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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Cerca de seis milhões de cirurgias robóticas já foram realizadas ao redor do mundo. Durante a cirurgia, o médico permanece num console, manuseando dois controladores gerais (joysticks) - e os movimentos das suas mãos são traduzidos pelo robô, em tempo real, em instrumentos dentro do paciente, eliminando-se, assim, o tremor natural das mãos do ser humano e possibilitando um procedimento executado com maior precisão. Devido à maior flexibilidade dos braços robóticos em comparação com as ferramentas laparoscópicas convencionais, além da ampliação da visão do cirurgião por meio de uma microcâmera, tornam-se completamente acessíveis locais anteriormente de difícil acesso ou até mesmo inacessíveis.1 Recentemente, há estudos que indicam expressivas vantagens da cirurgia robótica em tempos de pandemia da Covid-19, pelo seu potencial de minimizar a propagação de infecções virais, uma vez que, durante a operação, não há contato físico entre o paciente e o médico, o qual permanece afastado em um console especial, controlando o robô por meio de joysticks.2 Esta é certamente uma das mais expressivas benesses das cirurgias robóticas em tempos de pandemia: o número reduzido de profissionais da saúde na sala de operação e a distância entre os membros da equipe. Assim, diminui-se o risco de transmissão do vírus. Outra vantagem é a recuperação pós-operatória mais rápida e o menor tempo de hospitalização, em comparação à tradicional cirurgia aberta, o que é especialmente relevante em tempos de escassez de leitos hospitalares e aumento do potencial de contaminação em internações mais longas.3 Apesar dos notáveis benefícios da tecnologia, diversos pacientes, ao redor do mundo, já pleitearam indenização por danos sofridos durante a performance dos robôs cirurgiões chamados "Da Vinci", fabricados pela empresa Intuitive Surgical. Nos Estados Unidos, até o momento, praticamente todos os conflitos foram resolvidos extrajudicialmente com a fabricante, com cláusula de confidencialidade sobre os seus termos ou, ainda, decididos sumariamente pelo juiz (summary judgment) na fase chamada pretrial, com exceção de dois casos que foram levados a julgamento pelos tribunais norte-americanos, os quais, posteriormente, também resultaram em acordo: Zarick v. Intuitive Surgical (2016) e Taylor v. Intuitive Surgical (2017). Já no Brasil, foi recentemente julgado, pela 4ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis/SC, o primeiro caso que se tem notícia sobre evento adverso em paciente submetido à cirurgia robótica. A proposta deste breve texto é, inicialmente, apresentar um panorama geral dos litígios que discutem eventos adversos na cirurgia robótica em contexto norte-americano. A partir disso, será traçado um estudo do perfil dessas demandas à luz do ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo-se a forma de atribuição da responsabilidade civil entre todos os agentes envolvidos na cirurgia robótica: médico, equipe de enfermagem, hospital e fabricante. Nos Estados Unidos, as demandas indenizatórias sobre eventos adversos ocorridos durante a intervenção médica assistida por sistemas robóticos são conhecidas como "finger-pointing cases".  Isso, porque há sempre o dilema de quem deve responder quando há um dano ao paciente submetido à cirurgia robótica: o médico ou o fabricante do equipamento. O médico e o hospital, diante de evento adverso na intervenção, alegam que há defeito no próprio robô e, consequentemente, responsabilidade do fabricante. Este, por sua vez, defende que o dano decorre de erro médico ou, ainda, da má conservação ou incorreta regulagem do robô pelos prepostos do hospital. Diante dessa problemática, desenvolveu-se, em 2017, um dispositivo chamado "dVLogger", espécie de "caixa preta" acoplada ao robô cirurgião Da Vinci, que grava vídeo e metadados durante a cirurgia.  Por meio desse recurso, captura-se o posicionamento dos instrumentos e como o médico está conduzindo o movimento do robô. Pode-se constatar, por exemplo, que o robô emitiu algum alerta ou aviso de erro, mas o médico desconsiderou o alerta e optou por assumir o risco de dar continuidade ao ato cirúrgico. Ou, ainda, pode-se verificar um mau funcionamento do próprio robô, que realizou inesperadamente algum movimento. Thomas R. Mc Lean4 delineia o perfil geral destas demandas indenizatórias em contexto norte-americano, as quais, geralmente, envolvem discussões em três frentes: 1ª) responsabilidade do médico: por culpa médica, especialmente imperícia decorrente do treinamento insuficiente, ou violação do dever de informação do paciente (consentimento livre e esclarecido); 2ª) responsabilidade do hospital: por má conservação do robô ou incorreta esterilização dos instrumentos robóticos pelos seus prepostos, desrespeitando orientações do fabricante. Ainda, há demandas que alegam falha do hospital em manter uma adequada política de treinamento dos seus médicos em cirurgia robótica; 3ª) responsabilidade do fabricante: por defeito do produto ou falta de informações sobre sua utilização ou riscos associados. Edoardo Datteri5 expõe dois casos interessantes de imperícia médica em cirurgia robótica: em 2002, um paciente morreu no hospital St. Joseph em Tampa (Flórida), dois dias após se submeter à cirurgia em que o robô cortou acidentalmente duas artérias, incluindo a aorta; em 2009, um robô cortou os dois ureteres de uma mulher durante uma cirurgia no Hospital Wentworth-Douglass, em Dover (Massachusetts). Em ambas as ocasiões, os movimentos do robô Da Vinci causaram ferimentos graves e fatais aos pacientes, sem que nenhuma anomalia (mensagem de erro ou mau funcionamento) do dispositivo tenha sido detectada, o que pode sugerir a incidência de culpa médica.  Quando um tribunal norte-americano se depara com esse tipo de demanda, debruça-se, segundo Datteri, pelas regras da medical malpractice law, a fim de aferir a responsabilidade subjetiva do profissional. A principal causa de pedir permeia a medical negligence, que significa, de acordo com o autor, "uma violação do dever do médico de se comportar de maneira razoável e diligente em circunstâncias que causam danos previsíveis".  A questão da culpa médica em cirurgia robótica devido ao insuficiente treinamento dos médicos já foi muito criticada pela comunidade norte-americana. Contudo, atualmente, observa-se uma tendência de mudança desse cenário, especialmente pela criação de simuladores do robô, para que os médicos possam treinar no aparato robótico, com maior frequência, no próprio hospital onde atuam. Por outro lado, nas demandas norte-americanas em que se discute a responsabilidade civil da empresa Intuitive Surgical e de outras empresas fabricantes de dispositivos médicos, a responsabilidade é objetiva e segue disposições da product liability law. Nessas situações, Thomas R. McLean explica que há duas possíveis causas de pedir: violação do dever de fornecer informações adequadas sobre o produto ou defeito do próprio produto. Há alguns elementos básicos que devem ser ponderados pelo magistrado em uma ação indenizatória em face da empresa fabricante do dispositivo médico: 1) se o robô possui um defeito; 2) se há nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo paciente e o defeito do dispositivo; 3) se a fabricante falhou em advertir o usuário sobre a possibilidade de um evento adverso relacionado ao dano sofrido. Em 2009, ao julgar o caso Mracek v. Bryn Mawr Hospital and Intuitive Surgical, em sede de summary judgement, o Tribunal Distrital da Pensilvânia entendeu que o paciente não produziu suficiente evidência direta ou circunstancial do defeito do robô Da Vinci na fase pretrial e, portanto, não demonstrou o nexo de causalidade entre o defeito do dispositivo e o dano sofrido. Mracek tinha se submetido, em 2005, à cirurgia de prostatectomia robótica no hospital Bryn Mawr, na Filadélfia. Durante o procedimento, o robô começou a exibir mensagens de erro e a equipe tentou reiniciar a plataforma robótica várias vezes para continuar a cirurgia. Funcionários do hospital acionaram o suporte técnico da empresa Intuitive Surgical, que enviou um funcionário até a sala de operações, a fim de solucionar os problemas do robô, incluindo a tentativa de reposicionamento dos seus braços, mas não teve sucesso. Diante disso, a equipe abandonou a plataforma robótica e outro médico concluiu o procedimento cirúrgico. Entre o instante que o aparato tecnológico apresentou problemas e o momento em que o outro cirurgião deu continuidade ao procedimento, passaram-se aproximadamente 45 minutos. Decorridos alguns dias após a cirurgia, o paciente passou a sofrer disfunção erétil total e dores abdominais diárias. Ao analisar esse julgamento, Ugo Pagallo, no livro "The Laws of Robots: Crimes, Contracts, and Torts",6 explica que nesse tipo de demanda indenizatória em face do fabricante, o ônus da prova recai sobre o autor, isto é, caberá ao demandante provar que "o produto estava com defeito; que esse defeito existia enquanto o produto estava sob o controle do fabricante; e, além disso, o defeito foi a causa imediata dos danos sofridos pelo autor".  No caso, caberia ao paciente demonstrar a ocorrência do defeito "por meio de evidências circunstanciais da ocorrência de um mau funcionamento ou por meio de evidência que elimine o uso incorreto do produto ou causas secundárias para o dano". Contudo, curiosamente, Mracek não apresentou nenhuma prova pericial (expert report) para corroborar suas alegações de defeito no robô. Isso porque o paciente defendeu que o defeito do robô era "óbvio o suficiente para ser verificado pelos jurados sem especulação". O julgamento supramencionado demonstra algo muito importante: a possibilidade de intercorrências no ato cirúrgico assistido por robô com a consequente necessidade de conversão para uma cirurgia convencional (aberta), realizada pelas próprias mãos do médico, sem interferência do aparato tecnológico. Muitas vezes, surgirão cicatrizes maiores no corpo do paciente, pois aquela cirurgia robótica minimamente invasiva precisará ser transformada em uma cirurgia aberta, com cortes mais extensos. Além disso, pode ser que a continuidade do procedimento cirúrgico se dê por outro médico, que não aquele que estava a poucos metros de distância do paciente, em um console especial, manuseando os braços robóticos por meio de joysticks. Na eventualidade de algum problema com a plataforma robótica, há outro médico em prontidão ao lado do paciente, para adotar um plano emergencial de conversão da cirurgia. Na cirurgia robótica, assim como em quaisquer outras intervenções médicas, o dever de informar é um dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva do médico, cuja inobservância caracteriza inadimplemento contratual. Com efeito, os avanços tecnológicos na área da saúde, especialmente em cirurgias assistidas por robôs, podem tornar ainda mais aleatória a intervenção médica, de modo que não se justifica transferir para o profissional todos esses riscos e áleas. Contudo, o médico tem a obrigação de fornecer ao paciente uma informação completa, tanto sobre o ato cirúrgico e cuidados pós-operatórios, bem como os riscos inerentes à própria cirurgia robótica, inclusive aqueles que apresentem caráter específico e/ou excepcional.7 No célebre caso Zarick v. Intuitive Surgical, julgado pelo Tribunal Estadual da Califórnia em 2016, discutiu-se a responsabilidade civil da fabricante por defeito no robô cirúrgico. A paciente alegou ter sofrido danos durante cirurgia robótica de histerectomia, decorrentes do isolamento inadequado de um instrumento robótico (tip cover acessory),8 que possibilitou a passagem de corrente elétrica para tecidos fora do campo operatório, causando-lhe queimaduras. Além do defeito no produto, a autora indicou que a fabricante obteve e continuava mantendo a aprovação do seu dispositivo médico pela FDA, ao não informar corretamente o órgão regulador sobre todos os riscos e complicações associados ao uso do robô Da Vinci, motivo pelo qual foi também pleiteada a fixação de danos punitivos no montante de 30 milhões de dólares.9 Após três dias de deliberações perante o Júri Cível, as partes firmaram acordo milionário, com cláusula de confidencialidade sobre os seus termos. A partir do estudo acerca dos litígios envolvendo eventos adversos ocorridos na cirurgia robótica, em contexto norte-americano, trazendo tal problemática para análise à luz do ordenamento jurídico brasileiro, alvitramos a metodologia descrita nas linhas que se seguem.10 Para atribuição da responsabilidade por eventos adversos na cirurgia robótica, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu: a) do serviço essencialmente médico: quando o dano decorre de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da medicina durante a cirurgia robótica, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. O médico responderá por culpa stricto sensu, nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia.11 Reconhecida a culpa do seu preposto, responderá solidariamente o hospital (art. 14, § 4º, do CDC; arts. 186 e 951, ambos do CC). Todavia, caso o médico não tenha vínculo de preposição com o hospital, apenas alugue o espaço da entidade hospitalar, a fim de realizar o procedimento cirúrgico com auxílio do robô, o hospital não terá responsabilidade solidária pela conduta culposa do profissional. Ademais, mesmo quando a intervenção médica é correta - mas não se informou adequadamente o paciente submetido à cirurgia robótica -, a culpa surge pela falta de informação - ou pela informação incorreta.12-13 b) do serviço paramédico: quando o dano advém da falha na intervenção dos enfermeiros com a correta regulagem do robô ou inadequada esterilização dos instrumentos robóticos. Em geral, são praticados pela enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores. Nessa situação, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC.14 c) do serviço extramédico: quando o dano resulta dos chamados "serviços de hotelaria", isto é, qualquer problema na instalação do robô nas dependências do hospital ou, ainda, má conservação do aparato tecnológico pelo não atendimento aos cuidados recomendados pelo fabricante. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC. Destaque-se que, na eventualidade de defeito do próprio robô cirurgião (do software ou de qualquer outro componente), responderá o fabricante, independentemente da existência de culpa (art. 14 do CDC), pela reparação dos danos causados ao paciente. O robô será considerado defeituoso quando não oferecer a segurança que legitimamente se espera (art. 12, § 1º, do CDC), levando-se em consideração sua apresentação, uso e riscos que dele se esperam e a época em que foi colocado em circulação. Vale lembrar que o paciente lesionado, após ser submetido a uma cirurgia robótica, é compreendido como consumidor do robô por equiparação, nos termos do art. 17 do CDC, pois é terceiro atingido pela relação de consumo entre o hospital e o fabricante do robô. Além disso, segundo o art. 18 do CDC, há responsabilidade solidária na cadeia de fornecimento de um produto e, por isso, o hospital responde solidariamente pelos danos decorrentes de defeitos do robô cirurgião, de modo que o paciente poderá demandar em face da entidade hospitalar, assegurado o direito de regresso contra o fabricante (art. 13, parágrafo único, do CDC). Recentemente, a 4ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis-SC julgou caso15 em que o paciente demandante alegou dano sofrido pela falta de esterilização dos instrumentos robóticos (serviço paramédico). Pelas provas produzidas, não foi possível concluir com certeza que o robô não estivesse esterilizado antes da cirurgia, pois foram juntadas aos autos etiquetas de esterilização e relatório das rotinas de controle de qualidade dos processos de esterilização. Contudo, o fato de o hospital seguir esses protocolos médicos não é apto à configuração da prestação de um serviço como não defeituoso e, consequentemente, eximir a responsabilidade do hospital demandado. Isso porque, adotar tal entendimento, fragilizaria a própria sistemática da responsabilidade objetiva prevista no CDC.  Embora o hospital tenha alegado que cumpriu todos os procedimentos de praxe quanto a esterilização do robô cirúrgico e demais insumos, a bactéria burkholderia cepacia detectada é compatível com o diagnóstico de infecção adquirida em consequência da cirurgia realizada, conforme resposta de um quesito pela perita judicial. Como neste caso trata-se de agente infeccioso tipicamente nosocomial - com dano decorrente de serviço extramédico, por um risco inclusive intrínseco à atividade hospitalar -, os tribunais brasileiros têm reiteradamente afirmado que há responsabilidade objetiva dos estabelecimentos hospitalares.16 Assim, comprovada a ocorrência da infecção no ambiente hospitalar e não demonstrado que a contaminação teve causa diversa, responde objetivamente o hospital, nos termos do CDC. Diante disso, a ação foi julgada procedente, condenando o hospital ao pagamento de R$ 10 mil em danos morais. Dessa sentença, foram interpostos recursos por ambas as partes, que, no dia 7/1/2021, ainda aguardavam julgamento pelo TJSC. Diante do panorama apresentado, neste breve estudo de direito comparado, conclui-se que os litígios norte-americanos sobre eventos adversos na cirurgia robótica - bem como as possíveis demandas indenizatórias em contexto brasileiro -, seguem o seguinte perfil: 1) há grande complexidade em determinar se o dano sofrido é decorrente de erro médico ou defeito do produto, mas que pode ser superada pelo acesso às informações contidas na "caixa preta" do robô; 2) a perícia médica tem grande relevância para determinar o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo paciente e o mau funcionamento do robô - ou o erro médico; 3) na maioria dos litígios sobre culpa médica na cirurgia robótica nos Estados Unidos permeiam discussões sobre imperícia do profissional, o que pode ocorrer igualmente em futuras demandas no Brasil, especialmente se não for dada a devida atenção à política de treinamento e à aquisição de simuladores robóticos, ao fito de proporcionar constante treinamento, no próprio hospital, aos médicos que operam o robô; 4) por fim, ressalta-se a maior facilitação da defesa dos direitos dos consumidores brasileiros, no que diz respeito à prova do defeito do produto, pois há previsão de inversão do onus probandi, nos termos do art. 6º, inc. VIII do CDC. Já em contexto norte-americano, recai sobre o paciente o enorme ônus de demonstrar o defeito do produto. *Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestranda em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Pós-graduanda em Direito Médico pelo Centro Universitário Curitiba. Coordenadora do grupo de pesquisas em "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do grupo de pesquisas em direito civil-constitucional "Virada de Copérnico" (UFPR). __________ 1 SCHANS, Emma M. van der et. al. From Da Vinci Si to Da Vinci Xi: realistic times in draping and docking the robot. Journal of Robotic Surgery, v. 4, p. 835-839, dez. 2020. 2 ZEMMAR, Ajmal; Lozano, Andres M; Nelson, Bradley J. The rise of robots in surgical environments during Covid-19. Nature machine intelligence, Londres, v. 2, p. 566-572, out. 2020. 3 MOAWAD, Gaby N.; RAHMAN, Sara; ·MARTINO, Martin A.; KLEBANOFF, · Jordan S. Robotic surgery during the COVID pandemic: why now and why for the future. Journal of Robotic Surgery, v. 14, p. 917-920, dez. 2020. 4 MCLEAN, Thomas R; Waxman, S. Robotic surgery litigation. Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part C: Journal of Mechanical Engineering Science, v. 224, n. 7, p. 1539-1545, 2004. 5 DATTERI, Edoardo. Predicting the Long-Term Effects of Human-Robot Interaction: A Reflection on Responsibility in Medical Robotics. Science and Engineering Ethics, 2013, vol. 19, p. 139-160. 6 PAGALLO, Ugo. The Laws of Robots: Crimes, Contracts, and Torts. Londres: Springer, 2013, p. 88-94. 7 Sobre a discussão no julgamento Taylor v. Intuitive Surgical (2017), acerca do consentimento informado do paciente na cirurgia robótica, remeta-se a KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados Unidos, União Europeia e Brasil). In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Berreza de.; DADALTO, Luciana. (coord.) Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba: Ed. Foco, 2020, p. 159-186. 8 Destaque-se que o referido componente robótico - tip cover acessor - sofreu posteriormente recall pela fabricante. 9 O processo de liberação concedido aos robôs cirúrgicos já foi bastante criticado pela comunidade jurídica e sociedade estadunidenses, tendo sido inclusive tema do documentário "Operação Enganosa" (The Bleeding Edge), o qual traz relato de muitas pessoas que sofreram lesões em decorrência da indústria dos medical devices. 10 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (coord.) Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 399-428. 11 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, passim. 12 Sobre o consentimento informado do paciente, destaca-se a decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça: REsp 1540580/DF, rel. Min. Lázaro Guimarães (Des. Convocado do TRF 5ª Região), rel. p/ acórdão Min. Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 02.08.2018. 13 Ao propósito dos princípios contratuais e cláusulas éticas no contexto da cirurgia robótica, remeta-se a NALIN, Paulo; NOGAROLI, Rafaella. Cirurgias assistidas por robôs e análise diagnóstica com inteligência artificial: novos desafios sobre os princípios contratuais e o equacionamento da responsabilidade civil médica. In: EHRHARDT, Marcos; CATALAN, Marcos, MALHEIROS, Pablo. Direito civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 649-670. 14 Sobre o tema, imperiosa a remissão à clássica lição de KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 44-55. 15 TJSC, Autos n. 0307386-08.2014.8.24.0023. 16 Nesse sentido, cf.: STJ, AgInt no REsp 1770371/PR, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 24/06/2019. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
As famílias que perderam os seus filhos no massacre que Sandy Hook, nos EUA, em 2012, demandaram os fabricantes de armas, deduzindo contra eles uma pretensão indemnizatória. Tal pretensão foi considerada improcedente, em face do Protection of Lawful Commerce in Arms Act, tendo, contudo, o Supremo Tribunal do Connecticut entendido, em sede de recurso, que, no caso concreto, os demandantes poderiam ter razão com base numa lei estadual que sancionava as práticas comerciais desleais. Em causa estaria, na verdade, não propriamente a comercialização de armas, mas o tipo de arma e o conteúdo da publicidade que sobre ela havia sido feita, com potencial de incitar jovens problemáticos a comportamentos violentos como o verificado. O caso não poderia ser, assim, liminarmente rejeitado, devendo ser remetido ao tribunal para julgamento. Sem embargo do impacto político que uma questão como esta assume no contexto norte-americano, o caso faz-nos rememorar a célebre disputa entre os partidários da ilicitude do resultado e da ilicitude da conduta, no ordenamento jurídico alemão. A doutrina da ilicitude do resultado (Lehre von Erfolgsunrecht/ Erfolgsunrechtlehre) contenta-se com a violação do direito ou bem jurídico para a afirmação, ou pelo menos indiciação, da ilicitude; para a teoria da ilicitude da conduta (Lehre von Verhaltensunrecht/ Verhaltensunrechtlehre) só seria assim nos casos de atuação dolosa, pressupondo-se, nas restantes situações, a violação de um dever objetivo de cuidado. Precedendo temporalmente a segunda posição, o pensamento centrado no resultado, defendendo uma ação causal, torna-se problemático em determinadas situações, como aquelas em que emergem danos causados indiretamente, e conduz, ou pode conduzir, a situações bizarras. Quem o diz é Larenz, argumentando com o caso do fabricante de armas, cujo comportamento pode ser tido como causa adequada da morte de um sujeito, sem que verdadeiramente se possa chancelar de ilícita a sua atividade1. Assiste-se, face à constatação, à defesa da posição segundo a qual a ilicitude se colimaria na conduta e não no resultado2. A solução, reservada para os delitos negligentes, implicava que "a conduta deveria estar em contradição com uma norma do ordenamento no próprio momento da ação e não somente em atenção ao resultado lesivo posteriormente verificado"3. De todo o modo, segundo um dado entendimento, a consideração da conduta ficaria circunscrita às hipóteses de lesões indiretas ou danos indiretos4. Distingui-los daqueloutros diretos passa a ser, portanto, uma tarefa prioritária do jurista, sem que, contudo, se tenha gerado unanimidade em torno dos critérios da dicotomia, ensaiados por autores como Von Caemmerer5, Larenz6, Hans Stoll7, entre outros. Por direta, dever-se-ia entender a violação que cai no âmbito do próprio decurso da ação. No que a esta respeita, deve considerar-se ilícito o ato que atente diretamente um bem jurídico dotado de uma protecão erga omnes. Tomando como sustentáculo de argumentação o caso dos produtores de objetos potencialmente perigosos, Larenz adianta que, sendo a produção de tais bens uma condição no plano natural, não pode ser um nexo causal direto a determinar a ilicitude. Necessário é que se verifique a violação de uma obrigação de comportamento que o autor qualifica dogmaticamente como uma Gefahrvermeidungspflicht (obrigação de evitar o perigo)8. Outra seria a situação das lesões diretas dos bens jurídicos e direitos contemplados no § 823 I BGB. Se no caso da enfermeira que fornece uma dose mortal de um medicamento ao paciente, não se estando diante de um comportamento ilícito sem mais e concluindo-se que a descrição do evento não é só um problema descritivo e ontológico, antes desempenhando aqui um papel fulcral a argumentação jurídica, é crucial entender que os protagonistas daquelas condutas diretas devem abster-se de produzir o resultado negativo, havendo também aqui a violação de uma obrigação de comportamento - Erfolgsvermeidungspflicht (obrigação de evitar o resultado). Para Larenz, a distinção entre a mittelbaren Beeinträchtigungen e a unmittelbaren Eingriffen não é supérflua, tendo consequências dogmáticas ao nível da divisão entre a Gefahr-und Erfolgsvermeidungspflicht9. Na prática, tal implica que, no tocante às primeiras, apesar das prováveis consequências negativas, o sujeito deve comportar-se como faz, adotando certas medidas de cuidado; e no tocante às segundas, que ele deve agir de um modo diverso. Torna-se, assim, clara a diferença entre a Erfolgsunrecht e a Verhaltensunrecht10. O problema situar-se-ia, contudo, ao nível do Tatbestand, ou seja, no quadro da delimitação dos comportamentos delitualmente relevantes11. É que, em determinadas situações, a conduta só releva se for violada uma obrigação de evitar o perigo. Denota-se, portanto, uma nuance na ordenação sistemática dos pressupostos delituais a implicar o afastamento em relação a uma visão mais ortodoxa do problema. Segundo esta, a ilicitude por intervenções indiretas só ocorreria diante da violação de um dever, não se podendo aplicar o Modell of Rechtswidrigkeitsindikation12. De forma clarividente a propósito da primeira modalidade de ilicitude, razões há que parecem depor no sentido da configuração da ilicitude de acordo com o resultado. De facto, consoante o desenho traçado pelo legislador, a reação do ordenamento jurídico desencadeia-se com a lesão do bem jurídico absolutamente tutelado. No mais, é a função reipersecutória da responsabilidade civil que marca aqui a sua presença. Acresce que parece ser esta a melhor via de se garantir a fidelidade ao modelo bipartido entre a ilicitude e a culpa. Não obstante, isto não nos faz resvalar na pureza da consideração do resultado. Dois são os pontos em que ancoramos o nosso entendimento. Por um lado, o direito ajuíza condutas, pelo que só um comportamento humano pode ser chancelado como desvalioso ou não. Simplesmente, isto não constitui fundamento bastante para a proscrição da doutrina da ilicitude do resultado, pois, como vimos, os seus cultores não deixam de relevar em termos adequados a atuação humana por detrás do efeito. Por outro lado, qualquer requisito de procedência de uma pretensão indemnizatória há de ser informado pela intencionalidade específica da juridicidade, pelo que não fará sentido olhar para o resultado na sua pureza. Há de, portanto, valorar-se o resultado perspetivando-o como efeito da preterição de um dever de respeito diante do nosso semelhante. E porque não somos ilhas em confronto com os demais, essa preterição não implica somente a invasão de uma esfera de exclusão do outro, mas igualmente a violação positiva de deveres de cuidado/segurança para com o outro. Acontece que estes são mais amplos e mais abstratos que os deveres objetivos de cuidado, entendidos em sentido técnico, pelo que não é só a culpa que entra em cena, mas uma ideia de imputação objetiva a partir da qual cada um responde por determinadas consequências da sua conduta. O que aqui fica dito compreende-se até num outro posicionamento metodológico. Não é a morte em si que pode ser chancelada de ilícita, mas a morte provocada por um terceiro. Não se estranha, por isso, que o pensamento tradicional tenha insistido na necessidade da descoberta de um nexo de causalidade entre aquele resultado e a ação humana que lhe deu azo13. Dá-se, agora, um passo em frente: a causalidade enquanto nexo estabelecido entre o comportamento do agente e os danos deve dar lugar a um duplo nexo, conformado pela causalidade fundamentadora (que liga a conduta do lesante à lesão do direito ou interesse protegido) e pela causalidade preenchedora da responsabilidade (a ligar a lesão do direito ou do interesse aos danos subsequentes). Ora, para se estabelecer a primeira não podemos ficar presos a um juízo logicista do tipo da csqn, sequer a uma ideia probabilística atinente à adequação. Ao invés, só uma necessária ponderação imputacional que faça confrontar a esfera de risco assumida pelo pretenso lesante, com a sua atuação concreta, com as esferas de risco geral da vida, do lesado ou de um terceiro será apta a oferecer uma resposta justa ao problema. O fabricante de armas não pode ser, de per si, responsável pela morte causada com a arma que colocou no mercado. Mas sê-lo-á se, ao fazer entrar o produto em circulação, não garantiu todas as condições de segurança ou potenciou um uso incorreto do mesmo através de eventuais mensagens promocionais que possam ter tido lugar. Havendo um terceiro que usa a arma para matar outra pessoa, haveremos de ponderar em que termos o dever no tráfego violado tinha ou não como finalidade prevenir um mau uso por aquele terceiro. Tendo, o juízo imputacional torna-se simples. Não tendo, o juízo há de ser outro: a gravidade do comportamento do terceiro pode ser de molde a consumir a responsabilidade do primeiro lesante. Mas, ao invés, a obliteração dos deveres de respeito - deveres de evitar o resultado - pelo primeiro lesante, levando à atualização da esfera de responsabilidade a jusante, pode implicar que a lesão perpetrada pelo terceiro seja imputável àquele. Como fatores relevantes de ponderação de uma e outra hipótese encontramos a intencionalidade da intervenção dita interruptiva e o nível de risco que foi assumido ou incrementado pelo lesante. Entre ambas, pode também estabelecer-se o devido concurso. Repare-se, ademais, que num caso como este o fabricante poderia ser responsável sem que houvesse prova da violação de deveres de cuidado, de acordo com a responsabilidade do produtor. Mas nem por isso se eliminava a imputação, pois aquela responsabilidade ficaria dependente da colocação de um produto não seguro no mercado. Ora, este dado mostra que o que releva não é a consideração do dever ao nível da ilicitude, mas uma dimensão imputacional de que não se pode abdicar. *Mafalda Miranda Barbosa é professora associada da Universidade de Coimbra - Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. ________ 1- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch des Schuldrechts, II, Halbband 2, Besonder Teil, 13 Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 1994, 364 s.; Sinde Monteiro, Responsabilidade, 307. 2- Cf. Enneccerus/Nipperdey, Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts, 15. Aufl., Mohr,  Tübingen, 1960, 860 s.; Münzberg, Verhalten und Erfolg als Grundlagen der Rechtswidrigkeit und Haftung, Klostermann, Frankfurt am Main, 1966, 109 s. e 201 s.; Kötz/Wagner, Deliktsrecht, 11. neu bearbeitete Auflage, Verlag Franz Vahlen, München, 2010, 49 s. 3- Cf. Sinde Monteiro, Responsabilidade, 300, acrescentando que "não age ilicitamente quem atua no âmbito da adequação social". Veja-se, sobre o ponto, Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 365. 4- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 365; Larenz, "Rechtswidrigkeit und Handlungsbegriff im Zivilrecht", Festschrift für Dölle, Band I, Mohr, Paul Siebeck, Tübingen, 1963, 183 s.   5- Von Caemmerer, "Wandlung des Deliktsrechts", ", Festschrift zum hundertjährigen Bestehen des deutschen Juristentages, 1960, Band II, (também publicado em Gesammelte Schriften, Band I, Rechtsvergleichung und Schuldrecht, Mohr Siebeck, Freiburg, 1962), 49, 77 s., e 131 s.; Von Caemmerer, "Die absoluten Rechte in § 823 Abs. 1 BGB", Karlsruher Forum (Beiheft), 1961, 24 s. (também publicado em Gesammelte Schriften, Band I, Rechtsvergleichung und Schuldrecht, Mohr Siebeck, Freiburg, 1962, 554 e ss.). 6- Larenz, "Rechtswidrigkeit", 183 s.; Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 365 s. 7- Hans Stoll, "Unrechtstypen bei Verletzung Absoluter Rechte", Archiv für die civilistishe Praxis, nº162, 229 s. 8- Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 366 e Sinde Monteiro, Responsabilidade, 306. 9- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 367, que aqui acompanhamos de muito perto. 10- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 367 11- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 368. 12- Cf. Larenz/Canaris, Lehrbuch, II/2, 368, que aqui continuamos a acompanhar de muito perto. No caso das lesões diretas, o resultado indiciaria a ilicitude com a violação da obrigação de evitar o resultado (Erfolgsvermeidungspflicht); para o dano indireto, a violação da obrigação de evitar o perigo indicia com o resultado a ilicitude. 13- Cf. Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, 307. ________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A objeção de consciência é um direito garantido a todos os médicos como modo de preservação existencial daquele ser que desenvolve essa profissão. Nada mais é do que o direito do médico de se recusar a realizar determinado ato, pois supostamente violaria, não seu ofício, mas sim seus valores pessoais. Desta forma, considerando que o profissional é, antes de tudo, um sujeito de direito, garante-se o direito de ser um objetor de consciência.1 O médico tem o legítimo direito de recusar a prática do ato profissional, pois a sua realização acarretaria em uma agressão à sua própria identidade com repercussão no âmbito psicológico e emocional, elementos estruturantes de sua personalidade.2 A escusa de consciência se trata de um direito de preservação da autonomia profissional em razão de valores políticos, morais, filosóficos e religiosos.3 O Código de Ética Médica apresenta 117 deveres médicos e apenas onze direitos, dentre eles, a objeção de consciência. É importante dizer que, inclusive com o objetivo de não restringir a extensão da objeção, o Código de Ética Médica (CEM) e, tampouco o CFM, estabelecem as hipóteses taxativas em que a objeção de consciência pode ser suscitada, porém o Código traz as situações em que é vedado ao médico suscitar a sua prática, estabelecendo-se, portanto limites, a saber: ausência de outro médico para prática do ato; em caso de urgência ou emergência; ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. No que se refere à Reprodução Humana Assistida uma das grandes questões debatidas repousava no histórico do Conselho Federal Medicina de se posicionar a favor da objeção de consciência, de forma expressa e categórica, como plausível para o médico e em desfavor de pessoas solteiras e homossexuais. A redação anterior da resolução CFM nº 2.168 / 2017 estabelecia que "É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico". Causava extrema estranheza a previsão expressa dessa possibilidade de objeção de consciência, na medida em que não previa essa mesma possibilidade para todas as demais pessoas que poderiam demandar a reprodução humana assistida, como pessoas casadas, por exemplo. Essa previsão do CFM é representativa de um paradigma discriminatório, anteriormente previsto nas resoluções CFM nº 2.121/2015 e nº 2.013/2013. Entretanto, a recém-publicada resolução nº 2.283/2020 do CFM, publicada no Diário Oficial da União em 27 de novembro de 2020, busca outros horizontes isonômicos ao estabelecer que "É permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros". Porém, cabe ressaltar que, a referida resolução nº 2.283/2020, a nosso ver, falha em dois pontos centrais. Primeiramente, ela divide o mundo em "heterossexuais e homoafetivos"4 e, na exposição de motivos,  de certa forma, retrocede em aspecto que objetivou avançar.  Sobre isto, observe-se trecho onde esclarece que: "... verificou-se prescindível a parte final do dispositivo, "respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico", posto que a atuação profissional se dá com plena autonomia, inexistindo obrigação de o médico atuar em procedimentos que contrariem seus posicionamentos pessoais, à exceção de hipóteses emergenciais, conforme previsto no inciso VII do Capítulo I, "Princípios fundamentais", do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº2.217/2018)". A primeira falha decorre da pretensa divisão em homoafetivos, heterossexuais e transexuais. Para casais "homo", a norma valoriza a afetividade, o que nem sempre pode existir, ao passo que para casais hétero, valoriza-se a sexualidade, enquanto que para transgêneros, não é ressaltada nem a sexualidade e tampouco a afetividade, apesar de termos transgêneros com orientação homo ou heterossexuais. Mais adequado seria afirmar que "é permitido o uso de técnicas de Reprodução Humana para todos os interessados", independentemente de orientação sexual e identidade de gênero, sem rótulos desnecessários. Já em relação à exposição de motivos é que reside a maior falha da resolução, segundo nossa opinião. O médico que é atuante na área de reprodução humana não pode ser objetor de consciência em razão do estado civil, orientação sexual ou mesmo sobre sua condição "cis ou trans"5. Ainda que não haja uma previsão expressa, o que mitiga a legitimidade dos profissionais de externalizarem seus preconceitos e vieses, de suscitarem a objeção de consciência, quando o CFM afirma que esse direito persiste na RHA, legitima a criação de óbices fáticos ao planejamento familiar, consubstanciando lesões aos direitos da personalidade e também sob a perspectiva existencial. Ao invés de superar o fator discriminatório da resolução anterior, a nova resolução renova o debate, não tendo sido enfrentada a temática sob contornos verdadeiramente coerentes com os direitos fundamentais envolvidos. A medida discriminatória representaria uma dupla violação, pois, além de afrontar direitos da personalidade, inviabilizaria que o paciente e destinatário dos preconceitos do profissional possa efetivar o seu projeto familiar, ainda que temporariamente. Neste sentido, seria possível, inclusive, a cumulação de ações (dano moral e existencial), conforme entendimento defendido por Flaviana Rampazzo Soares6. Como bem reconhecem Eduardo Dantas e Marcos Coltri, "o exercício da objeção de consciência não permite que o médico aja de maneira preconceituosa para com o seu paciente"7. Permitir a objeção de consciência é relevante para defesa do ato médico de forma abrangente, porém esse direito não é absoluto. Além de não poder ser exercido nas condições expressas previstas no Código de Ética Médica, há de se considerar a inconstitucionalidade das discriminações eventualmente presentes. Se é necessário admitir a objeção de consciência como forma de tutelar a "diversidade de culturas, crenças, valores e convicções individuais, tão característicos de uma sociedade pluralista e tolerante"8, também é fundamental se reconhecer os seus limites intrínsecos trazidos na legislação médica, mas, sobretudo em valores extrínsecos que deveriam guiar a conduta de todos, independentemente da profissão, encartados no texto constitucional. Ademais, o próprio CEM proíbe o exercício médico de forma discriminatória, nos termos do inciso I dos princípios fundamentais e também com base art. 23 do CEM que estabelece que é vedado ao médico "Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto". Nesse contexto, poderia o médico suscitar a objeção de consciência em determinadas situações, como, por exemplo, a idade dos envolvidos, conflitos morais ou de interesse dos participantes em um processo de gestação solidária ou mesmo na concepção de savior sibling, todavia a orientação sexual, estado civil e/ou condição cis/trans não podem ser argumentos legítimos para o exercício da objeção de consciência.    A reprodução humana assistida, enquanto manifestação médica para viabilizar o projeto familiar é um ato em que a objeção de consciência encontra estreita passagem e sua motivação deve ser adequadamente fundamentada para evitar a mera suspeita de viés discriminatório, sob pena de potencial responsabilização civil, em razão de danos morais e existenciais, além da repercussão penal e ética do próprio ato. *Igor de Lucena Mascarenhas é aAdvogado com ênfase em Direito Médico. Doutorando em Direito pela UFPR e doutorando em Direito pelaUFBA. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista Em Direito Da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico (CDB) vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Professor do Centro Universitário UNIFACISA e UNIFIP Centro Universitário; e associado ao IBERC, IBDCivil, ABDE e IDCC.  **Ana Carla Harmatiuk Matos é doutora e mestre em Direito pela UFPR. Mestre em Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía.Tutora in Diritto na Universidade di Pisa-Itália. Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito da UFPR. Vice-presidente do IBDCivil. Diretora Regional-Sul do IBDFAM. Advogada militante em Curitiba. Conselheira Estadual da OAB/PR.  __________ 1 DINIZ, Débora. Objeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública. Revista de Saúde Pública, v. 45, p. 981-985, 2011. p. 982. 2 MAGELSSEN, Morten. When should conscientious objection be accepted? Journal of Medical Ethics, v. 38, n. 1, p. 18-21, 2012. p. 19 3 BUZANELLO, José Carlos. Objeção de consciência: uma questão constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 38, n. 152, p. 173-182, 2001. p. 174 4 Destaque inicialmente dado por Luciana Dadalto em postagem comentando a resolução no instagram. Cf. DADALTO, Luciana. Resolução CFM 2283/2020 de 27.11.2020. Disponível aqui. Acesso em 29 nov. 2020. 5 Pessoas cisgêneros seriam aquelas que possuem uma identificação com o gênero biológico  do nascimento, enquanto que transgêneros seriam aquelas que o gênero biológico do nascimento é divergente em relação à identificação da própria pessoa.   6 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009, pg. 44. 7 DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p.116 8 CAMARGO, Maria da Graça et al. Objeção de consciência e aborto legal sob a perspectiva da saúde: revisão integrativa. Rev Enferm UFPE On Line, v. 8, n. 6, p. 1774-81, 2014. p. 1775. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Introdução A tutela de urgência, espécie de tutela provisória, é uma modalidade de tutela processual baseada em cognição sumária. Significa isto que a tutela de urgência é baseada num exame da causa cuja profundidade permite apenas a formação de um juízo de probabilidade acerca da existência do direito material deduzido no processo pela parte a quem a decisão concessiva da medida de urgência aproveita. Exatamente por conta disso é que o art. 296 do CPC estabelece que as tutelas provisórias, aí incluídas, evidentemente, as tutelas de urgência, podem ser modificadas ou revogadas a qualquer tempo. É que o aprofundamento da cognição exercida pelo órgão jurisdicional, com a vinda de mais elementos de prova, pode levar à verificação de que o direito que, a princípio, parecia provavelmente existir, na verdade não existe, ou não existe nos termos em que, no momento anterior, parecia. Não se trata, portanto, de uma revogação ou modificação da decisão concessiva da tutela de urgência porque o julgador mudou de ideia, ou por ter ele se arrependido da decisão anteriormente proferida, ou qualquer fenômeno semelhante. O que se tem é uma autorização para que, diante de novos elementos de prova, que levem a um aprofundamento da cognição a ser exercida pelo órgão jurisdicional, se verifique que os requisitos de concessão da tutela de urgência, que em um exame menos aprofundado da causa pareciam estar presentes, na verdade não estão. Resulta daí a possibilidade de ter-se efetivado uma tutela de urgência e depois se verificar que a parte por ela beneficiada não fazia, na verdade, jus à obtenção de tutela processual. Mas se isso ocorre, então a parte contrária terá suportado a efetivação da tutela de urgência indevidamente, o que pode ter causado danos que precisam ser reparados. Daí a necessidade de examinar como a lei processual regula a obrigação de indenizar os danos resultantes da efetivação da tutela de urgência. O art. 302 do CPC Dispõe o art. 302 do CPC o seguinte: Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: I - a sentença lhe for desfavorável; II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias; III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor. Esse dispositivo trata não só de indicar quem é o devedor da indenização (a parte), mas também aponta os casos em que a indenização pelo prejuízo resultante da efetivação da tutela de urgência é devida. Além disso, indica que essa indenização é devida "independentemente da reparação por dano processual". Pois estes são os pontos que se pretende, com este breve ensaio, esclarecer. A responsabilidade civil da parte beneficiada pela tutela de urgência Em primeiro lugar, é preciso ter claro que o devedor da indenização sempre será a parte que foi beneficiada pela tutela de urgência, e nunca o Estado (empregado o termo aqui, claro, em sentido amplo). E isso se explica não só pela circunstância de ter sido a parte a beneficiada pela tutela de urgência, mas também pelo fato de que a tutela de urgência não pode ser deferida de ofício, sempre dependendo de requerimento da parte interessada para ser concedida. É o que resulta do disposto no art. 299 do CPC, que fala em requerimento de tutela provisória (de urgência ou da evidência). Fosse admissível o deferimento de ofício da tutela de urgência e certamente haveria, ao menos nos casos em que ela fosse concedida sem requerimento, a ruptura do nexo de causalidade entre a conduta da parte beneficiada e o dano suportado indevidamente pela parte contrária, o que afastaria - ao menos nesses casos, repita-se - a possibilidade de responsabilização daquele que é protegido pela tutela de urgência. Dada a exigência de provocação para que se conceda tutela processual de urgência, todavia, torna-se presente o aludido nexo de causalidade. Resulta daí, então, a possibilidade de se afirmar que aquele que requer tutela de urgência deve estar consciente do risco que daí resulta. É que, na prática, vê-se que as pessoas postulam a tutela de urgência de forma quase automática, como se esse tipo de requerimento fosse mesmo um requisito indispensável das petições iniciais. Pode acontecer, todavia, de se obter a tutela de urgência e, depois, em razão do modo como se desenvolve o processo, ter-se de indenizar a parte contrária. Assim, aquele que vai a juízo buscar lã pode voltar tosquiado. E raramente se tem notícia de que os advogados advirtam seus clientes desse risco (o que poderia até levar à responsabilização do advogado, por força de direito de regresso, mas isso é tema estranho ao presente ensaio). As hipóteses de responsabilidade civil por dano resultante da efetivação da tutela de urgência São quatro os casos em que a parte que foi beneficiada pela tutela de urgência pode ter de responder pelos danos que resultam da sua efetivação. O primeiro desses casos é o da prolação, após a concessão da tutela de urgência, de sentença desfavorável à parte beneficiada pela tutela provisória. Em outros termos, o que se tem aqui é uma decisão inicialmente proferida, com base em cognição sumária, em favor de uma das partes (a demandante) e, posteriormente à realização de cognição exauriente, e exatamente em função desse exame mais completo e profundo da causa, sua revogação pela decisão definitiva de mérito, que rejeita a pretensão deduzida por aquela mesma parte. Pois neste caso caberá à parte afinal vencida reparar os danos resultantes da efetivação da tutela provisória que, a rigor, nem deveria ter sido deferida. Protege-se, deste modo, aquele que realmente tem razão no plano do direito material (e, por isso, faz jus à tutela processual), em detrimento de quem até aparentava ser titular do direito, mas não verdade não o tem. Outro caso é o da parte demandante que, beneficiada pela tutela de urgência antecedente, não providencia, no prazo de cinco dias (úteis), os meios necessários para a realização da citação do demandado (como no caso de não ser fornecido endereço para realização da citação, ou não ser efetuado o recolhimento das custas relativas à diligência de citação). Evita-se, deste modo, que a tutela provisória se perpetue indevidamente, impondo-se ao demandante por ela beneficiado uma conduta cooperativa, destinada a permitir o regular andamento do processo. Terceira hipótese é a de, por qualquer razão prevista em lei, cessar a eficácia da tutela de urgência, como se dá, por exemplo, quando, obtida tutela de urgência cautelar antecedente, não se formula o pedido de tutela definitiva dentro do prazo de trinta dias úteis a contar da efetivação da medida (CPC, art. 308). Por fim, também responde o beneficiário da tutela provisória pelos danos no caso de a sentença reconhecer a prescrição ou decadência do direito do autor, hipótese que, a rigor, se subsume à primeira das hipóteses aqui indicadas, já que nesse caso se terá sentença desfavorável à parte que fora beneficiada pela tutela de urgência. A liquidação do dano e sua cumulabilidade com o dano processual Estabelece o parágrafo único do art. 302 do CPC que a indenização pelos danos resultantes da efetivação da tutela de urgência deverá, sempre que possível, liquidada nos próprios autos. Resulta daí que é efeito da decisão que revoga a tutela de urgência tornar certa a obrigação de indenizar os danos resultantes de sua efetivação. Para que possa o beneficiário da indenização, porém, promover a execução (que sempre deverá basear-se em título representativo de obrigação certa, líquida e exigível), é preciso promover-se a determinação do valor a ser pago. Essa liquidação se fará, sempre que possível, nos próprios autos do processo em que havia sido deferida a tutela de urgência, através da instauração de um incidente de liquidação de sentença (previsto nos arts. 509 a 512 do CPC), e terá por objeto a determinação do valor a ser pago a título de indenização dos danos materiais e, se for o caso, também de compensação de danos morais. Nada impede, porém, que se cumule a esses valores os que eventualmente tenham de ser pagos em razão do reconhecimento de que o demandante atuou no processo como litigante de má-fé. E é disso que trata o texto normativo ao afirmar que a indenização será devida "independentemente da reparação por dano processual". A base normativa para essa outra indenização, então, é o disposto nos arts. 79 a 81 do CPC. E são mesmo indenizações cumuláveis, já que referentes a causas distintas. Basta pensar no caso em que, em razão de uma tutela cautelar, um bem tenha sido apreendido e, até a sentença de improcedência do pedido, tenha o demandado sido privado de seu uso. Isso, evidentemente, é fundamento suficiente para que o réu seja indenizado pelo dano sofrido. Imagine-se agora que, neste mesmo processo, o autor tenha provocado incidentes manifestamente infundados, como seria o caso de arguir suspeições ou impedimentos que evidentemente não ocorrem, ou dar causa injustificadamente ao adiamento de audiência. Isto, por si só, e independentemente de ter sido ou não deferida a tutela de urgência, também é razão para a condenação da parte a reparar os danos sofridos pela parte contrária. Resulta daí que essas verbas indenizatórias, porque resultantes de causas distintas, e tendo por fim a reparação de danos diferentes, podem ser cumuladas. Promovida a liquidação dos valores a serem pagos, será possível prosseguir-se nos próprios autos, mediante a instauração da fase de cumprimento de sentença, intimando-se a parte condenada a pagar o valor apurado em liquidação de sentença para que efetue o pagamento em quinze dias úteis, sob pena de multa de dez por cento, honorários advocatícios de dez por cento, e prosseguimento do procedimento executivo. Conclusão O tema da responsabilidade civil pelo dano resultante da efetivação de tutela de urgência tem sido negligenciado pelos estudiosos do Direito Civil e da Responsabilidade Civil. Provavelmente isso se dá por estar a matéria tratada no Código de Processo Civil, de que resulta um certo desconhecimento sobre o assunto. Basta ver como é raro encontrar-se, na prática, algum acórdão que tenha tratado especificamente do tema. Basta dizer que, com quase cinco anos de vigência do CPC/2015, só se encontra um acórdão do STJ que tenha tratado especificamente do tema à luz das disposições da vigente codificação (o REsp 1770124/SP). Há, porém, um aspecto que deve levar os processualistas a se preocuparem com o tema (embora seja ele fundamentalmente, como visto, de direito material). É que a responsabilidade civil por dano decorrente da efetivação de tutela de urgência se insere, juntamente com outros institutos, na construção de um modelo de litigância responsável. É que não se pode mais admitir - especialmente em um país com tanta litigiosidade, de que resulta um número exageradamente alto de processos judiciais instaurados - que, em nome do caráter abstrato do direito de ação e da garantia constitucional de acesso à justiça, simplesmente se admita a ideia de que é possível a qualquer um, em qualquer caso, ajuizar sua demanda, mesmo não tendo qualquer direito, e daí não resultar qualquer consequência. É preciso que haja o reconhecimento de riscos na atividade processual das partes. A imposição do custo econômico do processo a quem lhe dá causa indevidamente, com sua condenação a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios, evidentemente, se insere neste sistema, já que impõe à parte um cálculo de custo-benefício e uma necessidade de análise dos riscos que o processo pode gerar. Mas é preciso ir além disso. A majoração de honorários advocatícios em razão da sucumbência recursal tem sido matéria a receber o devido destaque quando o tema é a litigância responsável. Mas também a responsabilidade pelos danos resultantes de atividades anticooperativas ou que resultem da má-fé, assim como o dever de indenizar danos resultantes da obtenção de tutelas provisórias que posteriormente não sejam confirmadas ou, em razão de desídia do seu beneficiário, acabem por ter sua eficácia extinta, se inserem nesse modelo. E é preciso, cada vez mais, impor às partes essa exigência de litigância responsável como elemento integrante do modelo cooperativo de processo civil que se constrói a partir do princípio constitucional do contraditório e de seu corolário, o princípio da cooperação, expressamente previsto no art. 6º do CPC. Só assim se poderá inserir o processo jurisdicional num contexto de construção de justiça civil para o Brasil, essencial para o desenvolvimento nacional. *Alexandre Freitas Câmara é doutor em Direito Processual (PUC-Minas). Professor adjunto de Direito Processual Civil da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. Membro do IBERC, do ICPC, do IBDP, do IIDP e da IAPL. Desembargador no TJ/RJ. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Formas não monetárias de reparação dos danos

Em obra publicada em 1897, René Demogue assinalava a insuficiência dos meios de proteção oferecidos pelo Direito à vítima dos danos. Lamentava o autor que era urgente que a sociedade oferecesse aos seus membros variadas e numerosas formas de reparação dos danos, afinal as lesões sofridas pelas pessoas nunca são idênticas. Se o dano injusto se manifestava de distintas formas, os meios de sua reparação também deveriam se adequar à nova realidade.1 O tempo passou, porém a crítica de René Demogue permanece atual. Ao ingressar em juízo para postular reparação civil, em geral, os advogados redigem as suas petições com uma estrutura semelhante: aponta-se uma ilicitude na conduta do réu e alegam-se danos derivados daquelas ações ou omissões descritas. E, a partir desse raciocínio, decorre o pedido de indenização em dinheiro. Essa estrutura se mostrou vitoriosa na experiência brasileira, razão pela qual é natural que ela seja adotada, afinal é dever do causídico proteger o direito do cliente. Contudo, embora exitosa, ela talvez esteja inibindo a identificação, na jurisprudência dos Tribunais, de outros meios de reparação dos danos, os quais se mostram necessários para proteger adequadamente as pessoas. Também como efeito dessa realidade, o debate da responsabilidade civil gravita em torno da vida do autor e do réu, ignorando-se o papel da sociedade nesse delicado fenômeno jurídico. Por decorrência, como pondera Anderson Schreiber, os "tribunais desconsideram a culpa (todos somos culpados) e a causa (todos somos causadores) dos danos, mas concluem o processo judicial de responsabilização lançando o ônus indenizatório sobre um único - e, muitas vezes, randômico - responsável. Há solidarismo no que diz respeito às condições para a deflagração do dever de reparar, enquanto a atribuição do dever em si continua arraigada ao individualismo mais visceral. O ônus de auxiliar as vítimas pertence a todos, mas vem atribuído a cada réu, aleatória e isoladamente, o que acaba por resultar em injustiça, a rigor, tão grave quanto manter o dano sobre a vítima".2 Sublinha o autor a conveniência de se idealizar sistemas de responsabilidade social que permitam repartir o pesado ônus reparatório entre outros agentes, "tornando mais efetivo e menos litigioso o amparo à vítima".3 Dentro desse contexto, no qual os processos perduram em média por quatro ou cinco anos (consoante dados oficiais), é fundamental que as pessoas envolvidas nos episódios de responsabilidade civil se valham de criatividade para encontrar soluções razoáveis distintas da mera condenação a pagar tal valor... A despeito do Código Civil adotar, no art. 944, o princípio da reparação integral do dano, na prática, as ações de responsabilidade redundam, quando procedentes, na condenação do réu a pagar uma determinada quantia, quando são líquidas as sentenças... Existe sempre o risco de insolvência do réu e proliferam "fases" de cumprimento de sentença destinadas ao fracasso. O art. 944, caput, do Código Civil, prescreve que "a indenização mede-se pela extensão do dano". Data venia, não está prescrito que o princípio da reparação do dano limita-se ao dinheiro. No plano acadêmico, veio em boa hora o Enunciado n. 589 da Jornada de Direito Civil: "a compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retratação pública ou outro meio". Sobre o tema, gostei muito da obra de Cícero Dantas Bisneto "Formas Não Monetárias de Reparação do Dano Moral", cujo prefácio foi assinado pelo Doutor Bruno Câmara Carrá.4 Fruto de dissertação acadêmica, sob a orientação da professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges, critica o autor o "mito do ressarcimento pleno", o qual sabemos que na maioria dos processos judiciais não é atingido. São frequentes os casos em que a parte autora, mesmo após "ter o seu direito reconhecido" pelo Poder Judiciário, se mostra insatisfeita com a módica compensação fixada. Debruçando-se sobre os processos que discutem "compensação por dano moral", a sua crítica é certeira: "o emprego reiterado e contínuo de medidas de cunho exclusivamente patrimonial denota, em realidade, verdadeiro paradoxo no sistema de reparação de dano, pois, se de um lado, vislumbra-se a crescente heterogeneização das lesões passíveis de ressarcimento, de outro, constata-se a uniformização do remédio utilizado, em completa desatenção às peculiaridades que o direito personalíssimo exprime. Assim, desde uma simples negativação indevida, passando pelas mais graves violações a direitos fundamentais, é a soma em dinheiro sempre alçada à condição de instrumento ideal de resolução de conflitos. O remédio monetário, isto posto, é utilizado indistintamente em situações completamente díspares, abarcando as mais diversas espécies de violações a direitos da personalidade".5 Defende o autor a existência do "princípio da reparação adequada do dano extrapatrimonial", dentre outras ideias interessantes. Com efeito, se o objetivo é resgatar um mínimo de segurança e tranquilidade aos envolvidos, é fundamental que outras medidas (para além da compensação em dinheiro) sejam adotadas. Isso se mostra ainda mais importante nos casos que envolvam pessoas próximas, que permanecerão em contato após a prolação da sentença (colegas de trabalho, familiares, sócios, etc.)  Muitos exemplos de formas não pecunárias de reparação encontram-se na própria vida social: (a) retratação pública ou privada; (b) publicização de sentenças, na rede ou em jornais; (c) sessões públicas de desagravos; (d) estabelecimento de feriados, com a clara identificação da sua razão de ser; (e) direito de resposta; (f) remessa de cartas personalizadas às vítimas; (g) construção de memoriais, museus, obras de arte para alertar, inclusive as gerações futuras, acerca de eventos históricos marcantes, além de ampla sorte de obrigações de fazer ou não fazer, etc. Vamos imaginar uma hipotética situação que, infelizmente, se repete em todas as Comarcas do Brasil. Mariana, bastante lesionada, comparece em uma Delegacia de Polícia, alegando ter sido vítima de violência doméstica. Está casada há mais de vinte anos com Joaquim. Refere que as agressões teriam começado nos primeiros anos do matrimônio. Com o passar dos anos, elas foram ampliando as suas proporções. Preferiu por muito tempo o silêncio, receosa dos efeitos que uma eventual denúncia poderia gerar na vida dos filhos, em especial. Agora, no curso da pandemia, a realidade tornou-se insuportável e, acudida por familiares e amigos, Mariana enfim denuncia a sua triste realidade. Leiga em assuntos jurídicos, Mariana tem aconselhamento legal e descobre que o direito penal lhe oferece alguma proteção e conforto através da "Lei Maria da Penha". De seu turno, qual a resposta que o direito civil lhe poderia propiciar? Afirmar que ela poderia ingressar em juízo, demonstrar a extensão das lesões praticadas por Joaquim, e postular uma condenação em dinheiro de seu marido? Essa resposta, além de insuficiente, se mostra injusta na imensa maioria dos casos, pois ela - sozinha - não resolve ou minimiza o conflito. No caso, seria altamente recomendável o estabelecimento de outras "obrigações", para lidar com o dano e com a ameça concreta de sua repetição, como distanciamento provisório entre as partes e outras medidas inibitórias, terapias (cujo custo para a vítima é pesado), medidas de auxílio para as crianças, procedimentos médicos (em alguns casos, inclusives cirurgias reparadoras e estéticas), para minimizar - na medida do possível - o dano provocado. Também situações menos dramáticas merecem novas reflexões. Por exemplo, se um (quase) obsoleto talonário de cheques for extraviado pelo Banco, não será razoável oferecer ao correntista a possibilidade de consulta à base do "Serasa", para monitoramento de seus dados, por um determinado período? Ou ainda: para resgatar a tranquilidade de vizinho, poderia uma discoteca ou construtora ser constrangida a instalar equipamentos para mitigar o barulho? Ditos pedidos estariam em sintonia com o ideal de reparação integral? Compete a doutrina indagar soluções para essas questões que são atualíssimas. A este respeito, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald adotam posição inovadora e arrojada, ao tecer o seguinte raciocínio em favor da "desmonetização da reparação": "se o ofendido possui a nítida percepção da insuficiência econômica do ofensor, nada lhe impede de pleitear ao magistrado a condenação do lesante à prestação de serviços à comunidade. Não se cuida aqui de uma pena, mas de uma forma alternativa de compensação de danos, que propiciará uma função social à responsabilidade civil, com imediata satisfação à sociedade no aspecto material e igualmente à pessoa do ofendido, que nesse proceder do agente perceberá a efetividade do aparelho estatal e um substitutivo para a incompreensibilidade pecuniária. Não se olvide do aspecto pedagógico da reparação, pois o labor propicia ao ofensor uma reflexão crítica sobre o comportamento que deu origem ao dano injusto. Ao reverso, poderá ainda o autor da demanda, desmonetizar a reparação ao postular por apenas "um real", acrescendo-se a esse valor a condenação à publicação da sentença, como forma substitutiva de compensação àquilo que seria o restante do valor da condenação. Sabe-se hoje que o maior patrimônio de uma empresa é a sua credibilidade perante o corpo social. Uma decisão de tal calibre, quando conhecida pela coletividade, não apenas afirma o despojamento da vítima, como submete o ofensor a uma censura coletiva bem mais ampla do que o anônimo pagamento de uma reparação ordinária. Se a reparação pelo dano moral nunca será capaz de restaurar a situação do ofendido ao momento anterior da lesão, consistindo em mera compensação, injusto seria fechar as portas do Poder Judiciário a uma pretensão de maior caráter satisfativo à vítima, mesmo que isso resulte em uma desmonetarização da reparação. Ou seja, a visibilidade do fato, acrescida ao inusitado do valor, pode conceder à vítima uma eficácia satisfativa bem maior do que o recebimento de uma quantia ínfima".6 Enfim, o Direito Civil - para proteger adequadamente as pessoas - não pode ficar refém de uma leitura restritiva do "princípio da reparação integral do dano". É necessário ampliá-la. Ao longo de nossa formação, acostumamo-nos a voltar as nossas atenções ao passado, esquecendo de perscrutar o futuro. Muitas vezes, ao deixar de atentar para a potencialidade do porvir, fomentamos novos conflitos e ampliamos as frustrações dos envolvidos. Olvidamos também que, por trás dos pedidos que são formulados nos processos judiciais, existem interesses que precisam ser considerados para a regulação do conflito. Essas questões se mostram fundamentais para lidar com situações históricas e "novos temas de responsabilidade civil", como o bylluing, cyberbulling, pornografia de vingança, danos derivados de contágios, relações abusivas em família, ofensas no ambiente virtual, danos à imagem, ilícitos no amplo mercado de consumo, etc. Sem a sua consideração, a sociedade, ao invés de se sentir mais segura pela consideração dos interesses de seus membros e a harmonização com os dos demais, tenderá a perder coesão, em face do ângulo estritamente individual de análise dos casos que ainda perdura na resolução dos processos. A participação de todos os operadores, para a evolução de nosso sistema e de nossa prática, é fundamental. A demanda social está evidente. Resta ao direito buscar a adaptação de seus institutos históricos para supri-la, em favor de um convívio mais harmônico e respeitoso entre as pessoas. *Daniel Ustárroz é professor adjunto da PUC/RS. Doutor em Direito Civil pela UFRGS. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado e parecerista. __________ 1 "Il s'en faut de beaucoup que la société puisse offrir à ses membres des modes de réparation aussi variés et aussi nombreux que les moyens employés par les délinquants pour leur nuire. Les diverses manières de nuire à autrui sont innombrables, les diverses façons de réparer le mal sont, au contraire, en très petit nombre." Demogue, René, De La Réparation Civile des Délits, pp. 44-45. Paris : Elibron Classics, 1897 (ré-impresion 2006). 2 Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, p. 7. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. 3 Op. cit. p. 8. Com efeito, poderíamos utilizar históricos instrumentos de direito privado, como o contrato de seguro, para tornar menos randômico e custoso o processo de reparação de danos, em algumas áreas. Em outras, diante de danos anormais e graves (como um extraordinário evento de terrorismo, etc.), leis deveriam oferecer protagonismo à sociedade na reparação justa dos danos. 4 Formas Não Monetárias de Reparação dos Danos. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019. 5 Op. cit. p. 175. 6 Tratado de Responsabilidade Civil. p. 326-327. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil.
Não há um dia em que não façamos uso de plataformas digitais: nos comunicamos, trabalhamos, nos locomovemos, estudamos, nos relacionamos e contratamos por seu intermédio com cada vez mais intensidade, especialmente após o início da pandemia de coronavírus, a qual significou ao comércio eletrônico recordes de faturamento já no primeiro semestre de 20201. Todas as comodidades oferecidas nas interfaces usuais de apps e sites passarão, em rigor, por serviços prestados - de acesso a determinado conteúdo, de conversas simultâneas, de aproximação ou intermediação de pessoas com interesses em comum, ou arranjos mais complexos, como se tem verificado nas dinâmicas da economia do compartilhamento, que, por sua peculiaridade triangular, coloca em pauta a identificação da qualificação jurídica da plataforma - tópico especialmente importante para fins de responsabilidade civil de consumo. A atenção, em geral, nesses casos de consumo em status de compartilhamento, será na esfera privada daquele que se dispõe, por intermédio da organização e da oferta proporcionada pelo portal, a prestar determinado serviço ao consumidor destinatário final - "carona" ou "hospitalidade" nos modelos mais famosos -, de modo que se tenta transferir aos provedores diretos e aos consumidores os riscos que essa atividade cria, a eximir-se de responsabilidade2, em confronto com os preceitos do CDC (art. 51, I, II e IV). Nesses casos de compartilhamento em que há prestação de serviços para além da mera intermediação, por coligar três distintos sujeitos principais que podem ser qualificados juridicamente de maneiras diferentes, a depender de seus atributos e do entendimento que a eles se dê, a própria natureza da relação que se estabelece poderá diferir, atraindo ou afastando a incidência de determinados diplomas legais (por exemplo, os modelos B2B, via de regra, afastam a incidência no CDC, salvos casos de equiparação a consumidor). Ao par disso, nos moldes P2P (de ponta a ponta) ou P2B2P (quando se insere a plataforma como parte da relação no modelo de e-commerce), costuma-se questionar se a plataforma será qualificada como fornecedora também dos serviços subjacentes, nos termos do Art. 3º, do CDC, para todos os efeitos ou, ao revés, será ela mera intermediadora e aproximadora, portanto responsável somente pelo que lhe é "autorreferenciado" como inerente. Em outros termos, é de se considerar se poderá ser a plataforma responsável por eventual inadimplemento do contrato ou por outros danos decorrentes dessa relação conexa, a qual viabiliza e auxilia a perfectibilizar perante o consumidor, mesmo se a causação do prejuízo for por conta do provedor direto. Numa primeira análise, poder-se-ia pensar que não, pois estaria ausente o nexo de causalidade, já que a conduta danosa seria perpetrada pelo "parceiro contratual" e não pela plataforma, cuja atividade se limitaria a facilitar o serviço e conectar o consumidor ao prestador imediato. Aliás, essas plataformas, grosso modo, se autoproclamam empresas tecnológicas que não têm quaisquer ingerências na operação econômica-base, sendo, nesse sentido, o principal argumento de defesa a sua ilegitimidade passiva e, no mérito, a inexistência de uma relação de consumo apta a atrair o regime protetivo do CDC. Contudo, as funções das plataformas devem ser sopesadas antes de se chegar a tal conclusão. Tendo em consideração a variedade de modelos possíveis, cujas atividades também variarão conforme o nicho mercadológico, bem como pelo estabelecido nos termos e condições de uso, existe uma ampla gama de atuação que irá desde a simples aproximação entre pares até a intervenção significativa no que é contratado. Assim, existe um continuum de funções - da simples intermediação às garantias de performance, do controle fraco ao elevado, que são variantes de plataforma para plataforma3. Lembra-nos Miragem que a plataforma exerce poder em relação aos demais envolvidos, já que a ela incumbe a definição de seu modelo negocial e, consequentemente, o acesso ao canal específico que organiza e o modo como produtos e serviços serão ofertados e fornecidos, sendo denominada, por esses motivos, de Gatekeeper4. Frise-se que não é incomum ficar a cargo das plataformas a precificação ou que ofereçam gerenciamento de pagamentos ou meios seguros de os realizar, ou que imponham condições contratuais, exijam seguros, antecedentes criminais, verificação de identidade, controlem trajetos, inclusive com possibilidade de aplicação de sanções, como o desligamento de determinado indivíduo que não tenha seguido as regras do portal, seja por má conduta ou por não atingir determinados scores em relação a avaliações pretéritas. É uma espécie de "controle remoto", o qual já foi valorizado juridicamente pela CLT5 e que pode iluminar o Direito do Consumidor nos casos que emergem da transformação digital. Claudia Lima Marques considera a gradativa extensão da responsabilidade da plataforma de acordo com o grau de intervenção/controle de determinado tipo de site ou app na contratação entre os pares que dê causa, as quais retiram dessas situações proveito econômico em forma de remuneração direta, por taxas ou comissões, ou indireta, por meio de publicidade, por exemplo. Identifica, dessa forma, uma rede de fornecimento não visualizável facilmente, "escondida", mas nem por isso isenta da responsabilidade solidária e objetiva (Arts. 7º, § único, 14, e 20, do CDC), especialmente quando despertada a confiança (justificada/legítima) no consumidor. É exatamente para isso que as funções referidas servem: para promover essa confiança, que pode ser enxergada no prestígio e na reputação da marca e dos próprios pares, já que tais atributos são a todo o tempo analisados como medida de segurança e de qualidade dos serviços prestados pela plataforma e pelo provedor direto6 e, ao consumidor, para atestar sua idoneidade e sua correição, especialmente durante a execução do serviço. Todos esses atributos geram expectativas legítimas naquele que contrata na condição de destinatário final fático e econômico, as quais informarão a sua decisão, também muito por conta da publicidade incisiva: "tranquilidade onde quer que você vá" e "tecnologia a favor da segurança" aparecem como cabeçalho de 15 medidas de segurança adotadas pela Uber; "segurança desde o princípio", "pagamentos seguros", "avaliação de risco", "prevenção de fraudes", dentre outras, são medidas adotadas pelo Airbnb. Enquanto consumidor, confia-se na atuação da plataforma e na avaliação do provedor imediato; se frustrada, ainda assim confia-se na aplicação das normas do microssistema protetivo encabeçado pelo CDC. Aliás, confiança esta que é considerada a nova moeda do consumo compartilhado e tão perseguida pelas plataformas restará abalada caso elas mesmas se desonerem da aplicação da lei consumerista sob qualquer hipótese - portanto, não deveria ser de interesse insistir na sua ilegitimidade para responder ao dever de indenizar perante o consumidor em quaisquer casos. Por sinal, juridicamente as plataformas de compartilhamento são enquadradas como aplicações de Internet (art. 5º, VII, MCI), constituídas na forma de pessoa jurídica, exercendo atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos (Art. 15, caput, primeira parte, MCI) - o que guarda precisa coincidência com o conceito de fornecedor do Art. 3º, do CDC, onde consta serem fornecedores as pessoas jurídicas, que prestem serviços no mercado de consumo mediante remuneração (Art. 3º, § 2º, CDC). Nesse sentido, não é forçoso que se reconheçam tais plataformas como fornecedoras, de modo a estabelecer que a liberdade negocial não conflite (Art. 3º, VIII, e parágrafo único, do MCI) com o princípio (e o reconhecimento) da vulnerabilidade dos consumidores no mercado (Art. 2º, V, do MCI, c/c Art. 4º, I, do CDC), tornando-as parte da rede de fornecimento. Será, assim, a organização e o controle da performance do fornecimento por intermédio de plataforma considerados a atividade que lhe compete, de maneira a assumir perante o consumidor os riscos dos "parceiros", sendo por isso captada pelos regimes de responsabilidade previstos no CDC? Colocando de outra forma: será garantir a confiança e as expectativas legítimas dos consumidores, a segurança e a qualidade do que ofertam (mesmo que não sejam os provedores diretos), disso fazendo ostensiva publicidade e auferindo significativos lucros, um novo serviço? A jurisprudência tem nos dado pistas significativas e, adiante-se, na maioria das vezes tende a confirmar esse entendimento. Isso porque a plataforma, ainda que atue na intermediação dos serviços subjacentes, não fica isenta de responsabilidade, já que contribui para inserção do serviço no mercado de consumo [1], aufere lucro da atividade, recebe valores e cria políticas e condições contratuais [2], gerencia e seleciona seus parceiros [3] (que não podem ser considerados terceiros [4], ainda mais ante a existência de conexidade contratual [5]) e os subordina ao preenchimento de diversos requisitos e treinamentos [6], sendo irrelevante não empregar ou não ser proprietária do bem utilizado [7], de modo que "incumbe a ela zelar pelo comportamento de seus parceiros comerciais e pela qualidade dos serviços referentes ao seu aplicativo" [8], da mesma forma que deve prezar pelas corretas informações divulgadas e pela regularidade do serviço oferecido, incluídos os anexos, como os de limpeza [9]. Nessa síntese jurisprudencial podemos perceber que o Judiciário tem enxergado tais plataformas como uma condição necessária à realização da prestação do serviço subjacente [10], o que vai ao encontro do entendimento europeu (caso espanhol levado ao TJUE Uber x Táxis), especialmente porque o consumidor se utiliza dos aplicativos e sites de compartilhamento pela confiança e pela segurança [11] que a empresa oferece, independentemente de quem seja o provedor direto [12]. Aliás, mencione-se entendimento do STJ no sentido de "responsabilização solidária de todos que participem da introdução do produto ou serviço no mercado, inclusive daqueles que organizem a cadeia de fornecimento, pelos eventuais defeitos ou vícios apresentados" (grifei) [13]. É, então, sua obrigação, como garante da credibilidade das relações ali estabelecidas, avalizar a estabilidade dessas relações [14], mesmo que não participe diretamente [15], respondendo objetivamente e solidariamente pela ocorrência de eventuais prejuízos ou danos ao consumidor pela utilização do serviço próprio que presta, mas também o que viabiliza a prestação, sendo certo que a falha do serviço também será caracterizada pelos atos praticados pelos parceiros [16], sendo lícito ao consumidor, vale lembrar, acionar exclusivamente a empresa organizadora do portal se assim lhe aprouver [17]7. Mesmo que a amplitude do ordenamento jurídico brasileiro dê conta do fenômeno da economia do compartilhamento, em atenção ao diálogo das fontes e à jurisprudência que começa a se edificar (já homenageando a magistratura neste sentido), para que não haja um "esvaziamento" da proteção dos consumidores no novo paradigma digital que começa a reverberar em termos normativos, é necessário estabelecer e revigorar, na atualização do CDC em relação ao comércio eletrônico (PL 3.514/2015, apensado ao PL 4.906/2001), os deveres e as responsabilidades dessas plataformas e dos demais marketplaces. *Guilherme Mucelin é doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É especialista em Direito do Consumidor (UFRGS), em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation (Université de Savoie-Mont Blanc/UFRGS) e pós-graduando em Direito do Consumidor (Universidade de Coimbra). Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e da International Association of Consumer Law (IACL). __________ 1 EBIT|NIELSEN. Webshoppers - 42º Relatório. Disponível aqui. Acesso: 25 out. 2020. 2 Veja os termos de usos da Uber: "Os serviços da Uber poderão ser usados por você para solicitar e programar serviços de transporte, bens ou logística prestados por parceiros independentes, mas você concorda que a Uber não tem responsabilidade em relação a você, por conta de qualquer serviço de transporte, bens ou logística realizados por parceiros independentes, salvo se expressamente estabelecida nestes termos. Como consequência, a Uber não tem qualquer responsabilidade por rotas adotadas por parceiros independentes ou por quaisquer itens perdidos nos veículos de parceiros independentes". (UBER. Termos e usos. Disponível em: https://ubr.to/34uGELW. Acesso em: 25 out. 2020). No mesmo sentido o AIRBNB: "Você reconhece e concorda que, na máxima extensão permitida por lei, permanece sob sua responsabilidade todo o risco proveniente de seu acesso e uso da Plataforma Airbnb e Conteúdo Coletivo, sua publicação ou reserva de qualquer Anúncio por meio da Plataforma Airbnb, sua estadia em qualquer Acomodação, participação em qualquer Experiência ou Evento ou uso de qualquer outro Serviço de Anfitrião, participação no Serviço de Pagamento em Grupo, ou qualquer outra interação que você tenha com outros Membros". (AIRBNB. Termos de serviço. S.d. Disponível aqui. Acesso em: 25 out. 2020). 3 MUCELIN, Guilherme. Conexão online e hiperconfiança: os players da economia do compartilhamento e o Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2020, em especial, terceiro capítulo. 4 MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 125, set./out. 2019. 5 CLT. Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único: Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. 6 MARQUES, Claudia Lima. A nova noção de fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e o acesso ao consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 111, p. 247-268, maio/jun. 2017. 7 Julgados citados na ordem que aparecem no texto: [1] TJSP, Ap. Cív. 1011393-43.2017.8.26.0604, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Carlos Dias Motta, j. 02.07.2020;  [2] TJRS, Recurso Inominado 71009100462, 1ª T. Rec. Cív., rel. José Ricardo de Bem Sanhudo, j. 10.12.2019; [3] TJPR, Recurso Inominado 0036046-80.2018.8.16.0019, 1ª T. Rec., rel. Vanessa Bassani, j. 30.04.2020; TJSP, Ap. Cív. 1006568-64.2018.8.26.0590, 21ª Câm. Dir. Priv., rel. Décio Rodrigues, j. 28.08.2020; [4]TJSP, Ap. Cív. 1034070-36.2018.8.26.0506, 19ª Câm. Dir. Priv., rel. Mourão Neto, j. 31.03.2020; TJSP, Ap. Cív. 1013470-87.2019.8.26.0011, 20ª Câm. Dir. Priv., rel. Roberto Maia, j. 28.07.2020; [7] [5]TJSP, Ap. Cív. 1003697-74.2019.8.26.0348, 11ª Câm. Dir. Priv., rel. Renato Rangel Desinano, j. 31.01.2020;  [6]TJRS, Recurso Inominado 71008847659, 4ª T. Rec. Cív., rel. Gisele Anne Vieira de Azambuja, j. 23.08.2019; [7]TJRS, Recurso Inominado 71009231648, 4ª T. Rec. Cív., rel. Gisele Anne Vieira de Azambuja, j. 19.02.2020; [8] TJPR, Recurso Inominado 0006381-22.2018.8.16.0018, 1ª T. Rec., rel. Juiz Nestario da Silva Queiroz, j. 12.02.2020; [9] TJRS, Recurso Inominado 71009270174, 4ª T. Rec. Cív. rel. Gisele Anne Vieira de Azambuja, j. 23.04.2020;  [10]TJPR, Recurso Inominado 0023359-04.2019.8.16.0030, 5ª T. Rec., rel. Juíza Manuela Tallão Benke, j. 29.06.2020;  [11] TJDF, Recurso Inominado 1229681, 2ª T. Rec., rel. Arnaldo Corrêa Silva, j. 12.02.2020;  [12] TJRS, Recurso Inominado 71009386004, 3ª T. Rec. rel. Giuliano Viero Giuliato, j. 25.06.2020; [13] STJ, REsp 1426578/SP, 3ª T., rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.06.2015;[14] JRS, Recurso Inominado 71009221946, 3ª T. Rec. Cív., rel. Luís Francisco Franco, j. 25.06.2020; [15] TJSP, Ap. Cív. 1002695-19.o2020.8.26.0224, 18ª Câm. Dir. Priv, rel. Israel Góes dos Anjos, j. 24.07.2020; [16] TJRS, Recurso Inominado 71008847659, 4ª T. Rec., rel. Gisele Anne Vieira de Azambuja, j. 23.08.2019; TJSC, Recurso Inominado 0311411-59.2017.8.24.0023, 1ª T. Rec., rel. Marcelo Pizolati, j. 06.06.2019; TJSC, Recurso Inominado 0302551-86.2017.8.24.0082, 1ª T. Rec., rel. Marcelo Pizolati, j. 09.05.2019; [17] TJSP, Ap. Cív. 1003697-7.4.2019.8.26.0348, 11ª Câm. Dir. Priv., rel. Renato Rangel Desinano, j. 31.01.2020.  __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
O texto que rapidamente se articula nesta prestigiada coluna busca indagar sobre o dano moral, sua existência e destino na ordem jurídica brasileira contemporânea. A razão de ser das reflexões adiante apresentadas decorre de uma constatação muito simples: enquanto orientador e examinador de dissertações e teses, dei-me conta que há muito tempo nada oriento ou examino sobre dano moral (s.s.); enquanto pesquisador do Direito Civil observo que poucos são os trabalhos de menor1 ou maior folego2 que ainda laboram sobre dano moral.  Parece ser legítima, portanto, a auto indagação sobre o ocaso do dano moral ou, quiçá, especular sobre o seu locus na estrutura das fontes jurídicas nacionais contemporâneas. Para responder à provocação é necessário analisar "de onde viemos" para entender "onde estamos" e para "onde vamos". De modo muito breve, percorrer-se-ão os tempos da redemocratização e reconstitucionalização (1988), da aplicação direta da normativa constitucional às relações interprivadas, da resignificação do ser e a autocompreensão de que ele/ela não se limita ao ter, até aportamos no CC 2002. Após, investigar-se-á a expansão do dano moral nas assim denominadas novas hipóteses de danos e a sua relocação da estrutura das fontes normativas. Viemos de um tempo pré-constitucional de 1988, momento o qual o dano moral já desafiava a lógica de um sistema privado fundado em dois diplomas legais unitários, centralizadores e totalizadores da experiência fática, Código Civil 1916 e Código Comercial de 1850, em evidente revolta dos fatos contra os códigos. Nessa toada, a melhor doutrina nacional já trabalhava com o porvenir3.  Advogados Inquietos, desde antes de 1988, passaram a demandar "indenização por danos morais", sobretudo com base na literatura francesa do dommage moral (ex vi George RIPPERT, Le prix de la douleur), já adotada e absorvida pela doutrina nacional. Rebeldes, juízes discretamente passaram a acolher os pleitos, afinal de contas não era mais possível resistir a danos horrendos, como, por exemplo, a morte do filho, não tutelado pela lei privada, somente pela criminal. Com efeito, na hierarquia das fontes jurídica, o dano moral já era um valor social, mas não era princípio jurídico e tampouco regra, digno de tutela jurídica.  Ante a resistência, insensibilidade ou ignorância do legislador infraconstitucional, o constituinte de 1988 recepcionou o dano moral, estabilizando-o na fonte normativa constitucional, como direito fundamental da pessoa humana: "art. 5  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: inc. V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;" O conceito de dano foi reduzido na sua dicção de ofensa a interesse jurídico patrimonial tutelado para ofensa a interesse jurídico tutelado, estendendo o seu alcance para o ser e todo o seu plexo de imputações existenciais. Embora esdrúxula a constitucionalização de instituto próprio do direito privado na fonte normativa constitucional, foi esta uma tônica da Constituição de 1988, o que se verificou não somente com o dano moral, como também com o direito de família, direito à herança, direito de propriedade e outros tantos, frente a desatenção do legislador infraconstitucional aos anseios sociais pela atribuição de tutela a novas situações jurídicas patrimoniais e, sobretudo, existenciais.    Certo ou errado, justo ou injusto, técnico ou não sob o ângulo do direito positivo, fato é que a dano moral foi a primeira experiência de aplicação direta da Constituição da República às relações interprivadas, sem que existisse, portanto, regra infraconstitucional regulamentadora que mediasse a normativa constitucional e o fato concreto. Desde outubro de 1988, sentenças e acórdãos passaram a ser proferidos com ampla legitimação do dano moral como categoria de dano indenizável, em que pese não regulado por normativa infraconstitucional. A primeira regulamentação infraconstitucional sobre o dano moral, no campo das obrigações privadas, veio com o CDC/1990 (art. 6º São direitos básicos do consumidor: VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos), seguida da codificação civil CC/2002 (art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito). Entretanto, como o CDC é regra especial ao passo que o CC estabelece as regras gerais da Responsabilidade Civil, pode-se concluir que entre 5 de outubro de 1988 e 10 de janeiro de 2003 verificou-se a incidência direta da normativa constitucional às relações interprivadas, no tocante ao dano moral na responsabilidade civil geral. Assim sendo, a pessoa humana passou a ser uma fonte de imputação de danos em si e não mais e somente o seu patrimônio, que potencialmente pode ser atingida por atos ilícitos absolutos e relativos. A pessoa humana na sua perspectiva simplesmente existencial é sujeito passivo potencial de danos não patrimoniais, ou seja, interesses, direitos, ou, como preferimos, situações jurídica que não podem ser aferidas em pecúnia, somente estimadas, dai porque existenciais. A pessoa humana é passiva de danos não patrimoniais enquanto viva, após a sua morte e mesmo antes de nascer, uma vez que o Código Civil põe a salvo os interesses do nascituro e em harmonia com a normativa constitucional esta tutela não pode ser reduzida ao viés patrimonial do ser (art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro). Como resultado, severamente ampliou-se a tutela da pessoa humana e, por consequência, a litigiosidade social. Pós 1988 verificou-se a explosão de ações indenizatórias por danos morais, uma vez que os valores existenciais do ser são infinitos, pessoais, coletivos e difusos ao passo que os patrimoniais se restringem ao ter ou à coisa desta mesma pessoa. A responsabilidade civil como categoria jurídica foi renovada e ampliada e os tribunais não tardaram em dar uma resposta reducionista a tais pretensões, impondo requisitos limitadores, seja no tocante à quantificação do dano moral, seja na distribuição de ônus probatório, a partir da rejeição da técnica in re ipsa para danos imateriais contratuais, em nosso pensar, equivocadamente. Com relação ao posicionamento jurisprudencial é importante salientar que decorre ele, nalguma medida, na própria incompetência da doutrina nacional (faz-se o mea culpa) em traduzir o dano moral como categoria existencial propriamente dita, na busca da despatrimonialização do Direito Civil. Muito embora a despatrimonialização seja um dos vértices do Direito Civil brasileiro pós Constituição de 1988, não pode ele atuar como uma simples miragem desértica, incongruente e retórica, ao se pretender compensação patrimonial pela ofensa não patrimonial. Nesse passo, urge redesenhar as funções do dano moral. O ocaso do dano moral é símbolo do fracasso da doutrina brasileira em apresentar à esta norma a exata medida da sua importância na reinvenção do ser, que não se confunde com o ter, seja ele estático (substantivo), seja ele dinâmico (adjetivo).   A compensação do dano moral não pode ter como primeira resposta o arbitrário e discricionário "equivalente" pecuniário da dor, devendo ser lançado mão de tal recurso quando não seja possível devolver à pessoa humana a dignidade subtraída pelo ilícito. Tal solução parece ser inviável quando se analisa o exemplo do filho morto, mas, por outro lado, deve ser secundária, combinada ou complementar, ao se tratar de qualquer hipótese de ofensa à honra da vítima (redes sociais, fake news, mídia escrita ou digital em geral), desde que a reconstrução dos fatos seja imediata, incondicional e de alcance similar ou maior que ao da falsa notícia.    Estamos numa fase de exploração de novos danos ou novas hipóteses de danos, tendência em si que não escapa da crítica mais sutil, sob pena de se empregá-las no afastamento da função coercitiva da responsabilidade civil, com a redução do espaço das liberdades negativas4. Nesse cenário, o dano moral sofisticou-se, evoluindo para mares individuais nunca antes singrados5 e também metaindividuais, não mais se contendo na figura da dignidade da pessoa humana individual, como também da coletiva, posto que a pessoa jurídica não tem dignidade propriamente dita, e mais especialmente aspergindo o seu potencial para qualquer interesse difuso ou coletivo, bem como a honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos6. Aliás, o dano moral coletivo aproxima-se do dano social, muito embora careça o primeiro de caráter punitivo, enquanto pena civil, por faltar-lhe critérios objetivos e subjetivos mínimos para sua aplicação como sanção punitiva, o que, segundo ROSENVALD7, somente pode ser aportado por meio de reforma da Lei da Ação Civil Pública. O debate dirige a atenção para as funções do dano moral: compensar e punir; punir em regimes especial e geral, o que em muito extrapola a singular função reparatória dos danos patrimoniais.   Para onde vamos? Longe de buscar a quiromancia jurídica, após o rápido apanhado sobre o dano moral, tomando-se como marco a Constituição de 1988, possível constatar que a sua evolução não significa propriamente dita o seu desaparecimento, mas um seu sutil deslocamento na estrutura das fontes jurídicas. O dano moral cronologicamente transitou de valor social (antes da CR 1988) para norma constitucional, regra consumerista e civil. Seu aparente esmaecimento enquanto categoria jurídica autônoma de outros elementos da responsabilidade civil (ilícito, culpa, nexo causal), decorre mais da sua ascensão na estrutura das fontes normativas do que, inversamente, do seu ocaso.     Encanta-me pensar o Direito organizado como sistema e como estrutura e neste momento, importa o viés estruturante do sistema.  Como tal, o sistema, unitário e nucleado na Constituição, as fontes normativas estruturam-se em valores (jurídicos), princípios e regras. O dano moral não é princípio e foi estabilizado na base normativa constitucional e infraconstitucional como regra, passando-se o mesmo nas fontes infraconstitucionais. Porém, a intensa dinâmica dos fatos e a resposta jurisdicional (estatal ou arbitral) produziu um sutil deslocamento do dano moral enquanto fonte regra para a fonte valor (valor jurídico), o que não somente explica como sobretudo justifica a explosão das novas hipóteses de danos, assentadas em situações jurídicas metaindividuais e existenciais não restritas ao quadro hipotético da regra que pretende contê-lo.   Como explica o maestro PERLINGIERI8, individualizar o critério da noção de valor é de extrema dificuldade, talvez porque o enquadramento hierárquico das fontes normativas seja decorrente mais da ideologia do que da técnica, do modo de ver o mundo de quem é chamado a individuar e atuar o valor. O valor é uma resultante da natureza humana e da racionalidade histórica, cujos critérios devem ser sincreticamente observados. O valor jurídico dano moral não é uma "super regra", mas ele tem a capacidade de dialogar mais facilmente com valores sociais, especialmente como a ética, que é a arte de bem viver em sociedade, e neste aspecto a responsabilidade civil é a resposta jurídica estruturada e sistematizada pelo legislador para o acolhimento da ética. Convém recordar que o legislador não é jurista, tendo ele a função de auscultar a sociedade para produzir regras conectadas com os valores sociais históricos, razão pela qual, na condição de valor jurídico, o dano moral pode produzir melhores leis e melhores sentenças.   A guisa de conclusão, pode-se anotar que o dano moral não está esquecido ou empoeirado, mas sim diferente, pois este discreto deslocamento na estrutura das fontes normativas torna-o ainda mais aberto e dinâmico para a experiência fática. *Paulo Nalin é professor associado de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (graduação e pós-graduação). Advogado e árbitro. __________ 1 Observo que nesta coluna o último trabalho que tangencia o assunto do dano moral, na perspectiva do direito de família, é de autoria de Giuliano Máximo Martins, Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos e Michel Canuto de Sena. 2 Clayton REIS. Dano Moral. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. Clássico obrigatório da literatura brasileira, recentemente redesenhado. 3 José de Aguiar DIAS. Da Responsabilidade civil. São Paulo: Forense, 1987, p. 852.   4 Carlos Eduardo PIANOVSKI RUZYK. 5 Grace Regina COSTA. Abandono afetivo: indenização por dano moral. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. 6 Julia COSTA DE OLIVEIRA. O dano moral coletivo e o discurso de ódio: a responsabilidade civil pelo hate speech é solução ou excesso? NUNES DE SOUZA, Eduardo; GUIA SILV, Rodrigo (coord.). Controvérsias atuais em responsabilidade civil: estudos de direito civil constitucional. São Paulo: Almedina, 2018, p. 339-340. 7 Nelson ROSENVALD. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 260. 8 Pietro PERLINGIERI. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Nápoles: ESI, 1991, p. 164-166. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Dentre as preocupações de garantir espaço sadio de desenvolvimento às crianças e adolescentes em ambiente digital, fácil perceber a necessidade de regulamentação do trabalho influenciadores digitais mirins. Muitos são os aspectos que devem ser analisados: cuidados relativos ao tempo para lazer e estudo do youtuber, guarda e boa administração da remuneração por ele recebida, excessiva exposição da imagem, publicidade irregular e sua responsabilização, exploração de conteúdos que estejam de acordo com as classificações indicativas e, no futuro, o direito ao esquecimento e eventual retirada dos conteúdos das redes. De fato, a regulamentação sobre o trabalho de youtubers mirins é tema polêmico e discutido no âmbito jurídico nacional e internacional. Em outubro de 2020 a França foi o primeiro país a estabelecer regras (lei 2020 - 1266) e tende a influenciar os demais países a também enfrentar o desafio de forma clara e expressa. De acordo com elaborador do projeto de lei francês, Bruno Studer1, deputado e presidente da comissão da cultura e educação do Palais-Bourbon, o texto pretende preencher uma lacuna jurídica concernente a "uma nova forma de empreendedorismo e expressão artística" que emergiram nos últimos dez anos. A partir da publicação da lei, a atividade das crianças menores de 16 anos em que tiverem sua imagem divulgada nas plataformas de vídeo online estarão regulamentadas pela lei. Assim, com o intuito de responder ao fenômeno crescente das "crianças youtubers", a nova norma traz uma nova relação de trabalho e um novo enquadramento à atual forma de atividade envolvida em redes como Instagram, Facebook, TikTok e outros. De acordo com a norma2, as crianças "influencers" terão sua atividade protegidas pelo código do trabalho exatamente como as previsões dirigidas às crianças que desempenham trabalhos nas mídias e canais de comunicação franceses, tais como, apresentadores de televisão, estrelas de novelas e cinema e modelos publicitários menores de 16 anos. Sendo assim, colocou-se fim, naquele país, em relação à discussão levantada pelas plataformas de que as atividades desenvolvidas por esses menores nas redes seriam momentos de legítimo lazer. Dessa forma, os pais ou responsáveis deverão demandar autorização individual perante a administração responsável do Estado para a vinculação de vídeos e conteúdos gerados pelos filhos em meio digital. Além disso, os responsáveis pela criança terão uma nova obrigação financeira perante a atividade dos infantes: com o advento da lei, a receita obtida pelos filhos através de sua atividade on-line deverá ser submetida à uma espécie de poupança federal (Caisse des Dépôts et consignations), ficando sob vigilância do Estado até que a criança atinja a maioridade ou ainda seja emancipada pelos pais3. Na França, tais regras já são aplicadas às crianças que trabalham como atrizes e apresentadoras em mídias e canais de telecomunicações e são submetidas a fim de evitar que os pais usem o dinheiro da criança apenas em benefício próprio, assegurando, assim, o empenho correto dos valores recebidos. Além disso, com a maior vigilância do Estado sobre o desempenho dessas crianças on-line, outras questões pertinentes ao trabalho serão supervisionadas, tais como horários, duração de turnos, obrigações e outros aspectos das normas trabalhistas, impondo-se limites para que não haja prejuízo da vida escolar e de lazer da criança. Segundo Bruno Studer, a renda das postagens pode chegar a chegar a ? 150.000 (cento e cinquenta mil euros) por mês, o que permite a alguns pais parar de trabalhar. Frisa, ainda, que se trata de uma atividade mercantil e que precisa levar em conta a vulnerabilidade das crianças e esse é um dos principais objetivos da lei4-5. Outrossim, um importante aspecto da nova lei diz respeito ao alcance que o fenômeno dos youtubers mirins trazem as novas gerações. Diante da grande influência que exercem no público de jovens, a maior fiscalização de suas atividades permite que a comunicação entre as crianças e as estrelas mirins seja mais benéfica. Dessa forma, por ser grande influência à geração atual, o papel desses Youtubers Mirins demonstra importância na educação dos jovens e crianças. Assim, além do controle necessário exercido primariamente pelos pais no consumo das mídias, algumas regras e controles podem e devem ser estabelecidas no âmbito legislativo na atuação dessas crianças influencers, repercutindo na influência que exercem em seus seguidores.  A regulamentação no Brasil No Brasil, tivemos duas tentativas de regulação da profissão de youtuber, sem que fossem devidamente aprovadas no Congresso Nacional. Trata-se do projeto de lei 4.289/2016, que se encontra arquivado na Câmara dos Deputados e do projeto de 10.938/2018, retirado de pauta a requerimento do autor do projeto. Da mesma forma, o Brasil não tem regulamentação específica a respeito do trabalho artístico. A Constituição Federal, em seu artigo 7º, XXXIII, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos; e qualquer trabalho a menores de 16 - salvo como aprendiz, a partir de 14 anos. De outra banda, a lei 10.097/2000 regulamenta o trabalho na condição de aprendiz e a lei 11.788/2008 dispõe sobre estágio de estudantes, nada tratando das questões relativas ao desenvolvimento de atividades artísticas. Como diferenciar o trabalho artístico do trabalho infantil? Considera-se trabalho artístico aquele desenvolvido pela criança ou adolescente em razão de suas qualidades e dons relacionados à música, arte, dança entre outras. Nesse passo, importante notar que os rendimentos do trabalho artístico não devem ser arrimo de família e os pais devem observar as regras de administração dos bens dos filhos estabelecidas pelo Código Civil. Ademais, a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata sobre a idade mínima de admissão ao emprego, admite a possibilidade de trabalho artístico para menores de 16 anos, em situações excepcionais, individuais e específicas. Mas também especifica a necessidade de alvará individual, que deverá definir em que atividades poderá haver o trabalho e quais as condições especiais. De fato, o inciso I do art. 149 da lei menorista prevê a competência do juiz da vara de infância e juventude para disciplinar, por meio de portaria, ou autorizar, mediante alvará, a entrada e permanência de criança ou adolescente desacompanhado dos pais ou responsável em shows e espetáculos públicos. Prevê também, no seu inciso II, a necessidade de expedição de alvará para a participação de crianças e adolescentes em espetáculos públicos e seus ensaios e certames de beleza. Assim, havendo o alvará, o contratante e os pais (ou responsáveis) pelo menor poderão efetivar o contrato de desenvolvimento de trabalho artístico, devendo os pais observarem as regras de administração dos bens dos filhos, bem como as limitações trazidas pelo alvará emitido pela autoridade judicial. O alvará deverá levar em conta a segurança da criança e do adolescente, o conteúdo, o tempo de lazer e estudo para que esteja de acordo com a lei. De outra banda, o CONAR, através do Código de Ética Publicitária, traz, em seu art. 37, texto sobre regulamentação da publicidade infantil no Brasil. O caput do referido dispositivo importante alerta aos fornecedores para observar "os esforços de pais, educadores, autoridades e da comunidade devem encontrar na publicidade fator coadjuvante na formação de cidadãos responsáveis e consumidores conscientes".  Não há, no entanto, qualquer regulamentação expressa relativa ao trabalho do influenciador digital. Assim, diante do vácuo legislativo específico para o regramento do tema, questionamos se as regras relativas à emissão de alvará previsto no art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser observadas para que haja o trabalho desenvolvido pelo influenciador digital menor de 18 (dezoito) anos. A resposta, aparentemente, é positiva, merecendo o tema pesquisa mais aprofundada. Além disso, de se questionar a responsabilidade dos pais (ou responsáveis) em relação à administração da remuneração dos filhos advinda do trabalho desenvolvido através das redes sociais. Sem dúvidas, a lei francesa veio em boa hora e poderia nos trazer luzes para o debate mais aprofundado e necessário sobre o tema.  *Roberta Densa é advogada em SP. Doutora em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. **Cecília Dantas é advogada em SP. __________ 1- Le Sénat adopte la loi pour encadrer le travail des enfants influenceurs 2- Clique aqui. 3- Conforme art. 3º da lei 2020-1266, além da regulamentação do horário de trabalho do menor e administração dos bens do menor, deverá ser observado o conteúdo, as condições de segurança, os riscos psicológicos, a frequência à escola sempre com vistas à proteção da sua condição de pessoa em desenvolvimento. Outrossim, o inciso IV do mesmo artigo determina que os serviços prestados por jovens com menos de 16 anos de idade, que anunciem produto ou serviço veiculados por plataformas digitais de compartilhamento de vídeos e outras publicações, devem, nos termos da lei, serem pagos pelo anunciante diretamente ao chamado "Caisse de depôts et Consignations", espécie de poupança dirigida pelo governo federal, que comportar-se-á como administradora dos rendimentos do jovem até que este atinja a maioridade, ou seja emancipado. 4- Enfants influenceurs : adoption de la proposition de loi  5- Enfants influenceurs ou youtubeurs : la loi adoptée par le Parlement  __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Com o temor de uma segunda onda de contágio acentuado da Covid-19 no Brasil, aumenta-se o receio de que uma nova avalanche legiferante oriunda de todos os entes federativos também assole a população. No âmbito municipal, tem-se um cenário ainda mais propício para o surgimento de incertezas e danos decorrentes da atividade legislativa realizada em caráter de urgência, muitas vezes limitadas a decretos do Poder Executivo. A edição de normas para regular ações de grupos reduzidos de destinatários, aliada a uma menor capacidade técnica legislativa nos municípios (normalmente excepcionada naqueles de maior porte, que são dotados de recursos de informação e capital humano próximos aos disponíveis para a União, Estados e Distrito Federal), não raramente ensejam o advento de ônus desproporcionais a uma parcela da população, sem que o benefício teoricamente motivador da norma reste concretizado.  Não se discorrerá neste artigo a respeito da responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos1, mas sim da responsabilidade do próprio ente federativo pelos atos relacionados ao enfrentamento da pandemia. Nesse sentido, o presente texto visa defender a responsabilidade civil dos municípios em razão dos danos decorrentes de ações regionalizadas de combate à Covid-19. Trata-se aqui de uma política adotada por alguns municípios e que consiste em restrições regionalizadas às atividades econômicas, com o intuito de reduzir a taxa de contágio em determinadas áreas do município. A partir de dados cuja confiabilidade é questionável, dada a inexistência de respaldo científico e por não ter sido franqueado amplo acesso aos critérios de sua obtenção e ferramentas de apuração, foram editados decretos municipais que elencavam quais bairros seriam afetados e quais não seriam por períodos que variavam de poucos dias a semanas de vigência de medidas de restrição socioeconômicas. Tome-se, por exemplo, o decreto 32.500, de 16/6/2020, do prefeito do município de Salvador, capital do Estado da Bahia. A norma suspendeu, entre 18 de junho de 2020 e 24 de junho de 2020, toda e qualquer atividade econômica formal e informal, com exceção de um restrito rol de atividades essenciais, em seis bairros e localidades de Salvador. Segundo os considerandos do referido decreto as localidades afetadas pela norma "vem apresentando grandes números de aglomerações e um relaxamento no isolamento social pela população, o que tem levado a uma crescente no número de contaminação e casos confirmados de COVID-19". Nenhuma remissão a qualquer estudo acerca da escolha dos bairros atingidos ou do prazo de sete dias fixado é apresentada no decreto municipal 32.500. Ademais, olvida-se que nem todas as atividades ou espaços existentes em um bairro podem ser compreendidos como espaços de aglomeração. A economia dos municípios, atingida pela crise econômica agravada pela pandemia, passou a ter um elemento adicional de distorção, em razão dos decretos editados com ações regionalizadas: agora no âmbito da concorrência. Estabelecimentos comerciais concorrentes, situados um em frente ao outro, a poucos metros de distância, porém em margens opostas de uma mesma avenida, foram submetidos a destinos diferentes, simplesmente porque vinculados os seus endereços a bairros distintos: um estaria autorizado a funcionar e o outro impedido de exercer sua atividade. Extrai-se da motivação dos decretos municipais que impõem ações regionalizadas de combate à Covid-19 que se trataria de medida de contenção razoável e efetiva contra o avanço da contaminação pelo novo coronavírus. A edição das referidas normas que impõem limitações socioeconômicas não deve desconsiderar, entretanto, três vetores em especial: o respeito ao princípio da proporcionalidade, à isonomia e à analogia. O princípio da proporcionalidade institui a relação entre fim e meio, confronta a finalidade e o fundamento de uma intervenção estatal com os efeitos desta para que se torne possível um controle de excesso ("eine Übermasskontrolle") e respeitada a vedação do excesso, ou seja, "Übermassverbot"2. Qualquer norma que limite a livre iniciativa constitucionalmente prevista, ainda que fundamentada no dever constitucional de proteção à saúde, deverá respeitar o princípio da proporcionalidade. Não se afigura proporcional e isonômico vedar que estabelecimentos concorrentes, situados a poucas ruas ou mesmo metros de distância, possam ter tratamentos distintos, se ambos podem atender as exigências sanitárias e de limitação de aglomerações para a contenção da pandemia, fundamentos da existência da norma limitadora de determinada atividade comercial. Em nosso entender, ainda que o texto de determinado decreto municipal vede o funcionamento de um estabelecimento comercial situado em um bairro "X", enquanto não obsta o funcionamento de um concorrente situado na mesma avenida, a uma distância de poucos metros, porém situado no bairro "Y", há de se reconhecer que o texto da norma não é publicado para ser apenas compreendido, mas também para ser trabalhado pelo jurista3. Deve-se interpretar analogicamente o texto para concretizar a norma adequadamente. Não existe interpretação sem analogia4, pois a "analogia é a essência do juízo"5. O direito consiste em um processo analógico6, cujo limite é, destarte, o princípio da igualdade que o fundamenta7 e, em última instância, o princípio da justiça8 que atribui sentido a sua existência. É necessário, portanto, interpretar analogicamente a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais em outros bairros de um município para se reconhecer que deve ter o mesmo direito qualquer estabelecimento dentro do município que puder operar com as mesmas regras de seus concorrentes, respeitando as existências de distanciamento social e medidas sanitárias, sob pena de se restar violado o princípio da isonomia e o próprio sentido dos decretos que definem as ações de combate à pandemia da Covid-19. O sentido do direito ou ratio iuris seria, para Kaufmann9, a correspondência recíproca entre realidade e valor, cujo mediador é a analogia, que vincula a determinação do direito no caso concreto a partir do processo situado entre a semelhança e a diferença dos elementos aptos a integrar um específico processo de concretização normativa. Em outras palavras, buscar o sentido do direito é um problema prático-analógico10. Seria atentatório ao sentido do Direito uma conclusão que afastasse a possibilidade de tratamento idêntico em situações que apresentam semelhança material (estabelecimentos que, de forma idêntica, possuem estrutura para funcionar com segurança sanitária) e igualmente permitem concretizar o sentido da norma: a proteção à saúde. Nesse sentido, o TJ/MG entendeu ser inconstitucional a edição de norma que limitava a livre iniciativa apenas a determinados empreendimentos, em detrimento de outros que possuem características de funcionamento similares11: Não se descura que determinadas atividades autorizadas a funcionar são consideradas essenciais, porém o que os decretos visam impedir é a disseminação da pandemia, mediante medidas de contenção e distanciamento social. Se a mesma atividade empresarial pode ser exercida por um estabelecimento sem vulnerar a proteção à saúde da sociedade, com igual razão deve ser permitido o funcionamento por outros estabelecimentos que, no mesmo município, possam se adequar às mesmas medidas restritivas. A leitura puramente exegética dos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas cria um desequilíbrio concorrencial no mercado, em prejuízo do direito de escolha do consumidor e em prejuízo da livre iniciativa dos estabelecimentos empresariais que, mesmo atendendo às limitações sanitárias impostas, são alijados do mercado, em razão de limitação que não é lastreada em qualquer base científica ou objetiva. A ausência de base científica ou objetiva é evidenciada, quando se indaga o porquê de o período de restrição às atividades ser de sete dias, e não cinco ou dez dias. Outrossim, quando se questiona o porquê da escolha de fronteiras artificiais como as que delimitam bairros. Será que o vírus não consegue atravessar uma avenida e ingressar em um bairro distinto, situado na outra margem da via?! Se determinadas atividades do bairro não se adequaram aos protocolos sanitários ou os residentes da localidade não estão se esforçando para atender às regras sanitárias de distanciamento social, o problema não será resolvido com o fechamento indiscriminado de toda e qualquer atividade no local, inclusive de atividades que um município já tenha liberado, com protocolos específicos, em outros bairros. A ausência de proporcionalidade e isonomia na edição de normas que configuram fato do príncipe poderá causar danos imputáveis ao Estado, pois "havendo o exercício de poder normativo contra a lei, ou do poder legislativo contra a Constituição, há de se reconhecer a responsabilidade do Estado pelos danos que daí decorrem diretamente"12. Nesse sentido, vide o acórdão em recurso extraordinário n° 571.969, relatado pela Ministra Carmem Lucia, julgado em 12/3/2014. Há muito resta assentada na doutrina e jurisprudência a possibilidade de se responsabilizar o Estado pelos danos decorrentes da atividade legislativa inconstitucional13, porém, ainda que se trate de uma ação normativa constitucional do Estado, não se pode afastar aprioristicamente o direito à indenização, quando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil14. Caberá ao Poder Judiciário avaliar a proporcionalidade entre o sacrifício imputado ao particular e a finalidade de interesse público que configura o escopo da norma. Configurado o excesso, dar-se-á a responsabilidade pelo sacrifício, cujo ressarcimento será a conversão de seus direitos em um equivalente pecuniário15. Igualmente há responsabilidade civil decorrente de atos legislativos constitucionais quando, em virtude de norma expedida pelo ente público, um particular vê o seu direito suprimido, temporária ou definitivamente, por restrições administrativas quanto à forma de utilização de seu patrimônio16. Conforme registra Mafalda Miranda Barbosa, se for permitido que um ente público ou órgão estatal possa afastar direitos ou interesses de um ou mais cidadãos e não ser responsabilizado pelos danos causados "tal implicaria que, a despeito da lógica de financiamento dos serviços, aquele cidadão estivesse a contribuir pessoalmente de forma mais intensa para o bem geral da comunidade do que os restantes"17. Uma vez resultante dos referidos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas de combate à Covid-19 uma "ruptura no equilíbrio entre os ônus e os encargos suportados pelos destinatários"18 causadora de danos, tem-se por configurado o dever de indenizar do Município e a necessidade de se suspender a eficácia das normas que, de maneira desproporcional, impeçam a livre concorrência em determinados mercados. O dever indenizatório do Município deverá levar em consideração o prejuízo causado com a restrição indevida à atividade do da pessoa física ou jurídica, em benefício de seus concorrentes, decorrente da intervenção estatal lesiva à livre concorrência e à livre iniciativa empresarial. O respeito a princípios constitucionais tão caros à ordem econômica passa necessariamente pelo equilíbrio entre as liberdades dos diversos agentes econômicos e os consumidores, e não se limita a questões econômicas ou políticas, mas também por medidas essencialmente jurídicas19. É cediço que as medidas restritivas adotadas para enfrentamento da pandemia do coronavírus decorrem da competência do Município para a proteção e defesa da saúde, prevista no art. 23, II, da Constituição Federal e, ainda, nos termos do artigo 30, II, pela possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local. Trata-se de entendimento assegurado na ADPF 672/DF, em decisão unânime do Plenário do STF de 9/10/2020, que ratificou a medida cautelar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes em 8/4/2020. Não se pode confundir, no entanto, a competência legislativa e a necessidade de realizar ações efetivas e céleres para o combate da pandemia com a existência de uma irresponsabilidade estatal pelos atos praticados. Ainda que motivados por uma causa nobre, há de se ponderar os meios escolhidos para que os fins buscados com a edição dos decretos municipais que estabelecem ações regionalizadas de combate à Covid-19 sejam devidamente alcançados e não se tornem uma patologia legislativa, a ser superada e reparada pelo Poder Judiciário, paralelamente a tantos outros desafios já enfrentados pelos cidadãos nestes tempos pandêmicos. *Francisco Arthur de Siqueira Muniz é doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, Visiting Researcher da National University of Singapore, Bel. e mestre em Direito pela UFPE. Pós-graduado em Direito Marítimo e Portuário pela UNINASSAU. Associado fundador do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Investigador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor universitário e sócio do escritório Da Fonte Advogados. __________ 1 Sobre o tema, sugere-se, entre outros, a leitura do artigo de REIS JUNIOR, Antonio dos. A responsabilidade civil dos agentes públicos em tempos de covid-19: análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal no pedido cautelar na ADI 6421 e outras. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 305-328, maio/ago. 2020. 2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 403. 3 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 2. Ed. São Paulo, RT, 2009, p. 159. 4 BRONZE, Fernando José Pinto. Lições de introdução ao Direito. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 962. 5 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio d'Água, 2000, p. 90. 6 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 186. 7 AGUILAR, Francisco. A norma do caso como norma no caso. Coimbra: Almedina, 2016, p. 203. 8 NEVES, Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 253. 9 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 5. Ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2014, p. 187 10 BRONZE, Fernando José Pinto. Analogias. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 275. 11 "MANDADO DE SEGURANÇA - LICENÇA PARA REALIZAÇÃO DE FEIRA COMERCIAL ITINERANTE - DISPOSITIVO DE LEI MUNICIPAL CONTENDO LIMITAÇÃO TEMPORAL À FEIRA - AUSÊNCIA DE LIMITAÇÃO PARA OUTROS TIPOS DE FEIRAS E EVENTOS SIMILARES - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA, LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA - VULNERAÇÃO" (TJ/MG, 3ª CÂMARA CÍVEL, AC: 10461140057120002, Relator: Elias Camilo, Data de Julgamento: 6/4/2017, Data de Publicação: 3/5/2017). 12 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 452-453. 13 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, v. 2. Rio de Janeiro: Borsoi, 1957, p 623. 14 Nesse sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, Vol. 3: Responsabilidade Civil. 5. Ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 643. 15 CANOTILHO, J. J. Gomes. O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974, p. 82. 16 CAHALI, Yusef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. Ed. São Paulo: RT, 2007, p. 539. 17 BARBOSA, Mafalda Miranda. COVID-19 e responsabilidade civil: vista panorâmica. In Revista de Direito da Responsabilidade, p. 253. Disponível aqui. 18 FERRAZ, Luciano. Responsabilidade do Estado por omissão legislativa: o caso do art. 37, X, da Constituição da República. In: FREITAS, Juarez (org.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 219. 19 FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 49. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Virou lugar-comum dizer que o direito mudou, está mudando. De um sistema fechado, lógico-formal, passamos para um sistema aberto, valorativo. A ordem jurídica, antes estática e fechada, agora aberta e dinâmica, exige soluções que dialoguem com essa complexidade. Isso é particularmente verdadeiro na responsabilidade civil. Ela passa uma filtragem ética e ganha novas funções. Busca, cada vez mais, proteger as dimensões existenciais do ser humano. Falar em responsabilidade civil é, em boa medida, falar dos problemas atuais de determinada sociedade. Os problemas mudam - e as respostas que a responsabilidade civil oferece também. Aliás, conforme escrevi em outra oportunidade, os caminhos da responsabilidade não são infinitos, mas costumam ser espantosos. Aliás, os problemas (e as soluções) que a responsabilidade civil enfrenta, hoje, são diferentes daqueles dos séculos anteriores. A velocidade da informação, as novas tecnologias, o perfil plural da sociedade atual, o crescimento da violência urbana são apenas algumas das novas questões que chegam, diariamente, aos tribunais, e redefinem o contorno do chamado (por alguns) direito dos danos, sobretudo no que diz respeito aos deveres de indenizar danos injustos. A responsabilidade civil, no Brasil, pode resultar de atos lícitos ou ilícitos, individuais ou coletivos, próprios ou de terceiros. Não só capazes, mas também incapazes podem responder civilmente. Poderíamos pensar que a responsabilidade civil - cuja história é quase tão antiga quanto a da humanidade - já teria, há tempos, pacificando a discussão acerca de suas funções, porém isso não aconteceu. Trata-se de discussão atual, dos nossos dias - cada vez mais se aceita as funções punitivas e inibitórias do instituto, além da clássica função compensatória ou reparatória (nesse sentido, aliás, decidiu o STJ recentemente em sede de dano moral coletivo (REsp 1.440.721) e, antes, a Suprema Corte Italiana, em julgado paradigmático, reconheceu a multifuncionalidade da responsabilidade civil contemporânea). Por exemplo, o direito não pode obrigar que todos tenham estima e respeito pelos outros, mas pode sancionar e punir atos de desrespeito e desconsideração. Sem falar que a ênfase que se deu à reparação de danos em termos de protagonismo no século passado, necessariamente se concederá à prevenção daqui por diante. Em outras palavras, se o século XX foi devotado à reparação de danos, o século atual será consagrado à prevenção. Aliás, convém destacar que a noção atual de interesse público está relacionada à promoção de direitos fundamentais. Temos, por exemplo, o direito fundamental não só a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como também em viver numa sociedade sem corrupção (no sentido de uma sociedade que combata, com seriedade e eficiência, a corrupção). Nesse sentido, o STF, em 2020 - ao julgar procedente denúncia do MPF contra ex-deputado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro relativamente à Petrobrás - fixou valor mínimo indenizatório a ser pago de forma solidária pelos condenados. A condenação do mínimo indenizatório foi na forma de danos morais coletivos (STF, AP 1002/DF). Os danos morais coletivos atingem, de modo subjetivamente indeterminado, um espectro imenso de pessoas, grupos e instituições. É inegável que atos de corrupção agridem difusamente a sociedade em seus valores fundamentais, merecendo por isso a adequada condenação em danos morais coletivos. Lembremos ainda que o STF, em outro julgado recente, passou a reconhecer explicitamente - no sentido que sempre sustentamos - que o Estado não tem direito, mas dever de regresso (sob pena de improbidade administrativa) contra o agente público culpado (STF, Pleno, RE 842.846, Rel. Min. Luiz Fux). O tema deste artigo, porém, é mais específico. Diz respeito a uma (velha) polêmica: a responsabilidade civil do Estado, nas omissões, é subjetiva ou objetiva? Convém lembrar que - de modo amplo - a responsabilidade civil objetiva, sem culpa, já faz parte da tradição constitucional brasileira desde a Constituição de 1946. Poucos países constitucionalizaram a matéria, como o Brasil. Isso traz consequências interpretativas relevantes (que nem sempre são adequadamente desenvolvidas). Outro aspecto que pode ser frisado: hoje há um olhar doutrinário pacífico no sentido de que a responsabilidade civil do Estado de feições objetivas iniciou-se no Brasil em 1946. Porém isso é uma visão atual, com olhos de hoje. Nas décadas seguintes à implementação normativa da novidade (isto é, nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado), juristas e tribunais ainda hesitavam, isto é, nem sempre aceitavam que a Constituição de 1946 tivesse trazido uma responsabilidade sem culpa para a matéria. Isso é um exemplo simples que evidencia como o direito é construção cultural: a norma não é a letra da lei (dizemos isso pedindo perdão pela obviedade). A norma jurídica resulta da atribuição de sentido - geração após geração -, aos textos legais, culturalmente falando. Muitos dos mais importantes avanços jurídicos se dão no silêncio da lei (ou apesar dela), sobretudo na responsabilidade civil. Assim ocorreu com a teoria do risco, com o abuso de direito, com a própria responsabilidade civil do Estado. Avanços jurídicos que resultaram, não propriamente da lei, mas da doutrina e da jurisprudência, aqui e lá fora. Queremos com isso destacar a rica dinamicidade da matéria, com novas interpretações de antigas normas. Existe, na matéria, quem crie um dualismo: nas ações do Estado, responsabilidade objetiva; nas omissões, responsabilidade subjetiva (é o que o STJ costuma repetir, há tempos, nas ementas dos seus acórdãos). Não aceitamos esse dualismo, nem é essa a visão atual do STF sobre a matéria, conforme temos apontado em algumas obras. Existe atualmente uma rede de conexões conceituais que nos permitem dar um passo além. Aliás, em 2020, o STF, julgando caso que dizia respeito à responsabilidade civil do Estado e seus deveres fiscalizatórios - em caso de comércio clandestino de fogos que causou danos por explosão - explicitamente considerou (no voto do relator para o acórdão, Min. Alexandre de Moraes), que a responsabilidade civil do Estado é objetiva também nas omissões, não só nas ações (STF, RE 136.861, DJe 13/8/2020). Mesmo o STJ, aqui e ali, se vê obrigado a sair do rígido limite que criou para si. Por exemplo, em 2020, o STJ responsabilizou civilmente o Estado pela morte de um advogado que foi atingido por um tiro dentro de um fórum. O tiro foi disparado por um réu em processo criminal. O detector de metais do fórum estava com defeito, quando ocorreu o dano. O STJ entendeu que houve nexo causal apto a responsabilizar o poder público. Um aspecto teórico interessante - na fundamentação do acórdão - é que, embora o STJ afirme que a responsabilidade estatal é subjetiva nas omissões (com o que nunca concordamos, nem é como o STF pensa), em certos casos percebe-se certo esforço argumentativo para se alcançar a justiça nos casos concretos: "A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa" (STJ, REsp 1.869.046). O STJ, no caso mencionado, invocou a teoria do risco (CC, art. 927, parágrafo único), para imputar a responsabilidade objetiva ao Estado. Aliás, não é só no tema acima que STF e STF têm visões divergentes no que diz respeito à responsabilidade civil do Estado. O STJ vislumbra a possibilidade - no caso de dano causado por agente público - da vítima escolher contra quem propor a ação (contra o Estado, contra o autor do dano ou contra ambos). O STJ chega a dizer que a questão é pacífica por lá (STJ, REsp 687.300. Precedentes: REsp 731.746; REsp 1.325.862; AgInt no ARESP 583.842, DJe 24/08/2017). Conforme prevíamos, acabou prevalecendo a tese oposta. A tese de que a ação só poderá ser proposta contra o Estado. O STF decidiu recentemente nesse sentido, afirmando que a vítima não poderá propor a demanda diretamente contra o agente público. Só poderá acionar o Estado e este, se for condenado, é que poderá acionar o agente público que causou o dano (se houver dolo ou culpa) (STF, RE 1.027.633, com repercussão geral). Há outro ponto que pode ser brevemente mencionado. É comum, no estudo da responsabilidade civil do Estado - sobretudo em manuais de direito administrativo - a menção a três fases históricas (a fase da irresponsabilidade estatal; a fase civilística, fundada na culpa; e a terceira fase, dita atual, fase publicística ou objetiva, fundada na responsabilidade objetiva). Esse é o padrão mental convencional acerca do tema. Porém, conforme apontamos acima, existe hoje uma rede de conexões conceituais que nos autoriza dar um passo além. Há, porém, atualmente, nesta segunda década do século XXI, uma nova fase, que é o Estado como garantidor dos direitos fundamentais. Não basta, portanto, uma postura de abstenção estatal, no sentido - hoje insuficiente - de não causar danos. Isso ficou no passado, no museu das ideias. Hoje é imprescindível que o Estado assuma uma postura ativa no sentido de resguardar os cidadãos de agressões de terceiros. Desde o clássico caso Lüth, leadind case julgado pela Corte Constitucional Alemã em 1958, discute-se a questão da aplicação horizontal dos direitos fundamentais. A influência desse célebre julgado não se limitou à esfera do direito público, mas alcança todos os campos do direito, incluindo o civil. Esse julgado não foi, naturalmente, o fim, mas o início de uma linha jurisprudencial e doutrinária extremamente fecunda. É comum que chamemos de clássica a função negativa dos direitos fundamentais, no sentido de evitar que o Estado os infrinja (Abwehrrecht). Hoje, porém, já avançamos consideravelmente em relação à essa posição, e ela já não nos satisfaria. Essa teoria clássica, por assim dizer, não descreve o que acontece atualmente na prática constitucional, seja europeia, seja brasileira. O reconhecimento de uma dimensão positiva dos direitos fundamentais significa que o Estado não deve apenas respeitá-los, mas também protegê-los (Schutzpflicht des Staats). Vivemos atualmente, em relação ao tema, uma nova fase, que é o Estado como garantidor dos direitos fundamentais. Não basta, portanto, uma postura de abstenção estatal, no sentido - hoje insuficiente - de não causar danos. Isso ficou no passado, no museu das ideias. Hoje é imprescindível que o Estado assuma uma postura ativa no sentido de resguardar os cidadãos de agressões de terceiros. Tudo isso altera o panorama da responsabilidade civil do Estado, que conta, hoje, com o princípio da proteção, que não é senão a função preventiva da responsabilidade civil transformada em dever de agir do Estado. É fundamental ainda que busquemos, de modo criativo e responsável, soluções que promovam o diálogo da responsabilidade civil do Estado com a teoria dos direitos fundamentais e com os conceitos, categorias e institutos mais harmônicos com o século XXI. É fundamental que tenhamos também estabilidade, isonomia e clareza nos julgados. O direito administrativo do século XXI não pode continuar a trabalhar com conceitos formulados há mais de um século, com um instrumental que se reporta ao século XIX. Há certo sabor autoritário nas lições tradicionais do direito administrativo, que costuma ter como ângulo de análise os poderes do administrador, não os direitos do cidadão. Não por acaso, há autores que ainda usam a palavra "súdito" para falar em cidadão.  Há outras discussões possíveis que não faremos por questões de espaço. Por exemplo, acerca da responsabilidade civil do Estado e a violência urbana e sobre novas (possíveis) abordagens do fato de terceiro. E ainda o debate sobre a teoria dos deveres de proteção a cargo do Estado - e a questão da ausência de medidas preventivas, questão fundamental nos nossos dias (isso foi uma discussão juridicamente presente na pandemia e, antes dela, nos danos sofridos pelos cidadãos com as fortes chuvas e inundações do início de 2020). Como lembra Daniel Sarmento, "o reconhecimento dos deveres de proteção constitui premissa implícita em toda a discussão concernente à responsabilidade do Estado por atos omissivos". O sistema conceitual-normativo de responsabilidade civil, no Brasil, está em processo de clara mudança, de notória reformulação. Temos dito que se trata de um edifício em construção. Nota-se o conflito entre velhas fórmulas e novas necessidades sociais. O desafio é abordar a responsabilidade civil com os olhos das sociedades plurais e complexas. O direito dos nossos dias é o direito da ponderação, da reflexão contextualizada, do percurso argumentativo. Vivemos numa república de razões e as democracias constitucionais atuais precisam continuamente se legitimar, de modo contínuo, transparente e dinâmico. A teoria dos direitos fundamentais, a força normativa dos princípios, a funcionalização dos conceitos e categorias, a priorização das situações existenciais em relação às patrimoniais, a repulsa ao abuso de direito, a progressiva consagração da boa-fé objetiva são algumas das ferramentas teóricas que ajudam a construir a teoria da responsabilidade civil do Estado no século XXI. Cecília Meireles escreveu: "Não é fácil compreender. Mas é belo fazer um esforço nesse sentido". Talvez devamos - todos nós - fazer um esforço para tentar compreender esses dias velozes e instáveis que vivemos. Dias em que a única permanência é a mudança. E talvez as mudanças estejam só no começo.    *Felipe Braga Netto é membro do MPF (Procurador da República). Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum). Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-RIO. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Associado fundador e 1 vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil, 2017-2019). É autor ou coautor dos seguintes livros: Código Civil Comentado (com Nelson Rosenvald), Novo Manual de Responsabilidade Civil, Volume Único de Direito Civil (com Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves), Novo Tratado de Responsabilidade Civil (com Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves), Manual de Direito do Consumidor (16 edição) e Teoria dos Ilícitos Civis, dentre outros. Publicou artigos em 34 obras coletivas, tendo coordenado 4 delas. Além das obras coletivas publicou 16 livros.  __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
O anúncio do Nobel de Química 2020, no último 7 de outubro, marcou a história da referida premiação como sendo a primeira vez que duas mulheres compartilharam o prêmio máximo de Ciências. As cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna receberam o prêmio pela descoberta da técnica de edição gênica CRISPR/Cas9, o que representou o reconhecimento científico de uma das mais importantes descobertas do século XXI.1 Desde a descrição da estrutura molecular do DNA  (J. Watson e F. Crick, 1953)2 e, a partir da superação dos  desafios decorrentes do sequenciamento do genoma humano (Projeto Genoma, 2003)3, os cientistas têm se dedicado ao estudo e desenvolvimento de tecnologias que possibilitam a manipulação gênica de células e organismos, com o intuito de promover a exclusão ou correção de mutações gênicas, desfazendo ou silenciando seus efeitos deletérios. Essa técnica, ora reconhecida no mundo científico, representa um caminho sem retorno diante das evidências alcançadas, exigindo uma nova postura a ser considerada. Essas tecnologias disruptivas provocam mudanças de paradigmas, criando desafios inéditos que suscitam adequações do sistema jurídico aos novos anseios. Em 2012, Charpentier e Doudna comprovaram que a endonuclease Cas9, juntamente com  uma molécula de  RNA guia, poderia ser programada para clivar especificamente qualquer sequência de DNA.4 Essa descoberta ampliou e generalizou a aplicabilidade do sistema CRISPR/Cas9. A partir daí, foi possível, com alta eficiência, facilidade e baixo custo, utilizar essa ferramenta nas pesquisas básicas, na biotecnologia e no desenvolvimento de novas alternativas preventivas e terapêuticas, representando uma revolução na pesquisa em biologia.  Democratizou-se a edição do genoma.5 Inicialmente, a aplicabilidade da edição gênica restringiu-se à linhagem de células somáticas, ou seja, aquelas responsáveis pela formação dos diferentes tecidos e órgãos sem potencial de gerar gametas. Diversamente, a edição gênica de células germinativas humanas é capaz de impactar o organismo do indivíduo como um todo, bem como de seus descendentes. Por esse motivo, a possibilidade de se promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, tem suscitado intensos debates sobre o tema. É inconteste que, em pesquisas básicas, a técnica CRISPR/Cas9 oferece grande vantagem, gerando conhecimento científico amplo que poderá contribuir para a saúde e bem-estar dos seres humanos. Essa técnica permite esclarecer os mecanismos que justificam a diferenciação celular em modelos humanos, bem como a investigação sobre o papel de alguns genes específicos nos momentos iniciais do desenvolvimento embrionário humano e a compreensão da gênese de doenças genéticas, o que conduz ao desenvolvimento de medicamentos específicos para essas doenças, elaboração de terapias gênicas importantes no tratamento de diferentes tipos de câncer, dentre outros. No que se refere às pesquisas de aplicação clínica, é inegável o potencial da edição gênica na prevenção de doenças genéticas em embriões humanos (6% das crianças recém-nascidas apresentam problemas genéticos importantes). Até mesmo no âmbito das doenças infecciosas, a aplicabilidade da edição gênica tem sido aventada.6 Entretanto, mesmo considerando os benefícios terapêuticos preventivos demonstrados nas pesquisas básicas e pré-clínicas, devido ao seu ineditismo e à possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, tais investigações justificam os intensos debates em torno da aplicabilidade dessa nova tecnologia, seja no que tange à necessidade de adequada regulamentação, seja no que se refere à ponderação relativa aos seus limites e potencialidades.  No contexto da edição gênica de embriões humanos ou de células da linhagem germinativa, discutem-se não somente dilemas éticos, mas, também, o impacto dos riscos futuros e desconhecidos aliados à incerteza quanto aos efeitos danosos decorrentes dessa nova tecnologia, no âmbito da responsabilidade civil. No campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Desse modo, é essencial que, nessas situações, a discussão sobre a previsibilidade e causalidade dos riscos seja aprofundada, pois, apesar de imperceptíveis de imediato, podem representar ameaça latente caracterizando riscos desconhecidos ou de "causa ignota". Soma-se a isso que, diferentemente da tradição anglo-americana, a aversão aos riscos é elemento cultural da sociedade brasileira. Nesse sentido, como grande desafio na tentativa de apresentar alternativas no plano da reparação de danos, ampliação da confiança, solução e administração de conflitos de interesses, justifica-se o enfrentamento de temas relevantes como: a expansão da  função precaucional  da responsabilidade civil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, o cabimento da excludente de responsabilidade, a importância da regulação pública das externalidades negativas e a tutela geral da personalidade.7 Em contrapartida, superadas as limitações técnicas da edição gênica de embriões humanos ou da linhagem germinativa e, diante da persistência de indicações médicas, não permitir o emprego da técnica em condições seguras, ou optar por não utilizá-la em determinadas situações - quando o diagnóstico pré-implantacional é exigido e irrefutável quanto à evidenciação da alteração gênica que implique em doença incurável e que limita a autonomia do indivíduo chegando a comprometer até mesmo sua dignidade - não representaria também um dano passível de reparação? Assim, em sentido diametralmente oposto e inaugurando singular discussão na esfera da responsabilidade civil, é também necessário confrontar questões ainda postas somente no campo das hipóteses, sobremodo a preocupação de que, na eventualidade da técnica de edição gênica tornar-se opção terapêutica viável, sua não utilização possa também acarretar efeitos potencialmente danosos. Nesse novo cenário, ainda hipotético, porém irrefutável, teríamos configurada, de forma explícita, a negação de um direito constitucionalmente elencado - "proteção à pessoa." Questiona-se: ainda, estaríamos diante de nova modalidade de dano? Qual seria sua gravidade e extensão? Dada sua irreversibilidade e magnitude, implicaria em dano à existência do ser humano? Seria possível cogitar de um dano intergeracional? Nesse contexto, caberia inclusive indagar se a omissão deliberada ao recurso da edição gênica afiguraria como ofensa mediada no tempo, já que, o que nos faz humanos, atravessa gerações e culmina por agir como uma ponte entre elas.8 Desse modo, mesmo considerando que a inquietude recorrente frente a tecnologias inovadoras seja a possibilidade de danos consequentes à sua utilização, não se pode negar a potencialidade lesiva da situação contrária, bem como sua possível repercussão no âmbito da responsabilidade civil. A discussão envolve novos embates. Os riscos morais e jurídicos não podem ser evitados e, diante da iminente realidade da edição gênica e do diagnóstico que justifique sua indicação, não utilizar a técnica pode representar a certeza de dano juridicamente relevante, irreversível, permanente e, quiçá, com potencial de justificar o cabimento de demandas reparatórias. É nesse contexto, por conseguinte, que se vislumbram as consequências jurídicas na busca pela reparação civil do que se denomina wrongful birth e, ainda, tornando-se imprescindível discutir o cabimento de indenização em razão da ação denominada wrongful life.9 É intuitivo que, diante da ocorrência de um dano, surja o sentimento de injustiça. A responsabilidade, nessa perspectiva, manifesta-se como instituto que visa buscar o reequilíbrio. Assim, o mesmo vínculo que relaciona o prejuízo à noção de injustiça, associa a ideia de justiça como decorrente da responsabilidade. Todavia, a controvérsia quanto a uma possível indenização nos casos considerados como wrongful birth ou wrongful life é motivo de debate em diferentes ordens jurídicas. Salienta-se que reflexões, a este respeito, exigem a confluência dos regimes de responsabilidade civil e dos direitos de personalidade, envolvendo uma plêiade de argumentos éticos e pragmáticos que devem ser sempre considerados. Outra preocupação recorrente, no que diz respeito à edição gênica de embriões humanos, relaciona-se à sua utilização como ferramenta para aprimoramento humano, além da prevenção e tratamento das doenças.10 Nesse sentido, o aprimoramento torna-se preocupação na medida em que pode ser utilizado para reforçar o preconceito ou restringir a diversidade gênica nas futuras gerações, bem como estreitar o conceito de normalidade. Existem muitas expectativas em relação a utilização da técnica de edição com objetivo de se obter o aprimoramento genético "máximo" da espécie humana - "designer babies." Entretanto, estudos recentes comprovam que se trata, ainda, de uma ficção científica, na medida em que exigiria uma série de modificações complexas e simultâneas do DNA. Além disso, as características potencialmente desejáveis - alvo da edição - teriam que ser determinadas predominantemente pelo DNA, o que já ficou comprovado que nem sempre ocorre. Merece destacar que essas situações são consideradas como uso indevido da edição gênica em embriões humanos, não se tratando de indicação médica. Portanto, seria questionável a utilização de tal argumento para justificar a proibição do uso da técnica quando essa apresenta exclusiva finalidade preventiva-terapêutica. De fato, o risco dessas práticas é autoevidente, o que enfatiza a necessidade da pesquisa continuada e, principalmente, da cuidadosa regulamentação de quaisquer de suas aplicações. Em uma discussão que transcende os limites deste artigo, é curial que a chamada convergência NBIC - nanotecnologia, biotecnologia, informática e ciência do conhecimento (neurociências) - estreita os limites entre a vida natural e a artificial, dissolve as fronteiras entres as ciências físicas e a biologia, implicando em um melhoramento (enhancement) do ser humano. Com base no postulado "nem tudo que é tecnicamente possível é eticamente admissível", o maior receio dentre os estudiosos do fenômeno do transhumanismo, consiste no acesso estrito por parte de uma casta de "novos" seres humanos a tecnologias que propiciem longevidade ampliada com capacidades físicas e mentais superiores.11 O fundamental é que se edifiquem políticas públicas que direcionem a tecnologia CRISPR/Cas9 a serviço do homem - como instrumento de mapeamento de graves doenças hereditárias e não subvertida em técnica eugênica utilitária - principalmente no contexto de uma sociedade extremamente desigual, onde a questão do acesso é estruturalmente delicada até mesmo para os bens essenciais (educação, saúde básica, assistência social, moradia). É notório que, quando implementadas clinicamente, essas técnicas, certamente, irão representar custo elevado o que pode, inclusive, dificultar sua oferta via planos de saúde. Mesmo que a edição gênica, por si, não seja técnica dispendiosa, para sua implementação clínica será necessário associá-la às técnicas de fertilização "in vitro" e de diagnóstico pré-implantação que, sabidamente, são onerosas. Consequentemente, esse fato poderia limitar o acesso à tecnologia criando-se, desta forma, desigualdade de oportunidades. As diferenças socioeconômicas, mas, também, as culturais e intelectuais podem influenciar na acessibilidade à essas terapias, pois são aspectos que interferem na questão do entendimento e aceitação, ou não, da indicação clínica da edição gênica. É nesse contexto, portanto, que se impõem novos debates, que ultrapassem o âmbito dos laboratórios de pesquisa e alcancem a sociedade como um todo.   Como em todo avanço biotecnológico restam, ainda, muitos desafios técnicos, éticos e legais a serem enfrentados. Em um necessário ambiente de ceticismo e fundamental condição de incerteza, temos que defender para a edição gênica um conjunto de regras, deveres e formas de reparação. Reforça-se, pois, a necessidade de contínuos diálogos interdisciplinares, imprescindíveis no sentido de se ponderar, delinear e estabelecer novos paradigmas objetivando promover as adequações pertinentes. Apesar das limitações impostas no momento atual, não há como negar a perspectiva de superação futura desses desafios, o que, certamente, determinará a indicação preventiva e/ou terapêutica, segura e viável da técnica. ___________  1.    The Royal Swedish Academy Of Sciences. Scientific Background on the Nobel Prize in Chemistry 2020. A tool for genome editing. p. 1-13. 2.    Watson, J.D. and F.H. Crick, Molecular structure of nucleic acids; a structure for deoxyribose nucleic acid. Nature, 1953. 171(4356): p. 737-8. 3.    Disponível em: clique aqui. Acesso em: 14/11/20 4.    Gasiunas, G., et al., Cas9-crRNA ribonucleoprotein complex mediates specific DNA cleavage for adaptive immunity in bacteria. Proc Natl Acad Sci U S A, 2012. 109(39): p. E2579-86. ? 5.    Knott, G.J. and J.A. Doudna, CRISPR-Cas guides the future of genetic engineering. Science, 2018. 361(6405): p. 866-869. ? 6.    Clemente, G. T. Avanços e desafios da edição gênica em seres humanos. In: Nicoletti, C. E. et al (Org.) Biodireito, bioética e filosofia em debate. São Paulo: Almedina, 2020. p.21-38. 7.    Clemente, G. T. Responsabilidade Civil, Edição Gênica e o CRISPR.  In: Rosenvald, N.; Dresch, R. F. V.; Wesendonck, T. (Org.). Responsabilidade Civil - Novos Riscos. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. p. 301-317.  8.    Clemente, G. T.; Rosenvald, N. Dano ao projeto de vida no contexto da edição gênica: uma possibilidade. In: Menezes, J.B; Dadalto,L.; Rosenvald, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 227-45. 9.    Clemente, G. T.; Rosenvald, N. Edição Gênica e os limites da Responsabilidade civil. In: Martins, G.M.; Rosenvald, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 235-61. 10. Gyngell, C., Fellow, M., Douglas, T., Savulescu, J. The ethics of germline gene editing. J Appl Philos., n. 34(4), p. 498-513, 2017. 11. Tanguy, M. P. Transhumanismo. Madrid: Rialp, 2018, p. 17. ___________  *Graziella Trindade Clemente é pós-doutora em Direitos Humanos - Centro de Direitos Humanos - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutora em Biologia Celular e Mestre em Ciências Morfológicas - Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito da Medicina - Centro de Direito Biomédico - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora da Graduação e Pós-graduação - Centro Universitário Newton Paiva; Faculdade da Saúde e Ecologia Humana; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil - IBERC. Odontóloga e advogada. 
O presente ensaio tem por escopo enfrentar e discutir a questão da evolução jurídica da responsabilização civil, desprendendo-se da noção de culpa, enfocando na noção de imputação ou responsabilização, conquanto não seja culpado. Trata-se de centrar o estudo na questão do dano e não na discussão de culpa. Em verdade, o modelo de responsabilidade civil centrado na ideia da culpa há muito já se revelou insuficiente, traduzindo-se o «dano existente não reparado» em um dos mais fundamentais problemas do direito, como há muito apontava Ludwig Enneccerus: "Los daños que o por azar o por culpa propia, caen sobre el individuo, deben en general ser soportados por éste (vid. también §§ 208 II, 217 s.). Pero ¿ cuándo es posible hacer que otro responda de los daños? La regulación de la indemnización por daños, o sea, del deber de responder de los daños inferidos a otro, constituye uno de los más fundamentales problemas del derecho. Apenas hay otra parte en nuestro derecho privado que sea en el mismo grado que ésta un producto de las concepciones morales, económicas y sociales de una época determinada" [destacamos].1 Esse problema, na verdade, se explica em razão antiga concepção da ideia de responsabilização, fortemente calcada na culpa [= responsabilidade subjetiva]. Assim, nos primórdios, a regra jurídica se consubstanciava na concepção de que sem culpa não haveria que se reparar o dano [como, por exemplo, se observa nos brocardos nullus videtur dolo facere qui suo jure utitur,2 e nemo damnum facit, nisi qui id fecit, uod facere jus non habet3]. Esses brocardos, em verdade, desvelam a concepção moral subjacente à ideia de responsabilidade, no sentido de que só deve tornar-se responsável aquele que agiu sem direito ou com culpa, em suma, responsabilizando-o por um ato ilícito. Era justamente esse componente ético presente nessa ideia de responsabilidade civil que contribuía para que houvesse dano sem reparação. E por mais que o conceito jurídico da responsabilidade civil tenha evoluído4 ainda se encontra presente - ou ao menos «inconscientemente latente» - a ideia de culpa quando se fala em responsabilidade civil. Nesse ínterim, quando muitas vezes se afirma ou se pretende responsabilizar essa ou aquela pessoa por um determinado dano, subjacente a essa pretensão aparece a ideia de culpa, muitas vezes atrelada a uma conotação pejorativa. Assim, às vezes uma determinada pessoa jurídica é condenada a recompor o dano, mesmo sem ter culpa por ele, e a forma como se enxerga essa sua responsabilização é como se ela houvesse sido condenada por ter feito algo de errado.5 Há, ainda, certa resistência em compreender-se «responsável, mas não culpado» [responsable, mais non coupable].6 E a culpa traz consigo o componente ético da reprovação da conduta, donde a responsabilização teria o cunho tanto de «reparar» o dano como de «apenar» a conduta. Contudo, a modernidade - especialmente séculos XIX e XX, caracterizados por uma grande transformação da sociedade [com o incremento da industrialização], gerando um agravamento dos danos7 -, tem demonstrado que há, em muitas situações, a necessidade [prática] de reparar o dano, sem, entretanto, traduzir-se com isso um apenamento da conduta, uma reprovação moral da conduta. Em razão disso, quando se comete o equívoco de confundir-se a responsabilidade objetiva com uma presunção de culpa [présomption de faute juris tantum],8 permanece ainda, nessa confusão, a reprovação da conduta, subsistindo o componente ético do apenamento, porquanto "culpa presumida, ainda que presumida, é culpa",9 daí falar-se em presunção de responsabilidade10 [responsabilidade pressuposta; présomption de responsabilité].11 Livrar-se dessa ideia de responsabilidade civil como apenamento constitui o grande desafio da modernidade. Nesse sentido, como pontua Castanheira Neves:  "A responsabilidade civil, por outro lado, a qual se começou por ser, tanto na responsabilidade contratual como na extracontratual, imputável igualmente a uma acção causante eticamente censurável pela culpa, logo se centrou no dano, enquanto a sanção deixou de ter menos um sentido ético, como a pena, do que um objectivo prático na reparação" [destacamos].12  Assim, busca-se o desprendimento da ideia de culpa, traçando-se como ratio essendi da responsabilidade civil objetiva ou por ato lícito não o apenamento e sim la réparation des dommages.13 Deste modo, enquanto a responsabilidade civil subjetiva mantém a conotação de apenamento [= punitiva] - até em atenção à sua função preventiva -,14 não há, na responsabilidade civil objetiva, ao menos como regra, reprovação ética de apenar-se ou punir-se, mas apenas o objetivo de reparar-se o dano.15 Trabalha-se, assim, tão somente com a ideia [prova] de dano e nexo de causalidade.16 E como consequência desprende-se também da noção de ilicitude como pressuposto necessário para a responsabilização civil, viabilizando-se falar, inclusive, em responsabilidade civil por atos lícitos.17 Sendo assim, essa correta objetivação da responsabilidade civil [não como presunção de culpa] tem duas importantes consequências para o mundo do direito: (i) redução de situações de danos sem reparação; e (ii) o quantum indenizatória deverá limitar-se a tão somente reparar o dano, posto que não terá qualquer caráter de apenamento [punitivo; responsabilidade-sanção]. Deste modo, ao imputar-se a alguém a responsabilidade sem culpa o quantum indenizatório deverá ser arbitrado de forma equitativa e equilibrada, a fim de não se traduzir nem em apenamento [do responsabilizado] e nem em enriquecimento sem causa [do lesado]. Por isso, duas teorias devem ser consideradas na hora de arbitrar-se o quantum indenizatório devido por aquele que é responsável mas não culpado: (i) a teoria da proporcionalidade;18 e (ii) a teoria da equivalência [equilíbrio].19 20 Assim, em se tratando de situação jurídica ensejadora de responsabilidade civil objetiva, provados dano e nexo de causalidade, esses dois princípios devem ser aplicados a fim de mensurar-se o quantum proporcional e equitativo do ressarcimento do dano, sem implicar em responsabilização-sanção. _______________ 1 Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp e Martin Wolff [revisto por Hans Carl Nipperdey]. Tratado de derecho civil - parte general, tomo I, vol. II, 2.ª parte, 3.ª ed., Barcelona: Bosch, 1981, § 208, I, p. 844/845. 2 Tradução: Ninguém pode ser considerado como agindo dolosamente quando usa direito seu (cfr. Mário Curtis Giordani. O código civil à luz do direito romano, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 235). 3 Tradução: Ninguém causa dano, a não ser que faça o que não tinha direito de fazer (vide Mário Curtis Giordani. O código civil, cit., p 235). 4 O tema não é novo, v., entre outros, Wilson Melo da Silva. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco, Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1962, passim; Flávio Tartuce. Responsabilidade civil objetiva e risco, São Paulo: Método, 2011, pp. 61/79; e Marcelo Junqueira Calixto. A culpa na responsabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim. 5 Cfr. STJ, 3.ª T., REsp 185.659-SP, vencido o Min. Rel. Carlos Alberto Menezes Direito, Min. Nilson Naves relator designado,  m.v., j. 26.6.00, DJ em 18.9.2000, falando na teoria do risco em "presunção de culpa". 6 Cfr. António Castanheira Neves. Pessoa, direito e responsabilidade, in António Castanheira Neves. Digesta - escritos acerca do direito, do pensamento Jurídico da sua metodologia e outros, 3º. Vol., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, item 2, p. 133. 7 Patrice Jourdain. Les principes de la responsabilité civile, 7.ª ed., Paris : Dalloz, 2007, p. 9/11. 8 Geneviève Schamps. La mise en danger: un concept fondateur d'un príncipe géneral de responsabilité. Analyse de droit comparé, Bruxelles-Paris/Bruylant-LGDJ, 1998, p. 31; Henri de Page. Traité élémentaire de droit civil belge (principes - doctrine - jurisprudence), tomo II, 2.ª ed., Bruxelles: Émile Bruylant, 1940, § 968, p. 918. 9 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Responsabilidade pressuposta, Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 295. 10 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Responsabilidade pressuposta, cit., p. 295. 11 Geneviève Schamps. La mise en danger, cit., p. 31. 12 António Castanheira Neves. Pessoa, direito e responsabilidade, in António Castanheira Neves. Digesta - escritos acerca do direito, do pensamento Jurídico da sua metodologia e outros, 3º. Vol., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, item 2, p. 132. Cfr., ainda, no mesmo autor, a seguinte passagem: "O modelo posterior, que na sua evolução passou a ser o nosso, é bem diferente - simultaneamente mais complexo e de uma outra autonomia. Atrevendo uma designação, simplificante como aliás todas as categorias, talvez se possa dizê-lo um modelo de responsabilidade de sentido social. Decerto que a responsabilidade pessoal (ou pela culpa) não desapareceu, e seja já errado pensar o problema actual da responsabilidade civil, como se chegou a pensar, no quadro polémica entre a responsabilidade pela culpa e a responsabilidade pelo risco" [id., ibid.]. 13 Patrice Jourdain. Les principes de la responsabilité civile7, cit., p. 11. 14 V. Nelson Rosenvald. As funções da responsabilidade civil, 3.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 96/139. 15 Louis Josserand. Evolução da responsabilidade civil, in RF, vol. 86, Rio de Janeiro: Revista Forense, junho/1941, p. 556/557: "não convém admitir que somos responsáveis, não somente por nossos atos culposos, mas pelos nossos atos pura e simplesmente, pelo menos, bem entendido, se causaram um dano injusto, anormal a outrem? [...] Problema capital, que é o da objetivação da responsabilidade, da substituição do ponto de vista subjetivo pelo ponto de vista objetivo, da noção de culpa pela do risco [...] Assim o ponto de vista objetivo toma o lugar do ponto de vista subjetivo, e o risco toma o lugar da culpa, essa espécie de pecado jurídico". 16 Nelson Nery Junior. Aspectos principiológicos da responsabilidade civil por dano ambiental, in Rosa Maria de Andrade Nery e Rogério Donnini. Responsabilidade civil - estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 418/419. 17 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Responsabilidade pressuposta, Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 2; Daniel Ustárroz. Responsabilidade civil por ato lícito, São Paulo: Atlas, 2014, passim; Felipe Peixoto Braga Netto. Teoria dos ilícitos civis, Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 9 e 13; Rui Stoco. Tratado de responsabilidade civil - doutrina e jurisprudência, 7.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, item 14, p. 167/169; António Castanheira Neves. Pessoa, direito e responsabilidade, in António Castanheira Neves. Digesta - escritos acerca do direito, do pensamento Jurídico da sua metodologia e outros, 3º. Vol., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, item 2, p. 131/133; e Mário Júlio de Almeida Costa. Direito das obrigações, 11.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, § 53, p. 656/658. 18 Thierry Léonard. Conflits entre droits subjectifs, libertés civiles et intérêts légitimes - un modèle de résolution basé sur l'opposabilité et la responsabilité civile, Bruxelles: Larcier, 2005, p. 630 et seq. 19 Thierry Léonard. Conflits entre droits subjectifs, cit., p. 655 et seq.; Rosa Maria de Andrade Nery. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 24/26. 20  O que não nos parece incompatível com o método bifásico (cfr. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. Princípio da reparação integral, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 288/290).
Os contratos, de uma forma geral, originam direitos e deveres para as partes que figuram em determinada relação contratual, ou seja, através dos princípios do pacta sunt servanda e da autonomia privada, obrigam os contratantes àquilo que foi acertado e assinado. Ocorre que, por outro lado, o mundo vem sendo atingido pela pandemia do coronavírus (COVID-19), fato que derivam diversas consequências também no âmbito do Direito Privado. Inclusive, foi sancionada lei que o regule, de forma transitória e emergencial, nos termos da lei 14.010, de 10 de Junho de 2020. O Ministério da Saúde informa que mais de duzentos países estão enfrentando a pandemia causada pela COVID-19.1 No Brasil, os dados apresentados pelo Google2 revelam 5.567.126 casos, dentre os quais 5.028.216 estão entre os recuperados, e 160.548 óbitos.3 Os números, portanto, revelam uma situação atípica, mas que interfere nas relações jurídicas e, nos termos dos princípios antes mencionados, deve levar o estudioso do Direito a refletir sobre eventual inadimplemento e as possibilidades que têm as partes no sentido de pedir a execução, a resolução ou a manutenção de um contrato, em conjunto com alegações de fato e de direito, buscando contextualizar o fato COVID-19. Da premissa acima, o foco deste artigo traduz-se na discussão relativa ao exercício de posições jurídicas por parte de contratante e contratado, quando do atraso da entrega de obra, mirando a denominada cláusula de tolerância, ou seja, aquela que prevê que o imóvel pode ser entregue fora do prazo inicialmente estipulado, e desde que não ultrapassado o período de 180 (cento e oitenta) dias. Assim, caracterizaria abuso do exercício do direito um pedido de resolução do contrato ou, por outro lado, a construtora, apegando-se à cláusula, de forma indefinida, no sentido de postergação da entrega, quando considerada a pandemia? Bem, sobre tal indagação é que vamos então desenvolver essas breves linhas, considerando o fato atraso na entrega de obra e o fato COVID-19, a previsão do Código Civil para a hipótese de inadimplemento, em contexto com as consequências geradas pela pandemia, à luz da boa-fé objetiva e do abuso no exercício de direitos. A conduta das partes, entendemos assim, é decisiva no sentido das contratações e de seus contornos, como a resolução ou a manutenção do vínculo, por exemplo. A conduta, portanto, deve ser analisada à luz do princípio da boa-fé objetiva. A doutrina nos diz que o interesse na boa-fé vem de longa data, ou seja, desde a época dos romanos já se estudava sobre a conduta das partes, em especial sobre os negócios e contratos, como leciona Flávio Tartuce.4 Neste sentido, também, as lições de Menezes Cordeiro:  A boa-fé surge, com frequência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, a boa-fé informa previsões normativas e nomina vectores importantes da ordem privada. As figuras de ponta da civilística estão-lhe associadas: a culpa na formação dos contratos, o abuso do direito, a modificação das obrigações por alteração das circunstâncias e a complexidade do conteúdo obrigacional.5 Bruno Miragem, a seu turno, explica que o "[...] princípio da boa-fé constitui-se em um dos princípios basilares do direito do consumidor, assim como no direito privado em geral".6 Em termos legislativos, e em atenção ao Código Civil, apontamos dois artigos de suma importância para este tópico envolvendo a boa-fé objetiva: os arts. 1137 e 422.8 No Código de Defesa do Consumidor, o instituto vem previsto, também, no art. 4º, inciso III. Em relação ao exercício abusivo do direito, a previsão e contra eco na parte geral do Código Civil, nos termos do art. 1879 e, em se caracterizando, a consequência do ato tem previsão de reparação no capítulo especial da Responsabilidade Civil, pela leitura do art. 927.10 Portanto, a conduta antes referida, das partes, em contexto com as consequências geradas pela COVID-19, quando do atraso da entrega de obra, vai gerar discussão acerca da incidência das normas aqui referidas, no sentido de análise do regular exercício ou então do abuso do direito, para os contratos em questão. Dos ensinamentos doutrinários trazidos, independentemente da relação jurídica que se está a tratar (obrigações, contratos ou Direito de Família, por exemplo), a lealdade, a transparência, a retidão, são condutas mais do esperadas, além de impostas pelo ordenamento jurídico. Exigir a resolução ou execução de um contrato e, em sede de contestação, alegar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, considerando o atraso na entrega de obra e o fato COVID-19 é questão a ser enfrentada pelo magistrado, à luz da boa-fé objetiva e do abuso do direito. O Código Civil prevê as hipóteses de pedidos de resolução ou de execução do contrato, para os casos de inadimplemento,11 sendo que, em seu art. 393,12 prevê hipóteses de exclusão da responsabilidade, ou seja, quando presente a inevitabilidade, como elemento comum entre o caso fortuito e a força maior.13 Por outro lado, legislação civil prevê hipóteses que, mesmo diante do caso fortuito ou de força maior, ainda assim o devedor não se verá exonerado da responsabilidade, como nos casos previstos pelo art. 399.14 Da questão trazida neste artigo, que guarda relação direta com a entrega de obra e a cláusula de tolerância, nossa posição acerca de avaliar a conduta do adquirente, em termos de resolução ou cumprimento do contrato, em sede de uso abusivo de posições jurídicas, também passa muito pelas alegações de defesa da outra parte. E explicamos. Deve ficar clara a condita das partes, nos autos relativos à discussão que ora propusemos, e considerando uma linha de tempo entre a contratação, andamento das obras, eventual paralização e, em seguida a retomada. Ou seja, se ficar claro que o atraso, além do período previsto pela cláusula de tolerância ocorrer justamente por influência única e decisiva dos efeitos da COVID-19, portanto, surgindo o fortuito externo, não há como se exigir penalidades em decorrência da mora, por restar descaracterizada pelo evento que rompe o nexo causal (COVID-19), residindo aí o abuso de certa posição jurídica, eis o autor da ação é sabedor do contexto atual e do andamento da obra (e quem sabe até o dolo, dependendo da insistência, se antes não sabia das consequências, mas analisando as provas trazidas pelo réu, efetivamente vem a saber). Por outro lado, se já vinha ocorrendo o atraso, se o incorporador já estava em mora, o que se conclui é que o atraso (para além dos limites da cláusula de tolerância) não sofreria influência da COVID-19, residindo aí, mas pela outra parte, o abuso de certa posição jurídica, em termos de defesa. Voltando ás lições de Menezes Cordeiro acerca do exercício abusivo de posições jurídicas, e as aplicando no objeto central deste artigo, devemos analisar se o pedido de resolução ou de extinção do vínculo contatual, quando ultrapassado o prazo de 180 dias e ainda não entregue a unidade habitacional, quando do exercício daquele direito, está ou não em consonância com a boa-fé e os seus limites impostos,15 análise contextualizada ao fato COVID-19. Como reforço importantíssimo, e também voltando ao Código Civil, vale lembrar os três grandes paradigmas que o formam, seus verdadeiros pilares, ou seja, a socialidade, a eticidade e a operabilidade, como nos ensinam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. O contexto atual, quando se fala em obrigações em sentido técnico, estrito, ou seja, aquelas de caráter patrimonial, vem sofrendo mudanças. É que as relações estabelecidas que têm por base prestações continuadas, duradouras, exigem e impõe a observação da confiança.16 O abuso de posições jurídicas em extremo apego ou desconsiderações a COVID-19 pode sim gerar danos a um dos contratantes, justamente pela violação da confiança, como referido pela doutrina. A Constituição Federal, em sua normatividade, prevê uma série de deveres os quais todos, de alguma forma e em algum momento, estão vinculados no sentido de sua observação. Não por menos que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o princípio da dignidade pessoa humana, sendo que, ao lado, um dos objetivos da Carta é primar por uma sociedade justa e solidária. Em temos de contrato e COVID-19, acentua-se a necessidade de incidência daquele princípio e fundamento. Talvez o estudioso do Direito esteja se perguntando como o exercício abusivo de exigir o cumprimento ou a resolução do contrato, pelo lado do adquirente, ou o de um apego ao extremo à extensão do prazo da cláusula de tolerância, poderia ofender a Constituição, em sede de dignidade da pessoa humana, se se trata de uma empresa que tenha vendido a unidade, por exemplo. Bem, imaginemos então uma empresa que sempre cumpriu com suas obrigações, que prima por um atendimento que supra as expectativas de seus clientes. Ao se ver demandada, e considerando a hipótese de abuso do direito, por parte do adquirente, sabedor do atraso com base unicamente nas consequências da COVID-19, pois, em hipótese, foi devidamente informado pela empresa sobre o fato quando do atraso, com certeza a honra objetiva da empesa pode restar comprometida,  com reflexos também aos donos e sócios, pois não será difícil se concluir que a angústia daquelas pessoas, em não conseguir cumprir com a prestação por fatores absolutamente externos, mas ainda assim se veem demandados, tendo custos com o processo, tendo que justificar, muitas vezes, o injustificável, extrapola os limites do tolerável, em franca violação à boa-fé objetiva e também à função social dos contratos. Por outro lado, com certeza, não ver entregue a moradia de uma família, obra que já vinha atrasada antes da entrega, e ver alegações de que o atraso não deve configurar inadimplemento por causa dos efeitos da COVID-19, é sim contrariar a boa-fé objetiva, sob esta ótica, com nítido abuso do exercício de uma cláusula contratual, mas que certamente descontextualizada da realidade. A paz de espírito do consumidor, com certeza, resta abalada, eis que não terá tão cedo sua casa entregue, além de ver seus recursos do FGTS presos ao negócio (se com eles disponibilizou tais recursos), e que se se vê impossibilitado de reutilizá-los para outra aquisição, deparando-se com flagrante afronta à lealdade. Até que venha uma decisão judicial transitada em julgado, no sentido de extinção do vínculo contratual, certamente o sofrimento perdurará. Com certeza, e voltando ao o que dissemos na introdução do tema, a conduta das partes será decisiva no sentido de eventual dano ocasionado pelo uso abusivo de posições jurídicas. Mais do que nunca, a interpretação do contrato e considerando o fato COVID-19 deve vir em consonância com a interpretação constitucional do direito privado. Mais do que analisar a conduta na qualidade de "bandidos ou mocinhos", a questão será decidida conforme a análise da boa-fé objetiva. E da técnica jurídica não podemos nos distanciar. As penalidades são previstas e, em havendo danos, surgirá então a Responsabilidade Civil, com sua função reparatória.   _____________  1 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 08 out. 2020. 2 Pesquisa realizada na primeira quinzena de novembro de 2020. 3 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 08 out. 2020. 4 TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie: volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 98. 5 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2013, p. 17. 6 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor: direito material e processual do consumidor: proteção administrativa do consumidor: direito penal do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 109. 7 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 8 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 9 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 10 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 11 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 12 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial: direito das obrigações: autoregramento da vontade e lei: alteração das relações jurídicas obrigacionais: transferência de créditos: assunção de dívida alheia: transferência da posição subjetiva nos negócios jurídicos. 1. ed. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). Campinas: Bookseller, 2003, p. 106.   14 Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 15 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil.  Coimbra: Almeida, 2013, p. 662. 16 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 2: obrigações. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 99. _____________  MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2013.  MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor: direito material e processual do consumidor: proteção administrativa do consumidor: direito penal do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.  PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial: direito das obrigações: autoregramento da vontade e lei: alteração das relações jurídicas obrigacionais: transferência de créditos: assunção de dívida alheia: transferência da posição subjetiva nos negócios jurídicos. 1. ed. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). Campinas: Bookseller, 2003.  FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 2: obrigações. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.   TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie: volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019.  
No Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) sob o 954.858, de relatoria do ministro Edson Fachin, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide se Estado estrangeiro que praticou atos de guerra dentro das fronteiras brasileiras pode ser submetido a julgamento pela jurisdição do Brasil. Na fixação do tema 944 de Repercussão geral no ARE referido, o STF suscitou o debate acerca do alcance da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro em relação a ato de império, que decorre do exercício direto da soberania estatal, ofensivo ao direito internacional da pessoa humana. O caso em destaque tem como substrato fático-jurídico ação de ressarcimento de danos materiais e morais de autoria de descendentes (netos ou viúvas de netos) de um tripulante de barco pesqueiro morto em decorrência de ataque de submarino alemão no mar territorial brasileiro, nas proximidades da Costa de Cabo Frio, em julho de 1943, durante a II Guerra Mundial. Sem citação da parte Ré (República Federal da Alemanha), o juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro declinou de sua competência e julgou extinto o processo sem resolução de mérito. Inconformados os autores interpuseram Recurso Ordinário ao STJ que teve seu seguimento negado sob o fundamento de que não cabe ao Judiciário brasileiro apreciar pedido de indenização contra Estado estrangeiro quando os atos praticados, - atos de guerra, in casu - , apresentam-se como atos de império (nesse cenário, a imunidade de jurisdição seria absoluta).1 Quanto à imunidade de jurisdição, no entender de Octavio Bueno Magano, "Baseia-se ela na idéia (sic) de que a independência e a igualdade dos Estados impede que qualquer deles se erija em juiz do outro, conceito que se expressa na parêmia "par in parem nom habet judicium"."2 No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), prevalece o entendimento no sentido da imunidade de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro para conhecimento de atos de império por ele praticados. Depreende-se, no entanto, que em relação à prática de atos de gestão a imunidade é relativa, de modo que os atos praticados por Estado no uso de prerrogativas comuns às de todos os cidadãos podem ser submetidos a processo de conhecimento na jurisdição doméstica. A rigor, essa jurisprudência do STJ reverbera a virada de entendimento da Suprema Corte levada a efeito pós Constituição de 1988. Precisamente, o STF sinaliza a tendência de relativização do conceito de imunidade de jurisdição na histórica decisão proferida por unanimidade na ACi sob o 9.696-3-SP, de 31/5/89, na qual o relator Min. Sidney Sanches adotou os fundamentos do voto do Min. Francisco Rezek. Nessa assentada, o Pretório Excelso firmou o entendimento que o Estado estrangeiro não tem imunidade em causa relativa a contrato de trabalho celebrado no Brasil, inclusive em ações indenizatórias resultantes da responsabilidade civil, rechaçando, assim, a norma costumeira que dantes prescrevia a imunidade absoluta. É importante, ao ensejo, apresentar ao caríssimo leitor a distinção levada a efeito pela academia e jurisprudência sedimentada entre atos de império ("acta jure imperii") e atos de gestão ("acta jure gestionis"). A doutrina identifica os atos de império como os que envolvem "diretamente matéria de soberania", ao passo que os atos de gestão se caracterizam quando "o Estado se conduz no uso das prerrogativas comuns às de todos os cidadãos." Para melhor compreensão, colacionam-se alguns exemplos de atos de império: "a) atos legislativos; b) atos concernentes à atividade diplomática; c) os relativos às forças armadas; d) atos da administração interna dos Estados; e) empréstimos públicos contraídos no estrangeiro."3 Já os atos de gestão, como cediço, podem ficar caracterizados quando o Estado estrangeiro "procede, no campo de outro Estado, como titular de direito privado desse Estado"4, ou seja, quando o Estado estrangeiro atua dentro das fronteiras de outro Estado na condição de particular em atividades tipicamente negociais-privadas que não guardam qualquer relação direta com a soberania do Estado estrangeiro, nem tampouco com suas atividades essencialmente diplomáticas ou consulares. Pois bem, acerca da "possibilidade de submissão de Estado soberano à solução de lide promovida pelo Poder Judiciário de outra estatalidade, à luz da igualdade jurídica entre os Estados na sociedade internacional, nos termos da Constituição de 1988, art. 4º, inciso V", a jurisprudência do Supremo se consolidou no sentido da inaplicabilidade da imunidade de jurisdição a atos de gestão no processo de conhecimento. Em síntese, as jurisprudências consolidadas do STF e do STJ admitem, até o presente momento, a relativização da imunidade de jurisdição apenas para atos de gestão na fase processual de conhecimento, de modo que a imunidade de jurisdição à fase de execução (denominada imunidade de execução) permanece sendo absoluta, ou seja, mesmo que, nesta última hipótese, forem processados apenas atos de gestão na fase de conhecimento, a execução de decisum deverá necessariamente ocorrer perante a jurisdição do Estado estrangeiro. Quanto ao discrímen entre atos de gestão e de império, é de extrema relevância trazer à baila a manifestação exarada pelo Ministro Edson Fachin, - no plenário virtual em repercussão geral no ARE em análise -, no sentido que "A imunidade de jurisdição, de um lado, e a imunidade de execução, de outro, constituem categorias autônomas, juridicamente inconfundíveis, pois - ainda que guardem estreitas relações entre si - traduzem realidades independentes e distintas, assim reconhecidas quer no plano conceitual, quer, ainda, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais" (sem grifo no original). Acerca de relevante diálogo que compatibiliza os sistemas das imunidades de jurisdição e de execução, o Ministro Edson Fachin pontuou na mesma assentada: "A eventual impossibilidade jurídica de ulterior realização prática do título judicial condenatório, em decorrência da prerrogativa da imunidade de execução, não se revela suficiente para obstar, só por si, a instauração, perante Tribunais brasileiros, de processos de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar de litígio de natureza trabalhista". De posse dessas informações, passa-se a analisar algumas questões, -naturalmente imbricadas, como se verá -, arguidas pelos recorrentes e destacadas na manifestação do Ministro Edson Fachin ao reconhecer a repercussão geral no ARE em testilha. São elas, verbis: No recurso extraordinário, aponta-se ofensa aos (i) "arts. 5º, XXXV; 1º, III; 3º, IV e 4º, II da CF/88, considerando inexistir legítimo ato de império na prática de crime de guerra e contra a humanidade já julgados e condenados por Tribunal Internacional."; (ii) "arts. 133 c/c 5º, LIV da CF/88, uma vez que o acórdão recorrido estabelece que o diplomata pode arguir (sic), nos autos imunidade de jurisdição, sem apresentação de defesa formal, quando a Constituição Federal estabelece a indispensabilidade do advogado e o respeito ao devido processo legal, inexistindo decretação de imunidade de jurisdição ex officio (sic), como a que ocorreu no caso pela decisão recorrida." Com efeito, as questões agrupadas acima reportam a uma indagação central à possibilidade de responsabilização do Estado estrangeiro na jurisdição doméstica: em qual momento do processo, o órgão judiciário teria efetivamente a sua disposição elementos necessários à cognição adequada e suficiente para classificar, no caso concreto, o ato praticado pelo Estado estrangeiro como ato de gestão ou ato de império? Bastaria a leitura apenas da petição inicial para a formação do convencimento (motivado) do órgão judiciário acerca da qualidade do ato praticado? Por fim, seria possível ao órgão judiciário declarar incidente a imunidade de jurisdição sem que haja qualquer manifestação do Estado estrangeiro no instrumento processual justificando essa sua condição de imune à justiça brasileira? Por absoluta probidade acadêmica, acredita-se que as respostas a essas questões já foram apresentadas no percuciente voto, apesar de vencido, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, proferido no bojo do Recurso Ordinário (RO) sob o 57-RJ (5). Neste RO, Maria Thereza Fontella Goulart, João Vicente Fontella Goulart e Denise Fontella Goulart, viúva e filhos, respectivamente, do ex-Presidente João Goulart, insurgiram-se contra sentença proferida pelo juízo da 10ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro que indeferiu a petição inicial (da ação de conhecimento com pedidos condenatórios proposta em face dos Estados Unidos da América, com o objetivo de obter a condenação desse Estado estrangeiro ao pagamento de indenização por danos materiais, morais, "de imagem e de existência"); e extinguiu o processo sem resolução de mérito, sob o fundamento que os atos supostamente praticados por agentes dos Estados Unidos, que culminaram na deposição do ex-Presidente João Goulart pelo movimento que resultou na implantação da ditadura militar em 1964 caracterizar-se-iam em "atos de império", alcançados, portanto, pela imunidade do Estado estrangeiro à jurisdição brasileira. Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi entendeu que "diante da complexidade que o tema encerra, qualquer classificação que se pretenda realizar dos atos apontados na exordial, no estado em que o processo se encontra, sem que se oportunize a manifestação formal dos Estados Unidos da América do Norte a esse respeito, revela-se precipitada e perfunctória, em nada contribuindo ao desenvolvimento do conceito hodierno de imunidade relativa ou estrita de jurisdição."5 Forte nessas razões, a Ministra Nancy Andrighi votou pelo provimento do RO 57/RJ para afastar o indeferimento da inicial e a extinção do processo, determinando a continuidade da ação de conhecimento, com a citação dos Estados Unidos da América na pessoa de seu Chefe da Missão Diplomática no Brasil, como condição necessária ao esclarecimentos dos fatos narrados na inicial (os fatos seriam verdadeiros? seriam atos de império? se de império fossem, seriam legítimos?). No entanto, é bem verdade que "nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante foro doméstico"6, de modo que, mesmo havendo a citação, fica sempre preservada a possibilidade de o Estado estrangeiro invocar ou renunciar à imunidade, nesta última hipótese, consentindo no exercício da jurisdição local. A reflexão, portanto, que se propõe aqui é no sentido da imprescindibilidade de manifestação formal do Estado estrangeiro, no bojo do processo, sobre fatos narrados em ação proposta na jurisdição brasileira. Acredita-se que, com tal providência, haveria otimização do conhecimento do julgador sobre os fatos e, consequentemente, adequada classificação como atos de gestão ou de império (legítimos ou ilegítimos). Sem a efetivação dessa providência processual, a possibilidade de submissão de Estado soberano à solução de lide promovida pelo Poder Judiciário de outra estatalidade, - à luz da igualdade jurídica entre os Estados e da prevalência dos direitos humanos na sociedade internacional, nos termos do art. 4º, incisos II e V, do Texto Constitucional -, resta sempre limitada à cognição superficial do órgão judiciário, apesar da alta complexidade que o tema encerra. ____________________________ 1 Cfr. clique aqui 2 MAGANO, Octavio Bueno. Imunidade de Jurisdição, In: Trabalho & Doutrina: processo jurisprudência. São Paulo, nº 8, março de 1996, p. 20. 3 BARROSO, Luís Roberto; TIBURCIO, Carmen. Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros, In: Direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger / Carmen Tiburcio, Luís Roberto Barroso, organizadores; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 152. 4 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo II, 3.a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 209.  5 Cfr. RO 57/RJ, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, relator p/acórdão Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, 3ª Turma, data do Julgamento 21/08/2008; Data da Publicação (DJe) 14/09/2009. 6 REZEK, Francisco, Direito Internacional Público, São Paulo: Ed. Saraiva, 1991, p. 175.  
A imersão tecnológica do consumidor é um caminho sem volta, sobretudo após atual crise mundial decorrente da pandemia da Covid-19, que acelerou abruptamente o processo de transição do consumo analógico para o digital. Seria possível celebrar essa transformação a partir de muitas promessas que sempre acompanharam esse rápido e não menos representativo movimento de mudança: a ampliação da liberdade de escolha do consumidor diante de um espaço virtual tão competitivo; o mito da autorregulação do mercado a partir da participação direta do usuário na avaliação e solução de seus conflitos de consumo nas plataformas digitais; o acesso mais qualificado à informação de produtos e serviços, sobretudo pela análise da experiência anterior de outros consumidores; a necessidade de distanciamento do Estado em relação aos seus compromissos no âmbito da Política Nacional das Relações de Consumo, sob a lógica de que, por ser refratário às transformações sociais, sua excessiva regulação do mercado impediria o desenvolvimento da livre iniciativa e da maior capacidade do consumidor de resolver suas demandas diretamente junto ao empresário; maior espaço para o empreendedorismo no mercado em contraponto ao modelo do emprego formal, estímulo para o pequeno empresário com boas ideias e disposto a trazer inovações no mercado, rompendo o modelo tradicional de interação estática com o cliente; dentre outras. O objetivo do artigo é justamente criticar essa visão romantizada desse "admirável mundo virtual", propondo algumas reflexões acerca de questões sensíveis decorrentes da utilização excessiva e não consciente das plataformas eletrônicas nas relações de consumo e a necessidade de aperfeiçoamento de sua responsabilidade civil nesse contexto. A hiperconectividade do consumidor o levou à hiperconfiança, associadas ao pouco controle governamental e às cláusulas exoneratórias de responsabilidade civil nos contratos de adesão das plataformas eletrônicas criaram as condições ideais para o agravamento da vulnerabilidade do consumidor, em razão das promessas não cumpridas no processo de mudança do consumo analógico, agora transformado, quase que compulsivamente, em consumo digital. Hoje, a inteligência artificial tem um papel determinante da definição das predileções estéticas e comportamentais do consumidor, a partir da apropriação dos seus dados pessoais, obtidos mediante consentimento não adequadamente informado, agravando o risco de danos à sua privacidade e intimidade em um mercado marcado pela supervalorização comercial de dados pessoais e por prematuros marcos regulatórios. É possível reconhecer, inclusive, uma nova espécie de vulnerabilidade: a algorítmica. Da mesma forma, o processo de inclusão financeira virtual do consumidor deve ser avaliado a partir do fenômeno do superendividamento, representando um verdadeiro desafio regulatório diante da assimetria informacional, disseminação das Fintechs, crescimento do assédio de crédito e da ausência de políticas públicas para a educação financeira do consumidor, em contraste com a proliferação de práticas abusivas dos agentes financeiros. Nesse particular, urge a aprovação do PL 3515/15, que trata justamente da atualização da Lei 8.078/90 (CDC), no sentido de aprimorar a responsabilidade civil das instituições financeiras. No âmbito da economia de compartilhamento, através dos mais diferentes aplicativos é preciso reforçar a responsabilidade das plataformas virtuais, evitando a transferência do risco da atividade exclusivamente para os usuários, sob a lógica equivocada de que seriam meros intermediários e esse "custo" adicional inviabilizaria o exercício da própria atividade econômica. O uso da rede mundial de computadores, enquanto um dos principais meios midiáticos de massa da atualidade tem promovido a atividade dos blogueiros, vloggers, youtubers, ou seja, dos influenciadores digitais, os quais seriam contemplados pela lógica do Star System, por meio do vínculo com marcas e pelo fornecimento e produção de informações positivas sobre os produtos, visando o consumo através da centralização do público nas mídias sociais, sem levar em consideração os direitos básicos ao consumidor, sobretudo no âmbito da qualidade e ostensividade da informação publicitária (art.36 do CDC), em franco prejuízo à liberdade de escolha. Cumpre destacar, ainda, o agravamento da vulnerabilidade pela apropriação dos dados pessoais tanto pelo mercado, quanto pelas próprias autoridades estatais pelo aumento da vigilância estatal sob o pretexto da pandemia. O tema já havia ganhado grande relevância por mecanismos de microtargeting1na sociedade, especialmente no mercado de consumo e em eleições (HAN, 2018). No Brasil, aprovou-se a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709/2018 -, que, apesar de oferecer expectativas sobre uma maior proteção dos dados pessoais dos consumidores, precisa de tempo para expor suas virtudes, sobretudo através do diálogo com o CDC, como também suas eventuais lacunas. O isolamento social, por sua vez, favoreceu o aumento do consumo à distância, através do comércio eletrônico, principalmente, dos aplicativos de entrega em domicílio, como restaurantes, bares, livrarias, lojas de departamentos e etc, o que envolvia não apenas o grande fornecedor, mas também o pequeno comerciante e o empreendedor local. Muitos se arriscaram no mercado virtual, através das grandes plataformas eletrônicas, abrindo pequenas empresas atraídas pela pseudo democratização da concorrência na internet, mas foram rapidamente expostas à dura realidade das cláusulas abusivas, promoções agressivas, assédio para o pagamento de comissões elevadas, de modo que conseguissem algum destaque publicitário na oferta de seus produtos e serviços dentro da plataforma de entrega. Outros se expuseram, por necessidade extrema, a realizar a árdua tarefa de entregadores, cujo trabalho excessivo e penoso se agravou durante esse período de confinamento social, expondo-os a riscos muito maiores de contaminação pelo Coronavírus, sobretudo porque não lhe foram disponibilizados materiais e equipamentos de proteção individual.     Em resumo, o mito do "empreendedor de si mesmo" foi escancarado pela pandemia e reflete as consequências da precarização do trabalho e da falta de regulação estatal no exercício das novas plataformas virtuais, o que repercute no mau atendimento do consumidor. Por exemplo, o indivíduo que esteja dirigindo há mais de 10 (dez) horas através do aplicativo de transporte está muito mais propenso a causar um acidente de trânsito e, como isso diz respeito à segurança do passageiro, tal informação deveria estar disponível para que este decidisse se aceitaria ou não ser transportado naquelas condições, sobretudo quando há cláusula contratual que exclui a responsabilidade da plataforma por eventuais danos ao usuário do serviço.  Outro aspecto sensível nesse cenário de crise é a desconstrução do já combalido modelo de varejo tradicional, caracterizado por grandes lojas físicas, estoques consideráveis e locação de espaços caros em áreas comerciais e shopping centers. A pandemia trouxe a reboque o isolamento social e o fechamento de muitas empresas no Brasil, principalmente as de pequeno de porte, seja daquelas que não se prepararam para a mudança para o padrão de consumo digital, ou daquelas que não tiveram tempo para se adaptar às novas regras do jogo. A recente pesquisa do IBGE, intitulada "Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas", apontou que a pandemia fechou 39,4% de todas as empresas paralisadas, o que, numericamente, representa 522,7 mil empresas que encerram suas atividades, temporária ou definitivamente, até a primeira quinzena de junho de 2020, tendo sido os setores de serviços e o comércio como os mais afetados. (AGÊNCIA BRASIL, 2020). Nem mesmo as grandes lojas de departamento ficaram imunes à crise, mesmo aquelas que já possuíam uma razoável experiência com o comércio eletrônico, como foi o caso da Ricardo Eletro, que demitiu 3.500 empregados, fechou todas as lojas físicas e pediu recuperação judicial,  mantendo apenas a plataforma virtual e os departamentos de logística e entrega. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020)  Grande impacto também sofreram as multinacionais como a Inditex, maior varejista de roupas do mundo e proprietária das marcas  Zara e Massimo Dutti, que sofreu seu primeiro prejuízo trimestral como empresa de capital aberto e anunciou o fechamento de 1.200 (mil e duzentas) lojas físicas, elevando a meta de vendas online que representarão 25% do total de vendas até 2022, contra 14% no ano passado. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020) As redes que ainda resistem são obrigadas a diversificar suas atividades, investir numa abordagem publicitária mais agressiva. Por exemplo, o  Magazine Luiza comprou o site de notícias de tecnologia Canaltech, objetivando aumentar a distribuição de seus anúncios publicitários na internet, além de já possuir uma ferramenta própria de anúncios online. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Há, portanto, inegável movimento das fábricas e indústrias para criarem suas lojas virtuais, ou seja, expandem o negócio para a venda online direta ao consumidor, em concorrência direta com seus antigos parceiros do varejo. Esse fenômeno se intensificou, inclusive, na venda de eletrodomésticos e móveis, que ainda respondiam por parcela significativa das vendas do varejo presencial. Em caminho diametralmente oposto, as ações da Amazon atingiram a máxima histórica, tendo a empresa se beneficiado da forte demanda em meio ao isolamento social, elevando o seu valor de mercado para US$ 1,14 trilhão. (INFOMONEY, 2020). O pequenos negócios foram os primeiros a perecer e, mesmo aqueles que já possuíam algum expertise no comércio eletrônico enfrentam dificuldades, ou se reposicionaram nesse espaço com margens de lucro cada vez menores, logística complexa, desafios tecnológicos, consumidores mais exigentes e crescente risco de irrelevância pela alta competitividade de um mercado virtual global, não mais sujeito a limites geográficos.       O varejo tradicional foi o mais afetado pela crise econômica e vem cedendo espaço para o comércio eletrônico, sofrendo com a dura concorrência das grandes plataformas virtuais, sobretudo as transnacionais, assim como das fábricas que, depois da pandemia, não querem mais intermediários na venda direta ao consumidor, que tem mudado seus hábitos de consumo e passou confiar mais nas compras online.  É importante reconhecer o aumento das práticas abusivas e demais formas de violação dos direitos dos consumidores no ambiente virtual, sobretudo durante a pandemia, seja pelo agravamento da vulnerabilidade destes no comércio eletrônico, na apropriação de seus dados pessoais, seja no atraso e eventual descumprimento de obrigações legais e contratuais sob o pretexto da crise econômica, o que desafia o instituto da responsabilidade civil a lidar com esses novos conflitos. O empoderamento do consumidor digital será, também, uma consequência importante dessa ruptura, fortalecendo as bases de um consumo identitário, analisado sob a ótica do compartilhamento de experiências online no âmbito do comércio eletrônico, assim como suas repercussões no fortalecimento de uma cidadania participativa e na mudança do comportamento empresarial. O empresário, pós-crise, precisará se reinventar, pois se cada vez mais influenciado pelo valor da marca nesse ambiente tão competitivo deverá assumir uma postura mais responsável,  entregando ao consumidor muito mais que um bom preço ou condição de pagamento, revelando outras habilidades que criem uma relação de identidade com o cliente, de modo a conseguir se manter relevante no mercado e, ao mesmo tempo, fidelizar consumidores cada vez mais seletivos, como no bom exemplo das empresas que se diferenciaram na crise por preservarem os empregos e zelarem pela saúde física e mental de seu colaboradores.  *Dennis Verbicaro é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha). Professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da UFPA e do CESUPA. Procurador do Estado do Pará e advogado.  Referências AGÊNCIA BRASIL. Pandemia fecha 39,4% das empresas paralisadas, diz IBGE. Disponível aqui. Acesso em: 14/08/2020. FOLHA DE SÃO PAULO. Grupo dono da zara anuncia fechamento de 1.200 lojas após vendas caírem 44%. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020. _____. Ricardo eletro demite 3.500, fecha todas as lojas e pede recuperação judicial. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020. ______.Magazine luiza compra site de notícias de tecnologia para aumentar venda de anúncio. Disponível aqui. Acesso em 14/08/2020. HAN, Byung Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ed: Ayine, 2018. Infomoney. Amazon cresce com pandemia, mas enfrenta crise interna e preocupações com segurança. Disponível aqui.acesso em 14/08/20.   VERBICARO, Dennis; VERBICARO, Loiane; VIEIRA, Janaína (Coord.). Direito do Consumidor Digital. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020 __________ 1 Direcionamento publicitário realizado pelo uso de dados pessoais.  __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Quando o assunto é responsabilidade civil pelos danos causados por Inteligência Artificial ("IA"), as resoluções do Parlamento Europeu são leitura obrigatória. Até o presente momento, ao menos no Brasil, foram elas que pautaram o debate sobre o tema. Quer se concorde, quer se discorde de suas proposições, não se pode negar a sua importância. E o Parlamento aprovou, neste mês de outubro, por meio de três relatórios, iniciativas para melhor regulamentar a IA na União Europeia, a fim de estimular a inovação, os princípios éticos e a confiança na tecnologia. O primeiro, de iniciativa legislativa de Iban García del Blanco, pretende estabelecer um código ético para a IA. O segundo, de autoria de Axel Voss, dispõe sobre a responsabilidade civil pelos danos causados por IA. Por fim, o terceiro, redigido por Stéphane Séjourné, coloca em evidência os direitos de propriedade intelectual1. Em linhas gerais, a resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações à Comissão sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103) (INL)2, propunha a adoção predominante de mecanismos de responsabilidade objetiva, que deveriam ser combinados com a criação, a longo prazo, de estatuto jurídico próprio para os tipos de robôs mais avançados, além de um sistema de seguros obrigatórios, associado ou não a um fundo individual ou coletivo para compensações, com registro dos robôs. Dentre as principais polêmicas trazidas por esta Resolução, está a criação da chamada personalidade jurídica robótica, que não passou longe de críticas tanto na Europa quanto no Brasil. Veja-se, por exemplo, a crítica de Ugo Pagallo, que, por meio de uma comparação metafórica entre maçãs e laranjas, afirma ser necessário parar de confundir e comparar coisas diferentes, quais sejam, as maçãs da responsabilidade (accountability dos robôs) e as laranjas da personalidade jurídica. Segundo Pagallo, a questão central não deveria ser saber se a responsabilidade dos robôs depende da personalidade e vice-versa, mas investigar o porquê de os ordenamentos atribuírem personalidade jurídica a alguém e, a partir daí, verificar se um robô de Inteligência Artificial atende ou não a esses requisitos jurídicos. Caso a resposta seja negativa, o foco do intérprete deverá recair sobre outras modalidades de responsabilização pelos atos autônomos da máquina3. Especificamente quanto ao relatório de outubro de 2020, de iniciativa de Axel Voss, pode-se destacar o apelo "a um quadro de responsabilidade civil orientado para o futuro, responsabilizando estritamente os operadores de IA de alto risco por quaisquer danos causados. Um quadro jurídico claro estimularia a inovação, fornecendo uma base legal às empresas, ao mesmo tempo em que protegeria os cidadãos e promoveria a confiança nas tecnologias IA, desencorajando ainda atividades que possam revelar-se perigosas"4. A orientação, segundo o relatório de Voss, é de que as normas de responsabilidade civil a serem apresentadas pelo legislador europeu deverão ser aplicadas às atividades que utilizem IA, tanto física como virtualmente, e que se revelem "nocivas para a vida, a saúde, a integridade física, danosas para a propriedade, ou que possam causar danos imateriais significativos que resultem numa 'perda económica verificável'"5. Uma vez mais, destacou-se que, ainda que as tecnologias de IA de alto risco sejam raras no presente momento, "os operadores deverão estar protegidos por apólices de seguro semelhantes às utilizadas para os veículos a motor"6, o que dialoga diretamente com a Resolução aprovada em 2017. De fato, tem-se aqui uma importante constatação e que deve passar a nortear os debates: não há uma correlação necessária entre IA e o incremento dos riscos na sociedade tecnológica. Afinal, como registrou o Parlamento Europeu, ainda são raras as IAs que representam um alto risco. Além disso, mesmo aquelas IAs tidas como de alto risco, a exemplo dos carros autônomos, podem acabar no futuro sendo consideradas como de baixo risco. Isso porque a introdução desses veículos no mercado visa fundamentalmente a reduzir o risco na atividade de condução veicular, por meio da diminuição no número de acidentes, já que serão eliminadas - ainda que parcialmente - as causas de acidentes relacionadas à figura do condutor, tais como fadiga, distração e embriaguez7. Ademais, como tendência geral, as iniciativas de outubro sinalizam para o fato de que as Inteligências Artificiais devem ser concebidas de forma a permitir a supervisão humana a qualquer momento8. Contextualizando esta premissa com o cenário brasileiro, pode-se vislumbrar um longo caminho a ser percorrido por nós, sobretudo após a retirada do artigo 20 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018), por meio de veto presidencial, da previsão da obrigatoriedade de revisão por pessoa humana das decisões automatizadas. Se o que se tem visto, e os relatórios europeus apontam nesse sentido, é uma imensa dificuldade em se auditar a "caixa-preta" dos algoritmos, mergulhando nas inúmeras camadas de programação de suas redes neurais, como tolerar a ausência de obrigação de uma revisão por pessoa humana? Em última análise, ao se negar semelhante obrigação, cria-se um direito de revisão impotente, "um sino sem badalo", já que diante de uma decisão com efeitos discriminatórios, a vítima pedirá a sua revisão e esta poderá ser realizada por outra máquina. Ou seja: se o problema está no elemento "automatizado" da decisão, como explicar que esta seja revista novamente por um mecanismo automatizado? Em que pese à exclusão da LGPD, Bruno Bioni e Laura Schertel Mendes entendem, acertadamente, que seria possível inferir, com base na "principiologia da Lei que a intervenção humana continua a ser uma exigência em alguma fase do processo de contestação da decisão automatizada, ainda que não no primeiro pedido de revisão"9. E, por mais que pareça contraditório, o mais difícil não é encontrar um fundamento jurídico para se pleitear a revisão por pessoa humana, mas verificar a ocorrência de um tratamento discriminatório. Veja-se, por exemplo, o caso da concessão de crédito. Imagine-se que determinada pessoa receba uma taxa de juros maior porque o algoritmo da instituição financeira percebeu, por meio de tratamento dos dados pessoais, que o nome da pessoa estava associado a pessoas de origem africana, que, segundo os dados viciados da instituição, tenderiam a ser mais inadimplentes. Constatada tamanha discriminação injustificada, o fundamento para uma revisão por pessoa humana seria facilmente extraído do direito fundamental à igualdade. A dificuldade aqui é outra: como saber que a taxa de juros foi mais alta por causa do nome? O direito à explicação parece, em um primeiro momento, um bom caminho. No entanto, ainda não está claro como tal direito, que tende a ser extraído do §1º do artigo 20 da LGPD, poderá ser exercido. Além disso, nos casos em que houver proteção ao segredo de negócios, dever-se-á aguardar a realização da verificação de impactos discriminatórios pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD). Como isso será operacionalizado? Será um procedimento rápido? Tudo isso poderia ser minorado, contudo, se houvesse uma participação humana mais intensa, passível de ser invocada pelo titular dos dados pessoais em todos os momentos. E a importância dessa participação humana se torna ainda mais ressaltada quando se tem em mãos a previsão de que "dentro de apenas dois anos, 42% das tarefas serão realizadas por algoritmos, comparando-se com a taxa atual de 29%"10. Por fim, caminhando na direção das conclusões de nosso estudo específico sobre o tema (Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade)11, o relatório de autoria do deputado Axel Voss conclui que (i) não é necessária uma revisão completa das normas de responsabilidade civil existentes, mas deve ser levado em consideração que a complexidade, opacidade, capacidade de modificação e autoaprendizado da IA, associadas à participação de inúmeros atores na sua programação, representam um grande desafio à efetividade das normas; (ii) que como quase sempre os danos causados pela IA são, em alguma medida, resultado da participação e do envolvimento de um ser humano, não seria necessário garantir personalidade jurídica própria aos sistemas comandados por Inteligência Artificial, sendo por isso, recomendado não lhes atribuir tal condição12. Como se pode notar, a tônica na Europa parece estar pautada na indispensável presença humana no desenvolvimento da Inteligência Artificial, na gestão dos riscos e no aproveitamento, o tanto quanto possível, das normas já existentes, a serem associadas a mecanismos de securitização obrigatória cujas contribuições dependerão do risco criado por cada sujeito envolvido na introdução daquele sistema ou robô comandado por IA no mercado. Cabe ao Brasil seguir os bons ventos que sopram do outro lado do Atlântico. *Filipe Medon é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor substituto de Direito Civil na UFRJ e de cursos de pós-graduação do Instituto New Law, CEPED-UERJ, EMERJ e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado e pesquisador. Instagram @filipe.medon. __________ 1 Parlamento na vanguarda das normas europeias sobre inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 2 Disponível aqui. Acesso em 18 out. 2020. 3 PAGALLO, Ugo. Apples, oranges, robots: four misunderstandings in today's debate on the legal status of AI systems. 376. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, p. 05. Disponível aqui. 4 Parlamento na vanguarda das normas europeias sobre inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 5 Parlamento na vanguarda das normas europeias sobre inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 6 Parlamento na vanguarda das normas europeias sobre inteligência artificial. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 7 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020. 8 Parlamento Europeu aprova maior regulamentação de Inteligência Artificial na UE. In: TSF, 21 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 9 BIONI, Bruno R;, MENDES, Laura Schertel. Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais e a Lei Geral brasileira de Proteção de Dados: mapeando convergências na direção de um nível de equivalência. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 809. 10 MEPs urge for firm and clear rules on artificial intelligence. In: Europost, 22 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020. 11 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020. 12 No original: "Believes that there is no need for a complete revision of the well-functioning liability regimes but that the complexity, connectivity, opacity, vulnerability, rethe capacity of being modified through updates, the capacity for self-learning and the potential autonomy of AI-systems, as well as the multitude of actors involved therein represent nevertheless a significant challenge to the effectiveness of Union and national liability framework provisions; considers that specific and coordinated adjustments to the liability regimes are necessary to avoid a situation in which persons who suffer harm or whose property is damaged end up without compensation; 7. Notes that all physical or virtual activities, devices or processes that are driven by AIsystems may technically be the direct or indirect cause of harm or damage, yet are nearly always the result of someone building, deploying or interfering with the systems; notes in this respect that it is not necessary to give legal personality to AI-systems; is of the opinion that the opacity, connectivity and autonomy of AI-systems could make it in practice very difficult or even impossible to trace back specific harmful actions of AIsystems to specific human input or to decisions in the design; recalls that, in accordance with widely accepted liability concepts, one is nevertheless able to circumvent this obstacle by making the different persons in the whole value chain who create, maintain or control the risk associated with the AI-system, liable". Disponível aqui. Acesso em 26 out. 2020.   __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil.
A circulação de conteúdo no universo digital decorre, em grande medida, das publicações produzidas e postadas por terceiros nos espaços abertos por inúmeras plataformas digitais como YouTube, TikTok, Twitter, Facebook e Instagram. Não é raro, contudo, que esses conteúdos atentem contra a lei e acarretem danos a pessoas físicas ou jurídicas, às instituições e à própria democracia.   A quem atribuir a responsabilidade por tais danos tem sido um debate travado em todo o mundo, sobretudo no que se refere ao papel dessas plataformas que têm sido qualificadas como provedores de aplicação da internet ou intermediárias na veiculação do conteúdo. A favor de um modelo que imponha menor responsabilidade às plataformas, garantindo prioridade às suas políticas e termos de uso, argumenta-se que a indispensabilidade do crivo judicial seria necessária para a preservação da liberdade de expressão, para redução do risco de ampliação da derrubada de conteúdo e pelo direito de amplo acesso à informação que assegure pluralidade. Afirma-se que não caberia aos provedores de aplicação de internet ou intermediários arrogarem para si o papel de censores, mas ao poder judiciário. Nesse sentido, milita-se pela preservação do modelo de notice and take down, que isenta as plataformas de responsabilidade por conteúdos postados, antes que haja análise da legitimidade dos pedidos de remoção pelo poder judiciário. De outro lado, em defesa de um arranjo regulatório que imponha maior responsabilidade às plataformas, não apenas após a prolação de uma decisão judicial, aponta-se a ampliação do risco ao sistema democrático e o progressivo esfacelamento de direitos como privacidade, honra e imagem. Nessa linha, contudo, há uma grande dificuldade na estruturação de um novo modelo. Trabalha-se em uma proposta que, ao mesmo tempo, garanta que as plataformas implementem políticas mais responsáveis, sem incentivar a derrubada de conteúdo para mitigar o risco de condenação ao pagamento de indenizações. Um dos pressupostos fundamentais seria a necessidade de maior transparência na atuação dessas plataformas. Em 2014, após destacar que seu intuito seria "assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura", o marco civil da internet escolheu o primeiro modelo e, em seu art. 19, dispôs que "o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário". Afastou o critério apenas para a solução de casos envolvendo direito autoral (art. 19, §2º) e para casos que digam respeito à divulgação não consensual de imagens íntimas (art. 21) - caso em que o provedor torna-se responsável quando for notificado pelo(a) usuário(a) e não agir para removê-los. A partir dessa orientação normativa, alguns consideraram que a aprovação do marco civil da internet teria colocado fim a insegurança jurídica sobre o regime de responsabilidade de intermediários, resolvendo questões de responsabilidade civil e trazendo consequências diretas para a liberdade de expressão e o acesso à informação1. A matéria, contudo, foi submetida ao Supremo Tribunal Federal para análise da possibilidade de se atribuir responsabilidade civil ao provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, a partir do quanto disposto nos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal (RE 1.037.396). Não se coloca em questão a importância de proteger a dimensão coletiva da liberdade de expressão, de informação e de comunicação que atuam como pilar democrático. Também há consenso quanto ao fato de que atribuir às intermediárias o amplo dever de moderar conteúdo, sob pena de responsabilidade, incentiva à sua derrubada com riscos desproporcionais à liberdade de expressão. Embora divirja-se sobre a quem atribuir o dever de agir, em quais hipóteses, em que medida e por meio de qual procedimento, é inquestionável que cada ponto dessa divergência impacta na responsabilidade a ser atribuída aos provedores de aplicação ou intermediárias. Enquanto a repercussão geral aguarda julgamento no STF, o aprofundamento dos problemas trazidos por esse novo contexto de circulação da informação levou à ampliação dos debates no Congresso Nacional.  O projeto de lei intitulado das Fake News apresenta algumas alternativas, entre elas, a exigência de que plataformas com mais de dois milhões de usuários apresentem relatórios de moderação de conteúdo, além de notificação do usuário e autorregulação regulada. Também cria o conceito de conta inautêntica com requisição de documentos e pretende admitir a rastreabilidade. Em todo esse complexo debate, proponho reflexão sobre um ponto: o pressuposto de que os provedores de aplicação não seriam mais que intermediários, veiculadores de um conteúdo, falso, desinformativo ou ofensivo produzido por um terceiro. Essa reflexão pode impactar na disputa pela definição do responsável pela derrubada do conteúdo - e seus inevitáveis reflexos na liberdade de expressão - e certamente impacta na responsabilidade civil das plataformas e no nexo de causalidade que estabelecem com eventual dano. Indaga-se: em que medida os provedores de aplicação contribuem para a ampliação do alcance de um perfil ou conteúdo falso, desinformativo ou ofensivo? Em que medida poderiam ser considerados apenas intermediários e o produtor de conteúdo apenas e tão somente como um terceiro? Em que pese boa parte da operação desses provedores de aplicação seja considerada modelo de negócio e protegida pela propriedade intelectual, as informações fornecidas pelas plataformas dão conta de que são elas próprias as responsáveis pela elaboração do modelo que define o alcance e a circulação de cada conteúdo postado. Esse mecanismo é definido por diversas análises matemáticas que levam à programação de um algorítimo. No caso do Facebook os fatores de alcance do conteúdo são classificados como orgânicos e pagos e esclarecidos ao público da seguinte forma: "Há muitos fatores que afetam o alcance, incluindo como as pessoas estão se envolvendo com o conteúdo da Página, como as pessoas se envolveram com tipos semelhantes de conteúdo anteriormente, a qualidade do conteúdo e outros fatores, como período do dia e se as pessoas estão acessando o Facebook pelo celular ou computador. É normal que o alcance mude dependendo desses fatores"2. Mecanismo semelhante é utilizado pelos mais diversos provedores de aplicação ou plataformas intermediárias. Esse modelo de negócio contribui para que encontremos os melhores pacotes de viagens e voos promocionais e ajuda, até mesmo, a encontrar o par perfeito. Contudo, também interfere diretamente na forma como a informação e a desinformação circulam e, portanto, podem impactar diretamente no dano causado por perfis falsos, conteúdos desinformativos e caluniosos. Parece claro que não é apenas o conteúdo publicado por um terceiro (seja o perfil identificado, identificável ou não) que contribuem diretamente para eventuais resultados danosos. Seja a publicação qualificada como orgânica ou paga. É, também, a matemática do provedor que atua para ampliar ou reduzir o alcance do que foi publicado a partir de um modelo de negócio que se propõe lucrativo. São os algoritmos protegidos pela propriedade intelectual, usando os dados fornecidos e colhidos a respeito de tudo e de cada um, que fazem a curadoria da imagem projetada sobre esse novo mundo digital. Esse elemento, portanto, é fundamental para definir o papel e a responsabilidade dos provedores de aplicação. Diante de um dano provocado pela publicação de determinado conteúdo, não se pode qualificar, de antemão, nem o autor como terceiro e muito menos a plataforma como simples intermediária. Ambos podem ser responsáveis e a definição de seus papeis na circulação desse conteúdo é indispensável.    Como identificar o papel desempenhado pela plataforma, se os critérios de definição do alcance da publicação são protegidos pelo modelo de negócio e, portanto, não são transparentes? Não é, de fato, nada fácil. Mas, reconhecer que não há neutralidade no suposto papel de intermediação, mas escolhas deliberadas para definição de alcance é fator necessário. A partir disso, cabe definir o regime aplicável ao nexo de causalidade e os parâmetros de distribuição dos ônus da prova. O que não é novidade em matéria de responsabilidade civil.   Buscando responder à intrincada trama de questões que a realidade impõe ao nexo de causalidade, a doutrina majoritária tem compreendido que o legislador pátrio consagrou, por meio do art. 403, do CC (reproduzindo a redação do artigo 1.060, do Código Civil de 1916), a teoria da causalidade direta e imediata. Seu objetivo seria delimitar, de maneira razoável, o que deve ser imposto àquele considerado responsável pelo dano e o que deve ser suportado pela vítima ou por terceiros3. Avalia-se, portanto, a relevância do que impacta nos acontecimentos mais próximos do prejuízo. No caso dos provedores de aplicação, a única forma de considera-los simples intermediários alheios ao dano é ignorar a matemática e desprezar a causalidade. Não se trata de adotar a responsabilidade pelo risco integral - muito, muito longe disso - ou mesmo a responsabilidade objetiva. Nem mesmo de se esforçar para elastecer o alcance da causalidade. Trata-se de aferir a melhor forma de avaliar o nexo de causal e como questões de justiça impõe a distribuição do ônus da prova. Diante de todo esse cenário extremamente complexo, não se tem a pretensão de propor um modelo fechado que traduza uma solução definitiva. Propõe-se como conclusão uma reflexão sobre o papel dos provedores ou plataformas enquanto responsáveis pela circulação do conteúdo. Diante da restrição à derrubada indiscriminada de conteúdo - protegido pelo regime constitucional de liberdades - e da responsabilidade atribuída a quem, ao mesmo tempo, gerencia a circulação do conteúdo e é detentor de conhecimento exclusivo sobre as regras e dados envolvidos nesse gerenciamento, os incentivos para a transparência tendem a mudar. Soluções tendem a se apresentar de forma mais clara sob luz do sol. *Marilda de Paula Silveira é mestre e doutora em Direto Público pela UFMG. Coordenadora Regional da Transparência Eleitoral. Professora de Direito Administrativo e Eleitoral. Pesquisadora CEDAU e do LiderA - Observatório Eleitoral. Membro do IBRADE e ABRADEP. Advogada. __________ 1 Oliva, Thiago. 2 Qual é a diferença entre alcance orgânico, pago e da publicação? 3 CAPUCHO, Fabio Jun. O nexo de causalidade na responsabilidade do Estado por omissão. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
O Estado social- o estágio contemporâneo do Estado Moderno,marcado profundamente pelas diretrizes de solidariedadee justiça social, provoca intensa alteração na concepção de responsabilidade, não só para torná-la mais objetiva, mas também para a inclusão de sujeitos vulneráveis no âmbito de proteção e, consequentemente, da responsabilização das pessoas físicas e jurídicas (LOBO, 2020, p. 325)  Os Estados Absolutista e Liberal perderam, após o término da segunda Guerra Mundial, aquilo que tinham como característica mais evidente, qual seja, a demasiada proteção do patrimônio e a garantia do mínimo de proteção aos direitos e garantias individuais. Os ideais da Revolução Francesa, serviram para impulsionar o anseio por mais direitos individuais, mas, fundamentalmente, para por os holofotes no bem estar comum e no direito coletivo, que não é só o meu ou só o seu, mas que deve ser ofertado a todos, de modo igualitário e acessível, exigiu-se que o Estado passasse a intervir nas relações privadas,  promover seu equilíbrio e,  que assim o agisse, de ofício, na defesa de pessoas que, de tão vulneráveis, precisaram de uma legislação mais protetiva - criando-se assim os microssistemas que temos hoje, como os Estatutos do Idoso, da Criança e do Adolescente, Estatuto da pessoa com deficiência, entre outros. Como surgimento do Estado Social, todos os ramos do Direito começaram a sofrer a irradiação direta e imediata dos valores constitucionais, onde o mais importante era o patrimônio, afinal de contas as normas são feitas por pessoas e para as pessoas. Centrada na pessoa humana, relevou-se, então, ser a dignidade desta o princípio vetor de todas as normas que viessem a ser elaboradas e com relação às normas, porventura recepcionadas por ela recepcionadas, guardassem em si a garantia contra a violação de direitos constitucionalmente protegidos. Ao passo que o ser humano e em especial sua dignidade assumiram o protagonismo do sistema normativo. De outro lado, a responsabilidade civil, tradicional, que tinha na conduta humana culposa ou dolosa, como pressuposto para a admissão da imputação obrigacional de uma indenização, passasse a ampliar as hipóteses de responsabilidade objetiva. A culpa, que figurou como o elemento central da imputação da responsabilização civil foi perdendo seu lugar. Diante de uma sociedade tecnicocientífica contemporânea, afirma Nelson Rosenvald, a responsabilidade objetiva é a que formaliza os conceitos de liberdade e regulação, sendo a responsabilidade o conceito base e integrador da ética e do direito (2017, p. 26). Para Paulo Lôbo, diante da sociedade de risco que vivemos "(...) a maior parte dos danos são suportados pelas pessoas e não são objeto de tutela jurídica. Por outro lado, muitas atividades naturalmente arriscadas, tendem-se a valer do seguro de danos". Basta apontar como exemplo, no caso do seguro obrigatório dos proprietários de veículos automotores que, para o pagamento do seguro especial de dano, a mera comprovação da existência do dano é suficiente, não importando a causa ou seu autor (2020, p.328). Para José de Aguiar Dias, mais do que apontar o autor do dano, os legisladores e aplicadores do direito optaram por regular como o mesmo será reparado, a solução poderia ser encontrada: a) na ampliação dos casos de responsabilidade objetiva; b) na extensão e de preceitos e dispositivos presentes no Código Civil, no CDC; c) na legislação extravagante, ou  d) na ampliação da liberdade do julgador, quando da identificação onde, quando e em que situações há um risco criado pelo explorador da atividade perigosa. Tão importante quanto defender o indivíduo, é reparar o homem coletiva e socialmente isolado, o princípio da solidariedade finalmente consagrou que, o homem está inserido no mundo cujas fronteias estão desaparecendo, cujos riscos estão em crescimento e a legislação não acompanha o sistema de reparação integral dos danos, dada a velocidade e fluidez das relações interpessoais. Continua José de Aguiar Dias "Não existe mais exceção quanto aos acidentes de trabalho, esfera essa que domina, incontestavelmente o risco, a ponto de se destacar da responsabilidade civil, como assunto que merece tratamento à parte". (2006) Arrisca-se a dizer que o Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil foram as áreas do Direito Civil que tiveram a maior alteração em seus conteúdos, perspectivas e aplicabilidade. Sobre o assunto, afirma Fachin (...) "todos os institutos fundamentais do Direito Civil devem atender à dignidade da pessoa, desde a propriedade funcionalizada, passando pelas relações de família até as obrigacionais, aí incluídos o contrato e a responsabilidade civil". (2008). Nesta mesma senda, continua o Ministro do STF, "emprego plural do vocábulo substantiva a função hermenêutica constante e atualizadora do governo jurídico das relações interprivadas. O contrato, a família e a propriedade do meado do século pretérito não encontram mais abrigo no tempo presente. Por meio da doutrina, da jurisprudência e mesmo da legislação infraconstitucional o sentido e o alcance das normas constitucionais (compostas de regras e princípios) são permanentemente contextualizados. Assim, numa dimensão prospectiva, o doutrinador, o magistrado e o legislador desenvolvem, sempre, uma ação de reconstituir, dentro do sistema jurídico, as expressões do Direito Civil na contemporaneidade, de modo coerente com a contraprova histórica de todo discurso jurídico". (2007) Tal assertiva também é bem resumida for Montaneri, ao afirmar que a importância está em definir o grau e a natureza da vulnerabilidade da vítima do dano, e só não haveria responsabilidade se, a despeito de presente o máximo dever de cuidado (prevenção) o dano teria ocorrido de qualquer maneira (2016, p. 209). Fez-se necessário entender as cláusulas gerais de conduta sob uma visão aberta, pluralista, multifuncional e multifacetada, ou seja, é preciso uma (re) leitura dos dispositivos legais, sob à luz, sob a interpretação das leis, em conformidade com a Constituição, segundo a ótica de seus princípios e valores. Por conseguinte, qualquer dispositivo normativo ou decisão judicial, para ser considerado existente, válida e eficaz, deve ser apta a proteger, garantir e reparar que qualquer dano à uma pessoa (seja ele cometido por outro indivíduo, pela coletividade, pela família ou pelo Estado) seja reparado, ou que se tente chegar o mais próximo possível da reparação, em sua integralidade. Não só não estava em relevo a culpa, mas começou-se a perquirir se todo e qualquer dano injusto, sendo ele lícito ou ilícito, culposo ou não, deveria ser analisado e indenizados sempre que estivesse presente a existência de direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Novas formas de se relacionar e inter-relacionar começaram a representar também, maiores chances, ou melhor dizendo, maiores riscos de danos. Pablo Malheiros, cuja obra foi intitulada de Responsabilidade por danos, prescreve "(...) deve-se pensar o Direito, a partir de sua pluralidade de formas de expressão, com a identificação da questão jurídica comum problema social que deva ser contextualizado em três dimensões constitucionais (formal, material e prospectiva), irradiando efeitos à sociedade. Esse contexto autoriza uma releitura (re) constitucionalizante das categorias jurídicas (...)".    Os tipos de danos surgem, da existência de novos elementos de risco aos bens juridicamente tutelados da pessoa, o direito então constitui a ideia da responsabilidade pautada na teoria do risco. Assim, os sistemas jurídicos começaram a visualizar e, aos poucos, aceitar a convivência entre duas formas de responsabilidade, a responsabilidade subjetiva (já maciçamente expressa no ordenamento jurídico brasileiro) e a responsabilidade objetiva (que surgiu para equilibrar os novos riscos de dano ou de novos tipos de dano, que passaram a surgir). Alguns ordenamentos jurídicos passaram a entender que, por ser uma cláusula aberta, o princípio da proteção à da dignidade da pessoa humana, deve a oportunidade para que o magistrado identificasse, segundo sua análise, o que seria considerada uma atividade de risco.  Sendo assim, o legislador, o doutrinador e os aplicadores do direito passaram a defender a não limitação quanto às espécies de dano objetivo previsto na Constituição da República ou em qualquer outra norma infraconstitucional, quando a atividade desenvolvida pela vítima fosse de risco. Neste sentido pautou-se a discussão trazida, ao STF, por meio do Recurso Extraordinário n. RE 828.040-RG, que, admitido na origem, foi submetido ao crivo do Plenário Virtual, que, por maioria, reconheceu a repercussão geral da controvérsia e trouxe à tona a discussão sobre a possibilidade ou não da aplicabilidade de uma norma infraconstitucional civil, interpretada conforme a Constituição, no tocante à responsabilidade objetiva, às atividades de risco em uma relação trabalhista, para além daquelas atividades já previstas nos art. 189 e 193 da CLT (insalubridade e periculosidade, respectivamente), cuja responsabilidade é, expressamente subjetiva.     O tema do recurso piloto foi tombado na Suprema Corte sob o número 932, assim ementado "Possibilidade de responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho". O caso levado à análise fora o pedido de ressarcimento, com a aplicação da responsabilidade objetiva, ainda que a relação fosse trabalhista, mas que envolva atividade de risco. Tratou-se de um Recurso Extraordinário interposto por vigilante de transporte de valores, que ficou prementemente incapacitado de continuar a exercer sua atividade após uma investida de criminosos no momento que ele e outros vigilantes conduziam o malote de valores (de um supermercado) ao carro forte.  O recorrente alega que, em virtude da consequente troca de tiros de ambos os lados, e o fato da a empresa de transporte de valores não ter fornecido o aparato de proteção e defesa pessoal, para situações como aquela, teria o direito de ser ressarcido, aplicando-se, subsidiariamente o art. 927 do Código Civil. Por esta razão, solicitou que o STF fizesse uma interpretação ampliativa ao art. 7º. XXVIII, da CF, a fim de que o art. 927 do Código Civil, por trazer uma maior proteção de danos à pessoa, ainda que tal previsão não estivesse contida nos artigos 189 e 193 da CLT. A alegação era no sentido de que, independentemente de culpa ou dolo, o empregado deveria ser indenizado pelo empregador, bastando que o mesmo prove que houve o dano e que a atividade desenvolvida é de risco. Afirmou que, pensar diferente e aplicar legislações diferentes às pessoas igualmente passíveis ao risco diante da atividade desenvolvida, implicaria referendar que o Código Civil é mais protetivo que a CLT no que diz respeito ao ressarcimento de danos. Por fim, alegou o autor, que tal responsabilização objetiva seria possível caso houvesse uma ampliação da interpretação dada ao "Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa"; destacando o trecho da parte final do caput do art. 7º. "(...) além de outros que visem à melhoria de sua condição social além de outros que visem à melhoria de sua condição social". A repercussão geral a ser definida passou a ser: o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que traz uma previsão para aplicação geral, pode ou não ser utilizado pela Justiça do Trabalho, reconhecendo-se consequentemente a responsabilidade civil objetiva do empregado em algumas hipóteses? A interpretação deve ser no sentido de que a tutela da pessoa humana precisa ser extensiva e ampla em todas as normas infraconstitucionais? Por isso, ao STF, coube a análise quanto a possibilidade de aplicabilidade ou não do art. 927, caput do Código Civil, tipo aberto de proteção integral à pessoa, poderia ser ou não aplicável aos casos de acidente de trabalho, atribuindo-se ao empregador, nos moldes do Código Civil, a responsabilidade objetiva. Por conseguinte, surgiu no plenário uma outra questão: será que o enunciado na Súmula 37 do STJ merece uma nova interpretação, muito mais abrangente do que aquela que até hoje vem sendo dada pela doutrina e pela jurisprudência? Se o legislador não restringiu o campo de incidência dos artigos acima mencionados a uma ou outra espécie de dano já previsto, poder-se-ia chegar à conclusão de que a pessoa humana é protegida contra qualquer dano que lhe cause um prejuízo, patrimonial ou não patrimonial - ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere potest? A complementação da Súmula 37 precisaria abranger "todo e qualquer outro dano não patrimonial à pessoa", a ser indenizado à custa do ofensor, independentemente ou não de culpa? Haveria razão lógica para eventual restrição de ressarcimento do dano à pessoa? Todo dano deve ser, nos moldes da legislação vigente, indenizável? Essas, em linha geral, foram as questões, levadas à discussão para fins de consagração da Repercussão Geral e que veio a formar a Tese 932 do STF. Os critérios que nos colocam sob a égide de um tratamento legislativo especial são estanques, exaustivos, limitativos? Podemos, a depender do caso concreto, sermos mais que somente pessoas ou cidadãos ou consumidores ou empregados? Ou seja, quando presente a hipossuficiência e/ou a vulnerabilidade, deve-se individuar o caso e adotar um único ramo do Direito Positivo vigente, para solucionar a questão?  Uma observação foi feita pelo Ministro Marco Aurélio: seria possível aplicar subsidiariamente à relação do trabalho o que se contém no artigo 927 do Código Civil? O ministro concluiu seu voto, indicando duas possibilidades de interpretação: a da norma legal ordinária à luz da Constituição Federal; ou a aplicação do efeito ao preceito constitucional em detrimento da norma ordinária. Entendeu que, apenas quando o empregador não cumpre com o dever de cuidado geral, por culpa ou dolo, deveria responder pelo dano, haja vista a atividade desenvolvida já possuir por si só um risco, sabido e assumido pelo empregado. Entendendo ainda que, apenas quando presentes os pressupostos de recorribilidade, o julgador poderia decidir, examinados o caso individualmente, se o empregador não cumpre o dever geral de proteção contra acidentes de trabalho, e que a CLT é a legislação aplicável nos casos de relação empregatícia. E justificou-se argumentando que protecionista é a lei, não o julgador. Uma segunda esteira de raciocínio começou a se pautar no STF. A proteção constitucional direcionou-se no sentido de que a vítima não pode permanecer irressarcida? O rol do art. 7º. Da CF, seria exaustivo, uma vez que trata de uma relação jurídica trabalhista cujos casos de ressarcimento neste tipo de atividade já foi exaustiva e expressamente prevista na CLT?  Poder-se-ia dar uma interpretação conforme à Constituição e serem estabelecidos parâmetros limitativos de até onde poderia chegar a discricionariedade do julgador ao decidir pela existência ou não de uma responsabilização do empregador, ainda que diante de culpa de terceiros, como no caso levado à analise? O ministro Luis Fux destacou que o paradigma estabelecido na repercussão geral era o de saber se é constitucional a imputação de responsabilidade civil objetiva ao empregador, por danos decorrentes de acidente de trabalho, em atividade de risco? Seria justo dizer que quem sofreu acidente de trabalho tenha que provar a culpa ou dolo do empregador, e quando essa mesma pessoa não estivesse na condição de trabalhador, mas como um simples indivíduo, tivesse uma maior proteção? Se duas pessoas em situações diferentes, mas ambos submetidos a uma atividade de risco, um sob a égide da CLT e outro sob a égide do CC ou CDC seria constitucional a aplicação de responsabilidade por danos, com diversos resultados em uma mesma situação? Será que se pode aplicar o Código Civil a casos em que se aplicaria a CLT, podemos ampliar os casos previstos na Constituição da República, no tocante a proteção dos direitos coletivos? Quem deve se encarregar de fazer essa análise? O legislador? O julgador? Nos casos de acidente de trabalho, em atividade de risco só poderia ser ressarcido o empregado que provar a responsabilidade subjetiva do empregador? Apenas aos casos elencados na CLT, de insalubridade e/ou periculosidade são taxativamente regido pelas regras da responsabilidade subjetiva ou deverá ser protegido todo e qualquer dano que vá de encontro aos direitos constitucionalmente protegidos, e não aqueles presentes apenas no art. 7º. XXVIII? O dano pode estar presente no ato ilícito, mas também no abuso de direito - podemos ter um ilícito civil em que não haja a presença nem de culpa nem dano - na comprovação do seu suporte fático? Segundo a ministra Carmem Lúcia, o que estaria sendo discutido é se o parágrafo único do art. 927 comportaria, quanto a esses casos específicos, necessidade de alguma especificação, não de casos ou apenas de critérios para aferição. Estaria se propondo apenas que lei estabeleça critérios que serão aplicados, ainda como conceito indeterminado, mas para que parta de alguma coisa para a análise dos casos. O ministro Barroso, afirmou que o STF estaria criando o ônus da responsabilidade objetiva. E não se poderia dar o que denominou de "cheque em branco" para uma interpretação pela Justiça do Trabalho. Razão pela qual propôs que o texto da tese fosse no sentindo de caracterizar- se como atividades de risco "aquelas definidas como tal por ato normativo válido". O próximo passo para chegar ao texto definitivo do Tema 932 foi o de se determinar se a palavra permanente ou habitualmente seria mais apropriada, os ministros, acataram a sugestão dos Ministros Fachin, Carmem Lúcia e Barroso, chegando a um meio termo, ao esclarecer que a responsabilidade objetiva seria aplicada àquele que foi vítima de dano quando sua atividade "apresentar exposição habitual a risco especial". Em 05/09/2020, ao julgar o Recurso Extraordinário 828.040 Distrito Federal, O STF instituiu o Tema 932 da Repercussão Geral, o Supremo Tribunal, por maioria, entendeu que o art. 7º. XXVIII da CF abre a possibilidade de aplicação de norma mais benéfica que a já existente nas relações trabalhistas, quando a atividade apresentar risco habitual, entender diferente seria dar menor proteção ao empregado, portanto, fixou a seguinte repercussão geral: O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade", nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Relator), vencido o Ministro Marco Aurélio. *Elaine Buarque é mestre e doutora em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista Capes no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior na Università di Camerino - Itália. Pesquisadora CNPq do Grupo de Constitucionalização das Relações privadas. Membro dos Institutos Brasileiros de Direito Civil e de Responsabilidade Civil. Professora. __________ Bibliografia DIAS, José De Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Constitucionalização do Direito Civil. Constitucionalização do Direito Civil. entrevista à Carta Forense, 10/12/2007. Disponível aqui.  FACHIN, Luiz Edson.; PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa humana no direito contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. Revista trimestral de direito civil: RTDC, v. 9, n. 35, p. 101-119, jul./set. 2008. FROTA, Pablo Malheiros da. Responsabilidade por danos: Imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações, v.2, 8ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2020.  MONATERI, Pier Giuseppe. Trattato sulla responsabilità Civile. Cauzazione e giustificazione del danno. Torino: Giappichelli Editore, 2016. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil, 3º. Edição. São Paulo, 2016. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Porque falamos em inclusão da pessoa com deficiência O Direito brasileiro conta com um microssistema jurídico de proteção e promoção das Pessoas com Deficiência - PcD, composto, especialmente, pelos ditames da Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos das PcD da Organização das Nações Unidas - ONU, aprovada em 2007 em Nova Iorque (por isso conhecida como Carta de Nova Iorque), que foi aprovada nos termos do art. 5º, §3º da Constituição da República de 1988 - CR88, e promulgada pelo decreto 6.949 de 2009, logo direito fundamental das PcD; e pela lei 13.146, Lei Brasileira de Inclusão - LBI, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD. Quais são esses direitos? Trata-se de uma gama de direitos de cunho existencial e patrimonial: do direito à igualdade e não discriminação; direitos fundamentais como saúde, acessibilidade e educação; direitos sociais como o trabalho, previdência e moradia; por exemplo. O que justifica todo esse esforço normativo é o histórico tratamento de segregação e exclusão das PcD dos ambientes sociais, familiares e jurídicos. As PcD eram institucionalizadas, eram interditadas de forma absoluta, o que, na prática, chegava a retirar sua própria condição de pessoa de direito1. Tal visão discriminatória justificava-se diante de um modelo médico de deficiência, onde o problema estava na pessoa. Se ela não era passível de cura ou adaptação ao meio social, deveria ser dele excluída, segregada. O microssistema transformou o conceito de deficiência, que passou a ser o social, de avaliação biopsicossocial e multidisciplinar, nos termos do art. 2º do EPD. A deficiência faz parte da diversidade humana. Assim, a diretriz é que a deficiência não está na pessoa e sim na sociedade, que não é capaz de quebrar as barreiras que impedem a sua plena inclusão. Nesse passo, EPD criminalizou a discriminação às PcD junto ao seu art. 88, que é representada por qualquer forma de distinção, de restrição ou de exclusão, por ação ou omissão (art. 4º, §1º). Por isso falamos em inclusão. Qualquer conduta contrária é discriminatória. O grande desafio é implementar a inclusão, afastando os pré-conceitos e as preconcepções que são repetidos socialmente, voltados à segregação e à exclusão. O que é a educação inclusiva   A educação é um Direito Humano, direito fundamental social da PcD e um dos mecanismos para o livre desenvolvimento da sua personalidade. Por isso, a Carta de Nova Iorque projeta a garantia da educação inclusiva, indicando que os Estados partes devem assegurá-la em todos os níveis (art. 24). O que é repetido no art. 27 do EPD. A execução da educação inclusiva deve se dar, em regra e preferencialmente, em rede regular de ensino conforme previsto nos arts. 208, III da CR88; 54, III do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - Lei 8.069/90; e 58 e 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - lei 9.394/96; garantindo-se as adaptações necessárias, quebrando as barreiras, de forma que as PcD possam exercer seu direito social à educação em igualdade de condições com as demais pessoas. Por essa razão, recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP obrigou um município daquele Estado a fornecer professor de apoio dentro da sala de aula em ensino regular a criança com Síndrome de Di George2. A educação especial segrega as PcD em classes ou instituições, de forma que elas convivam apenas com outras PcD. Não é, portanto, uma prática inclusiva. Não se olvida que, na análise da situação concreta, pode ser necessária a atenção especial; contudo, como exceção; tal como decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais - TJ/MG na Apelação Cível 1.0024.14.263952-5/0013.  Além de superar as preconcepções, a educação inclusiva exige que a sociedade afaste ideários de capacitismo e padronização de comportamentos, o que inclui os projetos pedagógicos. Afinal, o problema, de fato, está na sociedade que não é capaz de reconhecer a diversidade humana. No contexto democrático e pluralista da CR88, a igualdade compreende as facetas da isonomia, da igualdade e da própria diversidade4. Para concretizar a educação inclusiva, o EPD incube ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o sistema educacional inclusivo, composto de um rol de atribuições nos termos do seu art. 28, incluindo o aprimoramento do sistema educacional, o projeto pedagógico que contemple serviços e adaptações razoáveis, o sistema de Libras, práticas pedagógicas inclusivas na formação de professores/as, oferta de profissionais de apoio escolar e políticas públicas. O §1º do mesmo art. 28 estende as obrigações às instituições de ensino privadas, vedando, a cobrança de valores adicionais. Por essa razão, antes mesmo do EPD entrar em vigor, esse dispositivo foi questionado junto à Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 5357 no Supremo Tribunal Federal - STF, pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino - CONFENEN. O relator da ADI, Ministro Edson Fachin, negou a liminar que pedia a suspensão dos efeitos da legislação em novembro de 2015. No dia 09 de junho de 2016, o pedido foi julgado improcedente, por maioria de votos, seguindo-se a posição do relator, eis que "o estatuto reflete o compromisso ético de acolhimento e pluralidade democrática"5. Pareceu, então, certa a necessidade de esforço das instituições públicas e privadas para implementação fática da educação inclusiva. Contudo, não foi o que ocorreu em 30 de setembro de 2020, quando foi editado o decreto 10.5026, instituindo a Política Nacional de Educação Especial. Sim, educação especial, com previsão expressa de escolas e classes especializadas, ou seja, exclusivas, excludentes, não inclusivas; contrariando os anseios da Carta de Nova Iorque e do EPD, ferindo, os direitos fundamentais das PcD e regredindo nos avanços pretendidos pelo microssistema jurídico. A reação foi imediata e, além das inúmeras notas de repúdio das associações e pessoas que lutam pelos direitos e pela inclusão das PcD, houve a propositura da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n.º 751 no STF buscando a suspensão dos efeitos do Decreto, por violar as normas internacionais, a própria Constituição e o EPD.    Ademais, foram apresentados dois Projeto de Decreto Legislativo  - PDL - o de n.º 427 e o de n.º 429, com o objetivo de sustar o Decreto nos termos do art. 49, V da CR88, fundamentados, suscintamente, na compreensão de que a prática segregacionista na educação especial é mais que ultrapassada, é inconstitucional. É possível que a falta de inclusão gere responsabilidade civil? Não é despiciendo lembrar que a responsabilidade exigida em geral é a positiva, ou seja, que as obrigações sejam cumpridas. No caso da educação inclusiva, exige-se das instituições de ensino públicas e privadas a admissão das PcD e o fornecimento de todas as adaptações necessárias para quebrar as barreiras que o projeto pedagógico ordinário impõe à diversidade. Logo, exige-se que os métodos e materiais sejam acessíveis; que seja disponibilizado/a professor/a auxiliar ou de apoio, transporte e alimentação acessíveis. Entretanto, no caso de descumprimento dessas obrigações, incide a responsabilidade civil. Sendo o direito à inclusão um mandamento normativo de cunho constitucional, seu descumprimento configura o ilícito civil.  A postura das instituições públicas e privadas em não garantir a plena inclusão das PcD fere seus Direitos Humanos e fundamentais. Logo, sua violação representa dano de cunho extrapatrimonial, na tipologia existencial7. Não se olvida do nexo de causalidade entre a conduta, no caso a omissão ou a comissão do agente público ou privado, que é causa direta e imediata do dano. No caso das instituições de ensino privadas incide a responsabilidade civil extracontratual dos arts. 186 cumulado com o 927 do Código Civil; e a responsabilidade contratual dos arts. 389 e seguintes; e 395 e seguintes do Código Civil; e, ainda, a responsabilidade objetiva do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor - CDC - lei 10.406/2002. Ou seja, a culpa lato sensu (negligência, imprudência ou imperícia; bem como o dolo), pela conduta comissiva ou omissiva que não permite a plena inclusão da PcD, não precisa ser provada. Doutro lado, quando a instituição de ensino for pública, a responsabilidade está prevista no art. 37, §6º da CR88 e também é objetiva. Quanto à omissão, parece que, quando o Estado não propicia a educação inclusiva e os meios e métodos para sua efetiva implementação, é possível a defesa de uma responsabilidade civil objetiva, a despeito de posições no sentido que, por omissões, o Estado responderia subjetivamente. Afinal, o dever de agir do Estado e sua possibilidade de agir, na medida em que se comprometeu, inclusive internacionalmente, a implementar as políticas públicas necessárias para a garantia da plena inclusão das PcD, é pressuposto. Assim, presentes os elementos constitutivos da responsabilidade civil, é possível que a falta de inclusão a configure. Significa, portanto, que exigir a implementação da inclusão plena da PcD, além de combater a discriminação do ponto de vista penal, é postura que se exige das instituições de ensino públicas e privadas sob pena de responsabilização civil pelos danos existenciais e eventualmente patrimoniais concretizados. É impositivo que as PcD frequentem, como regra, o ensino regular, que estejam inseridas na sociedade que precisa quebrar suas preconcepções e compreender a diversidade das pessoas. *Iara Antunes de Souza é doutora e mestre em Direito Privado. Professora da graduação em Direito e do Mestrado "Novos Direitos, Novos Sujeitos" da UFOP. Pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito - CEBID. Associada Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Membro da comissão de Responsabilidade Civil da OAB/MG. __________ 1 LISBOA, Natália de Souza; SOUZA, Iara Antunes de. AUTONOMIA PRIVADA E COLONIALIDADE DE GÊNERO. In: XXVIII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI BELÉM - PA, 2019, Belém - PA. Gênero, sexualidades e direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/CESUPA. Florianópolis - SC: Conpedi, 2019. v. 1. p. 7-22. Disponível aqui. 2 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n.º 1006048-28.2019.8.26.0604. Relator: Dimas Rubens Fonseca. Órgão julgador: Câmara Especial. Data do julgamento: 16/10/2020. Disponível aqui. 3 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0024.14.263952-5/001. Relator Des. Raimundo Messias Júnior. Órgão Julgador 2ª CÂMARA CÍVEL. Data de Julgamento: 07/8/2018. 4 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Igualdade: 3 dimensões, 3 desafios. In.: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre (Coord.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p.92. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Escolas particulares devem cumprir obrigações do Estatuto da Pessoa com Deficiência, decide STF. Notícias STF. Quinta-feira, 09 de junho de 2016c. Disponível aqui. 6 BRASIL. DECRETO Nº 10.502, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Disponível aqui. 7 ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Essas breves linhas buscam analisar o acórdão do REsp 1.820.477-DF, julgado por unanimidade pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ em 19/05/2020 (DJe 27/5/2020), divulgado no Informativo de nº 672, com o seguinte destaque: "São penhoráveis os valores oriundos de empréstimo consignado, salvo se o mutuário comprovar que os recursos são necessários à sua manutenção e de sua família". A análise envolve distintos elementos: a previsão normativa do art. 833, inc. IV do CPC e sua interpretação restritiva em razão do princípio da responsabilidade patrimonial (artigos 789 e 831 do CPC), o conceito de contrato de empréstimo consignado e a análise funcional1 dos contratos, necessária na contemporaneidade para que se evite soluções idênticas a situações contratuais distintas. Nesse terceiro elemento, importa-nos a dicotomia entre contratos de lucro e contratos existenciais2, que ao nosso ver foi utilizada no voto Relator, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, embora de maneira implícita, como vem ocorrendo em outros julgados do mesmo STJ. Conforme expresso na ementa, a controvérsia principal cingiu-se em se definir o alcance do disposto no inc. IV do art. 833 do CPC, para se delimitar se a impenhorabilidade que recai sobre os salários, proventos e pensões também alcança os valores oriundos de empréstimo consignado. O STJ fixou o entendimento de que a quantia de empréstimo consignado é sim penhorável, seja pela interpretação literal do mencionado dispositivo, que não prevê a proteção a esses valores, seja pela interpretação restritiva, uma vez que o art. 833 do CPC constitui-se como exceção ao princípio da responsabilidade patrimonial e, portanto, não admite interpretação extensiva. No entanto, o STJ fixou a exceção segundo a qual esses valores obtidos por meio de empréstimo consignado serão impenhoráveis quando o devedor demonstrar que são destinados à manutenção de sua subsistência ou de sua família. Essa não é a primeira vez, contudo, que a Corte da Cidadania interpreta funcionalmente o inc. IV do art. 833 do CPC, à luz da dignidade e da necessidade de se garantir subsistência digna. A grande diferença recai sobre o beneficiário dessa nova interpretação: nas duas primeiras, como veremos, o beneficiário fora o credor e, nessa, será o devedor3. Conforme mencionado no próprio voto do Relator, o STJ, tratando ainda do art. 649, inc. IV do CPC/1973, a exemplo do AgInt no REsp 1.579.345/RJ (DJe 30/6/2017), definiu que a impenhorabilidade do salário, soldo ou remuneração não se opõe às dívidas de natureza alimentar, pois, fosse assim, essa impenhorabilidade estaria a proteger somente a subsistência digna do devedor dos alimentos, ao passo que o credor alimentício restaria desprotegido, em completa inversão de valores. Operou-se, portanto, uma interpretação restritiva da impenhorabilidade do salário a depender da origem da dívida, se alimentar ou não. A segunda exceção sedimentada pelo STJ, inclusive em acórdão da sua Corte Especial (EREsp 1.582.475/MG, DJe 16/10/2018), que também beneficia o credor, diz respeito à relativização da impenhorabilidade das verbas salariais em dívidas não alimentícias quando, no caso concreto, a penhora de parcela do salário e sua destinação ao credor não comprometer a subsistência digna do devedor e de sua família, como nas hipóteses de salários muito elevados e sua evidente não utilização integral para o fim de subsistência digna. Operou-se, portanto, interpretação restritiva da impenhorabilidade do salário quando o instituto se mostrar desproporcional em face do direito creditício (direito de propriedade) do credor. Notemos que, nas duas primeiras interpretações, o STJ cria exceções que beneficiam o credor, pois relativizam a impenhorabilidade do salário para efetivar o cumprimento da dívida, alimentar ou não. Além disso, as duas exceções fundamentam-se no valor dignidade humana, preocupando-se com a subsistência digna: ora para garanti-la ao credor alimentar, ora para resguardá-la ao devedor não alimentar, numa ponderação com o direito patrimonial do credor. No julgado em análise, o STJ inovou ao estabelecer uma interpretação que favorece o devedor. Embora tenha afirmado que os valores obtidos em contrato de empréstimo consignado sejam em regra penhoráveis, por não constarem no rol taxativo do art. 833 do CPC, ressaltou que poderão receber a proteção da impenhorabilidade a depender da finalidade (existencial ou não) com que o referido contrato fora celebrado pelo mutuário. Conforme conceito fornecido pelo Banco Central do Brasil, "O empréstimo consignado é uma modalidade de crédito em que o desconto da prestação é feito diretamente na folha de pagamento ou de benefício previdenciário do contratante. [...] Embora seja de uso livre e não ligado a um bem específico que garanta a operação, a sistemática de ter as prestações descontadas do salário aumenta a credibilidade da operação e reduz seu custo [...] O crédito consignado é a modalidade de empréstimo livre para pessoa física que, no Brasil, tem o menor custo"4. Da leitura desse conceito, importante duas constatações: (a) o empréstimo é livre, o que significa que o mutuário poderá utilizar os valores obtidos conforme melhor lhe aprouver (finalidade empresarial, existencial, voluptuária, etc.), o que o distingue do contrato de financiamento, caracterizado pela destinação predeterminada e obrigatória dos valores na aquisição de um bem ou serviço específico5 e; (b) o desconto da prestação é feito diretamente no salário ou benefício previdenciário do tomador, isto é, a obrigação contratual do devedor é adimplida pelo desconto automático no seu salário ou aposentadoria, o que reduz o risco do mutuante (que se materializará, basicamente, apenas nas hipóteses de desemprego do mutuário ou se, por algum motivo, deixar de receber o benefício previdenciário, como a anulação de aposentadoria). Fato é que esse tipo contratual, muito comum no cotidiano, influi diretamente no salário ou benefício previdenciário do mutuário, podendo prejudicar seu poder aquisitivo ou até mesmo sua subsistência, o que o reveste de especial importância socioeconômica6. Como observado no voto do Relator, já há alguns julgados entendendo que o contrato de empréstimo consignado teria natureza jurídica de adiantamento de parte do salário, provento ou pensão, razão pela qual o valor adiantado deveria possuir a mesma natureza alimentar7. O STJ, contudo - e ao nosso ver, corretamente - rechaçou essa equiparação conceitual, haja vista que são valores de origens jurídicas distintas: enquanto o salário tem origem no contrato de trabalho ou na prestação de serviços, o empréstimo tem origem em contrato de mútuo celebrado entre o tomador (mutuário) e a instituição financeira (mutuante). Por outro lado, o STJ, a partir de um critério funcional, permitiu a equiparação quanto à impenhorabilidade nos casos em que os valores obtidos no empréstimo consignado se destinarem à própria subsistência digna do mutuário ou de sua família, que é a finalidade autêntica do salário ou benefício previdenciário. Nesses casos, em que há a mesma finalidade, em que os valores exercem a mesma função (existência digna), caberia a mesma proteção pela impenhorabilidade. Desse modo, na análise funcional do instituto, os valores obtidos pelo empréstimo consignado, de destinação livre, poderão ser utilizados para a satisfação de qualquer tipo de interesse da pessoa física tomadora: (a) empresarial, ao se cogitar numa aquisição de insumos por um empresário individual, hipótese em que o contrato se qualificará como contrato de lucro; (b) voluptuária, como no caso da aquisição de bens de consumo dispensáveis; (c) existencial, quando os valores forem destinados unicamente na subsistência digna do mutuário e/ou de sua família, hipótese em que os valores cumprem a função do próprio salário ou benefício previdenciário enquanto piso para um mínimo existencial e; (d) outras destinações possíveis, como o mero pagamento de dívidas pretéritas. O que se percebe no voto do Relator e da ementa do acórdão é a utilização da existencialidade ou não dos valores, aferida a partir da constatação da sua destinação, como critério definidor acerca da (im)impenhorabilidade. Vale dizer, para o STJ, a destinação para a subsistência digna (destinação existencial) é fator legitimador da tutela jurídica da impenhorabilidade. Ao assim proceder, ainda que implicitamente, mas levado pela mesma racionalidade, o STJ opera a distinção funcional entre contratos existenciais e contratos de lucro, na dicotomia proposta por Antonio Junqueira de Azevedo8 e trabalhada por nós em obra específica9. Segundo o professor Junqueira de Azevedo, trata-se da grande dicotomia contratual do século XXI, que constata que o mesmo instrumento - o contrato - pode servir para objetivos opostos - do sustento familiar às transações empresariais -, perpassando, por conseguinte, tanto por valores existenciais quanto patrimoniais, de sorte que o regime jurídico aplicável a cada um desses grandes tipos contratuais deverá ser pensado e aplicado em conformidade com a sua função: a busca do lucro ou a busca da (sobre)vivência digna. Trata-se da já proclamada distinção entre situações subjetivas patrimoniais e existenciais10, que se opera nos casos concretos a partir de uma análise funcional dos institutos típicos de direito privado, necessária para que o Direito forneça respostas adequadas para cada tipo de situação. Nas situações jurídicas existenciais, "A relação patrimonial acaba por ser uma ferramenta de desenvolvimento de um papel, direto ou indireto, de atuação do valor constitucional da dignidade humana"11. O contrato, instituto tipicamente privado e de cunho patrimonial, passa a ser interpretado e aplicado de maneira "despatrimonializada", funcionalizado em prol da pessoa humana e seus interesses existenciais. Na dicotomia proposta, observamos que nos contratos existenciais o elemento objetivo da obrigação - a prestação - possui alto conteúdo ético e moral, para além da patrimonialidade, o que de certa forma "humaniza" ou "personaliza" a prestação, visto ser seu objeto, por exemplo, o "[...] atendimento à saúde, à manutenção da vida, ao salvamento em situações periclitantes, acesso à moradia, à propriedade imobiliária como bem de família, à educação, ao trabalho, à energia elétrica, ao transporte, aos meios de comunicação e provedores virtuais [...]"12. Nos contratos existenciais, ao menos uma das partes contratantes não objetiva o lucro, de sorte que, para essa parte, o objeto prestacional se caracteriza não por sua patrimonialidade, mas pelo seu decorrente interesse existencial, posto que relacionado à existência digna e plenitude de sua personalidade, o que qualifica uma situação jurídica subjetiva existencial. O contrato de lucro, por sua vez, conforme já pontuamos13, é aquele em que ambos os contratantes, empresários ou não, têm no contrato um instrumento de circulação e produção de riquezas, objetivando o lucro, o que qualifica uma situação jurídica subjetiva patrimonial. São exemplos o contrato de trespasse, o factoring, o arrendamento mercantil, o contrato de franquia, entre outros. É na centralidade do caso, conforme destacou Antonio Junqueira de Azevedo14, que realmente poderemos identificar os contratos existenciais e os contratos de lucro15, posto que, em razão da análise da pessoa real, in concreto, locus privilegiado para o exercício do direito à diferença, poderemos reconhecer, na intuição do justo, necessidades vitais/existenciais distintas, específicas para cada um, além, é claro, das necessidades universalmente existenciais, a exemplo da água, do alimento, da saúde, etc. No julgado em análise, o STJ reconheceu que não havia elementos nos autos suficientes para se determinar se os valores obtidos com o contrato de empréstimo consignado foram ou não destinados à subsistência digna do mutuário, razão pela qual se determinou a remessa ao Tribunal de origem para essa averiguação. A solução foi adequada, visto que conferiu importância ao caso concreto para se qualificar o contrato, operação necessária para a distinção entre contratos de lucro e existenciais. Pelo exposto, acreditamos que a decisão merece ser louvada, visto que o STJ, na esteira do funcionalismo jurídico, distinguindo situações jurídicas existenciais e patrimoniais, ofereceu soluções distintas para problemas distintos envolvendo o mesmo contrato de empréstimo consignado, privilegiando, mais uma vez, a subsistência digna - agora do devedor -, ao reconhecer que os valores tomados podem ser - e muitas vezes o são! - destinados à manutenção própria e/ou da família, o que os faz merecedor da impenhorabilidade. A responsabilidade civil patrimonial, portanto, que havia sido privilegiada nos dois primeiros entendimentos mencionadas, passa a ser mitigada no caso em análise, em prol dos interesses existenciais eventualmente presentes no contrato de empréstimo consignado. Por fim, destacamos que o STJ, ao considerar a finalidade existencial ou não do contrato de empréstimo consignado para decidir acerca da impenhorabilidade dos valores, utilizou-se da mesma racionalidade que fundamenta a dicotomia entre contratos de lucro e contratos existenciais, fato que vem se repetindo em julgados da Corte nos últimos anos, embora a referida dicotomia não seja expressamente mencionada16. *Rafael Ferreira Bizelli é mestre em Direito pela UFU. Membro do IBERC. Autor do livro "Contrato existencial: evolução dos modelos contratuais", que recebeu do BRASILCON o Prêmio "Ada Pellegrini Grinover" de Melhor Obra Literária Individual de Direito do Consumidor, publicada no Brasil, no biênio 2016-2018, no XIV Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor. Advogado.   __________ 1 Por todos: BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad. de Daniela Beccaccia Versiani. Rev. técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine. Barueri: Manole, 2007. 2 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 185; BIZELLI, Rafael Ferreira. Contrato existencial: evolução dos modelos contratuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. 3 Nas três interpretações, o STJ, ainda que não expressamente (ou até mesmo não intencionalmente), parece seguir o princípio do "favor debilis", que Lorenzetti explica como o substituto do princípio "favor debitoris". Evoluiu-se de uma compreensão de que o devedor seria sempre fraco e o credor sempre forte para uma concepção de que ora um ora outro poderão ser a parte fraca da relação obrigacional, que deve ser compreendida em toda sua complexidade. Deve-se verificar o contrato em concreto para se identificar a parte débil. Segundo o autor, esse fenômeno "surgiu com os operários-credores-vulneráveis e seus empregadores-devedores-fortes em relação ao salário". Cf. LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Bruno Miragem. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 253. 4 Disponível aqui. Acesso em 11/9/2020. 5 Disponível aqui. Acesso em 11/9/2020. 6 Grande exemplo é o entendimento sedimentado pelo STJ segundo o qual "Ante a natureza alimentar do salário e do princípio da razoabilidade, os empréstimos com desconto em folha de pagamento (consignação facultativa/voluntária) devem limitar-se a 30% (trinta por cento) dos vencimentos do trabalhador" (REsp 1.186.965/RS, DJe 3/2/2011). 7 Agravo de Instrumento nº 70.081.176.349, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vicente Barrôco de Vasconhsellos, julgado em 24/4/2019. 8 "Essa dicotomia não visa eliminar outras já existentes no direito contratual, como a divisão milenar entre contratos onerosos e gratuitos, ou aquela própria do direito contratual do século XX, entre contratos de adesão e contratos paritários. A nova dicotomia, própria para o século XXI, procura conciliar o funcionamento estável da economia e um desenvolvimento econômico cego ao valor da pessoa humana. Os três níveis de contrato, o econômico, o jurídico e o social devem ser conciliados". Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 185. 9 BIZELLI, Rafael Ferreira. Contrato existencial: evolução dos modelos contratuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. Outros autores também já trabalharam esses conceitos. Cf. MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keira Pacheco. Contratos existenciais e intangibilidade da pessoa humana na órbita privada - Homenagem ao pensamento vivo e imortal de Antonio Junqueira de Azevedo. Revista de Direito do Consumidor. vol. 79/2011, p. 265-308, jul.-set./2011. Disponível aqui. Acesso em 24/5/2016; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista Trimestral de Direito Civil. vol. 45, jan.-mar./2011. Rio de Janeiro: Padma, 2011; MORSELLO, Marco Fábio. Contratos existenciais e de lucro. Análise sob a ótica dos princípios contratuais contemporâneos. In. LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012; BASAN, Arthur Pinheiro. Contratos existenciais: hermenêutica à luz dos direitos fundamentais. Uberlândia: LAECC, 2020. 10 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 677-678; TEPEDINO, Gustavo. O Direito Civil-Constitucional e suas Perspectivas Atuais. In. TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 364-365. 11 "A despatrimonialização guarda relação com a mudança que vai ocorrendo no sistema entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade voltada a si mesma, primeiramente do 'produtismo' e, mais atualmente, do consumismo). Nota-se, destarte, uma prevalência do sujeito face ao patrimônio". Cf. NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno - em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001, 250. 12 MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keira Pacheco. Contratos existenciais e intangibilidade da pessoa humana na órbita privada - Homenagem ao pensamento vivo e imortal de Antonio Junqueira de Azevedo. Revista de Direito do Consumidor. vol. 79/2011, p. 265-308, jul.-set./2011. Disponível aqui. Acesso em 24/5/2016, p. 8. 13 BIZELLI, Rafael Ferreira. Contrato existencial: evolução dos modelos contratuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. 14 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno. Revista USP. São Paulo, n. 42, p. 96-101, jun.-ago./1999. Disponível aqui. Data de acesso: 17/5/2016. 15 "O nó a ser desvencilhado para que se possa avançar na promoção da justiça e dos valores constitucionais deslocou-se, assim, para o momento da aplicação do Direito, para o que se poderia apelidar, se tal fosse possível, de um 'positivismo judicial'. [...] O deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação, para que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades". Cf. MORAES, Maria Celina Bodin. Do juiz boca-da-lei à lei segundo a boca-do-juiz: notas sobre a aplicação-interpretação do direito no início do século XXI. Revista de Direito Privado. vol. 56, p. 11-30, out.-dez./2013, p. 12. Disponível aqui. Data de acesso: 24/5/2016. 16 Encontramos a expressão "contrato de lucro" em apenas um julgado do STJ (AREsp 359.478, de 2013), assim como a expressão "contratos existenciais", encontrada uma única vez (REsp 1.450.134/SP, de 2016). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil  
Ao buscar inspiração na Edda nórdica, Mark Forsyth relata que Odin "não bebia nada além de vinho". O escritor inglês, destaca, aliás, que Odin - entre nós, brasileiros, mais conhecido por ser o pai do Deus do Trovão - alimentava-se, exclusivamente, da bebida produzida a partir da fermentação dos frutos da vitis vinífera, fato que pode soar deveras estranho aos leitores e, obviamente, aos enólogos mais atentos, pois, não havia produção de vinhos que fosse digna de nota ao norte do paralelo 60°1 ao tempo em que os Vikings acordaram que o caminho para Asgard pressupunha morrer com bravura em Midgard, ainda que, em nosso inculto sentir, muito mais Vikings devem ter morrido por conta de problemas ligados à má ou à falta de alimentação que em batalha. Mas não se preocupem. Ao menos, não se preocupem com isso. A aparente aporia contida no parágrafo anterior desfaz-se como a névoa ao ser tocada pelos primeiros raios que pulsam do sol em uma manhã primaveril, pois, é exatamente a dificuldade na obtenção da bebida que a torna nobre e, consequentemente, a única bebida digna de ser a fonte de energia do deus mais formidável dentre todos os que habitam o panteão nórdico2. À época, aliás, e permitam-me leitores e leitoras que chegaram até aqui manter-me preso à elucubrações e notas históricas e hedonísticas que nada têm de supérfluas, o vinho consumido na cena nórdica provinha da França, dos fragmentos do Império Romano e, eventualmente, da Alemanha, país que, permitam-me divergir, tem lugares fantásticos como Berlim, Dresden e Lübeck, viu nascer pessoas incríveis que vão de Karl Marx à Karl Rummenigge ou de Marcuse à Nietzsche, mas que, apesar destas e de incontáveis outras maravilhas, segue sendo incapaz de produzir vinhos que me seduzam. Neste instante, entorpecido pelo turbilhão de palavras, expressões, frases e orações que pululam dentro do meu ser, signos e significados que lutam freneticamente buscando experimentar, ainda que provisoriamente, destino diferente daquele que fora reservado à maioria dos fragmentos de ideias que neste instante jazem no vazio do esquecimento tendo alimentado o vácuo que pantagruelicamente digere palavras que não foram pronunciadas, consome frases que não foram escritas, desvio-me da rota que conduz ao interior do labirinto dos dilemas galináceos e fujo, portanto, da eterna discussão que envolve saber quem teria vindo primeiro: os ovos ou as penosas. Advertindo a todos que tenham contato com este sóbrio opúsculo que não tentem viver como Odin, mesmo quando sabemos sobre os inúmeros benefícios afetos ao consumo diário de algumas taças da bebida cujos tons violetas, particularmente, me encantam, certas vezes, me fazem cantar e, excepcionalmente, servem como portais que me conduzem para outras dimensões e provocam muita dor nas viagens de volta, busco, em verdade, tentando dar algum sentido ao parágrafo anterior, dividir com vocês o fato de que Odin, no vernáculo, pode ser literalmente traduzido como O frenético3. Enfim, posso agora - não sem antes pedir que me perdoem o inaceitável salto temporal, um movimento literário feito, tão somente, por conta da limitação de caracteres que nos foi sugerida de forma deveras gentil, é fato, embora, igualmente, não negociável -, como escrevia, posso agora mostrar como o mito Viking se liga ao cenário contemporâneo em um Brasil que tanto tem sofrido com o mal uso de tão nobre signo. Posso agora apontar, portanto, como o referido mito tem energia suficiente para impulsionar o movimento de dedos lançados de forma feroz sobre indefeso teclado, de modo a dar vida a este quasímodo texto, em boa medida, é verdade, por conta do frenético frenesi antecipado quando imaginei-me a principal personagem em uma cena retratando o contato involuntário de minha mucosa bucal com bebidas - e, por que não, com alimentos sólidos ou pastosos -, que ora trazem consigo, ora abandonam no fundo de seus invólucros, surpresas deveras desagradáveis que vão de pelos a patas de insetos, de corpos deformados a cabeças carcomidas de pequenos répteis, aves ou roedores, passando, obviamente, por pedras, pregos enferrujados e preservativos, tal qual relata farta literatura realista escrita sobre um tema que poderia interessar a autores que vão de Sade à Edgar Alan Poe. Devo confessar, derradeiramente, que o retrocitado choque de ideias me permitiu, também, reviver reflexões sobre um tema que há aproximadamente um lustro fez parte de alfarrábio virtualmente armazenado sob o título Jurisprudência em Teses, no Superior Tribunal de Justiça4, tema que, curiosamente, de lá fora sacado, extirpado sem deixar quaisquer vestígios, quiçá, com lastro no exercício do pseudodireito de apagar escolhas institucionais ruins e que fora posto em movimento sem qualquer respeito ao contraditório que deveria ser garantido àqueles que tentam teorizar o Direito a partir de seus fragmentos, de sua memória histórica. Também por isso, o ponto que quero retomar aqui pode ser sintetizado nos problemas afetos à oferta e à comercialização de produtos impróprios ao consumo humano, ponto esse que, talvez, seja melhor percebido ao revisitarmos a cena que nos parece ser a mais dantesca dentre as que foram roteirizadas em investigação outrora realizada acerca do tema: Inicialmente, sugere-se ao leitor que imagine, que arquitete mentalmente, a existência de inseto da ordem Blattaria ou Blattodea habitando, vivo (ou não), o interior da embalagem de um gênero alimentício que chegou as suas mãos. Agora, busque conceber que o intruso não detectado em tempo invadiu outro invólucro e pôs-se em contato com sua língua, com sua mucosa bucal, moído, fragmentado, pela força de seus poderosos molares. Esse segundo movimento - que consiste na agitação do inseto provocada pelo frisson de mãos humanas movidas por impulsos pantagruélicos, pela força atada à mais conhecida Lei de Newton ou por qualquer outra causa, pouco importa aqui - parece não ser imperioso à sustentação teórica da possibilidade de imputação do dever de reparar na hipótese em pauta5. A ideia é preencher a tela que aqui busco colorir não com aqueles conhecidos tons usualmente produzidos nos fornos da teoria do vício do produto ou do serviço, mas com cores e texturas buscadas no contato da normatividade constitucional que impõe a escorreita tutela da pessoa humana - a partir de comandos que exigem condutas informadas pela precaução e pela prevenção - com a energia aporética que pulsa do catálogo de direitos básicos do consumidor elencados no artigo 6° da melhor dentre todas as leis produzidas no Brasil e dentre os quais merecem ênfase: (a) "a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos", (b) "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade [...] bem como sobre os riscos que apresentem", (c) "a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas" e, enfim, (d) "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais" e extrapatrimoniais. No âmbito da segurança alimentar, tem-se aí um catálogo de direitos que, ao informar condutas humanas utopicamente esperadas em concreto, hão de potencializar, ao menos, no mais das vezes, a proteção individual e coletiva de consumidores indelevelmente expostos a riscos e perigos6 pelo simples fato de vagarem sobre os tabuleiros da Contemporaneidade, colorindo e vivificando, nesse contexto, as dimensões preventiva e precautória que informam o direito de danos em construção no Brasil, afinal, em nosso sentir, a oferta de um gênero alimentar contendo corpo estranho parece ecoar com conduta não tutelada pelo Direito pátrio e logo, ao menos em potência, passível de disparar o dever de reparar. Isso ocorre, aliás, como antecipado, porque potencialmente expõe a vida e a saúde dos consumidores a riscos não informados - o risco de consumirem alimentos contaminados - e, evidentemente, porque produtos com tais características destoam das balizas normativamente fixadas pelos órgãos responsáveis pela segurança alimentar no Brasil. Ocorre que, tal qual grafado outrora, ainda parece haver "relevante ponto [hermenêutico] em aberto" identificado na usual não compreensão, enquanto inconteste ato de consumo, da compra de alimentos ofertados por fornecedores antes de sua ingestão, à exemplo da aquisição de refrigerante7 ou de bom vinho que não tenha sido degustado. Tais dúvidas parecem ter sido gestadas em um cenário que só consegue pensar em soluções dicotômicas, logo, que segue a operar na lógica do tudo ou nada e que acaba por desprezar a força normativa da linguagem e, nesse contexto, o fato de que in dubio pro consumidor pode emergir na contemporaneidade como uma ferramenta hermenêutica deveras útil na lapidação das respostas mais adequadas à Constituição. Tais respostas, entretanto, não se pode olvidar, sempre prestes a emergirem entremeio ao absurdo que marca a vida humana, talvez, jamais abandonem o interior das garrafas que metaforicamente as contêm e vagam pelos oceanos da coexistência, tal qual profetiza a poetisa portuguesa Florbela Espanca ao escrever que: Meu coração da cor dos rubros vinhosRasga a mortalha do meu peito brandoE vai fugindo, e tonto vai andandoA perder-se nas brumas dos caminhos. Meu coração o místico profeta,O paladino audaz da desventura,Que sonha ser um santo e um poeta,Vai procurar o Paço da Ventura... Meu coração não chega lá decerto...Não conhece o caminho nem o trilho,Nem há memória desse sítio incerto... Eu tecerei uns sonhos irreais...Como essa mãe que viu partir o filho,Como esse filho que não voltou mais! *Marcos Catalan é doutor summa cum laude em Direito pela USP. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Unilasalle. Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho da Universidade da República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidade de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidade de Córdoba na Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista. __________ 1 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118.  2 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118.  3 FORSYTH, Mark. Uma breve história da bebedeira: como, onde e por que a humanidade tomou umas da Idade da Pedra até hoje. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia da Letras, 2018. p. 109-118.  4 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018.  5 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018.  6 COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo e responsabilità civile. Camerino: Edizioni Scientifiche Italiane, 2014. 7 ARONNE, Ricardo; CATALAN, Marcos. Quando se imagina que antílopes possam devorar leões: oito ligeiras notas acerca de uma tese passageira. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, [s.p.], 2018. __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
terça-feira, 13 de outubro de 2020

CDC, 30 anos depois...

"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".José Saramago O ano de 2020 é um ano inesquecível. Não somente no Brasil, mas em todos os sítios. Será tatuado na memória como um ano improvável; um ano tempestuoso; um ano pleno de desafios e de incertezas. Trouxe-nos tantas perplexidades e pôs à prova nossas verdades e ferramentas à solução dos conflitos. Algumas foram úteis, por certo. Outras não. Só o tempo dirá o acerto dos caminhos que decidimos trilhar1. Construímos, desconstruímos e estamos ainda a (nos) reconstruir. A solidariedade e a esperança de que dias melhores virão nutrem a dura travessia, em meio a tantas perdas2. A despeito disso, a sociedade brasileira tem algo muito especial a comemorar precisamente no mês de setembro, que há poucos dias nos deixou. Há exatos trinta anos, em 11 de setembro de 1990, foi sancionado um dos mais relevantes diplomas legislativos da segunda metade do século XX: a lei Federal 8.078, de 1990, o Código de Defesa do Consumidor. Fruto da promessa da Carta Constitucional de 1988, o CDC ingressou no sistema jurídico pleno de expectativas e de fulgor. Desde seu nascimento, foi um diploma vocacionado a realizar o compromisso ético insculpido no inciso XXXII de seu art. 5º: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"3. Sabemos todos que o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exigiu explicitamente que o legislador concretizasse o ideário de defesa do consumidor. Para essa tarefa hercúlea, fixou o prazo de 120 dias, contados da promulgação da Constituição da República: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor". Trinta anos depois, é preciso recordar que a promulgação do CDC significou a explícita afirmação de um novo direito fundamental: foi a concretização do direito fundamental de tutela do consumidor. Um direito fundamental imune, inclusive, a quaisquer tentações que recaiam sobre o Poder Constituinte Derivado (CF/1988, art. 60, § 4º, inc. IV). Um Direito que se fez e se faz vivo entre nós, que proveio da sabedoria e sensibilidade de um notável grupo de juristas4. Não é possível esquecer, aliás, que, todas as vezes que a Constituição Federal do Brasil alude ao termo consumidor, sempre o faz sob cariz protetivo. É o que se pode verificar com facilidade a partir da leitura dos arts. 5º, inc. XXXII; do art. 150, § 5º e do art. 170, inc. V, dentre outros. "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias", anuncia o art. 1º do CDC a toda Nação brasileira. Muito há a comemorar na seara consumerista no ano de 2020, portanto: são três décadas de reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e de permanente afirmação da proteção jurídica àquele que dela necessita quando em relação com o fornecedor (CDC, art. 4º, inc. I). Mas mais que brindar, é momento de reflexão para que, permanentemente, sigamos a avançar. Verdadeiro divisor de águas no contínuo processo de (re)compreensão das relações jurídicas entre os particulares, o CDC surgiu para realizar a promessa constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF/1988, art. 3º, inc. I). Uma advertência, contudo, é necessária. Os mais incautos não devem jamais se iludir: nada nos foi dado no Direito do Consumidor; tudo foi construído sonho a sonho, passo a passo, pedra a pedra. Sem dúvida, o Código Civil em vigor é um diploma normativo exemplar (assim como monumental fora, a seu tempo, o Código Civil de 1916)5. Contudo, no plano das relações contratuais, o Código Civil é vocacionado a reger conflitos dos que se encontram, ao menos por presunção, em situação de igualdade de forças e equilíbrio de poderes. A equidistância, contudo, não é o ambiente em que espraiam nas relações de consumo. Nelas, por força de regra constitucional, é preciso aceitar que todo consumidor é sempre vulnerável no mercado de consumo. O CDC reconhece, nesse compasso, os efeitos concretos da assimetria de poderes entre o fornecedor e o consumidor. Arma aquele que se encontra em situação de inferioridade dos necessários poderes para que seja realizado o direito fundamental de igualdade na sua acepção substancial. Para tanto, e com acerto, o CDC cria mecanismos de inversão de ônus de prova (art. 6º, inc. VIII); acolhe explicitamente uma nova responsabilidade civil sem culpa (uma responsabilidade civil fundada na Teoria do Risco6 que, conquanto já existisse entre nós, ganhou intenso brilho com o advento da lei consumerista, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço7 - arts. 12 e 14, caput); fixa a competência do foro de domicílio do consumidor às pretensões indenizatórias por ele manejadas (art. 101, inc. I) e proclama a importante disciplina de solidariedade passiva dos fornecedores que se inserem em uma mesma cadeia de consumo (direito que, não sem razão, é sedimentado em diferentes medidas e distintas passagens, como se pode perceber dos arts. 7º, parágrafo único; 18, caput; 19, caput; 25, §§ 1º e 2º; 28, § 3º; 34). Trinta anos depois, a sociedade brasileira deve ter maturidade para saber que a harmonia das relações de consumo é a meta a ser realizada. Não mais há lugar para anjos ou demônios. Consumidores e fornecedores não assumem posições adversariais. Não se deve, a apriori, atribuir responsabilidade a qualquer desses pólos pelas frustrações próprias do convívio social. Trinta anos depois, não mais há lugar para visões maniqueístas, preconceituosas ou apocalípticas nos conflitos entre consumidores e fornecedores. Solidariedade, autorresponsabilidade e empatia são as ordens do dia, como a pandemia pôde nos recordar nesse ano de 2020. Nesse ano de júbilo, duas advertências finais são necessárias. Em primeiro lugar, é preciso observar um dever de cuidado na permanente afirmação da tutela do direito fundamental do consumidor. A História insiste em ensinar que a supressão dos direitos não se dá de modo frontal ou abrupto. A retirada do que nos é caro se dá pelas bordas, à sorrelfa, à noite, e muito discretamente; tão sutilmente que, quando nos danos conta do que se passou, já não mais temos aquilo que nos importa. O momento é, pois, de intransigente vigilância na preservação de todo arcabouço jurídico que se construiu àquele vulnerável consumidor. Dito por outras palavras, não há garantias de sedimentação permanente de quaisquer direitos, não nos iludamos jamais: todo Direito (con)vive em situação de permanente tensão, e justamente por isso exige diuturna afirmação pela própria comunidade jurídica. Leva-se muito tempo (e muito empenho) para os que direitos sejam reconhecidos; mas, infelizmente, a desatenção da sociedade pode rapidamente colocar tudo a perder. A grave pandemia que se atravessa não é motivo suficiente para mitigar o que com esforço se edificou no Brasil durante três décadas8. A segunda advertência é igualmente vital no contínuo florescer do Direito do Consumidor. É preciso que os juristas mantenham os pés bem firmes no solo do presente, mas tenham os olhos a mirar os sonhos do futuro. Chegou o momento de (bem) disciplinarmos o comércio eletrônico nas relações de consumo (como quer o PL 3.514/15)9 e de tratarmos da prevenção do superendividamento (como disciplina o PL 3515/15)10. Ambos são diplomas vitais para que haja sol no futuro das relações de consumo. A comunidade jurídica deve conhecê-los, debruçar-se sobre suas diretrizes e mobilizar-se para que tais textos tornem-se realidade o quanto antes. Não há mais tempo a perder. Os méritos e os acertos dos referidos projetos de lei superam quaisquer imperfeições que porventura possam ter. A sociedade deve crer que a boa doutrina e as Cortes de Justiça do Brasil saberão conferir a melhor interpretação/aplicação aos seus preceitos. São diplomas essenciais para reger as relações de consumo na hipercomplexidade própria da Pós-Modernidade. A comunidade jurídica está a aguardá-los com as melhores expectativas. Que venham! Com tais aprimoramentos, hoje, trinta anos depois, teremos todos muito a comemorar. *Alexandre Guerra é doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil (Escola Paulista da Magistratura e Faculdade de Direito de Sorocaba). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da PUC-SP/COGEAE. Juiz de Direito no Estado de SP. Associado fundador do Instituto de Direito Privado, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Autor e coordenador de obras e artigos jurídicos. __________ 1 A jurisprudência não mediu esforços para dar respostas eficientes e justas aos problemas que abruptamente a Pandemia de COVID-19 pôs a nos desafiar. Para verificar a variedade dos conflitos (e soluções) postos à apreciação do Poder Judiciário de São Paulo nos últimos meses, ver, com ampla referência jurisprudencial e doutrinária: Boletim 4 do Grupo de Apoio ao Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo COVID-19. 4. ed. Set.2010, 108 fls. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 2 Para consulta de estudo recentemente publicado sobre os impactos da pandemia nas relações contratuais de direito privado, ver: GUERRA, Alexandre. Solidariedade, autorresponsabilidade e contrato: lições de protagonismo nas relações contratuais de direito privado em tempos de pandemia de COVID-19. SILVEIRA, João José Custódio da (coord.). In: Paradigmas jurídicos no pós-pandemia (Cadernos jurídicos). São Paulo: EPM, ano 21, n. 55, julho/setembro 2020, p. 95-116. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 3 Para consulta de aspectos de relevo no processo de consolidação dos direitos assegurados ao consumidor, ver: GUERRA, Alexandre; MALFATTI, Alexandre David (coords.). Reflexões de Magistrados Paulistas nos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: EPM, 2015. Disponível aqui. Acesso: 08 de outubro de 2020. 4 Por todos, seja consentindo remeter a: GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.) Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto: direito material e processo coletivo. 12. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 5  Para reflexão, sob a perspectiva de diversos juristas, sobre o papel do Código Civil no ordenamento jurídico brasileiro, ver: GUERRA, Alexandre (coord.). Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: EPM, 2018, v. 1. 2. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 6 A respeito dos contornos da Teoria do Risco, ver: PASQUALOTTO, Adalberto. Revisitando o conceito de risco no CDC. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 7 Dentre os pontos de destaque do CDC nas relações privadas nas últimas décadas, certamente a responsabilidade civil ocupa posição de relevo. Sobre seu perfil, seja consentido referir a: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: EPM, 2015. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 8 A respeito da disciplina do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC e sobre o perfil que a ele se impôs nos tempos de pandemia, ver: BARROS, João Pedro Leite; SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. O direito de arrependimento do consumidor e o RJET: Impactos diretos e indiretos da lei 14.010/2020 no art. 49 do CDC. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020. 9 Para conhecer o Projeto de Lei em foco, que trata do comércio eletrônico, ver aqui. Acesso: 8/10/2020. 10 Para leitura do Projeto de Lei em destaque, que disciplina o superendividamento, ver aqui. Acesso: 8/10/2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
A lei 14.066/20, de 30 de setembro de 2020, surge como resposta aos recentes desastres provocados pela atividade minerária, principalmente aqueles ocasionados pelo rompimento das barragens de rejeitos minerários em Mariana e Brumadinho, ambas cidades do Estado de Minas Gerais. A indigitada lei promoveu diversas alterações em normas que tratam do meio ambiente, mineração, barragens e recursos hídricos, com destaque para as modificações na lei 12.334/2010 que estabelecia, inicialmente, o Plano Nacional de Segurança de Barragens. Além da proibição de construção de novas barragens na modalidade a montante, método utilizado na construção das barragens que romperam em Mariana e Brumadinho, foram incluídas, no ordenamento jurídico nacional, dispositivos que delimitam a responsabilidade civil do operador de barragens e do minerador. Responsabilidade civil objetiva Uma das modificações realizadas foi o acréscimo do artigo 17-A na lei 12.334/2010, que assim dispõe: "Sem prejuízo das cominações na esfera penal e da obrigação de, independentemente da existência de culpa, reparar os danos causados, considera-se infração administrativa o descumprimento pelo empreendedor das obrigações estabelecidas nesta Lei, em seu regulamento ou em instruções dela decorrentes emitidas pelas autoridades competentes". Como pode se depreender, o referido dispositivo determinou a aplicação da responsabilidade civil em sua modalidade objetiva quando da ocorrência de um dano correlato com o barramento, ou seja, o empreendedor responsável pela barragem pode vir a ser obrigado a reparar um dano mesmo que não se constate dolo ou culpa em sua conduta. Para ser bem didático, os danos ambientais decorrentes da exploração de barragens, serão de responsabilidade do empreendedor no que concerne à Responsabilidade Civil pela reparação da degradação causada, ainda que não se comprove a intenção, imprudência, negligência ou imperícia daquela pessoa que explorava o minério. Nesse sentido, em uma sociedade tecnológica, na qual os riscos advindos das atividades industriais colocam em risco, não somente interesses particulares, mas também direitos difusos protegidos pela Constituição, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a função da responsabilidade civil de regular o comportamento social se torna de suma importância, principalmente no que tange à prevenção da ocorrência de danos e, secundariamente, à reparação. Com isso, a adoção da responsabilidade civil objetiva se justifica pela necessidade de imputar naquele que insere um risco para a sociedade um comportamento virtuoso1, de maneira que não venha a permitir que sua atividade cause danos a interesses de outros indivíduos e, principalmente, da sociedade como um todo, adotando, dessa forma, medidas de segurança capazes de mitigar os riscos e evitando atitudes que possam resultar em ilícitos civis. Assim, a inserção do artigo 17-A na lei 12.334/2010 é o reconhecimento por parte do legislador dos riscos trazidos pela construção de barragens e da necessidade de que os operadores dessas estruturas adotem conduta cautelosa, evitando que novos desastres venham a ser ocasionados. Não obstante, o novel dispositivo se harmoniza com o art. 14, § 1º, da lei 6.938/1 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que, da mesma forma, estabelece a responsabilidade civil objetiva ao poluidor ambiental. Espera-se que o efeito pedagógico da norma se sobressaia, uma vez que, os riscos atrelados a esse tipo de atividade são de grandes dimensões. Da delimitação temporal da responsabilidade civil do minerador Um último ponto a ser tratado é a delimitação temporal da responsabilidade civil do minerador que, de acordo com o artigo 6-A do Código de Mineração, se estende da fase de pesquisa até o fechamento da mina, sendo que essa fase passa pelo crivo do órgão regulador da atividade, que deve aprovar o plano de encerramento das atividades minerárias e fiscalizar o cumprimento daquilo que foi ali estabelecido. Novamente, o que se pretende evitar ao explicitar a extensão dessa responsabilização, é a assunção pela sociedade das externalidades negativas da atividade minerária. Pois, o minerador passa a ser obrigado a descomissionar todas as instalações utilizadas enquanto desenvolvia a exploração mineral, incluídas barragens de rejeitos que por ventura venham a existir, bem como, reparar os impactos ambientais provenientes da mineração. Diante de todo o exposto, é possível perceber que a lei 14.066/2020 tem como objetivo dar uma resposta aos recentes desastres provocados pelo rompimento de barragens de rejeitos da mineração, estipulando normas mais rígidas para a construção, operação e descaracterização dessas estruturas. Entretanto, salienta-se o fato de que a legislação brasileira pré-existente as alterações realizadas pela lei 14.066/2020, já contava com diversos instrumentos capazes de coibir condutas danosas, mas que tinham sua eficácia prejudicada pela omissão das autoridades em dar-lhes aplicação. Exemplo disso é a responsabilização do degradador por danos ao meio ambiente, que por força do artigo 14, §1º da lei 6.938/81 já utiliza a modalidade objetiva da responsabilidade civil e, segundo doutrina e jurisprudência dominantes, adotando a teoria do risco integral, a mais radical das teorias do risco. Por isso, mais importante do que a existência de leis é fazer com que essas tenham efetividade, para isso é preciso uma atuação proativa do Poder Público, principalmente na fiscalização e na célere punição dos infratores, para que assim se desestimule a prática de condutas danosas para a vida humana e meio ambiente. *Elcio Nacur Rezende é pós-doutor, doutor e mestre em Direito. Líder do Grupo de Pesquisa Responsabilidade Civil por Danos ao Meio Ambiente. Professor dos Programas de pós-graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara e Faculdade Milton Campos. **Victor Vartuli Cordeiro e Silva é doutorando e mestre em Direito na Escola Superior Dom Helder Câmara, especialista em Regime Jurídico dos Recursos Minerais pela Faculdade Milton Campos. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Responsabilidade Civil por Danos ao Meio Ambiente, professor na Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2014. p. 80.
O advento da covid-19 trouxe à tona a necessidade de colaboração do poder público e das pessoas em geral para o enfrentamento da crise sanitária. Mais que isso, evidencia-se o sentido solidário da responsabilidade civil, a partir da noção de que a conduta de cada um repercute sobre as demais pessoas e sobre a coletividade como um todo. Neste contexto, a figura do dano social pode ser de utilidade para coibir condutas lesivas que colocam em risco a vida de todos e para promover a reparação de danos causados à coletividade. 1. Noção de dano social O dano social é conceituado por Antônio Junqueira de Azevedo como aquele que atinge a sociedade como um todo, produzindo rebaixamento em seu nível de vida, em seu patrimônio moral e em sua qualidade de vida, dando azo a uma indenização punitiva ou dissuasória. O autor lembra alguns danos ultrapassam a esfera dos interesses individuais e atingem a coletividade, cabendo ao juiz fixar adicionalmente uma "pena" como indenização por dano social. Como exemplo, Antônio Junqueira cita o caso de uma companhia aérea que atrasa sistematicamente os voos, causando transtornos para os usuários em geral e produzindo rebaixamento no nível de bem-estar de toda a população1. A tese dos danos sociais alcançou aderência significativa na doutrina nacional, que em geral ressalta a natureza difusa de suas consequências e o aspecto sancionatório da reparação2. Ainda na seara doutrinária, o Enunciado 456 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ reconhece a autonomia dos danos sociais em relação aos danos individuais e a outras modalidades de danos coletivos3. De seu turno, a jurisprudência tem admitido a tese dos danos sociais, com base na conceituação apresentada por Antônio Junqueira de Azevedo, como categoria distinta dos danos materiais, morais e estéticos4. Disso se extrai que os danos sociais se distinguem dos danos individuais porque nestes a vítima é uma pessoa ou um grupo de pessoas, ao passo que naqueles a vítima é a coletividade como um todo. 2. Dano social e a função social da responsabilidade civil Conquanto a Constituição Federal tenha consignado a dignidade humana no cerne da ordem jurídica há quase três décadas e apesar de o Código Civil haver adotado a eticidade e a socialidade em sua principiologia há quase duas décadas, ainda vigora entre nós, no trato das relações jurídicas, o ranço do individualismo que marcava a legislação revogada. Tal fenômeno se passa também - e até com maior evidência - no campo da responsabilidade civil, cujas relações se resolvem, em sua maior parte, no plano interindividual, entre o agente que causa e a vítima que sofre o dano. No entanto, o advento da pandemia da Covid-19 impõe a necessidade de redimensionar o instituto da responsabilidade civil, irrigando-a com lampejos de solidariedade social, de modo a atribuir-lhe um sentido de responsabilidade social5. Diante do fenômeno pandêmico, é preciso ter em conta que a conduta de cada pessoa afeta não somente as esferas de interesses individuais, de vítimas imediatas, mas atinge a coletividade, colocando em risco a vida e a saúde das outras pessoas de maneira difusa6. À vista disso, a figura dos danos sociais pode ter aplicação aos casos em que uma pessoa, do alto de sua individualidade e de seu poder de autodeterminação, decide contrariar as medidas ditadas pelas autoridades sanitárias para enfrentamento da pandemia da Covid-19, colocando em risco a incolumidade física das pessoas em geral e produzindo rebaixamento no nível de vida da coletividade, especificamente em seu aspecto de segurança sanitária7. Neste ponto, alguns fatores jurídicos reforçam a doutrina dos danos sociais, como, por exemplo, a preponderância dos interesses coletivos sobre os individuais e o direito de todos a um meio ambiente saudável. Quanto ao primeiro aspecto, deve-se ter em conta a principiologia jurídica que orienta o Código Civil brasileiro, particularmente os princípios da eticidade e da socialidade, para dizer que os direitos individuais devem ser exercidos em consonância com os direitos individuais das outras pessoas e com os interesses da coletividade8. Isto significa que não existem direitos absolutos, tanto que os diversos institutos de direito privado, como a propriedade, a empresa e o contrato devem desempenhar uma função social. Quanto ao segundo aspecto, basta dizer que todas as pessoas têm direito a um meio ambiente saudável, que é um direito fundamental corolário de outros direitos fundamentais como o direito à vida e à saúde. Não será demasiado afirmar que o meio ambiente saudável compreende os mais diversos aspectos que, em seu conjunto, consiste em assegurar o bem-estar das pessoas em seu espaço de vida. Resulta que, diante do arcabouço legal vigente no Brasil, não é dado a nenhuma pessoa arvorar-se no direito de desafiar os direitos individuais das outras pessoas e os interesses da coletividade, a ponto de deteriorar o ambiente de vida das pessoas mediante decréscimo do nível de segurança sanitária a que todos têm direito igualitariamente9. É bem verdade que o poder público dispõe de instrumentos destinados ao enfrentamento dos problemas de descumprimento das medidas de contenção da pandemia da Covid-19, mediante imposição de sanções criminais e administrativas. No entanto, a responsabilidade civil pode ser um importante aliado no enfrentamento da crise sanitária, mediante a imposição do dever de reparar danos individuais, coletivos e sociais. Trata-se de evidenciar a feição social da responsabilidade civil, que se presta não somente ao tratamento das lides interindividuais, mas também daquelas que atingem o interesse de toda a coletividade10. 3. Dano social por desrespeito às medidas sanitárias Desde o advento da pandemia da Covid-19, são vários os relatos sobre desrespeito ostensivo às medidas adotadas pelas autoridades sanitárias para contenção da pandemia. Na maior parte dos casos, essas posturas são coibidas por intermédio da força policial e por imposição de medidas administrativas, como a aplicação de multas e fechamento de estabelecimentos. Há um caso ocorrido nos dias iniciais da pandemia, em que o governador do Estado da Bahia determinou a abertura de processo criminal contra um empresário que foi diagnosticado como portador do novo coronavírus e, deliberadamente, deixou de cumprir as medidas de isolamento social determinadas pelos médicos e pelas autoridades sanitárias, provocando a contaminação de outras pessoas11. Na mesma ocasião e também no Estado da Bahia, um homem contaminado pelo novo coronavírus foi preso pela polícia e conduzido ao local onde deveria cumprir o isolamento que lhe fora determinado pelos médicos12. Em várias partes do Brasil, são constantes as ações policiais de fechamento de bares e restaurantes, com imposição de multas e até cancelamento do alvará de funcionamento, em razão do descumprimento das medidas de prevenção contra o novo coronavírus13. Um caso recente, porém, ocorrido no Estado do Paraná, destoa dos demais porque o Poder Judiciário reconhece a figura do dano social por descumprimento ostensivo e deliberado às regras de enfrentamento à pandemia da Covid-1914. Trata-se de ação civil pública intentada pelo Ministério Público estadual contra uma pessoa que testou positivo para o novo coronavírus, mas desprezou as recomendações de isolamento social feitas pelos médicos. Na ação, o Ministério Público pede que o réu seja condenado a cumprir o isolamento social e a pagar indenização por dano social em favor do Fundo Municipal de Saúde, sem prejuízo das medidas criminais cabíveis. A ação foi julgada procedente com reconhecimento da hipótese de dano social e condenação do réu ao pagamento de R$ 15.000,00 em favor do referido fundo15. Dois aspectos chamam a atenção nesta decisão. O primeiro é que, embora a sentença faça alusão a "prejuízos que atingem abstratamente a toda uma sociedade", o desrespeito às regras enfrentamento à pandemia produz rebaixamento da qualidade do ambiente de vida e insegurança para as pessoas em geral, principalmente para a grande maioria que depende do sistema público de saúde. Este dano não é abstrato, mas real, conquanto sujeito a apreciação equitativa do montante reparatório. O segundo aspecto é que, sem perder de vista que a função primordial da responsabilidade civil seja reparatória, é iniludível que a condenação neste caso representa reproche judicial à conduta adotada pelo agente, o que pode soar como punição para a própria conduta e servir de exemplo para que outras pessoas não se comportem dessa maneira. É importante ressaltar que a tese defensiva, sobre a falta de comprovação de que o réu teria contaminado alguma vítima específica, não afeta a caracterização do dano social. Conforme ressaltado acima, o dano social não se confunde com o dano individual porque neste a vítima é individual, ao passo que naquele a vítima é a sociedade como um todo16. Palavras finais Em síntese, o surgimento da pandemia evidencia o sentido solidário da responsabilidade civil, a partir da noção de que cada conduta repercute sobre as outras pessoas e sobre a coletividade como um todo. Cabe ao Ministério Público, enquanto titular das ações de tutela dos direitos difusos, identificar os casos de descumprimento ostensivo das medidas de enfrentamento à crise sanitária e promover ações civis públicas com vista à reparação dos danos causados à sociedade. Referências AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 9, São Paulo: RT, jan.-mar. 1998. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 15-16. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, teoria e prática. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. MESA, Marcelo J. López. Presupuestos de la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 2012. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 24/09/2020. SANTOS, Romualdo Baptista dos. A dimensão do Outro na configuração da responsabilidade civil. In: LLAMAS POMBO, Eugenio. Congreso Internacional de Derecho Civil Octavo Centenário de la Universidad de Salamanca: libro de ponencias. Valência: Tirant lo Blanch, Salamanca: Universidad de Salamanca, 2018. _______________. O dano social no atual estágio da responsabilidade civil. In: Revista de Direito da Responsabilidade. Coimbra/PT. Ano 2 - 2020. p. 676-697. TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. *Romualdo Baptista dos Santos é mestre e doutor em Direito Civil pela USP, especialista em Direito Contratual e Direito de Danos (Contratos y Daños) pela Universidade de Salamanca - USAL, autor e coautor de várias obras e artigos jurídicos. Ex-procurador do Estado de SP. Advogado. __________ 1 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 381-382. 2 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 131-134; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 314-321; NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 572-577; TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 504-513. 3  Enunciado 456 CJF/STJ: "A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas". 4 Confira-se, exemplificativamente: STJ - 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v.u. 5 Sobre a transposição do individualismo para o solidarismo no plano da responsabilidade civil, confira-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 15-16; MESA, Marcelo J. López. Presupuestos de la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 2012. p. 18-36. 6 Em uma concepção levinassiana, a vítima não se reduz necessariamente a uma pessoa individualizada, mas é dimensão de outridade que compreende grandezas coletivas como a coletividade e a sociedade; e grandezas não humanas, como o meio ambiente (SANTOS, Romualdo Baptista dos. A dimensão do Outro na configuração da responsabilidade civil. In: LLAMAS POMBO, Eugenio. Congreso Internacional de Derecho Civil Octavo Centenário de la Universidad de Salamanca: libro de ponencias. Valência: Tirant lo Blanch, Salamanca: Universidad de Salamanca, 2018. p. 435-448. 7 A face mais visível dessa insegurança sanitária é o estrangulamento do sistema público de saúde, com a insuficiência de recursos humanos e materiais para atender à grande quantidade de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus, além de toda a demanda por atendimento de outras enfermidades (disponível aqui, visualizado em 24/9/2020). 8 Sobre a diretriz principiológica que rege o direito privado, confira-se REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 24/9/2020. 9 Sobre o direito a um meio ambiente saudável, confira-se: LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, teoria e prática. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 71-78. 10 BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 9, São Paulo: RT, jan.-mar. 1998, p. 78-82. 11 Empresário que escapou de quarentena e levou covid-19 para sul da BA será processado, visualizado em 24/9/2020. 12 PGE abre processo contra empresário que foi com coronavírus para a Bahia, visualizado em 24/9/2020. 13 Polícia fecha mais de 140 bares e restaurantes no interior por não cumprirem decreto governamental, visualizado em 24/9/2020. 14 Homem com covid-19 pagará danos sociais após descumprir isolamento, visualizado em 24/9/2020. 15 Processo 0004295-27.2020.8.16.0174, 1ª Vara da Fazenda Pública, União da Vitória, PR. 16 SANTOS, Romualdo Baptista dos. O dano social no atual estágio da responsabilidade civil. In: Revista de Direito da Responsabilidade. Coimbra/PT. Ano 2 - 2020. p. 676-697. __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 
Direitos autorais na indústria criativa  Da leitura do artigo 7º, da lei 9.610 de 1998 (LDA), observa-se o olhar atento do legislador aos avanços tecnológicos, protegendo as obras intelectuais exteriorizadas em qualquer meio e suporte, inclusive, "conhecido ou que se invente no futuro". A finalidade, à época, já era mitigar o ritmo de obsolescência dos comandos legislativos, em face das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) até então havidas e do porvir. As questões autorais que, originariamente, se voltavam ao direito à cópia de obras intelectuais (Copyright), em face da circulação física de seus exemplares, estenderam-se à "representação pública de obras", atingindo "outras formas de comunicação", para desaguarem na "disponibilização pública em redes informáticas"1. A Internet gerou o ciberespaço, que promove o crescimento de relações interpessoais pautadas pela instantaneidade e desterritorialização2. Nesse ambiente, as obras permanecem disponíveis a um número indeterminado de pessoas, com acesso "assíncrono e individualizado"3, sob forma de download ou streaming - quando, neste último caso, o conteúdo é acessado online, jorrando diretamente das infovias, sem precisar ser baixado. O contexto tecnológico promoveu o surgimento e desenvolvimento da Indústria Criativa, "associada à produção de intangíveis que são ou podem ser objeto de propriedade intelectual", "novas tecnologias de produção e exploração da informação digital", como as Artes Visuais (Pintura, Escultura, Fotografia),  Publicações e Mídia, Desenho, Serviços Criativos, Teatro, Dança, Circo, Cinema, Televisão, Rádio, Softwares, Games e conteúdos criativos digitalizados4. O acesso às novas tecnologias fez com que seres humanos de alto impacto criativo, sem necessariamente estarem inseridos em grandes corporações ou dependerem de investimento inicial elevado, passassem a produzir, no ciberespaço, obras intelectuais, através de composições musicais, vozes ou instrumentos, fotografias, vídeos ou clips, produção de games.  Conteúdo ilícito gerado por terceiros                Nesta ambiência, estão os chamados terceiros, que publicam conteúdo nas plataformas, no entanto, não representam, nem são colaboradores, tampouco estão vinculados ao provedor que compartilha o conteúdo. O conteúdo de terceiro é diferente do conteúdo de editoria, neste último caso, o provedor manifesta a sua opinião sobre determinado tema ou realiza a publicação. Terceiros podem publicar manifestações que não ofendem direitos. Também podem compartilhar obras intelectuais, de forma ilícita, sem autorização, inclusive, obtendo lucro, em procedimentos de monetização, afrontando direitos autorais. O conteúdo ilícito gerado por terceiros atinge, por exemplo, compositores, de letra e melodia, cineastas, fotógrafos, intérpretes, instrumentistas, enfim, produtores de conteúdo criativo, em geral. O Youtube, por exemplo, como plataforma de compartilhamento, estabelece o denominado "Sistema Content ID". Através dele, o titular de direitos autorais envia a sua obra intelectual à plataforma, que passa a compor um banco de dados. A partir disto, o "proprietário" decide o que irá acontecer, quando houver a identificação de sua obra pelo sistema: "bloquear a visualização de um vídeo inteiro; gerar receita com o vídeo ao veicular anúncios e, em alguns casos, ao compartilhar os lucros com o usuário que fez o envio; rastrear as estatísticas de visualização do vídeo". Observe-se que, em vídeos cuja atividade do provedor de compartilhamento for dirigida para o Brasil, a atividade algorítmica que bloqueia, exclui ou monetiza deve, ou, deveria observar a possibilidade de reprodução de pequenos trechos, por não serem classificados como conteúdo ilícito, a teor do artigo 46 da LDA.  Diálogos entre Brasil e União Europeia acerca da responsabilidade civil dos provedores de compartilhamento e reflexões sobre sua aplicação  Diálogos entre Brasil e União Europeia acerca da Responsabilidade Civil dos Provedores de Compartilhamento  Na União Europeia, a Diretiva 2019/790 encaminhou a temática para a aplicação da responsabilidade objetiva dos provedores de compartilhamento, nos termos do artigo 17º, 4: "são responsáveis por atos não autorizados de comunicação ao público, incluindo a colocação à disposição do público, de obras protegidas por direitos de autor e de outro material protegido". Como excludentes, menciona a Diretiva a conduta dos provedores que: "a) Envidaram todos os esforços para obter uma autorização; e b) Efetuaram, de acordo com elevados padrões de diligência profissional do setor, os melhores esforços para assegurar a indisponibilidade de determinadas obras e outro material protegido relativamente às quais os titulares de direitos forneceram aos prestadores de serviços as informações pertinentes e necessárias e, em todo o caso; c) Agiram com diligência, após recepção de um aviso suficientemente fundamentado pelos titulares dos direitos, no sentido de bloquear o acesso às obras ou outro material protegido objeto de notificação nos seus sítios Internet, ou de os retirar desses sítios e envidaram os melhores esforços para impedir o seu futuro carregamento, nos termos da alínea b).5." O Parlamento Europeu justifica a mudança de rota, pois "ao prever a responsabilidade das plataformas, a diretiva aumentará a pressão para que estas celebrem acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos, que deverão receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras ou outro material protegido"5. Tal posicionamento não está livre de críticas. No Brasil, a lei 12.965 de 2014 (MCI), em seu artigo 19, determina a responsabilidade civil dos provedores de aplicações para "danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário". Dessa forma, trata-se de responsabilidade subjetiva, na medida que depende de prévia intimação e inação de cumprimento pelo provedor do prazo fixado pelo juízo, devendo necessariamente ser indicada a URL (Uniform Research Locator). Todavia, em matéria de direitos autorais, aplica-se o artigo 18, § 2º, que assim preceitua: "§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal". E, mais adiante, o artigo 31, refere que, "até a entrada em vigor", aplica-se a própria Lei de Direitos Autorais (LDA), que não conta com comando específico para os provedores de aplicações. Segundo a Apelação Cível sob o nº 1000579-34.2014.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que tratou de situação envolvendo o Youtube, a Relatora Márcia Dalla Déa Barone sustentou que o Marco Civil da Internet "excepciona do seu âmbito de incidência a violação de direitos autorais praticada por terceiros, remetendo à disciplina legal específica a regulação sobre eventual responsabilidade civil do provedor de internet por pela violação aos direitos do autor praticados por usuários do serviço". Na casuística, ressaltou não ter havido conduta ilícita do provedor, sobretudo, no fato de, ao ser notificado judicialmente, imediatamente, ter efetuado a remoção do conteúdo. Contudo, observou-se que, em relação à notificação extrajudicial anterior, "não restou comprovada e os documentos juntados com a petição inicial não demonstram que houve a comunicação dos endereços eletrônicos". Sendo assim, foi possível concluir que se a notificação extrajudicial estivesse completa, com a URL, e, a partir dela fosse possível identificar a inércia por parte do provedor de aplicações, já poderia haver responsabilização em caso de direitos autorais, visto não ser aplicada a exigência de notificação judicial, pela não incidência do Marco Civil da Internet. bem como não haver esta determinação na LDA. O Superior Tribunal de Justiça, nos termos do Recurso Especial sob o nº 1512647/MG, em matéria de violação a direitos autorais por provedor na internet, entende que "não é óbvia a inserção de sua conduta regular em algum dos verbos constantes nos arts. 102 a 104 da Lei de Direitos Autorais". E, ainda, apontou os critérios para a apuração da responsabilidade civil: "Há que investigar como e em que medida a estrutura do provedor de internet ou sua conduta culposa ou dolosamente omissiva contribuíram para a violação de direitos autorais.". Em sendo assim, não foi aplicada a responsabilidade objetiva, voltando-se à responsabilidade subjetiva. Nessa linha, cumpre destacar que, no Brasil, o PL 2.370 de 2019, propõe, em seu artigo 88-B, que poderá o provedor de aplicação ser responsabilizado solidariamente, caso, notificado pelo titular de direitos sobre a obra, não adote as providências para sua indisponibilização. Trilha o caminho da responsabilidade subjetiva, sem exigir a notificação judicial como ponto de partida para se analisar a inércia ou mesmo o descumprimento da remoção pelo provedor de compartilhamento, podendo ser feita a notificação extrajudicialmente.  Reflexões sobre sua implementação A partir dos estudos, verifica-se que a aplicação da responsabilidade objetiva, sob a modalidade integral, exigiria um filtro prévio que poderia colocar em xeque a própria liberdade de expressão. Outrossim, ao incidir a responsabilidade objetiva, admitindo-se excludentes, na linha da Diretiva Europeia mencionada, também poderia afetar a experiência do internauta, sua usabilidade, prejudicando suas interações, na medida que os provedores submeteriam os usuários a critérios mais rígidos para publicarem o conteúdo, podendo gerar espera na disponibilização. Compreende-se que o adequado encaminhamento se dá na linha da responsabilidade subjetiva, buscando dar uma maior proteção aos criadores, bem como preservando a liberdade de expressão, diante da inação ou demora no atendimento a uma notificação extrajudicial feita pelo titular dos direitos autorais, na linha do PL 2.370 de 2019 e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Quando se poderá avaliar a conduta do provedor, se teve cuidados com a propriedade intelectual, se foram estabelecidos canais, e, se, no caso concreto tomou a medida em tempo razoável desde seu conhecimento. Portanto, o provedor de compartilhamento, que é um provedor de aplicações, na forma do MCI, notificado pelo titular da obra, não necessariamente pelo Poder Judiciário, poderia vir a ser responsabilizado caso não indisponibilizasse o conteúdo, com diligência. Abre-se maior proteção aos criadores, sem, no entanto, prejudicar a usabilidade das plataformas de compartilhamento. Outro ponto a ser cogitado, seria a adoção da responsabilidade subsidiária, ao invés da solidária, diminuindo as repercussões econômicas, ao menos de forma imediata, sobre os provedores de aplicações, o que implicaria na preservação de um espaço de maior liberdade de expressão, propulsando a indústria criativa. De qualquer sorte, não haveria prejuízo ao criador que não obtendo o crédito em desfavor de quem cometeu a violação - terceiro que gerou o conteúdo ilícito, por inexistência de patrimônio, encontraria sua satisfação junto ao provedor de aplicações. *Cristiano Colombo é doutor e mestre em Direito. Programa de pós-graduação em Direito da UFRGS. Professor oermanente do mestrado profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Professor de graduação de Direito e Indústria Criativa da UNISINOS. Professor de graduação em Direito das Faculdades Integradas São Judas Tadeu. __________ 1 PEREIRA, Alexandre Dias. Direito da Propriedade Intelectual & Novas Tecnologias. Coimbra: Gestal, 2019, vol I., 9. 2 KU, Raymond S. R.; LIPTON, Jacqueline D.. Cyberspace Law. Cases and Materials. New York: Aspen Publishers, 2016, p. 20-21. 3 ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre o Direito da Internet e Sociedade da Informação. Almedina: Coimbra, 2001, p. 151-152. 4 BUAIAN, Antônio; MENDES, Cássia Isabel Costa Mendes, SILVA, Antônio Braz de Oliveira; Carvalho, Sério Medeiros Paulino de. Indústria criativa: direitos de autor e acesso à cultura. Revista Liinc, v. 7, n.2, p. 510-537, 2011. 5 PARLAMENTO EUROPEU. Parlamento Europeu aprova diretiva sobre os direitos de autor. 26 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 
Muitas são as questões que merecem, na atualidade, a atenção dos que se propõem ao estudo do Direito Civil, sejam elas novas perspectivas de análise de temas clássicos ou mesmo aspectos extremamente atuais da sociedade contemporânea. Nesse contexto surge a discussão acerca do lucro da intervenção, entendido como sendo a hipótese em que o sujeito obtém uma vantagem patrimonial face à utilização de bem de outrem, sem que possua a devida autorização para a exploração do referido bem. Seria, portanto, uma situação fática na qual se aplicariam as consequências decorrente do enriquecimento sem causa (art. 844 do CC). O tema, considerado historicamente novo, suscita uma série de discussões, e, como bem salientam Anderson Schreiber e Rodrigo da Guia Silva, é figura que ainda carece de uma investigação mais profunda, não podendo simplesmente ser ocultado ou absorvido pela categoria dos lucros cessantes, tipicamente afeita à responsabilidade civil1. O lucro da intervenção, um ainda desconhecido de muitos, foi objeto de apreciação pela VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, gerando o Enunciado nº 620 do CJF: "A obrigação de restituir o lucro da intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa". Considerando se tratar de uma situação de fato em que se verifica um benefício indevido e, tendo por base sua natureza e características, constata-se ser pertinente a sua discussão em situações nas quais ordinariamente não se via a sua incidência, sendo o presente texto muito mais para realizar essa apreciação fática do que para discutir os elementos que permeiam o problema em si. Exatamente sob esse prisma que se pretende discutir o lucro da intervenção, a caracterização do enriquecimento sem causa e a consequente aplicação do dever de restituir em uma seara do Direito Civil extremamente complexa, qual seja, o direito das sucessões. Na atualidade percebe-se que as discussões relacionadas ao direito sucessório vêm ganhando espaço, como o caso do seu planejamento, sendo certo que para se chegar a tal especificidade de atuação é imprescindível que aquele que labora com o tema tenha o conhecimento básico acerca dos preceitos mais elementares vinculados à sucessão mortis causa. Nessa senda se verifica que entre os aspectos sucessórios mais ignorados estão as figuras da colação e sonegados, sendo entendida aquela como o dever que compete aos herdeiros descendentes do falecido de indicar o valor referente a bens recebidos a título de doação do de cujus em vida para a realização da partilha do patrimônio do falecido (art. 2.002 do CC). Sonegados, por sua vez, é a pena aplicada a quem não cumpre o dever de colacionar, ensejando a perda do direito sucessório sobre os bens sonegado (art. 1.992 do CC), bem como a remoção da condição de inventariante, se o for (art. 1.993 do CC). Normalmente a discussão de elementos como colação e a imposição da pena de sonegados fica circunscrita àqueles que se dedicam efetivamente ao estudo do direito das sucessões, não sendo pontos que normalmente ganhem os holofotes, seja por desconhecimento, seja por esquecimento. A imposição do dever de colacionar, nos termos da lei, busca igualar a legítima (art. 2.003 do CC), diretamente vinculado com o disposto no art. 544 do CC que afirma que a "doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança". Em síntese pode-se afirmar que quem recebeu doação do ascendente haverá de informar tal fato para que o valor seja considerado no momento da partilha do patrimônio do falecido e, caso não o faça, haverá de restituir os bens sonegados. Na impossibilidade de restituição do bem por não mais os ter em seu poder, haverá de pagar a importância dos valores que ocultou, acrescido de perdas e danos (art. 1995 CC), podendo até mesmo perder os direitos sucessórios sobre tais bens. Quanto a perda dos direitos sucessórios sobre o bem não colacionado, consequência ordinariamente lembrada para tais situações ante a pena de sonegados, se estabelece, doutrinariamente, a discussão acerca da necessidade da presença do dolo, como elemento subjetivo, por parte do herdeiro para a incidência ou não da pena de sonegados. A maioria da doutrina adere à tese da necessidade da configuração do dolo como requisitos para a aplicação da pena de sonegados, pugnando que a "sonegação é a ocultação dolosa de bens que devam ser inventariados ou levados à colação"2. Outros sustentam que o dolo na sonegação seria presumido, cabendo a quem não colacionou a obrigação de provar que não agiu de forma dolosa, enquanto uma outra parcela não entende pertinente a discussão do elemento subjetivo para a imposição da pena. Qualquer que seja a tese adotada quanto ao elemento subjetivo, tal figura teria relevância apenas no que concerne à perda dos direitos sucessórios sobre os bens não colacionados e a remoção da condição de inventariante, contudo não se questiona que os bens doados devem ser objeto de partilha em favor dos demais herdeiros, vez que são entendidos como parte da herança que fora antecipada conforme preconiza o art. 544 do CC já citado. O que se traz para o presente debate é a possibilidade de se discutir, em sede de direito civil, uma outra consequência para a não realização da colação, que vai além da figura dos sonegados, revestida de um caráter restituitório decorrente do enriquecimento sem causa proveniente da utilização indevida do bem que deveria ser colacionado e não foi. Nessa situação está patente que alguém logrou vantagem de cunho patrimonial face a interferência indevida em bem pertencente a outrem, utilizando-se dele, ao menos parcialmente, sem a devida autorização, nos exatos termos do enriquecimento sem causa por lucro da intervenção. Ao não colacionar e manter consigo bens que deveria ter carreado aos autos para a partilha do patrimônio do falecido o donatário/herdeiro aufere benefício indevido, em clara hipóteses de enriquecimento sem causa. Assim, a partir do instante em que fica caracterizado o não cumprimento do dever legal de colacionar (por não descrever no inventário os bens da herança quando estejam em seu poder, ou no de outrem com seu conhecimento, ou quando venha a omiti-los na colação a que os deva levar, ou mesmo se vier a deixar de restituí-los) o herdeiro está beneficiando-se de bem que, ao menos parcialmente, não lhe pertence. Quando se pugna pela possibilidade de dever restitutório mesmo com a aplicação da pena de sonegados não se vislumbra qualquer sorte de bis in idem, vez que a consequência no âmbito sucessório da não realização da colação não veda a existência de outros desdobramentos de tal ato, não só na esfera do direito civil mas também em outras searas, como a penal (apropriação indébita ou estelionato, por exemplo). Mister se consignar que a vantagem patrimonial obtida ante uma indevida interferência em patrimônio pertencente a outrem, ainda que tal fato não tenha ensejado a incidência de um dano em desfavor daquele a quem o patrimônio pertencia, encerra a ideia de enriquecimento sem causa pelo lucro da intervenção3, sendo, ainda, irrelevante a discussão acerca da má-fé do infrator, vez que basta a existência de um benefício indevido a quem não deveria tê-lo. Fulcral não se olvidar que a "circunstância de não se vislumbrar a má-fé do interventor não impede a configuração do lucro da intervenção, mas apenas repercute sobre a quantificação do valor a ser restituído" no caso da utilização plena de um bem que pertence apenas parcialmente ao indivíduo4. Evidencia-se, portanto, que a indenização por enriquecimento sem causa ante ao lucro da intervenção está dissociada da imposição da pena de sonegados, tendo cada situação requisitos distintos para sua verificação, de sorte que mesmo que o indivíduo que não colacionou possa vir a se livrar da pena de sonegados, sob a alegação da ausência de má-fé (que alguns sustentam ser um de seus requisitos), o enriquecimento sem causa se verifica ante ao benefício indevido obtido. O intento de retirar do ofensor todo o lucro obtido com o ilícito5 é condizente com o ato de não ter colacionado, face ao benefício obtido ao utilizar-se do bem alheio. Ressalta-se que tal benefício pode revelar-se pelo simples fato de usar de bem que não lhe pertence, não sendo obrigatório que tenha auferido algum benefício específico ante a coleta de frutos decorrentes da posse de tais bens. Não se olvida que já de muito tempo se tem o entendimento de que o culpado na ação de sonegação haverá de restituir a coisa caso não colacione, com seus frutos e rendimentos, como possuidor de má-fé, conforme bem destacava Maximiliano já em meados do século passado6, e consta do art. 1995 do CC, caso não seja possível se restituir o bem por não mais os ter o sonegador. Contudo é de se salientar aqui que a figura das perdas e danos ou dos lucros cessantes não se mostram suficientes para a devida compreensão do tema, havendo de incidir os parâmetros inerentes enriquecimento sem causa face ao lucro da intervenção para se atender os parâmetros norteadores consignados na legislação vigente. Assim, entendendo que o momento para colacionar se encerra, na pior das hipóteses, com o término do inventário, todo o benefício auferido com a utilização do bem alheio a partir de então revela-se como indevido, cabendo a aplicação dos preceitos do enriquecimento sem causa com base no lucro da intervenção. Desta forma, concluindo o entendimento exposto no presente texto, o não colacionar trará como consequências: (i) O dever de carrear o bem não colacionado para que seja inserido no patrimônio a ser partilhado pelos herdeiros, ainda que em sede de sobrepartilha (art. 2.022 do CC); (ii) A discussão acerca da imposição da pena de sonegados, principalmente sob o viés da perda dos direitos sucessórios quanto aos bem não colacionado, e; (iii) a restituição do lucro da intervenção, ante ao enriquecimento sem causa decorrente da utilização indevida, ainda que parcial, de bem que não lhe pertence, sem autorização para tanto (independentemente da imposição da pena de sonegados) Dessa forma, relevante se entender o fenômeno sucessório de forma ampla, tendo claro que o não colacionar tem como consequência a verificação da figura do lucro da intervenção, ainda que não se possa aplicar a pena de sonegados. *Leandro Reinaldo da Cunha é professor Titular-livre de Direito Civil da UFBA. Pós-doutorado e doutorado pela PUC/SP. __________ 1 Anderson Schreiber, Rodrigo da Guia Silva. Aspectos relevantes para a sistematização do lucro da intervenção no direito brasileiro. Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p. 1-15, out./dez. 2018, p. 13. 2 Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira. Tratado de Direito das Sucessões, São Paulo: Freitas Bastos, 1987, p. 408. 3 Leonardo Fajngold, Bernardo Salgado, Dan Guerrchon. Lucro da intervenção: a disciplina e os julgamentos pioneiros no Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 21, jul./set. 2019, p. 166. 4 Leonardo Fajngold, Bernardo Salgado, Dan Guerrchon. Lucro da intervenção: a disciplina e os julgamentos pioneiros no Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 21, jul./set. 2019, p. 177. 5 Sérgio Savi, Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa. São Paulo: Atlas, 2012, p. 71. 6 Carlos Maximiliano. Direito das Sucessões, 3º vol. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1952, p. 415. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Caso relatado por Mayer-Schönberger ilustra perfeitamente toda a angústia humana por detrás do tema do direito ao esquecimento. Ele comenta que estava respondendo perguntas feitas por ouvintes de uma rádio, quando entrou a seguinte ligação de uma mulher: "Quando ainda uma adolescente, disse ela, havia infringido a lei, fora presa, condenada, passando um tempo na prisão. Ela admitiu ter cometido um terrível erro. Mas uma vez libertada, mudou-se para uma cidade diferente e colocou sua vida em ordem. Apaixonou-se, teve filhos, encontrou um trabalho, formou um lar. Deus a ajudou, ela disse, dando-lhe força e fé. E a sociedade também a ajudou, ao lhe propiciar essa segunda chance. Então, um dia, um dos coleguinhas de seus filhos, fez uma pesquisa sobre ela na internet e encontrou uma página com fotos de identificação policial de ex-condenados (mug shots), incluindo a dela. A notícia espalhou-se rapidamente na pequena comunidade onde ela vivia, e sua preciosa nova vida desintegrou-se na frente de seus olhos. Pais não mais permitiram que seus filhos brincassem com os dela; amigos e conhecidos passaram a evitá-la. Subitamente, após ser um bem-quisto membro da comunidade durante quase uma década, ela era a ex-condenada1. (tradução nossa)  Casos como esse nos recordam Rodotà, ao dizer que "ao lado de um interesse público que aponta no sentido de que fatos passados sejam relembrados, promovendo uma sociedade mais transparente, há o direito de não ser perseguido ao longo de toda a vida por acontecimento pretérito"2. A questão, porém, não é simples. Teme-se que muitos aproveitem tal direito para eliminar fatos incômodos, mas verdadeiros, do seu passado, já que "é humano pensar na vida como um filme a ser editado, no qual o protagonista seria sempre o herói, e o desfecho sempre feliz"3. O presente artigo limitar-se-á a expor recentes decisões de tribunais superiores europeus envolvendo direito ao esquecimento invocado por pessoas que foram condenadas criminalmente, quando, transcorrido certo tempo, tal informação continua a ser facilmente acessível na internet. Fora do contexto da internet, o Tribunal Constitucional Federal alemão abordara o tema nos casos Lebach I e Lebach II. No primeiro caso (1973), afirmou que "a proteção constitucional da personalidade não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, (...) especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade". Já no segundo (1999), a Corte orientou-se em sentido contrário, em razão das novas circunstâncias fáticas, como o fato de que o novo documentário omitira as imagens e a identificação dos envolvidos, focando mais no fato histórico em si. Afirmou o TCF que "o cumprimento das penas não conduz ao fato de que o autor de um delito tenha um direito de ser 'deixado a sós' com o crime"4. Esses casos continuam tendo sua importância por claramente indicarem que o direito ao esquecimento envolve o império do fato. É quase impossível uma tomada de posição apriorística, diante da relevância de ambos os direitos conflitantes. A atenção aos detalhes do caso concreto é que fará inclinar o fiel da balança na direção do direito que deverá prevalecer. Mas, ao contrário dos casos Lebach, que tiveram na sua origem um crime de grande repercussão, o fenômeno da internet fez com que todos os milhões de processados e condenados criminalmente no mundo inteiro pudessem ter seus passados permanentemente escrutinados por qualquer pessoa, mediante simples pesquisa nominal. Essa mudança fez com que cada vez mais os tribunais venham sendo acionados por pessoas comuns, que cometeram delitos singelos, pelos quais já responderam, mas que continuam assombradas por um passado que se converteu em eterno presente. É verdade que ninguém tem o direito de apagar suas falhas passadas, mas é igualmente verdade que ninguém deve ficar eternamente pagando por condutas antigas que já não mais o representam. Esses casos têm chegado às instâncias superiores de todos os países. Aqui farei breves referências a recentes decisões oriundas do espaço europeu. O Tribunal de Justiça da União Europeia analisou o tema do direito ao esquecimento em relação a notícias de processos criminais extintos em importante julgamento realizado em 24/09/2019 (processo C-136/17 - disponível aqui). Nessa ocasião, reconheceu o tribunal que a atividade de um motor de busca é decisiva "na difusão global dos referidos dados, na medida em que os torna acessíveis a qualquer internauta que efetue uma pesquisa a partir do nome da pessoa em causa", que, de outra forma, não teria localizado a informação. Especificamente sobre o tema em pauta, afirmou o tribunal que mesmo um tratamento de dados inicialmente lícito, pode-se tornar, com o tempo, incompatível com a proteção de dados, "quando esses já não sejam necessários às finalidades para que foram recolhidos". Na sequência, lembrou a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que sustenta que a disponibilização na rede de antigas reportagens relativas a processos penais deve ser analisada à luz de um justo equilíbrio entre direitos conflitante, pois "o público tem um interesse não apenas em ser informado sobre uma questão de atualidade mas também em poder fazer pesquisas sobre acontecimentos passados, sendo contudo variável o interesse do público sobre os processos penais e podendo esse interesse evoluir ao longo do tempo". Dentre as circunstâncias a serem ponderadas, incluem-se "a natureza e a gravidade da infração em questão, o desenrolar e o resultado final do processo, o tempo decorrido, o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública e o seu comportamento no passado, o interesse do público no momento em que o pedido é apresentado, o conteúdo e a forma da publicação, bem como as repercussões desta para a referida pessoa". Ainda que não seja o caso de se proceder à desindexação, o operador está obrigado a "organizar a lista de resultados de tal forma que a imagem global que dela resulta para o internauta reflita a situação judicial atual, o que obriga nomeadamente a que hiperligações para páginas web que contenham informações a este respeito surjam em primeiro lugar nesta lista". Esse acórdão vem exercendo grande influência na França, tanto na justiça ordinária quanto na justiça administrativa. Em 27/11/2019, a Corte de Cassação francesa (Arrêt n°990), cassou um acórdão da Cour d'Appel de Paris, que havia negado um pedido de desindexação formulado por alguém que fora condenado por estelionato em 2011. A notícia da condenação, bem como de sua confirmação em segundo grau, fora publicada pelo jornal local, e se encontram arquivadas no seu site. Em 2017, quem pesquisasse o nome deste cidadão no Google seria automaticamente enviado a essas duas notícias.  O interessado, então, pediu ao Google que efetuasse a desindexação de seu nome de tais arquivos. Em razão da negativa do Google, ele acionou, sem sucesso, a justiça comum. Fazendo expressa referência aos critérios fixados no citado acórdão do TJUE, disse a Corte de Cassação que devia ser analisado especificamente "se a inclusão daquelas páginas na lista dos resultados obtidos a partir de uma pesquisa pelo nome de M.X. realmente atendia a um importante motivo de interesse público, tal como o direito à informação da sociedade". No caso em tela, recriminou-se a decisão de segundo grau por ter feito menção apenas ao droit à l'information des internautes, sem efetivamente debruçar-se sobre possíveis formas de proteção dos dados pessoais de M.X. Em 6/12/19 foi a vez do Conseil d'État julgar treze demandas envolvendo direito à desindexação na internet, relativo a dados de natureza criminal. O tribunal aproveitou a oportunidade para formular critérios disciplinadores do direito ao esquecimento no âmbito da justiça administrativa francesa. Foram estabelecidas três categorias distintas de dados: dados sensíveis (concernentes à saúde, vida sexual, opiniões políticas, convicções religiosas, etc); dados criminais (relativos a um procedimento judiciário ou a uma condenação penal); dados relativos à vida privada, mas não sensíveis. A proteção conferida às duas primeiras categorias é mais elevada: não se pode negar a desindexação do nome de alguém a páginas da web que contêm tal tipo de informações, salvo se se tratar de informação strictement nécessaire ao público em geral. Para a terceira categoria, basta que haja um interesse preponderante da sociedade ao acesso à informação. Além disso, também devem ser levados em conta o papel social do demandante (sua notoriedade, suas funções públicas ou na sociedade) e as condições sob as quais os dados e se tornaram acessíveis (como, por exemplo, se o próprio interessado tornou pública tais informações). Um dia depois desta decisão, foi a vez do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha também abordar o tema. Tratava-se de pedido de desindexação do nome de um ex-condenado criminalmente - fato ocorrido trinta anos antes. O resumo que se faz a seguir baseia-se na síntese feita por Ingo Sarlet5. A ação fora movida contra o periódico Der Spiegel, que em 1982 e 1983 publicara três reportagens sobre a condenação de um cidadão alemão à pena de prisão perpétua, por ter assassinado duas pessoas. Os arquivos digitalizados dessas reportagens estavam acessíveis na rede. O cidadão interessado ajuizou, sem sucesso, demanda na justiça ordinária, buscando impedir o acesso. Na última instância, o BGH afirmou que "a opinião pública tem um interesse legítimo em se informar sobre fatos historicamente relevantes". Desta decisão o interessado interpôs uma reclamação constitucional ao TCF, que acolheu o pedido e procurou fornecer critérios para uma adequada ponderação dos relevantes interesses em conflito. Sinalizou a Corte que "as circunstâncias temporais são relevantes e devem ser consideradas". Assim, tratando-se de informações sobre fatos criminosos atuais, o interesse público prepondera sobre o individual. A passagem do tempo, porém, altera esse equilíbrio, pois erros não devem ficar permanentemente sujeitos ao escrutínio público, a fim de se permitir um recomeço, sem que isso implique que alguém possa, discricionariamente, definir quais informações podem ser desindexadas na internet. Especificou o TCF que "o significado concreto do transcurso do tempo depende do conteúdo e impacto das notícias sobre a vida privada e o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas afetadas, o que, por sua vez, guarda relação com ... sua priorização nos mecanismos de busca." Afirmou-se que a decisão do BGH "não levou suficientemente a sério o seu dever de proteção do direito geral de personalidade do reclamante". Segundo o TCF, a justiça ordinária deveria ter considerado a possibilidade de se adotar alguma medida protetiva, ainda que sem afastar o acesso ao conteúdo dos arquivos eletrônicos. Em 27/7/2020, o BGH voltou ao tema (VI ZR 405/18). Tratava-se de pedido de exclusão de link a uma matéria que fazia referência nominal a um empresário, vinculando-o a suposta fraude. Interpretando o art. 17 do Regulamento Europeu de Proteção de Dados, afirmou-se inexistir nenhuma presunção de prioridade do direito individual, pois os direitos fundamentais contrapostos (do motor de pesquisa, dos usuários, do público em geral e do provedor de conteúdo do link atingido) deveriam ser colocados em plano de paridade no juízo de ponderação. Como se vê, a matéria continuará polêmica durante bom tempo. O único consenso no contexto aqui tratado passa pelo reconhecimento da importância dos detalhes fáticos do caso concreto. Enfim, em alguns casos, mas nem sempre, até condenados no mundo real podem merecer absolvição no universo digital.  *Eugênio Facchini Neto é doutor em Direito Comparado (Florença); mestre em Direito Civil pela USP; professor Titular do PPGD da PUC/RS; professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/Ajuris; desembargador do TJ/RS. __________ 1 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the Digital Age. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 201. 2 RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 3 BINENBOJM, Gustavo. Direito ao esquecimento: a censura no retrovisor. Jota. 16/10/2014. Disponível aqui. Acesso em 23/6/2020. 4 Uma boa síntese desses casos se encontra em SARLET, Ingo W.; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao "esquecimento" na sociedade da informação. Porto Alegre: Liv. do Adv., 2019, p. 108/111. 5 SARLET, Ingo W. Direito ao esquecimento e a nova decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. CONJUR, 7 de dezembro de 2019. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
terça-feira, 22 de setembro de 2020

Responsabilidade parental em tempos digitais

Os hábitos digitais permeiam a vida das pessoas em diversas esferas, desde o trabalho às atividades recreativas. A incorporação do mundo digital ao cotidiano é um caminho que se acentua sem volta. Alguns dos benefícios e malefícios desse contexto gradativamente vão se revelando e, certamente, muitos ainda estão por vir. Como parte dessa sociedade digital, crianças e adolescentes estão cada vez mais integradas a esse contexto. A Internet possibilita a efetivação de diversos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Facilita o acesso à educação, à informação, à cultura, ao lazer e, até mesmo, à convivência familiar, como os tempos de pandemia estão ressaltando. Há novos recursos para a profissionalização e para a realização da pessoalidade desses humanos em desenvolvimento. Paralelamente a esses os diversos benefícios, vários riscos e danos surgem e se concretizam na esfera existencial desse grupo. Com a era digital, o bullying tradicional se tornou mais complexo, com potencial ainda maior de atingir diversas esferas da personalidade de crianças e adolescentes. O Cyberbullying pode acontecer por meio do anonimato, ainda, dificulta a reação da vítima, deixa registros indeléveis no espaço sem fronteiras do mundo digital, podendo atingir um número potencialmente maior de expectadores1. Em alguns casos, leva à automutilação e ao suicídio2. A pedofilia ganha novos veículos para invadir a intimidade, podendo partir do vizinho a um agente do outro lado do mundo. Imagens íntimas de menores sem o respectivo consentimento são veiculadas na Internet também em decorrência de relações sociais entre adolescentes na fase de iniciação sexual, seja em contextos de conflito como nos casos de pornografia de vingança ("revenge porn"). No meio disso, ainda, se verifica o discurso de ódio, comumente inserido nas mídias sociais, tendo potencialidade para atingir a identidade e a liberdade de crianças e adolescentes, em decorrência, por exemplo, da etnia, modelo familiar, opção sexual e religião. No contexto desse modelo digital, grupos terroristas aproveitam-se para cooptar integrantes ao redor do planeta, tendo como seus principais alvos crianças e adolescentes, justamente por estarem em desenvolvimento. Crianças e adolescentes podem se tornar, ainda, alvos de ataques cibernéticos. Em março de 2019, o Youtube infantil foi invado por hackers, passando a exibir em meio a vídeos voltados para a faixa etária de até 13 anos, a boneca Momo que os induzia a praticar automutilação ou suicídio3. Nota-se, ainda, que o vício no uso das redes sociais e Internet tem sido cada vez mais debatido, de forma que, recentemente, a Organização Mundial da Saúde reconheceu como distúrbio mental a dependência de games em algumas situações4. Os menores ficam ainda mais suscetíveis a propagandas abusivas, seja por anúncios subliminares em vídeos recreativos, seja por posts supostamente despretensiosos de digital influencers5. A pretensão deste texto não é aterrorizar pais e educadores, mas o tema tem ganhado proporções de saúde pública, como se observa de várias recomendações da Organização Mundial de Saúde6. Naturalmente, os debates já repercutiram nos Tribunais. Diversos aspectos jurídicos são observados no envolvimento de crianças e adolescentes no mundo digital. Entretanto, este texto pretende propor reflexões sobre a responsabilidade civil dos pais em relação aos atos de seus filhos para com terceiros, e, especialmente, em relação a seus próprios filhos. No primeiro caso, as soluções jurídicas são claras e não comportam muitos debates quanto à função compensatória da responsabilidade civil. Nas hipóteses nas quais um menor viola a honra e a imagem de terceiros, aplica-se o art.  927, inciso I do Código Civil, que dispõe que os pais são responsáveis pela reparação dos atos dos filhos que estiverem sob sua autoridade. O menor ainda tem reponsabilidade subsidiária a dos pais, casos estes não tenham condições econômicas para arcar com o dano7. Apesar da possibilidade, na prática serão raras as situações nas quais o filho terá maior capacidade financeira que seus ascendentes de primeiro grau. Ilustrativamente, em fevereiro de 2020, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve sentença que condenou os pais a pagar indenização por danos morais pelo fato de o filho ter compartilhado, via WhatsApp, fotos íntimas da ex-namorada. O colegiado confirmou o valor da indenização, R$ 15 mil, e a determinação de que o aplicativo impeça o compartilhamento das imagens8. Embora não trate especificamente da responsabilidade civil dos pais em relação aos atos dos filhos menores, o Marco Civil da Internet, lei 12.965 de 2014, comporta medidas que podem inibir o prolongamento do ilícito. No caso de mensagens ou imagens que violem a honra ou a privacidade de terceiros, poderá a vítima, nos termos do art. 19, ajuizar ação em face do provedor de Internet para que lhe seja determinado, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo fixado, tornar indisponível o conteúdo danoso. Deve o autor da ação, como dispõe o § 1º do artigo, identificar de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de maneira a permitir por parte do provedor de internet a localização inequívoca do material9. Se o ato ilícito envolver a divulgação de imagens ou outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, sem o consentido da vítima, o art. 21 do Marco Civil da Internet autoriza à vítima acionar o provedor de Internet via notificação extrajudicial para que retire o conteúdo danoso. Também deverão ser indicados os URLs na notificação10. Ponto ainda incipiente na doutrina se refere a segunda reflexão proposta por este texto, a responsabilidade civil dos pais decorrente da omissão dos deveres de cuidado com os próprios filhos no mundo digital. Antes de prosseguir na análise dos aspectos jurídicos, é preciso reconhecer que a questão é complexa e bastante controversa. A inserção das crianças e adolescentes no ambiente digital é fato. Muitas vezes, os pais acabam se socorrendo da Internet para entreter os filhos e, em tempos de pandemia, até mesmo conseguir efetivar compromissos de trabalho. Assim, não se trata aqui de criticar a autorização para que os filhos usem os diversos recursos ofertados pelos celulares, tablets e computadores. Os desafios familiares no mundo digital são imensos e complexos. Até mesmo algumas instituições de ensino, há alguns anos, já vinham inserindo atividades on line para crianças e adolescentes. Agora, inclusive os eventos sociais das escolas, como festas culturais, estão ocorrendo por plataformas de interação coletiva. Ao contrário, é preciso concordar com os estudiosos que afirmam que o acesso à Internet é direito fundamental das crianças e adolescentes11. Mas o exercício desse direito impõe riscos, sendo dever dos pais tomar medidas que os minimizem. Dentre as soluções, está o uso de aplicativos e softwares que bloqueiam conteúdos impróprios para a idade. Em algumas situações, desde que com o objetivo de proteger e no melhor interesse da criança e do adolescente, caberá aos pais interferir e invadir a esfera de privacidade dos filhos para averiguar a ocorrência de riscos e danos12. Entretanto, pais e educadores devem buscar o equilíbrio entre o cuidado e a superproteção que acarreta a invasão desarrazoada e injustificada à privacidade dos filhos. Sem sombra de dúvidas, é um desafio que o mundo digital impõe aos pais. O poder familiar tem como finalidade primordial promover o desenvolvimento do filho, devendo ser exercido sempre em prol do melhor interesse do filho. Assim, os deveres se sobrepõem aos poderes inseridos nesse múnus. Tanto o excesso quanto a falta de atuação dos pais no exercício do poder familiar, se causadores de danos à existência da criança e do adolescente, podem ensejar a responsabilização civil em favor dos filhos. Há, nessas hipóteses, um comportamento contraditório à norma (art. 227 e 229 da Constituição Federal e 1.634 do Código Civil de 2002). A responsabilização civil dos pais em relação à omissão de cuidado consubstanciada na ausência da figura paterna ou materna na vida filho já está pacificada nos Tribunais13. Tem-se um ilícito agravado pelo fato de se protrair no tempo, podendo, até mesmo, afetar a estruturação psíquica do menor ao longo de toda a vida14. A omissão de cuidado decorrente da negligência com a interação da criança e do adolescente no mundo digital também tem aptidão para acarretar danos que acompanharão a pessoa ao longo da vida, como enunciado nos parágrafos iniciais deste texto. Por isso, alguns parâmetros devem ser observados para se verificar a omissão de cuidado dos pais no caso, pois não é toda e qualquer ausência de atuação que causará a respectiva responsabilização. É necessária a averiguação de culpa, por meio em standards de comportamento esperado dos pais. Em princípio, a reiteração da negligência é um pressuposto para a responsabilização civil, sob pena de insegurança jurídica. O dano injusto à esfera existencial da criança ou do adolescente deve ser verificado e efetivado em situação no mundo digital. Ademais, ocorrência do dano deve ter correlação necessária à ausência de medidas de cuidado dos pais. Assim como no dano convivencial acarretado pela omissão de cuidado, é preciso a constatação clara de que o fato omissivo do pai ou da mãe foi a causa necessária do evento lesivo, sobremaneira por não existir outra causa que justifique a lesão15. Tendo em vista a própria circunstância do poder parental e da situação de pessoa em desenvolvimento, a busca por responsabilização civil dos pais poderá, muitas vezes, ser efetivada com o advento da maior idade. Como a prescrição não corre entre pais e filhos durante o exercício do poder familiar (art. 197, I do CC/02), aquele que sofreu danos no mundo digital contará com o prazo de 3 anos contatos da sua maior idade para ajuizar a ação indenizatória (art. 206, §3º, V do Código Civil). De toda forma, ainda que os pais sejam responsabilizados civilmente e o filho receba a indenização anos mais tarde, o dano já foi efetivado. A função compensatória da responsabilidade civil, embora seja uma resposta desejável à vítima, é incapaz apagar o dano existencial ou moral. Algumas marcas são indeléveis e seguirão na vida adulta. Em matéria de acesso de crianças e adolescentes ao mundo digital, é preciso envidar esforços em prevenção. Família, Estado e sociedade precisam se unir em prol de uma cultura de educação e prevenção de danos digital. *Ana Cristina de Melo Silveira é doutoranda em Direito Privado pela PUC-Minas. Mestre em Direito. Pesquisadora, consultora de pesquisa e escrita acadêmica. Professora. Advogada. __________ 1 SCHREIBER, Anderson. Cyberbullying: responsabilidade civil e efeitos na família. Carta Forense, São Paulo, 04 out. 2018. Disponível aqui. Acesso em 09 set. 2019. 2 PORTELA, Graça. Cyberbullying e casos de suicídio aumentam entre jovens. Agência Fiocruz de Notícias, Rio de Janeiro, 24 fev. 2014. Disponível aqui . Acesso em 10 out. 2019. 3 Neste sentido, verificam se as reportagens: Reapariação da boneca Momo em vídeo acende alerta sobre controle do que as crianças veem na web. Acesso em 20/3/2019. Desafio que induz jovens à automotilação se esconde em vídeos infantis, alertam escolas inglesas. O Globo.  Disponível aqui. Acesso em 20/3/2019. 4 Gaming disorder. Acesso em 14/10/2019. 5 Importante texto sobre a responsabilidade civil dos digital influencers foi publicado na Revista do Iberc v. 2, n. 2, p. 01-21, mai.-ago./2019. BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César Silva, BRITO, Priscila Ladeira Alves de. publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. 6 Em 2019, a OMS recomendou a redução do uso de aparelhos eletrônicos para crianças abaixo de 5 anos. Disponível aqui. 7 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 614. 8 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Pais indenizarão ex-namorada do filho por danos morais. 10 de fevereiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 10. fev. 2020. 9 Depreende-se do caput do art. 19 que, o provedor de internet somente será responsabilizado civilmente pelo conteúdo danoso se, primeiramente, a vítima indicar inequivocamente o conteúdo, listando, assim, os URLs. Em segundo, se a determinação judicial para a retirada do conteúdo não for realizada no prazo nela determinado. 10 Nos termos do caput do art. 21, o provedor será responsabilizado subsidiariamente pela violação se não promover, de forma diligente, de acordo com seus limites técnicos, a indisponibilidade do conteúdo após a notificação extrajudicial. 11 LIMA, Taísa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Ensaios sobre a infância e adolescência. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 88. 12 MENEZES, Joyceane Bezerra de. A família e os direitos da personalidade. IN MENEZES, Joyceane Bezerra de; MATOS, Ana Carla Harmatiuk (Org.) Direitos das famílias por juristas brasileiras. São Paulo: Sarava, 2013. P. 91-130. p. 117. 13 Neste sentido, a decisão do Recurso Especial 1.159.242 de abril de 2012 se destaca por tratar o cuidado como um valor objetivo. 14 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 957. 15 FARIAS, Cristiano; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 962. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Na esteira da grave crise econômica instaurada a partir 2014, quando se assistiu à significativa redução do valor do metro quadrado e, consequentemente, a sistemáticos desfazimentos de negócios por adquirentes de unidades autônomas fruto de incorporação imobiliária, frustrados em suas expectativas de lucro, editou-se a lei 13.786 em 2018 com o escopo de reafirmar a irretratabilidade das promessas de compra e venda. Conhecida como Lei dos Distratos Imobiliários, a novel legislação cuidou de regular, dentre outras questões, os efeitos do inadimplemento do promitente comprador. Para o tema enfrentado nesta breve coluna, merecem destaque os arts. 35-A e 67-A, atualmente parte integrante da lei 4.591/64 (Lei das Incorporações Imobiliárias). O art. 35-A determina que os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes da incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo que, dentre outras informações, deverá conter, nos termos do inciso VI, "as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento de obrigação do adquirente ou do incorporador, com destaque negritado para as penalidades aplicáveis e para os prazos para devolução de valores ao adquirente". Do dispositivo extrai-se que o desfazimento do negócio poderá ocorrer em duas situações distintas: por meio de resolução motivada por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente ou do incorporador ou por meio do distrato. Nesse último caso, é importante sublinhar que, por se tratar de hipótese de resilição bilateral, faz-se imprescindível o consenso entre as partes relativamente à intenção de desfazer a promessa de compra e venda anteriormente celebrada. Não há aqui direito potestativo assegurado ao contratante de resilir unilateralmente. O art. 67-A corrobora referido entendimento, dispondo que em "caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: [...] II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga". Cuidando-se de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação, a retenção pode ser de até 50% (cinquenta por cento) da quantia paga, nos termos do §5º do mesmo dispositivo. Em definitivo, e reforçando a irretratabilidade das promessas de compra e venda, os dispositivos mencionados apenas admitem o desfazimento do negócio mediante distrato - que requer, repita-se, o consenso entre as partes - ou resolução por inadimplemento absoluto de uma das partes; soma-se a essas hipóteses a resolução inimputável, decorrente de impossibilidade ou onerosidade excessiva da prestação. Não há autorização, portanto, para denúncia, ou seja, resilição unilateral do negócio. Nesse sentido, de regra, não é dado ao adquirente desistir do ajuste apenas porque o investimento feito não se mostrou tão rentável quanto esperado, tendo em vista a desvalorização no preço do metro quadrado. Cuida-se, em verdade, de hipótese de inadimplemento da prestação, mais especificamente, de mora, já que a prestação ainda se afigura possível para o devedor e útil para o credor, que poderá perseguir a execução específica compelindo o promitente comprador a pagar as prestações conforme ajuste contratual. Recorde-se que não é o devedor quem escolhe o remédio a ser aplicado ao seu inadimplemento, pelo que, repita-se, não pode o promitente comprador optar pela resolução diante do seu desinteresse em adimplir suas prestações por não se afigurar o negócio tão lucrativo como outrora. Situação que pode conduzir a solução diversa é aquela em que o adquirente declara ao incorporador que já não pode arcar com as prestações ajustadas por limitações financeiras. Isso porque, embora a hipótese também se qualifique como inadimplemento - e isso é fundamental sublinhar -, no mais das vezes, tratar-se-á de inadimplemento absoluto, não já de mora, a autorizar o credor a resolver a relação obrigacional, com todos os efeitos daí decorrentes. Caberá, por conseguinte, ao incorporador avaliar se, a despeito da declaração do devedor, há chances reais de obter o cumprimento das prestações por meio da execução do contrato: verificando a efetiva falta de recursos financeiros, eventual execução afigurar-se-ia infrutífera e dispendiosa, a afastar o interesse do credor em perseguir o cumprimento específico; nesse cenário, configurado estará o inadimplemento absoluto, restando ao incorporador o caminho da resolução - já que a execução pelo equivalente tampouco lhe atenderia tendo em vista as restrições patrimoniais do devedor. Seja como for, fato é que, diante de inadimplemento absoluto, poderá o incorporador reter até 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga ou então de até 50%, caso se trate de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação. Cuida-se, a toda evidência, de cláusula penal compensatória, cuja função é prefixar as perdas e danos. O intuito do legislador ao prever referidas porcentagens foi, inequivocamente, limitar a autonomia privada na fixação do montante da cláusula, impondo uma "tarifação" da indenização devida em caso de desfazimento do contrato. Ao que parece, o legislador, ao estabelecer limite máximo para a fixação da cláusula penal compensatória no âmbito das promessas de compra e venda regidas pela lei 4.591/64, acabou por afastar desses contratos a aplicação do art. 413 do Código Civil, segundo o qual "a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". Isso porque não se afigura possível configurar os pressupostos necessários à redução equitativa da penalidade: de um lado, o promitente vendedor não se beneficiará do cumprimento parcial da prestação, que será restituída ao promitente comprador - salvo a indenização ajustada -, e tampouco o montante pactuado se revelará manifestamente excessivo, pois o próprio legislador já fixou o teto que entende razoável levando em consideração, justamente, a natureza e a finalidade do negócio. De todo modo, o que merece reflexão mais detalhada é a possibilidade, nas hipóteses de resolução, de afastamento da incidência da cláusula penal. E ao que tudo indica, há duas situações nas quais o promitente vendedor não poderá reter parte das parcelas pagas. A primeira delas decorre da própria lei, estando contemplada no §9º do Art. 67-A: nos termos do referido dispositivo, não incidirá a cláusula penal contratualmente prevista quando o adquirente que deu causa ao desfazimento do contrato encontrar comprador substituto que o sub-rogue nas obrigações originalmente assumidas, desde que haja a devida anuência do incorporador e a aprovação dos cadastros e da capacidade financeira e econômica do comprador substituto. Nesse caso, estará caracterizada hipótese de cessão de posição contratual, transferindo-se ao novo adquirente a obrigação de pagar o saldo devedor e o direito de exigir a outorga da escritura definitiva após a quitação do preço.  O segundo caso está inequivocamente atrelado à ausência, em concreto, dos pressupostos indispensáveis à aplicação da cláusula penal. Assim, a retenção de parte das parcelas pagas pelo promitente comprador não terá lugar quando, por óbvio, o próprio promitente vendedor não executar as prestações que lhe cabem, seja por fato a ele imputável - caracterizando-se o seu inadimplemento e sendo-lhe, portanto, imposto o dever de pagar perdas de danos ao promitente comprador -, seja em razão de caso fortuito ou fato do príncipe. Pense-se, por exemplo, na hipótese em que o promitente comprador não consegue obter o financiamento junto à instituição financeira porque a incorporadora não conseguiu averbar a conclusão da obra no Registro de Imóveis dentro do prazo originalmente pactuado. Deverá, ainda, o incorporador restituir integralmente as parcelas pagas do preço quando a construção do empreendimento se tornar impossível em razão da desapropriação do imóvel. Além disso, a leitura em conjunto dos arts. 393 e 408 do Código Civil permite concluir que a cláusula penal não será aplicável quando a inexecução da obrigação do promitente comprador decorrer de caso fortuito ou força maior, já que ausente a imputabilidade necessária à configuração do inadimplemento absoluto. Advirta-se, todavia, que não se enquadra nessa hipótese o eventual desequilíbrio da situação patrimonial do promitente comprador capaz de impedi-lo de honrar suas dívidas, ainda que decorrente de fato a ele inimputável, como ocorre quando, em virtude de crise econômica ocasionada por uma pandemia, vem a perder o emprego. Há aí, como já afirmado, inadimplemento, fazendo-se presente a imputabilidade necessária à incidência da cláusula penal (art. 408, CC). Embora, nesses casos, a origem do desequilíbrio patrimonial remonte a um caso fortuito (pandemia que levou ao desemprego), fato é que oscilação patrimonial é risco do devedor, pelo que é ele quem deve assumir as consequências daí advindas. Não se afigura possível, portanto, sequer qualificar tal situação como impossibilidade subjetiva da prestação, a qual requer que a prestação se torne efetivamente impossível para o concreto devedor da relação, vale dizer, conquanto aquele devedor esteja impossibilitado de cumprir, outra pessoa pode fazê-lo. Note-se, contudo, que apesar subjetivo, para qualificar-se como impossibilidade, o obstáculo imposto ao devedor há de ser generalizável, de modo que qualquer outro devedor colocado na mesma situação tampouco poderia cumprir a prestação, como se verificaria se o devedor, acometido por certa enfermidade, não pudesse adimplir prestação personalíssima. Bem se vê, por conseguinte, que o mesmo raciocínio não sem aplica em caso de desequilíbrio patrimonial do promitente comprador, já que sua situação não é generalizável, pois outros devedores, a despeito de perderem o emprego, podem, por exemplo, ter economias suficientes a fazer frente às prestações devidas. Casos como esse devem ser resolvidos com institutos jurídicos que levem em conta não apenas o contrato de promessa de compra e venda isoladamente considerado, mas a global situação patrimonial do devedor.  Cuida-se, com efeito, de problema atinente a patrimônio, e não a contrato. *Aline de Miranda Valverde Terra é professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica. **Roberta Mauro de Medina Maia é professora de Direito Civil da PUC-Rio. Advogada. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
No último dia 5 de setembro encerrou-se o julgamento, por meio do plenário virtual, do tema 362, concernente à responsabilidade civil do Estado por ato praticado por preso foragido. O recurso extraordinário apreciado foi o de número 608.880/MT. O julgamento foi no sentido do provimento do recurso, por maioria de votos, vencido o relator original, Min. Marco Aurélio. O voto vencedor foi da lavra do Min. Alexandre de Moraes, malgrado também o Min. Edson Fachin tenha aberto divergência. Foi firmada a seguinte tese: "Nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada". O julgamento tratou de questões muito problematizadas pela doutrina e jurisprudência, a saber, o regime de responsabilidade civil aplicável na hipótese de omissão do Estado e os limites para o reconhecimento do nexo de causalidade, imprescindível em qualquer regime para que se possa obrigar alguém a reparar um dano. Curioso que o resultado remete à solução adotada no julgamento do RE 130.764/PR, cujo relator foi o Min. Moreira Alves e cuja conclusão se deu nos idos de 1992. Ou seja, um arco de mais de vinte e cinco anos1, dado revelador da dimensão da insegurança jurídica que o sistema brasileiro nos impõe, isso é, aos seus cidadãos. E, a despeito de a conclusão do julgamento representar evolução no enfrentamento do tema da responsabilidade do Estado, é preciso reconhecer que há muito ainda a avançar para que as controvérsias quanto àqueles dois aspectos mencionados (regime aplicável e extensão do nexo de causalidade) sejam sanadas. No que toca ao primeiro aspecto, o acórdão proferido não agrega muito infelizmente. O fundamento, no voto vencedor, para a adoção do regime de responsabilidade objetiva é basicamente a alusão à sua adoção pretérita em outros julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), tangenciando os limites da fundamentação per relationem. Nada obstante, é conhecida a existência da divergência, doutrinária e jurisprudencial, com relação à adoção do regime objetivo para as hipóteses em que não se identifica um ato, mas uma omissão, como elemento de fato para formalizar a relação obrigacional reparatória2. Basicamente, os que defendem o regime objetivo nesta situação alegam que o art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988 (CF) não distingue se a causação decorreu de ação ou omissão, bastando a presença do denominado risco administrativo3. No entanto, mesmo em um contexto em que a reparação do dano sobressai à repressão ao ilícito, parece consolidado, ao menos ao nível do discurso, o entendimento de que a responsabilidade objetiva não impõe, nem mesmo ao Estado, responsabilidade integral. Ou seja, ainda se acredita dever haver limites para o reconhecimento do dever de indenizar. O problema é que os parâmetros para o reconhecimento da responsabilidade não devem ser uma "régua flexível" e muito menos podem ter seu conteúdo fixado discricionariamente, caso a caso4. É nesta ordem de ideias que se reforça ser a causalidade o filtro por excelência no regime de responsabilidade civil objetiva5. Este filtro é ainda mais necessário nas hipóteses em que se trata de responsabilidade por omissão. Quando se cuida da responsabilidade do Estado costuma-se sustentar que a omissão pode ser causa de um dano quando violado um dever específico de agir. Adota-se, portanto, uma distinção entre omissão genérica e omissão específica, sendo que apenas essa última seria considerada causa6. Não se pode deixar de observar que, neste aspecto, existe uma (desconfortável?) aproximação entre as teses subjetivistas e objetivistas da responsabilidade do Estado. A omissão enquanto violação a um dever específico de agir não é uma construção substancialmente diversa da de culpa7, donde se reincorporar, na responsabilidade do Estado por omissão, a exigibilidade de um ilícito praticado pelo agente estatal (no sentido amplo utilizado pelo constituinte) como fator de imputação8, razão pela qual acredita-se minada a propalada unidade de fundamento em torno do risco administrativo9. Claramente, assumir uma omissão genérica como fundamento para a responsabilização do Estado degeneraria para um regime de responsabilidade integral10. Neste sentido, a tese proposta pelo Min. Alexandre de Moraes acertadamente utilizou o critério do nexo de causalidade para a solução da questão da responsabilidade estatal11-12. E, também acertadamente, adotou aquela que se acredita a concepção mais correta de nexo de causalidade. Conquanto o regime de responsabilidade do Estado encontre previsão constitucional, não se pode ignorar sua concretização infraconstitucional. Neste sentido, a legislação civil, desde o Código Civil revogado (art. 1060) até o presente (art. 403) aponta no sentido de que o nexo causal deve observar o limite identificado pela teoria do efeito direto e imediato. Se a legislação conforma uma limitação razoável e consentânea com o modelo constitucional de tutela da pessoa humana, não se pode ultrapassá-la invocando um princípio em sua generalidade. A corrente doutrinária ordinariamente identificada como de direito civil constitucional é justamente criticada pela pouca (ou nenhuma) segurança jurídica que um modelo que sustenta a revisão constante e indiscriminada da legislação pelos magistrados com fundamento em inobservância de princípios constitucionais (muito vezes implícitos e quase sempre aplicados em sua máxima generalidade, não raro provocando, portanto, surpresa nas partes). Este não é, porém, senão uma visão deturpada e ativista da doutrina13. A teoria do efeito direto e imediato promove distinção entre uma acepção naturalística de causa e uma concepção jurídica de causa, sendo por isso também denominada de teoria da interrupção do nexo causal. Seu objetivo é delimitar, de maneira razoável, o que deve ser imposto ao agente responsável e o que deve ser suportado pela vítima ou por terceiros. A lição clássica de Agostinho Alvim é no sentido de que há causa quando o fato cogitado for necessário à causação do dano. No entanto, haverá interrupção do nexo causal se o fato cogitado não for causa exclusiva do dano14. Analisando a situação concreta objeto do julgamento em apreço, de pronto se identifica que a prática do ato danoso, em si, não é atribuída a agente estatal, mas ao foragido. O dano tem por causa o ato praticado pelo foragido, terceiro em relação ao Estado e à vítima. A tentativa de imputação de responsabilidade ao Estado decorre do foragido se encontrar livre, não encarcerado. No entanto, confundir o estar livre com a causa do dano é ignorar todas as circunstâncias específicas do ato praticado pelo foragido15. Mesmo que se admita a omissão, portanto, deve ceder às causas sucessivas e independentes pertinentes ao ato danoso. O voto do Min. Alexandre de Moraes aponta, como exemplos, o intervalo de tempo entre a fuga e o ato lesivo e a formação de quadrilha. Muitos presos livres sequer voltam a delinquir e não se pode presumir a periculosidade do foragido para falar de agravamento de risco. Se for assim, ter-se-ia que avaliar a periculosidade específica, donde não caberia falar em responsabilidade por homicídio se o foragido fora condenado por delito não violento. Em suma, aplicando a teoria do efeito direto e imediato, se a ação do agente causador do dano imediata à omissão estatal não for a causa do dano, não haverá nexo causal em relação ao Estado. Evidente que a adoção deste filtro reduz as hipóteses de responsabilidade do Estado e a queixa que se identifica é se é uma solução justa. Se o que está em jogo é uma visão de justiça distributiva, para promover uma distribuição social do prejuízo sofrido pela vítima, é preciso que, primeiro, se admita expressamente essa preocupação, porque então se poderá ou abandonar a exigibilidade da causalidade16 ou então buscar elaborar uma teoria mais condizente ou, ainda, um outro elemento filtrante. No entanto, haver-se-á de arcar com as consequências desta alternativa. Ampliar o alcance da responsabilidade do Estado possui custo social não apenas financeiro, porque os efeitos da condenação nem sempre resultam em melhoria. Lembra-se da pouca ou nenhuma eficácia preventiva da responsabilidade em relação à Administração Pública, cuja natureza rotativa dos seus dirigentes dificulta a incorporação dos efeitos dissuasórios de uma condenação. Quando muito, caberá ao corpo efetivo dos servidores, cuja competência para promover alterações é sabidamente limitada, promover essa incorporação. Mais importante, é preciso avaliar com cautela o efeito de uma condenação. A evasão do regime fechado é difícil, de modo que normalmente o foragido se evade quando no regime semiaberto, cuja vigilância menos rigorosa decorre da forma de cumprimento da pena. Se o Estado for responsabilizado de maneira ampla pelos atos praticados por foragidos desse regime, uma solução possível será ampliar a vigilância sobre estes presos para dificultar as fugas, mas outra seria recrudescer as regras de saída. Outro exemplo, quando se afirma que o Estado deve responder pelo resultado da lesão que um aluno provocou em outro no interior de uma escola, pode-se passar a mensagem de que é preciso incrementar a fiscalização sobre os alunos, adotando-se, por exemplo, detectores de metal na entrada das escolas e/ou a revista pessoal e dos pertences desses alunos, além de aumentar o efetivo de vigilantes no ambiente escolar. Além do evidente incremento do custo da administração escolar, é de se imaginar se esse seria um modelo desejável de escola. Será preciso, também, que a busca por um modelo alternativo seja promovida de maneira coerente, concatenada e pela via adequada, que não é a de decisões isoladas contra legem. Em síntese, considera-se que o modelo atual impõe a limitação da responsabilidade do Estado à partir da adoção da teoria do nexo causal enquanto efeito direto e imediato, não respondendo por omissões senão quando elas forem, necessária e exclusivamente, a causa do dano, e que a consolidação desse entendimento pela jurisprudência foi positiva, sendo o seu verdadeiro papel em um regime de precedentes. *Fábio Jun Capucho é mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP, procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e associado ao IBERC. __________ 1 O caso foi reapreciado em razão do ajuizamento de ação rescisória, cuja conclusão se deu ao final de 2005, sem modificação do resultado (Ação Rescisória 1376-1, rel. Min. Gilmar Mendes). 2 NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual da responsabilidade civil do Estado. 5ª ed., rev., atual. e amp. - Salvador: Editora Juspodium, 2018, p. 202/203. 3 É o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme assentado no julgamento do RE 841526/RS, especialmente no voto do relator, Min. Luiz Fux, que remete, dentre outras, às obras de Gustavo Tepedino e do também ministro Gilmar Mendes. 4 Embora, infelizmente, seja esta a realidade (NETTO, op. cit., p. 217). 5 Esta percepção não é original ou nova, no Brasil já a defendia Agostinho Alvim há quase sete décadas (Da inexecução das obrigações e suas consequências. 2ª ed. - São Paulo: Saraiva, 1955, p. 365). 6 Mais uma vez se socorre do voto do Min. Luiz Fux no julgamento RE 841.526/RS, onde restou expressamente consignado que o Estado responde de forma objetiva pelas suas omissões, desde que presente a obrigação legal específica de agir para impedir a ocorrência do resultado danoso, em sendo possível essa atuação (p. 16, do voto, g.n.). 7 ALVIM, op. cit., p. 264/265 8 Imputação e causalidade não se confundem e sua correlação deve ser apreciada com cuidado para evitar soluções incongruentes (SOUZA, Wagner Mota Alves de. Effusum et Deiectum: entre a causalidade e a imputação. Disponível aqui. Acessado em 11/9/2020). 9 E renovando o debate sobre a inevitabilidade e/ou imprescindibilidade de um regime único para a responsabilidade do Estado. 10 Se não há um concreto dever de agir, sequer se pode falar em omissão estatal. A análise deve ser realizada em dois passos, primeiro se avalia a violação a um dever de agir, para caracterizar a omissão estatal, e em seguida verifica-se se essa omissão poderia ser causa de um determinado dano. A identificação desse fator de imputação não prescinde, portanto, da correta avaliação do nexo de causalidade. 11 SOUZA, Eduardo Nunes de. Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção conceitual. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 3, 2018, p. 21 Disponível aqui. Acessado em 7/9/2020. 12 No RE 841.526/RS o Min. Luiz Fux, apesar de adotar o argumento da omissão específica, discriminou diversas hipóteses de rompimento do nexo de causalidade, indicando sua adesão à teoria do efeito direito e imediato (p. 26/31, do voto). Mesmo que na redação final da tese esses argumentos não constem, revelam sintonia entre os julgados em cotejo. 13 SOUZA, E. op. cit., p. 6/9. 14 ALVIM, op. cit. p. 380/381. 15 Excedendo os limites do fator de imputação, ao contrário da situação tratada por Wagner Mota Alves de Souza. 16 Acredita-se, no entanto, que a adoção de um fator de imposição dissociado de uma relação de causalidade opera negativamente sobre a função preventiva da responsabilidade civil. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil