 292)3. Muito embora essa sinonímia possa ser aplicável a certos contextos particulares e, apesar de, como se verá a seguir, haja relação negativa entre culpa e CF/FM, é fundamental perceber que essa similitude, em uma visão conceitual abrangente, deixa ao desabrigo uma série de nuances relevantes. Em casos de responsabilidade civil objetiva, por exemplo, a responsabilização pode ser afastada por razão distinta da ausência de culpa e, nem por isso, haverá necessariamente CF/FM. Além disso, nas situações em que a causalidade se vincula a fato de terceiro ou a fato do credor, a sinonímia entre ausência de culpa e CF/FM acaba por esfumaçar a distinção entre os regimes aplicáveis. No fato de terceiro, vale lembrar a possível responsabilidade deste, para além da liberação do devedor (VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. 2. ed. Paris: L.G.D.J., 1998, p. 232). No fato do credor, vale lembrar a possível aplicação do regime dos riscos da coisa e o possível afastamento da mora debitoris. Disso se conclui que, para a caracterização do CF/FM, a mera visão da ausência de culpa é reducionista e tende a gerar mais dúvidas conceituais do que soluções efetivas. Todavia, disso não se segue que não haja conexões internas entre inexistência de culpa e a caracterização do CF/FM. II. Culpa e os elementos do suporte fático do CF/FM: a inter-relação O suporte fático de CF/FM envolve dois elementos que devem se apresentar conjuntamente, conforme o parágrafo único do art. 393 do Código Civil: a ocorrência de um fato caracterizado como necessário e a existência de efeitos deste fato, que não possam ser evitados ou impedidos pelo devedor. Como se constata, trata-se de uma delimitação conceitual dotada, ela própria, de certa dificuldade. Isso porque se encontra incluída no suporte fático uma consequência, distinta da consequência jurídica que decorre do suporte fático. Ou seja, para a caracterização do CF/FM, é fundamental a verificação conjunta de um certo fato e a análise valorativa dos seus efeitos, sem o que a consequência jurídica não deverá ser aplicada. II.A. Culpa e fato necessário Com alguma frequência, constata-se na prática uma certa confusão entre CF/FM e "fato necessário", como se qualquer fato necessário, alheio à vontade das partes e, sobretudo, do devedor, gerasse a liberação deste. Essa confusão é identificada em questões postas tais como: seria a pandemia de Covid-19 "um evento" de CF/FM? A resposta inafastável só pode ser uma: depende. De um lado, depende da análise dos efeitos do fato, como se verá a seguir. De outro, depende da causação do evento. Neste âmbito, há conexão com a culpa. Fato necessário não é fato imprevisível. O fato pode ser previsível e ser, ainda assim, necessário. Fato necessário é aquele que pressupõe a ocorrência de um obstáculo de tal monta que conduza à impossibilidade de o devedor realizar a prestação no momento e na forma estabelecida (TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do Direito Civil: obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 379). Assim, é apenas relevante que ele seja inevitável (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 623 ss.). Corolário dessas características do fato necessário é que ele não tenha sido causado pelo devedor, sendo a ausência de culpa deste, assim, um elemento relevante para verificação da causação. O acidente que bloqueou a estrada não pode ter decorrido da culpa do devedor, assim como a greve não pode ter decorrido da sua desídia. Aquele que alega o fato necessário, em síntese, não pode ser a fonte do fato e, portanto, é fundamental que inexista culpa do devedor para a formação do suporte fático. Aqui, há relação entre culpa e CF/FM, pois, havendo ato culposo e sendo este ato causador do fato necessário, não haverá CF/FM. II.B. Culpa e efeitos que se possa evitar ou impedir Mais nítida ainda é a relação entre culpa e os efeitos do fato necessário. É essa circunstância que impede que se identifique a ocorrência de CF/FM apenas olhando-se para o evento em si. É também essa circunstância que enseja certa relação com a previsibilidade do evento. Ocorre que, se o evento é previsível e, por isso, podem-se adotar medidas para que os respectivos efeitos sejam evitados, então o CF/FM não se configura. Como bem indicou Arnaldo Medeiros da Fonseca, "se o devedor se houver exposto culposamente aos efeitos do evento irresistível, nesse caso, pela concorrência de culpa de sua parte, o fortuito não é levado em conta, do ponto de vista jurídico" (op. cit., 143). Um certo fato pode ser um evento de CF/FM hoje, deixar de sê-lo amanhã e, depois ainda, voltar a sê-lo, a depender do modo como se manejam os efeitos (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. t. XXIII, 3. ed. São Paulo: RT, 1984, p. 84; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. V, t. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 300). Exemplo tradicional no Brasil é a compreensão jurisprudencial de assaltos ou atos de violência para a caracterização da responsabilidade do transportador. Em um primeiro momento, o fato pode ser tido como inevitável, notadamente pela força empregada. Todavia, se o fato se repete e se essa repetição demonstra que há mecanismos capazes de barrar a ação dos assaltantes, então o efeito também passa a ser uma decorrência da inação do transportador em tomar as medidas adequadas para evitar o roubo. Nesses casos, a inação do devedor passa a ser tida como elemento do iter causal. Mas, além disso, é importante notar que elemento causal também corresponderá a um ato culposo, na medida em que o devedor, podendo, não tomou as medidas adequadas que estavam a seu alcance (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 296). A pandemia de Covid-19 também serve de exemplo. Certos efeitos dela decorrentes são inevitáveis, mesmo depois de ela ter-se tornado realidade concreta. Outros, são afastáveis e, sobre estes, cabe discutir sobre a culpa do devedor. Se o devedor, podendo, não evitou os efeitos relacionados ao fato necessário, não há excludente, exatamente pela culpa do devedor. Conclusão Como se pode constatar, a relação entre culpa e CF/FM é multifacetada. No entanto, para bem compreender a excludente, é necessário inicialmente afastarem-se os dois conceitos. Só assim se verificam as virtualidades próprias. No entanto, na caracterização dos elementos do suporte fático do CF/FM, a culpa pode exercer - e, não raro, exerce - papel relevante. Neste âmbito, a ocorrência de culpa do devedor como o elemento causal do evento em si, ou dos efeitos deste evento, afastará a caracterização da excludente. O CF/FM, portanto, envolve, uma questão de prova que, em diversas situações, corresponderá à demonstração da ausência de culpa. *Jorge Cesa Ferreira da Silva é professor, doutor em Direito Civil (USP), sócio de Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados. __________ 1 A obra teve sucessivas edições posteriores. Cf. FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. 2 Este texto segue a linha já iniciada em SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. JOTA, São Paulo, 20 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 08 de julho de 2020. 3 Ver também GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Atual. Brito, E. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 180 s. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
quinta-feira, 30 de julho de 2020

Revisitando o conceito de risco no CDC

Texto escrito por Adalberto Pasqualotto A responsabilidade civil do fornecedor fundamenta-se no risco (possibilidade de defeito). O Código de Defesa do Consumidor protege: a) a saúde e segurança do consumidor: o fornecedor responde por danos causados por defeitos de produtos ou serviços; b) os interesses econômicos do consumidor: garantia de adequação de produtos e serviços à sua finalidade. O sistema persegue dois objetivos: i) prevenção de danos (artigos 8º a 10), impondo deveres de informação ao fornecedor sobre a segurança de produtos e serviços; ii) reparação de danos, conforme a, b, acima. Os deveres de informação do fornecedor para prevenir danos ao consumidor variam conforme a gravidade do risco: A) riscos considerados normais e previsíveis, em decorrência da natureza e fruição do produto ou serviço: dever de prestar as informações necessárias e adequadas (art. 8º); B) produtos ou serviços potencialmente nocivos ou perigosos: exigência de informações ostensivas e adequadas, sem prejuízo de outras medidas cabíveis em cada caso concreto (art. 9º); C) produtos ou serviços com alto grau de nocividade ou periculosidade: o fornecedor não poderá colocá-los no mercado se disso sabia ou deveria saber (art. 10). Não deve passar despercebida a diferença terminológica dos artigos 8º, 9º e 10. A palavra riscos (art. 8º) é substituída (artigos 9º e 10) por nocividade e periculosidade; e reaparece no conceito de legítima expectativa de segurança (art. 12, § 1º, II): o produto é defeituoso quando não oferece a segurança esperada, levando-se em conta os usos e os riscos que razoavelmente dele se esperam. É claro que a ausência de menção a nocividade ou periculosidade não significa que os produtos classificáveis nos artigos 9º e 10 não sejam abrangidos pelo conceito de legítima expectativa de segurança. Porém, não se pode ignorar a referência à razoabilidade: na avaliação da expectativa de segurança, não se pode fazer tábula rasa dos graus diferenciais de risco. Haverá de se exigir maior rigor informativo a um produto potencialmente nocivo (medicamento de tarja vermelha ou preta - informação ostensiva) do que a outro, cujo risco é normal e previsível, e que, por isso mesmo, não demanda rigor igual (facas, tesouras), porque o risco que apresenta é baixo. O que dizer, porém, do art. 10? No art. 10, já não há exigência de informação como forma de prevenção, porque a informação já não é remédio, o produto sequer deveria estar no mercado1. O Poder Judiciário já pronunciou a alta periculosidade de produtos, podendo ser citados os andadores infantis, as camas de bronzeamento e, mais recentemente, em decisões do Supremo Tribunal Federal, os produtos à base de amianto, ou asbesto. Na ADI 3.470-RJ (2017), o STF decidiu que a tolerância legal ao uso do amianto crisotila (art. 2° da Lei 9.055/1995) é incompatível com a proteção social aos trabalhadores que têm contato com o produto (art. 7°, XXII, CF), com o direito de todos à saúde (art. 196, CF) e com a proteção ao meio ambiente (art. 225, CF). Segundo a decisão do STF, poderia, até mesmo, haver o "banimento de todo e qualquer uso do amianto". Apesar de altamente cancerígeno, o produto está presente no mercado. O Min. Marco Aurélio, que votou pela constitucionalidade da lei (não foi atingida maioria necessária para declarar a inconstitucionalidade), entendeu que os efeitos colaterais negativos do amianto deveriam ser controlados pela atuação administrativa do Estado e por via da responsabilidade civil. A questão que se põe é justamente a responsabilidade civil como meio de controle dos efeitos nocivos de um produto. A escala de risco do CDC fornece referenciais adequados para a prevenção de danos, mas também para a reparação. Produtos de alta nocividade, como o amianto, assim como outros citados pelo Ministro Marco Aurélio2, aparentemente afrontam o art. 10. Pergunta-se, então: por que o Estado não os proíbe? Cabe citar novamente o voto do Min. Marco Aurélio: "As escolhas regulatórias normalmente estão situadas no campo do 'subótimo', ou seja, vão implicar a aceitação de certos danos prováveis em troca de benefícios maiores"3. A regulação, ao invés da proibição, pode ser alternativa melhor. Em outras palavras, foi o que expressou a Corte Constitucional da Colômbia (Expediente 8096 - Sentencia C-830, 2010), ao decidir pela constitucionalidade de lei que, naquele país, decretou a proibição da publicidade de produtos derivados do tabaco. A Corte referiu-se ao conceito de "mercado passivo", ou seja, um produto cujo consumo deve ser desestimulado, mas não proibido, para evitar o incremento do contrabando - mal maior, porque a proibição da comercialização do tabaco não resultaria em desuso do produto e aumentaria a criminalidade. Foi também a escolha do legislador brasileiro, que invocou o uso plurissecular do tabaco e o fato de que não produz, no fumante, alterações de comportamento socialmente nocivas4. O Superior Tribunal de Justiça entende que o cigarro é um produto de periculosidade inerente, cuja nocividade é amplamente conhecida, não oferecendo, assim, legítima expectativa de segurança e não sendo considerado um produto com defeito (REsp 1.113.804-RS, 2010). O brilhante voto do Ministro Luis Felipe Salomão classifica o cigarro no art. 9°, do CDC, afirmando que vinculá-lo ao art. 10 teria como consequência a proibição da sua comercialização. O art. 10 exprime um dever ser: o produto não poderá ser colocado no mercado se o fornecedor sabe ou deveria saber da sua alta nocividade ou periculosidade. O Estado, porém, por razões de oportunidade e conveniência, poderá regular o produto ao invés de proibi-lo, como ocorre com o amianto e com o tabaco. A tolerância do Estado não pode significar, contudo, imunidade à responsabilidade do fornecedor, o que acaba ocorrendo com os fabricantes de cigarro, em face do livre arbítrio do fumante. Sem aprofundar este debate, que não é o escopo presente, a culpa concorrente (ou risco concorrente, na oportuna tese de Flávio Tartuce)5 se faz oportuna, adotada em decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Ap. Cível nº 70059502898, 2018), que se encontra em trâmite de Recurso Especial. Voltando ao julgamento da ADI 3.470, ressaltem-se mais dois aspectos relevantes: o caráter supralegal dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e a evolução dos conhecimentos científicos. Foi lembrada a Convenção 162, da Organização Internacional do Trabalho, que recomenda a revisão da legislação nacional sobre o amianto à luz do desenvolvimento técnico-científico. Conforme a Ministra Rosa Weber, "à luz do conhecimento científico acumulado sobre a extensão dos efeitos do amianto para a saúde e o meio ambiente", as medidas de controle previstas na lei federal já não se mostravam compatíveis com a ordem constitucional. A decisão, neste aspecto, chama a atenção para o caráter dinâmico da pesquisa científica, que deve imprimir igual dinamismo à jurisprudência. Comungando com o mesmo pensamento, consignou o Ministro Dias Toffoli que "[a] Lei nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização em razão da alteração no substrato fático". E revelou que, como Advogado-Geral da União, proferira parecer favorável à constitucionalidade da Lei 9.055. Mudou, todavia, de opinião, com os depoimentos de especialistas na audiência pública promovida no STF sobre o amianto. Convenceu-se de que a ideia de uso controlado da crisotila, prevalecente até então, havia sido suplantada pelo consenso em torno da natureza altamente cancerígena daquele mineral e da inviabilidade do seu uso seguro, o que o levou a concluir pela inconstitucionalidade superveniente da lei federal em questão. Na ADI 4.874-DF (2018), foi citada a Convenção Quadro de Controle do Tabaco como standard de razoabilidade para aferição da legalidade da resolução da ANVISA que proibiu a comercialização de produtos derivados do tabaco contendo aditivos. Concluindo: a avaliação dos riscos no CDC não dispensa um olhar atento para a integralidade do contexto normativo nacional, inclusive para as convenções internacionais, e para a evolução dos conhecimentos científicos. *Adalberto Pasqualotto é doutor em Direito (UFRGS). Professor de Direito do Consumidor (PUC/RS). __________ 1 Comentou Benjamin sobre produtos com "periculosidade exagerada": "(...) ao contrário dos bens com periculosidade inerente, a informação adequada aos consumidores não produz maior resultado na mitigação dos riscos. Seu potencial danoso é tamanho que o requisito da previsibilidade não consegue ser totalmente preenchido pelas informações prestadas pelos fornecedores" (BENJAMIN, Antônio. Comentários ao Código de Proteção do consumidor. Coord.: Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 52. 2 "Para o público em geral, não há indicações de que o amianto seja mais perigoso que outras substâncias igualmente conhecidas e lícitas, como o tabaco, o benzeno, o álcool, etc." (do voto do Min. Marco Aurélio na referida ADI 3.470). 3 A existência ou não de benefícios do produto é outro fator a ser ponderado. Há utilidade social em caixas d'água e em telhados, mas é questionável a mesma afirmação quanto a andadores infantis e tabaco. 4 "Quanto ao fumo, seja de produtos derivados ou não do tabaco, não se conhecem benefícios. Pelo contrário, seus malefícios físicos e provocadores de doenças mortais são hoje reconhecidos indiscutivelmente. Se não à possível, nem conveniente torná-lo ilegal, seja pela admissão plurissecular do seu uso, seja por não provocar alterações nocivas no comportamento social ou intelectual dos que o utilizam, é forçoso procurar reduzir-0lhe o emprego e advertir os usuários de seus malefícios". Da Justificação do Projeto-de-lei nº 4.556, de 1989, de autoria do Deputado Elias Murad e outros 11, que resultou na lei 9.294/1996. Disponível aqui. Acesso em 27/7/2020. 5 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil e risco: a teoria do risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Carla Carvalho A visão tradicional da responsabilidade civil do médico remonta à configuração de um erro profissional, a conhecida má práxis, com a demonstração no caso concreto dos pressupostos do dever de indenizar: ação ou omissão culposa, dano e nexo de causalidade. A defesa do profissional é eminentemente técnica, buscando-se o afastamento da responsabilidade pela alegação da inexistência de um ou alguns dos elementos. Nesse sentido, a comprovação da incidência de excludentes de responsabilidade constitui um dos principais fundamentos de defesa, com destaque para a verificação de caso fortuito ou de força maior, entendido, em consonância com o art. 393, como acontecimento ou circunstância que, sobrepondo-se às forças do agente, seja determinante da ocorrência do resultado danoso. Sendo certo que, ainda que o médico se conduza com o mais alto grau de diligência possível na realização de um procedimento ou intervenção, o corpo humano pode apresentar reações imprevisíveis e incontornáveis, a alegação de que o desfecho negativo decorreu de risco inerente do próprio procedimento tem em geral o condão de afastar a responsabilidade do profissional. Tal é o entendimento de Elias Kallas Filho, ao enunciar a exclusão de responsabilidade do médico diante da ocorrência do fato da técnica: toda intervenção médica, ainda que executada com prudência, diligência e perícia, expõe o paciente a riscos inevitáveis, decorrentes da própria técnica médica que, embora consagrada e preconizada pela comunidade científica internacional, nunca é absolutamente segura, podendo de forma ocasional provocar dano ao paciente sem que exista dever de reparação por parte do profissional ou do estabelecimento médico1. Junto ao crescimento do número de ações judiciais buscando a reparação de danos decorrentes de procedimentos médicos, contudo, assistiu-se ao reconhecimento na jurisprudência de um segundo fundamento para a responsabilização, paralelo e autônomo em relação à ideia clássica de erro médico: a negligência informacional. A responsabilidade civil por negligência informacional assenta-se no reconhecimento da autonomia como dimensão constitutiva da própria pessoa, corolário de sua própria dignidade. Com efeito, a pessoa é dotada de capacidade de autodeterminação, possuindo "o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade"2. A autonomia constitui importante princípio bioético, consubstanciado no respeito pela pessoa, seus valores e biografia, no contexto das intervenções sobre seu corpo e sua saúde. Na relação médico-paciente, se exerce primordialmente por meio do consentimento informado, entendido como aquele que se presta com liberdade e esclarecimento, em torno das circunstâncias do caso. O consentimento livre e esclarecido torna-se exigível, como condição sine qua non da realização de intervenções sobre o corpo de uma pessoa, em meados do século XX, em repulsa às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, no âmbito das experimentações nazistas. No Código de Nuremberg, o primeiro dos dez princípios estabelecidos aponta ser o consentimento voluntário do ser humano, livre de coação e fundado em conhecimento suficiente, absolutamente essencial para a sua participação em experimentos científicos3. Para além do contexto da ética da pesquisa, o consentimento passa a ser demandado como requisito para a realização de quaisquer procedimentos e tratamentos de saúde. A exigência do consentimento pós-informação reflete o questionamento de um modelo paternalista forte, de origem hipocrática, segundo o qual os profissionais médicos, dotados de domínio técnico de conhecimentos específicos e de legitimidade social, sobrepunham à vontade do paciente - que nem sequer era perquirida - sua própria concepção do que era para este melhor4. Pelo modelo clássico, a beneficência tinha primazia sobre considerações acerca da autonomia do paciente, considerando-se a vida um bem jurídico sagrado. Tal modelo cede lugar a um novo paradigma, da mútua cooperação ou participação, a partir do qual ambos os sujeitos, médico e paciente, são considerados equitativamente como partícipes autônomos da relação, dotados de direitos e deveres, com reciprocidade. Neste sentido, além dos deveres principais estabelecidos na relação, relacionados ao fazer médico e à contraprestação fornecida pelo paciente, emerge de forma importante o dever de informar como dever anexo, decorrente da boa-fé objetiva entre as partes. Assim é que o dever de informar o paciente, a fim de munir-lhe de subsídios para o consentimento, encontra amparo no ordenamento jurídico, tanto nas normas do Código Civil que impõem às partes o dever de se comportar, em todas as fases do contrato, conforme o princípio da boa-fé (art. 422), quanto nas normas do Código de Defesa do Consumidor que estabelecem o dever de prestar informações adequadas e claras sobre os produtos e serviços colocados no mercado (art. 6o, III). Ao fundamento jurídico, soma-se a exigência presente nas normas ético-profissionais, que proíbem ao médico a atuação sem o devido consentimento do paciente ou de seu representante legal, após esclarecimentos acerca do procedimento a ser realizado (art. 22, Resolução CFM 2217/2018). Nesta perspectiva é que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento pela responsabilidade civil por danos à autodeterminação do paciente, causados em virtude de por negligência informacional: O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente5. A responsabilidade por negligência informacional é independente da noção de erro médico, na medida em que os danos indenizáveis não estão relacionados a um mau resultado causado por culpa do profissional, mas decorrem de um agir que atinge a própria existência do sujeito, ao desrespeitar-lhe a sua autonomia, como componente de sua personalidade. A alegação de que o médico agiu diligentemente, e os resultados foram satisfatórios dentro das perspectivas técnicas, em nada socorre ao profissional que executou um procedimento sem conferir ao paciente uma oportunidade genuína de refletir acerca de sua vontade, munido das informações necessárias para o balanceamento e, consequente assunção, de riscos e benefícios. A beneficência, neste sentido, não se pode invocar de forma independente da percepção autônoma do sujeito, vez que não constitui uma variável independente, mas sim construída a partir dos valores individualmente sustentados por cada um. Se para determinada pessoa, por exemplo, a amputação de um membro pode parecer medida razoável e benfazeja, quando necessária para que se lhe salve a vida, para outra, pode implicar em perda insuperável, impingindo uma limitação em sua própria existência. Para além da responsabilidade do profissional com base na boa-fé objetiva, propõe-se uma retomada da própria experiência da relação médico-paciente, a fim de que se confira um significado bioético ao dever de indenizar pela privação do esclarecimento. Busca-se ir além da solução do sintoma (omissão de informações necessárias), para que se toque na etiologia da questão, que remonta à discussão sobre a superação do paradigma do paternalismo médico. De fato, a negligência informacional constitui um resquício ou sinal de não superação do paternalismo na relação. Em geral, os profissionais sonegam informações, não com a intencionalidade de ocultar a verdade de seu paciente, mas por ignorar a necessidade de seu fornecimento ou por desejo de proteger o próprio sujeito. Tais razões são evidências de um paternalismo ainda marcante: O médico desconhece a necessidade de informar, de forma completa, clara e acessível, porque se forjou numa cultura que ainda lhe atribui a detenção do monopólio do conhecimento técnico, vislumbrando-se no paciente um mero receptor de cuidados. Ele guarda para si as informações, a fim de conduzir o paciente à realização do procedimento que entende necessário, conforme suas noções técnicas do que é o bom para o mesmo. Quer poupá-lo de transtornos, superprotegê-lo do sofrimento que pode advir da percepção da realidade, sem intencionalidade ou má-fé. Ao fazê-lo, porém, acaba por tomar para si o risco do procedimento, afastando a possibilidade de alegação de caso fortuito para justificar a ocorrência de resultados danosos e afastar sua responsabilidade. A consciência dos riscos, por meio do processo de consentimento6, é essencial para que se possa atribuir ao próprio paciente a absorção dos danos produzidos no procedimento. É dizer, na perspectiva de uma ética da responsabilidade, os danos, relacionados a um resultado fortuito e indesejável de um procedimento, podem ser imputados ao médico ou ao paciente, conforme a disposição daquele em compartilhar a competência decisória com este. Apenas pela promoção da plena participação do paciente no processo decisório, com a observância do princípio bioético da autonomia, e a efetiva superação do paternalismo, o médico pode afastar sua responsabilidade pelos riscos dos procedimentos. *Carla Carvalho é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Direito pela UFMG, pesquisadora visitante da Universidade livre de Bruxelas (2013-2014), associada da Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil, e advogada. __________ 1 KALLAS Filho, Elias. O fato da técnica: excludente da responsabilidade civil do médico. Revista de direito sanitário, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 137-151, jul-out, 2013, p. 139. 2 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, v. 38: 235-274, 2010, p. 252. 3 NUREMBERG MILITARY TRIBUNALS. Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law 1949;10(2):181-182. 4 BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. Revista Médica de Minas Gerais, 2010; 20(2): 246-254. 5 BRASIL. STJ. Resp 1.540.580/DF. Rel. Min. Lázaro Guimarães. Brasília, DJ 04/09/2018. Disponível em: . Acesso em 23 jul. 2020. 6 BEAUCHAMP, Tom. L., CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2013. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Felipe Teixeira Neto Foi noticiado no informativo de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça n.º 0671, de 05 de junho de 2020, o resultado do julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.833.847/RS, proferido pela 4ª Turma, sob a relatoria da Senhora Ministra Maria Isabel Gallotti, figurando como destaque do precedente premissa segundo a qual "[o] curto espaço de tempo entre o acidente e a assinatura do acordo e o desconhecimento da integralidade dos danos podem excepcionar a regra de que a quitação plena e geral desautoriza o ajuizamento de ação para ampliar a verba indenizatória aceita e recebida"1. Ao que se infere do inteiro teor do acórdão que, por força da Súmula 7 do Colegiado, limita-se a fazer referência às premissas fáticas que serviram de base ao julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o caso envolvia acidente de trânsito causado por veículo de transporte coletivo pertencente à demandada. Na sequência disso, foi celebrado acordo entre esta e a vítima para fins de reparação dos danos na via extraprocessual, com ampla e geral quitação acerca do débito indenizatório, ao que, mesmo assim, sobreveio ação judicial desconsiderando a irretratabilidade convencionada e requerendo a complementação dos valores já pagos. Não se desconsidera não ser novidade na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de, mesmo que em situações excepcionais, desconsiderarem-se os efeitos da quitação concedida em relação à pretensão de reparação de danos, buscando-se a sua complementação por meio de ação própria. As bases sobre as quais se assentara o precedente, contudo, levam a conclusões inquietantes e suscitam a necessidade de um debate sobre o tema, especialmente considerando o contraponto que se estabelece entre o incentivo à autocomposição e a necessidade de segurança jurídica para que tal se estabeleça no âmbito das relações privadas. Têm sido riquíssimas, ao menos nas últimas décadas, as discussões envolvendo a necessidade de aprimoramento e de reforço da importância da autocomposição dos litígios privados, sendo assente na doutrina especializada que os meios consensuais de solução de conflitos constituem relevante instrumento de efetivação de uma genuína política de democratização do sistema de justiça2. Tanto que, ainda no ano de 2004, quando da firmatura do I Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, os referidos mecanismos foram identificados como uma das formas de combater a baixa eficácia das decisões judiciais proferidas em processos morosos. Tal foi reafirmado por ocasião da firmatura do II Pacto, no ano de 2009, e ratificado no III Pacto, em 2011, com a indicação expressa da importância do estímulo da resolução de conflitos por meios autocompositivos enquanto ferramenta a promover a maior pacificação social e a menor judicialização das controvérsias3, nos termos, aliás, do que foi acolhido pelo legislador quando da redação do parágrafo 3º do artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015, que prevê o estímulo aos métodos de solução de conflitos dentre as diretrizes predispostas aos atores do processo. Ocorre que, para que a autocomposição torne-se atrativa, é preciso que as partes envolvidas no litígio tenham incentivos para tanto, de modo que se torne mais vantajoso acordar do que litigar. E, além das vantagens já conhecidas, afigura-se essencial que a composição opere-se num ambiente jurídico seguro que implique em um real encerramento da controvérsia, não possibilitando discussões futuras acerca do que fora pactuado, salvo hipóteses verdadeiramente excepcionais. Do ponto de vista técnico-jurídico, não há dúvidas que o direito civil, no campo da reparação de danos, possui institutos aptos a chancelar o intento autocompositivo, atribuindo estabilidade ao ajuste alcançado pelas partes e, com isso, sepultando a possibilidade de rediscussão a respeito. Neste cenário, a transação apresenta-se como categoria jurídica útil para tal intento, viabilizando que as partes possam por fim à controvérsia indenizatória. O dispositivo que rege o tema é o artigo 840 do Código Civil que, reproduzindo integralmente a regra do artigo 1.025 do Código de 1916, dispõe que "[é] lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões recíprocas". Sem prejuízo da reestruturação sofrida pela figura em causa por força do diploma vigente, que a realocou no capítulo dos contratos em espécie e não mais dentre as modalidades de pagamento indireto, a sua essência foi mantida na íntegra. E, ao que se infere da própria letra do preceito legal, está no cerne da transação, enquanto meio autocompositivo, a realização de concessões mútuas que possibilitem por fim ao litígio, inclusive no âmbito indenizatório. Tanto que, em assim não sendo, se ambos os atores - no caso em discussão, lesante e lesado - não cedem de algum modo, sequer se pode falar em genuína transação, mas apenas em mero acordo4. Exatamente por isso é que, estando em jogo interesses patrimoniais e disponíveis e tendo por base a autocomposição concessões recíprocas, as possibilidades de revisão posterior do pactuado devem ser limitadas, sob pena de se inverter a lógica da mais valia. Dito de outro modo, se o pactuado pode, no futuro, ser revisto em qualquer hipótese, não há segurança jurídica para a transação e mais vale litigar do que compor. Parece que esta percepção foi expressamente reconhecida pelo Código Beviláqua, uma vez que o seu artigo 1.030 era categórico em afirmar - mesmo que com alguma atecnicidade - que "[a] transação produz entre as partes o efeito de coisa julgada". Mesmo sem a reprodução textual desta regra no Diploma de 2002, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça continuou a sinalizar no sentido de que "a quitação ampla, geral e irrevogável efetivada em acordo extrajudicial deve ser presumida válida e eficaz, não se autorizando o ingresso na via judicial para ampliar verbas indenizatórias anteriormente aceitas e recebidas"5. Tanto é verdade que este mesmo precedente-paradigma é citado no julgamento ora em exame, ainda que para, na sequência, excepcioná-lo. E é neste particular é que reside a crítica. Não há dúvidas de que, em sendo um negócio jurídico, o ajuste pactuado como forma de for fim a um litígio pode ser anulado por vício de vontade, permitindo-se, a partir disso, a rediscussão da controvérsia subjacente. O artigo 849 do Código Civil, nesta linha, reconhece que a transação "só" se anula - ou seja, apenas nestas situações - se demonstrada a existência de dolo, coação ou erro essencial, sequer admitindo-se a possibilidade de que tal decorra de "erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes", nos termos do parágrafo único do aludido dispositivo. Ora, ao que se vê, não obstante não mais haja a menção expressa à produção de efeitos análogos à coisa julgada (elidíveis, portanto, apenas por algo próximo à ação rescisória), o intento do regramento predisposto é que a possibilidade de rediscussão da situação que ensejou a transação seja excepcional, não se permitindo análises casuísticas para além daquelas que tenham aptidão para invalidar o negócio jurídico. Especificamente no campo da responsabilidade civil, pretende-se afirmar com isso que o arcabouço normativo sobre o qual se constitui a transação não permite um juízo de valor subsequente com vistas a verificar se a autocomposição foi um bom ou um mau negócio, mas apenas para verificar se houve ou não defeito ou vício aptos a anular o negócio jurídico. E a base para isso, como já referido, está no próprio artigo 840 do Código Civil, quando estabelece que a transação tem por objetivo findar uma controvérsia por intermédio de concessões recíprocas. Ou seja, pressupõe que, para implicar em uma reparação imediata do dano sofrido e poupar o lesado de uma longa discussão judicial sobre a extensão do dever de reparar, a parte abra mão de uma parcela daquilo que entende por devido, constituindo-se em juízo de oportunidade de um momento específico que, por isso mesmo, compromete a possibilidade de reavaliação futura. Note-se que é uma faculdade da vítima, que pode ou não transacionar; mas, em o fazendo, deve assumir as consequências da escolha, salvo se cabalmente eivado de nulidade o negócio. Tendo em conta tais substratos teóricos, o que preocupa no precedente não é propriamente a possibilidade de revisão do acordo celebrado entre lesante e lesado - porquanto esta é uma hipótese textualmente prevista em lei -, mas o fato de se afastar a excepcionalidade da revisão e se considerar como fator determinante para tanto o suposto curto espaço de tempo entre o acidente e a transação, nos termos do consignado em destaque, mesmo que tal venha a ser complementando por um alegado desconhecimento sobre a extensão dos prejuízos. Primeiro, porque a mensuração do tempo decorrido e a sua qualificação como curto ou longo é critério demasiado subjetivo para permitir a nulificação de um negócio jurídico que, por força de lei, goza de presunção de legitimidade (mesmo que iuris tantum); segundo, porque justamente o fato de a indenização ter sido alcançada à parte logo após a causação do prejuízo pode bem ser um fato deveras importante a incliná-la, naquele momento, a aceitar a transação através de concessões da sua parte, já que poderá implicar em pronta reparação e, por conseguinte, numa contemporaneidade bastante efetiva a garantir a própria reparação integral. Não se pretende, com isso, chancelar a celebração de pactos abusivos, permitindo com que o lesante valha-se de uma situação absolutamente desfavorável em que se encontra a vítima para fazer um acordo leonino. Ocorre que apenas o curto espaço de tempo entre o dano e o acordo, per se, mesmo que aliado a alegações outras relacionadas a um conhecimento parcial da realidade, não implica em causa suficiente a afastar o efeito pretendido com a transação - qual seja, o de por fim ao litígio -, salvo se estes elementos puderem subsumir-se em alguma das figuras típicas da teoria das invalidades. Na hipótese em comento, ao que se infere do precedente e considerando as restrições impostas ao conhecimento da matéria fática decorrentes da natureza do recurso especial, talvez se pudesse elucubrar a existência de uma situação que legitimasse a desconstituição do pacto e a complementação da indenização; tal sequer está em exame, uma vez que pressuporia a revisão das premissas sobre as quais se baseou o Tribunal de Apelação para a decisão do caso. Mas, para que tal fosse feito, chancelando-se a pretensão da vítima, seria necessário um esforço de subsunção deste arcabouço fático nas hipóteses de nulidade ou anulabilidade previstas no Código Civil6, mas não em argumentos casuísticos e desprovidos de um lastro normativo que lhe conferisse aptidão para invalidar a transação. O que está em causa - e aparenta merecer reforço - é que somente será criado um ambiente de segurança jurídica que favoreça a autocomposição se as possibilidades de se superar o pactuado entre as partes sejam bem conhecidas e previamente determinadas. A existência de margem interpretativa para revisões pontuais que se valham de conceitos com pouco conteúdo normativo - dentre eles, mesmo que exemplificativamente, o pequeno ou grande lapso temporal entre a causação do dano e a composição entre as partes - é um desincentivo ao ajuste, o que vem no contrafluxo da primazia que se pretende dar à autocomposição. Tal qual dito, não se trata de uma crítica ao resultado do julgamento, uma vez que talvez as condições fáticas justificassem alguma das hipóteses de invalidade da transação. O que se defende é que, quando necessário, tal seja feito com estrita observância das categorias jurídicas predispostas a este fim, tolhendo qualquer margem para casuísmos ou interpretações particularizadas que tragam insegurança jurídica e, por conseguinte, desincentivem a autocomposição. *Felipe Teixeira Neto é Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli Studi di Salerno (Itália) e Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de Lisboa (Portugal); é Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, desempenhando as funções de Coordenador do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais da referida instituição (NUCAM/MPRS). ____________ 1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.833.847/RS. 4ª Turma. Rel. Min.ª Maria Isabel Gallotti. Julgado em: 20 abr. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020.2 ALMEIDA, Gregório Assagra de; OLIVEIRA, Igor Lima Goettenauer. Mecanismos Autocompositivos no Sistema de Justiça. In: AAVV. Manual de Negociação e Mediação para membros do Ministério Público. 2ed. Brasília: CNMP, 2015, pp. 74 e ss.3 Assim estabelece a alínea (d) dos compromissos para a consecução dos objetivos estabelecidos no referido Pacto. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020.4 SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil Comentado. Doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 547.5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 815.018/RS. 2ª Seção. Rel. Min. Raul Araújo. Julgado em: 27 abr. 2016. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020. No mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 809.565/RJ. 3ª Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. Red. p/ acórdão Min.ª Nancy Andrighi. Julgado em: 22. mar. 2011; Recurso Especial n.º 1.265.890/SC. 3ª Turma. Rel. Min.ª Nancy Andrighi. Julgado em: 01 dez. 2011. Ambos disponíveis em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 20206 Alguma controvérsia na doutrina estabelece-se sobre a possibilidade de se anular a transação com base nas figuras não referidas expressamente pelo artigo 849. O entendimento majoritário, contudo, aponta no sentido de que "à transação deverá ser aplicada a teoria das nulidades tratada na Parte Geral do CC/2002"; neste sentido, TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 10ed. São Paulo: Método, 2020, p. 818. ____________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Fernanda Nunes Barbosa No próximo dia 4 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça julgará mais um caso que envolve o controverso tema da responsabilidade civil por danos causados à saúde dos consumidores por uma das maiores indústrias da sociedade capitalista: a indústria do cigarro. Trata-se do Recurso Especial nº 1.843.850, proveniente do Rio Grande do Sul, julgado pelo Tribunal de Justiça gaúcho a favor da viúva da vítima em 2018 (Apelação Cível nº 70059502898, Rel. Des. Eugênio Facchini Neto, DJ de 22/01/2019). Na ocasião, dentre os diversos fundamentos para julgar parcialmente procedente a ação ajuizada contra a ré Souza Cruz S/A, a Corte reconheceu a relevância da prova técnica produzida, uma vez que o próprio atestado de óbito do falecido (além do laudo pericial apresentado) afirmava que a causa da morte do marido da autora teria sido a doença bronco-pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) de que era portador, e que o óbito estava vinculado ao fato de ter sido ele tabagista. O tabagismo é considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como a principal causa de morte evitável no mundo. A partir do reconhecimento da importância de se adotarem medidas de controle do tabaco a fim de conter a expansão da chamada epidemia do tabagismo, foi desenvolvido, sob os auspícios da OMS, o primeiro tratado de saúde pública global: a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT). Em seu art. 19, a Convenção prevê que as Partes "considerarão a adoção de medidas legislativas ou a promoção de suas leis vigentes, para tratar da responsabilidade penal e civil, inclusive, conforme proceda, da compensação". Até o presente momento, 181 países já o assinaram e ratificaram, inclusive o Brasil. Dentre os diversos temas sociais tratados pelo Direito, a saúde talvez seja o que mais desperte dilemas de ordem econômica, política e moral. Não é novidade que uma das maiores indústrias do mundo é a indústria do cigarro. Ela movimenta uma economia de bilhões de dólares por ano, sendo maior que o PIB de diversos países (somados), como o vizinho Uruguai e a longínqua Albânia1. E isso não chega a ser um problema, já que há mais de dois séculos, com o surgimento do capitalismo industrial, as relações sociais são especialmente atravessadas pelo viés econômico2. Por outro lado, sobre o instituto da responsabilidade civil também já se disse que, muitas vezes, ele tem servido para promover uma verdadeira "justiça Robin Hood", por meio de um Poder Judiciário frequentemente mais preocupado com a distribuição de ganhos e prejuízos sociais do que com a aplicação do direito posto. No entanto, quando o tema é a saúde - direito ligado a cada um de nós e a todos3 -, questões como lucro, risco e distribuição de ônus se tornam mais sensíveis e não podem ser abordadas sob um viés estritamente econômico ou exclusivamente jurídico. É preciso que as ciências atuem: tanto a jurídica como também as da saúde. No caso que o STJ julgará em colegiado no início do próximo mês (em decisão monocrática4 de abril deste ano, o Min. Relator, Marco Aurélio Bellizze, deu ganho de causa à indústria, ao argumento de que a Corte possui entendimento no sentido de que as fabricantes de cigarros não são civilmente responsáveis pelos danos associados ao tabagismo, g.n.) um ponto, em especial, merece destaque: o fato de que, pela primeira vez em um processo cível, se tem notícia de que um atestado de óbito apontou, no caso concreto, a vinculação entre a referida doença e o fato de o falecido ter fumado por mais de 30 anos. O principal argumento utilizado para se afastar a responsabilidade civil em casos similares, a saber, a ausência de nexo causal entre o consumo do produto e o óbito, foi afastado pela ciência médica, explicitamente, nesse caso. Com efeito, no julgamento do tribunal a quo, a narrativa de ausência de nexo causal foi textualmente rejeitada para se reconhecer o que o Código Civil expressamente permite, em seu art. 945, que é a chamada culpa/fato concorrente da vítima. O nexo etiológico entre o consumo do produto e a doença que levou o consumidor a óbito foi afirmado na instância ordinária, não cabendo qualquer revisão a esse respeito na Instância Superior em razão do óbice sumular do Enunciado nº 07 STJ. Conforme bem aponta Fernando Aith5, "a doença, como todo evento relevante relacionado com a existência humana, exige uma explicação". Ocorre que essa explicação, no caso das doenças tabaco-relacionadas, tem sido dada, na narrativa da indústria e de seus defensores, excluindo importantes dados científicos, bem como ignorando as circunstâncias próprias de cada caso (vida) concreto em prol de uma narrativa única e abstrata. Exemplo disso vislumbra-se em várias decisões e textos acadêmicos, como no voto do Ministro Relator que refere o termo hábito de fumar ao invés de dependência do cigarro6, o que desqualifica, pela linguagem, tudo que já foi dito pelas ciências da saúde sobre o mecanismo de dependência desenvolvido nos consumidores de produtos de tabaco. No julgamento do tribunal de justiça gaúcho, em acórdão de mais de 80 páginas, o Desembargador Relator Eugênio Facchini Neto analisou as circunstâncias específicas do caso, destacando: "Vindo ao caso concreto, reitere-se que o atestado de óbito, bem como o laudo pericial apresentado por ocasião da produção antecipada de provas, afirmaram que o marido da autora faleceu em decorrência de DPOC e que este óbito estava vinculado ao fato de ter sido ele tabagista. A médica pneumologista que o tratou desde 1998 referiu que ele fumava uma média de 20 cigarros ao dia, dos 20 aos 54 anos (fl. 91). O laudo pericial referiu que o marido da autora era "portador de DPOC grave, que é uma associação de Enfisema Pulmonar e Bronquite Crônica, condições essas decorrentes do tabagismo em 70% a 80% dos casos" (fl. 93)." Verifica-se, assim, que ainda falta no debate da responsabilidade civil por danos à saúde tabaco-relacionados: i. uma atenção especial às circunstâncias do caso concreto; ii. um maior apoio da ciência médica no debate que envolve o estabelecimento do nexo causal, ainda que se possa reconhecê-lo, na hipótese concreta, apenas parcialmente; iii. o reconhecimento de que a saúde (e portanto também a doença) de qualquer pessoa, necessariamente irá depender de variáveis próprias do sujeito e que qualquer abordagem de responsabilidade civil nessa matéria precisará levar em conta o tema da concausa preexistente. Com efeito, alguns chamam de destino, sorte ou azar que determinadas pessoas fiquem doentes e outras não. O fato é que a herança genética de cada um também desempenha seu papel, constituindo antecedente ao próprio desencadear do nexo causal. Assim, as predisposições patológicas agravantes do resultado não afastam a responsabilidade do agente, embora possam levar a uma diminuição do quantum indenizatório. Entender de modo diverso corresponderia a assumir uma postura de culpabilização integral da própria vítima, em direção oposta ao que hoje se afirma no chamado Direito de Danos. Em tais casos, portanto, o agente deverá responder pelo resultado, independentemente de ter ou não conhecimento da concausa antecedente que o agravou. Então, pergunta-se: Por que seria diferente nos casos de responsabilidade civil por danos à saúde relacionados ao consumo do cigarro? Por fim, o fato de a comercialização de cigarros constituir atividade lícita não exime as fabricantes de responsabilidade pelos danos causados por seu produto. Pensar de forma diversa seria desconsiderar toda a evolução no terreno da responsabilidade civil desde o século XIX, quando atividades lícitas, mas potencialmente causadoras de danos, no pós-Revolução Industrial, passaram a gerar responsabilidade para seus agentes. Assim ocorreu com os empregadores de modo geral, transportadores e, mais recentemente, com os fornecedores. Além disso, o fato de a vítima ter decidido fumar, ou o suposto livre arbítrio, não foi de todo desconsiderado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tanto que o acórdão recorrido adotou a teoria da culpa concorrente e abateu, em 25%, o valor da indenização a ser paga pela fabricante. Diminuir ainda mais este percentual seria imputar toda a responsabilidade à vítima, como se nunca tivesse havido a produção e comercialização de um produto que acarreta danos à saúde dos consumidores; como se a informação acerca de tais produtos sempre tivesse sido clara, suficiente e ostensiva no Brasil; e como se não tivéssemos, no país, um sistema de responsabilidade civil que reconhece o dever de indenizar mesmo diante de atividades lícitas, em razão do chamado risco-proveito. No julgado do STJ que irá para análise da Turma no próximo mês, a narrativa da indústria mais uma vez se estabeleceu sem os três pontos antes referidos. Espera-se que o Colegiado se manifeste sobre eles de modo a enriquecer o debate e trazer novas questões para a responsabilidade civil desta indústria a partir de agora. *Fernanda Nunes Barbosa é doutora em Direito pela UERJ, mestra em Sociedade e Estado em Perspectiva de Integração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduada pela PUC-RS. É professora da graduação em Direito e do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Editora da Série Pautas em Direito, da Arquipélago Editorial. Advogada. __________ 1 Conforme apurada pesquisa que constou do voto do Des. Rel. Eugênio Facchini Neto na Apelação Cível nº 70059502898. 2 Diríamos que o problema passa a ser quando, a cada ação do Estado para promover a saúde pública e, em decorrência, limitar o consumo de um produto tão letal para quem o consome como para quem o produz, verifica-se uma ação contraposta do setor produtivo, como aponta a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Conforme relatório da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a indústria do cigarro tem interferido de forma "cada vez mais perversa" nos esforços de governos para combater a venda e o consumo de cigarros e produtos tabaco-relacionados. Disponível aqui. Acesso em 13 de outubro de 2019. 3 Também por isso, a Advocacia Geral da União, por meio da Procuradoria-Regional da União da 4ª Região, ajuizou Ação Civil Pública com o objeto de proteger "o direito fundamental à saúde pública por meio do ressarcimento dos danos, passados e presentes, causados pelo cigarro ao Sistema Único de Saúde - SUS, especificamente relacionados aos gastos incorridos pela União para o custeio do tratamento de doenças comprovadamente atribuíveis ao consumo de cigarros". TRF 4. Região. Ação Civil Pública nº 5030568-38.2019.4.04.7100. Inicial disponível aqui. Acesso em 10 de junho de 2019. 4 STJ. Recurso Especial nº 1.843.850/RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. 02/04/2020. DJe 15/04/2020. 5 AITH, Fernando Mussa Abujamra. Direito à Saúde e Democracia Sanitária. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 43. 6 Em decisão histórica, a Corte Superior da Província do Québec, Canadá, em 27/05/2015, reconheceu a responsabilidade civil da indústria do tabaco pelo dano da dependência da nicotina. O tribunal concluiu que "a dependência da nicotina é causa de responsabilidade civil dos fabricantes de cigarros". Veja-se em: PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. As lições de Quebec e os caminhos do Brasil. In: PASQUALOTTO, Adalberto de Souza; FACCHINI NETO, Eugênio; BARBOSA, Fernanda Nunes (Org.). Direito e Saúde: o caso do tabaco. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 197-242. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Wagner Mota Alves de Souza Há uma regra que atravessa os séculos e ainda desperta interesse na atualidade. Trata-se da norma legada às legislações modernas pelo direito romano que disciplina a responsabilidade decorrente de danos provocados pela queda ou lançamento de coisas. Eis a regra: "Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido (art. 938, CC). A aparente clareza do texto legal esmaece diante da multiplicidade de situações fáticas que determinam a incidência da norma. E, à medida que as dificuldades se apresentam, os contornos da causalidade e da imputação tornam-se mais nítidos. Veja-se o exemplo da queda ou do lançamento de objetos de unidades autônomas não identificadas integrantes de condomínios horizontais. Quando a autoria do dano não é identificada, um aspecto relevante do fenômeno causal fica sem resposta e o sistema de responsabilidade civil é desafiado a optar entre assimilação do dano pela vítima ou a escolha de um responsável pela reparação. O exemplo, ao tornar explícito o limite da investigação causal, coloca em evidência a noção de nexo de imputação e o relevante papel que exerce na responsabilidade civil. Parte-se da premissa que a causalidade é captada de maneira fragmentada por teorias nominalmente causais, mas essencialmente normativas, que dirigem sua atenção ao dano e não apenas deixam de investigar a dinâmica causal em toda sua amplitude como também ocultam no discurso jurídico a noção de imputação. Causalidade e imputação, contudo, são categorias distintas e complementares. Causalidade é relação; é conexão que envolve evento antecedente (ato ou fato), evento consequente (dano) e a dinâmica dessa interação. De outro lado, nexo de imputação é o fundamento ético-normativo da responsabilidade; erige-se num "fator especial" ou "elemento de qualificação"1 que justifica o dever de reparar. A autoria do dano é desvelada pelo nexo causal; o nexo de imputação tem por escopo identificar o responsável pela reparação. O dano é um termo a se relacionar (relata), um aspecto do fenômeno, mas há outros, cujo nexo causal tem a função de pôr em evidência. Sabe-se que a regra é atribuir àquele que causa o dano o dever de reparar. Porém variadas exceções legais conjuram o não causador à responsabilidade. Assim o é na responsabilidade indireta (art. 932, CC) e na responsabilidade do transportador por acidente com passageiro provocado por terceiro (art. 735, CC), por exemplo. Mas voltemos ao ponto de partida. Se a coisa sólida ou líquida foi lançada ou caiu por ação de pessoa diversa do habitante ou se dentre vários habitantes não se identifica quem agiu, temos pela frente um problema mais complexo a exigir resposta. Tal objeto poderá atingir pessoa ou coisa situados em via pública, em prédios vizinhos, na própria área comum de condomínio ou mesmo outra unidade autônoma. O lançamento de água poderia danificar móveis no apartamento inferior, um vaso poderia cair na área de estacionamento, atingindo um veículo e assim multiplicam-se os exemplos. Cabe à vítima identificar o imóvel de onde partiu o dano e seu habitante. A norma, portanto, não impõe ao lesado o dever de identificar o causador. Estariam na condição de habitante, por exemplo, o proprietário, o locatário, o sublocatário, o usufrutuário, o comodatário, enfim, qualquer possuidor direto que ocupe o prédio. Subsiste, ainda, a responsabilidade do habitante quando um visitante eventual é o autor do dano, cabendo àquele ingressar com ação regressiva contra o ofensor. Mas o problema crucial que envolve a aplicação do artigo 938 do Código Civil brasileiro diz respeito ao limite do nexo de imputação, especialmente, no caso de queda em condomínios horizontais sem a identificação da unidade na qual foi praticado o ato lesivo. A lei brasileira não estabelece qualquer critério de limitação de responsabilidade. Diferentemente, outras legislações como os Códigos Civis chileno (art. 2.328, 1ª parte) e argentino (art. 1.760) possuem regra de limitação de natureza subjetiva.2 Diante da insuficiência da regulamentação pátria, respeitáveis doutrinadores sustentaram a exclusão de responsabilidade dos habitantes de unidades autônomas situadas em posição que permite concluir pela inocorrência da queda ou lançamento (ala de apartamentos em posição oposta ao provável local onde foi praticada a ação lesiva, p. ex.). Esta mesma corrente sugere a incidência da regra de solidariedade unindo no polo passivo da ação indenizatória todos aqueles que poderiam ser potenciais causadores, ou seja, os habitantes das unidades de onde a coisa poderia ter caído ou ter sido lançada.3 A solução proposta, há décadas, por expoentes da doutrina nacional coincide, em larga medida, com a disciplina legal argentina e chilena. O problema da autoria incerta que indetermina o local de onde partiu a ação lesiva passa, então, não propriamente pela procura de um "causador" (obstáculo, por hipótese, intransponível), mas pela definição de um critério legitimador de atribuição de responsabilidade a não causadores. Assim, o problema não se exaure no campo da causalidade estrita ou puramente física, mas avança ao território da imputação. No entanto, surge uma contradição. Se a investigação causal esbarra na incerteza da autoria, poderia o critério de imputação restringir a responsabilidade aos habitantes causadores potenciais? Esta solução, ao eleger a localização física dos habitantes como critério de imputação, não estaria fixando a responsabilidade de modo aleatório? Pensamos que sim. Restringir o número de responsáveis pela utilização do critério da proximidade física com a origem do dano significa abandonar o fundamento da atribuição de responsabilidade definido pela norma e eleger um novo fundamento amparado na ideia de causalidade marcada, neste caso, pela indeterminação. O artigo 938 do CC brasileiro, ao fixar seu critério de responsabilidade, elegeu um fator de imputação: incolumidade da via pública, visando à integridade pessoal e patrimonial dos transeuntes. Ideia que deve abranger os espaços comunitários de natureza privada (áreas comuns de condomínio) e as próprias unidades autônomas prejudicadas. Qualquer critério de limitação subjetiva deveria orientar-se por este fundamento e apenas se justificaria para evitar uma atribuição arbitrária de responsabilidade. Se as razões que inspiram a limitação dos responsáveis não observarem o fator de imputação, mas um critério estritamente causal, haverá uma incongruência difícil de ser superada. Ademais, a limitação implica agravamento da posição da vítima e de vários habitantes não causadores do dano que tiveram o azar de estar no lugar errado no momento errado. Nas legislações cuja restrição tem amparo legal, parece haver um déficit de legitimidade quanto ao critério de imputação do resultado. A crítica é de lege ferenda. No Brasil, pensamos que, não identificada a autoria real, devem ser responsabilizados todos os condôminos que habitem o prédio (imóvel sobre o qual se constituiu o condomínio edilício), pois não há uma limitação subjetiva definida em lei. Tal responsabilidade não deve reger-se pela regra da solidariedade, mas pelo regime da obrigação unitária ou conjunta, desautorizando escolhas aleatórias pela vítima e firmando-se uma unidade indivisível de responsáveis. Responde perante a vítima o condomínio, que detém personalidade judiciária (art. 75, XI, do CPC), rateando-se o valor do prejuízo entre os condôminos, assegurada a ação regressiva contra o habitante da unidade autônoma de onde caiu ou foi lançada a coisa, caso seja identificado. Nesta linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e o enunciado nº 557 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.4 A fronteira que divisa a causalidade da imputação nem sempre se mostra clara. É preciso realçar seus contornos para conferir maior segurança na resolução de questões controvertidas. Além dessa que abordamos, outra, digna de nota, situa-se no campo da responsabilidade civil por atos omissivos e está submetida ao regime de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se da responsabilidade por danos provocados por presos foragidos.5 O tema tem provocado oscilações na jurisprudência e aguarda uma resposta que talvez não esteja na predileção por teorias da causalidade, mas na definição dos limites da atribuição de responsabilidade. Mas esse é um assunto cuja reflexão exige mais linhas; deixemo-lo para outra oportunidade. Vimos que o vetusto effusum et deiectum conecta-se com problemas contemporâneos e põe em evidência os limites da investigação causal e a importância da imputação no âmbito da responsabilidade civil. Ensina-nos que não há sobreposição, mas complementaridade, entre causalidade e a imputação. E mais, sinaliza-nos que temas polêmicos, como o que aguarda deliberação do STF, talvez precisem ir além da análise causal estritamente fisicista. *Wagner Mota Alves de Souza é mestre em Direito Privado e Econômico pela FDUFBA e doutorando em Direito Civil pela FDUSP. Juiz Federal. _____________ 1 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Responsabilidade Civil pelo Risco da Atividade e Nexo de Imputação da Obrigação de Indenizar: Reflexões para um Colóquio Brasil - Portugal in Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011-, p. 38-48. Organizadores: José Fernando Simão e Fernando Araújo. 2 Art. 2.328, 1ª parte: "Cosa suspendida o arrojada. Si de una parte de un edificio cae una cosa, o si ésta es arrojada, los dueños y ocupantes de dicha parte responden solidariamente por el daño que cause. Sólo se libera quien demuestre que no participó en su producción"; Art. 1.760. "Cosa suspendida o arrojada. Si de una parte de un edificio cae una cosa, o si ésta es arrojada, los dueños y ocupantes de dicha parte responden solidariamente por el daño que cause. Sólo se libera quien demuestre que no participó en su producción." 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 1984. t. LIII, p. 404; AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil: 2v. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 87, nota 836. 4 RESPONSABILIDADE CIVIL. OBJETOS LANÇADOS DA JANELA DE EDIFÍCIOS. A REPARAÇÃO DOS DANOS É RESPONSABILIDADE DO CONDOMÍNIO. A impossibilidade de identificação do exato ponto de onde parte a conduta lesiva, impõe ao condomínio arcar com a responsabilidade reparatória por danos causados à terceiros. Inteligência do art. 1.529, do Código Civil Brasileiro. Recurso não conhecido. (REsp 64.682/RJ, Rel. Ministro BUENO DE SOUZA, QUARTA TURMA, julgado em 10/11/1998, DJ 29/03/1999, p. 180); Enunciado nº 557: Nos termos do art. 938 do CC, se a coisa cair ou for lançada de condomínio edilício, não sendo possível identificar de qual unidade, responderá o condomínio, assegurado o direito de regresso. 5 Tema 362: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - DANO DECORRENTE DE CRIME PRATICADO POR PRESO FORAGIDO. Possui repercussão geral a controvérsia acerca da responsabilidade civil do Estado em face de dano decorrente de crime praticado por preso foragido, haja vista a omissão no dever de vigilância por parte do ente federativo. (RE 608880 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 03/02/2011, DJe-183 DIVULG 17-09-2013 PUBLIC 18-09-2013 EMENT VOL-02702-01 PP-00014).
Texto de autoria de Marcelo Kokke A aprovação do PL 4.162/2019 pelo Senado, no último dia 24 de junho de 2020, estabelece prognósticos inovadores e promissores quanto à implementação de novo marco legal do saneamento básico no Brasil. Parametrizado a partir da MP 868/2018, que perdeu sua validade e assim decaiu, o novo marco legal prevê mudanças de gestão, governança, financiamento e prognósticos de implementação a alterar tanto as competências da Agência Nacional de Águas quanto a sistemática de gestão de resíduos e acesso à água. Dentre diversos pontos a se destacar no diploma legal aprovado, propõe-se neste artigo destacar um em específico, relacionado ao impacto do novo marco legal nos denominados litígios hídricos, em especial, no que diz respeito à responsabilidade civil por lesão ambiental. Os litígios hídricos são caracterizados por uma dosagem de abstração de referenciais no ordenamento jurídico brasileiro, com alta medida de confusão entre lesões ecológicas e lesões econômicas derivadas do uso da água e da gestão do saneamento básico. O marco legal, ainda pendente de sanção, estabelece a consagração de uma novidade normativa no cenário brasileiro em termos de abertura para questionamento de responsabilidade civil por danos ambientais. Estes últimos normalmente são antevistos como atos de degradação ou lesão aos bens jurídicos ambientais, como situações de violação poluidora que provoque prejuízos seja ao ecossistema, seja às relações econômico-sociais afetas aos bens ambientais. Seguindo a direção de posicionamentos doutrinários1, e de ensaios normativos que semearam o tema, o marco legal abre espaço institucional para se discutir a responsabilidade civil pela perda de água na gestão hídrica a partir de critérios fixados em vias regulamentares. A perda de água na gestão hídrica, ligada diretamente ao saneamento, foi objeto de referência na decaída Medida Provisória n. 868, assim como consta em breve referência na lei 13.329/2016. Mas com o novo marco legal a perda é reformulada em novo patamar significativo. O novo tratamento legal permite identificar as situações de perda hídrica como dano ambiental, passível de reparação e de responsabilização civil. Estabelece-se solidamente um novo padrão de responsabilidade por dano ambiental que não se origina em uma situação de degradação ou poluição, mas sim em desperdício, em perda de eficiência dos recursos naturais. O Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto2, elaborado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS, e publicado em 2019, identifica que, ao distribuir água para o consumo, os sistemas de distribuição convivem com perdas em média nacional a alcançar 38,5%. Isso significa que mais de um terço da água captada e posta em distribuição no Brasil é simplesmente desperdiçada, não chega ao seu ponto de destino e se esvai sem utilização efetiva. O contraste que se revela é perceptível. De um lado, há escassez e falta de água em coletividades, acompanhada do custo de pagamento pelo consumo, de outro, tem-se níveis de ineficiência técnica e de gestão, tanto privada quanto pública, que simplesmente agravam a escassez e o custo pelos níveis de desperdício que se naturalizaram no sistema. As perdas reais de água no sistema são decorrentes, comumente, de vazamentos em adutoras, redes, ramais, conexões, reservatórios ou unidades operacionais do sistema3. Os principais indicadores na análise de perda são o IN049, correspondente ao índice de perda na distribuição, e o IN051, índice de perda por ligação. Evidentemente, os problemas da perda de água na distribuição e na gestão do consumo são de longa data. A diversidade é justamente a base normativa conferida pelo novo marco regulatório para a gestão do problema ecológico, social e econômico. Até o advento do vindouro marco regulatório, os seguintes contextos se apresentam. Há uma difusão de atuações legislativas e administrativas entre os entes federativos quanto ao tema. Municípios e Estados vertem normas próprias relacionadas ao tema da gestão hídrica e combate aos fatores de perda de água. O traçado de papéis entre as esferas dos Legislativo e do Executivo não é clara, com constantes litígios judiciais que se voltam a delimitar as respectivas esferas de atuação. Exemplificativa é a ADI Estadual n. 2111108-44.2016.8.26.0000, em que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou inconstitucional lei municipal que regulava aspectos da política hídrica relativa à perda de água. A lei foi de iniciativa do Legislativo e então contrastada em seu aspecto formal, justamente porque a matéria seria de iniciativa do Executivo. As confrontações também se passam no âmbito judicial, e envolvem os limites entre Poder Executivo e Poder Judiciário, assim como a possibilidade de o Ministério Público manejar em ação civil pública a pretensão de critérios e fixações regulamentares para reger tanto a perda de água quanto os mecanismos de seu controle. Isso pode ser observado em alguns precedentes. O Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Apelação n. 1000757-86.2016.8.26.0140, foi instado em recurso para julgar se a adoção de medidas administrativas relacionadas à perda de água é uma matéria afeta à elaboração de políticas públicas, sob atribuição, portanto, do Poder Executivo. O caso envolve mais do que a definição de autocontenção do Poder Judiciário em face das soluções potenciais para o problema. As ações judiciais que tramitam e tramitaram quanto ao tema da perda de água são marcadas por uma certa abstração quanto ao critério utilizado e bases de referência para fixação da responsabilidade ambiental. Além disso, a sistemática, ainda regente, abre espaço para atuações judiciais que são próprias da esfera administrativa. Ações judiciais passam a ser palco da fixação de planos de contenção de perda de água com critérios e progressões próprios e destituídos de sistematicidade quando se avalia o todo do modelo. Em outras palavras, é possível que haja uma pluralidade de regimes e medidas de contenção segundo cada ação judicial, sem uma base de uniformidade ou coerência. Sob o ponto de vista meritório, há ainda problemas que se desencadeiam. Não há dúvida de que o fator de perda de água na casa de 38,5% é extravagante. Mas qual seria o limite a partir do qual a perda se configura como lesiva ou inadmissível ambientalmente? O atual índice de perda de distribuição no Nordeste é de 46%, conforme aferido no Diagnóstico4. Isso significa que uma gestão que leve o índice regional em um primeiro momento para a média do índice nacional é mais pragmática e realizável do que a ideal perspectiva de zerar-se o nível de perda. Lado outro, a definição dos limites e prognósticos demandam estudos e mapeamentos de causa nas perdas segundo cada localidade. Belo Horizonte apresenta um índice de perda na distribuição de 42,9%, Porto Alegre de 29,5%, Rio de Janeiro de 29,5%, São Paulo de 35,4, Maceió de 61,2%, e Porto Velho de 77,7%5. Há razões para essas variações que precisam ser diagnosticadas com especificidade. Não é possível adotar um único critério e medida para enfrentamento do problema. Exatamente esta foi a base orientadora do novo marco regulatório e de seu planejamento executório. Indiscutivelmente, o ideal seria um nível zero de perda de água. Mas não se pode conceber o nível zero para fins de situar a responsabilidade ambiental, pois as conjunturas de realização da tutela ambiental e ajustes de eficiência são progressivos, a variar inclusive de acordo com o local ou espaço de implementação do sistema de distribuição. As avaliações remetem a um necessário crivo de admissibilidade técnica e planejamento de progressividade na realização da tutela ambiental hídrica e de saneamento propriamente dita. Este é o ponto de distinção marcante no Projeto de Lei aprovado sob o aspecto da responsabilidade ambiental por uso hídrico no marco do saneamento básico. O projeto, sob expectativa de sanção, prevê que a Agência Nacional de Águas instituirá normas de referência para regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, incluindo redução progressiva e controle da perda de água. O combate à perda de água passa a ser expressamente considerado como um princípio regente do sistema. Além disso, a previsão de progressiva queda nos níveis de perda deve estar presente nos contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico. O diploma fixa que a entidade reguladora estabelecerá limites máximos de perda na distribuição de água tratada, que poderão ser reduzidos gradualmente, conforme se verifiquem avanços tecnológicos e maiores investimentos em medidas para diminuição desse desperdício. A perda de água, para além de um problema ecológico e econômico em seu sentido estrito, ganha uma conotação de problema jurídico para fins de atribuição de responsabilidade sob balizas técnicas de progressividade. O caráter normativo e fixador dos parâmetros progressivos de desperdício permite a configuração de uma nova tendência de responsabilização civil por dano ambiental, a responsabilidade pelo desperdício ou pela ineficiência, tendo em conta parâmetros objetivos certificados pelos órgãos de gestão ambiental e hídrica. O dano não se afigura como uma degradação ou lesão propriamente dita ao ecossistema, mas sim pela não utilização nos patamares mínimos aceitáveis em termos de eficiência dos recursos hídricos. O desperdício hídrico é erigido como uma lesão ambiental, ao que a ocorrência de índices de perda superiores aos constantes em regulação administrativa implicará em responsabilidade civil do responsável, tanto para fins de compensação ambiental quanto para fins de adoção de ações de estancamento dos fatores de perda. Simultaneamente, guarnece-se o sistema jurídico e econômico de maior segurança. Afinal, não será um nível qualquer de perda de água que se configurará como violação normativa, mas sim aquele nível de perda que ultrapasse os limites tecnicamente aceitáveis e postos em balizas progressivas. Evita-se a incerteza jurídica que abre flancos para ajuizamentos e deliberações sem critérios de aferição. Simultaneamente, o marco regulatório implica em uma declaração legislativa de atribuição do órgão gestor como o apto para definir os limites e bases de política hídrica e de saneamento voltada para a contenção do desperdício e reversão dos parâmetros fáticos nacionais de ineficiência na distribuição de água. A segurança jurídica propiciará não somente concretude e objetividade, como também determinará uma situação clara de cumprimento ou de descumprimento das normas segundo os índices de aferição da perda de água em dado local e contexto de utilização. Violações aos patamares regulamentares serão caracterizadores de lesão ambiental por utilização ineficiente, com consequente atribuição de responsabilidade para reparação em face da perda de uso do recurso natural. Essa responsabilização implica efeitos tanto a pessoas jurídicas responsáveis pela gestão da distribuição e saneamento quanto a seus usuários. As metas de redução de desperdício deixam de ser apenas um indicativo de reflexão econômico-ecológica para se densificar como responsabilidade ambiental hídrica. *Marcelo Kokke é pós-doutor pela Faculdade de Santiago de Compostela(ES), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, procurador Federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito da Dom Helder Câmara e do Uni-BH, professor de pós-graduação da PUC-MG, membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC __________ 1 Vide obra relevante sobre o tema: PURVIN, Guilherme (Coord. Geral). CARDIA, Regina Helena Piccolo; SÉGUIN, Élida; SOUZA, Luciana Cordeiro de. Direito ambiental, recursos hídricos e saneamento: estudos em comemoração aos 20 anos da Política Nacional de Recursos Hídricos e aos 10 anos da Política Nacional de Saneamento. São Paulo: Letras Jurídicas, 2017. 2 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019. 3 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, p. 80. 4 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, 82. 5 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento - SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2018. Brasília: SNS/MDR, 2019, p. 93. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Hercules Alexandre da Costa Benício A Corregedoria Nacional de Justiça, no dia 26 de maio de 2020, editou o Provimento CNJ nº 100/2020, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos, regulamentando a forma pela qual tabeliães de notas brasileiros poderão, de forma remota, reconhecer a identidade e a capacidade das partes e de quantos figurem no ato. Pela nova regra administrativa, os interessados na lavratura de escrituras, procurações e testamentos públicos e outros serviços notariais, não precisarão mais se deslocar fisicamente ao Tabelionato de Notas, para subscreverem os documentos de forma autográfica. As assinaturas poderão ser colhidas por meio eletrônico, utilizando-se certificados digitais notarizados (fornecidos, gratuitamente, por tabeliães de todo o país) ou certificados digitais no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas brasileira (ICP-Brasil)1. Além de colher a assinatura por meio de certificação digital, o tabelião promoverá sessão interativa de videoconferência notarial, para reforçar a adequada identificação e a clara manifestação de vontade das partes e de intervenientes. O Provimento CNJ nº 100/2020 foi bem recebido pelos usuários dos serviços notariais e de registro por viabilizar a continuidade de serviços essenciais para o exercício da cidadania, para a circulação da propriedade, para a obtenção de crédito com garantia real, com a chancela da fé pública. Em aproximadamente um mês de vigência da norma, foram produzidos no Brasil mais de 3.500 atos assinados eletronicamente. Vale ressaltar que o referido ato normativo tem prazo de vigência duradouro, diferentemente de regras temporárias sobre atividades notariais e registrais recém-editadas pelo mesmo CNJ, originadas da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (confiram-se: Provimentos nº 91, de 22 de março de 2020; nº 93, de 26 de março de 2020; nº 94, de 28 de março de 2020; nº 95, de 1º de abril de 2020; nº 97, de 27 de abril de 2020 e nº 98, de 27 de abril de 2020). O Regulamento Brasileiro do Ato Notarial Eletrônico viabiliza o que se pode chamar de presencialidade mediada pela tecnologia. Ao prever a sessão interativa de videoconferência notarial (presidida pelo tabelião) com a adoção de tecnologia de certificação digital, viabiliza-se a adequada comprovação da autoria e da integridade dos documentos eletrônicos produzidos na confiável Plataforma e-Notariado, mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil. Nada obstante a confiabilidade dos meios tecnológicos utilizados, eventualmente, poderá haver falhas pelo prestador de serviço na identificação de pessoas, tal como - de resto - pode ocorrer em atendimentos presenciais físicos. O presente texto, a partir de situação hipotética de geração de danos em decorrência de emissão de certificado digital lastreado em documento falso, abordará aspectos da responsabilidade civil dos tabeliães pela prática de atos eletrônicos. Figuremos a seguinte cena: um suposto Cidadão C requer serviço de lavratura de procuração pública, para outorga de poderes de venda de um veículo. Para tanto, o interessado envia mensagem ao e-mail do Tabelião A, situado no município em que o requerente reside, esclarecendo que assinará eletronicamente a folha do livro. Informa, ainda, que possui certificado digital emitido pelo Tabelião B, localizado em município vizinho, no qual o outorgante possui sítio de férias, onde, recentemente, desfrutara período de isolamento social. Suponhamos que o Tabelião B, nos termos do Provimento CNJ nº 100/2020, tenha emitido, gratuitamente, o certificado digital para o suposto Cidadão C, com base em documento falso, cuja sofisticada contrafação seja aferível apenas por peritos, expertos. Diante de tais circunstâncias, o estelionatário, que obteve a identidade digital em nome do Cidadão C, poderá apresentar credenciais digitais se passando pelo pretenso indivíduo C e potencializará a ofensa ao patrimônio e, eventualmente, à honra deste, em contratos eletrônicos diversos. As questões que se buscam problematizar, nestas breves linhas, são as seguintes: caso o estelionatário consiga utilizar o certificado notarizado emitido pelo Tabelião B para outorgar procuração perante o Tabelião A, e daí advier prejuízo para o Cidadão C ou para eventual comprador do veículo, a quem será imputado o dever de ressarcir a(s) vítima(s)? Como evitar que, em caso de atribuição de certificado digital notarizado a um certo indivíduo estelionatário, o equívoco de identificação seja perpetuado pelos demais tabeliães participantes da rede de confiança constituída pela infraestrutura de Chaves Públicas mantida pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil? A responsabilidade civil de notários e registradores, por força do dispositivo contido no § 1º do art. 236 da Constituição Federal, é regulada por lei, a qual estabelece, como requisito para a configuração do dever de ressarcir, a conduta culposa ou dolosa de tabeliães, oficiais de registro ou de seus prepostos (lei 8.935/94, art. 22 com redação dada pela lei 13.286/2016). A propósito desse tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão de julgamento do dia 27 de fevereiro de 2019, apreciando o Tema 777 da repercussão geral e tendo como leading case o RE 842.846/SC, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese de que: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. De todo modo, o presente texto se circunscreverá à responsabilidade de notários, e não propriamente a do Estado por ato do tabelião. Na hipótese acima descrita, em que houve sofisticada falsificação documental, os tribunais brasileiros tendem a afastar a responsabilidade do tabelião em decorrência do rompimento do nexo de causalidade por fato exclusivo de terceiro. O tabelião não é (nem necessita ser) perito grafoscópico. O notário que toma os cuidados que lhe são exigíveis para a prática do ato não responde por falha do serviço3. Nesses termos, tanto o Tabelião B (emissor do certificado digital notarizado) quanto o A (que lavrou a procuração), referidos na situação, não seriam responsabilizados pelo evento danoso. Por outro lado, caso a falsificação seja grosseira, a negligência dos tabeliães estará configurada e lhes será imputada a responsabilidade pelos prejuízos. Mas, indaga-se, qual será a extensão do dever de ressarcir do Tabelião B, que - gratuitamente - emitiu a credencial eletrônica, viabilizando que o estelionatário se apresente como o Cidadão C em negócios eletrônicos? Por força dos arts. 186 e 927 do Código Civil, máxime nas hipóteses em que a lei determina a análise da culpa ou dolo do agente ofensor, a imputação de responsabilidade civil supõe o nexo causal, que é requisito lógico-normativo da responsabilidade civil. É lógico, porque consiste num vínculo referencial entre a conduta do agente e o resultado danoso. E é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, com influência direta na distribuição do prejuízo4. Em situação de fraude documental em serviços notariais e registrais (cfr. REsp 1.198.829/MS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 05/10/2010), o STJ já teve a oportunidade de assentar, com base no art. 403 do Código Civil e no clássico precedente exarado pelo STF (no RE 130.764, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 07.08.92), que "vigora, no direito brasileiro, o princípio da causalidade adequada ou do dano direto e imediato"5. Como exposto, havendo falsificação evidente, via de regra, responderá por perdas e danos o tabelião negligente, mesmo que tenha apenas emitido o certificado digital gratuitamente para o usuário do serviço, sem intermediar nenhum negócio jurídico específico para o titular do certificado digital. Todavia, de volta ao tratamento da nova regra administrativa do CNJ, a sistemática do Provimento nº 100/2020 prevê, para a prática de atos eletrônicos pelos tabeliães brasileiros, além da assinatura com certificado digital (fato esse que gera, nos termos do art. 10 da MP nº 2.200-2/2001, o atributo do não repúdio ao documento), a obrigatoriedade da sessão de videoconferência interativa notarial. Tal circunstância conduz a interessante situação de eventual interrupção da série causal iniciada pelo Tabelião B, em decorrência da videoconferência levada a efeito pelo Tabelião A, profissional este que teve a última oportunidade ou chance de evitar o dano. Com efeito, na sessão de videoconferência, o Tabelião A tem condição de reavaliar a identificação (por meio de documentos, dados biográficos e biométricos) da pessoa que se apresenta como o suposto Cidadão C. Assim sendo, a despeito de o Tabelião B, emissor do certificado digital notarizado, ter agido de forma negligente ao analisar documentos falsificados apresentados por estelionatário, sua responsabilidade (i) será de menor envergadura (por conduta de baixa intromissão no evento danoso), ou (ii) será eventualmente afastada, em decorrência do rompimento do nexo causal perpetrado pelo Tabelião A. O certo é que a Plataforma e-Notariado, instituída pelo Provimento CNJ nº 100/2020, administrada pelo Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, a qual constitui o único meio para a prática de atos notariais eletrônicos por tabeliães brasileiros, se apresenta à população de forma segura e em boa hora. Tal sistema estrutura uma rede de confiança formada pelos Tabelionatos de Notas do país e viabiliza a integração do acervo de identificação de clientes notariais, valendo-se de bases biométricas e biográficas das próprias serventias e de órgãos públicos, de modo a evitar danos à população e garantir autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos produzidos eletronicamente. *Hercules Alexandre da Costa Benício é doutor em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular no Cartório do 1º Ofício de Notas, Registro Civil e Protesto de Títulos do Distrito Federal e professor coordenador do curso de pós-graduação em Direito Imobiliário do IDP. __________ 1 A respeito da segurança das credenciais para identificação das pessoas em seu relacionamento com os órgãos e entidades públicos, a Medida Provisória 983, de 16 de junho de 2020, em seu art. 2º, estabelece três espécies de assinaturas eletrônicas, quais seja: i) simples - aquela que permite identificar o seu signatário; e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; ii) avançada - aquela que está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; e está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e iii) qualificada - aquela que utiliza certificado digital expedido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Pública do Brasil (ICP-Brasil). Pode-se dizer que o certificado digital notarizado viabiliza assinatura eletrônica avançada. 2 No julgamento do RE 842.846/SC, formaram-se quatro distintos posicionamentos sobre a matéria concernente à responsabilidade civil do Estado decorrente das atividades notariais e de registro. (1) A maioria dos votos acompanhou o Min. Relator Luiz Fux, no sentido de que, em face de um modelo constitucional solidarista para proteger a vítima do dano, o Estado responde direta e objetivamente, tal como indicado na tese fixada no Tema 777 da repercussão geral. (2) Por outro lado, para o Min. Edson Fachin, abrindo a divergência, expressou entendimento de que o Estado deveria responder apenas subsidiariamente, enquanto os notários e registradores são responsáveis diretos e sob o critério objeto do risco administrativo e, por isso, em interpretação conforme ao §6º do art. 37 da Constituição, entendeu inconstitucional, incidentalmente, a expressão "dolo ou culpa" contida no art. 22 da Lei 8.935/ 94, com a redação dada pela lei 13.286/2016. (3) Por seu turno, o Min. Luís Roberto Barroso, propondo evolução da jurisprudência do STF nessa matéria, votou no sentido de que a responsabilidade do Estado seria meramente subsidiária (a despeito de ser objetiva), ao passo que, à luz do que determinam o § 1º do art. 236 da Constituição e a Lei 13.286/2016, notários e registradores respondem subjetivamente por seus atos. (4) Por fim, o quarto entendimento foi expresso pelo Min. Marco Aurélio, no sentido de que o Estado responde de forma meramente subsidiária e subjetiva, enquanto tabeliães e oficiais de registro respondem de forma direta e subjetiva. 3 Cfr. TJRS, Apelação Cível nº 70055155683 (nº CNJ: 0240195-82.2013.8.21.7000), da Comarca de Porto Alegre, Décima Câmara Cível, Relator: Des. Marcelo Cezar Muller, julgada em 29/08/2013, e TJSP, Apelação Cível nº 1037992-18.2013.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Relator: Des. Ronnie Herbert Barros Soares, julgada em 20/09/2016. 4 Sobre a influência do nexo causal na distribuição do prejuízo, cfr. CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 313-344. 5 Tal entendimento não é imune a severas críticas de abalizada doutrina que, priorizando a situação da vítima, defende a imputação sem nexo de causalidade, por meio da análise da formação da circunstância danosa como elemento constitutivo da travessia da responsabilidade civil para responsabilidade por danos. A esse respeito, cfr. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba, Juruá, 2014. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Cícero Dantas Bisneto Se é certo que as espécies de danos extrapatrimoniais têm sofrido alargada expansão, em razão das numerosas transformações ocorridas na tecitura social, constitui também fato incontroverso o de que as formas de reparação destas lesões não se apresentam tão variadas e diversificadas1, prevalecendo, ainda nos dias hodiernos, o monopólio da via monetária como único modo de compensar as violações a direitos da personalidade. A prática forense tem revelado a preferência, quase que exclusiva, dos tribunais pátrios, pela utilização do estreito e uniforme caminho da pecuniarização do remédio ministrado em face de graves violações a interesses personalíssimos, em total desatenção às especificidades do direito transgredido. Não por outro motivo, avulta a compensação em dinheiro como solução única na seara da responsabilidade civil, ainda que a heterogeneidade das novas espécies de danos não patrimoniais clame por novas e variegadas formas de reparação, ante a patente incapacidade dos meios monetários de fazer frente à complexa rede de lesões à pessoa humana. Alguns fatores concorrem para a larga predominância da utilização dos meios monetários na seara dos danos extrapatrimoniais no direito brasileiro. Inicialmente, há de se mencionar a histórica vinculação da caracterização da lesão não patrimonial com a existência de sentimentos negativos e estados subjetivos do ser, tais como dor, sofrimento, angústia, amargura, vexame, tristeza e humilhação, dentre outros, de modo que a configuração desta dependeria da efetiva modificação do estado psicológico ou espiritual da pessoa. A vinculação do dano não patrimonial a fatores eminentemente subjetivos parece ter sua gênese na interpretação latina, com influências do direito canônico, do direito comum germânico, consagrando expressões como o pretium doloris e o Schmerzensgeld2. Para este segmento doutrinário e jurisprudencial, consistindo o dano extrapatrimonial em sofrimento infligido à vítima, não se apresentaria possível a sua restituição ao estado anterior à lesão, de forma que dever-se-ia, ao menos, ofertar a esta certa quantia em pecúnia, a fim de aplacar a angústia e a frustação experimentadas pelo fato lesivo, compensando-se o lesado (compensatio doloris) com a possibilidade de adquirir certos bens imateriais. Tem albergado a jurisprudência nacional, neste sentido, em verdadeira lógica do tudo ou nada, a errática conclusão de que, não sendo possível o retorno da vítima ao statu quo ante, melhor seria atribuir a esta determinada soma em dinheiro, sob pena de deixá-la ao desamparo, sem se atentar para o fato de que, em muitos casos, a recomposição parcial do bem existencial lesionado é preferível, ainda que cumulada a obrigação de fazer com a condenação de certo valor monetário. O ponto ora debatido guarda estreita conexão com a necessidade, defendida por parcela doutrinária, de se aplicar o postulado da reparação integral ou plena aos danos não patrimoniais3. A utilização do princípio da reparação integral na seara da lesões extrapatrimoniais, no mesmo sentido do acolhimento da noção subjetivista mencionada, tem ensejado o emprego de meios exclusivamente monetários na reparação de tais danos, sob a justificativa de que, não sendo possível a restauração plena do dano suportado, caberia ao magistrado fixar certa monta em dinheiro a fim de compensar o lesado pelos infortúnios sofridos. Cabe registrar ainda o movimento doutrinário no sentido de atribuir à responsabilidade civil uma miríade de funções, além do clássico desígnio reparatório. Tem-se imputado a este campo do direito civil um excesso de funções, em verdadeira esquizofrenia de fins e objetivos, afastando o estudo da responsabilidade civil de seu mais importante desiderato, o de reparar a lesão sofrida. O espraiamento das funções desempenhadas pela responsabilidade civil, especialmente a preventiva e a punitiva, tem desembocado no afunilamento dos meios reparatórios, mediante o uso exclusivo da via monetária. A utilização de remédios outros, contudo, que não a pecúnia, apresenta-se fundamental para uma mais eficiente e adequada reparação dos danos extrapatrimoniais, ofertando-se a tutela mais apropriada à concretização da proteção do direito da personalidade afrontado no caso concreto, atento o julgador às especificidades que cada interesse existencial apresenta. Constata-se, entretanto, que a jurisprudência nacional tende a encarar as formas não monetárias de reparação do dano moral de maneira casuística4, a depender de específicas previsões legislativas, não situando a reparação natural como regra geral do sistema de responsabilidade civil. Parte-se, assim, da falsa premissa de que os modos específicos de reparação, que não se identifiquem com a solução monetária, sujeitar-se-iam à necessidade de explícito acolhimento normativo, sem o qual não seria possível o emprego de expedientes não pecuniários de recomposição de bens jurídicos existenciais. Ocorre que o art. 927 do Código Civil de 2002, de larga abrangência, deixou de esmiuçar as formas de reparação do dano extrapatrimonial5. Do mesmo modo, o art. 944 da citada codificação, limita-se a prescrever que a indenização mede-se pela extensão do dano. Esta amplitude conferida ao sistema de reparação de danos no Brasil não pode ser interpretada como uma limitação imposta ao intérprete, mas ao revés, como cláusula geral que permite os mais diversificados modos de reparação da lesão extrapatrimonial. Recentemente, no direito brasileiro, algumas decisões têm albergado a possibilidade de reparação específica de danos não patrimoniais, alargando o rol de instrumentos disponibilizados ao ofendido. No Recurso Especial n. 1.771.866/DF, o Superior Tribunal de Justiça condenou o autor da obra "Operação Banqueiro: as provas secretas da Operação Satiagraha", que teria retratado o Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes de forma desabonadora, a publicar, nas próximas edições do livro indicado, a íntegra do acórdão condenatório proferido pelo TJDFT ao final de cada exemplar, com a mesma fonte e no mesmo tamanho padrão de todo o corpo da obra literária. Em outro caso emblemático, fora julgada parcialmente procedente demanda intentada pela deputada Maria do Rosário Nunes, contra Jair Messias Bolsonaro, condenando-se este à compensação por danos morais no valor de R$ 10.000,00 e a tornar pública a sentença em sua página oficial no canal YouTube, sob pena de multa diária. A reparação natural, entretanto, não está restrita às hipóteses de danos à honra ou à imagem. Em tempos de COVID-19, também na seara médica a utilização de meios não monetários pode se apresentar como forma mais adequada de reparação da lesão. Assim, em caso de enfermidade ou de deformidade estética, pode o magistrado determinar que o lesante adote todas as medidas cabíveis ao completo restabelecimento do paciente6. Pense-se, a título exemplificativo, no caso do indivíduo que, acometido de uma simples gripe ou outra enfermidade menos grave, acabe por ser infectado em determinado estabelecimento hospitalar, por falta de higienização adequada do local ou por erro médico. Nada obsta que o hospital ou a clínica, responsáveis pela deflagração do ato ilícito, sejam obrigados a providenciar o tratamento adequado ao paciente, com a sua respectiva internação em leito de UTI ou enfermaria, bem assim a disponibilizar a medicação necessária, de acordo com os preceitos médicos vigentes. Na hipótese de a vítima não possuir mais confiança nos médicos ou na instituição que perpetrou o ato ilegal, ou não dispondo esta de condições estruturais e técnicas adequadas, parece possível que o magistrado determine que a entidade médica proveja a internação do paciente em outro estabelecimento hospitalar, ao invés de simplesmente condená-la a pagar determinada soma em dinheiro. No mesmo sentido, a empresa que deixou de adotar as medidas preventivas recomendadas para a não disseminação do vírus, pode ser compelida a providenciar a internação do empregado ou prestador de serviços em hospital particular, a fim de que este receba o tratamento adequado. Assim também o particular, pessoa física, que tenha causado, de forma negligente, a transmissão da doença a terceiro. O mero ressarcimento monetário, nestes casos, pode se revelar instrumento inútil à reparação do dano, uma vez ceifada a vida da vítima ou estabelecidas lesões permanentes em sua saúde. *Cícero Dantas Bisneto é mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2018). Doutorando em Direito Civil pela USP. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Juiz Eleitoral do TRE/BA. Associado Titular do IBERC. __________ 1 Esta circunstância não restou desapercebida por René Demogue que, já em 1897, sustentava não contar a responsabilidade civil com meios tão diversificados de reparação quanto os empregados para a perpetração de ilícitos (DEMOGUE, René. Reparación civile des délits. Paris: Librairie nouvelle de droit et de jurisprudence, 1898, 44-47). 2 "Los términos 'daño moral', que designan este tipo de perjuicio extrapatrimonial en su acepción más extendida, tendrían su origen en una interpretación latina, y gracias a la influencia del Derecho canónico, de la institución del Derecho germánico antiguo 'Wergeld' o 'rescate de la sangre' o 'dinero del dolor'. Esta acepción, desde la cual nació el concepto moderno del Derecho alemán 'Schmerzensgeld', también fue utilizada y aplicada en la península itálica, como asimismo en los antiguos territorios francos" (ZAMORANO, Marcelo Barrientos. Del daño moral al daño extrapatrimonial: la superación del pretium doloris. Revista Chilena de Derecho, v. 35, n. 1, p. 85-106, 2008, p. 86). Em sentido análogo: DE CUPIS, Adriano. Il danno: teoria generale della responsabilitá civile. Milano: Giuffrè, 1946, p. 31. 3 Defendemos, ao revés, no que tange aos direitos da personalidade, a utilização do princípio da reparação adequada, voltado este a perquirir as medidas mais eficazes a reparar o bem imaterial transgredido, ciente o julgador de que o restabelecimento integral das condições anteriormente existentes não se revela possível. A este propósito, cf.: DANTAS BISNETO, Cícero. Formas não monetárias de reparação do dano moral: uma análise do dano extrapatrimonial à luz do princípio da reparação adequada. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. Olivier Moreteau, em sentido análogo, entende que o princípio da reparação integral constitui um mito, ou, no máximo, uma orientação judicial conveniente, embora muitas vezes enganosa (MORÉTEAU, Olivier. Basic questions of tort law from a French perspective. In: KOZIOL, Helmut (Ed.). Basic Questions of Tort Law from a Comparative Perspective. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015, p. 89). 4 Diferentemente, no Direito alemão, prevalece, como regra geral, sempre que possível, a reparação específica da lesão: "La pretensión de indemnización de daños se encamina em primer lugar a obtener el resarcimiento 'in natura'. Esto se deduce del § 249, inc. 1°: el deudor está obligado a 'restablecer la situación que existiría si las circunstancias que obligan a indemnizar no se hubiesen dado'. Esta no es necesariamente la misma situación que antes había existido, sino que hay que tener en cuenta el previsible desarrollo posterior de los hechos" (LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tomo I. Versão espanhola e notas de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho privado, 1958, p. 227-228). Assim também: LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadensersatz. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 5 "Por outro lado, o art. 927 do CC, ao tratar da obrigação de reparar o dano, evidentemente não afirma que esta é obrigação de pagar soma em dinheiro. Foi o processo civil, ou mais precisamente a sentença condenatória, que transformou a obrigação de reparar o dano em obrigação de pagar soma em dinheiro" (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, v. 2, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 504). 6 Em caso de erro médico, já se decidia, nos idos de 2011, que, além do pagamento em pecúnia, deveria o lesante ser compelido a realizar cirurgia plástica reparadora, com o escopo de amenizar as marcas deixadas pela deficiente prestação de serviço (TRF-5, Ap. Civ. 428094-RN (2003.84.00.008453-3, Rel. Bruno Leonardo Câmara Carrá, julg. Em 18.08.2011). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Flaviana Rampazzo Soares e Ísis Boll de Araujo Bastos I want to hold your hand.1 Um novo mundo surgiu em 2020, e o Brasil, em meados do mês de março, passou a ceder espaço ora ao isolamento, ora ao distanciamento social, que se consolidou como medida necessária ante a onda pandêmica que fora inaugurada. Acoplaram-se aos indivíduos, nesse cenário, os sentimentos de insegurança, de incerteza, de ansiedade e de medo, os quais se tornaram comuns entre muitos. Nesse período de pandemia, muitas mudanças ocorreram, em diferentes âmbitos da vida e, passados três meses, ainda vivemos um momento de grande obscuridade, conquanto tenhamos aprendido muitas coisas. Assim, é admissível a pergunta quanto ao papel da responsabilidade civil nesse contexto. Aplicando-se o trecho da música dos Beatles acima mencionado ao objeto deste texto, pode-se afirmar, figurativamente, que a responsabilidade civil quer nos dar a mão. Para onde ela nos levará e de que forma ela pode nos ajudar a passar por esse período tão peculiar? Como podemos relacionar o conhecimento das funções da responsabilidade civil com os desafios enfrentados no momento que estamos vivenciando e para o pós-pandemia? Oh, yeah, I'll tell you something I think you'll understand Podemos partir da constatação de que, embora o substantivo dano seja uma palavra de ínsita tortuosidade - que envolve uma perda vinculada a interesses de diferentes feições juridicamente tuteladas, em maior ou menor medida -, a responsabilidade civil pode se apresentar como bálsamo, como a mão estendida, para evitar, para suplantar ou para mitigar esses indesejáveis danos. Mas a isso não se limita. Essa responsabilidade, como expressão polissêmica que é, tem uma mão generosa e multifacetada, das melhores de se poder contar. É neta do Direito, filha do Direito Civil. Portanto, vem de uma família com uma nobreza de propósitos e com uma base fundante louvável. É ramo do conhecimento, é doutrina e ciência, é fundamento de postulações e de decisões, e é prática jurídica. É o que se constata, o que se avalia e o que se almeja, conforme o contexto no qual for empregada. Essa pluralidade atribui à responsabilidade civil uma grande potencialidade, a qual se expressa, como visto, de diversas formas, em especial, por suas funções. Nesse campo, a responsabilidade civil manifesta os seus méritos, por meio da sua multifuncionalidade e flexibilidade aos influxos do direito, em suas necessidades e circunstâncias. À clássica função indenizatória (nela compreendia a compensação e a reparação), agregam-se as funções precaucional, preventiva de danos, de desestímulo a comportamentos indevidos e punitiva2 quanto a condutas lesivas inaceitáveis3, a almejar a cessação do ilícito (na imputação subjetiva), a extinção do ato lesivo, a proteção de valores juridicamente albergados e o alcance da justiça e da equidade. Essas funções estão radicadas na tônica da responsabilidade civil, que é o dever de cuidado. Portanto, a responsabilidade civil contemporânea exige um repensar, para o qual o objetivo é o de se ajustar às novas exigências da sociedade4. Se a resposta ao desafio apontado, no mundo anterior a pandemia, era algo que estava no radar de grande parte daqueles que se debruçam sobre o tema, essa adequação no novo (atual) e no próximo (pós-pandemia) mundo se faz ainda mais presente e necessária, em exercício contínuo, que ensejará possíveis soluções diferenciadas no tempo. O Direito Privado, no mundo de pandemia e no de pós-pandemia, exige mudanças de comportamento dos seus atores, nos mais diversos contextos. É nesse sentido, que se reforça a necessidade de perceber e de alinhar a responsabilidade por meio da sua função preventiva, a qual se faz necessária pela visão do aspecto que é mais caro ao ser humano: a sua saúde. Embora se reconheça que a relação coletividade versus individualidade seria tema para um novo texto, é necessário vislumbrar e vivenciar a responsabilidade civil como um instrumento capaz de sustar ou de suplantar uma conduta lesiva a um ou a vários indivíduos, ou, adicionalmente, para proteger interesses juridicamente tutelados que possam ser ou que tenham sido lesados indevidamente. No mundo atual (pandemia) a nossa conduta individual, em alguma medida, costuma impactar na coletividade, e um exemplo simples é o cuidado no uso correto da máscara: quando nos protegemos individualmente, protegemos os demais da propagação do vírus, e jamais uma indenização será capaz de suprimir o dano decorrente de uma morte por Covid-19. Com isso, por exemplo, cabe ao empregador tomar as melhores medidas para evitar que o seu colaborador possa ser exposto ao vírus ou a condições adversas de trabalho; ao comerciante, de adaptar as suas instalações para evitar aglomerações ou situações de risco não razoável de contágio; ao médico, de agir da melhor forma possível para tratar o paciente. Diante das feições da doença, em especial o seu modo de contágio, conquanto não se possa falar de responsabilização individual da pessoa enferma pela contaminação de outras pessoas, se foram observados os cuidados admissíveis, como o uso de máscara, tem-se que comportamentos dolosos ou de culpa grave poderão ensejar responsabilização civil ou penal, conforme as circunstâncias concretamente consideradas, pelos danos que possam ter sido causados a um indivíduo ou a uma coletividade, por eventual exposição ou facilitação ao risco de contágio (art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor). Assim, nunca se faltou tanto em "medidas de prevenção" no âmbito do direito, tema este que já era motivo de construção teórica e prática na responsabilidade civil. Rosenvald já defendia e guiava nosso olhar para observar a prevenção para além de uma função pura e simples da responsabilidade civil, devendo ser ela entendida como princípio e como cerne da responsabilidade civil contemporânea e, nesse sentido, ela encontra-se presente em todas as demais funções da responsabilidade civil5. Neste sentido, por exemplo, vislumbra-se com maior frequência a defesa de uma função precaucional no direito ambiental e na tutela do meio ambiente. Morato Leite e Melo defendem que a "responsabilidade civil passa a se preocupar com as questões que estão por vir", não sendo necessária "a efetiva concretização do dano, bastando a exposição da sociedade aos riscos"6. A responsabilidade civil se manifesta e está presente, direta ou indiretamente, nas tutelas inibitórias postuladas na prevenção e no desestímulo a condutas indesejáveis, na análise particularizada de atos estatais vinculados a pandemia que representem desvio de finalidade, exercício desmedido de poder ou desproporcionalidade em vista das circunstâncias concretamente consideradas, para que se evitem danos ou para que os seus efeitos não se perpetuem; na tutela compensatória para tentar suplantá-los; nas astreintes, como ferramenta apta a incitar uma determinada conduta juridicamente correta e desejável. A pandemia igualmente indica a necessidade de uma atenção à potencialidade da pena civil como uma opção a ser pensada e aplicada, com maior envolvimento legislativo e com critérios técnicos a serem definidos quanto a sua incidência e os seus limites, a permitir uma implementação adequada no sistema jurídico brasileiro. Num mundo pós-pandemia, portanto, a cultura da prevenção passará a ter maior proeminência. And, please, say to me You'll let me hold your hand Now let me hold your hand I wanna hold your hand A responsabilidade civil nos estendeu a mão e nos diz que estará a postos sempre que estivermos dispostos a aceitá-la, a indicar a sua presença como ensinamento, como base e como ferramenta posta à disposição ao atendimento de fins legítimos, mas é preciso que, para alcançar esse desiderato, a comunidade jurídica saiba segurar essa mão quando e na medida do necessário e útil. Mesmo que ela nos estenda a mão, não podemos ser inertes e esperar que ela, sozinha, resolva todos os males. Se nós aceitamos dar a mão à responsabilidade civil, admitimos que fazemos parte dessa aliança, que também somos protagonistas e, por isso, devemos trilhar por caminhos virtuosos, cujo trajeto e fim nos direcione à sua evolução, com o propósito de crescimento e de desenvolvimento virtuoso tanto das pessoas individualmente consideradas, quanto da coletividade, na melhor medida possível. Essa talvez seja a principal reflexão que deve ser exercitada: enquanto atores desse mundo tão complexo, plural e desafiador, devemos nos perguntar como podemos utilizar o instituto da responsabilidade civil de maneira prospectiva, cuidando do presente, mas com o olhar para o resultado da sua aplicação sábia e com vistas a sua efetividade, no futuro. *Ísis Boll de Araujo Bastos é professora de Direito Privado na UNIFESP. Doutora, com estágio doutoral de pesquisa na Universidad de Burgos (UBU) - Espanha e mestre em Direito pela PUC/RS. Mediadora com formação e certificação internacional pelo Instituto de certificação e formação de mediadores lusófonos (ICFML) e Universidade Católica Portuguesa - Porto/Portugal. Palestrante convidada em cursos de pós-graduação lato sensu e de e formação em mediação. **Flaviana Rampazzo Soares é doutora em Direito pela PUC/RS. Mestre em direito pela mesma Universidade. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos/RS. Advogada. Professora em cursos de pós-graduação em Direito lato sensu. __________ 1 Os trechos em inglês mencionados neste texto são da clássica música I want to hold your hand, dos Beatles. A linguagem figurada é a tônica do texto. 2 Na função punitiva, a intenção é de punir alguém pela conduta praticada e que "ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalecente em determinada comunidade". FACCHINI NETO, Eugênio. Funções e modelos da responsabilidade aquiliana no novo Código Civil Revista Jurídica, n. 309, julho/2003, p. 23-32. p. 27-28. 3 A tendência da "teoria da responsabilidade civil é no sentido de ampliar, cada vez mais, a sua abrangência, a fim de possibilitar que todo e qualquer dano possa ser reparado". FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) O novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 181. 4 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 34 e 49. 5 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 69. 6 MORATO LEITE, José Rubens, MELO, Melissa Ely. As funções preventivas e precaucionais da responsabilidade civil por danos ambientais. Revista Sequência, n. 55, p. 195-218, dez./2007. Disponível aqui. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Rafael Dresch - Oh, maravilha! - dizia ele, e seus olhos luziam, a fisionomia estava iluminada por um rubor vivo.- Como há aqui seres encantadores! Como é bela a humanidade! (...) "Oh, admirável mundo novo!" - repetiu - "Oh, admirável mundo novo, que encerra criaturas tais!"Partamos em seguida1 No admirável mundo novo dos dados e da tecnologia, surgem novos fenômenos que demandam novos conceitos. Mesmo sem a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), se estabeleceu nos meios jurídicos um debate sobre o regime da responsabilidade civil adotado na novel disciplina protetiva dos dados pessoais. Alguns juristas afirmam que a responsabilidade civil nesse contexto é subjetiva, vez que atrelada à análise da culpa dos agentes de tratamento (controlador e operador) por eventuais danos causados aos titulares dos dados pessoais2. Contudo, outros entendem que a responsabilidade civil na LGPD adotou uma forma objetiva destinada à distribuição dos riscos inerentes à atividade de tratamento de dados3. A LGPD, entretanto, não adota o risco como critério de imputação da responsabilidade civil e, tampouco, a culpa pode ser compreendida como elemento adequado de imputação na LGPD. Critério novo, diverso e especial é determinado4. O art. 42 da LGPD estabelece que o agente de tratamento que, na realização do tratamento de dados pessoais, causar dano a outrem, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. Não basta, por conseguinte, o desenvolvimento da atividade de tratamento causadora de um dano para se configurar a responsabilidade civil dos agentes de tratamento, pois essa responsabilidade pode ser atribuída tão-somente quando o tratamento for considerado violador da legislação de proteção aos dados pessoais, ou seja, quando for ilícito. Frente à exigência do ilícito, também resta descartada uma responsabilidade civil objetiva centrada no risco como critério de imputação, seja qual risco for, da atividade, proveito, criado ou profissional. Qual seria, então, a forma da responsabilidade civil na LGPD? Para alcançar a resposta é preciso voltar ao primeiro passo no caminho da interpretação e analisar o enunciado normativo interpretado. O texto do artigo 42 apresenta os seguintes elementos necessários para a responsabilização civil dos agentes de tratamento: i) realização do tratamento; ii) violação à legislação de proteção de dados pessoais; iii) nexo de causalidade e; iv) dano a outrem. O art. 43 da LGPD, ainda, define que não haverá responsabilidade civil dos agentes de tratamento quando demonstrado que: i) não foi realizado o tratamento; ii) não houve ilícito ou; iii) o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros. Ademais, a fundamentação da responsabilidade civil na LGPD tem como enunciado normativo chave o do seu artigo 44 que define um dever geral de segurança aos agentes de tratamento, cuja violação geradora de danos a outrem ensejará a responsabilização civil. Nesse contexto, a violação à legislação de proteção de dados pessoais (elemento essencial para a imputação da responsabilidade civil dos agentes de tratamento) pode ocorrer através de ilícitos específicos, caracterizados pela contrariedade a deveres expressamente estabelecidos em lei para o tratamento de dados, mas também por uma forma de ilícito geral, própria desse sistema protetivo. O ilícito geral na LGPD pode ser compreendido pela falta ao dever de segurança em termos similares aos da disciplina jurídica do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para a responsabilidade civil pelo fato do serviço. No direito do consumidor o dever geral de segurança está fundado no elemento defeito, pois o produto ou serviço é considerado defeituoso e, assim, ensejador da responsabilidade civil do fornecedor, quando não oferece a segurança que legitimamente se pode esperar. Do mesmo modo, mantendo a coerência sistemática, o tratamento irregular previsto no art. 44 da LGPD ocorre quando da quebra de legítimas expectativas quanto à segurança dos processos de tratamento de dados. Poderia se falar, por conseguinte, de um defeito no tratamento de dados pessoais ou, caso se queira manter a nomenclatura da própria LGPD, de um tratamento irregular. O mais relevante é perceber que além dos ilícitos específicos, o sistema estabeleceu uma forma de ilícito geral própria do sistema de proteção de dados pessoais, fundamentada na responsabilidade civil do agente que realizar um tratamento irregular (ilícito), seja por violar algum dever específico imposto pela legislação, seja por violar o dever geral de segurança no tratamento de dados pessoais. Assim, ainda que se reconheça que a falta ao dever de segurança se aproxima da análise da culpa em sentido estrito - entendida como falta ao dever de cuidado5 - é necessário concluir que o regime de responsabilidade civil centrado no ilícito geral decorrente de um tratamento irregular define uma responsabilidade objetiva especial. A avaliação do cumprimento ao dever geral de segurança conforme o que legitimamente é possível esperar do agente na realização do tratamento dos dados pessoais, acaba por exigir uma análise objetiva que parta de padrões - standards - de conduta como critério para se avaliar objetivamente se o tratamento forneceu a segurança esperada ou foi irregular (defeituoso) pela falta ao dever de segurança. Também a análise da boa-fé objetiva, nessa linha, se mostra relevante na comparação objetiva dos padrões de segurança com as condutas de tratamento realizadas por controlador e operador. Pela existência desse dever geral de segurança imposto no art. 44 citado, as medidas de compliance, a comprovação de boas práticas e as certificações são, igualmente, elementos relevantes no âmbito da análise da responsabilidade civil na LGPD. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados terá, portanto, um papel destacado ao fixar os níveis de segurança, seja diretamente, através do poder normativo do agente regulador ou, indiretamente, através da possibilidade de delegar essa determinação dos padrões de segurança à autorregulação dos diversos setores do mercado. Frente às breves considerações acima traçadas, buscando evitar a distopia de sociedades coletivistas como a da ficção de Huxley e preservar a correlação entre autodeterminação e responsabilidade, cumpre encerrar essa breve incursão no mundo novo dos dados e da tecnologia com as seguintes conclusões: i) havendo tratamento de dados pessoais, apenas quando o tratamento for ilícito (específico ou geral pela falta na segurança) e causar dano a outrem (titular dos dados ou terceiro), surge a responsabilidade civil do agente de tratamento e; ii) a responsabilidade civil, nesses termos, não adota a forma da responsabilidade civil subjetiva centrada na culpa, nem a forma da responsabilidade civil objetiva centrada no risco, mas uma nova e especial forma de responsabilidade civil objetiva, centrada na garantia da segurança no tratamento de dados pessoais. *Rafael Dresch é mestre pela UFRGS em Direito Privado. Doutor em Direito na PUC/RS, com estágio doutoral na University of Edinburgh/UK e professor Adjunto na UFRGS. __________ 1 HUXLEY, Aldous (2001). Admirável Mundo Novo. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Ed. Globo, p. 178. 2 Vide: BODIN DE MORAES, Maria Celina. QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGPD. In: Cadernos Adenauer - Proteção de dados pessoais: privacidade versus avanço tecnológico. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2019, ano XX, n. 3, p. 113-135 e; CRUZ, Gisela Sampaio da; MEIRELES, Rose Melo Venceslau. Término do tratamento de dados. In: Lei Geral de Proteção de Dados e suas repercussões no Direito Brasileiro. FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 219-241. 3 Nesse sentido: DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel. Reflexões iniciais sobre a nova Lei Geral de Proteção de Dados. Revista de Direito do Consumidor, v. 120, nov.-dez., 2018, p. 469-483. 4 Vide análise mais detalhada por Rafael Dresch e José Faleiros no seguinte artigo: DRESCH, R. F. V.; FALEIROS JUNIOR, J. L. M. REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LEI Nº 13.709/2018). In: ROSENVALD, Nelson; WESENDONCK, Tula; DRESCH, Rafael. (Org.). RESPONSABILIDADE CIVIL NOVOS RISCOS. 1ed.Indaiatuba - SP: Editora Foco Jurídico Ltda., 2019, v. 1, p. 65-90. 5 "A culpa consiste na ligação, no nexo causal, psicofísico, entre o fato externo, contrário a direito, ou não e o sujeito. Supõe-se, como essencial a voluntas, o ter-se querido, ou o ter-se procedido sem o cuidado necessário, para que o fato não se desse". (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro, 1972. v. 53: Parte Especial. P. 48). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Caitlin Mulholland A LGPD, em seus artigos 42 a 45, estabelece as regras referentes à responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados pessoais, inaugurando um debate doutrinário a respeito da natureza da obrigação de indenizar, se subjetiva - baseada na falta a um dever de conduta imposto ao agente de tratamento - ou objetiva - fundamentada no risco da atividade desenvolvida pelos agentes. Estas normas, por sua vez, são justificadas por três princípios da LGPD, quais sejam, segurança (art. 6º, VII), prevenção (art. 6º, VIII) e responsabilização e prestação de contas (art. 6º, X). Complementa o debate, os artigos 46 e seguintes, da LGPD, que tratam da segurança de dados, governança e sanções administrativas adequadas em caso de incidentes de segurança. De acordo com Gisela Sampaio e Rose Meireles1, a LGPD adotou claramente a teoria subjetiva da responsabilidade civil, devendo haver a prova da conduta culposa do agente de tratamento na ocasião do dano, por sua vez fundamentada (i) na omissão na adoção de medidas de segurança para o tratamento adequado dos dados ("quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar,"); (ii) no descumprimento das obrigações impostas na lei ("em violação à legislação de proteção de dados pessoais" ou "quando deixar de observar a legislação"). As autoras indicam que o Capítulo VI da LGPD (artigos 46 a 54) - que trata de standards de conduta a serem seguidos pelos agentes de tratamento de dados para a segurança, sigilo, boas práticas e governança de dados - seria também o fundamento para o reconhecimento da responsabilidade subjetiva. Em complementação ao entendimento das autoras, na análise das excludentes de responsabilidade do artigo 43, da LGPD, o inciso II pareceria indicar a adoção de uma excludente tipicamente relacionada às hipóteses de responsabilidade civil subjetiva ao estatuir que só não serão responsabilizados se, ainda que exista o dano, não houver violação da legislação de proteção de dados. A violação da lei, para as autoras, seria elemento subjetivo da obrigação de indenizar e indicaria a conduta culposa do agente de tratamento de dados. Assim, não haverá obrigação de indenizar quando o agente de tratamento de dados tiver demonstrado que "(.) observou o standard esperado e, se o incidente ocorreu, não foi em razão de sua conduta culposa"2. Em resumo, sustentam as autoras que a LGPD adota a teoria subjetiva da responsabilidade civil, calcada em duas "dicas" deixadas pelo legislador: (i) no artigo 42, quando o legislador faz menção a medidas de segurança; (ii) no art. 43, II, quando o legislador estabelece excludente de ilicitude referente ao cumprimento das normas da LGPD. Em posição diversa, Maria Celina Bodin de Moraes e João Quinelato3 acreditam que a LGPD adota a chamada teoria ativa ou proativa da responsabilidade civil. Esta teoria indica a necessidade de olhar-se a responsabilidade civil de um ponto de vista positivo, sustentado pela necessidade da adoção de posturas pelos agentes de tratamento de dados que tutelem a prevenção de danos, sendo a obrigação de indenizar medida excepcional a ser tomada. De acordo com os autores, "a proteção da intimidade por vias da mera não interferência na esfera individual cede espaço à tutela positiva e proativa, isto é, que garanta ao titular o conhecimento pleno das formas de tratamento, finalidade e destino de seus dados"4. Complementam essa afirmação, indicando que os dados pessoais, por constituírem conteúdo do direito à privacidade, impõem que "a coleta e o tratamento de dados pessoais deve ser precedida de medidas rigorosas e eficazes de proteção, especialmente em relação aos dados sensíveis, núcleo duro da dignidade humana"5. Os autores sustentam que a "responsabilidade proativa" encontra-se justificada no art. 6º, X, da LGPD, que reconhece o princípio da responsabilização e prestação de contas que impõem aos agentes de tratamento de dados pessoais a "demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia dessas medidas". De outro lado, Danilo Doneda e Laura Mendes6 consideram que a atividade de tratamento de dados encerra um risco intrínseco, na medida em que há uma potencialidade danosa considerável em caso de violação desses direitos, que se caracterizam por sua natureza de direito personalíssimo e de direito fundamental. Partem os autores da constatação de que a legislação de proteção de dados tem como um dos seus principais fundamentos a diminuição de riscos de dano. Tanto assim, que a lei adota como princípio, no artigo 6, III, o da necessidade que impõe a "limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados". Estas considerações a respeito da finalidade da lei e dos princípios por ela adotados (necessidade, minimização, responsabilidade e prestação de contas, entre outros), levam os autores a concluir que o legislador optou por um regime de responsabilidade objetiva, vinculando o exercício da atividade de tratamento de dados pessoais a um risco inerente, potencialmente causador de danos a seus titulares. Analisando os princípios indicados, o princípio da prestação de contas estabelece a necessidade de atender à transparência a ser adotada pelo agente de tratamento de dados acerca dos procedimentos que são tomados para a segurança no tratamento de dados. Esta transparência deve ser considerada como um dever "ativo". Isto é, aos titulares de dados devem ser comunicadas todas as medidas de segurança que serão tomadas para evitar o dano. A transparência, por sua vez, gera a obrigação ao agente de tratamento de prestar contas, onde serão evidenciadas as medidas que estão sendo tomadas para uma atuação em conformidade com as boas práticas impostas pela lei. Uma das formas, inclusive, de avaliação destas práticas se dá pelo chamado relatório de impacto à proteção de dados pessoais, que se configura como a "documentação do controlador que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco" (art. 5, XVII, LGPD). O uso deste termo - "mecanismos de mitigação do risco" -, refere-se à capacidade do pretenso ofensor de reconhecer previamente os riscos relacionados à atividade que ele desenvolve e tomar as medidas para evitar o dano, numa antecipação que o controlador ou operador deverá considerar para evitar a obrigação de reparar, por meio da gestão dos riscos relacionados à atividade desenvolvida. Em complementação, o artigo 44, LGPD, trata da hipótese em que se reconhece que haverá tratamento irregular de dados quando o agente de tratamento (i) deixar de observar a legislação; ou (ii) não oferecer a segurança que o titular dele pode esperar (legítima expectativa). Por sua vez, estes dois fundamentos que formam o conceito do tratamento irregular de dados devem ser analisados considerando, dentre outras circunstâncias, o modo como o tratamento é realizado, o resultado e os riscos razoavelmente esperados pelo tratamento e as técnicas de tratamento de dados disponíveis à época em que este foi realizado. Complementa a redação do artigo 44, o seu parágrafo único, que estabelece que o controlador ou o operador será obrigado a indenizar os danos decorrentes da violação da segurança dos dados quando deixarem de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46, da LGPD, quais sejam, aquelas "aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito". Com base na redação do artigo 44, LGPD, questiona-se se o legislador inaugurou um regime de responsabilidade civil diverso daquele adotado no artigo 42, LGPD. Essa indagação se deve ao fato de que (i) o artigo 44, LGPD, utiliza a expressão "tratamento irregular", condicionando a hipótese de responsabilidade civil prevista em seu parágrafo único, à qualificação de irregularidade definida no artigo 46, LGPD, e (ii) o artigo 46, LGPD, encontra-se inserido no Capítulo VII, que trata da "Segurança e Boas Práticas", na Seção I, "Da Segurança e Sigilo de Dados", que se refere às medidas de segurança e boas práticas que devem ser adotadas pelo agente de tratamento para a prevenção de danos decorrentes de incidentes de segurança. Assim, enquanto o artigo 42, LGPD, impõe a obrigação de indenizar "em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais", o artigo 44 e seu parágrafo único, LGPD, determinam a obrigação de indenizar caso haja tratamento irregular de dados pessoais, identificado como sendo aquele decorrente da "violação da segurança dos dados". Parece que o legislador quis identificar nessa hipótese situações danosas que decorrem especificamente de incidentes de segurança que são, por sua vez, acontecimentos que se relacionam ao risco inerente ao desenvolvimento da atividade de tratamento de dados, como vazamentos não intencionais e invasão de sistemas e bases de dados por terceiros não autorizados. Neste sentido, esses riscos devem ser necessariamente situados como intrínsecos à atividade de tratamento de dados e, portanto, considerados, em última análise, como hipótese de fortuito interno, incapazes de afastar a obrigação dos agentes de tratamento de indenizar os danos causados pelos incidentes. Conclui-se, portanto, que apesar do uso de expressões diversas em sua redação, tanto o artigo 42, quanto o artigo 44, da LGPD, adotam o fundamento da responsabilidade civil objetiva, impondo aos agentes de tratamento a obrigação de indenizar os danos causados aos titulares de dados, afastando destes o dever de comprovar a existência de conduta culposa por parte do controlador ou operador. Fundamenta esta conclusão o fato de que a atividade desenvolvida pelo agente de tratamento é evidentemente uma atividade que impõe riscos aos direitos dos titulares de dados, que, por sua vez, são intrínsecos, inerentes à própria atividade e resultam em danos a direito fundamental. Ademais, tais danos se caracterizam por serem quantitativamente elevados e qualitativamente graves, ao atingirem direitos difusos, o que, por si só, já justificaria a adoção da responsabilidade civil objetiva, tal como no caso dos danos ambientais e dos danos causados por acidentes de consumo. *Caitlin Mulholland é doutora em Direito Civil pela UERJ e professora do Departamento de Direito da PUC-Rio __________ 1 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau, "Término do tratamento de dados", IN: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Editora RT: São Paulo, 2019, p. 231. 2 Idem, ibidem, p. 236. 3 MORAES, Maria Celina Bodin de; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGDP. IN: Cadernos Adenauer, volume 3, Ano XX, 2019. 4 Idem, ibidem, p. 118. 5 Idem, ibidem, p. 119. 6 MENDES, Laura Schertel; DONEDA, D. . Comentário à nova Lei de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), o novo paradigma da proteção de dados no Brasil. REVISTA DE DIREITO DO CONSUMIDOR, v. 120, p. 555, 2018. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Caroline Vaz No contexto de Pandemia alguns temas sensíveis relacionados aos Direitos Humanos1 assumem especial relevância. Se o Direito Humano Fundamental à Vida está no epicentro da tutela jurídica prioritária no mundo e no Brasil, também é certo que para assegurá-lo diversos outros Direitos merecem especial atenção do Estado. A Constituição Federal brasileira trouxe em seu artigo 6º, além do Direito à saúde, o Direito Fundamental Social à alimentação (com a redação dada pela EC 64/10), para que fossem criadas políticas voltadas à implementação do acesso à população vulnerável brasileira. Internacionalmente, o Direito Humano à alimentação adequada está contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19482. Sua definição foi ampliada em outros dispositivos do Direito Internacional, como o artigo 11 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comentário Geral nº 12 da ONU, e sua aplicação ainda é um desafio a ser enfrentado3. Nesse sentido, no atual momento histórico a pandemia da Covid-19 representa uma ameaça à segurança alimentar, especialmente para as comunidades mais vulneráveis do mundo, segundo relatório da ONU sobre o tema lançado neste mês de junho de 2020. Este ano, cerca de 49 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema devido à crise da Covid-19, segundo o documento, o qual lembra que muitos já vivem numa crise alimentar mesmo antes da pandemia, pois centenas de milhões de pessoas lutavam contra a fome e a desnutrição4. E o Brasil, que saiu do Mapa da Fome em 2014, agora está caminhando a passos largos para voltar", com mais de 5% da população em pobreza extrema, levando em conta anos anteriores5. A estimativa é de que cerca de 5,4 milhões de pessoas passem para a extrema pobreza por conta da pandemia. O total chegaria a quase 14,7 milhões de pessoas até o fim de 2020, ou cerca de 7% da população, segundo estudos do Banco Mundial6. Como um instrumento de enfrentamento do problema, foi publicada no dia 23 de junho de 2020 a lei Federal 14.016, a qual "dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e doação de excedentes de alimentos para o consumo humano", concretizando a possibilidade de os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, doarem os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano desde que atendidos os critérios nela expostos. Do ponto de vista político, econômico e principalmente social, a novel legislação chega em boa hora, haja vista as discrepantes realidades quanto ao desperdício de alimentos constatado especialmente em estabelecimentos comerciais, em contraposição ao número de pessoas sem acesso à alimentação adequada no que diz respeito à quantidade mínima para subsistência, conforme os dados mencionados acima. Contudo, sob o aspecto jurídico, o artigo 3º traz à lume o longo debate acerca da responsabilidade civil dos doadores, ao estabelecer: "art. 3º. O doador e o intermediário somente responderão nas esferas civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com dolo. § 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao beneficiário final. § 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao beneficiário final. § 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo intermediário ao beneficiário final"7. É cediço que no Brasil, país reconhecido mundialmente por sua nação solidária, não se teria qualquer problema de implementar, independentemente de lei, iniciativas humanitárias como essa agora normatizada. Mas foi a preocupação com a responsabilidade civil, administrativa e até mesmo penal dos doadores, que atravancou diversas intenções nesse sentido. Ou seja, o alimento e sua ingestão é indubitavelmente um fator de risco à saúde e à própria vida, o que gera complexidade quanto à análise do tema. Aliás, Segundo Rafaelli Di Giorgi, "a análise do risco na sociedade contemporânea pode ter a função de racionalizar o medo [...] o tema do risco tornou-se objeto de interesse e preocupação da opinião púbica quando o problema da ameaça ecológica permitiu a compreensão de que a sociedade produziria tecnologias que poderiam acarretar danos incontroláveis"8. Entretanto, existem duas alternativas de tratamento do risco, segundo o autor, consequência da verificação de que a segurança é um artefato em que não se pode confiar. "A primeira seria tratar o risco como uma condição existencial, o resultado de uma condenação à liberdade, que explicava a insegurança como o reflexo de caráter arriscado da existência. [...] a outra trata da hipótese da segunda modernidade, também chamada de contra-modernidade ou sociedade de risco. [...] esta sociedade começa aí onde falham pela sua incapacidade de controlar as ameaças que provêm das decisões. Tais ameaças são de natureza ecológica, tecnológica, política, e as decisões são resultado de relações que derivam da racionalidade universal"9. Por essa razão, sem aprofundar a análise científica (qualitativa e quantitativa) feita pelos experts em alimentos, compreende-se configurado o risco alimentar quando há a probabilidade de, por meio da ingestão de alimentos, ocorrer dano à vida ou à saúde do ser humano10, situação esta decorrente da insegurança acerca das condições em que o alimento se encontra para ser ingerido e as consequências ao organismo. Por isso não se pode deixar de considerar que a relação do risco com a segurança alimentar deve ser analisada cum grano salis. Como bem referiu Alves Paz em congresso nacional sobre os alimentos no Brasil, a "segurança alimentar possui diversas dimensões fundamentais, estabelecidas pela própria FAO: quantidade de alimentos suficiente; qualidade e sanidade da alimentação e garantia de acesso digno a esses alimentos"11, e a Agência de Vigilância Sanitária brasileira repercute no seu codex alimentarius referidas dimensões, divulgando como deve ser feita a avaliação do risco no que concerne aos alimentos colocados à disposição dos destinatários no país12, visando a evitar consequências adversas à saúde, respeitando o contexto nacional. Já os demais órgãos relacionados à regulação e fiscalização, Estadual e Municipal, especificam as normas federais de acordo com as peculiaridades locais. Assim surge a dicotomia: segurança alimentar do ponto de vista da quantidade suficiente (food security), mas também do ponto de vista da qualidade do alimento, (food safety). A primeira reflexão que o novo texto legal suscita é quanto aos efeitos a quem entrega um alimento que não seja seguro. Se este causa danos à saúde de alguém, ocorrendo a análise do fato sob o prisma das relações de consumo (artigos 12 e 18 da Lei nº 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), teríamos a responsabilidade civil objetiva do fornecedor (definido no artigo 3º). Mas a legislação sobre a doação de alimentos tem outro viés. A proteção do Direito Fundamental à alimentação, excluindo expressamente, embora não o precisasse fazer, a caracterização de relação consumerista (art.2º, parágrafo único). Sobre a espécie de responsabilidade civil e a sua caracterização e até mesmo eventuais excludentes, reside urgência da reflexão sobre o artigo 3º. Ao referir que os doadores somente respondem por danos causados pelos alimentos doados quando "agirem com dolo", traz à responsabilidade civil um paradoxo sistêmico, inclusive acerca da preponderância de direitos fundamentais. Partindo-se da premissa de ser o prejuízo decorrente de ilícito, superando-se a divisão da responsabilidade em contratual e extracontratual, já que decorre do dever geral de não lesar outrem (neminem laedere), bem como considerando a natureza extrapatrimonial dos danos, surgem algumas interpretações possíveis. Talvez o principal debate se dê em torno da conduta dos doadores e sua censurabilidade, grife-se, "estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos", nos termos do artigo 1º. Ou seja, quando se entregam alimentos de forma remunerada, como produto, são fornecedores e exercem atividade de risco, daí a responsabilidade civil objetiva. Contudo, quando os entregam como excedentes, de forma gratuita, o risco desaparece, sendo necessária a comprovação da culpa na sua modalidade mais extrema, o dolo, a intenção direta ou indireta de causar prejuízo aos donatários?! Pelo menos alguns aspectos, como outras espécies de culpa lato senso, poderiam ser também considerados. Por exemplo, para a caracterização da responsabilidade, a culpa grave poderia estar nessa previsão. Afinal, todo aquele que produz e comercializa um alimento assim como os intermediadores até o destinatário final devem adotar as normas técnicas nessa cadeia. Existe uma gama enorme de atos normativos estabelecidos pela ANVISA e pelos órgãos da fiscalização Sanitária e Agropecuária dos Estados e Municípios, além das práticas previstas pelas áreas voltadas à saúde, como nutrição, a química, a biologia, etc que asseguram a integridade do alimento. Se não são observadas tais regras o alimento não pode ser fornecido a consumidores, que também são vulneráveis, nos termos da lei 8.078/90, e nem entregues a donatários vulneráveis, nos termos da lei 14.016/20, pois há o risco de contaminação pela ingestão. E isso, a inobservância das regras vigentes para o setor, não configuraria por si só conduta dolosa, ou seja, intenção direta ou indireta de causar danos a terceiros. Percebe-se, igualmente, nos parágrafos 1º a 3º, do artigo 3º, a preocupação em estabelecer, ao contrário do que ocorre na maior parte das relações de consumo, uma redação que afaste a solidariedade entre eventuais colaboradores no processo até o o "beneficiário final". Ou seja, o legislador estabeleceu uma responsabilidade exclusiva e subjetiva do doador e do intermediário, salvaguardando corresponsabilidade nesse processo. Portanto, a vítima do dano, a quem se volta a responsabilidade civil, terá o ônus de, além de demonstrar a culpa do agente, identificar em que momento o alimento deixou de ser idôneo para sua ingestão?! Por outro lado, poder-se-ia abordar, ainda, o caráter da urgência da alimentação para a manutenção da vida e entender que quem entrega o alimento age sob o "manto" do "estado de necessidade de terceiro", o que afastaria a responsabilização a quem alegasse tal excludente de ilicitude quando adviesse um prejuízo à saúde do donatário? Não se pode perder de vista que evitar a lesão à saúde e à própria vida das pessoas, nessa esteira de raciocínio, incita um conjunto amplo de políticas públicas pelo Estado, sendo que a segurança alimentar, no que concerne à quantidade, não pode descuidar da qualidade do alimento. Urge, pois, a preocupação com a regulamentação da matéria de acordo com a espécie de estabelecimento ou doador (supermercados, padarias, restaurantes, fruteiras, etc), já que para a manutenção da própria sobrevivência o ser humano tem a necessidade de se alimentar diversas vezes, diariamente, e cada setor tem suas normativas próprias para que esse alimento se mantenha hígido. A preocupação com o assunto tem despertado considerável interesse por parte da biologia, sociologia, medicina, entre outros ramos do conhecimento, inclusive o Jurídico. Porém, percebe-se por vezes a disparidade das previsões normativas, outras vezes sobreposições. Daí a necessidade de legislações de forma sistematizada. A normatização por Lei Federal da doação de alimentos excedentes dos estabelecimentos é louvável diante do cenário de Pandemia em que a luta contra a fome no Brasil (e no mundo) passa a ser novamente tema de preocupação do governo e da sociedade em geral. Porém, quanto aos aspectos da responsabilidade civil e até mesmo administrativa merece maior debate e reflexão. Iria além, merece uma conscientização de quem doa e de quem recebe o alimento. Avaliar as condições deste antes de ingerir, se for possível, sobreleva-se para precaução do risco alimentar, pouco importando se o acesso se deu de forma gratuita ou onerosa, para que a cultura da doação não se dê somente em épocas de pandemia e, menos ainda, para que as legislações não gerem a falta da efetividade e eficácia pretendidas, preservando-se, acima de tudo, o direito à saúde e à vida. *Caroline Vaz é doutora em Direito pela Universidade de Zaragoza, promotora de Justiça, professora de Direito Civil da PUC/RS e da FMP. __________ 1 Para Perez-Luño, Direitos Humanos e Fundamentais não são sinônimos. Os direitos fundamentais são aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados em esfera do direito constitucional positivo de um determinado Estado, enquanto que os direitos humanos se relacionam aos documentos de direito internacional, onde se evidenciam posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, não importando sua vinculação com determinada ordem constitucional, desvinculada de tempo, aspirando validade supranacional. Partindo destes conceitos, pode-se dizer que os direitos humanos que adentram no ordenamento jurídico constitucional de um Estado pelos caminhos estabelecidos internamente, passam a integrar o rol dos direitos fundamentais deste EstadoPÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 9ª. ed. Madrid: Tecnos, 2007. 2 Vide aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020. 5 Disponível aqui. Último acesso em 24 de junho de 2020. 6 Disponível aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020. 7 DI GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculo com o futuro. Porto Alegre: Fabris, 1998. 8 DI GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculo com o futuro. Porto Alegre: Fabris, 1998. 9 VAZ, Caroline. Direito do Consumidor à Segurança Alimentar e Responsabilidade Civil. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2015. 10 Sobre o tema, vide: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976. 11 Sezifredo, Paulo Alves Paz. Secretário Executivo do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor. (PAZ, Sezifredo Alves. Palestra. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE ALIMENTOS, 2., Porto Alegre 2008. [Texto...] Disponível aqui. 12 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Higiene dos alimentos: textos básicos. Brasília: OPAS, 2006. p. 56. Disponível aqui. Último acesso em 25 junho de 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Gabriel de Freitas Melro Magadan A pandemia que estamos vivendo, e que se alastra desordenadamente em escala global, tem trazido também ao direito questões que devem ser analisadas e debatidas em múltiplas dimensões jurídicas. O tema da incidência da chamada força maior ganha relevância no contexto do debate sobre a reponsabilidade civil e suas excludentes. E traz consigo à discussão se tal evento sanitário, em sua magnitude e impacto sobre a vida e a saúde das pessoas, e de seus inevitáveis desdobramentos sociais e econômicos, constitui-se em fato extraordinário - e necessário - suficiente para afastar por si só a reponsabilidade pelos danos verificados. A questão comportará diferentes respostas de acordo com a situação específica envolvida, nas variadas esferas das relações humanas, envolvendo o direito público e o privado, o poder estatal e os cidadãos; desde o âmbito das interações pessoais às incontáveis transações comerciais. A hipótese que surge de modo evidente é a que indaga quanto à natureza jurídica de um fato estranho ao ordinário dos acontecimentos. Ao fato que se interpõe constituindo-se obstáculo intransponível aos sujeitos de um vínculo previamente estabelecido (contratual) ou em razão do cometimento de um ilícito civil (extracontratual). A discussão leva ao enfrentamento do problema que em nosso ordenamento vem expresso de forma conjunta e indistinta nas locuções caso fortuito ou força maior, ficando reservada à doutrina, e, eventualmente, à jurisprudência, a distinção. O entendimento não é uníssono, ora caminha para a discriminação de fatos, entre os que decorrem da ação humana (caso fortuito) ou da ação da natureza (força maior); ora, ainda, na apuração de requisito objetivo (externalidade, inevitabilidade) ou subjetivo (ausência de culpa, cautela e previsibilidade). Na prática, ambas conduzem ao mesmo resultado que é a exoneração a responsabilidade. Entre nós, Agostinho Alvim, por exemplo, filiando-se à corrente francesa liderada por Colin et Capitant, entendeu que a diferença se daria em face do fundamento da responsabilidade (se baseada na culpa ou no risco)1. No caso fortuito, a impossibilidade de cumprimento de uma obrigação seria relativa (impossível para o sujeito envolvido) e na força maior a impossibilidade é absoluta, ou seja, é impossível para qualquer pessoa. A proposição é admitida na jurisprudência pátria, destacando as hipóteses do fortuito interno e externo. Na responsabilidade fundada na culpa bastaria o caso fortuito para exonerar-se; no risco, não haveria a exoneração. No fortuito interno persiste o nexo de causalidade verificável no risco envolvido na atividade do agente, caso do serviço de transporte, bancário, cujo alargamento do instituto se tem feito por força da jurisprudência, abarcando casos que seriam previsíveis e esperados no interno de suas práticas econômicas. Somente a força maior, também denominado fortuito externo, seria passível de exoneração. Nesses termos, apenas o acontecimento tido por "irresistível", "imprevisível" e "exterior", é que admitiria exclusão da reponsabilidade. Resta a dúvida se a imprevisibilidade poderia também constituir um requisito para a escusa da obrigação indenizatória. A doutrina não é unânime. Caio Mario, por exemplo, defendia que não o era, afirmando que mesmo o evento previsível adviria com "força indomável e irresistível", e que a imprevisibilidade deveria ser considerada quando determina a inevitabilidade. Apontava a respeito da diversidade de autores para os quais somente haveria exclusão da responsabilidade no "fato absolutamente imprevisível", que se distinguiria do fato "normalmente imprevisível", o que "importaria na apuração em cada caso de saber quando é absoluta e quando é normal", recaindo, na sua visão, ao "requisito da inevitabilidade". Os acontecimentos de caso fortuito ou força maior constituiriam excludentes de responsabilidade quando demonstrado que do fato decorressem consequências que não pudessem ser evitadas pelo agente, de forma necessária2. Os fatos iniciados ou agravados pelo agente, nessa lógica, não se excluem, vindo ele a responder integralmente. A vis maior ou força maior remonta à sua origem ao direito romano e tem seu posterior desenvolvimento teórico nos sistemas romano-germânicos, especialmente durante o processo de codificação3. A proposição de force majeure associada ao cas fortuit, de forma sinonímia, era já prevista no Code Civil francês de 1804, servindo de referência a diferentes legislações, inclusive a nossa, no artigo 393 do Código Civil. É destacada como fato necessário, que foge ao controle e à vontade das partes, de modo inevitável e irresistível. Os prejuízos verificados decorrem de uma causa estranha (cause étrangère) aos sujeitos envolvidos, dado que por força extrínseca impede o cumprimento de uma obrigação contratual ou rompe o nexo de causalidade na responsabilidade pelo ato ilícito. O evento denominado por força maior pode decorrer de um fato da natureza, uma catástrofe ambiental, um terremoto, um tsunami, ou uma pandemia, ou mesmo de uma ação humana externa4. É importante ter presente que determinada situação como a de um surto epidêmico pode se revestir de características que venham a afastar responsabilidade, mas haverá também em algum momento que se considerar a existência de um "novo normal", que se dá no curso da pandemia, e no qual as medidas de contingenciamento, cuidado e precaução, tornam-se imprescindíveis. Em tal cenário a simples alegação de inevitabilidade pode não ser mais um argumento suficiente a eximir de responsabilidade. O governo brasileiro recentemente expediu uma medida provisória (MP 966 de 14 de maio de 2020) tentando proteger o agente público de responsabilidade pelos seus atos. Debate-se acerca da sua eventual inconstitucionalidade. A tentativa de disciplinar regras de inopino, ainda que calcada em boas intenções, pode fortalecer o caos e a insegurança jurídica. Não se pode esquecer que existem mecanismos na própria legislação que permitem ao julgador a avaliação do caso concreto e a eventual exoneração de responsabilidade, diante inclusive de situações extremas como no caso de necessidade. Veja-se o cruel dilema que se teve notícia na Itália onde médicos tiveram que escolher entre seus pacientes os que deveriam sobrevier. Decisão que está entre os males mais perversos das consequências de uma pandemia, que afeta não só o doente, mas o sistema de saúde como um todo. Os dissensos, ora ideológicos, ora com fundamento científico, sujeito às falsificações, são maiores que os consensos. A ausência de certeza nesse contexto deve também contribuir para uma maior dificuldade na análise dos casos concretos sob a ótica da responsabilidade civil e suas consequências indenizatórias. O surto global da doença que carrega o vírus, em seu potencial de contaminação, é inédita à atual geração. A ocorrência de surtos epidêmicos, no entanto, e o seu fenômeno e transitoriedade são conhecidos da ciência, e desde 1917, na então chamada gripe espanhola, não alcançava os índices de disseminação e impacto social e econômico como agora. E seu prolongamento talvez sequer encontre parâmetros precedentes. No âmbito da responsabilidade estatal, pode-se até mesmo questionar se a pandemia em si é um evento absolutamente imprevisível, e se nesse caso poderiam ser evitados os seus efeitos. Em obra clássica no direito brasileiro, de 1937, Caso fortuito e teoria da imprevisão, Arnoldo Medeiros já destacava que a noção de caso fortuito e força maior pode variar conforme as condições de fato em que se verifique o acontecimento em consideração ao progresso da ciência e a capacidade de previdência humana5. O que traz a indagação a respeito da situação que se enfrenta com a COVID-19. A possibilidade epidêmica, na gravidade enfrentada não era estranha à ciência, vários são os indicativos apontados por extensa produção de pesquisa ao longo dos anos. A última epidemia em escala global, como se disse, ocorreu há cem anos, e estudos científicos de virologia e infectologia ao longo do tempo apontavam que o fato poderia se repetir. A dúvida era em que momento. O evento estava na ordem dos acontecimentos prováveis, e aparentemente ignorados pelos agentes públicos responsáveis por políticas de prevenção, a fim de evitar ou diminuir o impacto de consequências desastrosas. A respeito da exoneração da responsabilidade, no que diz respeito à força maior, será fundamental a avaliação concreta das circunstâncias e a observação dos fatores que concorreram de forma preponderante para resultados tidos por lesivos. A existência de uma situação extraordinária, compondo-se de fato necessário, que impede o cumprimento de uma obrigação ou que interrompe o nexo causal e afasta a conduta do sujeito frente ao dano. A mera dificuldade não pode servir ao oportunismo da escusa. Há que se separar também os momentos, anterior e posterior ao início da pandemia, e identificar as condições objetivas de cada caso. Outro fator relevante é a verificação da possibilidade de interação entre múltiplas causas, e do chamado fenômeno concausalidades ou mesmo da concorrência entre causas, nas quais diferentes cadeias causais podem agir, contribuindo ou se interpondo na produção do resultado danoso, tornando a individualização dessas variáveis um aspecto importante na imputação de responsabilidade. São, por certo, algumas indagações que se põem aqui de modo propositivo ao debate que se fará presente e que terá lugar na controvérsia a respeito desse insidioso e relevante tema. *Gabriel de Freitas Melro Magadan é doutor em Direito Civil pela UFRGS. Mestre em Direito Romano e da Unificação do Direito pela Università di Roma Tor Vergata'. Advogado e professor no curso de pós-graduação em Responsabilidade Civil na PUC/RS. __________ 1 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 315. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, 12ª ed., atualizador Gustavo Tepedino, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2018, p. 399. 3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1966. t. 23, § 2793, p. 77 4 AGUIAR DIAS, José de. Da reponsabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, XI edição, 2016, p. 935 e ss. 5 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2ª ed., 1943, p. 147. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Bruno Miragem A pandemia do coronavírus deflagrou uma série de reflexões sobre seus efeitos em diferentes áreas do direito, com especial atenção, no direito privado, à impossibilidade temporária ou definitiva de cumprimento sem culpa do devedor. Neste cenário, se evidencia a invocação do artigo 393 do Código Civil, eximindo o devedor de responsabilidade pelo inadimplemento em razão de caso fortuito ou de força maior, ainda que não sem a preocupação de demonstrar a relação de causalidade entre o advento da pandemia e a impossibilidade de cumprimento. O exame mais atento das situações decorrentes do reconhecimento da pandemia, todavia, identifica que as causas de impossibilidade de cumprimento pelo devedor, no mais das vezes, não se atribuem ao fato da pandemia em si, mas às medidas de polícia administrativa adotadas pelo Estado para seu enfrentamento. Estas incluem, dentre outras, a restrição de atividades econômicas e sociais, visando reduzir a circulação de pessoas - o que, reconhecidamente, é um fator de risco para o agravamento do contágio pelo vírus e consequente pressão à capacidade de atendimento do sistema de saúde. Tais restrições vem tomando a forma de decretos editados no âmbito de Estados e Municípios, proibindo ou limitando o funcionamento de estabelecimentos empresariais, a prestação de serviços, as atividades associativas, dentre outras medidas. Deste modo, será o exercício do poder de polícia pela Administração a causa direta da impossibilidade de cumprimento dos contratos, não a pandemia em si. Tais circunstâncias renovam o interesse no exame da noção de fato do príncipe como fundamento para o afastamento da responsabilidade do devedor pelo inadimplemento, quando for ele sua causa. O fato do príncipe é noção de larga tradição, especialmente no direito francês, onde já estava presente no direito costumeiro como causa que afastava a responsabilidade do devedor pelo inadimplemento em contratos como a locatio conductio de matriz romana, espécie unitária abrangente da locação e prestação de serviços1. Em seguida, será conceito incorporado ao direito administrativo, especialmente na disciplina dos contratos administrativos, e das hipóteses que autorizam sua modificação ou resolução, no âmbito dos poderes exorbitantes da Administração2. A recepção da teoria do fato do príncipe pelo direito administrativo brasileiro não ignorou o espectro mais amplo de aplicação da teoria, tanto como causa da perturbação das prestações originais dos contratos administrativos, quanto da própria responsabilidade da Administração por atos lícitos. Daí, inclusive, a distinção proposta pela doutrina nacional entre os fatos da administração com incidência direta e específica sobre o contrato administrativo, e o fato do príncipe propriamente dito, que é ato geral que pode repercutir, ainda que indiretamente, sobre ele - caso da proibição ou restrição de atividades econômicas3. É previsto pela legislação brasileira sobre contratos administrativos (art. 65, II, "d", da lei 8.666/1993), e fundamenta a regra do art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, que imputa o dever de indenizar á autoridade cujo ato impor paralisação temporária ou definitiva do trabalho, impossibilitando a continuação da atividade4. No âmbito da responsabilidade civil, há força maior quando certo dano é causado por ordem de autoridade legítima, o que é fato que justifica o dano5. Eis o fato do príncipe, que no âmbito dos negócios jurídicos privados, ao tornar impossível ou perturbar o adimplemento obrigacional, justifica a não-responsabilização do devedor6. Algumas questões, contudo, merecem atenção em relação à aplicação da teoria do fato do príncipe nos negócios jurídicos privados: (a) quais os pressupostos do ato do Estado e sua relação com a impossibilidade de adimplemento pelo devedor? (b) há situações em que, havendo fato do príncipe que torne impossível ou prejudique o adimplemento, responde o Estado pelos danos causados ao credor? Pressupostos do ato estatal que se caracterize como fato do príncipe. O fato do príncipe se caracteriza como ato estatal, característico de uma decisão de autoridade, que repercute em uma relação jurídica existente dando causa a um dano ou prejudicando o curso normal de seus efeitos. É discutível se o ato estatal deve ou não ser dotado de legitimidade, ou se mesmo o ato ilegítimo pode revestir-se desta qualidade. Isso porque, presumida a legitimidade dos atos da Administração, desde logo produzem efeitos na realidade da vida. Tais efeitos serão rescindidos na hipótese de posterior invalidação do ato, como ocorre, por exemplo, naqueles praticados em abuso ou desvio de poder. O mesmo se diga em relação a atos normativos cuja inconstitucionalidade seja posteriormente declarada. Imagine-se, por exemplo, a violação à garantia fundamental de irretroatividade da lei (art. 5º, XXXVI, da Constituição: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"). Desde quando editados os atos, produzem efeitos até que sejam impugnados, e serão justamente tais efeitos que caracterizam a intervenção na relação jurídica preexistente, havida entre particulares ou com o próprio Estado. A impossibilidade de cumprir pode se dar, na realidade da vida, em decorrência de um ato ilegal, ou de uma lei inconstitucional, o que, sem prejuízo de eventual responsabilização posterior da autoridade do qual emana, poderá justificar desde logo o inadimplemento sem culpa do devedor. Outro aspecto que se discute em relação ao fato do príncipe é sua proximidade conceitual em relação à teoria da imprevisão. Será exigível que o fato do príncipe imprevisível ao devedor, de modo que surpreendido por ele, não possa resistir ou evitar? Trata-se de aproximação que se fez, sobretudo, pela aplicação da teoria em relação aos contratos administrativos, nos quais o fundamento para revisão ou modificação das cláusulas contratuais, para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, associa "fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis" ou ainda "álea econômica extraordinária e extracontratual" (art. 65, II, "d", da lei 8.666/1993). Embora tenha merecido algum apoio na jurisprudência7, é de rigor notar, considerando que o fato do príncipe se compreende no conceito da força maior8, que a imprevisibilidade não constitui seu elemento característico. Na mesma linha dos elementos característicos previstos no parágrafo único do art. 393 do Código Civil, também o fato do príncipe se traduz em fato necessário, cujos efeitos não são possíveis evitar ou impedir. O que o caracteriza, portanto, é a inevitabilidade, que resulta não da previsibilidade ou não9, mas do fato de emanar do Estado, dotado de cogência (ius imperii), e portanto irresistível aos particulares. Por fim, anote-se que a inevitabilidade se justapõe à própria delimitação do nexo de causalidade. Será fato do príncipe o ato do Estado inevitável, definido como a causa determinante para o dano, ou para o inadimplemento do contrato. Não basta que apenas torne mais grave a posição do devedor, ou mais custosa a prestação dentro do que seja álea ordinária do negócio jurídico celebrado entre os particulares. Contida na noção de força maior, será apenas o fato que impede (torna impossível) o cumprimento, admitindo-se cogitar, sob certas circunstâncias, a responsabilidade do órgão que expediu o ato de autoridade10. Pandemia, fato do príncipe e responsabilidade do Estado Sendo o fato do príncipe causa do inadimplemento do negócio jurídico, causando dano ao credor, exonera-se da responsabilidade o devedor. Contudo, sendo o ato estatal a causa do dano, em que condições passa a responder o Estado frente ao credor prejudicado? Tratando-se o ato estatal decorrente do exercício regular de competência legislativa ou regulamentar do Estado, não se cogita de responsabilização, uma vez que atua como conformador do próprio Direito. Todavia, havendo o exercício de poder normativo ou de atos executivos contra a lei, ou do poder de legislar contra a Constituição, há de se reconhecer a responsabilidade do Estado pelos danos que daí decorrerem diretamente11. O ato do Estado, contudo, deve respeitar a proporcionalidade, que "proíbe a adoção, para um fim concreto, de uma medida idônea e necessária, mas cujos numerosos prejuízos não serão proporcionais ao êxito procurado e alcançável"12. A licitude e legitimidade da ação estatal resulta da realização do interesse público que a legitima, em detrimento imediato do patrimônio do particular, que por isso fará jus à reparação. Trata-se da responsabilidade pelo sacrifício, assim entendido o dano produzido pelo Estado no exercício de seus poderes legalmente delimitados, e que movido pelo interesse público impõe uma diminuição do patrimônio do lesado13. No caso das medidas de polícia adotadas para combate à pandemia, os atos do Estado expressam resultam de seu dever constitucional e legal de impedir ato danoso à coletividade, mediante exercício de competências constitucionais relativas à saúde (arts. 23, II e 196 da Constituição), em situação regularmente reconhecida como emergência de saúde pública. Esta situação autoriza a adoção das respectivas medidas restritivas na proteção da coletividade (art. 1º da lei 13.979/2020), que poderão revestir-se de fato do príncipe para excluir a responsabilidade do devedor nas obrigações cuja possibilidade de adimplemento seja atingida por eles. Mais uma vez recorrendo ao direito administrativo, recorde-se a justificação ordinária da atuação exorbitante do Estado fundada na teoria das circunstâncias excepcionais, desenvolvida no princípio do século passado para enfrentamento das situações decorrentes da I Guerra Mundial14. Registre-se que os esforços de contenção e retardamento dos efeitos da pandemia no Brasil - a exemplo de outros países - vem sendo adotados, dentre outras razões, pela incapacidade do sistema de saúde para atendimento simultâneo a um número elevado de casos, em especial, no caso de manifestações agudas da doença. Deste modo, conforme já tivemos oportunidade de mencionar15, não responde, o Estado, pelos danos causados por estas medidas excepcionais, a não ser quando demonstrado que em sua aplicação, houve, desvio de finalidade ou excesso de poder, ou mesmo quando se verifiquem desproporcionais em situações concretas, em vista da finalidade a ser atendida. *Bruno Miragem é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); advogado e parecerista. __________ 1 François Bourjon, Le droit comum de la France et la coutume de Paris, reduit em principes, t. I. Paris: 1747, p. 298; Petri Pacioni, Tratactus de locatione et condutione, Florença, 1840, p. 513-514. 2 Da extensa bibliografia, registre-se a tese doutoral que se tornou referência obrigatória no tema, do jurista egípcio Saroit Badoui, Le fait du Prince dans les contrats administratifs en Droit Français et en Droit Égyptien. Paris: LGDJ, 1955, p. 46 e ss. A adoção da teoria, contudo, não é isenta de críticas sobre a incerteza quanto a seus elementos definidores e seu campo de aplicação, conforme menciona, referindo-se à jurisprudência sobre o tema, dentre outros, René Chapus, Droit administratif general, t. I. 15 ed. Paris: Montchrestien. 2001, p. 1211.Questionando a capacidade da teoria do fato do príncipe e da teoria da imprevisão responder aos problemas a que se propõe no contrato administrativo, Charles Eisenmann, Cours de droit administratif, t. I. Paris: LGDJ, 2014, p. 334-335. 3 Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro. 17 ed. São Paulo: Malheiros, p. 22. 4 Mozart Victor Russomano, Força maior e factum principis. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 7. Região, v. 1, n. 1, Fortaleza, jan./jun. 1976, p. 15-21. 5 René Savatier, Traité de la responsabilité civile em droit français, t. I. 2. ed. Paris: LGDJ, 1951, p. 230. 6 Assim o caso em que impede a entrega de mercadorias objeto de apreensão judicial: STF, RE 22991, Rel. Min. Ribeiro da Costa, 1ª Turma j. 22/06/1953, DJ 31/12/1953; igualmente a indenização peo fundo de comércio do locatário em contrato de locação comercial resolvida em razão da desapropriação do bem locado: STF, RE 20293, Rel. Orozimbo Nonato, 2ª Turma, j. 07/04/1953, DJ 19/08/1954. 7 STJ, REsp n. 614.048/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 15/3/2005, DJ 2/5/2005; REsp n. 834.047/RS, Rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma, j. 16/12/2008, DJe 6/2/2009. 8 Bruno Miragem, Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 244 e ss. 9 STJ, REsp 42.882/SP, Rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, j. 21/03/1995, DJ 08/05/1995. 10 STJ, REsp 1280218/MG, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 21/06/2016, DJe 12/08/2016. 11 STF, RE 422.941, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, j. 06/12/2005, DJ 24/03/2006; no mesmo sentido: STF, RE 571.969, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 12/03/2014. 12 José Joaquim Gomes Canotilho, O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos, cit., p. 333. 13 Bruno Miragem, Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, cit. 14 Veja-se Katia Weidenfeld, Histoire du droit administratif: du XIV siècle à nos jours. Paris: Economica, 2010, p. 95-96. 15 Bruno Miragem, Nota relativa à pandemia de coronavírus e sua repercussão sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, v. 1015. São Paulo: RT, maio/2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Texto de autoria de Maria Cláudia Cachapuz No livro O futuro da natureza humana, Habermas - ao discutir a possibilidade contemporânea de submissão de um embrião que se encontra num estágio de oito células a um exame genético de precaução, para, dentre outras coisas, evitar-se o risco de transmissão de doenças hereditárias quando da realização de um procedimento de fertilização in vitro - lança o debate quanto à possibilidade de alcance de distintas margens de decisão para a tomada de resoluções concretas na vida de relação. Conforme o autor1, ou decide-se de forma autônoma, a partir de considerações normativas que se inserem na formação democrática da vontade, ou resulta-se, noutra margem, sujeito à arbitrariedade de soluções utilitaristas, fundadas em preferências subjetivas, que serão satisfeitas pelo mercado. O assombro de Habermas é relacionado à constatação de que um progresso das ciências biológicas, associado ao desenvolvimento da tecnologia, permite tanto ampliar as possibilidades de ações humanas conhecidas, como possibilitar um novo tipo de intervenção sobre a própria geração da vida do outro - e, por consequência, da responsabilidade pelos danos daí decorrentes. Quando, mais recentemente, há o conhecimento da recomendação do Parlamento Europeu, por meio de resolução normativa, no sentido de que sejam estabelecidas disposições de Direito Civil sobre Robótica - especialmente no campo da Responsabilidade Civil -, por ser "necessário criar uma definição geralmente aceite de robô e de Inteligência Artificial (AI) que seja flexível e não crie obstáculos à inovação"2, de certa forma, observa-se que, mais do que uma margem de decisão, encontra-se adotada uma tomada clara de posição, por parte da comunidade jurídica europeia - até então ainda resistente -, tendente ao estabelecimento de diretrizes gerais de cunho utilitarista no tema. É a posição resultante de uma praxis adotada de acordo com os princípios da racionalidade voltada para fins específicos, no que Habermas identifica uma perigosa transigência sobre o estabelecimento de formas políticas de vida. Seguindo-se essa orientação de mercado, mesmo que a filosofia prática contemporânea tenha a preocupação de elucidar, do ponto de vista moral, os critérios adotados para analisar situações que possam enfrentar os temas (i) do igual interesse de cada um e (ii) do igualmente bom para todos em sociedade, vê-se não haver mais uma convicção paralela do porquê há o dever de ser moral a partir de uma ética universalista a priori. Numa redefinição do alcance do conceito de autonomia, a partida hermenêutica, seguindo a premissa utilitarista, deve ocorrer sob a consideração de uma realidade tecnológica de vida nova, aceita e compartilhada em sociedade, ainda que originada de preferências subjetivas satisfeitas pelo mercado. Não há freio jurídico desejado ao avanço tecnológico, mas apenas uma necessidade de regramento, voltado ao campo dos efeitos - como é próprio ao instituto da responsabilidade civil -, sobre a ampliação do ambiente em que reconhecidos os espaços de compartilhamento de liberdades (reais e virtuais) e os seres que os habitam (reais e virtuais). Esta disciplina sobre os espaços disponíveis, como no exemplo da recomendação do Parlamento Europeu, inclusive, nem mais pressupõe uma universalidade que parta, por definição, da ideia de que vivemos em uma comunidade moral, definida como um agrupamento de indivíduos livres e iguais que se sentem obrigados a tratar uns aos outros como fins em si mesmos. E, aí sim, há o assombro. Textualmente, entre as premissas consideradas para o estabelecimento de um novo consenso para o regramento da responsabilidade civil em tempos de robótica, encontram-se apenas os pressupostos de que (i) existe a possibilidade real de ultrapassagem da capacidade intelectual humana pelo desenvolvimento de uma racionalidade própria à robótica e de que (ii) urge a necessidade de estabelecimento de garantias à (re)inserção do controle humano nos processos decisórios automatizados e definidos por operações algorítmicas. Um exercício jurídico, portanto, que não está mais centrado no teste da universalização das causas originárias desta necessidade de controle - o que se daria pela tônica normativa voltada à determinação de ilicitudes -, mas que se traduz numa preocupação com o campo específico dos efeitos - e, portanto, voltado com maior ênfase a análise exclusiva dos danos. Em outras palavras, na defesa da ética de mercado e em nome do progresso tecnológico, não se deve proibir, mas apenas regrar o que fazer para enfrentar os prejuízos. Tal realidade nem mesmo nas perspectivas mais sombrias de Hannah Arendt - de que "o governo que não é nem da lei, nem dos homens, mas dos escritórios ou computadores autônomos, cuja dominação inteiramente despersonalizada pode vir a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual nenhuma vida comunitária é concebível"3 - seria imaginável como aceita de forma tão automática e natural, como uma simples consequência da evolução cultural e tecnológica da humanidade. O fato é que, quando se parte de uma ética utilitarista, em que toda a construção do juízo - em termos cognitivo, volitivo, normativo - se dá por uma ética de iguais interesses, o risco de ausência de uma reflexão moral de caráter amplo, mesmo que a posteriori, é sempre existente. A construção de uma disciplina normativa para a responsabilidade civil em tempos de automação ou mesmo em momentos excepcionais que demandem o enfrentamento de questões de maior emergência numa era tecnológica - como a atualmente vivida em tempos de pandemia - exige, portanto, reflexões sérias que devem ir além das fronteiras da simples ponderação acerca de uma ética de mercado. Primeiro, ter consciência de que há razões suficientes a exigir pré-compreensão que não esteja fundada num raciocínio estritamente pré-etico, como apontado por Singer no seu Ética Prática4. Ainda que exista escassez de meios e urgência no atendimento de demandas, o debate a ser enfrentado não pode ser resumido, exemplificativamente, à discussão rápida de a quem deva se entregar o respirador disponível seguindo-se o protocolo asséptico de realidades genéricas. Não se trata de um "ponto sem retorno", como alertaria Bauman5, em termos interpretativos. Ao contrário, é necessário retomar o teste da universalização para a questão particular e compreender em que medida se dá a construção de um juízo deontológico suficiente e com pretensão de correção para o atendimento da situação em análise, observadas (i) as condições fáticas e jurídicas que se apresentem para o caso e (ii) a conduta esperada e capaz de ser universalizada para situações assemelhadas em perspectiva futura. Segundo, é preciso ter claro que o estabelecimento de princípios gerais a toda normatividade nova deva igualmente passar por um reexame das questões pertinentes aos direitos de personalidade em termos universais - pela capacidade de ser válido a todos os que se dispõem ao compartilhamento desses novos espaços de liberdade -, ainda que exigido um condicionamento prévio, embora cauteloso, à aceitação de ausência de freios aos avanços tecnológicos. Veja-se que a exigência de uma capacidade reflexiva, para a construção de juízos, em termos volitivos e normativos, conduz, justamente, à dupla dinâmica de enfoque em relação à dimensão de autonomia à pessoa - como individualidade e como intersubjetividade -, aproximando a discussão filosófica do campo de análise da liberdade em termos jurídicos. Quando se fala em autonomia, se está, em verdade, discutindo questão mais ampla que a pressuposta num direito geral de liberdade à condição da pessoa. Habermas é quem estabelece uma distinção bastante clara: os conceitos se diferenciam pelo âmbito de sua abrangência. Enquanto a liberdade é sempre subjetiva, porque fundada nas peculiaridades do indivíduo - suas máximas de prudência, preferências ou motivos -, a autonomia é um conceito que pressupõe uma estrutura de intersubjetividade, determinado por máximas aprovadas pelo teste da universalização. Isso significa compreender que, para efeito de análise de qualquer problema posto dentro das bases de um discurso jurídico, ainda que se possa reconhecer a liberdade à pessoa em abstrato, é necessário que lhe seja possível visualizar também autonomia em potencial, porque autorizada a percepção como participante de uma comunidade moral. Participar dessa forma de linguagem não importa, portanto, em simples verificação de pressupostos de liberdade em sociedade, pelas escolhas que são desejadas ou idealizadas de forma ampla. É preciso que se reconheça a capacidade de correção na construção de juízos pela perspectiva do outro - justamente com quem se compartilha os espaços de liberdade no âmbito público. Como ressalta Sandel, quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, homens e mulheres lutam para articular seu mal-estar. E este incômodo só existe porque há o sentimento de ameaça sempre presente quanto aos fins que o próprio ser humano, em sociedade, pretende ver alcançados no exercício de sua liberdade. Não é, necessariamente, uma inquietação decorrente do avanço tecnológico em si mesmo, mas do que é feito desse progresso em perspectiva futura. E, portanto, de como lidar com estruturas morais que são capazes de afetar tanto a natureza das coisas como o que é produto do mundo de cultura: "O desafio é identificar como essas práticas reduzem a nossa humanidade" e, por isso mesmo, ameaçam aspectos de liberdade e de "florescimento"6 do que se reconhece como humano na contemporaneidade. Um desafio e tanto em tempos de automação e pandemia. *Maria Cláudia Cachapuz é magistrada. Professora universitária da UFRGS e Feevale/RS. __________ 1 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 2 Resolução do parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações à Comissão sobre Disposições de Direito Civil sobre Robótica (2015/2013 -INL). 3 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 66. 4 SINGER, Peter. Ética práctica. Madrid, Akal, 2009, p. 26. 5 BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2013, p. 106. 6 SANDEL, Michael J.. Contra a perfeição. Ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013, p. 35. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
terça-feira, 16 de junho de 2020

Cláusula penal em tempos de pandemia

Texto de autoria de Gisela Sampaio da Cruz Guedes De inegável utilidade prática, a cláusula penal, no nosso sistema, cumpre múltiplas funções. A doutrina ora alude à sua função ressarcitória ou de pré-fixação das perdas e danos, ora à sua função sancionadora, havendo mesmo quem atribua ao instituto uma função garantista da dívida, referindo-se a uma acepção mais ampla do termo "garantia"1. A multiplicidade de funções da cláusula penal revela parte das controvérsias que cercam o instituto. Independentemente da função que exerça, no nosso sistema a culpa é pressuposto da cláusula penal. Afinal, o artigo que abre o capítulo sobre cláusula penal no Código Civil estabelece que "[i]ncorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora" (artigo 408 do Código Civil). A referência à culpa é, portanto, expressa. Como já observou Pinto Monteiro, à luz do Direito português que, como o nosso, também se refere à culpa de maneira expressa, "[a]s partes até podem estipular o direito à pena independente de culpa: tratar-se-á, porém, neste caso, de uma cláusula de garantia, não, porém, de uma cláusula penal, pura e simplesmente"2. A questão releva, alerta Pinto Monteiro, sobretudo "para efeitos de qualificação da figura acordada entre as partes e tem interesse para saber se a soma prefixada é susceptível de ser reduzida, uma vez preenchidos os requisitos do art. 812"3. Assim como o artigo 812 do Código Civil português, o artigo 413 do nosso Código Civil impõe - e não apenas faculta, como observa Gustavo Tepedino4 - que o julgador reduza a cláusula penal nas hipóteses ali referidas. Trata-se de norma de ordem pública, que não pode ser afastada pelas partes. Trazida essa reflexão para os tempos de pandemia, duas questões desde logo se colocam: Até que ponto a cláusula penal será mesmo devida se o descumprimento ocorreu no curso da pandemia? E, ultrapassando-se essa primeira indagação, pode o julgador pelo menos reduzir a cláusula penal com base no grau de culpa do devedor levando em consideração a pandemia? Em relação à primeira questão, deve-se desde logo observar que o fato de o descumprimento ter ocorrido no curso na pandemia não é, por si só, significativo. A pandemia precisa ter provocado a impossibilidade definitiva da prestação. Se a prestação não foi cumprida porque se tornou impossível em razão da pandemia, não há que se falar em "culpa" do devedor, então não faz sentido o devedor responder pelas consequências do descumprimento. A cláusula penal não incide nesta hipótese. Aqui cabe apenas um alerta geral sobre a qualificação da pandemia como um evento extraordinário, imprevisível e inevitável. Essa qualificação em abstrato não produz qualquer efeito no nosso sistema, que simplesmente não se adequa a soluções em tese, prontas e acabadas para qualquer contrato, devendo-se antes verificar qual impacto concreto a pandemia do Convid-19 produz sobre o programa contratual em causa. Como evento extraordinário, que inegavelmente é, a pandemia tem potencial para preencher o suporte fático de incidência tanto do regime do caso fortuito ou de força maior, como também dos regimes estabelecidos pelos artigos 317 e 478 do Código Civil, mas certamente não poderá servir de escusa geral, para justificar todo e qualquer descumprimento ocorrido no seu curso. No Direito brasileiro, o caso fortuito ou de força maior é considerado uma excludente de responsabilidade civil que, ao lado do fato exclusivo de terceiro e do fato exclusivo da própria vítima, interfere na cadeia causal, provocando a sua interrupção. Nos termos do artigo 393, caput, do Código Civil, "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado". Diz-se, por isso mesmo, que "tanto o caso fortuito quanto o de força maior desincumbem o devedor de responder pelas perdas e danos a que a sua inexecução deu causa"5. Evidentemente, não poderá haver concorrência da conduta do obrigado com o fato que se pretende caracterizar como caso fortuito ou de força maior. Caso se apure a concorrência do devedor com o evento que impossibilitou o cumprimento de sua obrigação, há imputabilidade, podendo o devedor, em princípio, ser responsabilizado pelo inadimplemento (e, assim, também, pela cláusula penal)6. Isso explica a consideração histórica de que "para a caracterização do caso fortuito (...) este jamais pode provir de ato culposo do obrigado" e de que "o fortuito começa onde acaba a culpa"7, feita numa época em que "culpa" e "nexo causal" eram elementos da responsabilidade civil a todo tempo confundidos. Para que determinado evento possa ser considerado caso fortuito ou de força maior, exige-se a presença de certos requisitos, sem os quais o devedor não se eximirá de responder. Requisitos essenciais para a configuração do fortuito são a inevitabilidade, isto é, o fato que impede o cumprimento da obrigação deve ser irresistível, bem como a necessariedade, uma vez que só exclui a responsabilidade do devedor o fato do qual a inexecução seja resultado direta e imediata8. Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 393 determina que "O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". A respeito do requisito da inevitabilidade, diz-se também que meras dificuldades, ainda que ingentes, não são suficientes para caracterizar o fortuito9. Como já adiantado, a razão pela qual, diante de um caso fortuito ou de força maior, o devedor, em regra, não responde pelos prejuízos sofridos pelo credor em razão da inexecução, é o rompimento do nexo de causalidade com a ocorrência do fortuito10. Assim, se ficar demonstrado que o devedor não cumpriu a prestação que lhe incumbia em razão, pura e simplesmente, da pandemia, que o impediu mesmo de cumprir, tornando a prestação objetivamente impossível de ser cumprida, afastada estará a cláusula penal, porque não se estará diante de "verdadeiro" inadimplemento. Se o descumprimento decorre exclusivamente do fortuito, não há que se falar também em "concorrência de causa", nem mesmo em culpa do devedor. No entanto, pode ocorrer de a pandemia não ter provocado o inadimplemento, mas apenas dificultado o cumprimento da prestação, caso em que a cláusula penal continuará sendo, a princípio, devida. E é importante que assim seja, porque, do contrário, corre-se o risco de a pandemia acabar servindo de escusa geral para justificar todo e qualquer descumprimento, eximindo o devedor das consequências daí decorrentes. Nessa hipótese, em que a cláusula penal é devida, é que se coloca a segunda questão: pode o juiz reduzi-la com base no grau de culpa do devedor? O artigo 413 estabelece que "[a] penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". Este dispositivo traz, claramente, duas hipóteses de redução, que devem ser analisadas separadamente: (i) o juiz pode reduzir a cláusula penal "se a obrigação tiver sido cumprida em parte"; e (ii) ou "se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". O advérbio "equitativamente" alude à ideia de equidade, que é um dos conceitos jurídicos indeterminados mais abertos. Segundo a Professora Judith Martins-Costa, na primeira hipótese de redução, o advérbio deve ser lido como se o legislador tivesse simplesmente se referido ao postulado normativo da proporcionalidade11: "A penalidade deve ser reduzida proporcionalmente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte". Não se trata, evidentemente, de uma proporcionalidade matemática12, mas antes axiológica, até porque o devedor pode ter cumprido a maior parte do contrato, mas deixado de cumprir a parte que mais interessava ao credor. A rigor, o julgador deve primeiro observar se a prestação principal comporta um cumprimento parcial, para só depois, em caso positivo, reduzir a cláusula penal, levando em consideração sempre o interesse do credor, quer dizer, a relevância para o credor da parcela que foi cumprida e se esse cumprimento parcial atendeu, de fato, aos seus interesses e expectativas. Dito isso, essa primeira hipótese do artigo 413 não suscita muita discussão. Já não é assim com relação à segunda hipótese de redução - essa, sim, objeto de inúmeras controvérsias -, em cujo texto o legislador se valeu de mais de um conceito jurídico indeterminado: "montante manifestamente excessivo", tendo-se em vista a "natureza" e a "finalidade do negócio". Aqui o advérbio equitativamente ganha outra conotação, como se o legislador tivesse dito: "A penalidade deve ser reduzida razoavelmente pelo juiz se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio'13. O comando da segunda parte do artigo 413 também não autoriza o julgador a reduzir a cláusula penal, mas antes impõe que a redução seja feita, levando-se em consideração dois critérios objetivos: a natureza e a finalidade do negócio. A razoabilidade, que aqui reverbera como uma das facetas da equidade, não é sinônimo de bom senso, nem pode servir de escusa para o julgador deixar de fundamentar a sua decisão. Trata-se, a rigor, de um postulado normativo, a ser considerado na fundamentação da decisão. E a que alude o legislador, ao se referir a esses conceitos jurídicos indeterminados? Diz a doutrina, atenta às expressões empregadas no dispositivo, que o julgador deve observar inúmeros fatores. Trata-se de um contrato internacional ou nacional? De que tipo negocial se trata? O contrato era oneroso ou gratuito? A cláusula penal estava inserida num negócio fiduciário, cujo descumprimento atingia também a confiança depositada na contraparte? Qual espécie e modalidade de cláusula penal se discute14? Qual foi o efetivo poder de negociação das partes? O contrato era paritário ou foi firmado por adesão? Em que segmento de mercado aquele programa contratual se insere? Quais são os usos e costumes daquele mercado? Qual era a finalidade econômica perseguida pelas partes? Quais foram os prejuízos sofridos pelo credor? O descumprimento lhe trouxe alguma vantagem15? Para além de todos esses fatores, há, ainda, quem acrescente que o julgador deve considerar nessa redução o grau de culpa da parte inadimplente16, o que poderia ser usado em tempos de pandemia, mais uma vez, como escusa para reduzir toda e qualquer cláusula penal. Este critério, porém, deve ser analisado com cautela. Se é verdade que a equidade é um conceito muito aberto, que impõe a construção de uma solução justa e adequada para o caso concreto, também é igualmente verdade que "o artigo não alude a qualquer requisito subjetivo, como o estado psicológico ou anímico do contratante"17. A culpa é pressuposto para incidência da cláusula penal, mas o legislador não autoriza o juiz a reduzi-la com base no grau de culpa do devedor, se este tiver, de fato, causado o descumprimento do contrato. O que pode ocorrer, na prática, é uma concorrência de causas entre a conduta do devedor e o fortuito18, em que até se poderia cogitar da redução da cláusula penal por uma questão de concorrência de causas, mas isso nada tem a ver com as hipóteses referidas no artigo 413 do Código Civil. Já o parágrafo único do artigo 944 estabelece que, "[s]e houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização", mas aqui não há sequer uma única palavra sobre cláusula penal (e, não custa lembrar, a cláusula penal pode até nem cumprir função indenizatória). Além disso, a expressão "gravidade da culpa" ali referida já foi alvo de inúmeras críticas19. Se no artigo 944 a doutrina critica a referência à culpa, por qual razão deveria o intérprete introduzir esse elemento no artigo 413, cuja redação sequer alude à culpa? Se no artigo 413 o legislador preferiu não abrir a "porta" para a culpa, por que, então, deveria o intérprete introduzi-la pela "janela" da equidade? Não é preciso dizer muito para explicar que a excessividade da cláusula penal deve ser apurada no momento em que o devedor incorre na pena, e não no momento em que a cláusula penal foi pactuada, o que tem relevância para os contratos que não são de execução imediata. Faz todo sentido que assim seja, porque "a excessividade diz respeito ao sinalagma funcional, ou dinâmico, e não ao sinalagma genético, ou estático"20, tanto é que a ação cabível é a de revisão da cláusula penal, e não a de nulidade (esta teria lugar se a cláusula penal ultrapassasse o valor da obrigação principal, esbarrando no limite previsto no artigo 412 do Código Civil). É, portanto, no momento patológico da relação, em que há o inadimplemento, que se deve apurar se a cláusula penal é ou não manifestamente excessiva, considerando a natureza e a finalidade do negócio. E o advérbio "manifestamente" revela que o standard da revisão é alto, como não poderia mesmo deixar de ser. Agora, se o programa contratual estiver inserido em segmento de mercado diretamente impactado pela pandemia e, de fato, tiver sofrido os efeitos concretos dela, tornando-se excessivamente oneroso para o devedor, é possível que o devedor nem precise invocar o artigo 413 para tentar reduzir a cláusula penal. Preenchido o suporte fático de incidência do artigo 478 do Código Civil, o devedor poderá não apenas pleitear a revisão da cláusula penal, mas de todo o contrato. Ressalvada essa hipótese, cuja régua de corte também é alta, é sempre bom lembrar que, em tempos de pandemia, os contratos também precisam ser cumpridos, assim como as cláusulas penais. O simples fato de o contrato ter sido descumprido no curso da pandemia não autoriza a redução da cláusula penal, tampouco afasta a sua incidência. No difícil equilíbrio entre punir o inadimplente oportunista, que se profissionaliza na crise, e ao mesmo tempo não consagrar abusos em favor do credor, "sobretudo porque as dificuldades financeiras também atingem bons pagadores"21, é melhor o intérprete não se afastar dos requisitos objetivos estabelecidos pelo legislador. *Gisela Sampaio da Cruz Guedes é doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora Adjunta do Departamento de Direito Civil da UERJ. Professora de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do CEPED/UERJ, da FGV e da PUC/Rio. Professora da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ. Advogada, parecerista e árbitra. __________ 1 A vantagem representada pela cláusula penal é revelada desde o início da relação, ainda que o devedor, espontaneamente, realize a prestação à qual se vinculou, isto é, ainda que o credor não precise acioná-la. Os efeitos decorrentes da cláusula penal, a rigor, não se operam apenas no momento patológico da relação, quando há o inadimplemento, muito embora seja nessa fase que o credor mais precise dela. Isto porque, desde o início da relação, a cláusula penal estimula o devedor a cumprir a obrigação. 2 Antônio Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização. Coimbra: Almedina, 1990, p. 685. 3 Antônio Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, cit., 685. 4 Gustavo Tepedino, "Efeitos da crise econômica na execução dos contratos". In: Temas de Direito Civil, 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 117. 5 Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 709. 6 Orlando Gomes, Obrigações, 18.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 150-153. No mesmo sentido: Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 1, 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 710-711; Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso fortuito e teoria da imprevisão, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 147; J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado principalmente do ponto de vista prático, v. 14, 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 239. 7 J.M. de Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado principalmente do ponto de vista prático, cit., pp. 239-240. No mesmo sentido, por todos: Arnoldo Medeiros da Fonseca. Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., pp. 147-148. 8 Acerca dos requisitos do caso fortuito ou de força maior, entre outros: Judith Martins-Costa, In: Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Comentários ao novo Código Civil, v. 5, t. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 288-300; Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, v. 4, 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 484-485; e Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso fortuito e teoria da imprevisão, cit., p. 147. 9 Judith Martins-Costa, Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 298. 10 Nesse sentido, seja-nos consentido citar, de nossa autoria, O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 165 e seguintes. 11 Judith Martins-Costa, "A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal". In: Araken de Assis, Eduardo Arruda Alvim, Nelson Nery Jr., Rodrigo Mazzei, Teresa Arruda Alvim Wambier, Thereza Alvim, Direito Civil e Processo: estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim, São Paulo: RT, 2007, p. 62. 12 STJ, 4ª T., REsp nº 1.466.177/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, v. u., j. 20.06.2017. 13 Judith Martins-Costa, "A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal", cit., p. 64. 14 Ao se referir às "espécies" de cláusula penal, a doutrina normalmente emprega o termo "espécies" para tratar da cláusula penal de fixação de perdas e danos, da cláusula penal em sentido próprio e da chamada cláusula penal puramente coercitiva, ou seja, costuma-se ligar as espécies às funções que o instituto pode vir a desempenhar em dado programa contratual. Já a expressão "modalidades de cláusula penal" é usada, de maneira geral, para aludir às três modalidades referidas expressamente no art. 409 do Código Civil: cláusula penal compensatória, cláusula penal moratória e cláusula penal em segurança de uma obrigação especial. 15 Por todos, cf. Judith Martins-Costa, "A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal", cit., p. 68-70. 16 Nesse sentido: STJ, 4ª T., REsp nº 1.353.927/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, v. u., j. 17.05.2018. 17 Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, Fundamentos do Direito Civil, v. 2 - Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 398. 18 Sobre a questão da concorrência de causas, cf. Gustavo Tepedino, Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes, Fundamentos do Direito Civil, v. 4 - Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 95 e seguintes. Há inúmeras hipóteses em que o fortuito pode correr com outras causas: "(...) é o caso, por exemplo, de uma inundação que aconteceu porque os bueiros da cidade não estavam bem dimensionados, mas também porque houve chuva excepcional. São deste tipo as situações mais freqüentemente discutidas na justiça, com concorrência entre fato do responsável e caso fortuito ou de força maior" (Fernando Noronha, Direito das obrigações, v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 644). 19 Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, "Artigo 944 do Código Civil: o problema da mitigação do princípio da reparação integral", Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 63, 2008, pp. 69-94; Carlos Nelson Konder, "A redução eqüitativa da indenização em virtude do grau de culpa: apontamentos acerca do parágrafo único do art. 944 do Código Civil", Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: PADMA, vol. 29, jan.-mar./2007, pp. 3-34. 20 Judith Martins-Costa, "A dupla face do princípio da equidade na redução da cláusula penal", cit., p. 71. 21 Gustavo Tepedino, "Efeitos da crise econômica na execução dos contratos", cit., p. 117. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).