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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Um dos temas relativos à responsabilidade civil do Estado que vem despertando polêmica é o da compatibilidade do art. 28 da LINDB1 com o que estabelece o §6º do art. 37 da Constituição2-3. Isso porque enquanto o último dispositivo prevê expressamente a prerrogativa de a Administração, condenada a ressarcir dano imputado a seus serviços, voltar-se em regresso em face do seu servidor, isso sempre que este tenha operado com dolo ou culpa no desempenho de suas funções, o primeiro determina que o agente público só responderá pessoalmente pelos prejuízos que causar em caso de dolo ou erro grosseiro. Dessa forma, questiona-se se o legislador ordinário poderia restringir o alcance do §6º do art. 37 da Constituição no que diz respeito à disciplina do exercício do direito de regresso do Estado. A nosso ver o art. 28 da LINDB poderia encontrar em nosso ordenamento uma hipótese de aplicação plena e outra de incidência modulada. A plena refere-se a situações em que o terceiro lesado resolve ingressar com ação de reparação não só em face do Estado como também do servidor que lhe causou o dano. Apesar de a matéria ser maltratada em nossa doutrina, entendemos, na linha do que já defendemos em outra oportunidade4, que em regra não é possível a vítima de um evento lesivo imputado à Administração simplesmente escolher, a seu talante, acionar a pessoa jurídica de direito público interno e seu órgão, ou seja, a pessoa física que titulariza uma unidade de ação estatal. Como a atuação do agente, no exercício das competências que lhe são atribuídas por lei, é imputada ao Estado5, não se verifica razão jurídica pela qual este possa ser chamado a responder com seu patrimônio próprio por atividade que é desenvolvida, não por satisfação pessoal, mas sim em prol do interesse público. Note-se que pensamento diverso inclusive colocaria o servidor público em uma situação mais arriscada, sob a perspectiva da manutenção dos seus meios de subsistência, que a experimentada por qualquer cidadão que, para o desempenho de uma atividade econômica, constitua uma microempresa de modo a separar a parte do seu patrimônio que se dispõe a comprometer para a exploração de uma iniciativa lucrativa. Como o servidor, na condição de órgão estatal, se relaciona com terceiros em nome do Estado (e não em nome próprio), eventuais prejuízos gerados por ocasião desses vínculos (assim como as vantagens respectivas) são suportados pela pessoa jurídica de direito público interno a qual ele está adstrito. Essa é a regra, que, vale dizer, atende aos anseios da sociedade por uma função pública exercida de modo impessoal e perseguindo a satisfação dos interesses gerais da comunidade, o que inclusive pode exigir atuação destemida contra poderosos, estejam estes operando no setor público ou privado. Imagine-se, por exemplo, um fiscal do meio ambiente lavrar uma multa milionária em face de um grande desmatador e o infrator, até como meio de intimidar o órgão estatal que lhe está causando embaraços, ingressar com uma demanda contra o Estado e o seu agente buscando a anulação da sanção e reparação em perdas e danos. Faria sentido em se admitir um expediente de tal tipo em nosso sistema jurídico, isso a partir de uma leitura "por tiras" dos artigos do Código de Processo Civil que dispõem sobre a formação de litisconsórcio passivo? Entendemos que não. Pois bem. E a regra de não responsabilidade direta do servidor perante terceiros admite exceções? Já defendemos que sim, em duas circunstâncias. Em havendo dolo, ou seja, intenção de o agente causar dano a terceiro, situação pode justificar o rompimento da ideia de imputação, já que o preposto do Estado estaria, com sua conduta, não realizando a missão pública a seu encargo, mas sim dando vazão a uma vontade exclusivamente sua. E em havendo erro grosseiro, acompanhado de prova pré-constituída a respeito. Numa atuação em indisfarçada violação de deveres funcionais, com menosprezo ao risco gerado a bens jurídicos alheios e às orientações existentes para a prática de uma dada tarefa, o espectro da responsabilização do servidor diretamente pelo lesado poderia ser conveniente para estimular uma postura mais cautelosa da parte daquele no cumprimento de suas atribuições. Com o art. 28 da LINDB, essa nossa posição sobre a possibilidade de terceiro litigar diretamente com o servidor que teria, com sua ação ou omissão, causado-lhe dano, ganha um argumento legal expresso. Afora essa possível aplicação, digamos "plena", do art. 28 da LINDB, ainda seria plausível vislumbrar sua incidência modulada no que se refere à ação de regresso promovida pela Administração em face do servidor que, por dolo e culpa, tenha lesado terceiros. Em que pese o §6º do art. 37 da Constituição não ter apresentado distinção acerca do grau de culpa a embasar pleitos de ressarcimento movidos pela Fazenda em face de seus prepostos, não nos parece que o legislador ordinário, numa política de promoção de uma atuação mais proativa de determinados agentes, não pudesse estabelecer parâmetros para o exercício de tal prerrogativa. Se, por um lado, pode parecer despropositado impedir que a Administração cobre de um motorista de viatura oficial os danos que este causou ao patrimônio público ao envolver-se em um acidente de trânsito por negligência ou imprudência, por outro pode ser razoável que em situações nas quais se exija uma atuação mais assertiva e ousada por parte dos prepostos estatais o Poder Público se autolimite quanto ao exercício do direito de regresso (o que poderia se dar, por exemplo, quando um policial, em perseguição de meliantes, acabe por danificar patrimônio alheio). Note-se que, nessa segunda categoria de casos, também se enquadrariam hipóteses em que se pretenda conferir maior segurança jurídica a servidores incumbidos de formular políticas públicas, campo normalmente próprio à experimentação, e no qual cada vez mais se exige adesão do setor público à inovação. Não é raro ouvir de gestores envolvidos nesse tipo de missão justificativas para inação em circunstâncias que recomendariam seu pronto agir sob a escusa de ausência de lei expressa autorizativa, ou então de receio de penalização por órgãos de controle, dentre os quais destacam-se os Tribunais de Contas. Trata-se do conhecido "apagão das canetas", contra o qual o legislador buscou oferecer contramedidas6, isso tendo a cautela de ressalvar o erro grosseiro como inadmissível, do que é ilustração patente uma tomada de decisão que se dê fora da processualidade exigida para qualquer exercício de poder estatal, em descompasso as melhores evidências científicas levadas ao conhecimento do decisor público. Diante de um cenário com tantos matizes, embora nos pareça excessivo defender a aplicação indiscriminada do art. 28 da LINDB na relação entre Administração e servidor à vista da dicção do §6º do art. 37 da Constituição, acreditamos que o dispositivo possa servir de argumento para o estabelecimento de parâmetros para uma política de regresso pelo Poder Público em que sejam previstas hipóteses nas quais este, considerando os melhores interesses do serviço público, só será exercido quando a conduta ilícita do seu preposto estiver revestida de dolo ou culpa grave (ou seja, erro grosseiro). Se isso, a nosso ver, já seria possível sob a égide do quadro normativo vigente pré-lei13.655/2018 via regulamento interno (autolimitação), com maior razão o será via aplicação parametrizada pela Administração do comando legal expresso no art. 28 da nossa Lei de Introdução.  *Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho é mestre e doutor em Direito do Estado, associado ao IBERC e juiz de Direito em SP. __________ 1 Art. 28 do Decreto-lei nº 4.657/1942 - O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (com a redação que lhe foi dada pela lei 13.655/2018). 2 Art. 37, § 6º da CR - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 3 Manifestando-se pela inconstitucionalidade do dispositivo, confira-se, por exemplo, DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil do agente público. O art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) in CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W..(coord.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - anotada, p. 401-407, São Paulo: Quartier Latin, 2019. 4 CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da. Responsabilidade pessoal do servidor por dano causado a terceiro no exercício da função administrativa in Revista Brasileira de Estudos da Função Pública - RBEFP I Belo Horizonte, ano 3, n. 7, p. 85-112, jan.-abr. 2014. 5 E aqui temos a teoria do órgão, de ampla difusão entre nós para explicar, juridicamente, a imputação de uma conduta da pessoa física a uma entidade ideal que encontra amparo no nosso Direito, no caso, o Estado. Segundo Hely Lopes MEIRELLES, interpretando a formulação de Otto Gierk sobre o assunto, pela teoria do órgão "as pessoas jurídicas expressam sua vontade através de seus próprios órgãos, titularizados por seus agentes (pessoas humanas), na forma de sua organização interna. O órgão - sustentou Gierk - é parte do corpo da entidade, e, assim, todas as suas manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade" (Direito Administrativo Brasileiro, 16. ed., São Paulo: RT, 1990, p. 58).   6 Fazendo essa leitura da introdução do art. 28 na LINDB, ver BINEMBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Art. 28 da LINB - a cláusula geral do erro administrativo in Rev. Direito Adm., Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, Rio de Janeiro, nov. 2018; MARQUES NETO, Floriano de A.; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018, Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 129 e ss.  
Recentemente, noticiou-se1 que médicos que atuam na linha de frente da Covid-19 constataram empiricamente a ocorrência de intoxicação de pacientes por excesso medicamentoso, provocada pela administração do chamado kit Covid, cujos efeitos mais graves aos usuários são lesões no fígado e sobrecarga da função renal, principalmente em pessoas com doenças preexistentes ou predisposição para essas lesões. Os mencionados profissionais também referiram que a contaminação, pelo coronavírus, dos pacientes cujo organismo tenha sido previamente castigado por excesso medicamentoso, poderia ensejar agravamento do estado clínico, com elevação dos riscos de entubação e de letalidade.2 Não bastasse isso, a imprensa difundiu a morte de pacientes após nebulizarem hidroxicloroquina, atendendo a indicação médica3. O uso de cloroquina e de hidroxicloroquina foi objeto de manifestação por parte do Conselho Federal de Medicina, no Processo-Consulta n. 8/2020 - Parecer n. 4/20204, o qual propôs considerar a sua administração, a critério do médico, em indivíduos com sintomas leves no início do quadro clínico ou naqueles com "sintomas importantes, mas ainda não com necessidade de cuidados intensivos", "em decisão compartilhada com o paciente", mediante consentimento livre e esclarecido ou autorização dos familiares, conforme o caso. Embora se trate de um parecer e não de uma resolução, essa manifestação do CFM foi interpretada como uma espécie de imunidade concedida a médicos prescritores, quanto à possibilidade de serem acusados de infração ética perante o referido órgão. Porém, a opinião daquele órgão não é decisiva para o fim de afastar eventual responsabilização penal ou civil. Ademais, tal manifestação foi emanada à luz do conhecimento científico então existente, levando também em consideração as incertezas daquele período. Tanto que a Associação Médica brasileira - AMB, em julho de 2020, afirmou que os médicos deveriam ter autonomia para receitar medicamentos, e, em março de 2021, passou a não recomendar o uso de remédios sem eficácia comprovada para tratar a Covid-195. Isso ocorreu porque estudos posteriores demonstraram que a cloroquina não traz benefícios e que o tratamento com hidroxicloroquina está associado ao aumento da mortalidade de pacientes com Covid-196. A questão que se coloca - e que certamente será discutida em processos judiciais no futuro próximo - diz respeito a responsabilidade do médico que prescrever esses medicamentos e vier a ser constatado que não só foram ineficazes para a prevenção da doença ou para a sua menor virulência, como ainda acarretaram danos colaterais importantes aos usuários. Para tratar dessa responsabilidade, devem ser apontadas algumas premissas quanto ao que será objetivamente exposto e defendido nesse texto: 1º. O médico tem o dever de exercer a sua profissão "dentro de parâmetros reconhecidos e estabelecidos pela lex artis"7. Em geral, não há obrigação de cura, mas de cuidado adequado segundo as boas práticas8, além do dever de informar e esclarecer.9 2º. O médico deve estar atualizado quanto ao conhecimento científico que envolve a sua especialidade10 (princípios fundamentais V e XIX do Cap. I do Código de Ética Médica-CFM) considerada a época da prescrição e, se não puder acompanhar o que há em outras especialidades para as quais possa prestar atendimento, poderá recusá-lo, se houver disponibilidade por parte de outros profissionais da área na mesma localidade. 3º. Não é considerado válido o consentimento do paciente quanto a atos profissionais que não constituam boas práticas11, inclusive as não respaldadas cientificamente. 4º. Ao início da pandemia, quando o vírus e a doença eram desconhecidos, permitia-se que médicos tentassem, via prescrição off-label, atenuar ou suplantar a doença. Atualmente, existem estudos que indicam com maior precisão o que é admissível e o que não é, em matéria de prescrição para Covid-19, inclusive considerando as diferentes fases da doença e o estado clínico do paciente. 5º. Tentativas de uso off-label de alguns medicamentos ao início da pandemia foram não só toleradas, mas incentivadas por órgãos de controle sanitário em todo o mundo, o que ainda persiste quanto a certos medicamentos, como os anticoagulantes, os anti-inflamatórios e os antibióticos.12 Algumas dessas tentativas envolveram os remédios componentes do kit-covid e, como visto, tiveram sua eficácia descartada em posteriores estudos científicos publicados em periódicos qualificados13. Assim, o médico: (1) sem haver estudos, pode realizar prescrição off-label em casos extraordinários que demandem intervenção (situação presente ao início da pandemia), desde que seja cientificamente aceitável segundo o conhecimento científico existente ao tempo da prescrição; (2) a partir do maior conhecimento a respeito da doença e do seu tratamento, o médico poderá estar sujeito a responsabilidade civil se agir sem respaldo científico, inclusive se realizar ou determinar a execução de prática indevida.14 Quanto a esse ponto, não mais é admitido o tratamento experimental sob uma indevida roupagem de prescrição off-label. Nesse contexto, a Resolução CFM n. 2.292/2021, publicada em 13/05/2021, classificou como procedimento experimental a "administração de hidroxicloroquina e cloroquina em apresentação inalatória", a qual somente pode ser implementada "por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/CONEP"15. Desse modo, a salutar liberdade de atuação médica depende do necessário ancoradouro na ciência, ou seja, na medicina da evidência, bem como dos ditames regulamentares pertinentes. Após as pesquisas de acompanhamento atestarem a ineficácia de determinados tratamentos, a atuação médica deixa de ter respaldo científico e, portanto, a insistência em prescrever remédios não eficazes e com potenciais efeitos colaterais sérios, poderá acarretar a responsabilidade médica e, no caso de atendimento público, ensejar a responsabilidade civil do próprio Estado, considerando-se o teor do Tema n. 940 do STF16. Depois da conclusão de estudos de acompanhamento de milhares de pacientes tratados com essas alternativas terapêuticas, em diversos lugares do mundo, com publicação das pesquisas em respeitadas revistas científicas, não há mais espaço para que o médico possa entender que "talvez funcione". Se o esculápio insistir nesse tratamento e se o paciente vier a sofrer efeitos colaterais, poderão estar presentes os requisitos da responsabilidade civil médica: uma conduta do médico prescrevendo remédios, sua ineficácia comprovada, a superveniência de danos à saúde do seu paciente e um nexo de causalidade entre a ingestão medicamentosa e os danos sofridos. Os médicos que insistem em tais tratamentos, invocando sua experiência clínica, no sentido de terem assim agido e colhido bons resultados, confundem correlação com causalidade. De fato, boa parte dos contaminados pelo coronavírus desenvolve sintomas leves ou é assintomática. Pelos dados divulgados, um grupo de aproximadamente 20% desenvolve sintomas mais sérios17. Deste, uma parte menor ainda necessita de internação e um pequeno percentual, de entubação. Lamentavelmente, dos pacientes entubados, substancial maioria acaba falecendo. Isso é estatisticamente verificável, independentemente do que cada um deles vier a tomar18. Para usar um exemplo de mais fácil assimilação, se 100 contaminados pelo coronavírus tiverem o hábito de tomar chá de carqueja duas vezes por dia e 80 deles passarem incólumes, sem efeitos sérios, haveria uma mera 'correlação' entre tomar tal chá e o efeito de passar incólume. Não foi 'por causa' do chá que tiveram bom resultado, pois isso ocorreria de qualquer forma. A verdadeira causalidade científica só pode ser aferida por estudos científicos sujeitos a cânones metodológicos reconhecidos, tais como a existência de grupo de controle, sistema do "duplo cego", em que nem os pacientes, nem os responsáveis pelo estudo clínico, sabem quem tomou o medicamento em teste ou o placebo, para não se sugestionarem. A reidentificação só é feita ao final do estudo. Por fim, meta-análises são realizadas, tendo como base a reunião e profunda aferição dos vários estudos efetuados em distintos centros clínicos do mundo, para checagem do rigor metodológico das pesquisas e para a extração de conclusões universalmente válidas. Submetidas à revisão duplamente cega por pares, normalmente cientistas especializados e prestigiados, os estudos são finalmente publicados nas mais prestigiadas revistas cientifícas, como a The Lancet e a New England Journal of Medicine. Assim, a causalidade só pode ser aferida por meio desses estudos científicos, de alto rigor metodológico, com conclusões idênticas alcançadas em vários centros de pesquisa, pois a simples constatação de aparente resultado positivo no uso de medicamentos off-label equivale a uma correlação, não a um juízo de causalidade científica. De outro lado, nem sempre será juridicamente eficaz a justificativa médica de consentimento do usuário, mediante prévia informação sobre potenciais benefícios e riscos associados ao remédio objeto da prescrição. Isso porque, em momento de pânico e histeria (justificável) emergente da pandemia, além da larga disseminação de fake news, de informações contraditórias e de afirmações atécnicas oriundas de pronunciamentos estatais, o médico não tem apenas o direito de autodeterminação técnica na atividade de prescrição, ele tem sobretudo o dever de cumprir o princípio bioético primum non nocere. Aliado ao princípio jurídico da boa-fé, impõe-se ao profissional o cuidado de não prescrever ao paciente, que se encontra vulnerável pela doença, algo que, além de não lhe beneficiar, poderá prejudicá-lo. O paciente deposita a sua confiança no esculápio, no sentido de que será atendido de modo tecnicamente adequado. Metaforicamente, o médico deve vestir um "manto de eticidade" ao exercer a sua profissão, pois o direito protege a legítima expectativa do paciente de "receber o melhor tratamento possível à luz da ciência contemporânea" e, ao aplicar método experimental, o referido profissional "deverá arcar com os riscos do procedimento, isto é, sua conduta poderá ser mais severamente analisada".19 É sabido que a lei 13.979/2020, autorizou medidas excepcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais a possibilidade prescrição, pelo médico, de medicamentos ainda não aprovados pela Anvisa. Prevê, porém, no §7º-B, do art. 3º, que "o médico que prescrever ou ministrar medicamento cuja importação ou distribuição tenha sido autorizada na forma do inciso VIII do caput deste artigo deverá informar ao paciente ou ao seu representante legal que o produto ainda não tem registro na Anvisa e foi liberado por ter sido registrado por autoridade sanitária estrangeira" (dispositivo incluído pela lei 14.006/2020). No entanto, no §1º desse mesmo art. 3º, ressalta que tais medidas "somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública".20 Destarte, a análise de eventual responsabilidade médica por prescrição off-label de medicamentos que tenha causado efeitos colaterais danosos aos pacientes no contexto da pandemia, deverá ser analisada à luz da época em que a prescrição se deu. No período inicial, de dúvidas e incertezas, tal prescrição era aceitável, na desesperada tentativa de enfrentar eficazmente a doença. Todavia, após a ampla divulgação dos estudos que não convalidaram tal esperança e, ao contrário, apontaram para a ineficácia de certos tratamentos, o médico que insistir na prescrição poderá vir a ser civilmente responsável por danos causados que sejam causados ao paciente. Ressalva-se, porém, ser permitido ao médico justificar a sua opção, à luz das peculiaridades da situação do seu paciente, do conhecimento científico disponível e das circunstâncias que envolveram o atendimento, tudo a ser avaliado casuisticamente. O encerramento deste texto contempla um retorno ao seu título: a liberdade de prescrição do médico está circundada pelas boas práticas, pelos princípios de ética médica, além das determinações legais pertinentes, mas será convertida em responsabilidade caso prejudique indevidamente o paciente. *Eugênio Facchini Neto é doutor em Direito Comparado (Florença/Itália), mestre em Direito Civil (USP). Professor Titular dos Cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS. **Flaviana Rampazzo Soares é mestre e doutora em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada e professora. __________ 1 Disponível aqui. 2 Esse kit é composto por cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, e foi recomendado pelo Ministério da Saúde para uso nas fases leve e moderada da doença, notadamente por meio do aplicativo (atualmente inoperante) TrateCov, bem como da Nota Informativa n. 17/2020 SE/GAB/SE/MS. Segundo a reportagem, o aplicativo referido também indicava o uso de Ivermectina, Dexametasona, Doxiciclina e Zinco. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. Quanto a sua inadequação formal, vide DADALTO e MASCARENHAS. 5 Disponível aqui. Nessa mesma linha: BMJ 2021;372:n858. Aqui. 6 Por exemplo: Axfors, Cathrine, Schmitt, Andreas M., Janiaud, P. et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of randomized trials. Nat. Commun. 12, 2349 (2021). Aqui. 7 DANTAS, Eduardo. Direito médico. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 182. 8 KFOURI NETO, Miguel; DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Medidas extraordinárias para tempos excepcionais: da necessidade de um olhar diferenciado sobre a responsabilidade civil dos médicos na linha de frente do combate à COVID-19. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 512. 9 O critério para informar é, em uma primeira etapa, o do paciente em abstrato e na etapa subsequente a adaptação considerando o paciente em concreto. FACCHINI NETO, Eugênio. Consentimento e dissentimento informado - limites e questões polêmicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora RT. Vol. 102. p. 223-256. Nov./Dez./2015. 10 "(.) a desatualização do profissional pode, eventualmente, ensejar responsabilidade civil, se causar dano." ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil na área médica. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (org.). Direito privado e contemporaneidade. Desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Vol. 3. Indaiatuba: Foco, p. 27. 11 SOARES, Flaviana R. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. p. 226. 12 SOARES, Flaviana R.; DADALTO, Luciana. Responsabilidade médica e prescrição off-label de medicamentos no tratamento da COVID-19. Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 1-22, 26 jun. 2020. 13 O médico infectologista Esper Kallás, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP declara: "cloroquina, a hidroxicloroquina e a azitromicina não mostraram efeito benéfico no tratamento da doença. E não dispomos sequer de um único estudo convincente sobre a eficácia antiviral da ivermectina." 14 Se o médico prescrever generalizadamente um medicamento ou tratamento não aprovado ou indicado para tratamento da COVID para um conjunto de pacientes, conforme as circunstâncias, sua conduta poderá ser vista como pesquisa clínica irregular, diante do não atendimento de protocolos específicos que regem a matéria. Sobre o tema: CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos: aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012; PEREIRA, Paula Francesconi de Lemos. Responsabilidade civil nos ensaios clínicos. Indaiatuba: Foco, 2019 e DALLARI, Analluza. Contrato de pesquisa clínica. São Paulo: RT, 2019. 15 Disponível aqui. Os medicamentos Remdesivir e Regn-CoV2, além dos anticorpos monoclonais banlanivimabe e etesevimabe estão aprovados para uso emergencial pelo Ministério da Saúde. 16 STF. Tema 940. "A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." 17 Disponível aqui. 18 Segundo pesquisa, 16% dos falecimentos no Brasil são creditados à Covid-19 (causa básica), em taxa de mortalidade de 119,9 por 100 mil habitantes. SANCHEZ, Mauro, et al. Mortality from Covid-19 in Brazil: analysis of death's civil registry from 2020 January to 2021 February. Aqui. 19 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe P. Responsabilidade civil na área médica. cit. p. 26 e 37. 20 FACCHINI NETO, Eugênio. Responsabilidade médica em tempos de pandemia: precisamos de novas normas? Revista IBERC, v. 3, n. 2, p. 93-124, maio/ago. 2020, p. 113/114. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A extensão da proteção à liberdade de expressão frente a outros direitos, notadamente os direitos da personalidade, não é a mesma em diferentes tradições jurídicas, o que gera evidentes repercussões no papel da responsabilidade civil em face da manifestação de ideias e ao trânsito dos discursos, notadamente aqueles francamente ofensivos, o que inclui os qualificáveis como discursos de ódio. Nos Estados Unidos da América, a freedom of speech, ainda que não seja ilimitada, ocupa posição de evidente primazia, sendo admitida a sua restrição apenas em casos excepcionais. Fora dessas hipóteses de absoluta exceção, prevalece a liberdade de discurso. Essa liberdade, na construção jurisprudencial norte-americana, se estende, inclusive, a discursos ofensivos ou, mesmo, aqueles francamente inseridos no conceito de discursos de ódio. Winfried Brugger traz interessante comparação entre as respostas oferecidas pelo Direito frente aos discursos nos ordenamentos jurídicos norte-americano e alemão.1 Ele descreve a hipótese em que um cidadão, portando um cartaz com um desenho francamente degradante retratando o presidente da República, se coloca diante do Capitólio, em Washington, bradando vulgares ofensas morais ao chefe do Poder Executivo, proferindo frases racistas, negando o Holocausto na Alemanha Nazista e a escravidão negra na história dos Estados Unidos da América. O autor aponta que, no Direito Americano, mesmo essa conduta seria compreendida como protegida pela freedom of speech prevista na Primeira Emenda. Todavia, igual conduta, se praticada em frente ao Reichstag, em Berlim, ensejaria, conforme Brugger, até mesmo persecução penal, uma vez que "Na Alemanha, como na maioria dos outros países, o instinto básico coletivo refletido no direito é que o discurso do ódio é perigoso e deveria ser efetivamente eliminado". Com efeito, na Alemanha, a liberdade de expressão, apesar de dotada de intensa proteção constitucional, não apresenta primazia frente a outros direitos constitucionalmente assegurados. Na mesma linha, constata Daniel Sarmento que o discurso de ódio, no sistema Americano, é lido, em regra, como parte integrante da livre difusão de ideias, sendo inviável, na racionalidade daquele sistema, admitir que alguém possa sofrer sanção pela sua manifestação pública, por mais abjetas e ofensivas que sejam.2 O limite se coloca nas hipóteses das chamadas fighting words, que consistem nos discursos com aptidão para gerar imediata reação violenta de seus destinatários. O valor protegido, nesses casos, todavia, não é a personalidade das vítimas do discurso de ódio, mas, sim, "a garantia da ordem e da paz públicas".3   No Brasil, a leitura do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão aponta, de modo coerente com o que emerge do texto constitucional, uma "posição preferencial"4, prima facie, ainda que relativa, que pode ceder a posteriori, na constatação de violação de outros direitos. Trata-se do pressuposto que serve de alicerce à vedação à censura prévia à expressão do pensar, mas não descura da resposta coerciva posterior, em caso de violação a outros direitos fundamentais, por meio do abuso da liberdade de expressão.5 Não se confunde, pois, com a posição de proeminência quase inabalável que a freedom of speech detém no Direito americano, mas, ao mesmo tempo, apresenta uma posição preferencial prima facie que não se identifica no sistema alemão.   Um debate relevante que se impõe diante dessa construção jurisprudencial é se, no sistema jurídico brasileiro, diante dessa primazia prima facie, discursos ofensivos seriam admitidos como passíveis de controle somente ex post, ou se, pela gravidade da violação por eles perpetradas a princípios constitucionais, poderiam ser coibidos ser coibidos ex ante, em inversão da regra de primazia - aqui, de modo especial, no caso dos discursos de ódio propriamente ditos. Ou seja: trata-se de questionar se, no campo dos discursos ofensivos, a primazia prima facie cederia automaticamente, em todos os casos, ou se ela se manteria, em regra, hígida, sendo excepcionada, porém, em situações limite, nas quais a violação a princípios jusfundamentais seria de tal modo grave e autoevidente que a prévia restrição à expressão seria justificada em não constituiria censura. A ordem constitucional aponta para uma relevante pista, ao criminalizar o racismo, no inciso XVII do art. 5º, e ao repudiá-lo no inciso VIII do artigo 4º. Há, aqui, evidente repulsa constitucional a um típico discurso de ódio, que não goza de qualquer proteção constitucional no Brasil. É coerente com a ordem constitucional a não admissão de que discursos racistas integrem a liberdade de expressão. Outros discursos ofensivos, porém, quiçá não recebam o mesmo tratamento constitucional, mantendo hígida a primazia prima facie da liberdade de expressão.  Há, porém, outra questão a formular - e que é antessala relevante para se pensar sobre a responsabilidade civil.  Trata-se de saber se, e (em caso positivo), em que medida, seria possível admitir, sob a égide da liberdade de expressão, a proteção constitucional a algum discurso ofensivo - e, portanto, se discursos ofensivos poderiam ser protegidos mesmo ex post, afastando, pois, respostas coercivas posteriores ao exercício da liberdade de expressão. É necessário, destarte, refletir sobre as balizas para definir o que, a par do evidente repúdio ao racismo e à apologia à violência, deve mesmo ser compreendido como um discurso de ódio propriamente dito.6 Isso pode demandar a construção de uma distinção entre discursos ofensivos, como um conjunto mais amplo, no qual estão, em um subconjunto, os discursos de ódio propriamente ditos - estes últimos a ensejar franco rebaixamento ou negação da dignidade do outro, ou, no limite preconizando sua aniquilação. Daniel Sarmento, com acerto, coloca o tema do discurso de ódio e de sua relação com a liberdade de expressão no campo do debate sobre os limites da tolerância. O tema desafia os espíritos liberais, uma vez que a ampliação da coerção é, prima facie, indesejável em uma sociedade livre. Todavia, a indiscriminada admissão de discursos que humilham e tolhem as possibilidades de os vulneráveis integrarem a ágora comunicativa com igual dignidade são, também, formas de coerção. Não por acaso, Karl Popper admite, ao versar sobre o "paradoxo da tolerância", que a "tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância", de modo que "se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque do intolerante, então o tolerante será destruído". O grande pensador não está a defender, como ele mesmo afirma, que se deva sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes, uma vez que, "desde que possamos combatê-los por meio de argumentos racionais e mantê-los sob controle pela opinião pública, a supressão certamente seria muito imprudente". Isso não afasta, porém, a possibilidade de inserir a intolerância no campo da ilicitude, quando necessário a assegurar que não aniquile as condições de liberdade do próprio discurso e da sociedade.7 Há, como se observa, de um lado, a admissão de que discursos intolerantes possam ser proferidos, controlados e respondidos no campo do debate público. De outro lado, há, também, a admissão de sua supressão, como condição de possibilidade para a manutenção da própria tolerância. Sem embargo, a advertência de Bobbio em "A Era dos Direitos" também merece ser lembrada: "Não estamos afirmando que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal".8 A pretensão de, por meio da atuação do Poder Judiciário, efetuar a sanção a todo e qualquer discurso que possa vir a ser reputado como ofensivo pode ser atitude que não apenas restringiria desproporcionalmente a liberdade de expressão, mas pode se revelar inócua e, mesmo, politicamente perigosa, especialmente diante dos riscos de um efeito backlash, que, em dada extensão, pode colocar em xeque importantes conquistas civilizatórias, construídas sob o pálio desse irrenunciável universal a que chamamos cidadania.  Diante disso, como se situa a responsabilidade civil frente a esse perfil constitucional da liberdade de expressão? Cabe não descurar do fato de que, ainda que possa exercer uma função social relevante, a responsabilidade é, por excelência, um instituto de Direito Privado, e, como tal, seu locus é a intersubjetividade individual.9 É, pois, necessário que a responsabilidade civil não seja empregada como instrumento de controle do pensar e do manifestar pelo Estado-Juiz, como uma atípica ferramenta de moralização social em contraposição ao livre trânsito de ideias. Não há espaço, no âmbito constitucional da liberdade de expressão e no lugar ocupado pela responsabilidade civil no ordenamento, para uma pretensão de emprego desse instituto de Direito Privado para a supressão ou a imposição de sanção a toda e qualquer manifestação que possa vir a ser reputada ofensiva, especialmente quando dirigida a coletividades abstratas (como por exemplo, pretensões de definição pret-à-porter de quais seriam os valores caros a coletivizações identitárias, ou, mesmo, à artificial personificação corporativa de categorias profissionais). Nessa linha, a responsabilidade civil não tem o papel de, por meio da controversa10 - ainda que consagrada - figura do dano moral coletivo, moralizar discursos e eliminar a expressão do incivilizado. Se a Constituição afasta inequivocamente a proteção a discursos que define como inadmissíveis, como o da discriminação racial e o da apologia da violência - e, aqui, a intolerância com o intolerante é mandamento constitucional, a atrair não apenas a responsabilidade civil, mas a responsabilidade penal -, a expansão dos lugares de coerção para o atendimento de outras pautas de reconhecimento revestidas de pretensões coletivizantes pode se converter no avesso da cidadania, que, ao fim e ao cabo, é a síntese universalizante do lugar do indivíduo livre e merecedor de igual consideração na vida em uma sociedade republicana. As pretensões de reconhecimento, que transcendem a mera tolerância, são, seguramente, tuteladas em uma ordem constitucional que almeja a uma sociedade livre justa e solidária. São, porém, pretensões que, a rigor, somente fazem sentido como expressões individuais de cidadania, refletidas na igual dignidade de todos os cidadãos, e, nessa medida, no dever de a todos tratar com igual consideração, e não como fragmentação do tecido social em coletivos autorreferentes e, paradoxalmente, totalizantes no abstrato desenho de suas próprias identidades.  Não se advoga, por evidente, a lassidão frente à emergência da intolerância que humilha e suprime o igual lugar de expressão e de dignidade dos demais cidadãos, especialmente quando esta se apresenta na ofensa a indivíduos e, ainda mais, indivíduos vulneráveis. O que não se pode descurar, porém, é a lição de Bobbio, para quem "é melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver". Como ensina o filósofo italiano, "somente uma liberdade em perigo é capaz de se renovar", e "uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se, mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidão".11 É na expansão da liberdade que deve se encontrar a chave para o balizamento do papel da responsabilidade civil frente aos discursos ofensivos, desafiando a diferenciação concreta entre o que soa odioso, mas, a despeito disso, se situa nos custos morais de manutenção de uma sociedade livre, e aquilo que, efetivamente, fomenta o ódio e desconstrói a subjetividade da vítima, a demandar respostas coercivas, inclusive do Direito Privado.    *Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é professor associado de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito Civil pela UFPR. Advogado.    __________ 1 BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Revista de Direito Público, Brasília, v. 15, n. 117, jan.-mar. 2007, p. 119. 2 Assim Daniel Sarmento explica a prevalência da liberdade de expressão nos Estados Unidos, a proteger até mesmo os discursos de ódio: "Assim, nem a difusão das posições racistas mais radicais e hediondas pode ser proibida ou penalizada. Isto porque, entende-se que o Estado deve adotar uma postura de absoluta neutralidade em relação às diferentes idéias presentes na sociedade, ainda que considere algumas delas abjetas, desprezíveis ou perigosas". SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006. 3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006. 4 Explica Ingo Sarlet: "Todavia, mesmo que, em um primeiro momento, a CF assegure um idêntico status protetivo a privacidade e a garantia da liberdade de manifestação e expressão, percebe-se que, em relação à segunda, o texto constitucional entendeu por bem ser mais explícito e detalhista no que se refere aos critérios de controle e de restrição dessa liberdade, tal como se vê das regras constitucionais contidas nos artigos 220 e 221. Isso porque a CF, além de fixar de antemão impedimentos legislativos (§ 1º e § 3º do artigo 220), entendeu por bem já prever a proibição categórica à censura (§ 2º do artigo 220), assim como fixar princípios diretivos que deverão guiar a produção publicitária, de rádio e de televisão (§§ 4o, 5º e 6º do artigo 220 e artigo 221). Tal opção constitucional pode ser interpretada como sendo um sinal de que o Constituinte foi mais seletivo no que se refere às restrições que poderão ser aplicadas à liberdade de imprensa, de manifestação de pensamento e de expressão do que foi  em relação à proteção da intimidade e da privacidade, a qual deverá contar com uma ponderação a posteriori para identificar as situações de grave e intolerável interferência na esfera de proteção privada. Essa opção do constituinte de 1988 pode ser interpretada como indicando a escolha constitucional por tratar restrições à liberdade de manifestação e expressão como sendo algo excepcional, exigindo que eventuais restrições adicionais necessitem de um esforço argumentativo diferenciado e mais intenso que consiga justificar a necessidade particular de uma nova limitação." SARLET, Ingo Wolfgang. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O PROBLEMA DA REGULAÇÃO DO DISCURSO DO ÓDIO NAS MÍDIAS SOCIAIS. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, [S.l.], v. 5, n. 3, p. 1207-1233, dez. 2019. ISSN 2447-5467. Disponível aqui. Acesso em: 12 maio 2021. 5 O leading case a consolidar essa interpretação foi a ADPF no 130, Rel. Min. Ayres Britto, DJE: 6/11/2009. 6 O problema, que não é, por certo, de fácil solução, é apontado como relevante por Ingo Sarlet, nos seguintes termos: "Nesse contexto, por sua vez, assume particular relevo a adoção de uma compreensão mais ou menos restritiva da definição jurídica do discurso de ódio, ou seja, dito de outro modo, a decisão a respeito de quais manifestações podem e quais não podem ser tidas como assim enquadradas e se - e até que ponto - podem ser reprimidas". SARLET, Ingo. Op. cit., p. 1213. 7 POPPER, Karl. The Open Society and its Enemies. Vol. 1. London: George Routledge & Sons, p. 226. 8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214. 9 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. As fronteiras da Responsabilidade Civil e o princípio da Liberdade. In: ROSENVALD, Nelson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo (coord.) Novas Fronteiras da Responsabilidade Civil: Direito Comparado. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 51.   10 Refinada doutrina critica a qualificação do chamado "dano moral coletivo" como dano moral propriamente dito, haja vista se referir a uma abstração coletiva. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 489.  11 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
O provedor de registro e a invocação de um falso paradigma para atribuição de sua responsabilidade (REsp nº 1.695.778/RJ) Uma recente polêmica envolve o Marco Civil da Internet, especialmente em relação a um dos atores da rede mundial de computadores. Enquanto aos provedores de acesso, provedores de busca e provedores de conteúdo há, pelo menos, uma diretriz a ser observada nos artigos 18 e 19, em relação às instituições responsáveis pelo registro de nomes de domínio - que, no caso do domínio ".br" fica a cargo do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) - começa surgir dissonâncias a respeito do correto enquadramento jurídico de sua responsabilidade.  O NIC.br é o órgão escolhido para administrar o sistema de registro de nomes de domínio ".br" no Brasil, função antes exercida pela FAPESP. Ocupa uma posição peculiar no âmbito da internet brasileira. Segue a Resolução do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br (Resolução 2008/008) e, mediante solicitação prévia de qualquer interessado, confere a este o uso de uma determinada expressão linguística como nome de domínio para seu uso exclusivo. Não é sua atribuição conferir qualquer conteúdo objetivo ou subjetivo do interessado em registrar a expressão linguística como nome de domínio na rede mundial de computadores, quiçá prever o que esse interessado irá fazer após o obter o uso de uma expressão linguística como nome de domínio. Tampouco está apto a fiscalizar atividades subjacentes ao registro exercidas pela pessoa, empresário ou não, que solicitou o assentamento do nome na rede. Não faz apreciação finalística sobre a expressão linguística escolhida pelo interessado, salvo quando existir conflito com expressão anteriormente requerida, observado o princípio da anterioridade. Segue-se, portanto, o princípio universal denominado first come, first served: o nome de domínio será conferido ao primeiro que solicitar. Sua atividade se delineia em inserir uma determinada expressão como nome de domínio numa tabela mundial de endereços e garantir o seu funcionamento lógico e localização.  Considerando a situação peculiar do NIC.br como verdadeiro provedor de registro ou de assentamento de nomes de domínio numa tabela lógica de nomes existente na rede mundial de computadores, seria correto lhe imputar responsabilidade objetiva, pautada em eventual risco por atos subjacentes e posteriores dos titulares do domínio, bem como pelos danos que estes eventualmente causam a terceiros (consumidores)? Até pouco tempo atrás essas dúvidas sequer eram suscitadas. Quaisquer demandas promovidas em face do NIC.br eram extintas sem resolução de mérito (ou julgadas improcedentes), não havendo sentido lhes impor condutas prévias ou posteriores de persecução investigativa contra os donos de sites e titulares de nomes de domínio, considerando não só a neutralidade da rede mas, efetivamente, a possibilidade de colapso de um sistema que recebe mais de 30 mil pedidos de registro de domínio por mês.  Ocorre que a desejada estabilidade deste modelo começa a ser ameaçada a partir da invocação de um "falso" paradigma do STJ, em que se mencionou, nas razões de decidir a aplicação da responsabilidade civil objetiva pelo risco de atividade ao NIC.br. Em situação anterior ao marco civil da internet (sentença de 2012), no Recurso Especial nº 1.695.778/RJ ("Caso Carolina Ferraz"), o STJ, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), atribuiu responsabilidade solidária ao NIC.br pelo não congelamento do site pornográfico quando provocado pela atriz, em afronta ao seu direito de personalidade, entendendo-se que naquele caso teria assumido um risco de atividade. Naquele julgado, o que se estava em questão era se o provedor de registro também deveria ser incluído na responsabilização dos danos a pessoa notoriamente conhecida, à luz de provocações extrajudiciais antecedentes da atriz.  E para proteger o seu direito da personalidade, considerando a ciência prévia, entendeu-se que NIC.br teria assumido um risco do empreendimento, invocando-se, o § único do artigo 927 do Código Civil. Ocorre que, a partir deste julgamento, algumas decisões estaduais começaram a expandir, erroneamente, a leitura do aludido julgado, ignorando a superveniência da própria lei 12.965/2014, aplicando-se, de maneira totalmente acrítica, equivocada e indiscriminada, o artigo 927, § único do Código Civil aos provedores de registro, como se este exercessem uma super função no âmbito da internet ou que estariam aptos a arcarem com a seguridade de danos no sistema, criando-se, de maneira velada, uma indevida situação de responsabilidade integral a quem é apenas mais um provedor na rede e que, além de assegurar a neutralidade e eficiência, tem o dever de atuar, hoje, apenas após provocação judicial.    Inaplicabilidade do § único do artigo 927 do Código Civil aos provedores de registro. Para se aplicar o § único do artigo 927 do Código Civil, indispensável que o julgador avalie e discrimine a atividade normalmente desenvolvida pelo provedor. Não se avaliará uma conduta isolada, mas sim a atividade como conduta reiterada, habitualmente exercida, organizada de forma profissional ou empresarial para realizar os fins. E nesta avaliação deve se perguntar: o provedor de registro controla conteúdo de site? Não. Referenda bons e maus fornecedores de serviços aos consumidores?  Fiscaliza a qualidade e entrega de mercadorias? Tem como função checar previamente a titularidade de razão social ou marca? Não. Então como lhe imputar um risco - responsabilidade por danos causados a consumidores pelos fornecedores de produtos e serviços em sites da internet - se sua atividade não se relaciona, nem de longe, com a relação entre fornecedor e consumidor? Da mesma forma que o locador de imóvel não residencial não é responsável pela solidez, segurança e pela entrega de bens vendidos pelo locatário do imóvel, o provedor de registro não pode ser responsabilizado por danos praticados pelos titulares do domínio, afinal, sua missão não é de persecução penal ou fiscalizador de atividades empresariais destas pessoas. Também não pode ser obrigado a se imiscuir nas atividades empresariais subjacentes e desenvolvidas pelos titulares do domínio, nem mesmo a avaliação jurisdicional prévia de colidência de expressões linguísticas com razão social ou marca de quem quer que seja. Defender diverso seria ruir o sistema e adotar um caso isolado de responsabilidade integral, criando-se, aliás, um perverso estimulo reverso, fazendo com que os provedores de registro atue fora das limitações regulamentares e, em nome da equivocada precaução de sofrer a imputação objetiva, não mais atribuir nomes de domínio, congelar os já existentes sem prévia provocação, bem como interferir em conteúdo e atividades de terceiro, algo que, segundo o próprio STJ, feriria, de morte, a neutralidade da rede. Obrigá-los a fiscalizar vícios de produtos e serviços em situações de e-commerce ou atribuir-lhe prévia análise sobre eventual violação a proteção de bens imateriais praticados por terceiros e perfeitamente identificados não é aplicar corretamente o § único do artigo 927 do Código Civil, mas imputar a alguém um dever totalmente extrínseco a sua atividade, tornando-o verdadeiro segurador universal de danos no ambiente da rede, o que  nunca foi pensado ao sistema e, exatamente por isso, poderá gerar seu colapso. Indispensável, assim, o enquadramento destes provedores ao microssistema pensado pela lei 12.965/2014. Não há sentido em se criar um grau de responsabilização maior e mais severo  ao provedor de registro que, como vimos, é o que mais está distante da atuação dos titulares de nome de domínio, enquanto para os outros provedores, incluindo até mesmo o provedor de busca - que atuam diretamente  na, digamos, dinâmica da internet, indicando o site para eventuais clientes, fornecendo meios de pagamento e até logística de entrega, tem se sujeitado a incidência da responsabilidade subjetiva. Ademais, falar-se em responsabilidade subjetiva (hoje tendo a figura da culpa interpretada à luz da boa-fé objetiva) não significa abrandamento. Como tem orientado o STJ, a adoção da responsabilidade aquiliana dos provedores não significa um protecionismo, mas sim uma forma de se coibir empoderamento excessivo dos agentes da internet que acabariam por decidir ou censurar o que é ou não disposto na internet, bem como para afastar o risco de supressão das inovações veiculadas na web, uma vez que a análise prévia de cada informações e publicação registrada mudaria por completo o ritmo da comunicação digital. Criar-se um dever de checagem prévia - sob pena de responsabilidade objetiva - seria legitimar a interferência indevida em liberdades e na própria autonomia das atividades empresariais. Conclusão: indispensável delimitação da responsabilidade subjetiva aos provedores de registro e aplicação do Marco Civil da Internet. Passados mais de 18 anos do advento do Código Civil - e, porque não dizer, da descoberta concreta jurisdicional de novas atividades de risco - parece-nos que o ímpeto da objetivação da responsabilidade não deve romper com a previsibilidade pensada ao microssistema do Marco Civil da Internet, seu sistema de aferição de culpa, pautado na boa-fé objetiva, que atenua comportamentos voltados a censura ou quebra de fluidez da rede. Tal raciocínio se confirma especialmente se considerarmos que o precedente erroneamente invocado em algumas decisões (REsp nº1.695.778/RJ), além de anterior a Lei, envolveu à época discussão sobre a necessidade de notificação prévia ao provedor de registro para o cancelamento de domínio de site que abrigava conteúdo pornográfico e homônimo ao da notória atriz, que pleiteava aquela tutela extrajudicial. Temos que o STJ não delineou a atividade do provedor de registro à luz do Marco Civil da Internet, muito menos sua responsabilidade por atos subjacentes, em especial, comércio eletrônico dos titulares de domínio. Logo, diante de tal precedente, um provedor de registro deveria sofrer responsabilização integral por atos empresariais praticados por titulares de um domínio (ou site) na internet e subjacentes ao registro, por vícios causados aos consumidores adquirentes de produtos na internet, pelo simples fato de ser o ator responsável pelo registro de nomes de domínio? Seria o caso então de reconhecer e exigir-lhe um dever de persecução prévia e posterior fiscalizatória da licitude dos conteúdos e dos atos empresariais praticados pelos titulares dos sites, contrariando suas funções delimitadas e, por que não dizer, ao Marco Civil da Internet, impondo-lhe, portanto, uma inequívoca responsabilidade integral e irrestrita por atividades que não exerce, ou fora do seu campo de atuação,  e sob a qual não tem nenhum controle, contrariando o sentido e ao alcance dos artigos 186 e 927, parágrafo único do Código Civil, bem como os precedentes do STJ a respeito da responsabilização civil dos provedores de conteúdo no Marco Civil da Internet? Obviamente que não. Obrigá-los a fiscalizar atos de terceiros, vícios de produtos e serviços de sites de compra e venda é responsabilizá-lo por algo extrínseco a sua atividade, atribuindo-lhe risco integral, incentivando instabilidades e incertezas normativas após amplo debate consolidado no âmbito do STJ e, por que não dizer, desvirtuando o verdadeiro propósito do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. *Diogo Leonardo Machado de Melo é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Pós-doutor em ciências jurídico-civis pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Associado fundador do IBERC. Diretor Administrativo do IASP. Advogado. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Tipificado como crime pela lei 14.142/2021, o stalking consiste na perseguição reiterada praticada contra alguém, por qualquer meio, com capacidade de ameaçar-lhe a integridade física ou psíquica, restringindo sua capacidade de locomoção, ou de qualquer forma invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade. A palavra inglesa Stalk remete à caça predatória, onde o predador aproxima-se silenciosamente, em uma contínua perseguição, assédio ou vigilância sobre a vítima1. Tamanha a importância do valor fundamental do bem tutelado, que o direito penal se preocupou em tipificar o ilícito, que já era objeto de tutela pelos demais ramos do direito, notadamente pelo Direito Civil2. Tendo em vista a independência entre instâncias, uma pessoa pode ser responsabilizada através de um sistema complexo e organizado para equilibrar as relações sociais, podendo imputar-lhe responsabilidade penal, civil, administrativa e laboral concomitantemente. Sendo a responsabilidade um sistema de justiça, o braço direito do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito cujo fundamento é a dignidade humana, de forma protetiva e promocional, garante-se a todos a tutela de sua integridade psicofísica, além de condições de vida para que a pessoa exerça sua liberdade para projetar e dirigir sua existência. Esse sistema baliza-se a partir da solidariedade social em articulação obrigatória entre o individual e o coletivo, na busca do bem comum, repudiando e prevenindo danos injustos, patrimoniais ou extrapatrimonais3. O fenômeno não é recente, já considerado um ilícito civil, observado, por exemplo, como forma de assédio moral trabalhista; bullying escolar e universitário, em relacionamentos abusivos passados ou atuais ou mesmo entre pessoas desconhecidas a partir da ocorrência de um fato que desencadeie comportamento obsessivo sobre outra pessoa. A motivação do stalking varia, muitas vezes por sentimento de inveja, vingança, obsessão, preconceito ou ódio gratuito, materializado por práticas diversas, como ligações inoportunas; envios contínuos de mensagens ou emails; publicações de fatos íntimos ou boatos; remessas de presentes; frequentar os mesmos locais e horários em que saiba que se encontra a vítima, perguntar sobre sua rotina para pessoas próximas, gravar mensagens e ligações sem o devido aviso, dentre outras. Ainda que o ofensor tenha algum poder legítimo sobre a vítima, ou que tenha a liberdade de coletar informações públicas ou estar coincidentemente nos mesmos ambientes que a vítima, este poder ou esses direitos deverão ser exercidos dentro dos limites do ordenamento, especificadamente pelos direitos fundamentais, não podendo configurar abuso de direito. Desta forma, tem-se os elementos clássicos para a configuração da responsabilidade civil: O dano, o nexo de causalidade e o elemento volitivo, que no caso é o dolo4. Embora o stalking físico ainda seja muito comum para manipular a vítima ou prejudica-la em seu sossego e sua paz, na atual sociedade hiperconectada, com o surgimento de novas tecnologias, inicialmente incentivadas pelo anonimato, alargaram-se os meios de assediar, intimidar e monitorar as vítimas dentro do ambiente virtual, ocasião conhecida como cyberstalking. Na era da "cultura do cancelamento", em que muitas pessoas discordam de opiniões de modo desproporcionalmente agressivo, promovendo verdadeiras campanhas para promoção de boicote ou agressão gratuita à vítima, torna-se ainda mais cruel, podendo ocasionar perda de trabalhos, contatos sociais e danos à sua imagem e de sua família. Ainda mais grave quando o stalker coleta informações anteriores, tirando-lhes do contexto original, deturpando-as com o propósito de atingir a reputação da vítima, demonstrando conduta prejudicial, intencional e violenta, capaz de espalhar rumores maliciosos e mentiras, no sentido de violar sua honra, intimidando-a, dentro de uma relação desigual de poder que poderá desencadear sentimentos de angústia, tensão, ansiedade, medo e até depressão5. Como conduta ameaçadora, configura real possibilidade de mal grave e injusto, sendo natural a geração de um temor pela segurança da vítima ou de outras pessoas, decorrente de um controle, subjugando-a de modo que não consiga desconectar de sua preocupação, afetando sua vontade e atingindo decisões comportamentais, podendo inclusive ocasionar mudanças de hábitos e escolhas, degradando sua condição humana, gerando danos temporários ou permanentes. Essa intimidação pode se manifestar pelo modo de tratar, falar, gesticular, escrever, de modo a exercer tal pressão psicológica que a vítima tenha real ciência de que está sendo habitualmente perseguida, através de atos sequenciais, não necessariamente diários, mas capazes de causar-lhe perturbação física e emocional que poderá evoluir para problemas psíquicos ou mesmo físicos, como é o caso da síndrome de Burnout6. Por conta disso, um dos pontos mais controversos sobre o stalking é relacionado à questão probatória, em relação à demonstração não apenas do dano, mas do nexo de causalidade, como perseguição capaz de atingir efetivamente a paz da vítima, não sendo um mero incômodo ou desconforto por quem lhe acompanhe ou admire. Isso se deve ao fato das provas, nesse caso, serem predominantemente indiciárias ou indiretas, por não configurar conduta de fácil comprovação, já que o stalker não persegue sua vítima de modo evidente, utilizando-se de subterfúgios, terceiras pessoas, perfis falsos, invasões a dispositivos conectados à internet para obter informações. O direito brasileiro adota a liberdade probatória, podendo-se provar o alegado por todos os meios em direito admitidos e a viabilidade da presunção sobre o nexo causal, em juízo de probabilidade a partir de uma relação de causa e efeito entre o fato e o dano7. Nesse sentido, ainda que se possa cogitar a quebra de sigilo de dados para a identificação do perseguidor ou comprovação da importunação, seja pelas operadoras de telefonia ou pelos provedores de internet, essa possibilidade ainda é polêmica e muitas vezes negada pelo Poder Judiciário. Desta forma, é conveniente guardar todos os meios de provas explicitamente abusivas ou ameaçadoras, realizando-se Boletim ou Termo Circunstanciado de Ocorrência criminal para uma investigação mais profunda que forme lastro probatório também para uma ação civil. Todos os meios de prova são importantes nesse momento, sejam testemunhas, Prints de telas, gravações ambientes, perícias, atas notariais, dentre tantos outros, podendo ser requerida, também, audiência de justificação em eventual requerimento de tutela de urgência. Esse foi o entendimento do Acórdão Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) de 25 de fevereiro de 2021, da Terceira Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul8 que unanimemente reformou a sentença de improcedência do juízo de primeiro grau, que havia entendido não haver prova material direta sobre o ilícito de stalking que fundamentava o pedido de responsabilização civil por danos morais em que a vítima demonstrava receber reiteradamente mensagens e e-mails ofensivos e perturbadores da parte ré. Considerou a corte que, sobre esse tipo de conduta, há um emprego de inteligência e esforço para se manter em anonimato, característica que mantem o caráter injusto da conduta, encobrindo rastros e vestígios de identificação de autoria, indicando má-fé da parte ofensora, através da capacidade de planejamento, antevisão e persistência. No caso, levou-se em consideração a improbabilidade da autora lançar-se em uma custosa e desgastante aventura processual contra a ré, contratando advogado para o acompanhamento dos boletins de ocorrência policial anteriores à ação civil, os quais concluíram serem as mensagens originadas de números pré-pagos utilizado em um mesmo aparelho celular pela parte ré direcionados à autora da ação. Alguns desses números estavam registrados inclusive com o CPF da autora, como forma de afirmar ser a mesma autora das mensagens. A Turma destacou ainda a seriedade das providências tomadas pela autora que indicavam uma perturbação real e concreta, não aparentando o dispêndio de tempo e valores para mera simulação. Com razão houve a reforma da sentença de primeiro grau, mesmo porque atualmente sustenta-se que entre a prova e a verdade existe uma relação teleológica, relacionando o fato com sua causa final, deslocando-se para o raciocínio epistemológico e para o raciocínio de probabilidade. Assim, a verdade possível no processo é a probabilidade lógica, em formulações adequadas da hipótese e sua confrontação para fins de confirmação e não refutação9. Nesse sentido, sobre o ilícito de stalking, depender-se-ia da aceitação de provas indiciárias, retirando-lhe o caráter de provas subsidiárias, podendo o juiz, em seu livre convencimento motivado, considera-la apta para a procedência ou improcedência do pedido, como prova condenatória que mais se aproxime à verdade, concluindo que supervalorizar a prova formal como incontestável, muitas vezes seria impor à vítima um encargo enorme e invencível. Assim, considera-se a importância de reconhecer a força probandi das provas indiciárias à conduta de stalking, tanto para a configuração do an debeatur quanto do quantum debeatur, sob pena de esvaziar seu sentido protetivo. *Agatha Gonçalves Santana é advogada civilista, mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora titular da Universidade da Amazônia - Grupo Ser Educacional, onde ministra aulas na graduação e pós stricto senso. Lider. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade da Amazônia. Associada titular do IBERC. __________ 1 CASTRO, Ana Lara; SYDOW, Spencer. Stalking e Cyberstalking: obsessão, internet, amedrontamento. Belo Horizonte: D' Plácido, 2017, p. 53 2 MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 32-33. 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p. 629-630. 4 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 18 5 SANTANA, Agatha Gonçalves. A responsabilidade dos pais do menor agressor no caso de bullying: Uma decorrência direta das relações de poder. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. São Paulo: Gen Método, 2014, p. 354-355. 6 DIAS, Sandra. Assédio Moral e suas novas formas. São Paulo: Gestae, 2014. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021. 7 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p.470 8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CAT Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) 2021/CÍVEL. Relator Cleber Augusto Tonial. Porto Alegre: 25 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021. 9 MITIDIERO, Daniel. Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p.198-200.
O debate acerca do risco de uma atividade para fins de imputação do dever de indenizar tem sido caracterizado por dificuldades significativas no campo da teoria do Direito, e na prática judiciária. Se por um lado a teoria o risco vem crescendo vertiginosamente no campo da responsabilidade civil, a percepção de que o seu tratamento pelo judiciário e pela doutrina vem se tornando, ao mesmo tempo, mais fluida e mais incerta, o que contribui para decisões que, se por um lado, no afã de proteger a vítima, buscam sua proteção, por outro, podem abrir espaço para uma insegurança jurídica o que, em última instância, poderia levar a uma completa responsabilização. A questão ganha contornos ainda mais dramáticos diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) que, mais uma vez, alerta a todos nós dos riscos globais a que estamos submetidos. Não apenas quanto aos riscos inerentes à própria doença, que vem devastando vidas e sistemas públicos e privados de saúde ao redor do mundo, mas, também, quanto às soluções aventadas pelos mais variados setores da sociedade e que trazem consigo riscos. O caso mais emblemático talvez seja sobre a imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a COVID-19, tida como o único caminho para pôr fim à crise sanitária mundial, mas que, ao mesmo tempo, pode produzir resultados danosos indesejados, tema que já foi enfrentado nessa coluna1. Pretende-se com o presente texto dar contornos mais claros sobre o que risco pode significar para o campo das ciências jurídicas. A dificuldade é patente: desde a própria terminologia até a sua conceituação, não há unanimidade entre os autores2. O seu conceito ambivalente, plural e quase infindável afeta o uso metodológico e operacional do termo nas ciências naturais, biológicas e sociais. Nesse ponto, as ciências jurídicas também não permaneceram à margem do debate, apesar de sua relativa demora em decorrência das peculiaridades que são inerentes à teoria do Direito. O desenvolvimento tecnológico veio a produzir um impacto significativo no âmbito da reparação dos danos, sobretudo na questão da responsabilidade pelo risco, cujo desenvolvimento foi intensificado em virtude do aumento exponencial dos prejuízos. Com a evolução tecnológica, as atividades humanas foram se expandindo e se tornando menos controláveis e os riscos foram se multiplicando: o prejuízo deixou de ser uma fatalidade e passou a ser uma probabilidade3. O surgimento desenfreado dos danos implicou numa mudança da consciência jurídica e humana para evitar o "cometimento de injustiças"4 e, consequentemente, o fundamento clássico da culpa tornou-se insuficiente para abarcar todas as situações desse novo mundo, pois ela abandonava a vítima e permitia que esta ficasse irreparada em inúmeras situações5. Esse avanço construído pela jurisprudência e pela doutrina, nacional e estrangeira, foi historicamente importante para que a teoria da reparação dos danos pudesse alcançar novas funções e assegurar integralmente a reparação da vítima de uma atividade potencialmente danosa. Entretanto, não há clareza sobre o que é o risco do ponto de vista jurídico. Os textos normativos e doutrinários, em geral, costumam reconduzir a noção de risco à teoria do risco conceituando-o como um perigo especial de certas atividades que acaba por criar determinados riscos típicos, justificando a imputação do dever de indenizar àquele que domina a fonte de risco6. A partir dessa ideia, surgem inúmeras configurações do que caracteriza o risco, com especial relevância para alguns mais difundidos na cultura jurídica: o risco proveito, o risco criado, o risco profissional, o risco administrativo e o risco integral. O risco proveito se qualifica pela ideia de que aquele que retira o proveito ou vantagem do fato de ser causador de um dano, fica obrigado a repará-lo7. A teoria do risco criado trata de uma concepção genérica que abarca um maior número de situações, pois exige, para sua configuração, o mero exercício de uma atividade perigosa8. No risco profissional a obrigação de reparar os danos decorre do desempenho de uma atividade profissional, ou laborativa. Tal risco poderia ser inserido, por exemplo, nos casos de acidentes de trabalho ou, ainda, nas hipóteses em que o empregado causa danos a terceiros9. Fala-se, ainda em risco administrativo, diretamente ligado às pessoas jurídicas de direito público. Por fim, é comum referir-se às hipóteses de risco integral: influenciada pelo campo do direito ambiental, consistiria numa obrigação de indenizar que não admite a exclusão da responsabilidade civil e, por via de consequência, obriga o sujeito a indenizar a vítima, ainda que os prejuízos sejam provenientes de causas estranhas à ação ou omissão. Trata-se de uma responsabilidade civil objetiva agravada10. Embora as ciências jurídicas tenham se empenhado em definir um critério para explicar a teoria do risco a ponto de fazer incidir a responsabilidade definitiva, criando diversas modalidades de risco para as mais variadas situações, parece-nos que nenhuma dessas configurações se afigura adequada na realidade atual. Os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantém um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. De certo que todos os modelos têm importante valor teórico e não podem ser desconsiderados, especialmente o conceito de risco criado que, de todos, é o que ainda guarda maiores aplicações no ordenamento jurídico brasileiro. A tema é ainda mais delicado quando se tem em conta que a assunção de riscos em nossa sociedade é um elemento nuclear de uma economia dinâmica e de uma sociedade inovadora. Afinal, como lembra Anthony Giddens, é preciso ser ousado no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto11.  Nesse ponto, parece interessante a distinção traçada na década de 70 pelo Tribunal Constitucional Alemão, quando do julgamento da histórica Decisão Kalkar. O referido Tribunal buscou diferenciar o que seria risco residual ou tolerável, risco intolerável e risco. O primeiro é caracterizado como um risco que não se pode eliminar, isto é, insuprimível numa sociedade tecnológica. Consiste num risco aceito pela sociedade que aprecia o progresso e o acréscimo do bem-estar produzido pela tecnologia. O risco intolerável pode ser entendido como a possibilidade de ocorrência de danos que uma sociedade, temporalmente identificada, rejeita em razão de uma ética vigente. E, por fim, o risco tout court, correspondente à margem de incerteza relacionada com a utilização da tecnologia pela sociedade, que traz benefícios gerais, mas pode acarretar danos graves. No caso, discutia-se a constitucionalidade do art. 7, § 2º, nº 3, da Lei de Energia Atômica em decorrência da anulação judicial de uma autorização administrativa para implantação de um novo reator na central nuclear de Kalkar. O Tribunal Constitucional, considerando que compete à Administração a avaliação e a gestão do risco, definido a partir da cláusula do "estado da técnica", que operacionaliza uma "proteção dinâmica" dos direitos fundamentais, permitindo uma técnica de minimização de riscos, entendeu que o risco residual constitui um preço civilizacional e um garante da liberdade do espírito humano. Assim, consequentemente, nenhuma responsabilidade poderia advir dele. Ao seu lado, decidiu o Tribunal, contrapõe-se o risco intolerável, cuja gestão é de competência da Administração12. Embora todas as teorias anteriormente expostas sejam louváveis, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Qual seria o risco tolerável e o risco intolerável? Tal fato é extremamente relevante, pois implicará na possibilidade, ou não, de exoneração do agente que explora a atividade perigosa. O conceito de risco vem sendo alterado radicalmente e acaba sofrendo influência de aspectos objetivos e subjetivos. Embora o tema do risco tenha sido tratado basicamente do ponto de vista estatístico13 e econômico, as últimas décadas foram profícuas no campo da sociologia, antropologia, psicologia e das ciências políticas. Consequentemente, visualiza-se uma nova configuração social, que traz no seu bojo a consciência de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais assumir14. O risco deve ser tratado não apenas nas perspectivas tecnocientíficas, pautadas pelo aspecto objetivo das probabilidades, mas, especialmente, nas perspectivas socioculturais, que se valem do contexto social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado. Diante desse cenário, é possível perceber que os riscos são construídos enquanto fatos sociais, na medida em que se tornam conceitos cada vez mais centrais na existência humana e que devem ser, também, gerenciados e tratados pelos seus produtores15. O risco, portanto, não é um mero debate acidental nas sociedades, mas aspecto central, objeto de estudo, mensuração e controle, que afeta decisivamente o campo normativo. As novas definições de risco foram incorporadas pelos ordenamentos jurídicos, notadamente no campo da reparação dos danos. O contínuo desenvolvimento tecnológico trouxe a reboque das forças produtivas inúmeros riscos decorrentes desse processo de modernização, caracterizando uma ameça aos interesses juridicamente protegidos no ordenamento, o que exige uma postura ativa e crítica na análise do conceito de risco. O reconhecimento de que o homem é o produtor dos próprios desastres16 reforça a noção de que os riscos a que estamos expostos decorrem, em grande parte, da ação humana direta ou indireta. Nesse ponto, a causalidade passa a ser profundamente afetada, exigindo um repensar sobre como identificar quais riscos se encontram na esfera jurídica do criador de uma atividade perigosa, mas que não necessariamente guardam uma conexão clara e evidente, em virtude da ausência de informação técnica suficiente para conhecer as possíveis consequências do desenvolvimento da referida atividade. O risco passa a ditar os caminhos da reparação dos danos. Percebeu-se, então, que o conceito de causalidade até então debatido pelas ciências jurídicas não eram aptas a dar conta de toda a multiplicidade de situações decorrentes dos novos riscos criados, levando ao aprofundamento da complexidade causal. É preciso buscar o equilíbrio jurídico e a segurança, necessários aos desconhecidos e graves desafios da atualidade. O reconhecimento do risco influenciado pelas ciências sociais, poderá ajudar a superar os profundos entraves dessa cultura de irresponsabilização dos produtores de riscos. Embora importante, especialmente para fins de políticas públicas e de regulação, o cálculo probabilístico falha do ponto de vista social17, pois na análise social, todas as eventualidades restam abertas para o caso concreto e, por conta disso, no plano da reparação dos danos justifica-se um conceito de risco pautado por aspectos sociológicos que permitam depurar de forma mais adequada o conteúdo da atividade perigosa, construção essa que dependerá necessariamente de um esforço da doutrina e da jurisprudência. *Rafael Viola é doutorando em Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor do Curso de Direito do Ibmec/RJ. __________ 1 EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Afinal, de que responsabilidade estamos falando? Breves notas sobre a eventual imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a Covid-19. Disponível aqui, acesso em 01.05.2021. 2 Como lembra Caio Mário Pereira da Silva, risco "é um conceito polivalente". (SILVA, Caio Mário Pereira da. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369). 3  RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller, 2002, p. 213. 4 LIMA, Alvino, Culpa e Risco. 2ª edição revista e atualizada pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1998, p. 114. 5 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p.163. 6 MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos sobre a responsabilidade civil. Coimbra, 1983, p. 19. 7 SILVA, Caio Mário Pereira da. Op. cit., 2012, p. 372. 8 UEDA, André Silva Rasga. Responsabilidade civil nas atividades de risco - um panorama atual a partir do código civil de 2002. São Paulo: Arte & Ciência, 2011, p. 171. 9 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco - a teoria do risco concorrente. São Paulo: Método, 2011, p. 162. 10 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 485. 11 GIDDENS, Anthony. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio deJaneiro: Editora FGV, 2000, p. 148. 12 Sobre o tema, sugere-se a leitura de GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Dissertação de doutoramento em ciências jurídico-políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Edição da Autora, 2012. 13 Nesse campo, o risco é tratado como um produto das probabilidades e consequências de um evento adverso, muito utilizado na área de seguros. Sobre o tema, v. LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013. 14 KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11. 15 LUPTON, Deborah. Op. cit., 2013, p. 37. 16 BECK, Ulrich. The brave new world of work. Cambridge: Polity Press, 2000, Ebook reader, p. 23.   17 DOUGLAS, Mary, e WILDAVSKY, Aaron. Risco e cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais. Trad. Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 184.  
Tout le dommage, mais rien que le dommage. Meses atrás, nessa coluna, tive a oportunidade de afirmar que o ano de 2020 é um ano inesquecível.1 Mal sabia, naquele momento, que o ano de 2021 igualmente o seria, ou, na verdade, que 2020 seria o mais longo dos anos; um ano inacabado, que insiste em repetir-se diante de nós, dia a dia, mês a mês, todos à espera da cura que a Ciência promete nos entregar. A essa tão peculiar sensação de perplexidade, ansiedade e impotência soma-se a dor da perda de pessoas queridas; amigos (e amigos de amigos), parentes (e parentes de parentes), tocados abruptamente por um mal que, para nosso assombro, parece aproximar-se de nós. Mas é a esperança que deve nutrir nosso espírito: com as perdas, aprendemos a valorizar as dádivas. Compreendemos que a saúde é mais que um Direito Fundamental: é um presente divino, sem o qual não há campo fértil para semeadura de sonhos e colheita de realizações. Nesses dias, em uma diuturna e heroica luta, os profissionais de saúde têm enfrentado, com coragem e obstinação, os perigos que a pandemia nos traz. A tais profissionais de saúde, em boa hora, o legislador procurou dispensar proteção. No último dia 26 de março, foi sancionada a lei 14.128.2 Cuida-se de diploma que, em conformidade com o seu art. 1º, "dispõe sobre compensação financeira a ser paga pela União aos profissionais e trabalhadores de saúde que, durante o período de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), por terem trabalhado no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, ou realizado visitas domiciliares em determinado período de tempo, no caso de agentes comunitários de saúde ou de combate a endemias, tornarem-se permanentemente incapacitados para o trabalho, ou ao seu cônjuge ou companheiro, aos seus dependentes e aos seus herdeiros necessários, em caso de óbito." O tema foi bem examinado nessa coluna por Monica Cecilio Rodrigues e Romualdo Baptista dos Santos, em artigo intitulado Primeiras impressões sobre a lei 14.128/21: Indenização aos profissionais de saúde por danos na pandemia da Covid-19.3 Dentre os temas que suscita, desperta agora interesse a regra prevista no art. 3º, incs. I e II. O dispositivo estabelece valores de compensação financeira para os agentes de saúde infectados. Será a compensação financeira, diz a lei, composta de uma única prestação em valor fixo de R$50.000,00, para o profissional ou trabalhador de saúde incapacitado permanentemente para o trabalho. Em caso de óbito, prossegue, o valor é revertido para o seu cônjuge ou companheiro, para seus dependentes e seus herdeiros necessários, sujeita a rateio entre os beneficiários. Nos termos do inc. II, acentua a lei, a compensação financeira corresponderá "a uma única prestação de valor variável devida a cada um dos dependentes menores de 21 (vinte e um) anos, ou 24 (vinte e quatro) anos se cursando curso superior, do profissional ou trabalhador de saúde falecido, cujo valor será calculado mediante a multiplicação da quantia de R$10.000,00 (dez mil reais) pelo número de anos inteiros e incompletos que faltarem, para cada um deles, na data do óbito do profissional ou trabalhador de saúde, para atingir a idade de 21 (vinte e um) anos completos, ou 24 (vinte e quatro) anos se cursando curso superior." Da leitura de tais regras, despontam as questões centrais que devem ser examinadas nesse brevíssimo ensaio. A lei 14.128/21 criou uma hipótese de limitação do valor indenitário? A limitação estabelecida por lei afasta a realização do Princípio da reparação integral na hipótese de a indenização concretamente devida às vítimas ser superior aos patamares legais? É constitucional a fixação de limites indenitários aos profissionais e trabalhadores de saúde permanentemente incapacitados para o trabalho, ou na hipótese de contágio aos entes que especifica, certo que Constituição Federal de 1988 assim não o faz? É esse o desafio ao qual me proponho. Para tanto, em primeiro lugar, examinarei o Princípio da reparação integral (e o papel que exerce na responsabilidade civil). Em segundo lugar, é considerarei a coexistência pacífica e harmônica de três modelos distintos (sistemas) de responsabilização civil: a responsabilidade subjetiva; a responsabilidade objetiva, e o que aqui importa, a responsabilidade civil tarifada. Buscarei doravante enfrentar tais intrincadas questões. A regra prevista no caput do art. 944 do Código Civil em vigor é fundamental nos passos a seguir: "a indenização mede-se pela extensão do dano". Nela se corporifica o que se convencionou denominar Princípio da reparação integral, que, na sua essência, tem por finalidade repor a vítima ao estado anterior à ocorrência do dano injusto. Ele serve para que se transfira ao patrimônio do ofensor (ou daquele que assume o dever de indenizar) as consequências do evento ilícito, permitindo que, com a maior proximidade da realidade possível, volte a vítima a ocupar a situação equivalente ao momento anterior à prática do ilícito (Código Civil, arts. 186 e 187)4. No Brasil, o Princípio da reparação integral foi bem desenvolvido por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino5, em obra monográfica de peso. Ele radica no ideário Aristotélico de realização concreta da Justiça Corretiva, pondera o jurista, realizando as três funções da responsabilidade civil: atende à função compensatória da reparação da integralidade do dano; realiza a função indenitária, inibindo o enriquecimento indevido da vítima, e densifica a função concretizadora da responsabilidade ao permitir a justa medida da extensão dos prejuízos concretamente suportados pela vítima.6 Conquanto tal princípio possua exceções, nada o infirma. Vale recordar, a propósito, que ao tratar do evento morte e de lesões à saúde de outrem, o próprio legislador civil preocupou-se em atendê-lo, dentre outras passagens, nos artigos 948 a 951. Em segundo lugar, não creio que o propósito do legislador na lei 14.128/21 fora criar um tabelamento absoluto de valores indenitários. Não se pretendeu, a meu ver, sedimentar um patamar máximo (teto), que excluiria a vivificação do Princípio da reparação integral nas hipóteses por ela disciplinadas. A esse respeito, é oportuno recordar as lições do Prof. Dr. Renan Lotufo, que recentemente tive ocasião de registrar em homenagem a ele prestada pelo IBERC7. No Brasil, dois são os sistemas já consagrados de responsabilidade civil. Um sistema tradicional, fundado na culpa (responsabilidade civil subjetiva), de origem no Direito Romano (Lex Aquilia), que chega até nós, dentre outros dispositivos, pelo art. 927 do Código Civil; "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". No século XX, com o advento da Teoria do Risco, erigiu-se um outro sistema que abandona a rigidez da formulação subjetiva, e vem hoje estampado no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, segundo a qual "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Dentre as leis especiais, a responsabilidade civil sem culpa é a tônica nas relações de consumo (CDC, arts. 12, 14, etc.). Nos dois modelos acima, esteja a responsabilidade a depender da culpa, esteja a dela independer, busca-se concretizar o Princípio da reparação integral (restitutio in integrum). Ocorre que, ao lado desses dois modelos de responsabilização civil, coexiste um terceiro modelo, que, a meu ver, é o que se quer ver realizar pela lei 14.128/21. É o que Renan Lotufo identifica ser o Sistema de Responsabilidade Civil Tarifada. Nele, o legislador identifica hipóteses e agentes responsáveis pela reparação de danos, atribuindo às vítimas valores indenitários previamente definidos por lei. Esse modelo tem por mérito permitir uma indenização inicial (mínima), de modo eficiente e célere, pois se contenta com a prova do nexo causal entre a vítima e o agente responsável, independentemente de perquirir-se o dolo, a culpa, ou a exata incidência da Teoria do Risco. Observe que o legislador recorre a esse modelo em diversas passagens, tais como na lei 6.149/748 (que disciplina o seguro DPVAT) e na indenização por extravio de bagagens de passageiros no contrato de transporte aéreo internacional (Convenções de Varsóvia, Montreal e Resolução ANAC nº 400/16).9 A esses dois exemplos, a meu ver, soma-se a lei 14.128/21. Note que os modelos de responsabilidade civil com culpa e sem culpa têm em comum o mérito de atender ao que é mais relevante no campo do Direito de Danos: buscam realizar o Princípio da reparação integral. Significa dizer, seja a responsabilidade civil objetiva, seja subjetiva, o foco aqui é tornar a vítima indene, isto é, é reparar, na melhor e maior extensão possível, os danos injustos pela vítima suportados. Entretanto, em pacífica convivência, é possível admitir uma terceira via da Responsabilidade Civil tarifada. Nela, a finalidade não é atender ao Princípio da reparação integral. São hipóteses específicas nas quais o legislador, independentemente de preocupações com os esquemas de responsabilidade subjetiva ou objetiva, indica valores preestabelecidos por lei em favor das vítimas de determinados eventos contemplados. De fato, em certas circunstâncias, os valores podem vir a atender ao Princípio da reparação integral. Em outras hipóteses, não. Aqui, não há preocupação imediata em reparar-se integralmente (mas, sim, em fornecer um mínimo célere de indenização). Depender-se-á da prova da extensão do dano suplementar para que, no futuro, possa haver a integral reparação. Daí que o valor a ser prontamente recebido pela vítima não implica, necessariamente, na quitação ampla geral e irrestrita de todo o valor devido. Será, sim, como sublinhei, o mínimo de indenização, se houver a prova de que o dano se deu em extensão superior. Nesse caso, deve o valor inicialmente recebido ser abatido do que se apurar realmente devido ao final, evitando-se com isso o enriquecimento indevido da vítima. A lei 14.128/21, portanto, espera de nós, juristas de boa vontade, a compreensão de que não se está diante de um teto intransponível de quantificação do valor indenitário nas situações regidas pelo art. 3º. Os intérpretes agirão com acerto se aqui identificarem nada além de um valor inicial fixado por lei que, por vezes, será suficiente para atender à extensão do dano, e, em outros casos, será somente o início (o mínimo) de indenização, repito, não afastando a indenização suplementar caso a extensão do dano a maior seja demonstrada. Assim compreender a regra permitirá conciliar as potencialidades do instituto à realização das funções da responsabilidade civil na sociedade contemporânea. Sempre com apoio na boa doutrina, a jurisprudência deve dar concretude ao compromisso que a responsabilidade civil inspira: "(n)o mundo atual, não mais cabe pensar no juiz como um mero locutor oficial da lei, mas, sim, como participante da integração dos valores expressos nos princípios gerais, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e nas formulações de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva, que ensejam a atualização e oxigenação permanente do ordenamento"10. Assim seja. *Alexandre Guerra é doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil da Escola Paulista da Magistratura e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Especialista em Direito Público (EPM). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da PUC-SP/COGEAE. Juiz de Direito no Estado de SP. Membro fundador do Instituto de Direito Privado (IDiP), do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Autor e coordenador de obras e artigos jurídicos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 A respeito dos amplos horizontes do ato ilícito e da responsabilidade que pode ensejar, seja consentido remeter a: GUERRA, Alexandre. Responsabilidade civil por abuso do direito. In: GUERRA, Alexandre D. de M.; BENACCHIO, Marcelo (coords.) Responsabilidade Civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2015. Disponível aqui. Acesso: 27.4.2021. 5 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. 6 A respeito, ver excelente obra de: FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 53-54. 7 GUERRA, Alexandre. Três lições de responsabilidade civil, de Renan Lotufo: A coexistência de três modelos de responsabilidade civil. A culpa e a fênix. A indenização social para entidades de beneficência. In: GUERRA, Alexandre: MORATO, Antonio Carlos; MARTINS, Fernando Rodrigues; ROSENVALD, Nelson (coords.). Da estrutura à função da responsabilidade civil. Uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) ao Professor Renan Lotufo. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 315-330. 8 Disponível aqui. 9 A coexistência de três sistemas de Responsabilidade Civil foi recentemente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que proclama a constitucionalidade da limitação da indenização estabelecida em convenções internacionais que disciplina o contrato de transporte aéreo (STF, Recurso Extraordinário nº 636.331/RJ, Relator Min. GILMAR MENDES, j. 25.05.2017). Disponível aqui. 10 LOTUFO, Renan. A responsabilidade civil e o papel do Juiz no Código Civil de 2002. In: ANDRADE NERY, Rosa Maria de; DONINI, Rogério (coords.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem a Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 458 __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Aspectos gerais: Vive-se nos últimos tempos envolvido em uma pandemia sem precedentes. Quase 400 mil pessoas já perderam a vida, somente no Brasil.  As pessoas encontram-se submetidas ora ao medo, ora à reflexão. Às vezes só impera a desinteligência. Muitos passaram a viver em completo isolamento social. O motivo disso se chama COVID-19. Estados e municípios determinaram o fechamento de escolas, comércio, indústria, serviços e inúmeras outros estabelecimentos. Quando a suspensão das atividades não é integral, há regras de limitações. Setores do turismo, hoteleiro, eventos e entretenimento são os mais prejudicados. Critérios nem sempre objetivos foram utilizados. Diante disso as empresas começaram a conviver com a diminuição e/ou até a falta total de faturamento com grandes dificuldades para honrar os compromissos. Muitos perderam o emprego ou tiveram sua remuneração e carga horária limitada. Qual o impacto do tema no mercado locatício imobiliário? De pronto, tal ocorrência legitima caso claro de caso fortuito ou força maior  (art. 393/CC). O fator COVID-19 está além de qualquer álea imaginável, pelo que se configura caso fortuito (em se tomando como origem o vírus) ou de força (em se tomando como origem a ação humana de transmitir). Os elementos desse fortuito externo são a necessariedade e a inevitabilidade, presentes no caso. Não se faz necessária a prova de que o COVID-19 se constitui nessa espécie de fortuito, pois há uma   presunção simples de que isso afeta todos as pessoas. Porém, há a necessidade de demonstração da medida em que o locatário é afetado, no caso concreto. A interpretação do problema deve se dar à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade. E no âmbito contratual da autonomia privada, boa-fé, equilíbrio contratual e da função social e econômica.    As relações locatícias configuram-se execução de trato sucessivo. Significa dizer que o equilíbrio previsto no momento da contratação deve ser mantido durante toda a relação contratual. Além disso, deve-se destacar a relevância dos princípios da livre iniciativa e do direito social à moradia, esse último com especial destaque na locação residencial. Logo, tanto a locação empresarial como a residencial devem cumprir uma função maior, de natureza magna, a primeira como instrumento efetivo da livre iniciativa; a segunda como meio efetivo para se garantir o direito social à moradia.  A ideologia desses princípios norteia as soluções sugeridas. Sugestões para a solução do problema: Além da conciliação, meio adequado para qualquer assunto de natureza patrimonial, as demais soluções dependem do fato concreto:     a) atividade proibida ou suspensa: a aplicação se dá de pleno direito, ou seja, haverá supressão do aluguel ou diminuição de seu valor, ainda que nesse último tópico possa ser necessário o arbitramento judicial. O ponto essencial desse tópico é a aplicação dos artigos 22, I e III1 da lei do inquilinato, em que não se aplica o princípio da alocação equivalente dos riscos. O risco corre por conta do locador. Res perito domino. Essas obrigações são essenciais ao contrato de locação, cabendo ao locador garantir o uso do imóvel durante a locação de forma a servir ao fim a que se destina. Essa finalidade é a residencial ou não residencial. Se não residencial e estabelecida a atividade específica no contrato (comércio, loja de móveis, escritório de advocacia, etc.) é essa a obrigação do locador. Ou seja, se ele locou para comércio de roupas, não se obriga a garantir o uso para outra atividade que não aquela. Diferentemente, se constou genericamente, haverá a necessidade de se demonstrar o efetivo prejuízo. Se a locação for mista, deverá ser considerada a atividade preponderante ou, ainda, os efeitos parciais ou totais sobre a locação.  Mais detidamente, o primeiro ponto, a ser levado em conta, é se a obrigação principal do locador, ou seja, dar à coisa o fim hábil a que se destina e mantê-la durante a locação esta finalidade, foi cumprida. Ao passo que o dever principal do locatário é de pagar o aluguel e acessórios decorrentes da locação. É importante destacar que no âmbito da locação o princípio da exceptio non adimpleti contractus só vale para o locatário.   Se a atividade do locatário foi encerrada, definitiva ou provisoriamente, por ordem legal, ou por vontade própria, em determinadas circunstâncias, em razão da pandemia, o locador não poderá exigir o pagamento do aluguel, ou somente pode fazê-lo de maneira parcial, conforme o caso. Vale aqui a máxima latina, res perit domino, a coisa perece para o seu proprietário. Em se tratando de locação não residencial, duas podem ser as hipóteses. A primeira é quando o contrato de locação assevera: locação para fins não residenciais ou locação para fins comerciais. Quando se tem essa assertiva, significa dizer que o locador se obrigou a entregar o imóvel não para uma finalidade especifica, mas para uma atividade geral. Às vezes a finalidade não residencial ou comercial está especificada, restaurante, panificadora, comércio de móveis. Aqui se tem uma outra circunstância: o locador se obrigou não só ao fim comercial, mas para uma determinada finalidade. Então os efeitos são mais severos: obriga-se o locador pela possibilidade de desenvolvimento da própria atividade. Isto também quando se está diante de uma locação mista, ou seja, naquelas circunstâncias em que haja preponderância de uma locação (residencial ou não residencial), mas se exerce a outra. Então já se tem uma situação diferenciada em que a prioridade é a locação residencial, mas pode ter algum efeito na atividade não residencial. Se em razão desta pandemia, o locatário pretenda entregar as chaves com o encerramento da locação, não há incidência de multa, porque ele não está descumprindo o contrato, ao contrário, quem estaria descumprindo o contrato, por motivo de força maior, seria o locador. Não é necessário a propositura de medida judicial para tal fim, pois a regra se opera de pleno direito. Pelo dever da boa-fé recomenda-se que o locatário comunique o locador, mediante o uso de qualquer meio idôneo. Comunicando ou não, poderá opor essa circunstância se for demandado pelo não pagamento. Não, porém, se as partes convencionaram algum desconto ou isenção por determinado período ou mesmo diferirem o pagamento para período futuro.  Quando o locatário não esteve privado por completo do uso do imóvel, a inexigibilidade não será completa e necessitará de exame das circunstâncias e da extensão dos limites que ele, locatário, restou privado do uso da coisa.     Se o locador não poderia exigir o aluguel se ao firmar o contrato de locação tivesse por objeto atividade proibida, é evidente que também não poderá fazê-lo se a proibição é superveniente. É dever do credor colaborar para diminuir os danos do devedor. Isso deve ser considerado nas tratativas, bem como reconhecido pelo juiz ao decidir a matéria. É o chamado dever de mitigar a perda, oriundo do dever anexo de proteção2. b) redução do valor de mercado do imóvel locado: revisão contratual por alteração das condições de mercado (arts. 19, 68, b, LI): se, em razão da pandemia, o   locativo passa a ser desproporcional, o locatário poderá propor a ação revisional, visando conduzi-lo ao valor atual do mercado. Essa revisional tem uma peculiaridade específica, pois está restrita ao período em que haja uma divergência entre o valor de mercado e o valor do locatício ligado ao Corona Vírus. Sendo excepcional a situação, não é exigível o prazo de três anos contados do contrato ou do último acordo entre as partes. A eficácia do novo aluguel deve se dar a partir do momento do ajuizamento da ação, pela peculiaridade, e não da citação, como estabelece a lei.   c) revisão e/ou resolução por onerosidade excessiva (arts. 317 e 478 CC):   todo estabelecimento comercial, ao assumir o compromisso de pagamento de um aluguel, leva em conta os custos operacionais, pois seu objetivo é o lucro.  Isso, em geral, é   uma questão interna do locatário, irrelevante para o locador. Em uma pandemia os custos operacionais aumentam, ou ao menos ficam iguais, e o faturamento reduz barbaramente. Então, isto permite uma análise de toda atividade do locatário. Tem que se demonstrar que há uma excessiva onerosidade, ou seja, um sacrifício desmedido. Então ele poderá propor a revisão do contrato por onerosidade excessiva, motivada pela pandemia (fortuito externo), ação esta que para ter um resultado efetivo deverá contemplar um pedido de tutela provisória. Não é necessário que haja uma alteração no valor de mercado do imóvel. O importante é que as condições econômico-financeiras do locatário se alteraram em razão da pandemia. Em isto acontecendo, os riscos devem ser suportados igualmente pelas partes, o que se chama de alocação dos riscos.   O locador tanto pode concordar em revisar o contrato se o pedido for de resolução, como pode pleitear a resolução, sem culpa das partes, se o pleito for de revisão. O instrumento para tanto é a reconvenção. Na ação de revisão por onerosidade excessiva o que está em questão são os efeitos gerados pela pandemia na vida econômica do locatário. Isso pode possuir um caráter reflexo. Por exemplo, o locatário está com seu estabelecimento comercial fechado em razão da pandemia e, por causa disso, passa a encontrar dificuldades em pagar a locação do seu imóvel residencial. Assim, em se tratando de locação residencial pode-se utilizar da revisional locatícia ou da revisão por onerosidade excessiva. Na locação não residencial, como já referido, poderá o aluguel ser inexigível quando o imóvel não estiver à disposição do locatário. Isto pode ser por ordem legal em que o imóvel possa estar fechado, desde que o locador tenha se obrigado àquela atividade. Se, porém, a atividade foi encerrada em razão de outras circunstâncias, não será possível a demanda. A onerosidade não pode ser decorrência do risco do negócio, mas sim excessiva, relevante. Esse desequilíbrio deve ser dividido entre as partes, ou seja, aqui o risco não corre por conta do locador.  A eficácia da medida deve se dar desde o ajuizamento. Se o locatário já se encontrava em mora, deverá depositar o valor em atraso por ocasião do ajuizamento da ação.  Shopping centers: Esses centros comerciais foram amplamente afetados haja vista o afluxo normal e intenso de pessoas que por lá circulam, sobretudo nas praças de alimentação, centro de eventos, corredores, locais adequados para a disseminação mais intensa do vírus.  Quem abre um estabelecimento nesses centros comerciais e busca ali desenvolver suas atividades empresariais, locando imóvel para tanto, o faz exatamente por causa do mix de lojas, do apelo da circulação de pessoas e do grande afluxo de pessoas que lá devem ir, enfim de toda a estrutura do empreendimento. O objetivo do locatário situa-se muito além do seu espaço físico. O regular funcionamento de todas as lojas é de interesse de cada lojista. Assim, durante o período em que as lojas estiveram fechadas o aluguel não é devido, inclusive em seu valor mínimo. Tampouco os demais encargos como condomínio e fundo de promoção, salvo o pagamento da res sperata, normalmente chamada de luvas. Se houve limitação horária ou de dias para as atividades, a regra continua sendo a mencionada, com redução dos alugueres e encargos, proporcionalmente. O risco do empreendimento é do empreendedor e não pode ser transferido ao lojista. Por outro lado, se o fechamento for determinado por descumprimento de regras de segurança sanitária de parte do empreendedor, esse será responsável pela indenização dos prejuízos do lojista.  O lojista, conforme o caso, pode também se valer da revisional locatícia ou ainda da demanda atinente à revisão contratual por onerosidade excessiva, neste caso com divisão proporcional aos riscos.   Conclusão: este tema desafia uma visão inovadora do fenômeno jurídico.     Não se pode usar formas clássicas para resolver um problema que é inédito. O jurisdicionados necessitam de respostas rápidas, pois carecem de solução imediata.  Os olhos do operador jurídico devem considerar que essa pandemia é única, não sendo possível usar as mesmas soluções de problemas semelhantes, porque nunca houve situação análoga.  O que se espera é que haja uma pacificação dos problemas de forma a evitar o encerramento de inúmeras atividades, preservando-se os empregos e mantendo-se as moradias. *Carlyle Popp é mestre em Direito Público pela UFPR. Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná, da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Conselho Editorial da Juruá Editora, do Instituto de Direito Privado, da ALUBRA e do IBERC.   Foi professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (mestrado) do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) até 2012. Advogado Sócio de Popp Advogados Associados. Ex-professor da PUC/PR. É escritor. Coordenador e colaborador das antologias Instruções à Cortázar: homenagem de cronópios, famas e esperanças. Juruá Editora, 2014. __________ 1 Art. 22. "O locador é obrigado a: I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao fim a que se destina; (...); III - manter, durante a locação, a forma e o destina do imóvel".   2 SITTA, Thiago Souza & LIMA, Ianara Cardoso. COVID-19: impactos nos contratos de locação comercial. Migalhas de peso. 13.04.2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Completa-se amanhã, dia 23 de abril de 2021, o primeiro ano da Coluna de Responsabilidade Civil no site Migalhas. Motivo de júbilo para todos os associados do IBERC, não faltam motivos para comemoração da efeméride. Afinal, este espaço tem promovido, duas vezes por semana, profícuo intercâmbio de experiências científicas entre diferentes escolas de todo o país, eventualmente abrilhantado com gentis colaborações de nossos associados de fora do Brasil. A cada terça e quinta, um texto inédito é publicado, sempre assinado por algum associado do IBERC (regra de exclusividade), a suscitar vivo debate não só nas redes sociais do Instituto, como nos círculos informativos de corporações profissionais e de grupos de pesquisa. Foram, até o momento, 97 (noventa e sete) colunas dedicadas às diversas matérias que se inserem na temática mais ampla da responsabilidade civil - esta é a nonagésima oitava! Inspirados pela circunstância da data festiva, resolvemos quebrar a sequência e abrir um breve parêntese na trajetória de difusão de conhecimento técnico para tomar a própria coluna como mote, como objeto de breve reflexão. Nessa direção, três importantes perfis despontam de plano. Não podemos deixar de destacar, em primeiro lugar, o papel formidável que o desenvolvimento tecnológico tem desempenhado na experiência e na dogmática jurídica. Como as publicações da aniversariante do dia se fazem por meio da internet, tem-se permanente garantia de agilidade e dispensam-se as etapas dos fluxogramas típicos dos processos editoriais convencionais, com suas linhas de produção-impressão-distribuição, que até há bem pouco consumiam bastante tempo entre a caneta do escritor e o acesso do leitor ao texto. Na dita sociedade de informação, os dados devem circular céleres, aptos a acompanhar o frenético ritmo dos acontecimentos. Nossos associados, portanto, de qualquer recanto do planeta, podem acessar, livres de tais processos intermediários e em tempo real, o conteúdo dos artigos aqui veiculados. Cabe destacar o que, acerca do ponto, escrevemos, noutra oportunidade, aqui neste espaço: "Produto de seu tempo, a coluna se vale de ferramentas que as novas tecnologias permitiram incorporar à rotina do advogado do século XXI. Da finalização do texto pelo autor à edição final que o leitor encontra divulgada gratuitamente na Internet medeia um átimo, o que, encurtando o itinerário convencional das publicações de artigos jurídicos, proporciona que a informação aprofundada (....) alcance a outra ponta, nosso público consumidor, just in time".1 Conexo a tal velocidade de publicação, cabe mencionar um segundo aspecto determinante do êxito desse - por que não reconhecer? - novo modelo de fazer doutrina no país. Queremos nos referir neste particular às diferentes expertises do quadro essencialmente plural e de formação heterogênea dos associados do IBERC. Dita virtude permite que a Coluna possa contribuir para esclarecer cada diploma normativo publicado, cada decisão relevante adotada, cada nova obra editada, pois muito dificilmente - rectius, quase impossível - algum tema escapará da área de conhecimento do corpo social deste Instituto. Ao longo do ano, foram objeto da análise atenta de nossos associados a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD; a edição da Medida Provisória 966, que trata da responsabilidade civil de agentes públicos no período de pandemia; o projeto de lei 1.397/20, no qual se discute um regime jurídico transitório da recuperação judicial, extrajudicial e falência em razão das consequências da pandemia; o projeto de lei 2.630/20, que cuida das denominadas fake news; a lei 14.010/2020, também denominada de Regime Jurídico Emergencial Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia (RJET); a aprovação do novo marco legal do saneamento básico; a promulgação da lei 14.034/2020, que regula as medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia; a entrada em vigor da lei 14.066/20, sobre a política nacional de segurança de barragens; o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Tema 786 de sua repercussão geral, sobre os contornos do direito ao esquecimento no direito brasileiro; a promulgação da lei 14.128/2021, que prevê indenização aos profissionais de saúde por danos na pandemia da Covid-19; e a entrada em vigor da lei 14.129/2021, que regulamenta a criação do denominado Governo Digital, dentre outras. E a coluna não tem deixado de direcionar suas lentes para os impactos contratuais e extracontratuais da dramática pandemia do coronavírus, que tem massacrado o país diuturnamente. Como registramos em ocasião anterior, a coluna procura satisfazer o interesse dos operadores do Direito "na resolução dos novos problemas práticos suscitados e auxiliando-os a superar desafios inéditos e de proporções gigantescas que a agenda da Covid-19 impôs. Tudo isso sem descurar dos assuntos centrais da disciplina da responsabilidade civil, como seus fundamentos e funções, bem como dos temas de direito de danos que o legislador inseria no ordenamento e das decisões que o STF e o STJ tomavam a cada giro, objeto de algumas edições extraordinárias da coluna, mantendo, deste modo, os leitores sempre bem-informados das novidades legislativas e judiciais do país".2 Finalmente, o terceiro ponto a destacar diz respeito à informalidade crescente que tem marcado a atividade docente no século XXI. No tema específico, os leitores de responsabilidade civil no Migalhas, de maneira gratuita e se aproveitando da comodidade de livre acesso, podem desfrutar de cada texto publicado, assim como compartilhá-lo, de modo simples e ágil, com seus contatos, tornando-se, eles próprios, em alguma medida, protagonistas da irradiação do saber. Para além disso, com certa frequência os autores dos produtos publicados recebem mensagens de retorno dos leitores que aduzem sugestões e observações críticas. Quer dizer, a superação de alguns padrões de comportamento ligados ao formalismo permite ao público em geral maior aproximação, ao menos virtual, do doutrinador. Propicia, assim, os benefícios do contato direto e efetivo para ambos os lados, sendo certo que os autores usualmente respondem perguntas, fornecem aconselhamentos, enfim, interagem com aqueles que estão atrás da quarta parede. Outra faceta da informalidade deriva do próprio método e instruções de publicação da coluna no Migalhas: texto curto, linguagem direta, poucas notas de rodapé, tudo contribui para a assimilação instantânea da mensagem transmitida. Como ocorre em outras ciências, nesse ponto percebemos o vigoroso papel das chamadas novas contribuições acadêmicas, a bem da maior eficácia das trocas de conhecimento, de redesenhadas dimensões de alcance e de impacto social. Claro que a pequena enumeração ora apresentada se mostra aberta e necessariamente incompleta. Nossa pretensão limitou-se àquelas causas mais diretamente vinculadas ao primeiro ano de empreitada da coluna, sabedores que por aqui ficamos longe de uma análise verticalizada do complexo e mais amplo tema da nova veiculação doutrinária, que deveria incluir as fronteiras entre os capítulos de livros em obras coletivas e os artigos em periódicos especializados, os contrastes entre os aspectos qualitativos e quantitativos da produção científica, os limites e possibilidades de assinatura em coautoria, a carência de coleta de dados empíricos na experiência jurídica, de trabalhos de campo e do regular funcionamento de observatórios de jurisprudência etc. No entanto, a grande revolução que se faz consequência direta e imediata da conjugação dos três perfis apontados supra consiste na efetiva aproximação da teoria à práxis. Trata-se de fenômeno de todo desejável, a caminho da construção de um ordenamento oxigenado e permanentemente adequado à escala de valores constitucionalmente assegurada. Nesse quadro, remodela-se a dogmática jurídica, que se liberta de características negativas do passado recente, que em outra sede se denunciava: "a doutrina, ensimesmada, buscava guarida na suposta segurança de abstrações e esquematizações do passado, e, apegando-se ao formalismo, desprezava a realidade dos fatos. Pretendia-se universal, absoluta, como um fim em si mesma, em exercício de puro fetichismo conceitualista. Na percepção crítica de Von Caenegem, 'numa perspectiva histórica geral, o mais surpreendente é que esses juristas tenham recebido sua educação profissional longe da prática diária do direito'".3 A coluna, ao contrário, por tudo o quanto se expôs, revela-se veículo de promoção de um novo personagem, identificado naquela oportunidade como doutrinador colaborativo. "Doutrinador colaborativo na construção da solução dos casos concretos, essa parece ser a função nuclear do professor de direito no mundo contemporâneo. Além de compilar dados, impõe-se que trabalhe sobre o torrencial volume de feitos disponíveis a fim de extrair, em perspectiva crítica e propositiva, a função dos institutos e a ratio decidendi compatível com os valores máximos do elenco axiológico do ordenamento jurídico (...) De igual modo, deve-se afastar do papel de mero observador voyeur, que assiste passivamente - de fora, sem ser visto - o desenrolar da história, e apoia-se na formulação de classificações e abstrações intelectuais que não correspondem ao mundo real - rectius, aos conflitos em concreto. Faz-se mister que o doutrinador colaborativo supere, ainda, as tentações do conceitualismo - caracterizado pelo "excesso das abstrações e das generalizações" - e do comportamento elitista - traduzido no distanciamento da realidade e no estudo do direito comparado em perspectiva acrítica. (...) [Assim sendo,] o doutrinador escapará à função meramente recognitiva e produzirá conhecimento e interpretação em função aplicativa, comprometendo-se, de um lado, com a instrumentalidade de princípios e regras aos valores do sistema e, de outro, com a eficácia social da academia".4 Que esta coluna continue a ser, por meio do ágil compartilhamento de informações que enseja, mais um elo da conexão fundamental entre law-in-action e law-on-the-books, além de ponto de convergência e de intercâmbio cultural dos associados do IBERC - autores, primeiros destinatários dos artigos divulgados e principais homenageados destas linhas: feliz aniversário! *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado, parecerista em temas de Direito Privado. **Nelson Rosenvald é professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. O Dia do Advogado, a responsabilidade civil e o IBERC. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 2 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. O Dia do Advogado, a responsabilidade civil e o IBERC. In: Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 3 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Reflexões metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 9, n. 3, jul./set. 2016, pp. 9-10. 4 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Reflexões metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 9, n. 3, jul./set. 2016, pp. 17-18. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A concretização do risco segurado em conformidade com as coberturas contratadas, e a consequente ocorrência do sinistro, em princípio, gera ao segurado o direito a ser indenizado pelo segurador. O processo de análise da cobertura e extensão da prestação do segurador, designado como regulação do sinistro,1 não costuma, porém, ser simples.   Didaticamente, é possível ilustrar a usual sequência de acontecimentos da seguinte maneira: após a ocorrência do sinistro, o segurado faz o seu aviso diretamente ao segurador ou ao corretor de seguros, que o repassará ao segurador, acompanhado da entrega de alguns documentos, conforme a modalidade de seguro envolta no caso concreto. O exame de tais documentos e das condições do sinistro será feito pelo regulador do sinistro. Na sequência, o regulador irá emitir um relatório que será utilizado como guia para a efetiva, ainda que parcial, cobertura do sinistro pelo segurador ou a sua recusa, que necessariamente terá de ser fundamentada. O procedimento de regulação do sinistro não raro envolve questões complexas e multidisciplinares, demandando uma avaliação extremamente técnica, inclusive por meio de exames e vistorias. Tenha-se em mente, por exemplo, a regulação de sinistros envolvendo plataformas petrolíferas. Existem, todavia, casos mais simples, como ocorre no seguro de vida em que não há suspeita de suicídio ou agravamento do risco incorrido pelo segurado. Embora não se questione que algumas linhas financeiras de seguros - que dependem visceralmente da interpretação dos termos da apólice em cotejo com as hipóteses fáticas - continuarão sendo reguladas de forma analógica por muito tempo (v.g., seguro D&O e seguro E&O), deve-se reconhecer que uma parte considerável dos seguros será impactada pelas novas tecnologias aplicadas na regulação de sinistros, sobretudo nos ramos massificados.2  A digitalização de ponta a ponta da regulação de sinistros pode ser segmentada em cinco fases, a saber: i) prevenção de sinistros (avisos de segurança e treinamento comportamental do cliente); ii) aviso de sinistros (por meio de chatbots, eventualmente com autenticação biométrica de clientes, ou até mesmo de forma automatizada, via telemática); iii) gestão de reclamações (predição das características das reclamações, segmentação das reclamações por tipo e complexidade, bem como análise aperfeiçoada das fraudes); iv) avaliação e reparação das perdas (estimativa automática ou semiautomática do valor do dano com base na imagem/reconhecimento de vídeo); e v) resolução de sinistros (processos de pagamento automatizados ou semiautomatizados).3 No presente artigo, pretende-se examinar o item v); mais especificamente, os denominados seguros paramétricos, que têm como nota distintiva a automação da regulação dos sinistros. Paramétrico é aquilo que parte de entendidos e pressupostos. O que é predefinido não é, via de regra, objeto de longas discussões. Os seguros paramétricos prescindem de regulação do sinistro no sentido de investigações complexas da dinâmica do sinistro, porque, neles, bastará o cotejo entre o sinistro e uma lista preexistente de suportes fáticos autorizadores do acesso à indenização. Dito de outra forma, verificado o alcance de um parâmetro predeterminado, haverá o pagamento da indenização securitária, salvo a ocorrência de fraude. Enquanto no seguro de danos tradicional, afirma Andre Martin, "é pago um prêmio em troca de uma promessa de cobrir a perda real incorrida de um incidente ou de um perigo nomeado", e a indenização só se concretiza "após uma avaliação e investigação das perdas reais, com o objetivo de colocar o segurado novamente na posição em que se encontrava antes do evento", as "soluções paramétricas (ou baseadas em índices) são um tipo de seguro que cobre a probabilidade de um evento predefinido acontecer em vez de indenizar as perdas efetivamente incorridas".4 Para tornar a compreensão do assunto mais simples, exemplifica-se. Determinada seguradora pode estabelecer que, na ocorrência de tremor de terra cuja magnitude seja igual ou superior a X pontos na Escala Richter, o prejuízo do segurado será presumido e a indenização paga. Outros exemplos de seguros paramétricos no cenário internacional são os relacionados ao atraso ou ao cancelamento de voos e à inundação em propriedades.5 Na definição de Pedro Guilherme Souza: "Os seguros paramétricos consistem em modalidade securitária que, no lugar de exigir a apuração de perdas e suas respectivas extensões no momento de liquidar um sinistro, utiliza como referência um índice ou parâmetro predefinido. Caso determinado índice seja atingido, e.g. ventos acima de setenta nós por mais de três horas consecutivas, o segurado é indenizado pelas perdas estimadas para eventos dessa natureza e magnitude".6 Os seguros paramétricos coadunam-se com o ordenamento jurídico pátrio e não há óbice para que sejam objeto de ato normativo pela Susep com o objetivo de fixar boas práticas e impulsionar a sua penetração no mercado brasileiro. Entre os seus benefícios, cabe destacar a celeridade e a objetividade na prestação da indenização - que independe de apuração do dano na regulação do sinistro -, bem como a mitigação do risco moral do segurado, pois o critério necessário para o gatilho da cobertura (parâmetro ou índice), além de ser modelável, necessariamente deverá ser fortuito.7 Não obstante a discussão relativa à (in)observância do tradicional princípio indenitário, podendo o seguro paramétrico, em alguns casos, ensejar o recebimento pelo segurado de uma indenização maior do que o dano concretizado, vale ressaltar que, na prática, isso já ocorre, excepcionalmente, em outras modalidades, como no seguro de automóvel (imagine-se uma indenização levando em conta o preço médio do mercado, de um automóvel em péssimas condições). Além disso, no âmbito do seguro de vida, não há aplicação do princípio indenitário (art. 789 do CC).  Retornando a atenção aos seguros paramétricos, mesmo quando o parâmetro previamente fixado pelo segurador não seja atingido, o segurado pode vir a sofrer um dano considerável e não receber nenhuma indenização. Por isso mesmo deve ser afastada a corrente doutrinária que defende a mera presunção relativa do dano, suscetível de prova contrária do segurador, nessa modalidade. Ora, o segurador é mestre de seu ofício e certamente fixará parâmetros que, ao menos na maior parte das vezes, não ensejará o enriquecimento "indevido" do segurado.8 Há, porém, o perigo inverso: a fixação de parâmetros pelo segurador muito raramente alcançáveis, o que retiraria quase todo o conteúdo da garantia dos riscos inerentes ao segurado. Por isso mesmo, é importante que a regulação contenha normas que possam equilibrar a relação entre as partes, sem impedir a célere e praticamente incontestável liquidação do sinistro que caracterizam essa modalidade de seguros, bem como exigindo um bom nível de transparência do segurador sobre como os parâmetros são fixados e examinados nos casos concretos. *Thiago Junqueira é doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo - Alemanha). Professor do ICDS - Instituto Connect de Direito Social e da Escola de Negócios e Seguros. Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e Parecerista, Sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados. __________ 1 Sobre o tema, são referências obrigatórias na doutrina brasileira TZIRULNIK, Ernesto (com a colaboração de Alessandro Octaviani). Estudos de Direito do Seguro, Regulação de Sinistro (ensaio jurídico) - Seguro e Fraude. São Paulo: Max Limonad, 1999. pp. 55-124; MARTINS-COSTA, Judith. Boa-fé e regulação do sinistro. In: VII Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho - IBDS. Lei de contrato de seguro: solidariedade ou exclusão? São Paulo: Roncarati, 2018, pp. 201-210; e o recentíssimo e profundo estudo de MIRAGEM, Bruno; PERTERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunais, vol. 1025, março - 2021, pp. 291-324. 2 Para uma análise detalhada dessas novas tecnologias (Big Data, Inteligência Artificial e Internet das Coisas) e seus impactos nas relações securitárias (used base insurance, insurance on demand e P2P insurance) e nos direitos da personalidade dos segurados, confira-se: JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 209 e ss.; GOLDBERG, Ilan. Inovação e disrupção no mercado de seguros. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. O direito Civil na era da Inteligências Artificial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. pp. 531 e ss; e, nessa obra citada por último, MIRAGEM, Bruno; PERTERSEN, Luiza. Seguro e inteligência artificial: novo paradigma tecnológico e seus reflexos na causa e na estrutura do contrato de seguro. pp. 490 e ss. 3 Seguiu-se de perto a formulação proposta por MCKINSEY. Claims in the digital age. Disponível  aqui. Advirta-se, por oportuno, que o acesso ao referido endereço eletrônico, bem como aos demais, mencionados em seguida, ocorreram pela última vez em 19 mar. 2021. Sublinhe-se, outrossim, que os trechos originários de idiomas estrangeiros e transcritos no presente estudo foram livremente traduzidos pelos autores. 4 MARTIN, Andre. What is parametric insurace? Disponível aqui. Em bom rigor, não há uma "promessa de cobrir" no seguro tradicional, mas sim a garantia do risco contratualmente delimitado pelo segurador. 5 "Os seguros paramétricos vem aumentando em prevalência em todo o setor de seguros. Fixar pagamentos adiantados pode ser benéfico para alguns clientes em relação aos produtos de seguros tradicionais ao proporcionar maior certeza e rapidez nos pagamentos de sinistros. No Reino Unido, uma seguradora desenvolveu um produto de seguro contra inundações que envolve um pagamento imediato de um montante predeterminado a ser acionado quando a água da inundação atinge uma certa profundidade no sensor instalado pela seguradora na propriedade. Modelos semelhantes são também utilizados em produtos de seguro de atraso e cancelamento de voo, em que a integração com uma alimentação de dados - que fornece diretamente dados sobre o estado do voo - permite o pagamento quase instantâneo de um sinistro no caso de um voo atrasar ou ser cancelado". INTERNATIONAL ASSOCIATION OF INSURANCE SUPERVISORS. Issues Paper on the Use of Big Data Analytics in Insurance. Basel: IAIS, 2020. p. 27.   6 SOUZA, Pedro Guilherme Gonçalves de. Seguro paramétrico e política pública de defesa de calamidades no cenário nacional. Revista Opinião.Seg, n.º 17, novembro 2019, p. 85. 7 "Um parâmetro ou índice adequado é qualquer medida objetiva que esteja correlacionada com um risco específico e, em última análise, com uma perda financeira para o segurado. Trata-se de um 'índice mensurável' relacionado com um 'cenário'. Por exemplo, chuva relacionada com o atraso de um projeto de construção ou terremoto relacionado com danos no patrimônio físico de uma empresa". MARTIN, Andre. What is parametric insurace? Disponível aqui.   8 A principal vantagem dos seguros paramétricos é justamente a automação da liquidação de sinistro, desde que o parâmetro predeterminado seja alcançado, não se entrando na análise de efetivos danos sofridos pelo segurado. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
A novidade de leis, portarias e resoluções voltadas à implementação de tecnologias para eficientização, desburocratização e inovação no Poder Público exigem cautela tanto por parte do intérprete jurídico, quanto do gestor público. Diante da urgência por transformações, é fundamental atentar-se à dogmática e à interpretação dos enunciados normativos, observando-se a tradição, sem prejuízo a eventuais atualizações que o tempo e a experiência podem  gerar na descarga argumentativa estabilizada pelo consenso. Localizam-se, assim, as funções dos enunciados dogmáticos: progresso, estabilização, descarga, técnica, controle e heurística1. Percebendo-se que a interpretação anda ao lado da experiência, este estudo pretende, apenas, apresentar aos leitores as novidades regulatórias e normativas que podem contribuir à compreensão do dever geral de segurança dos dados pessoais2, que, ao lado da inobservância à legislação, é requisito ao tratamento irregular dos dados pessoais, conforme caput do art. 44 da lei 13.709/2018 (LGPD). A segurança que pode ser esperada (expectativa legítima) pelo titular considera circunstâncias relevantes, tais como modo pelo qual o tratamento é realizado, o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam, as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi realizado, conforme incisos do art. 44. No parágrafo único, é também dito que responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 463 da LGPD, der causa ao dano. Essa introdução é apresentada, porque a ilicitude e a responsabilidade civil são temas que sofreram impactos em razão da passagem do tempo, especificamente diante das transformações tecnológicas, sociais e econômicas. Muitas foram as teorias de atribuição de "novos contornos" à responsabilidade civil, inclusive, se seria possível considerá-la sem a ocorrência de dano, por exemplo. Concordando-se ou não com essas novas teorias, indiscutível que a responsabilidade civil perpassa pelo conceito de ilícito, e, no caso específico do ilícito apresentado na LGPD, fundamentado na violação à segurança, merece aprofundamento, sobretudo porque a implementação do governo digital, que recebeu direcionamentos na recente lei 14.129/2021, somente será possível a partir da operacionalização de sistemas que têm como base o tratamento de dados em sentido amplo, pessoais ou não. Para materializar-se a relevância da conexão entre a LGPD, a lei 14.129/2021 do Governo Digital, a nova Lei de Licitações (lei 14.133/2021) e as alterações promovidas em março de 2021 na Política Nacional de Segurança da Informação (decreto 10.641/21), ao lado, também, do decreto 10.046/20194, que dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados, para a compreensão de elementos ao dever geral de segurança diante deste contexto de transformações, parte-se de algumas premissas a partir da análise conjunta dessas normativas: (i) a promoção do desenvolvimento tecnológico e da inovação no setor público como princípio da Governança Digital de acordo com o inciso XVI do art. 3º, da lei 14.129/2021, o qual requer leitura conjunta com a nova modalidade de contratação prevista no art. 32 da nova Lei de Licitações (lei 14.131/2021) referente aos diálogos competitivos para situações de: inovação tecnológica ou técnica; impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela administração pública; (ii) a interoperabilidade e o compartilhamento de dados pessoais são as bases da governança digital, conforme inciso XIV do art. 3º, da lei 14.129/2021, que estabelece a interoperabilidade de sistemas e a promoção de dados abertos como princípio, de acordo também com o art. 25 da LGPD5 no diploma do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público, e art. 17 do decreto 10.046/2019, o qual define que "o Cadastro Base do Cidadão será composto pela base integradora e pelos componentes de interoperabilidade necessários ao intercâmbio de dados dessa base com as bases temáticas, e servirá como base de referência de informações sobre cidadãos para os órgãos e entidades do Poder Executivo Federal";  (iii) o decreto 10.046/2019 prevê que a interoperabilidade observará a legislação e as recomendações técnicas estabelecidas pelo Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação - SISP do Poder Executivo federal, e, ainda, as recomendações do Comitê Central de Governança de Dados, conforme parágrafo único do art. 17, tendo sido a figura do Comitê instituída pelo art. 21, competindo-lhe, de acordo com os incisos II e III do artigo referido as regras e os parâmetros para o compartilhamento restrito, incluídos os padrões relativos à preservação do sigilo e da segurança, bem como a compatibilidade entre as políticas de segurança da informação e as comunicações efetuadas pelos órgãos e entidades de que trata o art. 1º do decreto 10.046/2019, no âmbito das atividades relativas ao compartilhamento de dados, além da previsão do art. 7º do mesmo decreto, estabelecendo que as plataformas de interoperabilidade contemplarão os requisitos de sigilo, confidencialidade, gestão, auditabilidade e segurança da informação necessários ao compartilhamento de dados, conforme regras estabelecidas pelo Comitê Central de Governança de Dados; (iv) os padrões de segurança, além daqueles determinados pelo Comitê Central de Governança de Dados e de eventuais normativas da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que poderá, por sua vez, solicitar a agentes do Poder Público a publicação de relatórios de impacto à proteção de dados pessoais e sugerir a adoção de padrões e de boas práticas para os tratamentos de dados pessoais pelo Poder Público, conforme art. 32 da LGPD, também são orientados, sem prejuízo a regulamentos futuros, pelo disposto no Decreto n. 9.637/2018, o qual institui a Política Nacional de Segurança da Informação, alterado em ponto importante pelo decreto 10.641/21, que inseriu o termo "equipes de prevenção", ou seja, ampliando-se a competência da segurança da informação, antes resumida ao tratamento e resposta a incidentes cibernéticos; (v) a perspectiva de dever de segurança da informação voltada à tutela preventiva da ocorrência do ilícito por falha específica de segurança também deriva da LGPD, especialmente da previsão de política de boas práticas de governança do art. 50, o qual prevê que "os controladores e operadores, no âmbito de suas competências, pelo tratamento de dados pessoais, individualmente ou por meio de associações, poderão formular regras de boas práticas e de governança que estabeleçam as condições de organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais", que se relaciona, por sua vez, com o art. 49 da mesma Lei, no sentido de que "os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança e aos princípios gerais previstos nesta lei e às demais normas regulamentares", e (vi) a "gravidade dos riscos" do tratamento de dados pessoais previsto no parágrafo primeiro do art. 50 da LGPD, quando refere que, "ao estabelecer regras de boas práticas, o controlador e o operador levarão em consideração, em relação ao tratamento e aos dados, a natureza, o escopo, a finalidade e a probabilidade e a gravidade dos riscos e dos benefícios decorrentes de tratamento de dados do titular", representa elemento qualitativo à definição da expectativa legítima do dever de segurança, de modo que há de se refletir se a gravidade dos riscos pode mitigar a expectativa, ou, do contrário, exige, de forma preventiva, padrões mais complexos de tutela. A partir dos elementos apresentados, com a conjugação de diplomas recentes em relação ao tratamento de dados pessoais e à governança digital, como contribuição ao estudo do dever geral de segurança, cuja violação implica o tratamento irregular dos dados pessoais, é possível perceber a relevância da temática quando se trata do Poder Público enquanto controlador e operador de dados, além de guardião da integridade e segurança das informações. Esse tema torna-se ainda mais complexo, quando se volta aos instrumentos de aquisição de tecnologia, conforme a nova Lei de Licitações e de acordo com os direcionamentos necessários à modernização da gestão pública, baseada, como visto, no tratamento dos dados pessoais ou não. A governança digital visa à otimização da gestão pública, tendo como centro o próprio cidadão. Nesse processo, portanto, ao conciliar a interoperabilidade e o compartilhamento de dados como instrumentos à elaboração de políticas públicas, além da prestação de serviços públicos, o dever geral de segurança recebe contornos distintos se comparados à relação entre privados, tendo em vista, inclusive, questões de soberania nacional que podem restar comprometidas se vulnerabilizadas as proteções à informação e aos dados pessoais.  *Isadora Formenton Vargas é mestra em Argumentação Jurídica pela Universidad de Alicante e Università degli Studi di Palermo. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Associada ao IBERC. Assessora Jurídica na Assessoria Especial da Presidência do TJ/RS. __________ 1 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Editora Landy, 2001.p. 253-257. 2 DRESCH, Rafael de Freitas Valle; FALLEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Reflexos sobre a responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018). In: ROSENVALD, Nelson; DRESCH, Rafael de Freitas Valle; WESENDONCK, Tula (Coord). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Editora Foco, 2019. 3 LGDP. Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. 4 STF. OAB questiona decreto presidencial sobre compartilhamento de dados dos cidadãos: segundo a entidade, as medidas previstas na norma permitem construir uma ferramenta de vigilância estatal que inclui dados pessoais sensíveis. 25/01/2021. Disponível aqui. Acesso em 10 abr. 2021. ADI 6649/DF encontra-se em andamento junto ao Supremo Tribunal Federal. 5 LGPD. Art. 25. Os dados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com vistas à execução de políticas públicas, à prestação de serviços públicos, à descentralização da atividade pública e à disseminação e ao acesso das informações pelo público em geral. __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Por alterarem tão significativamente a dinâmica terrestre, as mudanças climáticas causam impactos negativos de natureza socioeconômica, política, cultural e ambiental. Esta relação de condicionalidade vem sendo demonstrada pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC) e pelos estudos de atribuição, que associam a elevação da temperatura da Terra com o aumento da intensidade e da frequência de eventos climáticos extremos, com o derretimento de geleiras e o subsequente aumento do nível do mar, com a formação de ilhas de calor, que causam a morte de pessoas e a perda da biodiversidade, e com prolongadas estiagens que colocam em risco a segurança alimentar e determinam a extinção de espécies. Não obstante, a multiplicidade de fatores que concorrem, direta ou indiretamente, para o aquecimento global tem ocasionado uma certa resistência a esquemas de imputação de responsabilidade civil para reparação de danos que são causados ou intensificados pelo aquecimento global. Esta resistência ocorre porque a estrutura de imputação da responsabilidade civil foi pensada com a racionalidade do século XIX, sob a demanda da proliferação de acidentes deflagrados pela revolução industrial, para enfrentar situações em que o lesante é certo e determinado e se tem condições de apurar o nexo causal entre a ação ou a omissão e o dano. Consequentemente, os casos em que o nexo causal é fluido e impreciso produzem perplexidade e a percepção de que os problemas devem ser resolvidos através de políticas públicas regulatórias que imponham limites ao exercício das atividades poluidoras, e não através da responsabilidade civil em sua perspectiva reparatória, ou mesmo preventiva. Essa assertiva ficou evidente na ação movida pelo Native Village of Kivalina e pelo Município de Kivalina, em defesa do povo esquimó (Inupiat Eskimo), com fundamento no direito federal norte-americano,contra as 29 empresas que, historicamente, mais emitem gases de efeito estufa, dentre as quais a Exxon Mobil Corporation. Os demandantes pretendiam obter indenização pelos danos pessoais e patrimoniais, inclusive futuros, oriundos do derretimento  do mar Ártico, cujas barreiras de gelo protegiam a comunidade de Kivalina contra as tempestades de inverno. No entanto, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu pelo descabimento da ação, sob o argumento de que o assunto já era objeto de regramento por parte do Clean Air Act e de outras regulações definidas pelo então presidente Barack Obama, inserindo-se em um contexto político, insuscetível de controle judicial1. Esta interpretação é adotada pela Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho2 e corroborada por Canotilho3 segundo o qual, em virtude da indeterminação das fontes emissoras, a responsabilidade civil não apresenta solução satisfatória, eis que amparada no esquema lesante/lesado, devendo-se partir para outras respostas, tais como os impostos ecológicos e os fundos de compensação ecológica. Não obstante, este cenário poderá ser modificado em virtude do significativo aporte dos estudos de atribuição4, que alcançam informações baseadas em probabilidade estatística e proporcionam que a causalidade seja construída, normativamente, conforme juízos de probabilidade. Nessa perspectiva, foi a ação ajuizada, em 2015, junto ao Poder Judiciário alemão, pelo fazendeiro Saul Lliuya, que vive em Huaraz, no Peru, contra a empresa RWE, considerada a maior produtora de energia da Alemanha. A ação, formulada a partir do disposto no parágrafo 1004 do Código Civil Alemão e amparada em um estudo de atribuição produzido pelo Institute of Climate Responsability, imputa à empresa a responsabilidade por haver lançado 0,47% das emissões de gases de efeito estufa detectadas no Planeta no período compreendido entre 1751 a 2010, que estaria desencadeando o derretimento dos glaciares localizados no Lago Palcacocha, e postula uma indenização proporcional a esse percentual. A ação também pede o ressarcimento das despesas havidas até o ajuizamento da ação para a proteção de sua casa e o pagamento do valor de dezessete mil euros para que a comunidade de Huaraz possa construir diques de proteção da cidade.  Embora inicialmente rechaçada pela Corte Regional de Essen,  em 2017, a Alta Corte Regional de Hamm  reconheceu que os maiores emissores de gases de efeito estufa devem ser os principais responsáveis por apoiar as ações de adaptação climática no Sul Global afetado pelas mudanças climáticas e admitiu fosse produzida prova técnica, em que deverá restar demonstrado que as emissões de CO2 causam a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, que há aumento da temperatura, em que medida esse aumento pode estar causando o derretimento da geleira de Palcaraju e se a proporção da causa parcial em relação ao nexo causal é mensurável e calculável e se soma 0,47% ao tempo do ajuizamento da ação. Esse caso mostra que o problema na causalidade difusa não é a certeza sobre a existência do dano e de suas causas, mas como garantir a imputação a uma empresa específica, sob o critério da conditio sine qua non, ou da but-for causation, porquanto a contribuição causal de uma empresa individualmente considerada pode ser insignificante para a produção dos danos cumulativos e sinérgicos e, além disso, ter sido perpetrada em conformidade com os padrões normativos vigente à época. Se a Justiça alemã reconhecer o direito de Saul Lliuya a uma indenização proporcional ao percentual de 0,47% das emissões históricas da RWE, estabelecido conforme estudos científicos de atribuição, estará superando a "market substituition defence", argumento de defesa que é destacado por Peel e Osofsky como um dos principais obstáculos jurídicos para as pretensões reparatórias na litigância climática, segundo o qual, uma vez suprimida a contribuição causal do suposto responsável, ainda assim o dano ocorrerá5. Em outras palavras, trata-se da superação do argumento da "gota d'água no oceano", se não para impedir a implantação de empreendimentos emissores de gases de efeito estufa, ao menos para viabilizar uma indenização proporcional às emissões de CO2. Portanto, o caso Lliuya v. RWE abre uma nova perspectiva para a imputação da responsabilidade civil, que sinaliza a possibilidade de atenuação da exigência de demonstração de nexo causal direto e imediato ou mesmo do nexo causal adequado, que vem substituído por uma abordagem estatística. Além disso, fricciona a teoria do âmbito de proteção da norma, pois as emissões de RWE, além de lícitas, sob o olhar das emissões globais de gases de efeito estufa, podem ser consideradas pouco significativas, já que correspondentes a apenas 0,47%.  Na base desta modificação da responsabilidade civil estão as demandas da realidade concreta, devendo-se, como salienta Kysar, questionar constantemente que ajustes são necessários para aproximar as ciências empíricas do Direito, reconhecendo-se que, na alocação dos custos decorrentes da produção de danos, não é justo que estes fiquem com as vítimas, apenas porque a moldura jurídica tradicional não conta, ainda, com o instrumental necessário para dar respostas mais adequadas6. Foi este o esforço de Benjamin, quando afirmou a necessidade de um regime especial para a responsabilidade civil pelo dano ambiental, revisitando-se suas funções clássicas, sob a premissa de que o instituto ostenta um caráter evolutivo, sempre a demandar novas teorias explicativas, que consigam dar conta da redistribuição de custos e de benefícios. Na ocasião, abordou o problema da dispersão do nexo causal e argumentou que, à luz do direito fundamental ao ambiente equilibrado, não se admite "qualquer distinção - a não ser no plano do regresso - entre causa principal e acessória e concausa", do que resultaria a incidência da teoria do risco integral, rechaçando-se as excludentes de causalidade7. A tese foi adotada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça8. No entanto, a imputação solidária e fundada em risco integral para os casos de emissões de gases de efeito estufa que, individualmente considerados, parecem insignificantes, pode revelar-se desproporcional. Por isso, uma solução interessante é o recurso à tese do polluter-share liability9, desenvolvida com inspiração na imputação conforme o market-share liability nas ações de responsabilidade civil por danos à saúde associados ao consumo de cigarros e de medicamentos10. Nessa estrutura, ao invés de se lançar mão da imputação solidária, estima-se estatisticamente o percentual de contribuição causal de cada empresa envolvida para o todo, e a indenização é rateada proporcionalmente. Portanto, trata-se de uma abordagem que propicia uma mínima compensação para as vítimas, além de permitir a imputação de responsabilidade por medidas preventivas. A respeito desta última possibilidade, Kysar  esclarece que, na polluter-share liability, não há incerteza a respeito da autoria do dano, mas o reconhecimento de que cada emissão poluidora contribui para um processo global que desencadeia os danos, e se busca, ao invés de uma reparação integral, a responsabilização proporcional e preventiva, com vistas à execução de medidas que proporcionem a mitigação dos impactos negativos e, no caso das mudanças climáticas, a adaptação para o aumento da resiliência contra as vulnerabilidades. No Brasil, o recurso à causalidade estatística foi adotado na ação civil pública movida pela Advocacia-Geral da União contra a Phillip Morris e outras, em que os custos com as doenças associadas ao consumo de tabaco e que oneram o Sistema Único de Saúde são imputados, proporcionalmente, às empresas11. Em conclusão, têm-se que os problemas de imputação de responsabilidade civil por danos climáticos, quando se têm múltiplas concausas, que concorrem cumulativa e sinergicamente para o agravamento dos problemas ambientais e climáticos, podem ser equacionados pelos estudos de atribuição, que se colocam como uma alternativa para os casos em que a imputação solidária se revelar desproporcional pela presença de um grande número de possíveis responsáveis que, individualmente, contribuem de forma pouco expressiva para o dano. Nesse caso, o termo "adequação" causal é preenchido pelos dados empíricos oriundos da probabilidade estatística que relaciona as inúmeras condições que têm potencial para gerar emissões de gases de efeito estufa e as consequências do aquecimento global. *Annelise Monteiro Steigleder é mestre em Direito pela UFPR, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, promotora de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul.  __________ 1 O caso é Kivalina v. Exxon Mobil Corp, et. al. US. Supreme Court, n. 12-1072. Notícia disponível aqui, acesso em 21 jan. 2021. 2 A Diretiva 2004/35/CE, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais, afirma que nem todas as formas de danos ambientais podem ser corrigidas pelo mecanismo da responsabilidade (art. 4º). Para que este seja eficaz, tem de haver um ou mais poluidores identificáveis, o dano tem de ser concreto e quantificável e tem de ser estabelecido  um nexo de causalidade entre o dano e  o ou os poluidores identificados. 3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito como direito subjetivo. In A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro. Coimbra: Coimbra  2005. 4 DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Bases estruturantes para a compensação climática no Brasil: Limites e potencialidades. Tese de Doutorado em Direito. UNISINOS, São Leopoldo, 2018, p. 84. 5 PEEL, Jacqueline, OSOFSKY, Hari. Climate change litigation: regulatory pathways to cleaner energy. Cambridge: Cambridge University Press, 2015; e PEEL, Jacqueline; OSOFSKY, Hari. A right turn in climate change litigation? In Transnational Environmental Law, 7:1 (2018), pp. 37-67. Cambridge University Press. 6 KYSAR, Douglas A., What Climate Change Can Do About Tort Law (July 20, 2010). Yale Law School, Public Law Working Paper No. 215, Environmental Law, Vol. 41, No. 1, 2011. 7 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 09/1998, p. 5-52, jan/mar/1998, p. 31. 8 Superior Tribunal de Justiça, Resp. 948.921 e Resp. 1.071.741. 9 MARQUES, Cláudia Lima e STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A aplicação do pollution share liability no direito brasileiro: reflexões a partir das contribuições de Antonio Herman Vasconcelos e Benjamin para a responsabilidade civil ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 100, out.-dez./2020, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,  pp. 27-56. 10 FACCHINI NETO, Eugênio. A relativização do nexo de causalidade e a responsabilização da indústria do fumo - a aceitação da lógica da probabilidade. Civilística.com, a. 5, n. 1, 2016, pp. 16-17. 11 A íntegra da ação civil pública, onde há referência a precentes norte-americanos, pode ser obtida aqui, acesso em 20 jan. 2021. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 
A entrada em vigor da Constituição da República em 5 de outubro de 1988 foi um divisor de águas da efetivação dos Direitos Humanos no Brasil. Após vinte e um (21) anos de ditadura, era promulgada no país, aquela que ficou conhecida como "Constituição Cidadã", porquanto um dos fundamentos do Estado brasileiro, passava a ser, ao lado do da soberania e da cidadania, por exemplo, o princípio da dignidade humana. Este, de conceituação multívoca, expressa, já no início da Lei Maior, que o legislador constituinte fez a opção pelo respeito da pessoa humana, o que vem sendo implementado ao longo de todos esses anos de sua vigência. Assim foi que logo após sua promulgação, surgiram, entre outras leis, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA -  (lei 8.069/1990); a lei 8.560/1992, que regulamentou o reconhecimento de filhos não matrimoniais, buscando por fim à discriminação existente até então; as leis 8.790(1994) e 9.278/1996, que cuidaram de regulamentar a entidade familiar constituída pela união estável (Const., art. 226, § 3º.); a lei 10.741/2001, mais conhecida como "Estatuto do Idoso"; e a lei 13.146/2015, o famoso EPD, isto é, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou profundamente o tema da capacidade civil plena, no ordenamento jurídico pátrio, para ficar entre leis que são de extrema importância para a efetivação do princípio da dignidade humana, assim como previsto pelo Constituinte. Apesar de todas essas leis, e como se sabe, no Brasil a lei "pega ou não pega", muito ainda precisa ser feito, a fim de que a legislação acima referida produza todos os efeitos por ela objetivados. Assim é que, no que diz respeito aos idosos, a despeito de lei específica e bastante abrangente, nem sempre as pessoas acima dos sessenta (60) anos1 têm conseguido o respeito que merecem. E isto, muito embora eles carreguem algo muito importante para a sociedade: experiência e história de vida. Atualmente o país conta com aproximadamente vinte e oito milhões de pessoas acima de sessenta (60) anos, o que significa cerca de treze (13%) por cento da população do país, de acordo com previsões do IBGE.2  O objetivo, aqui, é o de apresentar alguns dos aspectos que estão a exigir uma maior atenção por parte do mundo jurídico, em termos de responsabilidade civil e o papel da família em relação ao idoso. Isto porque, tanto a Constituição (art. 230, caput e § 1º.)3 quanto o Estatuto do Idoso (art. 3º.)4, dão preferência à família, no que se costuma chamar de rede de apoio ao idoso. Só depois é que se tem a sociedade e o Estado como apoiadores dessas pessoas. Dentre as atribuições da família, como principal cuidadora do idoso, a Constituição disciplinou, na segunda parte do art. 229, competir aos filhos maiores "o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, na carência ou enfermidade." E normalmente é na velhice, que a carência - afetiva, psicológica, espiritual e financeira -, bem como a enfermidade, se instalam na pessoa humana.   O que se tem visto, contudo, é que muitos idosos estão sendo abandonados pelos seus filhos, em todos os sentidos acima mencionados. No entanto, a prática tem demonstrado que nem sempre os pais desejam ingressar em juízo contra os filhos que os deixam ao desamparo, alegando que o filho deveria saber que eles necessitam de ajuda. Daí, ao que parece, a falta de uma cultura na sociedade brasileira, de se exigir do filho que cuide do pai. Note-se que não se está a exigir que o filho ame o pai ou a mãe, mas que cuide dele. Neste sentido, aliás, já em 2012, no dia 24 de abril, a Ministra Nancy Andrighi, em julgamento histórico5, explicitou não existir um dever de amar, mas, sim, de cuidar. Referia-se a julgadora a um caso de abandono de filho pelo pai. Em sentido inverso, pode-se afirmar que filhos maiores são responsáveis pelos seus pais, mais ainda quando estes já se encontram no chamado outono da vida. É justamente nesta época, que a vulnerabilidade e a fragilidade da pessoa afloram, e que ela precisa de mais atenção e cuidados. Recentemente, aconteceu de uma senhora em idade bastante avançada, ter sido internada em estabelecimento hospitalar, na Unidade de Terapia Intensiva, apresentando quadro grave de Covid-19. Quando ela estava para ter alta hospitalar, a médica que tratava da paciente, entrou em contato com a filha da paciente, informando-a que a mãe já estava em condições de voltar para casa. A profissional foi surpreendida com a reação dessa parente tão próxima da enferma. Ela afirmou para a médica estar certa de que a mãe já havia falecido há muito tempo. Acrescentou que não a queria em sua casa, e que ela e os irmãos pagariam para ela continuar sendo mantida no hospital.  A partir dessa recusa dos filhos em acolherem a idosa no seio da família, a direção do hospital tomou as medidas legais cabíveis, a fim de que a filha e os irmãos sejam responsabilizados. O próprio Estatuto do Idoso prevê, no art. 98, esta hipótese. Aliás, nesta mesma esteira, tem-se o Código Penal, que em seus arts. 133 e 244. Este dispõe, entre outros, sanção para os casos em que descendente deixa "ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos", em abandono financeiro ou sem cuidados, quando enfermo. Se é da família que se espera o exercício do dever de cuidado em relação à pessoa idosa, qual a responsabilidade civil dos filhos que deixarem os pais em abandono, seja ele de que categoria for: afetivo, financeiro, espiritual, psicológico? O projeto de lei 4.229/2019, de autoria do Senador Lasier Martins, pretende alterar o Estatuto do Idoso, para responsabilizar o filho que abandonar o pai idoso ou a mãe idosa. Se aprovado, o Capítulo XI do Estatuto, que cuida do "Direito à Convivência Familiar e Comunitária", passará a incluir os arts. 42-A e 42-B, que disporão: "Art. 42-A. A pessoa idosa tem direito à manutenção dos vínculos afetivos com a família e dos vínculos sociais com a comunidade, em ambientes que garantam o envelhecimento saudável". E o Art. 42-B. "Aos filhos incumbe o dever de cuidado, amparo e proteção da pessoa idosa." No parágrafo único deste dispositivo encontra-se a previsão da responsabilidade civil do filho: "A violação do dever previsto no caput deste artigo constitui ato ilícito e sujeita o infrator à responsabilização civil por abandono afetivo, nos termos do art. 927 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)." Na justificativa do Projeto, escreve o Senador: "A alusão ao art. 927 do Código Civil tem por finalidade permitir que juízes apreciem, no caso concreto, os pressupostos que configuram a responsabilidade civil subjetiva, a saber, o descumprimento do dever de cuidado, o dano gerado no idoso (sentimento de isolamento, de solidão, quadros depressivos, entre outros), o nexo de causalidade e a existência de excludentes de ilicitude". "Entendemos que a ameaça de uma sanção cível de natureza pecuniária terá um interessante efeito pedagógico sobre a dinâmica de famílias com histórico de descaso praticado contra seus membros idosos. Acreditamos, por fim, que a proposição contribuirá, de alguma forma, para o restabelecimento de vínculos de afetividade e para a preservação de uma ética familiar que beneficiará a sociedade como um todo."6 No momento, o que se tem é a possibilidade de alegação de abandono afetivo, que poderiam ser reparados com pedido de danos morais, com fundamentação no art. 186 do Código Civil. De fato, contudo, o que começa a acontecer são ações contra filhos, pedindo o pagamento de alimentos. Ainda não são muitas, mas a história começa a mudar lentamente. *Débora Gozzo é pós-doutora pelo Max-Planck-Institut, Hamburgo/Alemanha. Doutora em Direito pela Universidade de Bremen/Alemanha. Mestre em Direito pela Universidade de Münster/Alemanha e pela USP/Brasil. Professora Titular de Direito Civil - USJT. Professora colaboradora do mestrado em Ciência do Envelhecimento - USJT/SP; coordenadora do Núcleo de Biodireito e Bioética da ESA-OAB/SP. Visiting professor nas Universidades de Bonn, Heidelberg/Mannheim, e Bucerius Law School, Alemanha. Research Fellow do Max-Planck-Institut, Hamburgo/Alemanha. Membro-fundadora da Academia Iberoamericana de Derecho de Família y de las Personas. Membro do Iberc; Líder do Grupo de Pesquisa Do início ao fim da vida: uma discussão bioética sobre as inovações tecnológicas do século XXI. (USJT). Advogada e consultora.  __________ 1 "De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), idoso é todo indivíduo com 60 anos ou mais." Disponível aqui. Acesso em: 3 Abr. 2021. 2 "O Brasil tem mais de 28 milhões de pessoas nessa faixa etária, número que representa 13% da população do país. E esse percentual tende a dobrar nas próximas décadas, segundo a Projeção da População, divulgada em 2018 pelo IBGE." Disponível aqui. Acesso em: 3 Abr. 2021. 3 Art. 230. "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida." "§ 1º. Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares." 4 Destacam-se aqui, especialmente, o caput e o inciso V do § 1º., respectivamente: Art. 3º. "É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária."; V - "priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência." 5 Disponível aqui. Acesso em: 1 Abr. 2021. 6 Disponível aqui. Acesso em: 3 Abr. 2021. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil
Palavras iniciais A lei 14.128, de 26 de março de 2021, que trata da indenização a ser paga pela União aos profissionais e trabalhadores da saúde que atuam no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, apresenta alguns aspectos positivos, mas suscita algumas perplexidades. Aspectos positivos O primeiro aspecto positivo da nova lei é a possibilidade de obter a denominada compensação financeira pela via administrativa, extrajudicial, sem necessidade de contratar advogados, de suportar custas e despesas processuais e de aguardar o longo período de tramitação de um processo judicial. Outro aspecto positivo é a possibilidade de receber a indenização de maneira imediata, em três parcelas mensais e sucessivas, sem necessidade de aguardar a tramitação de um processo judicial e ainda se submeter à fila dos precatórios. Ainda um aspecto positivo é que a lei institui uma medida precaucional diante do risco a que estão expostos os profissionais e empregados que atuam diretamente no atendimento a pacientes com Covid-19.1 Destaque para o aspecto precaucional presente na nova lei Cabe esclarecer sucintamente que o dano indenizável pode ser dano efetivo ou potencial. Para o dano efetivo aplica-se a reparação a posteriori, enquanto o dano potencial reclama medidas de prevenção e de precaução, adotadas a priori, a fim de evitar que o dano ocorra ou para assegurar a reparação caso não seja possível evitar.2 As medidas de precaução podem ser de três modalidades: a estatização, a mutualização e a securitização.3 Incumbe ao poder público, que tem competência para autorizar, permitir ou vedar o desempenho das atividades, escolher a forma mais adequada de precaução, de acordo com o grau de risco das atividades e com a gravidade/irreversibilidade dos danos potenciais. A adoção de medidas precaucionais é prática ainda incipiente em nosso país, podendo ser citado o recente exemplo da Lei da Uber, que condiciona o exercício da atividade à contratação de seguro de acidentes pessoais em favor dos passageiros e de terceiros.4 Neste sentido, a nova lei representa significativo avanço porque se trata de medida precaucional adotada pelo Estado brasileiro diante da probabilidade de ocorrência de dano aos profissionais e trabalhadores da saúde que atuam no atendimento às vítimas da Covid-19. Beneficiários. O art. 1º, caput, dispõe que a compensação financeira será paga aos profissionais de saúde e aos agentes comunitários de saúde ou de combate a endemias, que se tornarem permanentemente incapacitados para o trabalho, por terem trabalhado no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, devendo a indenização ser paga ao cônjuge ou companheiro, aos dependentes e aos herdeiros necessários, em caso de óbito. Para os fins da nova lei, consideram-se dependentes aqueles estipulados no art. 16 da lei 8.213/1991, a Lei da Previdência Social: o cônjuge ou companheiro, os filhos menores de 21 anos de idade ou portadores de deficiência mental grave, os pais, os irmãos menores de 21 anos de idade ou portadores de deficiência mental grave. É curioso observar que, à exceção dos irmãos do falecido, todos esses dependentes são também herdeiros necessários do falecido, por força do art. 1.845 do Código Civil. Sobreleva relembrar que, como herdeiros necessários, devemos incluir também os ascendentes. Ainda no art. 1º, III, a lei determina que os eventos devem ocorrer durante o período de emergência de saúde pública de importância nacional da Covid-19, o Espin-Covid-19, que foi declarado pelo Ministério da Saúde, por meio da Portaria MS 188, de 3 de fevereiro de 2020, devendo perdurar até que ocorra a declaração de encerramento por nova portaria ministerial, nos termos do art. 1º, §§ 2º e 3º, da lei 13.979/2020. No art. 2º, o legislador praticamente repete as disposições contidas no art. 1º, sobre os destinatários da compensação financeira. Porém, no que se refere aos agentes comunitários, exige comprovação de que realizou visitas domiciliares por força de suas atribuições. O art. 2º, § 1º, traz intrigante disposição a respeito da comprovação do nexo de causalidade entre a incapacidade ou o óbito e a Covid-19. A lei diz que há presunção de causalidade, se o evento ocorrer no período da pandemia e se houver diagnóstico compatível com Covid-19 comprovado por exames laboratoriais ou laudo médico. No caso, porém, não se trata de presunção de causalidade, mas de comprovação efetiva de que a doença foi adquirida no período abrangido pela pandemia. O art. 2º, § 2º, favorece a posição dos destinatários da compensação financeira, a qual é devida mesmo que a vítima seja portadora de comorbidades. Também o § 4º do art. 2º é favorável às vítimas, ao dispor que a indenização será devida ainda que o evento morte ou incapacidade seja posterior ao encerramento do Espin-Covid-19 ou anterior à promulgação da lei, uma vez comprovado que a doença foi contraída durante o estado de emergência sanitária. No entanto, o § 3º representa um obstáculo para os destinatários da aludida compensação financeira, ao dispor sua concessão dependerá de avaliação a ser realizada integrantes da carreira de Perito Médico Federal. Conhecidas as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que postulam benefícios previdenciários junto ao INSS, é provável que os profissionais e trabalhadores da saúde enfrentarão problemas para a obtenção da compensação financeira prevista na Lei 14.128/2021.5 A compensação financeira O art. 3º da lei 14.128/2021 trata da compensação financeira, nos seguintes termos: a) uma parcela de R$ 50.000,00, devida ao profissional de saúde incapacitado permanentemente para o trabalho ou ao cônjuge ou companheiro, aos dependentes ou aos herdeiros necessários, em caso de óbito, mediante rateio; b) uma parcela de valor variável devida a cada um dos dependentes do profissional ou trabalhador da saúde falecido, cujo valor será calculado mediante a multiplicação da quantia de R$ 10.000,00 pela quantidade de anos inteiros e incompletos, desde a data do óbito até a data em que cada um dos dependentes atingir 21 anos de idade ou 24 anos, se estiver frequentando curso superior. O § 1º do art. 3º diz que, caso os dependentes do falecido sejam pessoas com deficiência, o valor da parcela única resultará da multiplicação de R$ 10.000,00 por no mínimo cinco anos, independentemente da idade do beneficiário. Isso significa que o herdeiro ou dependente com deficiência faz jus a prestação igual à dos herdeiros e dependentes sem deficiência, porém o valor de sua prestação não poderá ser inferior a R$ 50.000,00, seja qual for a sua idade. Nada obstante, a nova lei pode representar prejuízo para a pessoa com deficiência, uma vez que sua relação de dependência financeira com o profissional ou trabalhador da saúde vai além dos 21 anos de idade. Observamos que o legislador reconhece e equipara os direitos do cônjuge e do companheiro para o recebimento da indenização, algo que ainda não consta do Código Civil, mas já é reconhecido pela jurisprudência.6 Notamos também que a compensação financeira de que trata o art. 3º, I, será destinada ao cônjuge ou companheiro e a cada um dos dependentes e herdeiros necessários, mediante rateio igualitário, independentemente da ordem de vocação hereditária e a despeito das regras de concorrência do cônjuge ou companheiro com os filhos do falecido (CC, art. 1.829). Outro problema do direito sucessório é que o cônjuge também é herdeiro necessário (CC, art. 1.829 c/c art. 1.845) e, conforme reconhecido pela jurisprudência, o companheiro também o é.7 Uma leitura apressada do art. 3º, § 2º, da nova lei levaria a concluir que o cônjuge ou companheiro participaria duplamente do rateio da compensação financeira. No entanto, a interpretação teleológica do dispositivo denota que o legislador objetivou a divisão igualitária da compensação financeira, de modo que cônjuge ou o companheiro participa somente uma vez. O art. 3º, § 3º, disciplina a forma de pagamento compensação financeira, cuja totalidade, envolvendo a prestação de R$ 50.000,00 e a prestação de valor variável, será depositada em três parcelas mensais e sucessivas de igual valor. O § 4º estatui que, em caso de óbito do profissional de saúde, além das parcelas referidas no caput, serão reembolsadas as despesas de funeral, na forma a ser disciplinada no regulamento. Tabelamento da compensação financeira e princípio da justa reparação A lei 14.128/2021 impõe um tabelamento linear do valor da reparação, como se todos os casos fossem iguais, o que pode conduzir a distorções significativas. É bem verdade que, a depender da idade e da quantidade de herdeiros e dependentes do falecido, a indenização pode alcançar valores bem elevados. Por exemplo, se o profissional falecido deixou a viúva e três filhos com idade entre 5 e 7 anos de idade, o valor total da reparação pode alcançar R$ 500.000,00.   Parcela única Parcela variável Viúva R$ 12.500,00 - 1º filho, 5 anos de idade R$ 12.500,00 R$ 160.000,00 2º filho, 6 anos de idade R$ 12.500,00 R$ 150.000,00 3º filho, 7 anos de idade R$ 12.500,00 R$ 140.000,00 Totais R$ 50.000,00 R$ 450.000,00 Total geral   R$ 500.000,00 No entanto, em outros casos, o valor proposto pela lei pode não atender à extensão do dano sofrido, principalmente em caso de morte da vítima. Assim, por exemplo, em caso de falecimento do profissional ou trabalhador de saúde que deixou No entanto, em outros casos, o valor proposto pela lei pode não atender à extensão do dano sofrido, principalmente em caso de morte da vítima. Assim, por exemplo, em caso de falecimento do profissional ou trabalhador de saúde que deixou a esposa ou companheira, mas não há filhos, o valor da indenização se reduz à verba prevista no art. 3º, I, da lei, que corresponde a R$ 50.000,00 e, portanto, desatende aos parâmetros jurisprudenciais para os casos de óbito da vítima.8 Cabe considerar também que, tanto nos casos de falecimento quanto nos de perda da capacidade para o trabalho, o prejuízo financeiro para renda familiar pode ser bem maior do que o valor estipulado pela lei. No exemplo acima, tratando-se do falecimento de um médico que ganhava salário líquido mensal de R$ 10.000,00, o prejuízo para a renda familiar anual é de aproximadamente R$ 130.000,00 e, portanto, é superior ao valor de R$ 10.000,00 por ano previsto na lei. A nova lei produz importante distorção ao estipular o valor da parcela variável de acordo com a quantidade de beneficiários e não em função do efetivo prejuízo sofrido pelo grupo familiar. Assim, seguindo com o exemplo do médico que ganhava R$ 10.000,00 líquidos por mês, o valor da compensação financeira corresponderá ao múltiplo de R$ 10.000,00 anuais pela quantidade de herdeiros e dependentes do falecido, independentemente do valor do dano efetivamente sofrido. Dano moral ou dano material? A nova lei não é clara quanto à natureza dos danos que serão indenizados por meio das prestações previstas no art. 3º. Podemos encontrar na doutrina explicações para o enquadramento da compensação financeira em vários tipos de dano.9 Como danos reflexos patrimoniais e extrapatrimoniais do evento morte, o art. 948 do Código Civil estipula direito de indenização aos familiares da vítima, pela perda do ente querido. Assim, quanto à parcela de R$ 50.000,00 prevista no art. 3º, I, quando se refere à perda da capacidade para o trabalho, trata-se de reparação de dano moral do próprio ofendido; no caso de óbito, trata-se de dano moral dos familiares pela perda do ente querido, equiparado ao luto da família a que se refere o art. 948, I, do Código Civil. Por seu turno, a prestação de valor variável, do art. 3º, II, condiz com a perda da renda familiar proporcionada pelo falecido e, portanto, tem natureza de recomposição patrimonial, conforme o artigo 948, II, do Código Civil. Por último, diante da generalidade da disposição legislativa, é evidente que as verbas em questão não indenizam outras modalidades de dano, como o estético e o existencial, os quais são autônomos em relação aos danos morais e materiais, muito menos o dano-morte ou dano ao morto enquanto vivo, que não se confunde com seus reflexos sobre os familiares.10 Pedido administrativo sem advogado e inafastabilidade da jurisdição Um dos aspectos positivos da nova lei é a possibilidade de formular o pedido de compensação financeira pela via administrativa, sem contratar advogado e sem recorrer ao Poder Judiciário. No entanto, esse aspecto pode se tornar problemático, a depender das situações concretas. Sem dúvida, o pagamento de compensação financeira pela via administrativa subtrai a competência do Poder Judiciário para apreciar os pedidos de indenização e para arbitrar o valor das indenizações, bem como afeta a advocacia, que se vê alijada desses processos de reparação de danos. Essas questões certamente serão submetidas ao crivo da constitucionalidade, em face do que dispõem o art. 5º, XXXV, e o art. 133 da Constituição. É certo que o Supremo Tribunal Federal fixou tese a respeito da necessidade de prévio requerimento administrativo como condição para o acesso ao Judiciário em matéria previdenciária.11 Lembramos, porém, que a compensação financeira tem caráter indenizatório, nos termos do art. 5º, da lei 14.128/2021, de sorte que o Tema 350 não é aplicável, visto não se tratar de benefício previdenciário. Enfatize-se que a dispensa da assistência jurídica representa prejuízo efetivo para os destinatários da compensação financeira, dada a necessidade imperiosa dessa a assistência nas disputas que envolvem reparação de dano. Há problemas com a realização da prova, com a demonstração do nexo de causalidade e com a fixação do montante indenizatório, que merecem atenção de quem tem aptidão técnica para defender os interesses da vítima. Não é por outra razão que a Constituição Federal contempla a assistência jurídica entre os direitos fundamentais (CF, art. 5º, LV c/c arts. 133 e 134). Assim, diante do dano sofrido, o profissional ou trabalhador da saúde, bem como seus dependentes e herdeiros, pode optar por mover ação indenizatória perante o Poder Judiciário, devidamente assistido e representado por profissional da advocacia pública ou privada. Responsabilidade civil do Estado A lei 14.128/2021 suscita alguns questionamentos acerca da responsabilidade civil do Estado. O primeiro é que a responsabilidade civil estatal tem como fundamento a teoria do risco administrativo, que não é integral e, portanto, comporta as excludentes de caso fortuito ou força maior, fato de terceiro e culpa exclusiva da vítima. No entanto, a nova lei imputa responsabilidade civil ao Estado, sem possibilidade de discussão sobre as hipóteses de exclusão de responsabilidade civil. Por outro lado, o art. 37, § 6º, da Constituição, dispõe que o poder público responde pelos danos causados a terceiros por seus agentes, no exercício de suas atribuições, assim como as empresas privadas prestadoras de serviços públicos respondem pelos danos causados por seus agentes a terceiros. É cediço que, em sua grande maioria, os hospitais públicos e os denominados "hospitais de campanha", são geridos pelas Organizações Sociais de Saúde - OSS, nos termos Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, cujos contratos de gestão estipulam a responsabilidade civil por danos relacionados com o desempenho de suas atividades.12 Fora isso, boa parte dos trabalhadores que atuam nas unidades de saúde pertence ao quadro de pessoal terceirizado, ou seja, são empregados de empresas particulares contratadas pelo poder público ou pelas OSS para prestar serviços específicos de limpeza, de segurança e portaria etc. No entanto, a nova lei determina o pagamento de compensação financeira a todos os profissionais e trabalhadores da saúde que comprovarem atuação na linha de frente do combate ao novo coronavírus, ou aos seus familiares em caso de óbito, independentemente da existência de vínculo direto com a Administração Pública. Disso resulta que a nova lei atribui ao poder público um grau de responsabilidade civil objetiva pura, por risco integral, que não admite excludente de responsabilidade civil, tampouco ação de regresso contra as pessoas jurídicas de direito privado que atuam como gestoras ou como prestadoras de serviços nas unidades de saúde.13 Palavras finais Em síntese, a lei 14.128, de 26 de março de 2021, institui o pagamento administrativo de compensação financeira aos profissionais e trabalhadores da saúde no âmbito da Covid-19, ou aos herdeiros e dependentes, em caso de óbito. A nova lei traz alguns aspectos favoráveis às vítimas, como a possibilidade de recebimento da compensação financeira pela via administrativa, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário e sem submeter-se à fila dos precatórios. Ademais, trata-se de medida precaucional diante de danos potenciais relacionados com a pandemia, algo incomum no sistema de responsabilidade civil brasileiro. De outro lado, os valores previstos na lei são dissociados da extensão dos danos e, portanto, do princípio da reparação integral ou da justa reparação, o que pode conduzir a importantes distorções, a depender da quantidade de beneficiários em cada caso. De qualquer modo, os beneficiários sempre poderão optar pela propositura de ação judicial, a fim de alcançar a reparação mais adequada. Por último, assinalamos que a nova lei atribui ao poder público um grau de responsabilidade civil por risco integral, que não admite excludente de responsabilidade tampouco ação de regresso contra as pessoas jurídicas de direito privado que atuam como gestoras ou como prestadoras de serviços nas unidades de saúde. Referências AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2011. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. V. I. São Paulo: Saraiva, 2003. ROSENVALD, Nelson. O Dano-morte: a experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 3, 2021, p. 157-183. SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme, Curitiba: Juruá, 2018; Porto: Juruá, 2018. ­­­­­­­­­­­­­­VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006. *Mônica Cecílio Rodrigues é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP e mestre em Direito Processual Civil pela UNAERP e especialista em Direito Civil pela Universidade, autora e coautora de várias obras e artigos jurídicos. Advogado e professora. **Romualdo Baptista dos Santos é doutor e mestre em Direito Civil pela USP, especialista em Direito Contratual e Direito de Danos (Contratos y Daños) pela Universidade de Salamanca - USAL, autor e coautor de várias obras e artigos jurídicos. Ex-procurador do Estado de São Paulo. Advogado e professor. __________ 1 Em outro trabalho acadêmico, defendemos a necessidade de incorporação o princípio da precaução ao sistema de responsabilidade civil, para as hipóteses de dano potencial, como é o caso tratado por esta lei (SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme, Curitiba: Juruá, 2018; Porto: Juruá, 2018, p. 236-238). 2 Idem, p. 135-137. 3 VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006, p. 68-72. 4 Lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012, alterada pela Lei 13.640, de 26 de março de 2018, art. 11-A. 5 Confira-se exemplificativamente aqui, visualizado em: 01/04/2021. 6 A igualdade sucessória entre cônjuges e companheiros foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 646721 e 878694, de repercussão geral reconhecida. 7 STJ, 3ª Turma, REsp 1.357.117/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13/3/2018; STJ, 4ª Turma, REsp 1.337.420/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22/8/2017. 8 A título comparativo, no Estado de São Paulo, o valor da indenização para o caso de morte ou invalidez de policial militar é fixado em R$ 200.000,00 (Lei Estadual 14.984/2013). Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça considera razoável a indenização no valor de R$ 100.000,00 para o caso de morte de preso (STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1.444.491/PI, rel. Min. Og Fernandes, j. 20/10/2015, v.u.; REsp 1409518/BA, rel. Min. Herman Benjamin. J. 08/04/2014, v.u.). 9 Confira-se, exemplificativamente: NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. V. I. São Paulo: Saraiva, 2003, 555-586. 10 ROSENVALD, Nelson. O Dano-morte: a experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 3, 2021, p. 157-183. 11 STF, Plenário, Recurso Extraordinário 631240-MG, rel. Min. Roberto Barroso, publicado em 10/11/2014. 12 Confira-se, por exemplo aqui, visualizado em: 01/04/2021. 13 A respeito da distinção entre responsabilidade civil objetiva pura e impura, consulte-se: AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 250-252.
A dificuldade na produção de prova de determinados fatos levou o legislador a prever mecanismos que atenuam o rigor da obtenção da prova de forma direta. Estes mecanismos repercutem na distribuição do ônus da prova, seja em decorrência da própria lei que, já no seu comando, estipula alteração na carga probatória, seja na faculdade concedida ao juiz. Dessa forma, é possível afirmar que nas presunções há redução das exigências de prova. A presunção é a ilação, ou o processo lógico de raciocínio, que se obtém de fato conhecido e secundário, geralmente um indício, para se provar a existência de fato desconhecido. As presunções são políticas processuais empregadas para facilitar a produção de determinada prova, pois parte-se da premissa de que é mais difícil provar a ocorrência do fato do que a sua não ocorrência. Ao mesmo tempo, tem por escopo, em algumas hipóteses, diminuir a atividade do juiz na apreciação e na valoração das questões fáticas pertinentes, ao substituí-la por critério já previamente estabelecido na lei. As presunções são divididas pela doutrina em legais, que são subdivididas em relativas e absolutas, e judiciais ou simples.  O Código Civil, no artigo 212, inciso IV, trata a presunção como meio de prova, pois é listada juntamente com a confissão, o documento, a testemunha e a perícia. Esse enquadramento é criticado pela doutrina1 sob o argumento de que a presunção é um processo de elaboração mental e o que é provado é o fato-base que, por dedução lógica, faz chegar à presunção Quanto às presunções legais, a maioria da doutrina processual entende que a diferença entre a presunção absoluta e relativa está no fato de que a presunção legal absoluta não admite prova em contrário. Na verdade, o que as difere é a relevância e a utilidade da produção da prova em sentido contrário. Na presunção absoluta, a produção de determinado meio de prova em nada influenciará a formação da convicção do juiz. Nas presunções legais relativas, apesar da ocorrência do fato secundário, é possível a produção da prova de que o fato principal objeto de prova não ocorreu. Nesse caso, como a própria nomenclatura já evidencia, a presunção tem relativa eficácia, pois ela vigora enquanto não desconstituída por prova em sentido contrário. A parte que é beneficiada está dispensada da comprovação do fato principal que é objeto de prova, mas não do fato secundário que desencadeia sua ocorrência. As presunções simples ou judiciais, também conhecidas por presunções hominis, são aquelas em que o raciocínio é empregado pelo órgão judicial com base naquilo que ordinariamente acontece. Eduardo Cambi aponta a existência de três fases para a sua consolidação: "[...] i) colheita dos indícios; ii) a dedução das presunções e iii) a apreciação (valoração) dessas presunções"2. Com base nesse conceito, é possível verificar a estreita relação existente entre as presunções judiciais, as regras ordinárias de experiência e a verossimilhança. No campo probatório, as regras de experiência atuam como instrumento de apuração dos fatos e auxiliam o magistrado na formação das presunções simples. As máximas de experiência, no âmbito da prova, atuam na valoração desta pelo juiz e são inseridas no raciocínio do magistrado para a elaboração de sua decisão. A situação retrata um juízo de avaliação que é realizado com respaldo no livre convencimento motivado. A verossimilhança está relacionada com as máximas de experiência e é a qualidade do que é verossímil, ou seja, daquilo que se apresenta como verdadeiro. Verossímil é o que possui semelhança com a verdade. Apesar do conceito singelo, esse instituto detém multifuncionalidade em nosso sistema jurídico, pois é utilizado em momentos distintos no processo. No campo probatório, funciona na distribuição do ônus da prova e no momento de constatação dos fatos por meio da valoração da prova. Diante da verdade inatingível, exsurge a verossimilhança como a aparência dessa verdade, a verdade relativa, que está situada em um nível entre a ausência de conhecimento, ou ignorância, e a verdade vista como certeza. O juiz, ao reconhecer um fato como verossímil, atesta esse caráter representativo da verdade como possível no processo e forma sua convicção com base nas provas produzidas, sem que isso represente, necessariamente, ter encontrado a verdade. Ao adentrar na inter-relação entre o ônus da prova e a responsabilidade civil, deve ser destacado que a responsabilidade civil contemporânea está permeada pela dupla expansão dos meios lesivos: o primeiro decorre da evolução tecnológica, e o segundo, dos interesses lesados com a normatividade dos princípios. Com base nesse entendimento, surge a "erosão dos filtros tradicionais da reparação"3. A visão liberal da responsabilidade subjetiva cede espaço à visão social decorrente dos conflitos do capitalismo industrial, e surge a teoria do risco-proveito, que visava amparar as vítimas dos riscos criados pelas atividades praticadas pelas empresas cujo lucro não fosse repartido socialmente. Na evolução da responsabilidade subjetiva para a responsabilidade objetiva, com a intenção de mitigar as exigências probatórias, foi desenvolvida a ideia de culpa presumida. Posteriormente, houve o surgimento da mencionada teoria do risco, a qual, nas hipóteses previstas em lei, prescinde da valoração do comportamento do causador do dano. A partir de então, o foco da responsabilidade civil passou a ser a vítima, pois, nessa conjuntura de produção em massa de bens e serviços, a relação de poder estabelecida a colocou em situação de desvantagem. Com relação ao dano, houve a expansão desse elemento da responsabilidade civil tanto no aspecto quantitativo (indenizações por dano moral, acesso ao Judiciário por meio dos juizados especiais e das ações coletivas) quanto no aspecto qualitativo (interesses existenciais da pessoa humana e interesses transindividuais). Surgem os novos danos, pois as hipóteses de violação de direitos não apresentam tipicidade fechada. Nesse contexto, despontou o chamado dano presumido ou in re ipsa, que, segundo propalado por parcela da doutrina e por julgados do Superior Tribunal de Justiça, prescinde de comprovação e decorre da própria violação do ato em si. Acerca do dano moral, consoante este entendimento, em alguns casos, são utilizados métodos que reduzem as exigências de prova devido à dificuldade de sua comprovação. O dano moral consiste na violação de direitos da personalidade4 e devem ser desconsideradas, para esse fim, as situações de mero mal-estar decorrentes das vicissitudes do cotidiano, tais como algum aborrecimento diuturno ou um episódio isolado e passageiro, pois nem toda alteração anímica do sujeito configura o dano moral. A sanção imposta pelo juiz corresponde a uma indenização com a finalidade de compensar a vítima, punir o causador do dano e prevenir a prática de novos atos. A expressão dano moral in re ipsa decorre da identificação do prejuízo como consequência lógica da alteração de estado da vítima, a qual resultou da violação de um ou de mais direitos da personalidade. Conforme divulgado pela jurisprudência, essa hipótese de dano presumido surge da dificuldade de provar algo que possui elevada carga subjetiva e geraria uma presunção hominis.  Todavia, a premissa de que se parte para a afirmação dessa hipótese de dano é equivocada. Os sentimentos anímicos da vítima, tais como dor, tristeza ou humilhação, não constituem suporte para a ocorrência do dano moral, pois estão relacionados à consequência do ato violador dos direitos da personalidade e atuam como circunstâncias que devem ser valoradas pelo juiz na fixação do valor indenizatório. Por exemplo, se houve a inscrição indevida pelo fornecedor do nome do consumidor nos bancos de dados de inadimplentes, o dano decorreu da conduta comissiva do agente, que atingiu a honra e a privacidade da vítima5. Não é utilizada a presunção judicial para a dispensa de comprovação do dano moral, pois este é aferido pelo ato que violou algum direito da personalidade. Na relação de consumo que envolva ação judicial baseada nessa hipótese de ocorrência do dano moral, deve o consumidor demonstrar o apontamento do seu nome nos bancos de dados e o vínculo com o agente causador6. Desta forma, entende-se que o critério da presunção judicial ou hominis para a caracterização do dano moral in re ipsa é equivocado, pois não há um juízo de probabilidade pelo magistrado, com base naquilo que ordinariamente acontece, mas sim a aferição direta de algum dano que foi ocasionado pela violação de direitos da personalidade, como sói acontecer no dano moral. *Ricardo Rocha Leite é doutorando e mestre em Direito. Juiz no Distrito Federal. Referências BESSA, Leonardo Roscoe. O Consumidor e os Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004 MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a prova. Temas de Direito Processual Civil: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977. SCHREIBER, Anderson.  Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ed. São Paulo: Atlas, 2012. SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.   __________ 1 A classificação é rechaçada por José Carlos Barbosa Moreira: "Parece bastante claro que tal presunção não constitui, a rigor, meio de prova, ao menos no sentido de que se dá a semelhante locução quando se afirma que é meio de prova, v.g., um documento ou o depoimento de uma testemunha. O processo mental que, a partir da afirmação do fato x, permite ao juiz concluir pela afirmação também do fato y, não se afigura assimilável à atividade de instrução, em que se visa a colher elementos para a formação do convencimento judicial. Quando o juiz passa da premissa à conclusão, através do raciocínio 'se ocorreu x, deve ter ocorrido y', nada de novo surge no plano material, concreto, sensível: a novidade emerge exclusivamente em nível intelectual, in mente iudicis. Seria de todo impróprio dizer que, nesse momento, se adquire mais uma prova: o que se adquire é um novo conhecimento, coisa bem diferente. A atividade probatória realizou-se antes, e terá produzido frutos na medida em que permitiu estabelecer-se a ocorrência do fato x". (MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a prova. Temas de Direito Processual Civil: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977.p. 57) ("destaque do original"). 2 CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 377. 3 SCHREIBER, Anderson.  Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.11. 4 Adriano de Cupis entende que a denominação direitos da personalidade deve ser reservada aos direitos essenciais, pois são "[...] direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo - o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal". (DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004.p. 24 5 BESSA, Leonardo Roscoe. O Consumidor e os Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.130.   6 Héctor Valverde Santana explicita seu raciocínio acerca do tema: "Finalmente, cumpre registrar que a presunção judicial ou simples (praesumptio hominis) e a característica in re ipsa do prejuízo moral são realidades jurídicas distintas, cada qual atuando em sua peculiar esfera. A presunção é um processo mental, um raciocínio lógico que o juiz desenvolve partindo do conhecimento do ato violador dos direitos da personalidade (fato conhecido) para inferir a verdade de que houve uma alteração psíquico-emocional da vítima (fato probando ou thema probandum). Presume-se que a violação dos direitos da personalidade enseja uma alteração na esfera subjetiva do consumidor, que por sua vez deve obter do sistema jurídico uma resposta adequada. Por outro lado, a característica in re ipsa do dano moral reside na identificação de um prejuízo (reparável) como consequência natural daquela alteração subjetiva. Não se confunde a presunção do thema probandum com a dispensa de prova (in re ipsa) do prejuízo moral". (SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.p. 214). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
A reparação da lesão moral sofrida, ou, de modo mais amplo, a reparação da lesão que não tenha cunho estritamente patrimonial, é um dos temas mais frequentes no judiciário brasileiro. Por isso, a importância de se fazer o seguinte esclarecimento a título introdutório, pois ainda existe muita confusão com relação aos significados de dano moral e dano extrapatrimonial. Ocorre que não são expressões usadas para identificar o mesmo objeto, em verdade, o dano moral consiste numa das espécies de dano não patrimonial ou dano extrapatrimonial. É nessa linha de raciocínio que o brilhante jurista italiano Pier Giuseppe Monateri dispõe: Con la nozione di danno morale si allude al dolore, ai patemi dell'animo, alle sofferenze spirituali, mentre con la locuzione danni non patrimoniali si intende ogni conseguenza peggiorativa che non tollera, alla stregua di criteri oggettivi, di mercato, una valutazione pecuniaria rigorosa. Con la locuzione danni morali si deve, allora, fare riferimento ai perturbamenti dello stato d'animo del soggetto, ingiustamente cagionati da un fatto [.].1 Assim, pode-se avançar ao objeto deste breve texto, o tabelamento dos danos extrapatrimoniais desenvolvido no direito italiano. A aplicação da técnica tabelar no direito italiano teve início de modo muito tímido. Num primeiro momento, seu uso estava restrito aos casos de reparação dos chamados danos à saúde, posteriormente entendidos como danos biológicos.   Há um importante destaque feito pela doutrina italiana com relação a três diferentes métodos reparatórios que antecederam o atual tabelamento. Primeiro, falava-se apenas na valoração equitativa pura pelo magistrado com fundamento no art. 1.226 do Código Civil Italiano. Essa recebeu inúmeras críticas por dificultar a construção de uma uniformidade e harmonização jurisdicional. O segundo método era conhecido como genovese, que consistia em multiplicar o triplo do valor da pensão social anual pelo coeficiente de capitalização estipulado conforme a idade e o sexo da vítima, e considerar o percentual do grau de efeitos posteriores da lesão. Inaplicável conforme decidido pela a Corte de Cassação em 1993, pela sentença n.3572. O terceiro, chamado de modelo pisano, era notório por extrair seus valores de percentuais estatísticos de invalidade e de precedentes jurisprudenciais, mostrando-se como uma introdução ao método que seria futuramente chamado de tabelar3. Diante de um cenário de incerteza quanto ao modo como os valores concedidos a título de danos biológicos eram estabelecidos, começou um movimento nos Tribunais italianos para desenvolver algo que proporcionasse maior segurança jurídica. Com o intuito de evitar que dentro do mesmo Tribunal fossem proferidas decisões manifestamente diferentes em casos similares, surgem as primeiras tabelas, com maior destaque para a elaborada pelo Tribunal de Milão. Ao contrário das tentativas brasileiras de tabelamento, cujo protagonismo restringe-se ao legislativo, na Itália a construção das tabelas partiu dos chamados observatórios de justiça. Observatório é um grupo de estudiosos formado por advogados, juízes, médicos-legistas e professores universitários, todos atuando com o fim de aprimorar a prática jurídica. Dentre esses grupos, o mais conhecido é o de Milão, que elaborou sua primeira tabela entre 1995 e 1996, cuja aplicação perdurou até a nova edição de 20044. Nesse contexto, o que parecia ser a solução para harmonizar os julgamentos reparatórios no país começou a enfrentar o mesmo problema de desarmonia entre os valores indenizatórios. Cada Tribunal construiu sua própria tabela, havia, por exemplo, a tabela da região de Florença, de Roma, de Milão entre outras. Tentou-se, inclusive, elaborar uma única tabela nacional, mas isso se mostrou inviável. A real solução adveio da experiência prática, pois com o tempo evidenciou-se a superioridade da tabela milanesa a tal ponto de tanto a Corte Constitucional como a Corte de Cassação adotarem-na como a mais eficaz. Após a consolidação da tabela milanesa como a mais adequada no âmbito nacional, a Corte de Cassação decidiu ampliar a sua abrangência e através do julgamento n. 394, seção III, de 2 de janeiro de 2007 confirmou a possibilidade de se utilizar a técnica do tabelamento criada para valorar o dano biológico para quantificar o dano moral5. A título exemplificativo, abaixo trago parte da última edição da tabela do Tribunal de Milão, datada de 2018, mas ainda vigente. Os dados da imagem são referentes à indenização por lesões à integridade psicofísica, com referimento ao dano biológico e a eventual dano moral também consequente. Deve-se atentar para alguns pontos, no canto esquerdo temos o grau de invalidade, que pode ser de 1 até 100, no centro superior temos a faixa etária, que também vai de 1 a 100. Essas duas informações são a principal causa de variação nos valores ao lado do percentual de personalização, que poderá ser maior conforme a idade e o grau de invalidade da vítima6. Interessante salientar que, a despeito de se chamar "tabela", na verdade não se resume a um conjunto de linhas e colunas preenchidas por números. O documento conhecido como tabela milanesa é composto por diversas páginas que, além de indicadores numéricos apresenta detalhamentos das principais causas de danos extrapatrimoniais (com destaque para os morais). Além do mais, contém explicações de como identificar os graus de gravidade de diferentes espécies de ofensas (como, por exemplo, uma parte própria destinada ao estudo do dano moral decorrente da difamação via imprensa), o que demonstra a seriedade na construção da técnica e o motivo do seu amplo sucesso.  Esse sucesso deve-se, também, à incessante preocupação dos pesquisadores do observatório de Milão com relação à particularização de cada caso. Há uma quase que perfeita sintonia entre a função harmonizadora dos julgados e o respeito ao caso concreto. É notória a tentativa constante de evitar que haja uma padronização injusta das indenizações. Tal preocupação não é particular dos pesquisadores, mas também dos tribunais, com destaque à Corte di Cassazione, haja vista a sentença n. 25817 de 2017, através da qual assegurou-se a possibilidade de se ultrapassar os valores propostos nas tabelas, quando no caso concreto se identificar alguma peculiaridade que não tenha sido considerada anteriormente7. Destaca-se que, recentemente, no julgamento n. 25164 de 10 de novembro de 2020, a terceira sessão da Corte fez um alerta: a personalização do montante indenizatório deve se dar por conta de questões específicas e excepcionais, não podendo ser utilizada como uma forma de superar eventual insuficiência de prova quanto à eventual dano (no caso do julgado o alerta se fez pela suposta falta de provas de que o dano biológico teria causado determinado grau de incapacidade laboral). Do exposto neste breve texto percebe-se que há uma grande diferença entre a experiência italiana de tabelamento dos danos extrapatrimoniais e a brasileira. A última tentativa nacional, através do art. 223-G da CLT apresenta uma série de defeitos, além de ter sua duvidosa constitucionalidade contestada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Entre suas falhas está a vinculação do valor da reparação ao salário do trabalhador e a inexistência de uma margem de personalização do caso pelos magistrados. Consequentemente, se uma mesma lesão for suportada por um diretor de multinacional e por um auxiliar administrativo, os valores serão extremamente díspares se pensarmos em quanto cada um recebe a título de salário. O método tabelar milanês, a despeito de muito prático e amplamente utilizado, não é perfeito, sendo objeto de críticas pela própria doutrina italiana. Portanto, através deste escrito não se busca defender a sua adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas, sim, que seja uma inspiração para o desenvolvimento de uma ferramenta própria para o nosso sistema. Lucas Girardello Faccio é mestre em Direito pela PUC/RS. Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor de Direito Civil.  Advogado __________ 1 "Com a noção de danos morais se remete a dor, às perturbações de ânimo, ao sofrimento espiritual, enquanto que com o termo dano não pecuniário entende-se toda consequência pejorativa que não tolera, medida em critérios objetivos, de mercado, uma rigorosa avaliação pecuniária. Com o termo danos morais refere-se, portanto, às perturbações do estado de espírito do sujeito, injustamente causadas por um fato." [traduziu-se] (MONATERI, Pier Giuseppe. Le fonti delle obbligazioni: la responsabilità civile. Torino: UTET, 1998, p. 296). 2 MONATERI, Pier Giuseppe. Le fonti delle obbligazioni: la responsabilità civile. Torino: UTET, 1998, v. 3, p. 527. 3 MONATERI, P. G.; GIANTI, D.; SILIQUINI, L. C. Danno e risarcimento. Torino: G. Giappichelli, 2013, p. 221. 4 SPERA, Damiano. Tabelle milanesi 2018 e danno non patrimoniale. Milano: Giuffrè, 2018, p. 14. 5 FIANDACA, Lucrezia. Il danno non patrimoniale: percorsi giurisprudenziali. Milano: Giuffrè, 2009, p. 52.). 6 FACCIO, Lucas Girardello. A quantificação do dano moral: o uso de tabelas no direito italiano e a sua viabilidade no direito brasileiro. Porto Alegre: Editora Fi, 2020, p. 119.   7 Segue o trecho da sentença que trata da questão: È stato anche chiarito che, in ipotesi di liquidazione equitativa del danno non patrimoniale mediante applicazione delle 'tabele' predisposte dal tribunale di Milano, il giudice, nell'effetuare la necessaria personalizzazione di esso in base alle circostanze del caso concreto, può superare i limiti minimi e massimi degli ordinari parametri previste dalle dette tabelle solo quando la specifica situazione presa in considerazione si caratterizzi per la presenza di circostanze di cui il parametro tabellare non passa aver già tenuto conto, in quanto elaborato in astratto in base all'oscillazione ipotizzabile in ragione delle diverse situazioni orinariamente configurabili secondo l'id quod plerumque accidit, dando adeguatamente conto in motivazione di tali circostanze e di come esse siano state considerate (SPERA, Damiano. Tabelle milanesi 2018 e danno non patrimoniale. Milano: Giuffrè, 2018, p. 20). __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
quinta-feira, 25 de março de 2021

Saber ou dever saber? Eis a questão.

Embora o título não seja, exatamente, shakespeariano, a questão endereçada pelo mesmo também suscita reflexões profundas. Numa relação desenvolvida entre os contratantes A e B, ambos pessoas físicas, eventual contrato celebrado apresentará os direitos e deveres de cada qual. No que interessa à presente análise, A e B, por força do contrato, sabem o que devem cumprir. E.g., o empregador paga salários aos seus empregados, o locador disponibiliza o imóvel ao locatário e a construtora conclui o empreendimento imobiliário para o adquirente. Não se controverte quanto à presença do saber nesses deveres. É que nesta espécie de relação jurídica ocupada por pessoas físicas, a imputação torna-se mais simples e, portanto, facilitadora do conhecimento dos respectivos direitos e deveres. Imagine-se que A e B sejam, ao revés, complexas sociedades anônimas, cujas administrações sejam compostas por dezenas de diretores, além de conselheiros fiscais e de administração. O saber, ou melhor, esta imputação direta, própria à relação concebida pelas pessoas físicas, apresentar-se-ia da mesma maneira? Para responder à presente questão, deseja-se remeter o leitor a dois casos já examinados por tribunais brasileiros num passado recente e que, por sua notoriedade, ficaram marcados na história de nosso país. O primeiro caso trata da aquisição da Refinaria de Pasadena, localizada no Golfo do México, nos Estados Unidos da América, pela Petrobrás. O negócio foi concluído em 2006 e a estatal brasileira desembolsou o equivalente a US$ 1,249 bilhões de dólares norte-americanos para tanto. Inúmeras denúncias de corrupção, de mau aproveitamento de recursos públicos, de gestão temerária da companhia, entre outros males, foram à empresa petrolífera, representada por sua alta diretoria/conselho de administração. Para que se possa dimensionar corretamente os prejuízos causados à empresa e a seus acionistas, basta verificar que em 2019 esta mesma refinaria foi vendida à Chevron, por US$ 467 milhões de dólares norte-americanos. Fazendo um cálculo despretensioso, tem-se que a diferença entre o valor pago e o recebido pela Petrobrás foi de US$ 782 milhões de dólares norte-americanos, ou seja, um deságio enorme para a empresa e seus stakeholders.1 O Tribunal de Contas da União investigou o caso e, nesse sentido, deflagrou diversos processos administrativos contra a Petrobrás e seus diretores. A conclusão, de ampla divulgação ao público, foi no sentido de responsabilizar os membros da diretoria e do conselho de administração à época, designadamente por violação ao dever de diligência. Segundo o entendimento do relator, Ministro Vital do Rêgo, "[...] os fatos aqui narrados não se configuram em prejuízos advindos de um risco negocial, inerente à tomada de decisão pelo administrador, mas sim em desídia, na medida em que os responsáveis não se valeram do devido cuidado para garantir decisões refletidas e informadas".2 O cotidiano da administração de uma grande companhia é mesmo muito complexo. Uma miríade de informações, de pressões as mais diversas, de deveres etc. passam pela alta administração e podem vir a carecer do tratamento adequado. À diferença da mencionada relação concebida entre A e B, pessoas físicas, na qual ambos são perfeitamente conhecedores de seus direitos e deveres - lembrando do título do presente artigo, aqui os participantes efetivamente sabem - no caso da aquisição da refinaria de Pasadena um argumento de defesa da, à época, Presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás, Sra. Dilma Roussef, a respeito da magnitude do sobrepreço e da utilização precária pela companhia, tornou-se célebre, qual seja: "eu não sabia"3. Assim, a esfera do saber ficaria num segundo plano para, então, ceder espaço à do dever saber. Noutras palavras, se A e B, pessoas físicas, numa hipotética relação de emprego, locação ou construção civil, não podem alegar o desconhecimento de seus deveres a fim de descumpri-los, no caso da aquisição da refinaria de Pasadena, a Presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás, Sra. Dilma Roussef, poderia defender-se ao argumento de que não sabia? Em síntese, a alta administração de uma sociedade pode, juridicamente, não saber ou, ao contrário, o ordenamento lhe impõe um dever saber? O segundo caso que se deseja relembrar refere-se à tragédia ocorrida em Brumadinho (Minas Gerais), que culminou com a morte de 270 pessoas, como consequência do rompimento de barragem de propriedade da Vale S.A. Da mesma maneira que o primeiro caso objeto de nossos comentários, o presente também foi amplamente noticiado pela mídia e, mais recentemente, teve-se notícia de que a mineradora firmou um acordo com diversas autoridades responsáveis para pagar o equivalente a R$37 bilhões de Reais.4 A propósito do dever saber, os fatos pertinentes a este caso também merecem um olhar atento. É que pouco tempo antes da catástrofe, ocorrida em 25/01/2019, teve-se conhecimento de que a empresa responsável pela manutenção da barragem teria entregue à diretoria e ao conselho de administração da Vale um relatório que chamava a atenção a problemas naquela estrutura, havendo, inclusive, o risco de colapso. Entre outros argumentos, membros do conselho de administração da Vale argumentaram que não tiveram conhecimento do mencionado relatório, que teria permanecido nas mãos de escalão inferior da governança da companhia. À alta diretoria da mineradora - diretor presidente, presidente do conselho de administração, ou até mesmo conselheiros independentes - é lícito formular defesa calcada no não saber? A doutrina societária, ao comentar o art. 153 da lei 6.404, de 15.12.1976, é uníssona ao criticar a redação apresentada por esse dispositivo. Onde se lê: "o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios", deveria constar todo homem ativo e probo de negócios. (Grifou-se). E isto porque, de maneira lógica, o nível de qualificação exigido de administradores é bastante elevado, considerando as dificuldades próprias ao exercício de sua função.5 Respeitosamente, a diligência do dono de uma pequena mercearia de bairro não é equivalente ou comparável à diligência do presidente do conselho de administração da Vale ou da Petrobrás. Aristotelicamente, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualem. Além disso, a alta qualificação e a elevada valorização dos respectivos cargos mantêm em equilíbrio o grau de exigência e profissionalismo esperado desse profissional. A reflexão já apresentada, de viés societário, como se observou, não tem nada de novidadeira. Tanto perante o Tribunal de Contas da União, quanto perante a CVM, é fácil encontrar acórdãos no sentido de responsabilizar os administradores por violação ao dever de diligência, especificamente, ao dever de se informar de maneira adequada por ocasião da tomada de uma decisão.6 Deseja-se adicionar à reflexão societária o ingrediente civil, o que foi detidamente observado por João Baptista Villela7 e Flávio Tartuce.8 Villela inicia propondo o quanto segue: No âmbito do direito privado, os valores envolvidos são outros. Mas o raciocínio é fundamentalmente o mesmo. Há uma ética jurídica do conhecimento. E outra ética que trabalha no espaço do não saber, para o fim de, sendo este culpável, impor deveres ou estados de sujeição a quem não o tenha buscado e obtido. Em princípio, não são necessariamente iguais, do ponto de vista moral, a responsabilidade de quem age sabendo e de que age não sabendo, mesmo devendo saber. Assumir esta diferença agravaria enormemente os custos de operação dos sistemas jurídicos. E com tanto mais ônus quanto mais refinadas fossem as diferenças reconhecidas. Daí porque é um comportamento generalizado nos sistemas de direito do Ocidente identificar o saber com o não saber culposo. Saber ou dever saber são juridicamente uma única e mesma coisa. Máxima de antiga extração já estabelecida: paria sunt scire, vel scire debere.9 E Tartuce, ao analisar a afirmação de Villela, a aprofunda e traz ao leitor diversos dispositivos constantes no Código Civil que, expressamente, impõem o mencionado dever saber: Como leciona o próprio Villela, várias são as previsões do Código Civil Brasileiro que equiparam o saber com o dever saber, mesmo com efeitos jurídicos, o que deve atingir o seguro empresarial, pela posição econômica das partes. Destacam-se, de início, os dispositivos que tratam de anulação do negócio jurídico por dolo ou coação de terceiro, quando o negociante beneficiado sabia ou deveria saber desse vício de vontade. Consoante o art. 148 da codificação privada, pode ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou. A coação de terceiro vicia o negócio jurídico, se dela tivesse ou devesse ter conhecimento a parte a quem aproveite, e esta responderá solidariamente com aquele por perdas e danos (art. 154 do Código Civil). [...]10 Agora observando o regramento aplicável ao direito das sociedades, o eminente civilista arremata:   Em matéria de sociedades, de igual modo equiparando o saber com o dever saber, estatui o art. 898 do Código Civil Brasileiro que os bens sociais respondem pelos atos de gestão praticados por qualquer dos sócios, salvo pacto expresso limitativo de poderes, que somente terá eficácia contra o terceiro que o conheça ou deva conhecer. Além disso, a distribuição de lucros ilícitos ou fictícios acarreta responsabilidade solidária dos administradores que a realizarem e dos sócios que os receberem, conhecendo ou devendo conhecer-lhes a ilegitimidade (art. 1.009 do Código Civil). Por fim, o art. 1.013 da codificação material prescreve que a administração da sociedade, anda dispondo o contrato social, compete separadamente a cada um dos sócios. Entretanto, responde por perdas e danos perante a sociedade o administrador que realizar operações, sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a maioria (§ 2º do último comando).11  A conjugação das análises societária e civil a respeito do saber vis à vis o dever saber revela que o administrador de sociedades, com efeito, não pode valer-se de evasivas respaldadas por um direito ao não "dever saber", simplesmente porque este direito não pode ser arguido. Com essa assertiva em mãos, o leitor poderá pensar que o espectro de responsabilidade desses profissionais tornar-se-ia amplo demais, e, portanto, de absorção muito difícil. Ora, à luz dessa resistência, é preciso ter em mente que os dois casos relatados trataram de temas centrais à administração das duas companhias. No primeiro, lembre-se, a aquisição foi de uma refinaria avaliada em quantia superior a um bilhão de dólares norte-americanos, ao passo que o segundo caso tratou de uma das piores catástrofes ambientais da história brasileira, valendo lembrar que a derrocada da barragem de Brumadinho foi antecedida pelo também gravíssimo episódio de Mariana (Minas Gerais), com severos impactos nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, no ano de 2015. Quer-se afirmar, dessa maneira e, assim, propondo um critério, que temas relevantes à administração das sociedades não podem deixar de ser observados por suas altas diretorias/conselhos de administração. É por isso e para isso que os mesmos são investidos. Sustentar o contrário equivaleria a atribuir a esses diretores bônus relevantes, representados por suas remunerações, livres de quaisquer ônus. Seja do ponto de vista societário ou civil, o ordenamento jurídico brasileiro efetivamente dispõe a respeito de um dever saber e, como se viu, não apenas um saber que, na arena do direito societário, poderia representar uma espécie de salvo-conduto mágico capaz de livrar os administradores de suas responsabilidades ou, o que seria ainda pior, de incentivar a adoção da presumivelmente trágica cegueira deliberada com relação a temas sensíveis, que traduzem essencialmente o que se espera daquele gestor. Afinal, é justamente em casos emblemáticos como os mencionados acima que se espera do administrador que saiba e aja em prol dos interesses dos stakeholders que nele confiam.  Finalizando estas brevíssimas reflexões, deseja-se trazer um diálogo que se tornou célebre entre um dos mais populares super-heróis de todos nossos tempos, o Homem-Aranha, criado em 1962 por Stan Lee, e seu Tio Ben. Disse-lhe seu Tio: "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades".12 O saber e o dever saber, nesse sentido, possuem o mesmo significado e, logicamente, as mesmas consequências jurídicas.   *Ilan Goldberg é advogado e parecerista. Doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes - Ucam. Pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec. Professor convidado da EMERJ, da Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e da Escola de Direito da FGV. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo - RDCC. Sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados. __________ 1 O noticiário a respeito é vasto. Exemplificativamente, "Prejuízo de Pasadena foi de US$ 798 milhões ou mais de US$ 1 bi?". Disponível aqui, visitado em 9.3.2021. 2 Fonte: Tribunal de Contas da União. Relator Min. Vital do Rêgo. TC nº. 025.551/2014-0. Sessão: 11/10/2017. Acórdão nº. 2.284/2017 - Plenário. 3 Confira-se, exemplificativamente, as seguintes fontes:  clique aqui e clique aqui, visitadas em 09.03.2021. 4 O valor exato do acordo foi de R$ 37.689.767.329,00, e foi firmado pela Vale S.A. com o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e os Ministérios Públicos Federal e do Estado de Minas Gerais. 5 "São insuficientes os atributos de diligência, honestidade e boa vontade para qualificar as pessoas como administradores. É necessário que se acrescente a competência profissional específica, traduzida por escolaridade ou experiência e, se possível, ambas. O próprio art. 152 expressamente estabelece esses requisitos, ao falar em competência, reputação profissional e tempo de dedicação às suas funções". (MARTINS, Fran. Comentários à lei das sociedades anônimas. v 2. t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 361-362). 6 A respeito do TCU, é valida a referência ao próprio processo administrativo que cuidou da aquisição da refinaria de Pasadena, pela Petrobras. (Vide a nota de rodapé nº. 2). Da CVM, refere-se ao Processo Administrativo Sancionador CVM n.º 14/2014. 7 VILLELA, João Baptista. Apontamentos sobre a cláusula 'ou deveria saber'. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 38. p. 161-178, out./dez. 2007. 8 TARTUCE, Flávio. Do contrato de seguro empresarial e algumas de suas polêmicas: natureza jurídica, boa-fé e agravamento do risco. In. Temas atuais de direito dos seguros. Coord. GOLDBERG, Ilan. JUNQUEIRA, Thiago. T. I. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 530-554.    9 Idem. p. 163. 10 TARTUCE, Flávio. op. cit. p. 543. 11 Idem. p. 544. 12 Para examinar o diálogo em Português, seja permitido referir aqui . A frase, no original em inglês - "With great power comes great responsibility", é correntemente empregada pela mídia em meios os mais variados. Referências: With great power, comes great responsibility. The Malta Independent». www.independent.com.mt.  Is CRISPR really a gene-ius discovery? The Daily Campus.; Editor, Parker Otto. Marvel Cinematic Universe evolves film itself. Northern Star Online (em inglês); Steve Ditko's Gift To All: With Great Power Comes Great Responsibility'. The Federalist. 9 de julho de 2018. Consultados em 9.3.2021. __________  Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) apontou, recentemente, que o último ano foi marcado não só pela pandemia da Covid-19, mas também pela intensificação das mudanças climáticas. Estima-se que cerca de 51,6 milhões de pessoas no mundo foram afetadas diretamente por inundações, secas ou tempestades e, ao mesmo tempo, tiveram que lidar com os impactos socioeconômicos e de saúde provenientes da pandemia.1 A cada dia, o clima do planeta sofre mudanças e grande parte dessas vem sendo promovidas por ações antrópicas. Isto é, muito embora o clima terrestre sempre tenha passado por variações naturais de aquecimento e resfriamento, as intervenções humanas dos últimos anos estão afetando diretamente essa variação natural, de modo que a ação antrópica passou a ser um fator determinante das mudanças climáticas e de seus efeitos intergeracionais.2 Tais mudanças climáticas antrópicas decorrem, notadamente, da emissão de gases de efeito estufa (GEE) que, ao permanecerem retidos, impactam negativamente a composição da atmosfera, o meio ambiente, a biodiversidade e a saúde humana em escala mundial.  Como reação a esse cenário, a litigância climática no campo da responsabilidade civil ganha importância ímpar na atribuição do ônus específico de reparar os danos climáticos decorrentes dessas intervenções humanas no meio ambiente. Nesse contexto, pode-se observar, em diversos países, nos últimos tempos, o número crescente dessas ações que buscam a responsabilização dos agentes emissores de GEE, a fim de que passem a interiorizar essas externalidades negativas produzidas em desfavor do meio ambiente e da sociedade como um todo. Por sua vez, no cenário pátrio, entre as ações pioneiras nesse sentido está a Ação Civil Pública por Dano ao Meio Ambiente natural e por Dano Climático, movida em 2019 pela Advocacia-Geral da União (AGU), em face de Siderúrgica São Luiz Ltda e de Geraldo Magela Martins (sócio administrador), por meio da Procuradoria Federal de Minas Gerais, representando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em face de Siderúrgica São Luiz Ltda e de Geraldo Magela Martins (sócio administrador)3.  A temática sobre a responsabilidade civil por danos climáticos é, portanto, nova no direito brasileiro e traz consigo importantes desafios, posto que permeada por incertezas, a saber se a conduta humana deu causa às mudanças climáticas ou quais seus possíveis efeitos danosos adversos. A chave para as respostas a esses desafios sobressai da norma específica a ser aplicada às mudanças climáticas: a lei 12.187 de 2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) no ordenamento jurídico nacional. Isso porque as fontes e os efeitos das mudanc¸as clima'ticas e seus responsáveis estão delimitados normativamente, destacando-se quatro importantes definições: "mudança do clima", "efeitos adversos da mudança do clima", "fonte" e "Gases de Efeito Estufa (GEE)". Para os fins da lei, mudanças climáticas são, assim, qualquer "mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis" (art. 2, inc. VIII). Efeitos adversos das mudanças climáticas, por sua vez, são entendidos como "mudanças no meio físico ou biota resultantes da mudança do clima que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resiliência ou produtividade de ecossistemas naturais e manejados, sobre o funcionamento de sistemas socioeconômicos ou sobre a saúde e o bem-estar humanos" (art. 2, inc. II). Fonte causal é definida como todo "processo ou atividade que libere na atmosfera gás de efeito estufa, aerossol ou precursor de gás de efeito estufa" (art. 2, inc. IV). E, finalmente, Gases de Efeito Estufa (GEE) são "constituintes gasosos, naturais ou antrópicos, que, na atmosfera, absorvem e reemitem radiação infravermelha" (art. 2, inc. V). Além dessas importantes definições, a norma cuidou de delimitar a correlação entre a participação na fonte causal e a responsabilidade pelo impacto antropogênico nas mudanças climáticas (art. 3º), de modo que o dever de indenizar restará caracterizado diante da contribuição e do efeito da geração de fonte emissora de GEE para a subsequente mudança do clima e seus efeitos adversos. Da análise dos conceitos legais aplicáveis, não se pode deixar de notar que mesmo a fonte de emissão que está devidamente licenciada poderá, ainda assim, causar danos climáticos. No entanto, apenas serão assim considerados quando a fonte emissora ultrapassar o que a doutrina nacional vem tratando por grau de tolerabilidade dos reflexos da conduta humana no meio ambiente.4 Sobre o assunto, Morato Leite e Patryck Ayala5 apontam que, a toda evidência, qualquer ação humana é hábil a gerar reflexos ambientais, mas a grande diferença está na tolerância da norma acerca dessa fonte específica. Por isso, a análise da gravidade do dano ambiental será sempre indispensável para a responsabilização. Tal aspecto é sanado com a leitura do artigo 3º, inciso III, alínea e, da PNMA, que define poluição como "a degradacção da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos" (grifou-se). Ou seja, a conduta se caracteriza como antijurídica quando produz GEE acima do nível permitido para a sua atividade normalmente desenvolvida. Nesse cenário, a causalidade6 deve ser analisada a partir da contribuição da emissão, implicando na relação direta entre a fonte poluidora e as mudanças climáticas. No aspecto, tanto a teoria da causalidade adequada, como a teoria do escopo de proteção da norma violada podem servir de importante mecanismo para a aferição das causas do dano climático. Isso porque, uma vez devidamente delineada a norma de conduta violada e seu potencial danoso ao clima, bem como à poluição ambiental, chega-se à identificação do escopo protetivo, em seus mais diversos aspectos. Da mesma forma, é possível identificar a causa adequada do dano, considerando a relação de adequação entre a emissão de GEE e as mudanças climáticas, verificando-se se determinada condição elevou objetivamente o risco de dano ambiental. Em suma, é de se pontuar, portanto, que a responsabilidade pelo dano climático estará configurada quando: (i) ocorrer atividade que se configura como fonte de emissão de GEE; (ii) a emissão for enquadrada como poluição ambiental, seja por ação de poluidor direto, seja por ação de poluidor indireto, por consistir em emissão intolerável de material que contribua negativamente para com o equilíbrio climático; e (iii) a emissão resultar em degradação ambiental climática.  Não há dúvidas de que as mudanças climáticas representam um dos maiores desafios da contemporaneidade. O clima e os ecossistemas mundiais estão sendo alterados, ano após ano, em níveis nunca antes vistos, justamente em razão da ação humana nos últimos tempos. É premente, assim, a necessidade de se avançar não apenas nos padrões de controle criados para conter os riscos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mediante a limitação de emissões de GEE aos parâmetros do Acordo de Paris, mas também no reconhecimento da responsabilidade civil do agente-poluidor pelo dano climático próprio ou pelos danos decorrentes de tais mudanças. Sabrina Jiukoski da Silva é doutoranda e mestra em Direito pela UFSC. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Cesusc. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Thatiane Cristina Fontão Pires é doutoranda e mestra em Direito pela UFSC. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. __________ 1 United Nations Environment Programme. Adaptation Gap Report. Nairobi, 2020. Disponível em file:///C:/Users/Sabrina/Downloads/AGR2020.pdf. Acesso em 03 mar. 2021.  2 MARENGO, José A. Mudanças Climáticas Globais e seus efeitos sobre a Biodiversidade: caracterização do clima atual e definição das alterações climáticas para o território brasileiro ao longo do século XXI. 2 ed. Brasília, MMA, 2007. 3 Para maiores considerações, cf. JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. p. 671-687, 2020. 4 Sobre o assunto, ver: STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (Orgs.). Direito e mudanças climáticas: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010, p. 27. 5 MORATO LEITE, José  Rubens; AYALA, Patryck de Arau'jo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Sa~o Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.   6 Importa observar que para o entendimento dessas autoras, o nexo de causalidade é pressuposto indispensável para a caracterização do dever de indenizar. Para maiores esclarecimentos, ver: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. P. 671-687, 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Com o advento da pós-modernidade, trazendo consigo todas as suas dimensões (sociedade do risco, sociedade da informação, sociedade de consumo, sociedade pós-industrial, etc.), algumas condicionantes diferenciadoras influenciam diretamente nosso contexto social e, como não poderia ser diferente, o sistema formado pelo Direito. Dentre essas, destaco o surgimento de riscos e danos que antes não estavam presentes em nosso cotidiano e que acabam exacerbados pela massificação do consumo e pela interconexão das pessoas em uma sociedade cada vez mais global. Agrava-se essa situação pela consequente incerteza que paira sobre o conhecimento científico, anteriormente tido como inafastável em sua racionalidade. Nesse contexto social, econômico, cultural e jurídico, o instituto da responsabilidade civil está no front da inovação com objetivo de acompanhar as demandas que surgem dessa realidade. Como aponta Teresa Ancona   Lopez1, a evolução da responsabilidade civil, com a ascensão da vítima do dano ao papel central e sua reparação integral como objetivo, caracteriza o instituto como um verdadeiro "Direito de Danos". Ou, como afirma Nelson Rosenvald2, o ordenamento jurídico ainda encontra fundamento na lógica reativa, patrimonialista e individualista, pela qual a reação a comportamentos indesejados só se verifica após a consumação do dano. Diante da constante e necessária transformação do direito frente à dinâmica social, temos o reconhecimento de novos danos (dano estético, danos morais coletivos, danos por perda de uma chance, danos sociais), que ao lado dos danos clássicos ou tradicionais (danos materiais e danos morais) compõem o sistema de responsabilidade civil de nosso ordenamento jurídico. Com relação à coletivização dos danos, a comissão de responsabilidade civil da V Jornada de Direito Civil, no ano de 2011, aprovou o Enunciado nº 456, com o seguinte conteúdo: "a expressão 'dano', no art. 944, abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas". Para o presente ensaio, o dano que analiso é o social, considerado por Antônio Junqueira de Azevedo3, "como uma nova modalidade de dano que se caracteriza por lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto pelo rebaixamento de seu patrimônio moral, principalmente a respeito da segurança, quanto pela diminuição de sua qualidade de vida". Os danos sociais são diferentes dos danos morais coletivos. Num primeiro aspecto por terem efeitos de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, enquanto os danos morais coletivos são de natureza unicamente extrapatrimonial. O segundo aspecto diferenciador está na determinação das vítimas. Enquanto nos danos morais coletivos as vítimas são determinadas ou determináveis, nos danos sociais as vítimas são indeterminadas, padecendo toda a sociedade, de forma difusa, dos efeitos prejudiciais causados. Partindo dessas premissas, o ensaio que apresento traz o questionamento quanto à aplicação da responsabilidade civil do Estado por atos que conduzam à causação de danos sociais. O pano de fundo da análise é a situação excepcional causada pela pandemia Covid-19 e a ineficiência de sua gestão por parte do poder executivo federal. É transparente a condição de ineficiência da administração pública federal no que se refere à alocação de recursos, criação de políticas públicas emergenciais, informação à população e adoção de medidas de combate à proliferação e contágio da doença. Inicialmente, vale recordar que o Estado, como pessoa jurídica, é um ser imaterial que se faz presente no mundo jurídico por meio de seus agentes, pessoas naturais cuja conduta é a ele imputada. Dessa forma, quando tratamos da responsabilidade civil do Estado, temos três sujeitos envolvidos: o Estado, o lesado e o agente do Estado. Neste quadro, o Estado é civilmente responsável pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, devendo reparar os prejuízos causados, mediante obrigação de custear as indenizações devidas. Com a edição do Código Civil de 2002 e seu art. 434, alinhado à previsão constitucional do art. 37, § 6º5, da Constituição Federal, se extingue a anterior controvérsia quanto à natureza da responsabilidade, fixando a teoria da responsabilidade objetiva como a adotada por nosso ordenamento jurídico como aplicável ao Estado. Quanto aos representantes do Estado, a norma trata de agentes, termo que tem sentido amplo, como ensina José dos Santos Carvalho Filho, devendo ser considerados como agentes do Estado todas aquelas pessoas cuja vontade seja imputada ao Estado, sejam pertencentes aos mais elevados níveis hierárquicos e tenham amplo poder decisório, sejam ocupantes de cargos de menor poder e hierarquia, desde que no exercício de suas funções administrativas. No que se refere à conduta dos agentes, estas podem ser comissivas e/ou omissivas, devendo estar presentes os elementos fato administrativo, dano e nexo causal. Com relação à situação trazida como paradigma, temos condutas comissivas caracterizadas por medidas administrativas ineficazes, orientações equivocadas, falhas administrativas. Em conjunto, temos condutas omissivas concernentes à ausência de planejamento estratégico e logístico quanto ao atendimento à população, inércia na aquisição de insumos e equipamentos e na prestação de informações que pudessem orientar os cidadãos. Vários são, portanto, os fatos administrativos verificáveis como causadores de danos à sociedade de forma difusa. Esses danos, ditos sociais, no aspecto abordado pelo estudo, apresentam todas as características do conceito: afetam a segurança das pessoas e sua qualidade de vida, colocam em risco, de forma difusa, a saúde da população, impedem a retomada segura de atividades normais da vida cotidiana. O nexo causal também se apresenta. Alguns liames como exemplo: a ausência de um plano de controle do contágio (omissão) permitiu que muitas pessoas fossem contagiadas em um curto espaço de tempo, levando ao colapso do sistema de saúde e a morte de muitos indivíduos que poderiam ter recebido tratamento adequado e não receberam. Outro exemplo: o comportamento ambíguo e negacionista dos agentes estatais somado à propagação de tratamentos sem comprovação científica levou diversas pessoas a assumir comportamento idêntico, o que aumentou a propagação do vírus e ocasionou mortes e internações que poderiam ter sido evitadas. No meu entendimento não resta dúvida da presença dos elementos caracterizadores da responsabilização civil do Estado (fato administrativo, dano e nexo causal). Mas a inquietação que ainda persiste diz respeito à possibilidade da imputação dos danos sociais no âmbito da responsabilidade civil do Estado. Pela análise realizada, por óbvio sem pretender ser exauriente, o posicionamento é pela possibilidade de imputação da responsabilidade civil do Estado pelos danos sociais causados neste momento excepcional pelo qual passamos. Quanto à reparação pecuniária, como é da natureza dos danos sociais o valor não ser destinado às vítimas determinadas ou potenciais, este deve ser destinado ao Fundo Nacional de Saúde, instituído pelo Decreto nº 64.867, de 24 de julho de 1969. E, por fim, não se pode deixar de fiscalizar as eventuais ações regressivas em busca do ressarcimento dos valores pagos a título de indenização em face dos agentes públicos que concorreram para a efetivação dos danos, considerando a existência de culpa. Acredito que, dessa forma, o instituto da responsabilidade civil estará atingindo seus fins sociais, bem como sua função punitiva e inibidora, conforme aponta Felipe Braga Netto6, com quem humildemente concordo. O agente público, em especial aqueles com grande poder de decisão, ocupantes dos altos cargos de gestão, devem ter em mente a busca pela eficiência bem como a atuação conforme os ditames constitucionais, pautados por subsídios técnico-científicos e compreendendo os limites de sua discricionariedade e o interesse público que, ao final, se resume à consecução da ordem constitucional quanto aos direitos e garantias fundamentais. *Luis Miguel Barudi é doutor pela UNIOESTE. Mestre pela PUC/PR. Advogado fundador do Escritório Barudi e Barp Salgado Advogados. Professor do Centro Universitário UDC - Foz do Iguaçu/PR. Membro do IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo e Estado Contemporâneo - UNIOESTE.  Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da Subseção de Foz do Iguaçu da OAB (2019/2021).    __________ 1 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010 p. 76-77. 2 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.77. 3 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (Coord.). O Código Civil e sua interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 376. 4 CC - Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo. 5 CF - Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 6 BRAGA NETTO, Felipe. As novas funções da responsabilidade civil: A função punitiva em casos concretos. 2019. Disponível aqui. Acesso 09 fev 2021. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
A calamitosa situação sanitária de diversos países do mundo, inaugurada a partir da profusão da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) em escala global, passa a demandar não apenas medidas eficazes a serem adotadas por autoridades constituídas, mas também reflexão aguçada por parte da sociedade civil acerca dos impactos da crise no cotidiano dos indivíduos direta ou indiretamente afetados. O propósito destas linhas será, em termos jurídicos, o de questionar se caberia imputar responsabilidade civil ao Estado em razão da morte de milhares de indivíduos que, em alguns casos, sequer conseguem ter acesso a cuidados médicos adequados, em razão do quadro de colapso do sistema de saúde de muitos hospitais em todo o Brasil.1 Embora todos os seres humanos compartilhem entre si uma certeza - a finitude de sua existência -, o processo de morrer pode ser significativamente distinto, a depender das condições em que se encontrem os moribundos. Naturalmente, pessoas que tenham melhores condições econômicas, ou acesso facilitado a sistemas públicos de saúde funcionais, se encontrarão em circunstâncias mais favoráveis, no termo final de suas vidas, que aquelas que vivem em situação precária e sequer têm acesso aos medicamentos ou tratamentos mais elementares. É possível afirmar, então, que em algumas circunstâncias a morte não será minimamente digna - e, em tempos de pandemia, nem mesmo o fato de algumas pessoas terem boas condições financeiras ou usufruírem de planos de saúde privados será suficiente para assegurar que haverá leitos hospitalares disponíveis para o tratamento de enfermos em estado mais grave. Muito se discute, a propósito, sobre o sentido a atribuir à expressão "morte digna". Embora neste espaço não caiba avançar para muito longe neste debate, cabe afirmar que a morte digna se refere ao modo de morrer:2 é inequívoca a ideia de que morre em condições indignas a pessoa que sequer tem acesso a tratamentos médicos basilares. É esta perspectiva que dá abertura para o surgimento do conceito de mistanásia, que terá como vítimas, em particular, os miseráveis, os desvalidos e, no contexto da pandemia, todos aqueles que morrerem à margem dos cuidados sanitários que, à partida, deveriam ser postos ao dispor de todo e qualquer ser humano. Mistanásia é uma expressão derivada da conjugação dos vocábulos gregos mis (infeliz) e thanatos (morte). Induz a ideia de uma morte miserável, que alcança aqueles que sequer têm acesso aos serviços médicos mais elementares, ou, quando o têm, se tornam vítimas fatais, ora da má qualidade na prestação de tais serviços, ora de condutas deliberadamente voltadas para causar a morte. São vítimas da mistanásia, então, as pessoas que sequer chegam a ser pacientes e não conseguem acesso aos medicamentos ou falecem nas filas de hospitais, à espera de atendimento médico; indivíduos que conseguem ser pacientes, mas são vítimas de atendimento insuficiente ou de erro médico; e os pacientes que simplesmente têm suas vidas ceifadas por razões políticas, econômicas ou sociopolíticas, incluindo-se aí o óbito daqueles que mais sofrem com a ausência do Estado.3 Aquela primeira hipótese - a de indivíduos que perecem sem atendimento adequado - é a que se manifesta, muito particularmente, nestes tristes tempos de pandemia. Ao tempo em que se registram estas notas, em que adentramos o mês de março de 2021, o Brasil ultrapassa a lastimável marca de mais de 250.000 vítimas fatais da Covid-19. A média de óbitos diária tem constantemente sido superior a 1.000 pessoas, ao passo em que a vacinação está longe de ser suficiente para permitir o arrefecimento significativo destes números. O contingente populacional brasileiro já contemplado com a vacina circunda a marca de meros 3% (e ainda menor é o número de pessoas que receberam a segunda dose da vacina), enquanto o país trava uma dura batalha para obter um quantitativo de doses suficientes para propiciar uma imunização em larga escala. Até o momento, têm acesso à vacinação grupos prioritários, compostos, entre outros, por idosos e profissionais da saúde. O maior espectro da população não pode ainda vislumbrar um cronograma confiável de vacinação, o que tem forçado governos municipais e estaduais a adotarem com frequência medidas de contenção da propagação do coronavírus, o que inclui limitações (ou mesmo a proibição) ao funcionamento de atividades educacionais, recreativas e comerciais, para além da imposição de restrições ao direito de ir e vir, mediante o estabelecimento de horários de livre deslocamento e de toques de recolher. Não bastasse a dramática situação de colapso de inúmeras unidades de saúde ao largo de todo o território nacional, os moradores de Manaus, em especial, passaram pelo enfrentamento de outra crise, de proporções devastadoras: a escassez de cilindros de oxigênio nas unidades de saúde terminou por provocar a morte por asfixia de diversas pessoas. Não se descarta a perspectiva de que semelhante tragédia se repita em outras cidades e acometa um infindável número de novas vítimas. Diante desta perspectiva, cabe inquirir se o Estado (aí entendida amplamente a expressão, para abarcar as pessoas jurídicas de direito público, tais como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) poderia ser civilmente responsabilizado pela ocorrência de casos de morte indigna, em que indivíduos podem se ver constrangidos a um fim de vida doloroso, sem acesso ao devido acompanhamento médico e hospitalar, a alguma vacina ou mesmo a um bem elementar da vida como o oxigênio. À partida, não caberia de plano imputar o dever de responder por danos ao Estado, pois a situação de calamidade sanitária decorre de um evento imprevisível e extraordinário, a caracterizar autêntico caso fortuito. Este argumento, em princípio, afastaria a responsabilidade civil do ente público, em razão da inexistência de conduta a ser-lhe imputada e que tenha, de algum modo, contribuído para causar ou agravar os potenciais danos aos enfermos que não conseguirem acesso apropriado a cuidados de saúde. Este quadro primeiro, todavia, pode ser alterado a depender das circunstâncias em concreto, sobretudo em virtude da possível negligência quanto à adoção de medidas proativas, de cunho preventivo e/ou reativo, que possam ao menos abrandar os efeitos da pandemia na sociedade brasileira. A invocação desta tese, a propósito, poderá vingar caso se demonstre, por exemplo, que a adoção oportuna de medidas profiláticas, como a determinação do fechamento de estabelecimentos comerciais, de escolas e de fronteiras e do cancelamento de voos, sobretudo internacionais, teria sido suficiente para evitar ou ao menos mitigar um quadro drástico de morte indigna de pessoas que não tiverem acesso a tratamentos adequados. Também caberia invocar a responsabilização do ente público, em tese, em razão da falta de oxigênio, de insumos, de leitos hospitalares e mesmo da morosidade na aprovação ou na obtenção das vacinas já disponíveis no mercado: ainda que, naturalmente, centenas de nações estejam em busca de dosagens suficientes para a imunização de seus cidadãos, o que provoca uma delicada e acirrada disputa pelas vacinas, nada obsta que se demonstre que o poder público foi negligente ou ineficiente quanto à adoção de medidas efetivas de aquisição de doses que podem representar uma diminuição sensível no número de casos graves da doença. A cogitação da responsabilidade civil do Estado demandaria, assim, a comprovação de que houve omissão quanto ao cumprimento de medidas necessárias para minimizar os efeitos devastadores da pandemia. Naturalmente, não apenas a demonstração da conduta omissiva se faria imprescindível, como também a existência de liame causal entre tal comportamento desidioso e o estágio de contaminação em massa e, como decorrência, a superlotação dos hospitais e a morte consequente de pessoas cujas vidas poderiam ter sido preservadas. A eventual prova da correlação entre a negligência estatal e um lastimável contingente de vítimas fatais, alijadas do acesso a cuidados médicos intensivos e indispensáveis à sua sobrevivência e mesmo à vacinação, poderia implicar a verificação do nexo de causalidade necessário para caracterizar a possível responsabilização do ente público. Para que se dê a potencial caracterização de conduta omissiva do Estado, enfim, será crucial a averiguação do modo como os agentes públicos terão reagido à crise sanitária instaurada em todos os Estados e incontáveis Municípios brasileiros, cumprindo recordar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal afirmou, com suporte no texto constitucional (art. 23, II),  ser concorrente a competência de tais entes federativos para o estabelecimento de regras de combate à pandemia.4 Por falar neste Tribunal, aliás, um de seus Ministros, Luís Roberto Barroso, ao inaugurar a sessão de julgamentos do Tribunal Superior Eleitoral no dia 4 de março de 2021, prestou homenagens às milhares de vítimas da Covid-19 e aventou a tese de que muitas das mortes ocorridas no país seriam "evitáveis", o que traduziria um momento de desvalorização da vida. No dia anterior, 3 de março, 1.840 pessoas haviam falecido em decorrência da doença,5 e há uma tendência de elevação destes números nos dias vindouros. A análise proposta haverá de ser casuística e extremamente cautelosa, somente sendo viável a aplicação dos remédios próprios da responsabilidade civil quando adequadamente verificados seus pressupostos ensejadores, a saber, a conduta (ativa ou passiva) do Estado, os danos experimentados pelos lesados e, sobretudo, o nexo causal entre os dois elementos precedentes. Caracterizando-se como objetivo o modelo de responsabilidade em questão, eis que o ente público responde pelos atos de seus agentes independentemente de culpa, consoante a inteligência dos arts. 37, § 6º da Constituição da República e 43 do Código Civil, a demonstração dos elementos elencados seria bastante para a imputação de responsabilidade ao Estado.   Frise-se ser impossível, a priori, definir que os entes públicos federativos devam de fato responder por danos nas circunstâncias descritas. O que se suscita neste breve ensaio é uma hipótese, indiscutivelmente plausível, mas que apenas se provará efetiva mediante a análise dos casos concretos que porventura sejam levados a debate pelas vias próprias. O tempo, enfim, dará adequadas respostas a este dilema. Tudo passará a exigir a averiguação do modo como terão reagido os entes públicos e seus agentes ao longo do período da pandemia, ainda não superado. A depender das circunstâncias e, em particular, da (difícil, diga-se) demonstração da causalidade existente entre atos do Estado e os danos sofridos pelas vítimas da pandemia e seus familiares, cumprirá ao ente público assumir a responsabilidade de arcar com os inumeráveis reflexos lesivos, não por ter, naturalmente, propiciado a chegada do coronavírus ao Brasil - fato que se tinha por inevitável -, mas por não ter contido adequadamente a propagação de seus nefastos efeitos. A ser este o caso, surgirá, ainda, um novo e complexo problema: em meio à crise econômica que se instaurou no país, como poderá o ente público reparar as vítimas (ainda que pela via reflexa, como se dará em relação aos familiares de pessoas falecidas) da pandemia, notadamente aquelas que porventura demonstrarem que não foram dignamente tratadas quando mais careciam de cuidados médicos? Tempos difíceis exigem ponderadas reflexões. Há incontáveis dilemas que podem decorrer do estado atual de crise sanitária, sendo a morte desassistida - e, por isso mesmo, indigna - o mais drástico entre eles. Espera-se que as linhas traçadas sirvam para contribuir com o debate e, sobretudo, que a sociedade brasileira seja capaz de superar esta crise com a máxima brevidade possível - o que não deixa de ser, em última instância, decorrência também do comportamento dos entes públicos no enfrentamento da pandemia. *Adriano Marteleto Godinho é professor dos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Paraíba. Pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. __________ 1 Mais informações sobre a associação entre a pandemia do novo coronavírus e a responsabilidade civil podem ser encontradas na seguinte obra: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; DENSA, Roberta (Coord.). "Coronavírus e responsabilidade civil - impactos contratuais e extracontratuais". Indaiatuba: Foco, 2020. 2 BLANCO, Luis Guillermo. Muerte digna: consideraciones bioético-jurídicas. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 50. 3 SANTORO, Luciano de Freitas. Morte digna: o direito do paciente terminal. Curitiba: Juruá, 2010, p. 127. 4 STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 6341, julgada em 15/04/2020. Disponível aqui. 5 TSE. "Presidente do TSE lamenta número recorde de mortes pela Covid-19". Disponível aqui. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
Introdução A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, popularmente conhecida pela sigla EIRELI, é uma das pessoas jurídicas de direito privado existentes no ordenamento jurídico brasileiro, tendo sido introduzida pela lei 12.441/2011. Trata-se de uma importante forma de organização empresarial, representando grande avanço para o direito brasileiro, que até o momento da sua criação não possuía uma estrutura de limitação de responsabilidade e segregação patrimonial do empreendedor que desenvolvia individualmente uma atividade empresarial. A mencionada lei alterou o Código Civil e procedeu à inclusão do inciso VI ao artigo 44 e também do art. 980-A ao diploma, permitindo que alguém seja individualmente titular de uma pessoa jurídica de natureza empresarial. Com isso, estabeleceu-se, não só a personalidade jurídica, mas também a autonomia patrimonial da EIRELI, que é sujeito de direito e deveres para todos os fins1. Ao mesmo tempo, a lei definiu uma série de características e requisitos da EIRELI, quais sejam (a) capital social mínimo de cem vezes o salário-mínimo do momento da constituição, que deve ser imediatamente integralizado; (b) utilização da expressão EIRELI após a sua firma ou denominação social; (c) limitação da existência de apenas uma EIRELI por pessoa física; e (d) aplicação, no que couber, das regras atinentes às sociedades limitadas. Sua instituição, é bem verdade, trouxe a reboque uma série controvérsia e de críticas da doutrina como, por exemplo, o questionamento quanto à nomenclatura e à constitucionalidade do capital social mínimo2. Contudo, em pouco tempo essa espécie de pessoa jurídica de natureza empresarial passou a ganhar relevância na vida econômica brasileira, sendo um importante incentivo ao empreendedorismo3. As controvérsias, por sua vez paulatinamente foram sendo tratadas pela própria doutrina, e pela jurisprudência. Uma delas, por exemplo, sobre a exigência de capital social mínimo, foi recentemente solucionada pelo STF, que em acórdão relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, por ampla maioria, decidiu pela sua constitucionalidade e adequação ao ordenamento jurídico brasileiro4. A integralização do capital social de pelo menos cem salários-mínimos, ressalte-se, é a principal obrigação do seu titular, que uma vez cumprida faz com que, a princípio, a sua responsabilidade pessoal se esgote5. Isto, porque, como dito acima, a EIRELI é uma verdadeira pessoa jurídica, com autonomia patrimonial. Cabe ao titular, portanto, a responsabilidade pela integralização do capital social, sendo, então, a própria EIRELI responsável pelas suas dívidas e pelo cumprimento das suas obrigações. Neste sentido, inclusive, é a dicção do enunciado 470 da V Jornada de Direito Civil, que estabelece: "O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica." Ou seja, ao mesmo tempo que patrimônio do titular da EIRELI, seja uma pessoa física ou jurídica, não se confunde com a dela própria, por conta da autonomia patrimonial, a responsabilidade deste está limitada à integralização do capital social. Essa é, obviamente, a regra geral, a qual comporta exceções, como o próprio enunciado supramencionado ressalva. Porém, será que o afastamento da autonomia patrimonial atualmente deve ocorrer por meio da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica? A resposta, à luz da Lei da Liberdade Econômica e dos apontamentos que serão feitos a seguir, só pode ser negativa. A Lei da Liberdade Econômica e as Alterações que Impactam a EIRELI  A Lei da Liberdade Econômica (LLE), instituída pela Medida Provisória 881/2019, que foi convertida na lei 13.874/2019, trouxe mudanças robustas para várias áreas do direito brasileiro, sendo o ramo empresarial um deles. Por meio dela, diversos dispositivos do Código Civil atinentes ao direito empresarial foram alterados, com destaque para: (a) a inclusão do 49-A, norma promocional que positiva a noção da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas6; (b) a alteração do artigo 50, que trata da desconsideração da personalidade jurídica; e (c) a inclusão dos parágrafos 1º e 2º ao art. 1.052, que autorizam a constituição das sociedades limitadas unipessoais. A última alteração mencionada tem considerável impacto na EIRELI, pois a partir dela surge uma nova forma de estruturar atividade empresarial desenvolvida individualmente. A possibilidade de constituição de uma sociedade limitada com apenas um sócio faz com que passe a existir uma nova forma de segregação e limitação patrimonial daquele que deseja empreender individualmente. O "empreendedor individual"7, por conseguinte, passa a ter duas opções: constituir uma EIRELI ou organizar-se por meio de uma sociedade limitada. A principal diferença entre essas duas opções, é o montante do capital social a ser integralizado. Se para a constituição da EIRELI existe uma exigência de capital social mínimo, de cem salários-mínimos, essa exigência inexiste para a constituição da limitada unipessoal, ficando o seu sócio totalmente livre para estabelecer o respectivo capital social.  Neste cenário, não parece ser difícil verificar que, apenas analisando essa questão, a constituição de uma sociedade limitada unipessoal é mais vantajosa, o que faz alguns preconizarem que as EIRELIs irão cair em desuso8. E de fato verifica-se em alguns Estados uma diminuição do número de constituições deste tipo de pessoa jurídica9, ainda que em outros ela continue mantendo a sua relevância10. Contudo, as alterações trazidas pela LLE são voltadas para uma convivência harmônica entre a EIRELI e a sociedade limitada unipessoal11, inexistindo qualquer intenção de acabar com a primeira, ou restringi-la, muito antes pelo contrário. Sendo assim, é necessário destacar a introdução, na mencionada lei, de uma norma no Código Civil que é especificamente voltada para a valorização da EIRELI. Trata-se do §7º ao artigo 980-A, que assim dispõe: "Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude." O dispositivo, que traz de volta para o ordenamento pátrio uma parte do teor do anteriormente vetado §4º do mesmo artigo, possuí um conteúdo normativo bastante forte, mas que muitas vezes está sendo desconsiderado. Ele foi introduzido pelo legislador como forma de valorização e restauração do vigor da EIRELI, como reconhecido na própria exposição de motivos da MP 88112. Fundamental analisá-lo, portanto, um pouco mais detidamente. A personalidade jurídica reforçada da EIRELI após a LLE Como apontado acima, a Lei da Liberdade Econômica introduziu na regulamentação normativa da EIRELI um §7º ao art. 980-A do CC, que estabelece que a responsabilidade pelo cumprimento das suas obrigações e pagamento das suas dívidas estará limitada ao seu próprio patrimônio. Consagra, por conseguinte, a autonomia patrimonial dessa espécie de pessoa jurídica, conforme já destacado anteriormente. Mas a norma vai além, determinando que em nenhuma hipótese o patrimônio da EIRELI e do titular podem ser confundidos e que este último somente será pessoalmente responsabilizado caso haja fraude. Trata-se, inegavelmente, de um reforço no véu de personalidade jurídica da EIRELI, que faz com que o seu levantamento seja absolutamente excepcional. A intensão do legislador em relação à norma ora em comento foi de prestigiar e reforçar a EIRELI, como já comentado acima. Neste sentido, ele procurou bonificar o titular da EIRELI, cuja constituição exige a integralização de um capital social mínimo bastante elevado, concedendo uma personalidade jurídica reforçada, que só será desconsiderada em caso de fraude13. Alguns autores vêm afirmando que o mencionado §7º não traria efeitos jurídicos benéficos à EIRELI14, chegando mesmo a dizer que os seus efeitos na verdade seriam perversos, pois ele traria uma hipótese mais alargada e facilmente preenchível de desconsideração da personalidade jurídica15. Mas a interpretação dele deve ser diametralmente oposto. Em verdade, ele excepcionaliza ainda mais a já excepcional desconsideração da personalidade jurídica. Isto porque, o final do §7º é claro ao estabelecer que o levantamento do véu de personalidade jurídica da EIRELI somente pode ocorrer nos "casos de fraude". Como se sabe, a desconsideração da personalidade jurídica, que a partir da reforma proporcionada pela LLE ganha novos capítulos16, é uma sanção que o ordenamento jurídico impõe àqueles que se utilizam da personalidade jurídica de forma abusiva, sendo em última análise um desdobramento do abuso de direito17. Tais situações abusivas foram tipificadas com a reforma recente, ocorrendo nos casos de desvio de finalidade e confusão patrimonial18. Ainda assim, mantem-se o núcleo da sanção vinculada ao abuso de direito, que como se sabe desconsidera aspectos subjetivos, o que significa dizer que o dolo ou culpa do agente não são decisivos para o reconhecimento do ato abusivo19. Segundo o art. 50 do CC, portanto, a desconsideração, calcada no abuso de personalidade, pode ser decretada mesmo que o "titular" da pessoa jurídica não tenha agido intencionalmente. Lado outro, a fraude é um vício do negócio jurídico que leva em conta a intencionalidade. Ela depende necessariamente do elemento subjetivo, o consilium fraudis, ocorrendo quando há um comportamento de má-fé do agente20. A fraude na utilização de uma pessoa jurídica ocorre quando o seu "titular" a utiliza com o intuito de lesar terceiros, de forma deliberada e maliciosa. A fraude se insere na noção de abuso de personalidade, mas este último é mais abrangente que a primeira, sendo verificado também quando não há o aspecto volitivo. Desta forma, à medida que o §7º do art. 980-A do CC limita o disregard da EIRELI aos casos de fraude, ele estabelece a necessidade da existência de um elemento volitivo para que a responsabilização pessoal do titular pelas dívidas da empresa ocorra. A hipótese, portanto, é mais restritiva que no regime geral da desconsideração da personalidade jurídica do art. 50 do codex civil. Assim, somente quando o titular utilizar a EIRELI com o intuito deliberado de prejudicar os seus credores, agindo de forma fraudulenta, é que ele poderá ser pessoalmente responsabilizado pelas dívidas dela. Conclusão Por tudo que foi exposto no presente artigo, tem-se certa segurança para afirmar que a Lei da Liberdade Jurídica, por meio da introdução do §7º ao art. 980-A do CC, concedeu à EIRELI uma autonomia patrimonial e personalidade jurídica mais forte e robusta. Neste sentido, o levantamento da sua personalidade jurídica só pode ocorrer em caso de fraude, a qual necessita de um elemento volitivo. Com isso, tem-se uma limitação da responsabilidade mais reforçada para o titular da EIRELI, que somente será chamado a responder pessoalmente pelas dívidas da empresa se agir de forma fraudulenta. Essa é a interpretação mais consentânea do mencionado parágrafo, levando-se em conta não só a intenção do legislador, mas também as características próprias da EIRELI. À medida que se necessita de um capital social robusto para constituir esse tipo de pessoa jurídica, o que é uma especificidade somente a ela aplicável, mostra-se totalmente legítimo que o seu véu de personalidade jurídica seja mais forte que outras pessoas jurídicas, como a sociedade limitada unipessoal. Autores muitas vezes apontam que o desprestígio da autonomia patrimonial que se vivencia Brasil, em grande medida, decorre da forma como o capital social é tratado pela doutrina quanto pela prática21. Ao valorizar e reforçar a personalidade jurídica da EIRELI como bonificação pela integralização pelo titular de um capital social de pelo menos cem salários-mínimos, prestigia-se a autonomia patrimonial. É possível afirmar, portanto, que a responsabilidade pessoal do titular da EIRELI, portanto, é bastante limitada após publicação da Lei da Liberdade Econômica. *Marcelo Matos Amaro da Silveira é doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos/MG. Membro Titular do Instituto de Estudos em Responsabilidade Civil - IBERC. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado no Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados, BH. __________ 1 Como aponta GONÇALVES, Oksandro. EIRELI - Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui. 2 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial: volume único. - 10. ed. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 74-75. 3 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; COSTA, Pedro Henrique Carvalho da. Primeiras Anotações acerca da Nova Sociedade Limitada Unipessoal. Revista Jurídica Luso-Brasileira - RJLB, Ano 5, nº 4, p. 1123-1145, Lisboa, 2019, p. 1139-1140. 4 BRASIL. STF. ADI 4637/DF. Rel. Min. GILMAR MENDES. Julgamento em 07/12/2020. Publicado DJe 04/02/2021. 5 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; ALVES, Giovani Rodrigues Alves. Art. 7º: EIRELI. Art. 980-A do Código Civil. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019, p. 395-398. Floriano Peixoto Marques Neto; Otávio Luiz Rodrigues Jr.; Rodrigo Xavier Leonardo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 396. 6 LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A Autonomia da Pessoa Jurídica - Alteração do Art. 49-A do Código Civil: Art. 7º. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019, p. 255-269. Floriano Peixoto Marques Neto; Otávio Luiz Rodrigues Jr.; Rodrigo Xavier Leonardo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 267. 7 Aqui utilizado em um sentido que não é técnico, como a pessoa que deseja desenvolver atividade empresarial de sem sócios, mas por meio de uma pessoa jurídica. 8 ACCIOLY, João C. de Andrade Uzêda. Singularidade Societária na Lei de Liberdade Econômica - Algumas Considerações Sobre a Limitada e a EIRELI sob as Modificações da lei 13.874/2019. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro. Luis Felipe Salomão, Ricardo Villas Bôas Cueva, Ana Frazão (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, rb-29.5. 9 Como no caso de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, por exemplo. Segundo dados da JUCEMG houve uma queda percentual de praticamente 10% da relevância da EIRELI após a LLE, em 2018 foram criadas 9.772 EIRELIs, o que representou 20% dos novos registros de constituição empresarial, já em 2020 foram 6.567 constituições, o que representou 11% das constituições de pessoas jurídicas (disponível aqui). Já segundo dados da JUCERGS a queda foi de 14% da relevância, já que em 2018 forma constituídas 5.363 EIRELIs, o que representou 27% das constituições de pessoas jurídicas, e em 2020 foram 3.492 constituições, algo em torno de 13% das constituições de pessoas jurídicas (disponível aqui). 10 Como no estado da Bahia. Segundo dados da JUCEB em 2018 a EIRELI representou 24% dos novos registros de constituição empresarial, com 5.261; já em 2020 a representatividade foi de 21% dos novos registros, com um total de 4.954 novas EIRELIs constituídas (disponível aqui). 11 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; COSTA, Pedro Henrique Carvalho da. Primeiras Anotações acerca da Nova Sociedade Limitada Unipessoal, p. 1136. 12 In verbis: "Também se prestigia o valoroso papel de avanço, por mais liberdade econômica, pelo Congresso Nacional, ao se restaurar os fins devidos para que a EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) foi criada. Com altos requisitos (e, então, elevados custos de transação para estabelecimento), essa modalidade previa uma desconsideração de personalidade jurídica mais restrita. Entretanto, veto presidencial em outra época acabou por sustar o benefício, sem retirar as obrigações mais elevadas e custosas. Faz-se necessária essa correção, conforme era o intento do Congresso Nacional". Disponível aqui. 13 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial: volume único, p. 77. 14 ACCIOLY, João C. de Andrade Uzêda. Singularidade Societária na Lei de Liberdade Econômica - Algumas Considerações Sobre a Limitada e a EIRELI sob as Modificações da lei 13.874/2019, rb-29.5. 15 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; ALVES, Giovani Rodrigues Alves. Art. 7º: EIRELI. Art. 980-A do Código Civil, p. 397. 16 LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A desconsideração da personalidade jurídica - Alteração do art. 50 do Código Civil: Art. 7º. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: lei 13.874/2019, p. 271-292. Floriano Peixoto Marques Neto; Otávio Luiz Rodrigues Jr.; Rodrigo Xavier Leonardo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 273. 17 FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos sobre a desconsideração da personalidade jurídica.  Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro. Luis Felipe Salomão, Ricardo Villas Bôas Cueva, Ana Frazão (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, rb-26.3. 18 LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A desconsideração da personalidade jurídica - Alteração do art. 50 do Código Civil: Art. 7º, p. 288. 19 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 705. 20 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, p. 675. 21 LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A Autonomia da Pessoa Jurídica - Alteração do Art. 49-A do Código Civil: Art. 7º, p. 269.
O conceito de consumidor tem sido constantemente enfocado, principalmente pelos tribunais brasileiros, como sendo relativo a um sujeito individual. Isso é um problema - adianto a resposta à pergunta constante do título - para a efetividade da política nacional de defesa do consumidor. Toda a teoria de responsabilização civil, no Direito do Consumidor, do fornecedor pelos vícios e fatos de produtos e serviços, bem como pela publicidade mal realizada, assim como por práticas abusivas e relativa à proteção contratual, foi pensada a partir do reconhecimento da tipicidade da posição do consumidor no mercado e de uma característica que dá sentido ao próprio chamado microssistema de proteção e defesa do consumidor:  a vulnerabilidade. Ela não é uma qualidade empírica de um consumidor específico em uma dada situação, mas um princípio normativo (contrafático, portanto) que dá sentido à busca da realização da igualdade substantiva, constitucionalmente prevista. Ao constituir a própria possibilidade do microssistema de proteção e defesa do consumidor, a vulnerabilidade é um princípio no sentido próprio do termo, pois dá sentido e legitima esse campo da experiência jurídica (prática), permitindo, por exemplo, estabelecer normas de tratamento diferenciado em favor do consumidor, compreendidas como instrumentos de realização da igualdade. Um bom exemplo de como interpretar um problema de responsabilidade civil no âmbito da defesa do consumidor é o caso da quantificação do valor devido quando ocorre dano extrapatrimonial, o quantum debeatur no chamado dano moral. A dimensão coletiva do problema pode facilmente identificada pela expressão (equívoca, me parece) "indústria do dano moral". Um dos significados dessa expressão é o de que há grande número de ações judiciais nas quais se pleiteia dano moral, movimento de alguma forma análogo ao de uma indústria, algo em larga escala, em um padrão fabril de manifestação. Há uma dimensão moral de significado implícita nessa expressão que diz respeito à desconfiança de que os consumidores estejam pleiteando direitos que não existem e que, como resposta, o Judiciário, por inocência ou por conivência, decide a seu favor, levando a uma estratégia coletiva dos consumidores para ganhar algo que não lhes é devido. A realidade, parece-me, é outra. O grande número de ações judiciais pleiteando indenizações decorrentes do descumprimento das normas de defesa do consumidor é resultado de uma atuação estratégica das grandes empresas, especialmente nos setores regulados, que instrumentalizam estrategicamente a ordem jurídica e o comportamento do Judiciário a seu favor, tendo em vista, obviamente, o lucro. Aqui não temos espaço para formular esse ponto, mas me parece ser nítido a todos que têm qualquer experiência com a prática forense o fato de que empresas como as de telefonia, por exemplo, abarrotarem as pautas dos juizados especiais cíveis, serem condenadas em danos morais com freqüência e, ainda assim, continuarem a lesar os consumidores. É intuitivo concluir que esse tipo de conduta seja lucrativa e que as condenações em danos morais não têm como resultado qualquer mudança significativa na conduta das empresas. É necessário considerar as variáveis de intensidade e de escala como fatores importantes no momento da fixação do valor indenizável por danos extrapatrimoniais cometidos. Pretendo recuperar aqui uma discussão que fiz há alguns anos sobre esse tema, buscando sintetizá-la e postular um modelo de interpretação e aplicação das normas de responsabilidade civil aplicáveis, capaz de produzir incentivo à mudança de conduta dos fornecedores e efetivar a proteção em chave coletiva. Meu argumento alinha quatro postulações relacionadas entre si, as quais formam uma tese sobre a indenização por dano moral com função punitiva no direito do consumidor: 1. O chamado dano moral não se verifica somente quando há lesão relativa à ofensa aos direitos de personalidade do sujeito. 2. A indenização por dano moral com função punitiva deve ser compreendida, para que faça sentido, como instrumento de calibração econômica do comportamento do agente ofensor. 3. A indenização com função punitiva tem como objetivo prioritário a coibição da reiteração da conduta do ofensor, além da satisfação do direito do ofendido e, portanto, objetiva mais condicionar as expectativas de conduta do ofensor do que a recomposição de bem jurídico lesado do ofendido. 4. A quarta asserção, que em parte decorre das anteriores, é relativa à definição de dever jurídico no direito do consumidor, subsistema do direito no qual as características específicas dos vínculos entre os agentes no mercado demandam que, na identificação sobre o que vem a ser dano, sejam considerados elementos hermenêuticos próprios à tipologia dos contratos relacionais, distintos daqueles disponíveis na matriz epistemológica liberal da teoria dos contratos. São muitas as decisões dos tribunais sobre o dano moral como um dano in re ipsa. Nesses casos, o que tribunal faz é atribuir um valor extrínseco à conduta do ofensor, em dimensão objetiva, independentemente de como essa conduta repercute na psique ou na afetividade do lesado.  Dispensar a prova do dano moral significa desconsiderar, na prática, a necessidade da existência de qualquer afetação negativa da esfera dos direitos da personalidade do ofendido.  Isso nos leva a uma primeira síntese: a de que é possível haver condenação da conduta do ofensor - no caso de uma relação de consumo, um fornecedor - sem que tenha havido efetivamente, de forma atualizada, dano a direito da personalidade do ofendido. Segundo ponto: um tipo de fornecedor que age em larga escala e que tem nas normas de defesa do consumidor uma variável a ser considerada no cálculo econômico de eficiência tendo como objetivo a maximização de lucro, é um litigante habitual e estratégico. Nesse contexto, a função punitiva da indenização por dano moral funciona como um elemento sancionatório dissuasor da reiteração da conduta lesiva pelo fornecedor. Ao cumprir essa função, do ponto de vista sistêmico, espera-se que a regra resultante de uma decisão que afirme a imposição de valores indenizáveis com finalidade punitiva sinalize ao mercado que pode não ser eficiente e lucrativo, por exemplo, inserir o nome do consumidor em cadastro de inadimplentes de forma ilícita como mecanismo de cobrança de determinada coletividade de consumidores. O fornecedor é um agente amoral que tem como preocupação a eficiência econômica de sua atuação mercadológica. Responde, assim, à lógica da atuação baseada em um código binário de estímulo econômico positivo ou negativo. A atuação do Judiciário, nessa medida, passa a objetivar a programação futura da atuação dos agentes econômicos. Como terceiro ponto, penso que a abordagem coletivista é a forma mais adequada de dar sentido e operar o direito do consumidor como critério de solução de conflitos e sistema normativo de organização das relações de mercado entre sujeitos em situação de assimetria de poder. Na consideração do consumidor como sujeito de direito, o enfoque a ser dado não é o individualista, mas o transindividual. Os conceitos, o funcionamento do direito do consumidor (princípios, pressupostos teóricos, conceitos gerais, regras processuais etc) e seu repertório normativo são fruto do consenso histórico sobre a necessidade da tutela de uma categoria subjetiva que, estando em uma situação específica (um status, mesmo que transitório), se encontra em estado de vulnerabilidade e merece ser protegida. Não é só o indivíduo que é vulnerável, mas sim a classe (ou uma tipologia, poderíamos dizer) de indivíduos que atuam na sociedade e no mercado. Daí dizer-se que o direito do consumidor não faz parte do grande campo do direito privado, mas mescla com o privatismo aspectos de interesse claramente público, se manifestando como parte integrante do direito social. Por fim, é a partir da conformação de uma teoria como a dos contratos relacionais que se poderá formar uma prática interpretativa que leve em conta aspectos como vulnerabilidade, poder (e seu excesso), capacidade de arcar com prejuízos (e, portanto, distribuição dos mesmos), importância dos bens objeto dos contratos, necessidades específicas das partes, etc. A teoria hegemônica não tem sido capaz de responder ao problema de solucionar conflitos que têm por base contratos que reúnem as características dos contratos relacionais. Explicitar o enquadramento dos contratos de consumo como contratos relacionais é, como já adiantado, apresentar mais uma ferramenta teórica apta à abordagem de conceitos como onerosidade excessiva, boa-fé objetiva e eqüidade, base da reflexão sobre a noção de dever jurídico e diretamente relacionados com a utilização da indenização com função punitiva. A boa-fé objetiva é elemento de fundamental importância em um modelo de concepção de contrato que privilegia a solidariedade, a longevidade da relação, a comunidade de interesses e valores, sendo ela que determina o que significa a frustração de legítima expectativa, relacionada diretamente com a imposição de indenização com função punitiva, calibradora das expectativas de conduta dos fornecedores. A boa-fé, geralmente conceituada como transparência, lealdade, um compromisso de fidelidade, de bem agir e de cooperação nas relações contratuais, se constitui em princípio regulador hermenêutico, permitindo considerar diversos valores e princípios como, por exemplo, a vedação do enriquecimento ilícito e as funções punitiva e pedagógica das indenizações. A boa-fé expressa, segundo essa visão, o que a sociedade espera do homem que age com retidão, sendo sua função para a teoria contratual relacional de regulação da tensão entre valores coletivistas ou individualistas e da veiculação adequada das ideias de distributividade de riscos e de custos sociais e da a autonomia da vontade.  Em síntese, com a modificação da natureza dos contratos, se no modelo tradicional clássico as trocas eram descontínuas, hoje a forma contratual mais habitual é a relacional, na qual as expectativas não monetizáveis são mais intensas e o conceito de legítima expectativa deve ser avaliado em função das práticas normativas que se estabelecem no mercado, tal como o oportunismo econômico de fornecedores que funcionalizam os custos de indenizações baixas a ponto de serem lucrativas se realizadas em larga escala. Com isso se quer sublinhar que o quantum debeatur deve ser estipulado segundo não somente uma matriz decisória de base moral, mas visando ao desestímulo à reiteração da conduta lesiva, o que leva à introdução da variável escala para a sua determinação. Por sua vez, como parâmetro de conduta objetivo, a boa-fé permite a calibragem das expectativas em torno das regras de solução de conflitos futuros sendo, portanto, um elemento constitutivo da regra que determina a quantificação da indenização, entrando em jogo, nesse caso, a intensidade da sanção. Por fim, duas observações. Em relação ao argumento de que indenizações mais altas tornariam o preço dos produtos mais elevado, dada a possibilidade de repasse de custos, deve-se lembrar que a competição no mercado é o antídoto contra o repasse integral do custo da função punitiva da indenização, o que somente pode ser conseguido se efetivamente o preço for limitado pela concorrência. Mas esse nos parece um tema de específica complexidade e merecedor de análise em outro espaço de reflexão que escapa ao escopo e às pretensões do presente artigo.  Pode-se sustentar que a situação ideal seria que houvesse um fundo público para o qual fossem destinadas as condenações por danos extrapatrimoniais punitivos. Ocorre que, na sua falta, e essa é a realidade presente, postulamos que é melhor dissuadir o fornecedor assumindo a possibilidade de que um ou outro consumidor aumente seu patrimônio. *Roberto Freitas Filho é mestre e doutor em Direito pela USP e pós-doutor pela Universidade de Wisconsin - Madison - EUA. Professor dos Programas de doutorado e mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Desembargador no Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
No filme The Hurricane (1999), o ator Denzel Washington interpreta Rubin "Hurricane" Carter, um pugilista em ascensão que teve sua carreira interrompida por uma prisão permeada por suspeitas de perseguição racial, eis que o polígrafo e testemunhos foram no sentido de que o personagem e seu colega não estavam envolvidos em um crime de homicídio. Após anos de luta, Carter consegue uma nova chance perante o júri e, por fim, obtém o reconhecimento do erro em sua prisão e, por conseguinte, a sua liberdade por meio da declaração de inocência. Essa ideia de erro em aprisionar alguém está no filme Milagre na Cela 7 (2019), que trata da história de um pai com deficiência mental preso indevidamente pelo falecimento acidental da filha de um militar atuante no alto escalão governamental. A trama passa por todo o (in)devido processo jurídico no qual a personagem, Memo, é condenada à morte sem a adequada apreciação dos pedidos de provas, provas que poderiam reverter o desfecho do julgamento. Ambas as películas cinematográficas retratam um ato do Estado que repercute indevidamente na esfera jurídica de alguém com as chamadas prisões por erro judicial (= erro estatal). Desses erros do Estado - que podem ser de tipos variado, e no âmbito dos seus três poderes - resulta a aplicação do regime da responsabilidade civil do Estado. O regime da responsabilidade civil estatal dialoga com a teoria geral do Direito ao se vislumbrar que o sistema jurídico atribui ao Poder Público o dever derivado indenizatório em razão de certos comportamentos, lícitos ou ilícitos, adotados. Apesar dessa ideia estar positivada, a responsabilidade civil estatal passou por três grandes fases1: (i) a da irresponsabilidade, que tinha como base a ideia de que os atos do soberano advinham de uma autoridade incontestável; (ii) a civilista, que traçou linhas gerais da responsabilidade estatal a partir da feição subjetiva, a teoria da culpa, determinando que apenas atos de gestão (= praticados em igualdade com os particulares) atraiam a responsabilização, enquanto os atos de império (= praticados com superioridade aos particulares), não; e (iii) a publicista, que primeiro desvinculou a culpa do agente da culpa estatal, ainda persistindo a ideia de responsabilidade subjetiva, e, após, tratou do regime da responsabilidade objetiva, especialmente a partir das teorias do risco administrativo (que admite excludentes de responsabilização) e risco integral (que inadmite excludentes de responsabilização). Atualmente, os elementos que perfazem o dever indenizatório são o fato lícito ou ilícito, o resultado danoso e o nexo de causalidade. O estágio a que se chegou por meio da Lei Fundamental brasileira prescinde em algumas hipóteses do dolo ou da culpa em relação às pessoas jurídicas, exigindo-se tais elementos subjetivos com relação ao agente causador do dano se contra ele houve regresso por parte das entidades morais (passando a ser responsabilidade subjetiva no caso pessoa jurídica-agente causador). Segundo enuncia a Constituição: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (art. 37, § 6º)2. Nesse momento é que se chega à questão acerca da aplicação do regime da responsabilidade civil extranegocial em relação aos atos inconstitucionais emanados do Estado-Legislador, ou seja, à atribuição de um dever indenizatório estatal por leis inconstitucionais. Dessa leitura vê-se que as pessoas jurídicas de Direito Público em geral e as pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviços públicos respondem objetivamente por fatos a elas imputáveis, especialmente atos cometidos por seus agentes3. A última parte do texto constitucional transcrito permite que a parte que respondeu perante o terceiro busque o ressarcimento junto a seu agente se este agiu com dolo ou culpa. O mandado de injunção permite compreender a dúvida sobre a responsabilidade do Estado-Legislador, pois das suas três fases no âmbito judicial, uma delas conferia à parte lesada pela omissão inconstitucional a busca por indenização - tese esta superada pela atual visão concretista consolidada na lei 13.300/2016. Se o Estado-Legislador responderia por suas omissões, então pode-se indagar acerca da existência da responsabilização estatal por atos comissivos, especificamente por leis consideradas inconstitucionais. Sobre a indagação acima, Juliana Cristina Luvizotto4 expõe que há duas correntes. A primeira responde que não há como responsabilizar o Poder Público em sua feição legislativa, pois se trata de ato que representa a vontade geral e, portanto, é revestido da imunidade parlamentar, soberano, abstrato, genérico e que inova a ordem jurídica com espaço de conformação legislativo que efetivamente tem poder de constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas subjetivas. A segunda corrente aduz que é possível responsabilizar o Poder Público pelo exercício inconstitucional da função legiferante5, eis que o vício de inconstitucionalidade é constatado pela decisão judiciária, cuja carga declaratória remete às origens do texto legal e, também, que a disciplina legal brasileira (leis 9.868/1999 e 9.882/1999) e a disciplina constitucional de Portugal (art. 282º) mostram que as decisões que decretam a inconstitucionalidade, regra geral, retroagem, em evidente referência à doutrina do judicial review estadunidense, desfazendo os atos inconstitucionais e abrindo margem para reclamos indenizatórios. Apesar da divergência quanto ao plano e quanto à carga eficacial da decisão de inconstitucionalidade, a segunda corrente parece fazer mais sentido, à luz da teoria geral da responsabilidade civil do Estado, mas com algumas considerações se fazendo necessárias tanto sobre a inconstitucionalidade quanto sobre a decisão judicial pertinente. Inconstitucional é o ato que não atende aos requisitos de validade inscritos na Constituição e cujas consequências podem ou não ser a fulminação do ato. O STF (RE 226.643, RE 153.464, Inq 3.932) já se manifestou sobre a viabilidade de responsabilizar o Estado por lei inconstitucional, desde que não haja modulação dos efeitos da decisão, sendo este um critério crucial para o pleito indenizatório. Calham dois arestos ilustrativos: no primeiro, o STF (RE 153.464) apreciou caso no qual fixou entendimento de que "O Estado responde civilmente por danos causados aos particulares pelo desempenho inconstitucional da função de legislar"; no segundo caso, também analisado pela Corte Constitucional brasileira (RE 158.962), constou no teor da ementa que "Cabe responsabilidade civil pelo desempenho inconstitucional da função de legislar". Um segundo critério é sobre a extensão da inconstitucionalidade para além dos casos. Segundo decisão do STJ (REsp 571.645), pressupõe a responsabilização estatal por ato legislativo inconstitucional que a invalidade tenha sido decretada em sede de fiscalização principal e abstrata de constitucionalidade. Discorda-se de tal posicionamento, em razão do fato de que outras vias além daquela do controle citado permitem expandir efeitos: é dizer, não há necessidade do uso do controle principal e abstrato, eis que o regime de repercussão geral e o crescente empenho em tornar as decisões judiciais das Cortes mais coerentes dão sinais de paulatino overruling do pensamento fixado pelo STJ, no citado REsp 571.645 (que exige o procedimento de maior abstração). A superação da visão inicial sobre o segundo critério é ilustrada com decisões do STF pela via do Recurso Extraordinário (RE 153.464, RE 158.962, RE 210.917, RE 226.643), todas no sentido de tornar mais palpável a responsabilização do Estado em razão de ato legislativo inconstitucional cuja decretação teve efeitos retroativos. Além do posicionamento judicial sobre o tema, a segunda corrente ganha certo predomínio pelo fato de que (i) a lei emana do Poder Constituído, que não é soberano, e sim sujeito aos limites constitucionais; (ii) se se fala de erro judiciário, hipótese de responsabilização do Estado-Juiz, de dano oriundo da Administração, que gera o dever indenizatório do Estado-Administrador, o Estado-Legislador não escapa da igualdade na seara da responsabilidade civil em relação às leis inconstitucionais; (iii) os atos legislativos não são sempre gerais e abstratos, podendo ser concretos e especiais, o que pode ser fonte do dever derivado de indenizar; e (iv) a despeito do fato de ser presumível a vontade geral nos atos legislativos, fato é que existem grupos que podem ser afetados, com destaque para as minorias políticas, que são tuteladas com grande ênfase pelo papel contramajoritário judicial, que pode reconhecer o dever de indenizar os grupos afetados. Com relação ao regresso, exige-se harmonização em razão da imunidade parlamentar, que abrange a responsabilidade civil (STF, RE 226.643). No caso, adota-se uma interpretação de pertinência funcional quanto à imunidade parlamentar: estará imune se o exercício da função legislativa ocorrer dentro dos limites, todavia, haverá fuga de tal imunidade se houver abusos por parte do membro do Legislativo, isto é, respondem civil e criminalmente por atos abusivos ou estranhos em relação às imunidades conferidas. O STF (Inq 3.932) reconheceu a exceção à imunidade em manifestação parlamentar não acobertada pela inviolabilidade material, o que abriu margem para a busca por indenização pela vítima. Conciliando os artigos 37, § 6º, e 53 da Constituição Federal, por meio da aplicação ou da teoria do abuso de posição jurídica ou do não-acobertamento do ato, o parlamentar responderá regressivamente por um ato legislativo inconstitucional se evidenciado que seu ato foi proferido sob evidente abuso da imunidade parlamentar ou sem qualquer nexo com o mandato eletivo. Às hipóteses acima são aplicáveis regimes jurídicos diversos: a disposição do § 6º ao art. 37 é aplicável nos casos nos quais não há pertinência entre o ato e o mandato, atraindo a responsabilização subjetiva do agente público legislador. Por outro lado, ao se falar de abuso de posição jurídica (= da imunidade parlamentar), aplica-se a teoria objetiva do abuso6, a qual prescinde de demonstração de dados psicológicos da culpabilidade, cabendo para a responsabilização demonstrar a relação de causa entre o comportamento adotado pelo legislador e o ato inconstitucional que gerou dano a um terceiro. *Felipe Bizinoto Soares de Pádua é advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional, em Direito Registral e Notarial, em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade, todos pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB), e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), e membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).  **Marcel Edvar Simões é procurador Federal. Doutor e mestre em Direito Civil, e bacharel em Direito, todos pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil e Direito Digital na Universidade Paulista. Professor-convidado nos cursos de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. São Paulo: Almedina, 2015, p. 33 e ss.; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1452 e ss. 2 Aqui cabe destacar que o processo legislativo é de caráter complexo e que envolve agentes de outras funções do Estado, o que atrairia a responsabilização-regresso a que, p. ex., inicia ou sanciona um projeto de lei. Para fins deste artigo, a aplicação do regime do regresso ficará restrita ao âmbito do Legislativo, sem que, todavia, não deixe de ser suscitada essa necessária ampliação para melhor análise acadêmica e consequente aplicação prática. 3 Obviamente, a perspectiva é feita sem considerar que o ordenamento legal atribui a responsabilização objetiva, p. ex., a partir do risco trazido por certa atividade, cf. art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro. 4 Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. Cit., p. 117 e ss. 5 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. Cit., p. 127 e ss.; FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 319-320.   6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, pp. 610-613. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
No ano de 1989 a música que se tornaria um dos maiores sucessos do grupo Legião Urbana, "Pais e filhos", evocava as agruras da relação paterno-materno/filial, retratando expectativas quanto à performance de sujeitos que, nada obstante investidos no dever de cuidado da prole, nem sempre conseguiam dele se desincumbir. Na derradeira estrofe, a canção incitava filhos ao compartilhamento de uma visão humanizada dos genitores entoando: "Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo. São crianças como você. O que você vai ser quando você crescer?". Já se reconheceu que as relações familiares não estão imunes à violação de direitos e interesses de seus protagonistas, abandonando-se a concepção de que o Direito de Família veleja por águas sacralizadas, blindadas às repercussões da Responsabilidade Civil. De fato, a família tanto pode se convolar no espaço (físico e psíquico) que produz pessoas felizes e emocionalmente competentes, quanto em ambiente que fomenta dor, trauma e desequilíbrio. De todo modo, registra Freud, o referido espaço não deve ser vislumbrado como soma de indivíduos, mas sim universo de relações1; conjunto vivo, pulsante e cambiante, onde as interações invariavelmente deflagram conflitos, falhas e excessos. Sob o enfoque das vivências paterno-materno/filiais, partindo-se do pressuposto que o eventual déficit na atuação parental é juridicamente apreciável e que sua ocorrência configura ato ilícito, restando presentes os demais pressupostos exigidos para a configuração do dever indenizatório (culpa, dano e nexo causal), cumpre investigar sob quais critérios a reparação ocorrerá, especialmente diante das particularidades do vínculo em questão2. Ao se analisar a evolução da Responsabilidade Civil é possível inferir que o fluxo do seu corpo teórico espelha a remodelação da função primordialmente desempenhada pelo instituto. Ou seja, a chave que conduz a movimentação pendular da Responsabilidade Civil é a função que, num dado momento histórico, prevalece em face das demais. Por essa razão, parte-se inicialmente da censura do agente ofensor - que traz consigo um escopo punitivo e persecutório, centralizado na culpa -; para, na sequência, dirigir-se à reparação do dano - lançando holofotes na ressarcibilidade da vítima, que personifica, em última instância, a pessoa humana e a sobrevalorização de sua dignidade -; alojando-se, ato contínuo, na prevenção da conduta lesiva - com o nítido propósito de resguardar o ofendido dessa própria condição. Vale anotar que o movimento ao qual aqui se reporta, o pendular, tem por intuito conjurar simbolicamente um modelo de transição dinâmica e sem rupturas entre os vetores da Responsabilidade Civil. Significa dizer que os paradigmas de sanção, reparação e prevenção da Responsabilidade Civil não se desdobram ao longo do tempo mediante um processo disruptivo, de substituição ou conversão; não superam um ao outro, mas se associam de modo a tutelar, dentro de determinado conjunto de valores e instrumentos-padrão, o protagonismo de um e a coadjuvância de outros, sem a supressão de qualquer deles. Nessa toada, é possível afirmar que a culpa - elemento central do modelo de Responsabilidade Civil edificado no século XIX - é revisitada segundo um critério de diligência3. Não é, portanto, desconsiderada, apenas vislumbrada por outras lentes, apartada de um conteúdo estritamente moral e conciliada a um desígnio social. De igual modo, o propósito indenizatório prossegue permeando o instituto, passando a prestigiar, porém, uma postura mais garantista e acautelatória dos interesses em xeque4.  Nada obstante subsista uma benquista aliança entre os vetores sancionatório e indenizatório da Responsabilidade Civil, assume agora o instituto particular apreço por sua matiz preventiva5, fundada na adoção de medidas proativas e protetivas vocacionadas à não instalação ou cessação do ilícito. Rende-se, desse modo, a Responsabilidade Civil ao enaltecimento de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, reverenciada na integralidade de suas dimensões (patrimonial, moral, existencial).  No campo dos ilícitos parentais, a perspectiva preventiva da Responsabilidade Civil assume destacada importância em razão de quatro aspectos: (a) a baixa eficácia restaurativa da compensação financeira dos danos oriundos da relação paterno-materno/filial - notadamente em virtude da miríade de prejuízos imateriais passíveis de verificação -; (b) a indução daqueles que estão à testa do poder familiar na falácia de que a disponibilidade de recursos financeiros autoriza a prática lesiva; (c) o risco de precificação do cuidado, cujo desempenho no plano familiar é crucial para o desenvolvimento da personalidade infante; e, por fim, (d) a particular situação da vítima (efetiva ou potencial) que, ou prosseguirá assujeitada ao risco/dano diante da permanência no núcleo familiar, ou ingressará nas fileiras do acolhimento institucional e da (sabidamente longa) espera por adoção. Sobressai deste diagnóstico que o remédio tradicionalmente utilizado pela Responsabilidade Civil para a recomposição de danos, qual seja a tutela do equivalente pecuniário, não atende satisfatoriamente à proteção privilegiada outorgada pelo ordenamento a crianças e adolescentes, tolhendo do instituto sua operabilidade e socialidade. Logo, também no que concerne aos atos ilícitos decorrentes da relação paterno-materno/filial, deve promover a Responsabilidade Civil a transmutação de seus mecanismos de atuação, partindo da pretensão de cura do dano instalado - pela via da remediação patrimonial - para a preservação da integridade de seres humanos que se encontram sob atenção alheia em virtude da vulnerabilidade que lhes é inata. Impor-se-ia ao pêndulo há pouco retratado um novo movimento, destinado ao reexame qualificado da postura do agente ofensor não no sentido de puni-lo ou repreendê-lo, mas para reposicionar seu comportamento, ajustando-o à regularidade. Cumpre esclarecer que a função preventiva atribuída à Responsabilidade Civil no âmbito familiar, aqui propalada, não diz respeito àquela de cunho genérico, concernente à dissuasão social que emana da condenação e naturalmente incute no ofensor o desestímulo a novas práticas lesivas. O que se propõe é a preservação dos interesses jurídicos que se encontram em situação de risco e que, uma vez vulnerados, dificilmente serão restaurados (función de prevención especial). Paulo Lôbo aborda a responsabilidade no âmbito familiar a partir de seu aspecto pluridimensional. Argumenta, para tanto, que as consequências decorrentes do ilícito perpetrado nesse ambiente ultrapassam os atos do passado, de índole negativa. Por essa razão - entende o autor -, a mais relevante e desafiadora tarefa que deve ser atendida é a "responsabilidade pela promoção dos outros integrantes das relações familiares e pela realização de atos que assegurem as condições de vida digna das atuais e futuras gerações, de natureza positiva"6. Dentro desse contexto, surge como alternativa à imposição pecuniária a perfilhação de medidas voltadas à capacitação dos agentes parentais (educação parental), com lastro no art. 12, caput, do Código Civil - que prevê o deferimento de tutela específica, de natureza inibitória, capaz de obstar a violação de direitos da personalidade -, conjugado com os incisos II e IV, art. 129, do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) - que, por sua vez, enunciam como diligência aplicável aos agentes parentais  o encaminhamento a serviços ou programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, bem como a cursos ou programas de orientação. Uma tutela específica que tenha o escopo inserir pais e mães em programas de apoio, orientação e capacitação atua em três flancos sensíveis à Responsabilidade Civil: a) contempla as necessidades infantojuvenis no próprio habitat familiar, salvaguardando seu desenvolvimento integral (capacita para saber cuidar); b) resguarda a autonomia da família quanto às práticas de cuidado da prole (capacita para emancipar); e, por fim, c) reestabelece, sempre que possível e observando os melhores interesses de crianças e adolescentes, o cenário doméstico deficitário (capacita para fortalecer). O instrumento em testilha otimiza a relação paterno-materno/filial e exorta a não instalação ou cessação da conduta ilícita, coibindo a verificação do dano ou propiciando sua remediação. Entrega-se, desse modo, aos titulares dos direitos em voga - aos quais resta assegurada absoluta primazia, ex vi do disposto no art. 227, caput, da Constituição de 1988 - providência específica in natura (cuidado); autêntica realização da norma protetiva à qual fazem jus. A educação parental é definida por Paulo Durning7 como o conjunto de práticas de cunho educativo, desenvolvido no âmbito das famílias, que, conquanto tenha por objetivo assegurar o desenvolvimento das crianças, é executado junto aos adultos que as educam, capacitando-os para o desempenho exitoso de seus misteres de cuidado. Este instrumento de formação parte do pressuposto de que as figuras parentais são adultos em processo de desenvolvimento e que, muitas vezes, necessitam de orientação externa para se desincumbir satisfatoriamente de suas funções junto à prole8. Dirige-se, pois, ao aprimoramento das competências paternas e maternas, sem olvidar da maturação das competências pessoais dos adultos envolvidos, uma vez que as duas dimensões se entrecruzam, contribuindo para o desenvolvimento infantojuvenil no cenário familiar9. Em Portugal, a educação parental vem sendo executada em larga escala, consoante se vê de iniciativas como Anos Incríveis - Básico (Concelho Gouveia, Seia e Celorico da Beira), Clube de Pais - Projecto Direitos & Desafios (Concelho Santa Maria da Feira), Em Busca do Tesouro das Famílias (Concelho Ponta da Barca), Escola de Pais (Concelho Almada), dentre outras. No Brasil, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desenvolve a capacitação parental no Núcleo de Escola de Pais - NEP, mediante projetos sociais (inclusive de apadrinhamento), oficinas, grupos reflexivos e avaliações individuais. A educação parental propicia, dentro desse cenário, uma alternativa à perda do poder familiar - com a consequente cisão do núcleo doméstico originário - e à imputação civil de danos, atuando de forma sistêmica, contextualizada e, sobretudo, preventiva no âmago da célula doméstica, restaurando posturas parentais faltosas e assegurando à prole o cuidado do qual é credora. Assim, diante da restrita eficácia restaurativa da condenação pecuniária no tocante aos danos de ordem imaterial, ocorridos no âmbito das relações familiares, a articulação de tutelas preventivas vocacionadas à capacitação parental tem o condão de, a um só tempo, reposicionar a família na condição de ambiente facilitador do desenvolvimento infantojuvenil e restaurar aos sujeitos parentais o status de cuidadores primários eficientes, autênticos agentes na formação de adultos hígidos e replicadores de modelos positivos de paternagem e maternagem para as gerações vindouras. Recobrando as lições de João Baptista Villela10, se o que se almeja para o futuro são expressões relacionais fundadas no amor, na justiça e na dignidade, há de ser restituído ao homem "a superior liberdade de responder, ele próprio, aos deveres que decorrem da vida em sociedade", pois somente será feliz quando for livre, só será livre quando for responsável e só será responsável quando as razões que justificam sua conduta estejam dentro dele, e não fora. Que a falha na conduta parental não se circunscreva a gatilho para repressão ou compensação pecuniária; que o próprio cuidado - função precípua da parentalidade - possa ser objeto de estímulo e fomento. Afinal, pelas mais insondáveis circunstâncias da vida, muitos pais e mães "são crianças como você", talvez "o que você vai ser quando você crescer".  Silmara D. Araújo Amarilla é advogada, doutora em Direito pela PUC/SP e professora da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul - ESMAGIS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. __________ 1 FREUD, Sigmund. Um caso de histeria: três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII. 2 AMARILLA, Silmara Domingues Araújo. Parentalidade Sustentável: o ilícito parental e a precificação do (des)afeto nas estruturas familiares contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2019. 3 FERREIRA, Keila Pacheco. Prevenção e responsabilidade civil: revisitando os aspectos teleológicos na primeira década do CC. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (Org.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012. p. 721-722. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 208-209. 5 JARAMILLO, Carlos Ignacio. Los deberes de evitación y mitigación del daño: funciones de la responsabilidad civil en el siglo XXI y trascendencia de la prevención. México: Porrúa, 2016. CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Las funciones del derecho de daños de cara al siglo XXI. In: Realidades y tendencias del derecho en el siglo XXI. Pontificia Universidad Javeriana/Editorial Temis. t. IV, v. 2, p. 3-32. 6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e responsabilidade: teoria e prática do direito de família. Porto Alegre: Magister, 2010. p. 11-27, p. 19. 7 BOUTIN, Gérald; DURNING, Paul. Les interventions auprès des parents: innovations en protection de l'enfance et en education spécialisée. Toulouse: Éditions Privat, 1994. 8 MAIQUEZ, Maria Luisa; CAPOTE, Carmen; RODRIGO, Maria José; VERMAES, Ignace. Aprender en la vida cotidiana: un programa experiencial para padres. Madrid: Visor, 2000. 9 MARTÍN-QUINTANA, Juan Carlos; CHAVES, Maria Luisa Máiquez; LÓPEZ, Maria José Rodrigo; BYME, Sonia; RUIZ, Beatriz Rodriguez; SUÁREZ, Guacimara Rodriguez. Programas de educación parental: intervención psicosocial. Psychosocial Intervention [online], v. 18, n. 2, p. 121-133, 2009. 10 VILLELA, João Baptista. Direito, coerção & responsabilidade: por uma ordem social não violenta. Série Monografias, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, v. IV, n. 3, 1982. p. 32. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).  
O campo da responsabilidade civil é um dos mais controvertidos para os operadores jurídicos em face da imensa variedade de situações fáticas que tornam sempre difícil e casuística a aplicação das normas que regem a matéria. Após alguns anos atuando como advogado em demandas que envolvem pretensões reparatórias, e mais de uma década lecionando disciplinas relacionadas ao direito de danos, ainda me assombro com a quantidade de pessoas que insistem em adotar uma perspectiva unidimensional ao estudo da responsabilidade civil, ignorando as intensas transformações sociais e a complexidade de um mundo que precisa desenvolver formas de lidar com a disrupção e os riscos inerentes às inovações tecnológicas. Não me refiro apenas àqueles que preferem ignorar as diversas funções que vêm sendo atribuídas ao estudo do direito de danos; é preciso incluir aqui as pessoas que mantêm um comportamento alheio à necessidade de se empreender um diálogo entre as mais diversas fontes normativas, tanto no plano nacional quanto no cenário internacional, sem perder de vista que o conjunto de regras jurídicas criado e aplicado para situações de normalidade pode se mostrar insuficiente para momentos excepcionais como o que vivenciamos durante o enfrentamento da pandemia da covid-19. Esta semana um amigo indagou-me de quem seria a responsabilidade no caso de reações adversas decorrentes da aplicação da vacina contra a covid-19. Como premissa para a construção de uma resposta, talvez seja importante destacar que as vacinas atualmente disponíveis para os brasileiros (a CoronaVac, da Sinovac e do Instituto Butantan, e a CoviShield, do laboratório AstraZeneca, Universidade de Oxford e Fundação Oswaldo Cruz) receberam autorização apenas em caráter emergencial1, e, por esta razão, estão disponíveis tão só para aplicação pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que atrairia o regime de responsabilidade civil do Estado, com todas as nuances relacionadas a um sistema concorrente de repartição de competências para a execução de políticas públicas relacionadas à saúde2, baseado na solidariedade entre União, Estados e Municípios, que pode ser utilizado para fixar a Justiça Federal como foro para a discussão dos pedidos reparatórios que incluam o Governo Federal no polo passivo das demandas, cujas eventuais condenações estariam sujeitas ao pagamento pelo regime de precatórios nos termos do art. 100 da Constituição Federal3. Quando o cidadão leva para casa seu cartão de vacina devidamente atualizado, com o registro da imunização contra a covid-19, passa a ter o registro do fabricante responsável pelo imunizante e pode pretender fazer uso do disposto nos arts. 12 e 17 do Código de Defesa do Consumidor, dirigindo sua pretensão reparatória diretamente contra o laboratório fornecedor que disponibilizou a vacina ao Ministério da Saúde, no caso de defeito do produto, quando comprovado que ele não tem a segurança que dele legitimamente se espera. Tem-se aqui a complexa discussão sobre os deveres de informação vs o risco do desenvolvimento, tema sobre o qual a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de se manifestar quando do julgamento do REsp 1774372/RS, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, nos seguintes termos: (...) 7. o fato de o uso de um medicamento causar efeitos colaterais ou reações adversas, por si só, não configura defeito do produto se o usuário foi prévia e devidamente informado e advertido sobre tais riscos inerentes, de modo a poder decidir, de forma livre, refletida e consciente, sobre o tratamento que lhe é prescrito, além de ter a possibilidade de mitigar eventuais danos que venham a ocorrer em função dele. 8. O risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno4. Existem poucas informações disponíveis na imprensa sobre a natureza jurídica e o regime de alocação de riscos estabelecidos nos contratos celebrados entre a Sinovac e o Instituto Butantan, ou ainda, entre o laboratório AstraZeneca e a Fundação Oswaldo Cruz - considerando apenas os imunizantes atualmente em utilização -. Apesar disso, é possível anotar a possibilidade do reconhecimento de uma cadeia de fornecimento, de que trata o parágrafo único do art. 7º do CDC, estabelecendo-se mais uma vez a imputação, por força de lei, de solidariedade entre todos os seus integrantes. Anote-se que, até o momento, a tentativa de oferecer uma resposta à indagação concentrou-se no elemento conduta, que necessita ser conjugado com a análise do nexo causal para a procedência da pretensão reparatória de danos que não se limitam a eventuais efeitos colaterais experimentados logo após a aplicação da vacina, mas que podem compreender eventuais danos à saúde das pessoas que somente serão conhecidos no futuro. Numa perspectiva clássica do estudo da matéria, além dos desafios da demonstração da relação de causa e efeito entre as condutas dos envolvidos e do dano sofrido, com a superação dos excludentes que podem ser esgrimidos por quem ocupe o polo passivo da demanda, após a correta delimitação daquilo que foi consequência "direta e imediata" da conduta daquele imputado como ofensor, será preciso discutir os prazos prescricionais para o exercício da pretensão reparatória, cuja duração é significativamente distinta em demandas que envolvem a Fazenda Pública ou sujeitas à legislação que rege as relações de consumo. Neste particular, não me refiro apenas à duração, mas sim à data de início da contagem do prazo, pois é preciso "conhecimento do dano e de sua autoria" para deflagrar a sua fluência (cf. art. 27 CDC), merecendo destaque a regra que estabelece que se a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, "não ocorrerá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva" (art. 200, CC/02). Não parece razoável endereçar possíveis soluções para essa intricada questão unicamente a partir de uma perspectiva processual individual que tutele unicamente interesses particulares, dado o potencial de lesão a um considerável número de pessoas, especialmente quando se levam em conta os mecanismos de tutela coletiva que se encontram disponíveis no ordenamento brasileiro. Entretanto, mesmo fazendo uso de demandas coletivas, considerado o atual estágio de congestionamento de demandas judiciais e o tempo médio para a solução dos litígios com repercussão geral ou que foram julgados como de natureza repetitiva para se assegurar decisões uniformes, há de se refletir se o Poder Judiciário brasileiro conseguiria ofertar respostas em tempo hábil a fazer frente às necessidades das vítimas. Seria o campo da responsabilidade civil na sua forma reativa, atuando após a verificação da lesão, a resposta mais adequada a problemas relacionados à saúde pública durante uma pandemia? A experiência internacional mostra caminhos alternativos para o enfrentamento desses desafios, que passam pela destinação de recursos públicos para a criação de Fundos com o objetivo de custear eventuais reparações a vítimas de efeitos adversos das vacinas, com emprego de formas extrajudiciais de soluções de controvérsias. Ocorre que nenhuma dessas soluções pode ser adotada em nosso sistema jurídico caso implique a supressão de garantias constitucionais, como a da inafastabilidade da jurisdição, vale dizer, do acesso à Justiça5. Em que pesem os questionáveis efeitos práticos da lei 14.010/2020, que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19), por conta da demora da tramitação legislativa, seguida dos vetos presidenciais, posteriormente derrubados pelo Congresso Nacional - que acabaram por comprometer considerável parte do período de vigência da citada norma -, a mídia nacional dá notícia de tentativas de aprovação de nova lei emergencial para contornar dificuldades relacionadas a exigências contratuais de novos fornecedores de vacinas que pretendem impor cláusulas de não indenizar que não encontram abrigo na atual sistemática do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se do PL do Senado Federal 534/2021, aprovado pelo Plenário no dia 24.02.21, que dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra covid-19 e sobre a aquisição e comercialização de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado6. Não seria uma medida inédita no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista o teor da lei 12.663/2012, que dispôs sobre medidas relativas à Copa das Confederações FIFA 2013 e à Copa do Mundo FIFA 2014, e disciplinava que: Art. 23. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano. Parágrafo único. A União ficará sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos pagamentos efetuados contra aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os danos ou tenham para eles concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios necessários ao exercício desses direitos. Retornando os comentários para o já referido PL n.º 534/2021, é preciso consignar que o texto da proposta legislativa dispõe, em seu art. 1º que Art. 1º Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tenha concedido o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial. Trata-se, pois, de mais um diploma legislativo de eficácia temporária, que não provocará alterações definitivas em nosso ordenamento jurídico. Ao contrário do RJET, que estabelecia claramente termo resolutivo de sua eficácia, a nova iniciativa legislativa não fixa prazo final para sua eficácia, delegando a tarefa para o momento em que seja declarado em nosso país o término do período de emergência em saúde pública de importância nacional. Determina ainda, no parágrafo único do artigo em análise, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos em relação a eventos adversos pós-vacinação, repetindo solução legislativa já apontada na lei 12.663/127. Caso tal iniciativa legislativa seja bem-sucedida, teremos regimes jurídicos diversos a depender do fabricante da vacina e/ou do momento em que ela for aplicada, o que pode ensejar questionamentos no campo da isonomia de tratamento, especialmente quando consideramos que a vacina a ser ofertada será definida pelo SUS, sem participação do usuário do sistema. O cenário ficará ainda mais complexo quando novos pedidos de autorização forem deferidos pela Anvisa, permitindo o oferecimento de imunizantes pela iniciativa privada, situação também contemplada no referido PL n.º 534/2021: Art. 2º Pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a covid-19, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Parágrafo único. Após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas para comercialização ou utilização, atendidos os requisitos legais e sanitários pertinentes. Na hipótese de doação de imunizantes, o SUS, na condição de donatário, continuaria passível de responsabilização por eventuais efeitos adversos pós-vacinação? À primeira vista, considerando o estágio atual da jurisprudencial nacional, a resposta parece afirmativa, independentemente do modo de aquisição (oneroso ou gratuito) das doses da vacina. Junte-se a isso a possibilidade de integração do doador ao polo passivo da demanda reparatória, mesmo tendo praticado ato de liberalidade e solidariedade social, que permitiu a disponibilização do imunizante. Por esta razão, é preciso aprofundar a discussão sobre a securitização dos riscos e a criação de fundos com recursos públicos que resguardem os interesses daqueles eventualmente prejudicados pela ocorrência de eventos adversos pós-vacinação, estabelecendo uma agenda que passa ela efetivação das garantias, transparência na sua regulação e fiscalização na aplicação dos recursos daí advindos. A fundamentação do PL 534/2021 ilustra bem a complexidade do momento em que vivemos. Para aqueles que ainda enxergam categorias dicotômicas: público x privado, contratos paritários x contratos de consumo e têm dificuldade de distinguir o interesse público da agenda de determinado governo, tem-se aqui um interessante exemplo no qual a soberania dos países e seu compromisso com a defesa dos direitos de seus cidadãos entra em choque com os interesses dos fornecedores de imunizantes, que diante da demanda por vacinas e escassez de produtos para atender à necessidade mundial, ditam unilateralmente os termos dos instrumentos contratuais de acordo com seus interesses. Vale transcrever um pequeno trecho: A vacinação é a principal ferramenta para debelar a crise que estamos vivenciando. Nesse sentido, cabe ao Congresso Nacional aprimorar a legislação a fim de conferir flexibilidade e segurança jurídica para a aquisição dos imunobiológicos necessários para proteger o povo brasileiro. A escassez da oferta de vacinas, somada à necessidade de acelerar o processo de imunização não nos autoriza a dispensar nenhuma oportunidade de aquisição. Nesse sentido, propomos que a legislação autorize que, nos termos dos contratos eventualmente celebrados, possa o ente público assumir riscos e responsabilidades decorrentes de eventos adversos pós-vacinação, viabilizando, assim, o atendimento às condições atualmente impostas pelos fornecedores. A discussão sobre vacinas e responsabilidade civil ainda apresenta diferentes contornos quando surgem erros de aplicação do imunizante por profissionais de saúde (que passaram a ser conhecidos como "vacinas de vento"); prejuízos com a perda de doses por conta de falhas logísticas no transporte ou no armazenamento das doses; e ainda, nos lamentáveis casos envolvendo pessoas que não respeitam a ordem prioritária de aplicação do imunizante e "furam a fila" em benefício próprio ou de terceiros. Afinal, de que responsabilidade estamos falando? A pergunta que serve de título a este pequeno ensaio é uma provocação para que possamos discutir os limites e possibilidades da utilização da responsabilidade civil em nosso país, tarefa que não pode ser exclusivamente atribuída ao Poder Judiciário. Sobre este ponto, sem disciplinar maiores detalhes, o PL n.º 534/2021 autoriza o Poder Executivo Federal a instituir procedimento administrativo próprio para a avaliação de demandas relacionadas a eventos adversos pós-vacinação (art. 3º), estabelecendo mais um tópico na agenda de assuntos relacionados ao estabelecimento de mecanismos de autocomposição de conflitos relacionados às consequências adversas da aplicação de imunizantes. Será que no futuro teremos câmaras de conciliação ou mediação especializadas em questões relacionadas a problemas de saúde provocadas por imunizantes, com tarifação do montante destinado à reparação dos prejuízos? O debate está apenas começando. Não podemos sucumbir à tentação de reduzir a complexidade do problema e apresentar uma única solução para uma situação cujo enfrentamento depende da articulação de diversas iniciativas distintas, que não se limitam à atuação do Poder Judiciário, mas que dependem, primordialmente, de ações de competência do Poder Executivo no que se refere ao planejamento e à execução da política nacional de imunização, articuladas com uma resposta parlamentar que possa contribuir com iniciativas legislativas desenhadas para o enfrentamento da crise sanitária, sem comprometer de modo desproporcional os direitos constitucionalmente assegurados. Estamos dirigindo um carro a 120km/h (para tentar fugir do aumento do número de casos) e simultaneamente tentando consertar o pneu que está furado (falta de vacina em quantidade suficiente para toda a população que precisa ser imunizada, em conjunto com recursos hospitalares limitados para lidar com a situação). Não basta saber se teremos um estepe para usar (novos contratos para a aquisição de outros tipos de imunizante), é preciso atentar para quem está dirigindo o carro e quem será responsável pela troca do pneu... Depois disso ainda teremos de torcer para que a estrada mais adiante não apresente novos desvios. Enquanto isso, não custa lembrar: respeite as medidas de combate à pandemia. Não esqueça as medidas de higiene e compareça para se vacinar tão logo o imunizante esteja disponível para você.    Marcos Ehrhardt Jr. é advogado. Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da UFAL e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Associado do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC). __________ 1 No momento da elaboração deste ensaio, as notícias disponíveis na imprensa nacional davam conta de que, no dia 23.2.21, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, de modo definitivo, a vacina Cominarty, desenvolvida pelas farmacêuticas Pfizer e BioNTech. Contudo, o referido imunizante ainda não está disponível para utilização pelos brasileiros . Acesso em 24.2.21. 2 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. Neste sentido, o tema 793: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos. (RE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL ? MÉRITO DJe-090  DIVULG 15-4-2020  PUBLIC 16-4-2020). 3 Eis a dicção do referido dispositivo: "Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim".  4 REsp 1774372/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 5/5/2020, DJe 18/5/2020. 5 Art. 5º, XXXV, CF/88: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 6 Texto disponível aqui. Acesso em 25.02.21. 7 Sobre o tema o art. 24 dispõe que "a União poderá constituir garantias ou contratar seguro privado, ainda que internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura de riscos relacionados aos Eventos [Copa do Mundo 2014]".
Introdução Antes do Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014), a jurisprudência havia se consolidado no sentido de que os provedores de conteúdos de terceiros deveriam responder pelos danos deles decorrentes se: (i) após tomarem conhecimento inequívoco, por meio de denúncia extrajudicial, da existência de materiais reputados ilegais, explicitamente identificados pela(s) respectiva(s) URLs, deixassem de removê-los e/ou (ii) não mantivessem sistema de identificação dos usuários que permitisse saber quem foi o autor direto do dano. Em 2014, entrou em vigor o Marco Civil da Internet, que tornou ainda mais estritas as hipóteses de responsabilidade das plataformas digitais por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. De fato, o art. 19 da lei prevê, como regra geral, que o provedor de aplicações de internet "somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente". Consequentemente, a responsabilidade civil dos chamados provedores de aplicações, que antes era deflagrada a partir do descumprimento de notificação extrajudicial, passou a incidir apenas quando houvesse o descumprimento de ordem judicial específica. Houve, portanto, uma redução no grau de proteção que já vinha sendo assegurado às vítimas. Esse regime, porém, está em nítido descompasso com o papel exercido por esses agentes no fluxo informacional, como se verá a seguir. A interferência das plataformas digitais no fluxo informacional e as insuficiências do art. 19 da lei 12.965/2014 As plataformas de comunicação promovem novas oportunidades de interação, além de assegurarem o acesso a uma infinidade de informações. Todavia, a "fantasia de uma plataforma amplamente aberta", relacionada a noções idealizadas de comunidade e de democracia é falaciosa: as plataformas normalmente impõem regras de moderação1. Com efeito, é extremamente comum que as próprias plataformas, especialmente as maiores, adotem políticas sobre o que pode ou não ser publicado, assim como mecanismos que assegurem a efetividade de tais políticas. Daí a conclusão de que, em casos assim, tais agentes constituem estruturas de governança privada2. Não é sem razão que uma das críticas ao Marco Civil é que, apesar do propalado intuito de assegurar a liberdade de expressão dos usuários, não se proíbe o provedor de suprimir, unilateralmente, qualquer conteúdo que ele julgue ofensivo. De fato, nada obsta que esses agentes econômicos, a partir da notificação extrajudicial de um usuário ou, mesmo de ofício, suprimam determinado conteúdo, mesmo quando baseados em regras unilateralmente fixadas e normalmente com alto grau de obscuridade, o que amplia excessivamente a liberdade da plataforma, quando não a transforma em puro arbítrio. Nesse sentido, a realidade vem mostrando que a interferência no fluxo informacional não se esgota apenas na definição do que pode ser publicado. A extração de dados privados, aliada ao uso intensivo de um intrincado sistema de algoritmos e de ferramentas de Big Data e de Big Analytics, permite às plataformas também controlar a difusão do conteúdo produzido por terceiros. Para se ter uma ideia, 70% das visualizações do YouTube decorrem de recomendações baseadas em sistemas de inteligência artificial3. Há, portanto, uma conduta ativa das grandes plataformas, que normalmente filtram, selecionam, ranqueiam e escolhem o que cada usuário irá ver e quando irá ver. Essa seleção, cujos critérios decorrem de algoritmos em relação aos quais não há qualquer transparência, tende a favorecer os interesses de mercado das plataformas, fazendo com que seus usuários fiquem mais tempo em seu ambiente, o que não apenas aumenta o tempo de exposição às ofertas publicitárias ou às propagandas políticas, mas também amplia a coleta de seus dados pessoais. Apesar da notória interferência das plataformas digitais no fluxo comunicativo, o argumento subjacente ao art. 19 do Marco Civil é o de que a definição de um regime mais rígido, traria o risco de notificações extrajudiciais infundadas. Nesse sentido, autores como Jack Balkin4 sustentam que a adoção de um regime de responsabilidade pelo conteúdo de terceiros poderia levar à chamada "censura colateral", que ocorre quando, diante do temor de ser responsabilizado, o intermediário tende a bloquear ou censurar, de maneira exagerada, as publicações dos usuários. Todavia, tal tipo de perspectiva apenas poderia ser sustentada diante da premissa da neutralidade das plataformas em face dos conteúdos que nela transitam. A partir do momento em que se constatam a ingerência e o controle sobre o fluxo informacional, não faz sentido afastar a responsabilidade, até porque a liberdade de expressão não desfruta, na Constituição brasileira, de posição privilegiada em relação a outros direitos fundamentais, exigindo, ao contrário, um cuidadoso balanceamento dos bens jurídicos em conflito. As incoerências do art. 19 não passaram despercebidas pela doutrina, motivo pelo qual alguns autores chegaram a sustentar a sua inconstitucionalidade, argumentando, dentre outras coisas, que o dispositivo afronta a garantia constitucional de reparação plena e integral, o princípio de acesso à Justiça e o princípio da vedação ao retrocesso social (pela subversão da jurisprudência mais protetiva que já havia se firmado)5. De fato, um dos maiores problemas do art. 19 é que ele acaba por privilegiar a liberdade de expressão em detrimento de outras garantias constitucionais, em afronta ao art. 5º, X, da CF, que reconhece a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas e assegura, expressamente, a reparação integral pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação. Aliás, a inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil é objeto de discussão no RE nº 1.037.396, pendente de julgamento no STF. Causa estranheza, ainda, o fato de o legislador ter imputado à vítima o ônus de recorrer ao Judiciário, como condição indispensável para a deflagração da responsabilidade das plataformas. Impõe-se às vítimas o ônus de enfrentar batalhas jurídicas, muitas vezes longas e dispendiosas, agravando o dano, especialmente diante da morosidade do Judiciário em contraposição à velocidade de replicação dos conteúdos no ambiente virtual. Ressalte-se que o usual argumento, em favor do art. 19 - de que as plataformas poderiam ser, eventualmente, responsabilizadas pela indevida interferência na liberdade de expressão de seus usuários - é pouco convincente. Em primeiro lugar, o risco existe mesmo quando a moderação decorre do enforcement dos termos de uso. Nem por isso, as plataformas deixam de criar regras de governança e aplicá-las cotidianamente. Em segundo lugar, a necessidade de sopesar interesses em conflito é inerente ao exercício da autonomia privada. Trata-se, na verdade, de uma decorrência direta do Estado Democrático de Direito, que, não reconhecendo direitos subjetivos absolutos, exige a todo momento que os indivíduos exerçam delicados juízos quanto à abrangência de sua autonomia privada em face dos direitos de terceiros. Tal raciocínio é ainda mais pertinente quando se trata de agentes econômicos que criam o risco respectivo e dele obtêm grande proveito econômico. Daí por que, diante do poder e dos benefícios de que usufruem, é necessário que também suportem os danos decorrentes da atividade. Para se chegar a tal conclusão, não é necessário o apoio nos pressupostos da responsabilidade objetiva. Afinal, o próprio art. 187 do Código Civil deixa claro que abusa do seu direito todo aquele que o exerce de forma a exceder manifestamente os limites impostos pelas finalidades sociais e econômicas do direito e pela boa-fé. Ao assim fazer, o artigo impõe que os particulares considerem em que medida as suas ações podem ou não estar causando danos desnecessários, inadequados ou desproporcionais a terceiros. Mais do que isso, o art. 19 do Marco Civil precisa ser também interpretado em face da Constituição, do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, os quais apontam para a necessidade de que a questão a responsabilidade civil das plataformas seja vista igualmente a partir da perspectiva do dever de cuidado exigido em cada hipótese, inclusive para o fim de tratar com maior rigor os casos claramente abusivos. Em muitas hipóteses, é possível se falar até mesmo em uma espécie de "zona de certeza positiva", na qual a ilicitude se revelará patente, como ocorre em incitações de ódio, xingamentos grosseiros, mensagens discriminatórias, pornografia infantil, etc. Nessas hipóteses, por exemplo, não parece adequado que o agente, mesmo tomando conhecimento inequívoco da publicação e se recusando a retirá-la, possa escusar-se de reparar os danos daí decorrentes. É importante lembrar que o dever de cuidado decorre do princípio da boa-fé objetiva, aplicando-se a qualquer tipo de relação contratual, independentemente de previsão expressa, incluindo, obviamente, os contratos entre as plataformas digitais e seus usuários. Seu objetivo não é assegurar os interesses obrigacionais em si, mas, sim, garantir que os contratantes não causem danos uns aos outros ou a seus patrimônios. Sob esta perspectiva, abre-se, inclusive, nova frente de discussões, que deixa de ter como foco apenas o controle de conteúdo e passa a ter como foco também a própria arquitetura da plataforma, ou seja, o seu design e a compatibilidade deste com padrões mínimos de accountability e de cuidado. Isso porque, muitas vezes, os danos sofridos pelas vítimas decorrem do próprio design das plataformas, criado para atingir interesses privados dos agentes econômicos, ao mesmo tempo em que impõe externalidades significativas à sociedade6. Acresce que muitas das ambivalências e dificuldades que a preservação da liberdade de expressão vem enfrentando no ambiente digital decorre da completa falta de transparência sobre a forma como as plataformas gerenciam os fluxos, por meio de algoritmos secretos e obscuros, sem nenhuma accountability. Nesse cenário, é imprescindível traçar alternativas intermediárias entre a ampla responsabilização por conteúdo de terceiros e a irresponsabilidade, delineando um regime em que as plataformas possam responder por danos decorrentes do sistema de gestão, controle e curadoria da informação que elas próprias criaram, notadamente quando padrões mínimos de cuidado e de transparência não forem providenciados. O Marco Civil da Internet não pode, portanto, ser interpretado como uma espécie de "blindagem" das plataformas ao Código Civil, ao Código do Consumidor e à própria Constituição Federal, para restringir a tutela dos danos injustos causados a seus usuários por conteúdos de terceiros. Se o art. 19 já sofre críticas desde a sua edição, com maior razão é justificável sustentar que a sua premissa de aplicação irrestrita é a neutralidade da plataforma em relação aos conteúdos. É dizer: se a plataforma digital exerce gestão, moderação ou controle de conteúdos e, na execução da relação contratual, deixa de adotar os deveres de cuidado necessários, razoáveis e proporcionais para evitar que sejam causados danos injustos à outra parte, deve repará-los pela violação ao dever de proteção que decorre da boa-fé objetiva. Por mais que a precisa identificação do conteúdo do dever de cuidado não possa ser feita em abstrato - devendo ser densificada a partir de critérios como a previsibilidade e a gravidade do dano, a profissionalidade e o porte do agente econômico, dentre outros - trata-se de juízo imprescindível para assegurar o equilíbrio entre o poder e a responsabilidade de tais agentes. *Ana Frazão é advogada e professora associada da Universidade de Brasília - UnB. **Ana Rafaela Medeiros é advogada. __________ 1 GILLESPIE, Tarleton. Custodians of the Internet: Platforms, content moderation, and the hidden decisions that shape social media [edição eletrônica]. New Haven, CT: Yale University Press, 2018. 2 BALKIN, M. Jack. Free Speech in the Algorithmic Society: Big Data, Private Governance, and New School Speech Regulation. University of California, Davis, p.1149-1210, 2018, p. 1181. 3 Cf. "YouTube's AI is the puppet master over most of what you watch", 10.1.2018. Disponível aqui. Acesso em 12/2/2021. 4 BALKIN, Jack M. Free Speech is a triangle. Columbia Law Review, v. 118, p. 2011-2056, 2011, p. 2015. 5 SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: Avanço ou Retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira. Direito e Internet III: Marco Civil da Internet - tomo II. São Paulo: Quartier Latin, p. 277-305, 2015. No mesmo sentido, QUEIROZ, João Quinelato de. Responsabilidade civil na Rede: danos e liberdade à luz do marco civil da internet. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.  6 Cf. MAZÚR, Jan; PATAKYOVÁ, Maria T. Regulatory. Masaryk University Journal of Law and Technology, v. 13, p. 219-241, 2019, p. 223-224.
O esquecimento, na Antiguidade, já foi identificado com a ideia de sanção ou punição, como no instituto da damnatio memoriae, destinado aos condenados por crimes graves em Roma ou ainda aos destronados, tidos como "maus imperadores" pela nova ordem constituída.1 No entanto, o surgimento da internet no cenário social gerou efeito contrário, no sentido da difusão e a massificação das memórias, possibilitando a construção de uma "memória coletiva".  Trata-se, pois, de um ponto de contato que se encontra exatamente no escopo entre o natural avanço das tecnologias da informação e as transformações como o direito ao esquecimento passou a ser exercido. As memórias e visões de mundo passaram a ser compartilhadas socialmente com o avanço das mídias sociais e não mais podem ser individualmente definidas.  Com isso, o esquecimento não pode mais ser concebido apenas como um aspecto inerente à cognição humana. A memória, portanto, não se opõe ao esquecimento, como poder-se-ia supor. A memória, na verdade, pressupõe o esquecimento: qualquer organização da memória é igualmente organização do esquecimento, já que não é possível a memorização sem uma triagem seletiva.2 O excesso de informação não é necessariamente positivo: quanto mais informações são adicionadas à memória digital, as lembranças destas acabam confundindo a tomada de decisão humana, sobrecarregando o sujeito com informações de que seria melhor ter esquecido.3 O mundo e o espaço digital surgem como um armazenamento contínuo e inesgotável de dados, numa nova forma de voyeurismo e memória perene que, como alerta  Catarina Santos Botelho, não se adequa à nossa condição humana. A neurologia,  na visão da autora portuguesa, ensina-nos que a principal função do nosso cérebro é esquecer tudo aquilo que é supérfluo e filtrar conteúdos que nos prejudicam emocionalmente.4 O desenvolvimento tecnológico alterou radicalmente o equilíbrio entre lembrança e esquecimento, visto que a regra, hoje, é a recordação dos fatos ocorridos, enquanto esquecer se tornou a exceção; para Viktor Mayer-Schönberger, "em virtude das tecnologias digitais, a habilidade da sociedade de esquecer foi reprimida, sendo permutada pela memória perfeita".5 O direito ao esquecimento se apresenta como uma espécie de garantia fundamental que visa remediar os inconvenientes e prejuízos gerados pela enorme multiplicação de dados pessoais que passam a alimentar bancos de armazenamento e processamento fora do controle dos cidadãos, o que, na última instância, supõe uma exigência em face do Estado social e democrático de Direito, que deve adequar seus pressupostos estruturais à mudança de modelo significada pelo Big Data.6 Com o barateamento das tecnologias de armazenamento, a manutenção das informações digitais torna-se mais econômica do que o tempo necessário para selecionar o que será apagado.7 As tecnologias implicam, portanto, uma perda na capacidade de controlar a própria identidade, de realizar escolhas de estilo de vida e mesmo começar de novo e superar os fatos pregressos, afetando, portanto, a autodeterminação informativa. Embora todos os usuários da Internet contribuam para a geração e armazenamento de mais e mais informações acerca das suas ações online, isso não corresponde nececesariamente a um benefício a partir da informação gerada. Embora os grandes impérios da comunicação anunciem uma navegação cada vez mais personalizada e eficiente, sobretudo em relação aos motores de busca, os usuários da Internet são destinados a esquecer suas experiências, enquanto as empresas cuidadosamente monitoram todas essas informações para oferecer publicidade e para a criação de perfis direcionados ao público. Em outras palavras, as marcas se lembram daquilo que os usuários esquecem.8 O direito ao esquecimento, enquanto garantia da autodeterminação informativa, insere-se no controle temporal de dados, "que demanda uma proteção das escolhas pessoais após certo período de tempo, em que o indivíduo já não mais pretende ser lembrado, rememorado por dados passados".9 Segundo Bert-Jaap Koops, o direito ao esquecimento pode se manifestar em três diferentes formas: a) o direito a ter deletada a informação após certo período de tempo; b) o direito a "recomeçar do zero" (clean state); c)o direito a estar conectado unicamente com o presente.10 O direito ao esquecimento, ensina Ingo Sarlet, pressupõe a necessidade de reconhecimento e proteção em face do Estado e de terceiros no plano social ampliado - de não sofrer permanentemente e de  modo indeterminado as repercussões normalmente negativas   associadas a fatos do passado, algo essencial tanto para uma vida saudável pessoal, do ponto de vista físico e psíquico, como para uma integração social do indivíduo.11 Não se trata, porém, de um direito absoluto, mas que deve ser objeto de ponderação, caso a caso, de modo que figuras históricas, como Jesus Cristo, Buda, Gandhi, Hitler, dentre outros, e fatos históricos, como guerras, ou então as torturas e excessos cometidos durante o regime militar brasileiro, improbidades administrativas cometidas por políticos ou a operação Lava Jato, a título de exemplificação, não poderão ser jamais esquecidos ou apagados da memória coletiva. A informação objeto de direito ao esquecimento deve ser, portanto, de natureza eminentemente privada e sua revelação deve atingir um direito de personalidade, em especial a privacidade,  ou a identidade pessoal, sem prejuízo da cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Trata-se de um direito excepcional, cuja aplicação não pode ser banalizada. O Caso Aida Curi,12  envolvendo um feminicídio ocorrido em Copacabana, Rio de Janeiro, em 1958,  tornou-se nacionalmente famoso, havendo inúmeros livros e reportagens a seu respeito. No dia 29 de abril de 2004, quase meio  século após seu falecimento, o Programa Linha Direta Justiça dedicou um episódio à morte da jovem, fato que motivou a interposição de ação de reparação por danos morais, materiais e à imagem por seus quatro irmãos - Nelson, Roberto, Waldir e Maurício Curi, em face da TV Globo Ltda. Sustentam os autores que o crime havia sido esquecido com o passar dos anos e sua exibição reabrira feridas antigas na vida da família, pois rememorava a vida, a morte e a pós-morte de sua irmã, inclusive com uso de sua imagem. Alegam, ainda, que a exploração do caso pela rede de televisão foi ilícita, uma vez que ela fora notificada pelos autores para não fazê-lo.13 No caso, portanto, os irmãos de Aida Curi, postularam a reparação dos danos morais e materiais em face da Rede Globo, tendo em vista a lembrança do trágico episódio no mesmo programa Linha Direta-Justiça. Quanto ao dano moral, o fundamento do pedido foi o fato de se reviver o passado; já em relação ao dano material, a postulação reparatória foi a exploração da imagem da falecida irmã com objetivo comercial e econômico. Em primeira e segunda instâncias, os pedidos dos autores foram julgados improcedentes, sob o fundamento de que o homicídio de Aida Curi foi amplamente divulgado pela imprensa no passado e ainda é discutido e noticiado nos presentes dias, tendo entrado para o domínio público. Em seguida, sobrevieram os Recursos Especial e Extraordinário, este último não admitido pelo Supremo Tribunal Federal.14 Foi negado provimento ao Recurso Especial, tendo a Quarta Turma,  por maioria de  votos (três votos a dois),  acompanhado o relator, Ministro Luis Felipe Salomão. Segundo um trecho da ementa do julgado no Superior Tribunal de Justiça: "A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se indispensável a ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança". O voto vencedor, do Ministro Luis Felipe Salomão, considerou que, no caso, a liberdade de imprensa (art. 220, Constituiçao da República) deveria preponderar sobre a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5o, X e 220, parágrafo primeiro da Constituição da República), vez que, além de a matéria não estar incrementada de artificiosidade, os fatos revelaram notícia histórica de repercussão nacional. Afirmou-se, na conclusão, que a divulgação da foto da vítima, mesmo sem o consentimento da família, não configuraria dano indenizável. Concluíram os Ministros, por maioria, que "o direito ao esquecimento, que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas  depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi". O  caso Aida Curi chegou ao Supremo Tribunal Federal, tendo prevalecido, por maioria, o voto do Ministro Dias Tóffoli, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ,  nos dias 04, 05, 11 e 12 de fevereiro de 2021. O voto do relator,  após estabelecer, na sua parte inicial, um preciso e técnico histórico da matéria, juntamente com as controvérsias que a cercam, considerou, após a  apreciação  do caso Aida Curi, a seguinte proposta de tese de repercussão geral, aprovada por maioria de nove votos a um : "Tema 786 - É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível". O voto do relator analisa o direito ao esquecimento em função dos elementos que compõem o seu conceito, segundo a doutrina, a saber, a  licitude ou veracidade da informação e do decurso do tempo, propulsor de degradação da informação do passado. Em outra oportunidade, já nos manifestamos sobre a (in)utilidade de um tema de repercussão geral, tendo em vista a natureza caleidoscópica do direito ao esquecimento, comprometendo a aplicação de uma tese para outros casos "análogos", que dificilmente existirão, considerando as peculiaridades da hipótese e a amplitude da nomenclatura "direito ao esquecimento",15 objeto de críticas, muitas fundadas, pela doutrina. Há de ser considerado o disposto no artigo 926, parágrafo segundo do Código de Processo Civil, que determina que, ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. O conteúdo dinâmico do direito ao esquecimento dificulta a aplicação de um precedente em outros casos, que apresentam suporte fático distinto. O Caso da Chacina da Candelária, apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.334.097, teve suporte fático completamente diverso, onde se justificaria a anonimização do envolvido na reportagem jornalística, o que obstaria à efetividade da tese. Alguns efeitos merecem ser extraídos da decisão acima. Em primeiro lugar,  o voto do relator, seguido por maioria pelo Supremo Tribunal Federal, vencidos, na apreciação do Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, os Ministros Luiz Edson Fachin, Luiz Fux e Gilmar Mendes,  afirmou a tese vencedora, no sentido da "inexistência no ordenamento jurídico brasileiro de um direito genérico com essa conformação, seja expressa ou implicitamente", de modo que "o que existe são expressas e pontuais previsões em que se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão para a supressão de dados ou informações", como seria o caso das normas do artigo 43, parágrafo primeiro , segunda parte do Código de Defesa do Consumidor, dos artigos 93 a 95 do Código Penal e do artigo 7º , X do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). No entanto, na parte inicial do voto, o relator deixa claro que tal decisão, embora abranja tanto a mídia tradicional quanto a Internet, ambas em conjunto, sem prejuízo das especificidades de cada linha do tema, certamente para evitar um tratamento fragmentado, não envolve os pedidos de desindexação, que, consoante  a fundamentação, não se confunde com o direito ao esquecimento. Portanto, hipóteses como a do famoso caso Google Spain, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014, não serão abrangidas, no Brasil, pela Tese 786. Desindexar é marcar o URL (Uniform Resource Locator, o endereço de uma página na web), para que ele não conste dos resultados de busca de buscadores normais. Isso significa que quando o usuário digita o conteúdo buscado em um campo de busca, ainda que o conteúdo esteja público, não será mostrado na lista dos resultados. Ao desindexar o conteúdo de um mecanismo de busca normal, considerando que o acesso a novo conteúdo pela Internet costuma ser intermediado pelos mecanismos de busca, diminui significativamente o potencial de disseminação desse conteúdo, diminuindo o eventual dano que a sua disseminação possa causar ao envolvido.16 A Tese 786, portanto, não abrange as hipóteses de desindexação, que poderão ser objeto de ponderação sem prevalência apriorística das liberdades comunicativas no caso concreto.  Tecnicamente, acertou o Supremo Tribunal Federal ao distinguir o esquecimento, em sentido amplo, da desindexação. Prevaleceram, de maneira preferencial,  na visão majoritária do Supremo Tribunal Federal, os direitos à memória e à liberdade de informação e de expressão, tendo sido invocado ainda no voto do relator o artigo 4º. II, a da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, em cujos termos não se aplica o tratamento de dados àquilo realizado para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos. A liberdade é a regra, e as exceções devem ser expressas. A tese espelha em grande parte a  visão do professor Daniel Sarmento, para quem a imposição do esquecimento tem sido um instrumento de manipulação da memória coletiva de que se valem os regimes totalitários em favor de seus projetos de poder, em face da cultura censória que, nas palavras do autor, viceja no Poder Judiciário, sendo "evidentes os riscos de autoritarismo envolvidos na atribuição a agentes estatais - ainda que juízes - do poder de definirem o que pode e o que não pode ser lembrado pela sociedade".17 A posição preferencial das liberdades, originária da jurisprudência constitucional norte-americana, prevaleceu na orientação da Tese 786, sendo que, conforme a visão vencedora, a tutela dos direitos da personalidade deverá ocorrer a posteriori, através do direito de resposta e da responsabilidade civil dos que exerceram abusivamente sua expressão livre. A Tese 786 vinculará todo o Judiciário brasileiro, embora, como visto, o artigo 926, parágrafo segundo do Código de Processo Civil, do ponto de vista da adequação aos casos concretos que venham a surgir, poderá vir a modular sua efetividade, de modo que o precedente não nasce precedente, mas se tornará precedente ao longo do tempo, e sua vinculação se dará pela ratio decidendi.18Que o futuro venha acompanhado de um verdadeiro e real progresso, do ponto de vista da efetividade dos direitos fundamentais. *Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da capital - Rio de Janeiro. Professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito - UFRJ. Professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense. Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. __________ 1 VARNER, Eric R. Mutilation and transformation: damnation memoriae and Roman imperial portraiture. Brill Leiden: Boston, 2004. p. 1: "as sanções legais associadas à damnatio memoriae estabeleciam os mecanismos pelos quais um  indivíduo era simultaneamente anulado e condenado. Os próprios  romanos perceberam que era possível alterar a percepção da posteridade em relação ao passado especialmente pelo registro visual e epigráfico. Sanções aplicadas pelo Senado poderiam determinar a destruição dos monumentos e inscrições comemorando criminosos capitais como hostes, ou oficiais inimigos do Estado romano. Como resultado, o nome e  o título dos condenados eram removidos de todas as listas oficiais (fasti ); as imagens(imagnes)representando os falecidos eram banidas da exibição em funerais aristocráticos; os livros escritos pelos condenados eram confiscados e queimados; (...)sendo possível, ainda, a proibição do uso contínuo do prenome(praenomen)". 2 OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru: EDUSC, 2005. p. 60. 3 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, ; the virtue of forgetting in the Digital age. New Jersey: Princeton University Press, 2009. p.164 4 BOTELHO, Catarina Santos. "Novo ou velho direito",  O Direito ao esquecimento e o princípio da proporcionalidade no constitucionalismo global. Ab Instantia. V. 7, 2017, p.53 5 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, op.cit., p.187. 6 LÓPEZ, Marina Sancho. Derecho al olvido y Big Data dos realidades convergentes. Valencia: Tirant lo Blanch, 2020(e-book) p.18-19. 7 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete, op.cit, p.02. 8 SERRALBO, Javier Aranda. Right to oblivion; a way to get to know ourselves and share the knowledge. London, 2012(e-book) , pos. 182. 9 BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Civilística. Revista Eletrônica de Direito Civil. Ano 2, n. 3, 2013. Disponivel  aqui. Acesso em 23/10/2013. p.09 10 KOOPS, Bert-Jaap. Forgetting footprints, shunning shadows. A critical analysis of the "Right to be Forgotten" in Big Data practice. 8:3 SCRIPTed 229(2011). Acesso em : 08 jun. 2020. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas acerca do assim chamado direito ao esquecimento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro. In: DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; CUEVA, Ricardo Villas Boas. Lei Geral de Proteção de Dados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p.70. 12 SILVA, Roberto Baptista Dias da; PASSOS, Ana Beatriz Guimarães. Entre lembrança e olvido: uma análise das decisões do STJ sobre direito ao esquecimento. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 16, n o. 109, jun./set. 2014 .p.410. 13 SILVA, Roberto Baptista Dias da; PASSOS, Ana Beatriz Guimarães. Entre lembrança e olvido, op.cit, p.410. 14 SILVA, Roberto Baptista Dias da; PASSOS, Ana Beatriz Guimarães. Entre lembrança e olvido, op.cit, p.410. 15 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; MARTINS, Guilherme Magalhães. A figura caleidoscópica do direito ao esquecimento e a (in)utilidade de um tema em repercussão geral. Migalhas. São Paulo, 29 set. 2020. Acesso em: 17.02.2021. Disponível aqui. 16 VIOLA, Mario; DONEDA, Danilo; CÓRDOVA, Yasodara; ITAGIBA, Gabriel. Entre privacidade e liberdade de informação e expressão: existe um direito ao esquecimento no Brasil? In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor. O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p.366. 17 SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e "Direito ao esquecimento" na ordem constitucional brasileira. Revista Brasileira de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 7, jan./mar.2016, p.192-193. 18 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Precedente vinculativo e persuasivo e a ratio decidendi. Consultor Jurídico. São Paulo, 13 fev. 2021, p.04. Acessível aqui. Acesso em: 17.02.2021.
Uma das mais importantes e interessantes discussões no âmbito da responsabilidade civil refere-se ao dano extrapatrimonial (ou moral)1 coletivo. É tema que envolve, por exemplo, considerações sobre ilicitude, interesses juridicamente protegidos, dano ressarcível, funções da responsabilidade civil - portanto, um rico tema para análise. Assim como sua vertente individual, essa figura também sofreu contestação inicial. A decisão da 1.ª Turma do STJ no Recurso Especial 598281/MG (rel. Min. Luiz Fux, rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki, 1.ª T., j. 02/05/2006) é considerada um marco importante sobre o tema, especialmente em razão dos debates em torno das posições sustentadas, de um lado, pelo Min. Luiz Fux, relator - defendendo o reconhecimento jurídico do dano moral da coletividade -, e, de outro, do Min. Teori Zavascki, redator para o Acórdão - sustentando que "a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa", não sendo compatível com "a ideia de transindividualidade (= da indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão". Naquela oportunidade, a posição defendida pelo Min. Zavascki sagrou-se vencedora; no entanto, o tema voltou a ser analisado em diversas oportunidades2 e, hoje, com o reconhecimento de sua viabilidade jurídica, parece superada a discussão3. Neste breve ensaio, cumpre analisar duas importantes questões: qual é a conduta que se busca evitar e qual é o interesse que se busca tutelar por meio de condenação à indenização por dano moral coletivo, com base no entendimento do STJ. Entende-se que a compreensão desses dois pontos é crucial para ter-se maior segurança e clareza acerca das situações em que é legítima a sua concessão. Hoje há uma aparente unanimidade quanto ao fato de que não é qualquer infração à lei que acarreta o dano moral coletivo. Constata-se, em diversos julgados, a utilização de uma variedade de expressões "qualificadoras" que tornariam uma infração apta a ser sancionada4 por meio de indenização: por exemplo, a conduta ilícita deve agredir, "de modo ilegal ou intolerável, os valores normativos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva" (REsp 1819993/MG, rel. Min. Herman Benjamin, 2.ª T., j., 03/11/2020); configurar "grave ofensa à moralidade pública" (REsp 1303014/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, rel. p/ acórdão Min. Raul Araújo, 4.ª T., j. 18/12/2014); ser "grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva" (REsp 1438815/RN, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 22/11/2016); ou, ainda, atingir "alto grau de reprovabilidade", de modo a transbordar "os lindes do individualismo, afetando, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais" (REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª T., j. 27/10/2020). No entanto, essas expressões, analisadas abstratamente, pouco ou nada dizem a seu respeito. É necessário ir além, e várias questões podem - e devem - ser suscitadas. O que significa "intolerável"? O que provoca "repulsa e indignação na consciência coletiva"? O que configura "grave ofensa à moralidade pública"? Como caracterizar "intranquilidade social"? Não se trata de fazer uma crítica apriorística à utilização desses conceitos; o problema decorre "do uso de expressões sem conteúdo preciso ou desprovidas de delimitação dogmática que, em verdade, pouco ou nada dizem"5. O problema, aliás, não é novo. A mesma questão foi enfrentada na análise do dano moral individual: o seu ressarcimento não pode configurar arbítrio ou subjetivismo do julgador, de modo que "o juiz há de ter critérios (...) e a pertinência de tais critérios há de ser objeto da motivação da sentença"6. As respostas dependem do caso concreto. A análise de julgados pode lançar luz ao significado dessas expressões "qualificadoras". Não se fará, aqui, análise favorável ou contrária à conclusão alcançada nesses julgados; apenas se apresentará situações consideradas aptas, pelo atual entendimento, a acarretar dano moral coletivo. Em recente caso, a 2ª Turma do STJ enfrentou situação referente a uma empresa autuada diversas vezes, em dois anos, por permitir que seus veículos trafegassem em rodovias nacionais com excesso de peso. A partir da consideração de que o direito ao trânsito seguro trata da "vida, saúde e bem-estar coletivos, três dos pilares estruturais do Direito brasileiro", e de que seria fato notório "que o tráfego de veículos com excesso de peso provoca sérios danos materiais às vias públicas" - aliado à conduta reiterada da empresa -, a Turma concluiu que a conduta da empresa agravaria os "riscos à saúde e à segurança de todos, prejuízo esse atrelado igualmente à redução dos níveis de fluidez do tráfego e de conforto dos usuários", sendo apta a acarretar dano moral coletivo (REsp 1819993/MG, rel. Min. Herman Benjamin, 2.ª T., j. 03/11/2020). A 3ª Turma do STJ também considerou intolerável conduta de instituição bancária de submeter seus clientes com dificuldades de locomoção à utilização de escadas em agência bancária, com nítida preocupação com a promoção de acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida (REsp 1221756/RJ, rel. Min. Massami Uyeda, 3ª T., j. 02/02/2012). Por outro lado, a mesma Turma considerou que exigir tarifa bancária considerada indevida "não infringe valores essenciais da sociedade, tampouco possui os atributos da gravidade e intolerabilidade, configurando mera infringência à lei ou ao contrato", sendo insuficiente para caracterizar dano moral coletivo (REsp 1502967/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 07/08/2018). Da mesma forma, apesar de reconhecer a ilicitude da atividade de exploração de atividade de bingo, a 3.ª Turma considerou que, no caso, tratava-se de "associação civil sem fins lucrativos que realizou a conduta em questão (bingos e sorteio prêmios) com a finalidade de angariar fundos para o fomento do desporto local", motivo pelo qual, "em razão do contexto social da prática da recorrente, impossível a afirmação de que sua conduta provocou um profundo abalo negativo na modal da comunidade em que está inserida" (REsp 1438815/RN, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 22/11/2016). Destaca-se, ainda, interessante caso que tratou da suposta "máfia do apito", referente às alegações de fraude na arbitragem de futebol em 2005. A 3ª Turma do STJ considerou que o Estatuto do Torcedor assegura ao torcedor o direito de a arbitragem das competições administradas por entidades do desporto ser independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões. No entanto, "a análise acerca da configuração do dano moral coletivo na espécie deve levar em conta a percepção do torcedor médio", desconsiderando-se os extremos (de um lado, os que assistem determinadas modalidades esportivas em seus momentos de lazer; de outro, os que colocam determinada modalidade como sua prioridade). A partir disso, considerou-se a ausência de lesão "intolerável, com inadmissível agressão ao ordenamento jurídico e aos valores éticos fundamentais dessa coletividade" (REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T., j. 27/10/2020). Ao fim, a questão da intolerabilidade relaciona-se com a própria ideia de dano moral individual. Se meras ofensas e aborrecimentos banais não são suscetíveis de indenização, "a mesma prudência deve ser observada em relação aos danos extrapatrimoniais da coletividade"7. A outra questão a ser analisada diz com os interesses a serem tutelados. Sabe-se que os interesses coletivos são subdivididos em interesses difusos, interesses coletivos stricto sensu e interesses individuais homogêneos (inclusive, conforme art. 81 do CDC). A questão que se coloca é: a lesão intolerável a qualquer desses interesses acarreta dano moral coletivo? No já citado Recurso Especial n.º 1.819.993/MG, a 2.ª Turma do STJ sustentou que o dano moral coletivo é aquele "de natureza transindividual que atinge classe específica ou não de pessoas". Após, é referido que "na noção, inclui-se tanto o dano moral coletivo indivisível (por ofensa a interesses difusos e coletivos de uma comunidade) como o divisível (por afronta a interesses individuais homogêneos)". Ocorre que, em momento anterior, a 4.ª Turma do STJ havia decidido que "apenas danos difusos ou coletivos stricto sensu poderiam" acarretar dano moral coletivo, enquanto violações a interesses individuais homogêneos "só rendem ensejo a condenações reversíveis a fundos públicos na hipótese de fluid recovery". Para o Min. Salomão, "a própria legislação prevê consequências bem distintas a cada espécie de interesses e direitos levados a juízo", como alcance da coisa julgada e legitimidade para propositura de ação ou execução. Em razão disso, no entender do Min. Relator, "a violação de direitos individuais homogêneos não pode, ela própria, desencadear um dano que também não seja de índole individual, porque essa separação faz parte do próprio conceito dos institutos" (REsp 1293606/MG, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 02/09/2014). Aparentemente, o Min. Salomão reiterou o entendimento recentemente, conforme noticiado no site do STJ - apesar de ainda não ter sido publicado o acórdão8. Essas questões demonstram que o tema ainda requer constante investigação. Doutrina e jurisprudência precisam atentar para que a utilização da figura do dano moral coletivo não se torne um "remédio para todos os males"9, com verdadeiro desvirtuamento e banalização do instituto. *Rodrigo Ustárroz Cantali é doutorando e mestre em Direito Privado pela UFRGS. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. __________ 1 As duas expressões são utilizadas indistintamente pelos Tribunais. 2 Em 2009, por exemplo, a Min. Eliana Calmon referiu "não aceitar" a conclusão do REsp 598.281/MG, por entender "não ser essencial à caracterização do dano extrapatrimonial coletivo prova de que houve dor, sentimento, lesão psíquica" e que "as relações jurídicas caminham para uma massificação e a lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais". REsp 1057274/RS, rel. Min. Eliana Calmon, 2.ª T., j. 01/12/2009. 3 Sobre a evolução jurisprudencial do tema, ver SOARES, Flaviana Rampazzo. O percurso do "dano moral coletivo" na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 76-95. 4 Segundo o Min. Cueva, o dano moral coletivo "possui importantes funções - dissuasória (prevenção de condutas antissociais), sancionatório-pedagógica (punição do ato ilícito) e compensatória (reversão da indenização em prol da própria comunidade direta ou indiretamente)". REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª T., j. 27/10/2020. Defendendo que o "modelo jurídico do dano moral coletivo (.) não passa de peculiar espécie de pena civil", ver ROSENVALD, Nelson. O dano moral coletivo como uma pena civil. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 119. 5 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 42. 6 MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Ano 3, n. 9, p. 7073-7122, 2014, p. 7116. 7 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 4.ed. Salvador: Juspodivm, 2017, v. 3, p. 354. 8 Violação de direitos individuais homogêneos não gera dano moral coletivo, entende a Quarta Turma. 9 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 44. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
O princípio da reparação integral do dano é, hoje, considerado princípio jurídico de simetria entre a amplitude do dano e a indenização, estando no teor do caput do art. 944 do CC/02 a norma que melhor reflete a necessidade de reparar in totum toda e qualquer lesão injusta de bem jurídico alheio. Entretanto, não se trata a convergência entre a extensão do dano e a indenização de regra absoluta, admitindo exceções tal qual se encontra na hipótese de desproporção entre a culpa do causador e o dano sofrido pela vítima, prevista pelo parágrafo único do art. 944. Norma de relativização do Princípio da Reparação Integral Embora a regra geral estipule que o arbitramento do quantum debeatur deve levar em consideração toda a extensão dos prejuízos causados, a priori, sem sopesar questões subjetivas do ofensor, a exceção do parágrafo único do art. 944 autoriza a utilização do grau de culpa (essa em sentido estrito, obviamente) como critério para a redução do valor indenizatório, sem que isso afete de qualquer forma a dimensão do dano experimentado. Trata-se de norma que, inicialmente, tem na conduta do agente e na magnitude do dano o seu suporte fático, diferentemente, portanto, do que ocorre no caso de contribuição causal da vítima para o evento danoso, que a despeito de também levar em consideração a culpa, desta vez da vítima, trata-se de questão a ser tratada sob a perspectiva do nexo causal. E conquanto não esclarecido pelo texto normativo, a norma de redução da indenização pelo grau de culpa autoriza, excepcionalmente, que a culpa leve ou a culpa levíssima (e somente essas) do ofensor interfiram na fixação da indenização, resultando, desse modo, em reparação a menor do que o prejuízo sofrido pela vítima, absorvendo essa última uma parcela do seu próprio agravo a que não deu causa. Assim, mitigando a regra da reparação integral, o ordenamento jurídico permite socializar entre causador e vítima o resultado do evento danoso, com a finalidade de resguardar outros relevantes interesses de um responsável diante de ônus excessivo em certas situações. A investigação do grau de culpa A ratio da norma somente considera possível a diminuição do montante indenizatório se, diante da grandeza do dano, tiver agido o ofensor com atenção ordinária ou extraordinária (i.e., culpa leve ou levíssima), distinções de intensidade da culpa as quais remontam à discussão sobre a forma de apreciação da culpa, quer dizer, se deve-se aferir a culpa in abstracto ou in concreto. A chamada apreciação in concreto considera a própria pessoa do autor do dano, exigindo-se dele um agir com os cuidados dos quais ele próprio é capaz, considerando-se os seus caracteres específicos, tais como nível de instrução, idade, saúde, profissão e demais fatores personalíssimos. Por sua vez, a apreciação in abstracto considera um homem razoavelmente diligente, de modo que o exame da culpa ocorre pela comparação entre um padrão de comportamento e a atuação do agente. A apreciação in concreto da culpa estaria em maior harmonia com o conteúdo moral e a sanção justa da responsabilidade, mas seria incompatível com as necessidades sociais, em que se espera de todos um comportamento em harmonia com padrões de perícia, prudência e diligência. Portanto, para fins de imputação, ao concentrar a noção jurídica de culpa na inobservância dos deveres de conduta, não se exigirá o reconhecimento de condições subjetivas, senão a falta de adesão do agente a um standard, aferido mediante as condições externas que lhe circunscrevem. No entanto, para efeito de redução equitativa da indenização, melhor entendimento assimila Sanseverino, defendendo a concepção concreta de culpa, ao afirmar que a "avaliação efetivamente equitativa do desequilíbrio ou desproporção entre a culpa e o dano recomenda que se verifique concretamente a culpabilidade do agente calcada nas suas circunstâncias pessoais, valorando-se, inclusive, critérios subjetivos"1. E isso acaba por dialogar com a solução mais justa pautada pela equidade no caso concreto, de modo que, enquanto a culpa, como elemento do ato ilícito, é estabelecida por um critério objetivo de aferição em abstrato, para fins de equalização da indenização na forma do parágrafo do art. 944, deverá ser apreciada mediante avaliação da pessoa do ofensor na circunstância do evento lesivo. O fundamento da norma e sua restrita interpretação A norma redutora, que não encontra correspondência no anterior código, tem razão de existir na equidade e na socialidade do vigente diploma, atendendo ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana, centrando-se acima de tudo em uma ideia de subsistência material da pessoa humana, pela qual se levará em conta o impacto que terá o pagamento integral da indenização sobre o patrimônio do ofensor e, de outro lado, o não recebimento para a vítima. A incidência da norma está subordinada ao status patrimonial atual de ambas as partes e ao gravame excessivo que o pagamento da indenização pode implicar no patrimônio do ofensor, impedindo que, por um lapso quase escusável, seja ele de alguma forma privado do necessário à sua subsistência e de sua família. Em outras palavras, a redução equitativa será aplicável quando a indenização comprometer o patrimônio do ofensor para o seu mínimo existencial, sem que a absorção do dano pela vítima conflite com idêntica dificuldade. A norma demanda aplicação quando a distorção entre a culpa e a gravidade afete a existência digna do ser humano, de maneira que, mesmo havendo a distorção entre grau de culpa e o resultado lesivo, se porventura inexistir comprometimento patrimonial do ofensor com o pagamento integral da indenização, deverá ser descartada a redução do quantum debeatur. Haverá nessa ordem uma razão de justiça equitativa para superar a atribuição dos efeitos da responsabilidade somente ao ofensor - o que é próprio da função reparatória da responsabilidade civil - e assim repartir os resultados danosos entre os patrimônios do ofensor e do ofendido. A ideia se desenvolve, portanto, no sentido de que a fixação do montante indenizatório não seja potencial a levar o ofensor ou vítima à miséria, sem se descuidar que será sempre pressuposto fático a manifesta desproporção entre grau de culpa (leve ou levíssima) e o dano sofrido. Essa é a essência da norma. Assim, a situação patrimonial dos protagonistas deverá ser considerada junto aos requisitos legais da culpa leve ou levíssima e dano significante, tratando-se de construção que também leva à conclusão de que a norma se restringe somente aos casos nos quais se tem a pessoa humana com situação patrimonial insuficiente para suportar a extensão desproporcional do dano. Por efeito, o critério da equidade aparece como um corretivo da justiça comutativa geral, permitindo tratamento racional para o arbitramento da indenização, modelando-a em conformidade com os elementos concretos dos envolvidos, e corrigindo-se exageros de indenizações que seriam equivalentes ao dano, conforme simetria do art. 944. A indiferença da regra de responsabilidade A incidência da cláusula não pode fechar as portas para a responsabilidade objetiva, sob pena de frustrar o seu próprio escopo de equidade. Reconhece-se não ser entendimento pacífico na doutrina, sobretudo, combatido pelos que defendem que a exceção deve ser aplicável apenas aos casos em que também seja importante a culpa para o nexo de imputação. No entanto, razões não faltam para estender a aplicação da norma a certos casos de responsabilidade objetiva2. O primeiro motivo para não desconsiderar a regra na responsabilidade objetiva decorre da circunstância de não haver impeditivo para apreciar a culpa apenas com a finalidade de fixação do quantum debeatur, dado ser regra da responsabilidade objetiva a irrelevância da culpa para o nexo de imputação, sendo plenamente aceitável que, após a imputabilidade, considere-se o elemento subjetivo do responsável para aferir o quanto deverá arcar em indenização dado a extensão dos danos. O segundo e preponderante motivo volta-se à necessidade atender ao escopo da norma. Tendo a norma por fim preservar o mínimo de sobrevivência do ofensor, em tutela da dignidade da pessoa humana, seria inusitado descartar por antecipação a possibilidade de incidência em determinadas situações nas quais o tamanho da participação e culpa do responsável é ínfima (ou ausente) e o dano se mostra elevadíssimo3. Basta pensar nos casos daqueles que respondem por danos provocados por terceiros ou coisas. Aqui, arriscar-se-ia dizer que até com mais razão se sustenta a impossibilidade de levar o responsável à ruína financeira. Todavia, mais uma vez vale dizer, decerto não a todo e qualquer caso de responsabilidade objetiva se deve estender os efeitos da norma, mas somente àqueles que têm a pessoa humana em situação patrimonial que não resista à extensão do dano. A tutela dos danos extrapatrimoniais: inaplicabilidade do art. 944, parágrafo único, do CC/02 A dogmática da responsabilidade civil demanda que se afirme ser a regra da redução da indenização pelo grau de culpa não incidente sobre os danos de natureza extrapatrimonial, sendo norma que se restringe apenas aos danos patrimoniais. A razão principal é porque se trata de norma que incide, temporalmente, entre a completa estimação do dano sofrido e a condenação do responsável a indenizar. Assim, primeiro o dano deverá ser medido em toda a sua extensão, após, num segundo momento, será comparado com o grau de culpa e a capacidade econômica do ofensor e, então, será definida a redução ou não. Por exemplo, no dano a um veículo: antes se avaliará o prejuízo que custará o dano material para, depois, contrapô-lo com o grau de culpa, não havendo qualquer ponderação sobre a intensidade da culpa em momento anterior à definição da extensão do prejuízo. Pelo contrário, nos danos extrapatrimoniais, grau de culpa e condição econômica configuram próprios critérios de arbitramento, e serão avaliados para definir o valor pecuniário do próprio dano a ser compensado. Assim, uma vez definida a dimensão da lesão, não haverá uma nova avaliação da intensidade da culpa para redução da indenização. Outro motivo para compreender que a regra somente se reporta aos danos materiais compreende a ideia de que, se o escopo é dividir o risco econômico do prejuízo entre os patrimônios do ofensor e da vítima, por causa imputável apenas ao primeiro, não haverá que se espraiar a divisão desse risco entre o patrimônio do ofensor e os direitos de personalidade da vítima, bem jurídico de maior relevância, fazendo com que ela mesmo absorva lesão à sua personalidade sem compensação4. Conclusão A partir dessa breve análise, percebe-se que a literalidade do art. 944, parágrafo único, do CC/02, de per si, é insuficiente para sua adequada aplicação prática, razão pela qual se buscou apontar os canais a serem percorridos pela jurisprudência e doutrina para dotar a matéria de uma disciplina capaz de harmonizar os interesses do lesado e do ofensor com essa prática de redução equitativa da indenização em detrimento da reparação integral e, então, da própria função reparatória da responsabilidade civil.   *Bruno Montanari Rostro é mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Civil pela Universidade do Vale dos Sinos. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado, sócio do escritório Matter, Boettcher, Zanini e Souza Advogados. __________ 1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 106 2 O tema já foi tratado mais de uma vez pelas Jornadas de Direito Civil do STJ, estando hoje fixado enunciado que não faz distinção entre os tipos de responsabilidade. 3 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 365 4 Não obstante, nem sempre a jurisprudência emprega cuidado ao adotar a norma, por vezes referindo o dispositivo para justificar a redução da indenização em casos de lesões extrapatrimoniais. Assim decidiu o TJRS na ApC nº 70019604404, em 13/6/2007, e na ApC nº 70082750118, em 5/3/2020 ; e o TJSP na ApC 00475358320148260114, em 26/6/2017. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A Business Judment Rule na responsabilidade civil

A business judment rule (regra de exclusão da responsabilidade civil dos administradores das sociedades) não é algo novo no direito societário, tendo recebido diversos olhares dos especialistas em distintos lugares do globo. Interessa-nos aqui, entretanto, uma abordagem específica, a da Teoria dos Custos de Transação (ou TCT), que compreende que as estruturas de governança são desenhadas para conter o comportamento oportunístico das partes envolvidas nas diversas transações que configuram uma organização.1 Partimos, nesse estudo, de uma afirmação feita por Oliver Williamson: a abdicação da autoridade regulatória pelos Tribunais por meio da business judment rule pode bem ser a mais significativa contribuição da common law para a governança corporativa.2 Tal afirmação é justificada na proposta teórica construída pelo autor, que compreende que a autoridade que caracteriza, em última análise, as empresas estaria comprometida caso as desavenças existentes entre acionistas e administradores fossem adjudicadas pelos Tribunais, sem uma barreira que a preservasse. Essa proposta é colocada em diálogo com uma outra, que traduz as reflexões contemporâneas sobre os fundamentos da responsabilidade civil. Segundo propõe Nelson Rosenvald, o objeto da responsabilidade civil desloca-se para o cuidado com o outrem, vulnerável e frágil, significando que é possível responsabilizar alguém como sujeito capaz de designar por seus próprios atos, um agente moral capaz de aceitar regras, substituindo-se a ideia de reparação pela de precaução. Ao invés da culpa e da coerção, a responsabilidade encontra novo fundamento moral no cuidado.3 Assim, uma aparente tensão pode emergir do confronto entre as duas propostas. Isso porque os administradores são agentes dos sócios - isso varia de intensidade segundo a estrutura de capital da sociedade, dispersa ou concentrada. Logo, se a regra do business judment rule pode, em sua dinâmica, preservar a hierarquia que caracteriza o modo de governança da empresa, por outro lado, pode anular os incentivos para que esses administradores atuem sob a baliza do dever de cuidado. Os parágrafos seguintes cuidarão desse problema, valendo-se da metodologia dialógica e da empiria. Na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a pesquisa restringiu-se a Processos Administrativos Sancionadores, selecionando-se, dentro dos 23 (vinte e três) resultados encontrados até o dia 20 de setembro de 2020 (busca pela expressão "business judgment rule"), aqueles que melhor desenvolviam a temática. Importa esclarecer, ainda, que no âmbito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR), do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT), do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) a pesquisa pelas expressões "business judgment rule", "regra da decisão negocial" ou "regra da decisão empresarial" (que são comumente usadas para referir-se ao mesmo mecanismo), não resultou em nenhuma decisão pertinente ao tema, que tratasse especificamente sobre a responsabilidade civil dos administradores e a business judgment rule. No TJ/MG, no TJRJ e no TJES, as consultas foram finalizadas no dia 22 de setembro de 2020, enquanto no TJPR, no TJMT e no TJPE, ocorreram no dia 23 de setembro de 2020, sem resultado significativo. No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a consulta resultou em 13 resultados, sendo selecionados os mais recentes e importantes para o tema aqui proposto, que mais desenvolvem a questão. Foram eliminados, com isso, os seis Embargos de Declaração, que apenas faziam uma menção singela à business judgment rule, mas que não a desenvolvem, além de dois agravos internos e um agravo de instrumento, cujos objetos eram voltados à desconsideração da personalidade jurídica. Das quatro apelações cíveis encontradas, uma tratava de recuperação judicial e a outra, mais antiga, tratava de ação de cobrança em face de seguradora que se recusou a pagar o seguro à autora, mas não da responsabilidade civil de administradores, especificamente. Esses foram os resultados encontrados no TJSP até a data de 25 de setembro de 2020, quando foi finalizada a pesquisa. Feitos esses esclarecimentos preambulares, objetivamos, neste pequeno texto, cuidar da origem estadunidense da regra, de uma ou outra discussão relevante havida por lá, e, por fim, dos problemas envolvendo a sua aplicação no Brasil, desde a discussão sobre a sua positivação em nosso Direito até a forma como é aplicada pela CVM e pelos Tribunais estatais. A business judgment rule é uma regra que foi construída ao longo de anos nos tribunais dos EUA, que passaram a observar que os prejuízos das sociedades, em casos vários, não eram consequências de atos eivados com algum vício de comportamento ético, de tal forma que seria excessivo sancioná-los. Tal regra foi assumindo tamanho destaque que passou a ser tratada em leis e outras disposições normativas. É, por exemplo, claramente expressa no §8.30, (a), do Model Business Corporation Act, de 19844. O Tribunal de Delaware entende haver uma tríade de deveres fiduciários dos administradores, o dever de cuidado, que abriga a diligência e a prudência, a boa-fé e o dever de lealdade5, em que pese ser mais comumente associada ao dever de cuidado. Na common law prevalece sobre a rule dois entendimentos. O primeiro, desenvolvido principalmente pelo professor Stephen B. Bainbridge, afirma tratar-se de uma regra de abstenção, pela qual o Tribunal se exime de analisar o mérito da decisão tomada pelo administrador. O segundo trata a regra como um standard pelo qual os julgadores podem, objetivamente, examinar o mérito das decisões dos administradores6. Alguns autores entendem bastar que a decisão seja tomada de boa-fé, enquanto outros a entendem como um pressuposto de um julgamento racional ou, ainda, como um teste para se identificar uma negligência grosseira. Baseando-se o governo das sociedades na authority, deve a administração ser exercida responsavelmente. Todavia, é natural que o ser humano, com suas limitações, cometa erros no processo decisório. Com isso, mecanismos para que os acionistas supervisionem a atividade dos administradores são necessários. Nesse sentido, a accountability é importante para corrigir erros, mas não pode travar a autonomia da administração na condução da companhia, sendo essencial para a empresa a prevalência da authority, que é um dos aspectos centrais do processo de tomada de decisão7. Segundo Bainbridge, a business judgment rule justifica-se, pois, a revisão judicial das decisões ameaça a authority, de modo que o exame judicial deve ser visto como uma medida excepcional. A teoria da abstenção explica melhor a dinâmica societária em função dos desenvolvimentos da Teoria dos Custos de Transação (TCT) porque possui o seu fundamento na necessidade, em última análise, da preservação das instâncias internas de resolução de disputas que garantem o funcionamento da hierarquia e, por assim dizer, do seu modo de governança (é mais adaptada a esse modo de governança). No Brasil, existem correntes doutrinárias que associam a business judgment rule ao disposto no artigo 159, §6º, da lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), que estabelece a exclusão da responsabilidade dos administradores que agem de boa-fé e no interesse da companhia. Outros há, como Marcelo Vieira Von Adamek, que compreendem não se tratar esse dispositivo de hipótese de exclusão de responsabilidade, mas algo semelhante a um perdão judicial8. Assim, o dispositivo propugna uma análise posterior, depois de verificadas a ilicitude e a culpabilidade do agente, a fim de afastar o dever de indenizar. "A exclusão, portanto, ocorre a posteriori: todos os elementos do suporte fático são preenchidos, dá-se a incidência da regra e surge o dever de indenizar, mas, por intervenção do juiz, o administrador é isento do dever de reparar o dano"9. Diferentemente, Renato Ventura Ribeiro compreende estar a business judgment rule consagrada no próprio caput do artigo 158, da lei 6.404/76, quando a lei afasta a responsabilidade dos administradores em relação aos atos regulares de gestão, desde que os deveres legais e estatutários tenham sido observados10. Por outro lado, o disposto no §6º, do artigo 159, da lei 6.404/76, tampouco traduz fielmente o que seria a business judgment rule, mas, antes, limita-se a trazer à lei brasileira alguns de seus elementos. Ao permitir que seja afastada, pelo julgador, a responsabilidade dos administradores de boa-fé e que ajam no melhor interesse da companhia, a norma gera uma margem de discricionariedade ao juiz pela qual ele poderá realizar um juízo semelhante ao que ocorre na aplicação da business judgment rule. Não se trata, portanto, de uma verdadeira positivação do mecanismo, mas da incorporação de alguns de seus pressupostos. Somado ao caput do artigo 158 da Lei das SA, como uma abertura por meio da qual a rule pode ser aplicada, desde que conformada ao regime de responsabilidade civil dos administradores Sociedades Anônimas. Reforça tal interpretação a edição da lei 13.874/2019, aplicável ao Direito Empresarial, que estabelece como um de seus princípios norteadores a intervenção mínima do Estado sobre o exercício das atividades econômicas, concorde o inciso III, do seu artigo 2º. A CVM vem, já há alguns anos, reconhecendo e aplicando a business judgment rule (prevista no art. 153, da Lei das SA), compreendendo-a como uma regra que protege os administradores no exercício de sua função quando observa os deveres fiduciários a que estão submetidos, em especial o dever de diligência. As conclusões são extraídas dos seguintes julgados: (PAS) nº RJ2005/1443, de 10.05.2006; (PAS) nº 14/05, julgado em 05.05.2009; (PAS) nº 18/08, julgado em 14.12.2010; (PAS) nº RJ2008/9574, julgado em 27.11. 2012; (PAS) nº RJ2014/5099, julgado em 12.04.2016; (PAS) CVM RJ2016/7197, julgado em 19.112019. Merece destaque o PAS CVM nº RJ2016/7197, uma vez que nesse, o relator não analisou o mérito da decisão propriamente, deu enfoque ao processo que conduziu à decisão, especificamente perquirindo se a decisão foi informada, refletida e desinteressada. É um caso no qual a aplicação do mecanismo ocorreu de fato, já indicando um avanço no tratamento do tema no âmbito da CVM. No âmbito do poder judiciário, apenas o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) faz alguma menção à regra. Na apelação cível nº 1002546-43.2015.8.26.0565, de relatoria da Desembargadora Grava Brazil (julgada em 22.10.2019)11, a regra é utilizada em um conflito havido entre a sócia minoritária e a majoritária (controladora), de tal forma que não se trata de um caso de responsabilidade de administradores, mas de responsabilização da acionista controladora. A apelação cível de nº 1002549-61.2016.8.26.0565, da mesma relatoria, julgada no mesmo dia, versa sobre caso semelhante, sendo idêntica a fundamentação e, por conseguinte, os equívocos apontados para o caso anterior[12]. Diferentemente do que ocorre na Comissão de Valores Mobiliários, o tratamento da matéria no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo (e que pode influenciar outros Tribunais brasileiros futuramente) ainda está longe de alcançar os efeitos esperados para a governança corporativa. A inconsistência na aplicação da regra no Brasil é devida à falta de precisão normativa, somada a uma diferença na cultura jurídica existente entre nós e os EUA. Demos destaque à aparente tensão existente entre a regra e os fundamentos da responsabilidade civil porque pensamos que isso subjaz em nossa cultura, o que dificulta movimentos legislativos e jurisprudenciais. *Fabrício de Souza Oliveira é professor de Direito Empresarial na UFJF. Doutor em Ciências Jurídico-empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. **George Schneider Moura é bacharel em Direito pela UFJF. __________ 1 TEUBNER, Gunther; CASTRONOVOX, Carlo. Piercing the Contractual Veil? The Social Responsibility of Contractual Networks. 2006. Disponível aqui. Acesso em 19.1.2021. 2 WILLIAMSON, Oliver E. The mechanisms of governance. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 98. 3 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 15. 4 AMERICAN BAR ASSOCIATION. Model Business Corporation Act. Atualizado em 2016. Disponível aqui. Acesso em: 19 de Setembro de 2020. 5 PONTA, Adina. The Business Judgment Rule - Approach and Application. Juridical Tribune, Bucharest Academy of Economic Studies, Law Departament, Vol. 5, pag. 22-44, December, 2015. 6 BAINBRIDGE, Stephen. The Business Judgment Rule as Abstention Doctrine. 2004. UCLA School of Law. Disponível aqui. Acessado em 12 de Set. 2020. 7 BAINBRIDGE, Stephen. op. cit. 8 VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Responsabilidade Civil dos Administradores das S/A e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009. 9 VON ADAMEK, Marcelo Vieira. op. cit. 10 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de Diligência dos Administradores de Sociedades. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 11 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1002546-43.2015.8.26.0565. Relatora Des. Grava Brazil. Julgado em 22.10.2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 de Set. de 2020. 12 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1002549-61.2016.8.26.0565. Relatora Des. Grava Brazil. Julgado em 22.10.2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 de Set. de 2020. __________ Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).