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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri, Igor Mascarenhas e Nelson Rosenvald
1. Introdução: O presente artigo possui como objetivo analisar a recente decisão do STJ no Recurso Especial 2.072.206/SP, que estabeleceu a obrigatoriedade do pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais nos casos em que há rejeição do pedido de IDPJ - Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. A mudança jurisprudencial, que foi consolidada pela Terceira turma do STJ, representa um afastamento do entendimento anterior de que não cabiam honorários advocatícios sucumbenciais em incidentes processuais, salvo em exceções específicas. O Tribunal, ao reformar esse entendimento, defendeu que a parte que formula o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve arcar com os honorários sucumbenciais quando seu pedido for rejeitado, sob o argumento de que a resistência e julgamento de mérito geram a necessidade de pagamento dos honorários, conforme o princípio da sucumbência. Este novo posicionamento exige uma análise crítica dos fundamentos utilizados pela Corte, bem como das implicações dessa mudança para a segurança jurídica e a isonomia processual, tópicos que serão analisados no decorrer deste artigo. 2. O que estava em discussão? A questão central debatida pelo STJ consistia em definir-se, ao negar um pedido de desconsideração da personalidade jurídica, o juiz deve condenar a parte requerente ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ao advogado da parte chamada ao processo. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica permite que sócios ou administradores sejam responsabilizados diretamente pelas obrigações da empresa quando há abuso da personalidade jurídica. No entanto, quando o pedido de desconsideração é rejeitado, mantém-se a distinção patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios. 3. A decisão do STJ Por maioria, a Terceira turma do STJ decidiu que, quando um pedido de desconsideração da personalidade jurídica é rejeitado, a parte que formulou o pedido deve pagar honorários sucumbenciais ao advogado da parte que se defendeu. Neste sentido, os principais argumentos utilizados pela Corte foram: (i) o incidente de desconsideração da personalidade jurídica possui natureza de demanda incidental, com partes definidas, causa de pedir e pedido específico; (ii) se há resistência e julgamento de mérito deve haver condenação em honorários, conforme o princípio da sucumbência; e (iii) o advogado da parte que se defendeu teve trabalho efetivo no processo, justificando sua remuneração nos termos do art. 85 do CPC. Desta forma, como trataremos no tópico seguinte, este entendimento contraria precedentes anteriores da própria terceira turma1, que já havia decidido em outras oportunidades que não cabem honorários em IDPJ, independentemente do resultado, sob os argumentos de que: (i) o IDPJ não é um processo autônomo, mas um procedimento dentro de outro processo, sem uma sentença que extingue a ação, mas apenas uma decisão interlocutória, (ii) a desconsideração não afeta o mérito da causa principal, mas apenas decide se os bens dos sócios podem ser atingidos. 4. O precedente do REsp 1.925.959/SP A decisão se baseou, em parte, no julgamento do REsp 1.925.959/SP, de 15/9/23, de relatoria do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino no qual o STJ modificou seu entendimento anterior e passou a admitir a condenação em honorários apenas quando o pedido de desconsideração for rejeitado. Em resumo, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino justificou seu voto nas seguintes premissas: (i) natureza do IDP: O ministro reconheceu que, embora o IDPJ tenha natureza de incidente, ele possui características de uma demanda autônoma, com partes, causa de pedir e pedidos próprios: (ii) responsabilidade pela litigância: ao indeferir o pedido de desconsideração, a parte que deu causa ao incidente deve arcar com os honorários sucumbenciais, pois foi ela quem provocou a inclusão indevida de outra parte no polo passivo da lide; e (iii) princípio da causalidade: o ministro aplicou o princípio da causalidade, segundo o qual a parte que deu causa ao incidente deve ser responsabilizada pelos honorários advocatícios, independentemente de o incidente ser autônomo ou incidental. No entanto, ponto extremamente importante, e que deverá ser objeto de análise do STJ, é o fato de a decisão não ter abordado a situação inversa - ou seja, quando a desconsideração é aceita e o sócio passa a responder pela dívida. 5. Críticas e inconsistências da decisão Realizada a exposição do tema com a sua devida contextualização, o presente tópico possui como objetivo realizar uma abordagem crítica sobre esta mudança de entendimento do STJ e seus principais efeitos no mercado, no que tange a incidência de honorários sucumbenciais no indeferimento do IDPJ. 5.1 Impacto no custo de crédito no Brasil É imprescindível analisarmos esta mudança de paradigma sob o viés econômico, dado que o aumento dos custos com honorários de sucumbência nos processos de IDPJ pode afetar significativamente o custo de crédito no Brasil. Quando a recuperação de valores torna-se mais cara e incerta devido a custos judiciais elevados, credores privados tendem a precificar esse risco adicional nas taxas de juros. Portanto, este novo entendimento pode resultar em um aumento das taxas de juros para consumidores e empresas, já que o prêmio de risco embutido no custo do crédito reflete as dificuldades e incertezas na recuperação de dívidas. Logo, o aumento das taxas de juros pode afetar diretamente o acesso a financiamentos mais baratos, prejudicando o dinamismo econômico e reduzindo o potencial de investimento de empresas e o consumo das famílias. 5.2 Redução da margem e encarecimento do processo de recuperação de créditos Ao utilizar o IDPJ para tentar recuperar um crédito, os credores esperam reaver o valor devido acrescido de correções e juros. No entanto, se forem condenados ao pagamento de honorários de sucumbência, uma parte significativa do valor recuperado será destinada ao pagamento desses honorários, reduzindo a margem de recuperação. Logo, se uma empresa tenta recuperar R$ 10 milhões através do IDPJ, mas é condenada a pagar 20% desse valor em honorários, ela terá que desembolsar R$ 2 milhões, reduzindo significativamente o valor líquido recuperado. Assim sendo, este novo entendimento além de reduzir a margem de recuperação, encarece significativamente o processo de recuperação de crédito, já que os credores (inclusive a Fazenda Pública) precisarão provisionar valores consideráveis para cobrir potenciais condenações, podendo impactar na redução de processos de recuperação de créditos no país.  5.3 Aumento nas ações da Fazenda Pública e impacto fiscal No âmbito tributário, as ações de IDPJ envolvendo a Fazenda Pública podem resultar em custos significativos com honorários, isto porque, esta utiliza com frequência o instituto de desconsideração de pessoa jurídica para a responsabilização de sócios, administradores ou outras empresas do grupo econômico por dívidas tributárias de pessoas jurídicas que, por si só, não possuem bens suficientes para saldar seus débitos com o fisco. Desta forma, quando a Fazenda, em processos de IDPJ, perde a ação, ela poderá ser condenada ao pagamento de honorários sucumbenciais. Vale lembrar que, os honorários são calculados com base em um percentual (geralmente até 20%) sobre o valor da causa. Logo, em processos tributários de alto valor, este custo pode ser expressivo, representando, portanto, um gasto adicional que precisa ser coberto pelo orçamento público, impactando diretamente as contas fiscais. Nesta linha, outro possível efeito da decisão em análise é a possível redução na arrecadação tributária, posto que a possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais pode desestimular a Fazenda a ingressar com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, principalmente em casos de menor valor ou com maior grau de incerteza jurídica, resultando em uma menor recuperação de créditos tributários. 5.4 Não observância da isonomia processual Ponto que merece atenção é a não observância da isonomia processual, que exige que as partes envolvidas em um processo tenham os mesmos direitos, inclusive no que se refere ao pagamento de honorários sucumbenciais. Neste contexto, é importante que, quando o pedido de desconsideração da personalidade jurídica for rejeitado, a parte que se defendeu tenha direito ao pagamento de honorários, mas, ao mesmo tempo, o advogado do credor também deve ser contemplado com o direito a honorários sucumbenciais, conforme o trabalho efetivo desenvolvido ao longo do processo. 6. A importância da modulação de efeitos da nova jurisprudência Em face da recente mudança jurisprudencial, é recomendável que o STJ adote a modulação dos efeitos da nova interpretação, de modo a evitar um cenário de insegurança jurídica e garantindo uma maior previsibilidade. Para tanto, seria necessário fixar um termo a quo (data de início) para a aplicação do novo entendimento. Nesta toada, embora o direito à jurisprudência não seja absoluto, a segurança jurídica exige que decisões processuais não possam retroagir de maneira inesperada. Consequentemente, seria adequado que o STJ modulasse os efeitos da decisão via Recurso Especial Repetitivo ou Incidente de Assunção de Competência, a fim de delimitar a aplicabilidade dessa nova linha jurisprudencial. Um exemplo claro de modulação de efeitos no STJ pode ser observado no REsp, 1.641.307/SP, em que a Corte estabeleceu um marco temporal para a aplicação de sua decisão sobre a alteração do critério de contagem do prazo para apuração de honorários advocatícios em ações de revisão de cláusulas contratuais, tendo o Tribunal fixado que a nova interpretação valeria apenas para os processos ajuizados após a dará da decisão, evitando que a mudança causasse um impacto retroativo em ações em andamento. 7. Definição de critérios para a base de cálculo dos honorários Outro ponto que merece atenção dado a mudança do entendimento jurisprudencial é a necessidade de definição de uma base de cálculo clara para os honorários sucumbenciais, especialmente em situações como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, onde o valor da causa pode ser impreciso ou não refletir adequadamente o valor real em disputa. O STJ, em decisões anteriores, tem adotado diferentes critérios para a base de cálculo dos honorários.2 8. Considerações finais A recente decisão do STJ no REsp 2.072.206/SP representa uma mudança importante na jurisprudência sobre a incidência de honorários advocatícios sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, trazendo não só impactos jurídicos mas também econômicos. No que tange aos impactos jurídicos, entendemos que a aplicação desse novo entendimento deve ser modulada, a fim de evitar efeitos retroativos que possam gerar insegurança jurídica. Além disso, é fundamental que o STJ defina critérios claros para a base de cálculo dos honorários sucumbenciais e garanta a isonomia processual, conferindo o mesmo direito ao pagamento de honorários ao advogado do credor. Somente com tais medidas será possível assegurar uma interpretação justa, equilibrada e coerente com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia. Por sua vez, a mudança de paradigma sobre a aplicação de honorários de sucumbência não apenas encarecem os processos envolvendo incidentes de desconsideração da personalidade jurídica, mas também impactam o custo de crédito e a saúde fiscal da Fazenda. 1 Há julgados desta Corte, inclusive já na vigência do CPC/15, afirmando a impossibilidade de condenação em honorários advocatícios nos incidentes processuais, ressalvadas situações excepcionais. Nesse sentido: (i) AgInt nos EDcl no REsp 2.017.344/SP, rel. ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta turma, julgado em 20/3/23, DJe de 23/3/23; (ii) AgInt nos EDcl no AREsp 2.193.642/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, julgado em 20/3/23, DJe de 22/3/23; (iii) AgInt no REsp 2.013.164/PR, rel. ministro Moura Ribeiro, Terceira turma, julgado em 9/11/22, DJe de 11/11/22, e (iv) AgInt no REsp 1.933.606/SP, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira turma, julgado em 21/2/22, DJe de 24/2/22. 2 REsp 1.267.942/SP (2015): A base de cálculo dos honorários sucumbenciais foi fixada com base no "valor da causa", reconhecendo que esse valor, embora não reflete diretamente o valor de mercado da demanda, é o critério inicial mais adequado.REsp 1.112.031/SP (2011): A Corte definiu que, em litígios envolvendo contratos de adesão, os honorários seriam calculados com base no "valor do crédito discutido" e não no "valor do contrato", buscando refletir o montante efetivamente em disputa.
A pergunta que se faz no título deste artigo diz respeito a um problema enfrentado pela Corte Especial do STJ, no dia 13 de fevereiro deste ano, ao apreciar o REsp 2.072.206/SP: a Corte Superior firmou entendimento no sentido de que o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo. No entanto, com esse entendimento, o STJ faz o pêndulo pender para o lado ocupado por sócios quando seus interesses estão em conflito com credores da sociedade. Para entendermos melhor o que está em jogo nesse dilema técnico, apresentaremos o problema contextualizado pela teoria agencialista. Três problemas genéricos de agência decorrem da forma em que é estruturada as sociedades. Aqui, temos em mira a sociedade isolada, já que os problemas de agência ganham maior complexidade nos grupos societários, o que foge ao escopo deste texto. Voltando à perspectiva inicial, a da sociedade isolada, temos que o primeiro gênero de problemas envolve o conflito entre os sócios e os administradores. Aqui os sócios são os principais e os gestores são os agentes (interesses dos titulares de ações ou quotas versus interesses daqueles que podem dispor sobre os bens sociais). Esse problema reside em assegurar que os gestores respondam aos interesses dos sócios, em vez de perseguirem os seus próprios interesses pessoais.1 O segundo gênero de problemas de agência envolve o conflito entre os sócios que detêm o controle societário e aqueles sócios não controladores. Aqui os sócios não-controladores podem ser considerados como os principais e os controladores como agentes (aqueles que conduzem direta ou indiretamente os negócios sociais), e a dificuldade reside em assegurar que os primeiros não sejam expropriados por esses últimos. Embora esse problema seja mais notório nas tensões entre sócios majoritários e minoritários, aparece sempre que um subconjunto de sócios controla as decisões que afetam a classe como um todo. O terceiro gênero de problemas de agência envolve o conflito entre a própria sociedade - incluindo, em particular, os seus sócios - e as outras partes com quem a sociedade estabelece relações, tais como os credores, fornecedores, empregados e clientes. Aqui a dificuldade reside em assegurar que a sociedade (ou os seus sócios), como agente, não se comporte de forma oportunista em relação a esses vários outros interesses - como, por exemplo, expropriando credores, explorando trabalhadores, ou induzindo em erro os consumidores.2 Quando perspectivamos o Direito do ponto de vista histórico, percebemos que suas mutações funcionam em variados momentos em sentidos diferentes: às vezes protegendo um determinado grupo em disputa e desfavorecendo o outro. É assim também quando analisamos esse movimento diante dos três gêneros de problemas de agência, tal qual um pêndulo de Foucault: ora o Direito enfatiza a proteção de sócios em detrimento dos interesses dos gestores, ora dos minoritários e preferencialistas em detrimento dos interesses dos controladores e ora da sociedade ou de seus sócios em detrimento dos interesses dos credores sociais ou em sentidos reversos para as três hipóteses. A metáfora serve bem para pontuar esses movimentos históricos. Foi assim quando o Direito passou a admitir a penhora das quotas de sócios em sociedades limitadas. A par de discussões envolvendo a natureza desse tipo societário - se de pessoas, de capital ou híbrido, mais alinhadas à investigação própria da dogmática societarista, no plano pragmático, o pêndulo passou a pender para o lado do grupo dos credores dos sócios, deixando de proteger os interesses dos partícipes do contrato social (os sócios). E, agora, diante do dilema enfrentado pela jurisprudência do STJ: fixar ou não honorários sucumbenciais em caso de improcedência do IDPJ, põe-se a mesma questão: para qual lado penderá o pêndulo do Direito? Protegerá interesses de sócios ou de credores sociais? O STJ escolheu o lado vencedor neste jogo: os sócios e administradores sociais. Se a tese vencedora fosse a que nega o cabimento da condenação em honorários advocatícios em IDPJ, o pêndulo teria pendido para o lado dos credores da sociedade. Ilustra esse movimento o acórdão proferido no REsp 1845536/SC, publicado em 9/6/20, segundo o qual "[n]ão é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente processual, ressalvados os casos excepcionais. Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais decorre da ausência de previsão legal excepcional, sendo irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente." Ou a decisão monocrática proferida pelo min. Marco Buzzi, nos autos do REsp 2054280/SP publicado em 27/4/23: "[c]omo se vê, o acórdão recorrido destoa do entendimento desta Corte acerca da matéria, segundo o qual, em razão da ausência de previsão normativa, não é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica." Por outro lado, como a tese vencedora se fundamenta na dogmática processualista afirmando que apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido, o atual entendimento do STJ acaba por beneficiar os interesses de sócios e administradores de sociedades. Ao lado das discussões que envolvem a dogmática do Direito Processual, queremos aqui abordar o plano das consequências da adoção de uma ou outra tese jurídica (o plano pragmático). Há sem dúvidas benefícios sociais produzidos pela separação patrimonial possibilitada, principalmente, pela ocorrência no Direito da regra de limitação de responsabilidade dos sócios - a depender do tipo societário contratado - e pela autonomia patrimonial. Destaca-se nesse sentido a economia em custos de transação oriundos de incertezas ou riscos a que estariam submetidos os investidores caso não houvesse tal segregação de patrimônios. Entretanto, essa separação entre os patrimônios sociais e os individuais dos sócios não deve ser absoluta, como ocorre nos casos em que a própria personalidade é instrumento de abuso, fazendo-se incidir as regras sobre a desconsideração da personalidade jurídica, a qual possibilita que os sócios ou os administradores sociais respondam por obrigações da pessoa jurídica. Normas jurídicas - sejam elas legais ou jurisprudenciais - que restrinjam a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como é o caso da lei de liberdade econômica, que alterou o texto legal previsto no art. 50 do CC, produzem o efeito de proteger com maior vigor os interesses dos sócios quando estão em disputa com os credores sociais. Da mesma forma, uma norma jurisprudencial que torne mais custoso o manejo do IDPJ, impondo a condenação em honorários de sucumbência à parte vencida no incidente, nos casos de sua improcedência, acolhe os interesses de sócios e desacolhe os interesses dos credores sociais, quando ditos interesses estão em disputa (primeira solução). Caso a norma seja construída em sentido oposto, aliviará de custos o manejo do incidente, privilegiando, no jogo, os interesses dos credores da sociedade (segunda solução). Como se vê, aplica-se a metáfora do pêndulo. Essa lógica deve-se ao raciocínio econômico que bem explica o comportamento dos sujeitos implicados na disputa: se há risco de condenação em verbas sucumbenciais, caso o apresentante do incidente seja derrotado, seu comportamento é refreado diante dos custos oriundos dos riscos e incertezas presentes no modelo processual. Caso, por outro lado, não haja esse risco (havendo somente o risco derivado da demanda principal), os custos transacionais suportados pelo credor seriam reduzidos. Assim, a solução adotada pelo STJ acaba por privilegiar o grupo dos sócios quando estão em disputa com os credores sociais, já que os credores suportam custos econômicos elevados. A solução alternativa (afastada agora pela Corte Especial do STJ), no imediatismo, favoreceria o grupo dos credores da sociedade, vez que haveria incentivos para o questionamento acerca do abuso da personalidade jurídica por parte dos credores (os custos econômicos envolvidos seriam reduzidos). Entretanto, os efeitos decorrentes das diferentes soluções não repercutem unicamente na esfera de interesses das partes do processo principal e do correlato incidente. Há repercussões para a sociedade civil com impacto nos chamados custos sociais oriundos das externalidades (aqueles percebidos pela coletividade e que se contrastam com os custos privados, internos aos agentes econômicos) decorrentes da exploração de atividades econômicas. Em relação aos credores voluntários - aqueles que deliberadamente firmam relações jurídicas com o devedor pessoa jurídica - há, na solução atual adotada pelo STJ, prejuízo no sentido de terem que suportar maior risco e, portanto, maior custo de transação, nos casos em que pretendam questionar o abuso da personalidade jurídica. O Direito, portanto, funciona refreando o seu comportamento e protegendo, por consequência, com maior intensidade, o grupo dos sócios. Entretanto, a situação é agravada, nessa hipótese, em relação aos credores involuntários que não decidem estabelecer relações jurídicas com o devedor. São os casos recorrentes de vítimas de danos provocados por pessoas jurídicas, que, não raro, diante do abuso de personalidade jurídica, do devedor se socorrem na desconsideração da personalidade jurídica visando a responsabilização de sócios e administradores. Há nesses casos relevantes custos suportados por tais credores diante de uma ação de responsabilização, que poderão ser acrescidos de custos adicionais advindos do risco em serem condenados no pagamento de honorários advocatícios para o advogado da parte vencedora caso o incidente seja julgado improcedente. Esse cenário, do ponto de vista das consequências sociais, influencia no cálculo dos agentes econômicos quando perturba (dificulta) a efetividade dos mecanismos de reparação e, por consequência, desestimula economicamente que tais agentes econômicos adotem medidas preventivas visando a internalização de custos sociais. Nesse jogo, estão em disputa interesses de sócios de um lado e interesses de credores sociais de outro. O pêndulo se moveu - para o lado dos interesses de sócios e administradores sociais. Mas as consequências são mais amplas e atingem outros interesses para além dos interesses concretos de credores sociais: a sociedade civil arcará com os custos (as externalidades). 1 ARMOUR, John; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Agency problems, legal strategies, and enforcement. 2009. 2 ARMOUR, John; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Agency problems, legal strategies, and enforcement. 2009.
Quem no passado se voltasse para o futuro, procurando imaginar o que a evolução das ciências biológicas e médicas iria provocar no homem e na sociedade dos nossos dias, dificilmente anteciparia as transformações que vieram a ocorrer e, particularmente, imaginaria a possibilidade de existirem pretensões pela concessão indevida, pelo nascimento indevido e, até mesmo, pela continuidade de uma vida indevida, leia-se em sofrimento eternizado pelas tecnociências. Diante de casos de pacientes com doenças graves e terminais, os cenários de tensão são dilatados e a doença grave que acomete uma pessoa pode mobilizar impactos nos membros que integram todo o grupo familiar. A angústia envolvida ao cuidar de alguém com doença avançada promove um nível de estresse alto, que se faz pensar nos familiares próximos como pacientes de segunda ordem. Os cenários são agravados quando o paciente é menor de 16 anos de idade e, por imposição legal, delega as decisões tomadas por representação de seus pais/responsáveis legais ou, quando maiores de 16 anos, por assistência e, em inúmeros casos, essas decisões não atendem ao melhor interesse da criança, eclodindo em situações de obstinação terapêutica, ou tratamento fútil, conforme a doutrina moderna denomina de distanásia. Nessas situações, por vezes, emergem divergências entre a equipe de saúde e os pais sobre o plano terapêutico do paciente infante, por vezes arraigados de valores próprios desses agentes, esvaziando o bem-estar desse infante, objetificando a criança ao sofrimento biotecnológico, sem qualquer previsibilidade de cura dela, ferindo sua dignidade, autonomia e interesse, desconsiderando a criança como sujeito de direitos. Hodiernamente, existem casos aclamados nas mídias mundiais, nitidamente reconhecidos pela equipe médica em processos de distanásia e a insistência dos responsáveis legais na manutenção dos suportes artificiais. Recentemente, na Inglaterra, ocorreu o debate sobre o caso Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, que teve por decisão judicial, ocorrida em dezembro de 2023, o desligamento dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. Esse caso em destaque pavimentou as reflexões pela primazia do melhor interesse da criança e do adolescente, da dignidade da pessoa humana, a participação da criança na tomada de decisão, pela implementação de princípios bioéticos e da possibilidade da limitação do poder familiar nos cenários de abuso do poder como representante da infante nos casos de doenças graves e de terminalidade. A finitude humana, apesar de sua obviedade, ao menos por hora - apesar do intenso avanço biotecnológico - é tabu e, nos cenários de crianças, é considerada socialmente uma afronta à ordem natural do viver, sendo repelidos os seus debates. Nesses cenários belicosos, surge a questão, a autoridade parental pode ser limitada quanto não atender ao melhor interesse da criança em fim de vida? Apesar da incipiência do tema no Judiciário brasileiro, o objeto não é novo e já foi enfrentado pelas Cortes inglesas e, no caso, apontamos a decisão judicial proferida em um processo no qual existe uma discordância da conduta terapêutica entendida como adequada e proporcional ao caso a autoridade parental dos pais. Diante da gravidade do caso1, emergiu divergência entre a equipe de saúde e os pais sobre o plano terapêutico, já que o quadro de IG era gravíssimo, irreversível, tendo a criança entrado em sofrimento atroz, e sobre severos procedimentos invasivos e desproporcionais, violando a dignidade humana e o melhor interesse da criança, o Hospital Universitário de Nottingham NHS Foundation Trust (TRUST) judicializou a questão, o que se passa a analisar. Segundo decisão proferida no dia 13/11/23 (decisão proferida pelo Senhor da Justiça Peel, do Alto Tribunal de Justiça Divisão Familiar. Caso no: FD23P00452, Londres, Inglaterra), o hospital informou que IG estava sob inúmeros procedimentos invasivos (incluindo ventilação mecânica, oxigenoterapia de alto fluxo, acesso a cateter) e apresentava uma deterioração a ponto de tal tratamento ser necessário somente para sustentar a vida. IG teve piora do quadro geral, tendo sido implementados procedimentos invasivos, e tendo ocorrido mudança na causa de pedir da ação, com solicitação de autorização para remover os cuidados intensivos e segundo achados médicos "não há perspectiva de recuperação, a sua esperança de vida é muito limitada, os múltiplos tratamentos que recebe estão a causar-lhe um elevado nível de dor e sofrimento, e não há qualidade de vida discernível ou interação da IG com o mundo ao redor dela."2, com severa oposição dos pais, apesar da gravidade do caso. No caso concreto, dos argumentos ventilados pelo juiz inglês é possível comparar com inúmeros pontos debatidos no presente trabalho, dentre a responsabilidade parental e seus limites; (ii) o sofrimento familiar afeta diretamente o desejo dos pais nas situações de doença grave ou ameaçadora da vida; (iii) o sofrimento da criança é um ponto central da decisão e as decisões sobre o corpo no exercício da autoridade parental; (iv) e a proteção do melhor interesse da criança. Cabe destacar, já nas primeiras decisões proferidas (decisão proferida em 2 novembro de 2023), que o exercício da autoridade parental não pode ferir o melhor interesse da criança, e que essa autoridade não é irrestrita.3 Princípio da proteção integral e do superior interesse das crianças Segundo Cruz (2022), até 1988 não é possível estabelecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos no Brasil, refletindo, portanto, na ausência de um reconhecimento de seus mais simples direitos e proteções. Elisa Cruz (2022) destaca que, com o surgimento da Constituição de 1988, se insere um marco normativo que alterou de forma substancial a realidade jurídico-normativa até então estabelecida. O reflexo dos elementos introduzidos no texto constitucional sofreu enorme influência dos acontecimentos ocorridos na ONU entre 1977/1989, o que se tornaria a Convenção sobre Direitos da Criança, que foi ratificada pelo Brasil em 1990 pelo decreto 99.710/90. Sendo assim, a Constituição de 1988 introduziu no cenário nacional uma ordem que passou a privilegiar as situações jurídicas existenciais, ofertando proteção às situações de vulnerabilidade, "conferindo tutela especial e prioritária às crianças, adolescentes e pessoas idosas, dentre outras considerados em situação de vulnerabilidade" (ELER, 2020, p. 30), baseados em um modelo de direitos humanos, ao qual o Estado, alicerçado nas obrigações de respeito, proteção e realização, alça as crianças ao patamar de sujeitos de direito (art. 227). A adoção na Constituição da denominada Doutrina da Proteção Integral, lastreado no conceito de que as crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos portadores de direitos e não apenas objetos dependentes de seus pais ou seu responsável, ou de arbitrariedade de algumas autoridades (OLIVEIRA, 2005), tornando-se referencial que confere substrato ao Direito da Criança e do Adolescente no Brasil (ELER, 2020). À vista disso, pode-se dizer que o conceito de Proteção Integral alcança os seus beneficiários em seus inúmeros planos de necessidade, e, especial personalidade, seja por meio de assistência material, moral, jurídica e espiritual4. Nessa linha, a Constituição Federal brasileira materializa o Direito da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), consolidando os direitos humanos fundamentais, individuais, sociais e metaindividuais (TAVARES, 2001). Sendo assim, a exegese dos direitos da personalidade deve ser analisada sob ângulo não meramente abstrato e fechado, mas, sim, norteado pela cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CRFB5). Não bastasse isso, a Convenção sobre o Direito da Criança estabeleceu o status da criança como titular de direitos humanos e, nisso, não destoa dos adultos, tendo sido ratificada pelo Brasil em 1990 com status supralegal e sobreposta ao ECA. Convém mencionar que, no âmbito das relações familiares, existe relevante oxigenação sobre o instituto jurídico do poder familiar. Outrora, o conceito de autoridade (poder familiar), é compreendido como conjuntos de poderes e deveres que os pais exercem em relação às crianças, adolescentes ou incapazes, a quem a lei denominou a lei incapacidade civil, delegando aos genitores o dever de assistência ou representação para os atos da vida civil (assinatura de contratos de colégios, planos de saúde, aquisição de medicamentos, ações judiciais etc.) (WANQUIM, 2023.) Da autoridade parental nos cenários de saúde O Poder Familiar encontra assento em arcabouço normativo civil-constitucional, é o que se pretende demonstrar. De forma objetiva e direta, o conceito de "Poder Familiar" encontra-se definido no art. 1.630 e seguintes do Código Cível e, neste trabalho, denominado "Autoridade Parental", por ser conceito moderno das relações de direitos, conforme ensinam Rosenvald e Braga Netto (2020)6. No mesmo sentido, Gustavo Tepedino observa que "a utilização dogmática de uma estrutura caracteriza pelo binômio do direito-dever, típica de situações patrimoniais, apresenta-se como incompatível com a função promocional do poder conferido aos pais" (TEPEDINO, 2006, p. 182-183). Diante disso, a doutrina tem amadurecido e criticado o grande hiato na construção do conceito de menoridade e incapacidade construído em um critério meramente etário, conforme refletido nos arts. 3º e 4º do Código Civil, nos quais os menores são classificados como incapazes, tendo mera variação estabelecida em um grau de inabilidade para vida civil conforme idade, que na verdade deveria ser focar melhor na capacidade de discernimento desses agentes, recebendo severas e duras críticas da doutrina modera, devendo sofrer uma forte reforma nos seus critérios de fixação (BROCHADO; RODRIGUES, 2021, p. 23). Não bastasse isso, o direito à vida adquire nova leitura diante da cláusula geral de tutela da dignidade humana, ou seja, a vida que se protege na Constituição não é a vida meramente biológica, mas sim vida digna, o que permite a discussão acerca do que seria vida digna para o caso em debate (OLIVEIRA et al., 2022, p. 189). O uso dessa prerrogativa não é ilimitado e irrestrito, merecendo limites alicerçados na proteção integral e no melhor interesse do menor. O caso Indy Gardy deixa os limites éticos no investimento de terapias fúteis e que, no atual cenário mundial, não podem ser mais tolerados, mesmo por genitores imbuídos por sentimentos travestidos de proteção. A violação do poder-dever pode resultar em responsabilização por ato ilícito (art. 186, CC) ou abuso de direito (art. 187, CC), além da suspensão, destituição ou extinção do poder familiar (art. 1.635, 1.637 e 1.638, CC), bem como a responsabilização criminal por abandono (art. 133, 244 e 246, CP) (BRASIL, 1940). O uso irregular dessa autoridade nos cenários de saúde, em especial sobre o fim de vida de crianças, é um debate pouco enfrentado pela doutrina, e, por motivos óbvios, desperta acalorados debates no âmbito do Direito de Família brasileiro, mas é também um ponto controverso entre a doutrina e jurisprudência, desde que, é claro, haja ocorrência dos motivos ensejadores (DADALTO; GOZZO, 2022). Não se pode omitir que o abuso de direito no cenário de saúde foi recentemente enfrentado por Igor Mascarenhas (2023), sob o prisma da figura do savior sibling e a indignidade de concepção do filho cura e o abuso do direito. O autor7 aborda os limites da savior sibling e questiona a existência da necessidade se perquirir se o exercício da autonomia parental em contrariedade aos direitos da criança e de seus interesses.8 O propósito não é e nunca foi isolar os pais e responsáveis legais da tomada de decisões. Pelo contrário, o impulso central dos cuidados paliativos é o acolhimento, não apenas do paciente, mas também dos familiares que são diretamente impactados pela doença (DADALTO; GOZZO, 2021). No entanto, é imperativo assegurar que a autoridade parental seja exercida sempre com o foco no melhor interesse da criança e do adolescente, especialmente em contextos de vida limitada. 1 Distúrbios profundos do IG, incorporando aspectos metabólicos, neurológicos e cardiológicos: (i) Acidúria hidroxiglutárica combinada D-2, L-2, um distúrbio metabólico devastador que causa danos progressivos ao cérebro; (ii) Ventriculomegalia progressiva bilateral grave, na qual os ventrículos cerebrais estão aumentados devido ao acúmulo de líquido espinhal; (iii) Tetralogia de Fallot que afeta o fluxo sanguíneo normal através do coração 2 Op. Cit 3 "Com o coração pesado, cheguei à conclusão de que os encargos do tratamento invasivo superam os benefícios. Em suma, a dor significativa sentida por esta adorável menina não se justifica quando confrontada com um conjunto de condições incuráveis, uma vida muito curta, nenhuma perspectiva de recuperação e, na melhor das hipóteses, um envolvimento mínimo com o mundo que a rodeia. (tradução nossa). 4 Cabe dizer que o bem-estar espiritual está inserido nos contextos de dignidade desde 1924, quando a Convenção de Genebra, em seu art. 1 a criança deve ser colocada em condições de se desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente e replicado na Convenção dos Direitos das Crianças e art. 27. Os Estados Partes reconhecem o direito de todas as crianças a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. 5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. 6 Não faz sentido, em nossos dias, enxergar os filhos como sujeitos ao arbítrio dos pais. Autoridade parental, sim, mas não o arbítrio. Isso, contudo, não significa, em absoluto, esvaziar a autoridade dos pais - fundamental em tempos tão sem regras. Mas a palavra final será dos pais, à luz da cultura familiar e dentro dos contatos mínimos de razoabilidade. Porém, quanto maior for o discernimento das crianças e dos adolescentes, mais eles devem participar das soluções que lhe dizem respeito. (ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2020, p. 1.660). 7 Tema: A regulamentação pelo CFM - Conselho Federal de Medicina da figura do savior sibling: uma análise da (in) dignidade de concepção de filho cura sob a perspectiva civil-constitucional Curitiba, 2023. 8 A crítica à prática do savior sibling está relacionada ao exercício da autonomia em contrariedade aos direitos do nascituro/concebido. Como o poder de decisão, tradicionalmente, repousa nas mãos dos pais que, por vezes, serão também responsáveis por consentir em nome do filho doente, há um flagrante conflito de interesses. De forma análoga ao entendimento do CFM em relação à recusa terapêutica da mulher grávida, prevista na resolução CFM 2.232/19, há a necessidade de proteção de pessoa vulnerável cujos interesses não podem estar sujeitos ao exercício arbitrário da autonomia. Assim, insta questionar: é possível afirmar que a decisão dos pais, ao optarem de forma racional, livre, informada e consciente, valoriza os interesses do filho a ser concebido? (MASCARENHAS, 2023, p. 81). 9 AFFONSECA, Carolina de Araújo; DADALTO, Luciana. Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes pediátricos. Rev. Bioética, Brasília, v. 26, 1. mar./jan. 2018. 10 ALBURQUERQUE, Aline; ELER, Kalline. Conflitos Religiosos no contexto de Cuidados Paliativos. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Editora Foco. 2022. 11 COSTA, Ana Paula Correia de Albuquerque da; MASCARENHAS, Igor de Lucena. Do Arkangel de Black Mirror aos mecanismos de controle e rastreamento a serem utilizados em crianças: entre a ficção e realidade, é preciso refletir sobre violações a direitos da personalidade. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Vulnerabilidade e Novas Tecnologias. 1. ed. v. 1. 2022. 12 CUSTODIO, A. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Revista do Direito, 29, p. 22-43, 2008. Disponível aqui. Acesso em: 17 maio 2024. 13 CRUZ, Elisa Costa. Crianças Institucionalizadas em fase Terminal. Cuidados Paliativos Pediátricos. Aspectos Jurídicos. Coordenado por Luciana Dadalto et al. Editora Indaiatuba. Editora Foco, 2022. 14 DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2020. Editora Foco. 15 DADALTO, Luciana; AFFONSECA, Carolina de Araújo. Considerações médicas, éticas e jurídicas sobre decisões de fim de vida em pacientes Pediátricos. Rev. Bioética, Brasília, v. 26, 1, p. 12-21, jan, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2024. 16 DADALTO, Luciana. Morte digna para quem? O Direito fundamental de escolher seu próprio fim. Pensar, v. 24, 3, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 21 jan. 2024. 17 DADALTO, Luciana; GOZZO, Débora. Responsabilidade Civil dos pais na Obstinação terapêutica dos filhos menores. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado et al. (Coord.). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Editora Foco, 2021. 18 DADALTO, Luciana. Distanásia e responsabilidade civil médica. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2024. 19 DADALTO, Luciana. Eutanásia passiva x ortotanásia. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2024. 20 ELER, Kalline; ALBUQUERQUE, Aline. Conflitos Religiosos no Contexto de Cuidados Paliativos. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: Aspectos Jurídicos. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 17-38. 21 ELER, Kalline. Capacidade Jurídica da Criança e do Adolescente na Saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 22 GRAMPSTUP, Erick F.; TARTUCE, Fernanda. A responsabilidade civil pelo uso abusivo do poder familiar. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2024. 23 MASCARENHAS, Igor de Lucena. A regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina da Figura Do Savior Sibling: Uma Análise Da (In)Dignidade De Concepção De Filho Cura Sob A Perspectiva Civil-Constitucional. Tese (Doutorado) - Curitiba, 2023. 24 OLIVEIRA, Alexandro et al. Aspectos Jurídicos Dilemas Bioéticos e Jurídicos nos Cuidados Paliativos Pediátricos em Pacientes Com Doenças Neurodegenerativas. In. AFFONSECA, Carolina de Araújo et al. Bioética e Cuidados Paliativos Pediátricos. Indaiatuba: Editora Foco, 2022. 25 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência: Os Novos Domínios Científicos e seus Reflexos Jurídicos. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (org.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. 26 ROSENVALD, Nelson, BRAGA NETTO, Felipe. Comentários ao Código Civil. Salvador. Jus Podium, 2020. 27 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer. 2 ed. 218 p. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 28 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. 29 SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 30 SCHULMAN, Gustavo. A Capacidade Civil lida do Avesso: A construção do futuro e seus desafios Jurídicos. Trajetória do Direito Civil, estudos em homenagem à professora Heloísa Helena Barboza/coordenação por Gustavo Tepedino, Vitor Almeida. Editora Indaiatuba. Editora Foco, 2023. 31 TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro. Renovar, 2004. 32 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. A participação de crianças e adolescentes em ensaios clínicos: uma reflexão baseada nos princípios do melhor interesse, solidariedade e autonomia. In: TEPEDINO, Gustavo, Ana Carolon Brochado; ALMEIDA, Vitor (Orgs.). O Direito Civil entre sujeitos e a pessoa: Estudos em homenagem ao professor Stefano Rodatá. 1. ed. v.1. p. 191-215. Belo Horizonte: Fórum, 2016. 33 WANQUIM, Bruna Barbieri. A natureza jurídica da alienação parental como situação de risco a criança e adolescentes. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021. 34 WANQUIM, Bruna Barbieri. Cuidado Paliativos Pediátricos à luz do Direito da Criança e do Adolescente. In: DADALTO, Luciana (Org.). Cuidados Paliativos Pediátricos: Aspectos Jurídicos. Ed. Indaiatuba: Foco, 2023.
O desenvolvimento exponencial dos jogos on-line tem provocado não apenas transformações culturais e econômicas de alcance global, mas também desafios regulatórios que demandam uma análise técnica interdisciplinar para que se possa refinar a terminologia adotada em diferentes contextos jurídicos. Nesse panorama, a distinção conceitual entre os termos ingleses "game", "gamble" e "bet" assume papel central, em face das sutilezas semânticas que tais vocábulos apresentam e das repercussões normativas que suas definições carregam. Em português, a imprecisão terminológica muitas vezes resulta em interpretações ambíguas, o que dificulta a adequada aplicação do arcabouço legal, especialmente para a identificação de danos indenizáveis. Portanto, a compreensão acurada dessas expressões é fundamental para assegurar segurança jurídica e coerência regulatória. O termo inglês "game" designa, no contexto dos jogos eletrônicos, um conjunto de atividades de natureza lúdica que podem ser competitivas ou recreativas. O jogo de videogame, enquanto manifestação interativa e tecnológica em ambiente computacional, consiste em uma experiência virtual estruturada por regras pré-estabelecidas, desafios progressivos e objetivos específicos, muitas vezes combinando elementos narrativos, audiovisuais e mecânicas de interação dinâmica. Tal forma de entretenimento digital se desenvolve em plataformas distintas, notadamente consoles dedicados - dispositivos projetados exclusivamente para a execução otimizada de jogos -, além de tablets, smartphones e computadores pessoais, portáteis ou não, cuja adaptabilidade permite a configuração personalizada de recursos gráficos e de desempenho. Essa dualidade de plataformas amplia as possibilidades de imersão e acessibilidade, atendendo a diversos perfis de jogadores, desde os mais casuais até os dedicados entusiastas que buscam desempenho técnico elevado e experiências complexas. Diferentemente dos conceitos que envolvem apostas, os jogos eletrônicos não possuem, em sua essência, uma conexão direta com o risco financeiro. Trata-se, via de regra, da já citada diversão lúdica associada à experiência do entretenimento audiovisual imersivo. E, quanto aos "games", o ordenamento jurídico brasileiro avançou na regulamentação desse setor com a recente promulgação da lei 14.852/24, que institui o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos1. Essa legislação não apenas delimita o escopo do que se enquadra como jogo eletrônico, mas também se propõe a dissociar essa categoria de atividades ligadas a sorteios ou apostas. Tal separação normativa é crucial para fomentar o desenvolvimento da indústria de jogos, sem sujeitá-la a equívocos que a aproximem das regulações restritivas aplicáveis aos jogos de azar. Por outro lado, "gamble" refere-se a atividades nas quais o resultado é predominantemente condicionado ao acaso, como ocorre em cassinos, roletas ou outras modalidades tradicionalmente conhecidas como jogos de azar. Para detalhar melhor o conceito, pode-se dizer que a loteria de apostas de quota fixa consiste em uma modalidade de jogo em que o apostador conhece previamente o valor do prêmio em potencial, determinado com base nas probabilidades associadas ao evento apostado (odds), como ocorre em apostas esportivas. Diferentemente dos cassinos, nos quais o resultado depende quase exclusivamente do acaso em jogos como roletas e máquinas caça-níqueis - proibidas no país -, a loteria de quota fixa envolve uma avaliação de risco e probabilidade, o que a afasta da definição clássica de jogo de azar. No Brasil, aliás, o jogo de azar é tutelado de forma restritiva no âmbito penal, sendo tipificado como contravenção pela lei das contravenções penais (art. 50, §3º, decreto-lei 3.688/41)2. Sob o prisma civil, a exploração ilícita de jogos de azar não gera obrigação contratual reconhecida pelo ordenamento jurídico, conforme disposto no art. 814 do Código Civil, embora não sejam desconsiderados os efeitos do jogo de azar como obrigação natural, salvo em caso de dolo ou se quem perde o valor no jogo ou aposta seja menor ou interdito. Frise-se que o Brasil, em sua tradição jurídica, manteve por décadas uma posição proibitiva em relação a essas práticas, consideradas ilegais em grande parte do território nacional. A exceção sempre foi a Loteria Federal, regulamentada pelo decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 19673, que dispõe sobre a exploração e o controle das loterias no Brasil, e que não é uma modalidade de aposta de quota fixa. Esse decreto-lei estabelece que a União detém o monopólio sobre a exploração de loterias, incluindo a Loteria Federal, que é organizada e administrada pela Caixa Econômica Federal. Trata-se de um sistema de sorteios tradicionais em que o apostador adquire bilhetes predefinidos, e o prêmio é determinado pelo resultado do sorteio, sem relação com probabilidades específicas (odds) ou variáveis baseadas em eventos externos. Bem ao contrário, os bilhetes já possuem números e séries impressos, e o prêmio é fixo, não dependendo de uma análise de risco ou cálculo de probabilidades. No entanto, a promulgação da lei 14.790/23 (conhecida como lei das bets) inaugurou um novo capítulo regulatório, ao permitir o funcionamento controlado das apostas esportivas no país4. Em síntese, essa legislação estabelece uma linha divisória entre as apostas legalmente reguladas e os jogos de azar convencionais, criando um ambiente jurídico mais flexível e propício à inovação econômica. Logo, o terceiro termo que nos interessa para este texto é o vocábulo inglês "bet", que se refere a apostas que envolvem um acordo entre partes, no qual se arrisca dinheiro ou bens em troca de um possível ganho. Essa prática está usualmente associada a apostas esportivas, que, embora inicialmente reguladas pela lei 13.756/185, ganharam maior especificidade com a já citada lei 14.790/23. A regulamentação inclui tributações claras tanto para operadores quanto para apostadores, visando um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e controle governamental para a observância de critérios específicos na concessão de licenças, na fiscalização das operações e na tributação. A confusão semântica entre esses termos em inglês produz imprecisões, também, em português, sendo agravada por um histórico de legislações fragmentadas e interpretações demasiadamente amplas. Tal ambiguidade pode prejudicar tanto o desenvolvimento da indústria quanto a proteção dos consumidores, razão pela qual se propõe, neste ensaio, a adoção da designação "jogos on-line" como gênero do qual deriva a seguinte equivalência terminológica para suas três espécies: (i) "game" sendo traduzido como "jogo eletrônico"; (ii) "gamble" sendo traduzido como "jogo de azar"; (iii) e "bet" sendo traduzido como "jogo de aposta". Naturalmente, os três contextos envolvem complexidades próprias que podem tornar desafiadora a intenção de tutelar e prevenir danos que possam emergir de sua indevida exploração. Quanto à indústria de jogos eletrônicos, são relevantes os desafios relacionados à propriedade intelectual na internet, que pode desencadear práticas ilícitas e danosas como a pirataria de software. Além disso, outro ponto de atenção é a crescente relevância dos esportes eletrônicos, ou eSports, que têm gerado debates sobre seu enquadramento legal. Quanto a esse tema, a lei geral do esporte6 ainda não reconhece os jogos eletrônicos como esportes, o que limita o acesso a incentivos governamentais. Entretanto, a lei Pelé7 possui uma definição mais abrangente, o que abre espaço para interpretações favoráveis, e as duas leituras podem propiciar discussões sobre a exploração do trabalho alheio em contextos virtuais competitivos, com reflexos sobre o direito de arena e a proteção de dados pessoais desses "novos atletas", sem contar eventual vulneração infantojuvenil quando os envolvidos forem crianças e adolescentes vinculados a equipes que participam de competições de eSports. Outro aspecto relevante é a discussão sobre microtransações e loot boxes voltadas ao público de tenra idade. Há anos, muitos especialistas questionam se essas práticas deveriam ser consideradas jogos de azar, devido ao seu potencial de incentivar gastos excessivos, principalmente entre jovens8. Ademais, o crescimento acelerado do mercado das empresas de apostas esportivas (Bets) acarreta uma série de desafios e preocupações. Uma das questões mais discutidas é o potencial impacto social das apostas, especialmente no que tange à ludopatia9, ou seja, o vício patológico em apostas. No contexto esportivo, em que as apostas são legalizadas, não se deve confundir "bet" e "gamble", embora sejam percebidas características que podem induzir a comportamentos compulsivos, sobretudo em usuários vulneráveis. Programas de mitigação desse risco, como limites de aposta e ferramentas de autoexclusão, são frequentemente exigidos pelas autoridades regulatórias como parte das condições operacionais das empresas do setor, denotando a importância de parâmetros específicos de accountability. Outra preocupação relevante refere-se à transparência e à integridade das competições esportivas, pois há receios de que o envolvimento financeiro massivo em apostas possa fomentar práticas ilícitas, como a manipulação de resultados (match-fixing), afetando a credibilidade dos eventos esportivos, que passam a ser influenciados pelos próprios atletas, cooptados por organizações criminosas com promessas de ganhos elevados para interferir na ocorrência de um evento passível de cômputo em sistemas de apostas. Nesse sentido, a regulamentação brasileira determina que operadoras de apostas esportivas cooperem com órgãos esportivos e de fiscalização para identificar e prevenir quaisquer indícios de fraudes. Em um setor caracterizado pela elevada circulação de informações pessoais, transações financeiras e potenciais impactos sociais, adotar uma postura preventiva não é apenas desejável, mas imperativo. Essa abordagem envolve a implementação de medidas proativas10, como políticas rigorosas de proteção de dados pessoais, conformidade normativa contínua e mecanismos transparentes de autoexclusão para jogadores em risco. A responsabilidade civil preventiva11 revela-se como um mecanismo imprescindível para salvaguardar a integridade tanto do mercado quanto dos jogos eletrônicos e das competições esportivas, mitigando riscos que possam comprometer sua legitimidade e estabilidade. No esporte, políticas direcionadas à prevenção de manipulação de resultados - prática que ameaça a essência do fair play - são cruciais para proteger a credibilidade dos eventos, elemento indispensável à continuidade e confiança nas operações de apostas. Logo, a inobservância de tais medidas de controle pode gerar não apenas o descrédito por parte dos apostadores, mas também danos reputacionais profundos e irreparáveis às empresas do setor e às entidades esportivas, comprometendo sua sustentabilidade institucional. Em conclusão, a distinção entre "game", "gamble" e "bet" reveste-se de singular importância jurídico-regulatória, especialmente no âmbito das atividades on-line. Nesse contexto, a responsabilidade preventiva encontra-se plenamente alinhada aos preceitos contemporâneos de governança corporativa, que valorizam a ética organizacional, a transparência e a responsabilidade social como vetores fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Antecipar riscos inerentes aos jogos on-line, por meio de medidas eficazes de controle e prevenção, transcende o simples cumprimento normativo, consolidando-se como uma estratégia que promove a estabilidade do mercado, harmonizando os interesses econômicos com a proteção dos direitos dos consumidores e a integridade das competições. Assim, as recentes leis que tratam do tema devem ser elogiadas, mas ainda há vasta zona cinzenta no ambiente regulatório brasileiro, não se podendo prescindir de novos avanços para a preservação de direitos, para a proteção de grupos vulneráveis como crianças e adolescentes e para fortalecer a coesão e a legitimidade institucional em um ambiente regulatório cada vez mais complexo e interdependente. 1 BRASIL. Lei 14.852, de 3 de maio de 2024. Cria o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos; e altera as leis 8.313, de 23 de dezembro de 1991, 8.685, de 20 de julho de 1993, e 9.279, de 14 de maio de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 2 BRASIL. Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Define as contravenções penais. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 9 out. 1941. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 3 BRASIL. Decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a exploração e controle de loterias. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 fev. 1967. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 4 BRASIL. Lei 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as leis 5.768, de 20 de dezembro de 1971, e 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e a MP 2.158-35, de 24 de agosto de 2001; revoga dispositivos do decreto-lei 204, de 27 de fevereiro de 1967; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 dez. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 5 BRASIL. Lei 13.756, 12 de dezembro de 2018. Regulamentação das Loterias e Promoções Comerciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 6 BRASIL. Lei 14.597, de 24 de julho de 2023. Dispõe sobre a organização e a prática do desporto, institui a lei geral do esporte. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 7 BRASIL. Lei 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 mar. 1998. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025. 8 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Para além das 'loot boxes': responsabilidade civil e novas práticas abusivas no mercado de 'games'. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (coord.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 333-356. 9 MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães. Economia da atenção, gamificação e esfera lúdica humana: nova crise na proteção dos consumidores e os abusos das apostas e jogos on-line. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 156, ano 33, p. 183-197, nov./dez, 2024. 10 ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 26-28. 11 VENTURI, Thaís Goveria Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 201-202.
1. Introdução Ao analisarmos os conceitos de afeto e amor, os dicionários indicam que ambos estão relacionados a sentimentos de apreço, vínculo e estima, frequentemente associados às relações familiares e interpessoais. Contudo, no campo jurídico, esses conceitos adquirem contornos específicos, especialmente no debate sobre abandono afetivo. Uma questão essencial emerge desse debate: se a jurisprudência não reconhece a obrigatoriedade de amar - seja no vínculo entre pais e filhos ou no abandono afetivo inverso -, como é possível responsabilizar alguém civilmente por abandono afetivo? Em outras palavras, se o amor não é um dever jurídico, qual seria, então, a causa legítima para a indenização por danos morais? O STJ tem consolidado o entendimento de que o afeto, em sua dimensão objetiva, constitui um bem jurídico tutelado, especialmente no contexto da filiação socioafetiva. No entanto, ao afastar a imposição de um dever de amar, o Tribunal destaca a centralidade do dever de cuidado. Esse dever, alçado à categoria de obrigação caso descumprido, desassocia o afeto de sua subjetividade intrínseca e desloca o debate para ações concretas e verificáveis, como presença, assistência material e emocional, e tratamento equitativo entre os filhos. Nestas linhas, exploraremos a distinção entre a não obrigatoriedade do amor e a violação ao dever de cuidado como causas de pedir em ações de abandono afetivo. Argumenta-se que, embora o amor permaneça no campo da subjetividade e do metajurídico, o cuidado emerge como um elemento objetivo e mensurável, cuja inobservância pode gerar dano moral. A partir dessa premissa, analisaremos os fundamentos que sustentam o pedido de indenização por abandono afetivo, evidenciando que a reparação se justifica não pela ausência de amor, mas pela violação de deveres jurídicos claros e concretos. Causa de pedir Independentemente do bem da vida que busca o autor através do processo judicial, aquele tem de dizer por quê.1 De sorte que deve o autor da ação apresentar em juízo os motivos que embasam determinada pretensão, deve, portanto, apresentar de forma concreta os fundamentos de fato para que o juiz decida sobre o direito.2 É a previsão trazida pelo Código de Processo Civil.3 De sorte que embora o pedido de seja de danos morais, a causa de pedir deve ser bem avaliada pois, se o fundamento for a falta de amor ou então a falta de um cuidado mínimo, veremos que as consequências jurídicas serão diferentes. Afeto como bem jurídico Em sede de paternidade sócio afetiva, o STJ há muito entende que o afeto é um dos pressupostos a configurar a condição de filho.4 Da não obrigatoriedade do amor e as discussões relativas ao abandono afetivo e ao dever de cuidado o STJ nos apresenta a seguinte diferença: Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo - a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos - quando existirem -, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.5 Conclusão Uma linha tênue pode separar todo um cuidado, um carinho, uma assistência, de um pai para com o filho, da questão do amor. E o nexo de causalidade entre abandono e danos imateriais reside justamente na violação dos primeiros (cuidado, um carinho, uma assistência), e não quanto ao segundo (falta de amor). Contudo, e reiteramos, o afeto (abandono afetivo) é a discussão principal para o tipo de ação que tratamos neste artigo. A afirmação acima diz respeito, portanto, às causas de pedir, embora o pedido seja o mesmo: dano moral. De sorte que não se harmoniza com o entendimento do STJ a causa de pedir descumprimento de obrigação de amar, mas sim e ao o que importa, a causa violação ao dever de cuidado: aqui é que a pretensão deve se concentrar conforme nos demonstra o entendimento do STJ. 1 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 63. 2 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 964. 3 Art. 319. A petição inicial indicará:III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido. 4 Ementa: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO UNILATERAL DE MAIOR AJUIZADA PELO COMPANHEIRO DA GENITORA. DIFERENÇA MÍNIMA DE IDADE ENTRE ADOTANTE E ADOTANDO. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE.1. Nos termos do § 1º do art. 41 do ECA, o padrasto (ou a madrasta) pode adotar o enteado durante a constância do casamento ou da união estável (ou até mesmo após), uma vez demonstrada a existência de liame socioafetivo consubstanciador de relação parental concretamente vivenciada pelas partes envolvidas, de forma pública, contínua, estável e duradoura.2. Hipótese em que o padrasto (nascido em 20/3/80) requer a adoção de sua enteada (nascida em 3/9/92, contando, atualmente, com 27 anos de idade), alegando exercer a paternidade afetiva desde os 13 anos da adotanda, momento em que iniciada a união estável com sua mãe biológica (2/9/06), pleito que se enquadra, portanto, na norma especial supracitada.3. Nada obstante, é certo que o deferimento da adoção reclama o atendimento a requisitos pessoais - relativos ao adotante e ao adotando - e formais. Entre os requisitos pessoais, insere-se a exigência de o adotante ser, pelo menos, 16 anos mais velho que o adotando (§ 3º do art. 42 do ECA).4. A ratio essendi da referida imposição legal tem por base o princípio de que a adoção deve imitar a natureza (adoptio natura imitatur). Ou seja: a diferença de idade na adoção tem por escopo, principalmente, assegurar a semelhança com a filiação biológica, viabilizando o pleno desenvolvimento do afeto estritamente maternal ou paternal e, de outro lado, dificultando a utilização do instituto para motivos escusos, a exemplo da dissimulação de interesse sexual por menor de idade.5. Extraindo-se o citado conteúdo social da norma e tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, revela-se possível mitigar o requisito de diferença etária entre adotante e adotanda maior de idade, que defendem a existência de vínculo de paternidade socioafetiva consolidado há anos entre ambos, em decorrência de união estável estabelecida entre o autor e a mãe biológica, que inclusive concorda com a adoção unilateral.6. Apesar de o adotante ser apenas 12 anos mais velho que a adotanda, verifica-se que a hipótese não corresponde a pedido de adoção anterior à consolidação de uma relação paterno-filial, o que, em linha de princípio, justificaria a observância rigorosa do requisito legal.7. À luz da causa de pedir deduzida na inicial de adoção, não se constata o objetivo de se instituir uma família artificial - mediante o desvirtuamento da ordem natural das coisas -, tampouco de se criar situação jurídica capaz de causar prejuízo psicológico à adotanda, mas sim o intuito de tornar oficial a filiação baseada no afeto emanado da convivência familiar estável e qualificada.8. Nesse quadro, uma vez concebido o afeto como o elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade e à luz das especificidades narradas na exordial, o pedido de adoção deduzido pelo padrasto - com o consentimento da adotanda e de sua mãe biológica (atualmente, esposa do autor) - não poderia ter sido indeferido sem a devida instrução probatória (voltada à demonstração da existência ou não de relação paterno-filial socioafetiva no caso), revelando-se cabível, portanto, a mitigação do requisito de diferença mínima de idade previsto no § 3º do art. 42 do ECA.9. Recurso especial provido. (BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025). 5 Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.1 Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.2 O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.3 Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.4 Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.5 A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.6 A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7 Recurso especial parcialmente provido. (BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. Min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025). 6 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. 7 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 mar. 2015. Disponível aqui. 8 BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025 9 BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025. 10 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
No Direito Contratual, a sucessão de leis no tempo muitas vezes suscita controvérsias complexas sobre a incidência da nova regulamentação heterônoma sobre os contratos cujo nascimento se deu sob a vigência do regime anterior. Isso se dá porque, como diria Serpa Lopes, os contratos muitas vezes projetam seus efeitos "durante largo tempo, em etapas continuadas, como num filme cinematográfico"1. Com o contrato de seguro não é diferente, pois, em ocorrendo alteração normativa no curso de sua vigência, podem surgir dúvidas, por exemplo, quanto às regras aplicáveis à regulação de determinado sinistro. No final do último ano, como se sabe, o Congresso Nacional aprovou a lei 15.040/24, regulamentando, de forma minuciosa, os contratos de seguro, estabelecendo, em seu art. 134, vacatio legis de 1 (um) ano, prazo findo o qual a nova regulamentação finalmente entrará em vigor. Nesse contexto, a questão a ser examinada é a seguinte: após o início de sua vigência, deverá a lei 15.040/24 reger todo e qualquer contrato de seguro ou apenas aqueles daí em diante celebrados? O ponto de partida da controvérsia reside na garantia constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), como possível limite à incidência imediata da nova lei. Em sede legal, "reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou".2 A garantia de intangibilidade do ato jurídico perfeito está umbilicalmente ligada à segurança jurídica, conferindo-se previsibilidade a respeito das regras jurídicas aplicáveis aos efeitos de determinado ato.3 Desse modo, no direito contratual, a nova lei não pode retroagir de modo a alterar situações jurídicas consolidadas, legitimamente constituídas sob a égide de determinado regime.4 Contudo, à segurança jurídica materializada na garantia do ato jurídico perfeito contrapõe-se a própria ideia de justiça, consubstanciada no novo ato normativo, cuja observância impõe, tão logo possível, a observância imediata do novo regime, fruto do consenso democrático.5 Pretende-se, a seguir, propor algumas reflexões a fim de equacionar essa tensão. Em primeiro lugar, no que tange à análise da validade do contrato ou de parte de seu conteúdo, não há dúvidas de que sobrelevará a garantia da segurança jurídica. Deverá o intérprete, nesse caso, ater-se tão-somente ao regime jurídico vigente quando da constituição do vínculo contratual (tempus regit actum). Consoante já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça: "A validade do negócio jurídico sujeita-se à lei sob cuja égide foi ele celebrado. A lei posterior não invalida as relações de direito válidas nem avigora as inválidas definitivamente constituídas"6. Logo, as disposições da lei 15.040/24 que estabeleçam requisitos de validade para o contrato de seguro ou determinadas cláusulas não deverão reger, retroativamente, contratos de seguro constituídos anteriormente à sua entrada em vigor. Eis um exemplo de aplicação de tal premissa: o art. 129, caput, da Lei n. 15.040/24 determina que a resolução de litígios securitários por meios alternativos é legítima, contanto que feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro. Tal vedação não poderá, contudo, retroagir para invalidar eventual cláusula compromissória de arbitragem anteriormente avençada que pudesse contrariá-la. Por outro lado, pode-se questionar se a garantia do respeito ao ato jurídico perfeito poderia conviver, de forma harmônica, com a incidência da nova lei tão-somente sobre os efeitos futuros do contrato pretérito. A questão ganha relevância considerando, notadamente, as mudanças disruptivas promovidas no procedimento de regulação e liquidação de sinistros a cargo das seguradoras. Em tal cenário, discute-se se haveria retroatividade propriamente dita - embora em menor alcance, de forma mitigada -, o que iria de encontro à garantia constitucional, ou apenas a incidência imediata da nova lei, projetando-se sobre as situações jurídicas vindouras.7 Ao longo da história constitucional brasileira, diversas leis que pretendiam regulamentar os efeitos de contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo da regulamentação dos planos de saúde8 e das operações de crédito rural.9 Com efeito, o julgamento paradigmático sobre o tema10 ocorreu nos primeiros anos de vigência da Constituição Federal de 1988 e decorreu da propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade para impugnar dispositivos da Medida Provisória n. 294, publicada em 1º de fevereiro de 1991, convertida em seguida na lei 8.177, de 1º de março de 1991. Os atos normativos impugnados alteravam, a partir de fevereiro de 1991, a forma de atualização dos saldos devedores e prestações dos contratos celebrados até novembro de 1986 entre as entidades integrantes do sistema financeiro de habitação e particulares. Em voto vencedor, o Ministro Moreira Alves observou que, "se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado". A compreensão está em consonância com a lição de Carlos Maximiliano, transcrita ao longo do julgado: "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou, melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto."11 No âmbito do contrato de seguro, a regulação e a liquidação de sinistros, embora possam ser caracterizadas como um "procedimento" a cargo da seguradora - como de fato o são -, consistem no cumprimento de um feixe de obrigações cuja origem é o contrato de seguro. Parece-nos, portanto, que podem ser caracterizadas como "efeitos" do contrato de seguro, o que atrairia a incidência da lei em vigor à época de sua celebração, de acordo com o julgado paradigmático do STF que se debruçou sobre a extensão da garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.  Destaca-se, contudo, a qualidade de norte interpretativo da nova lei a todas as situações e ou controvérsias que envolvam os contratos de seguro. Se o legislador criou - dentro do processo legislativo e plenamente democrático - a limitação temporal para a conclusão da regulação do sinistro, sob pena de decadência do direito da seguradora de negar a cobertura, é porque compreendeu que a agilidade do procedimento é elemento essencial para o atendimento do interesse do segurado que, em última análise, é o que justifica a contratação do seguro.12 Com efeito, ao longo de diversos dispositivos, a Lei n. 15.040/24 sequer incorreu em inovação propriamente dita, mas tão-somente ratificou, de forma expressa, entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que já vinham sendo construídos, de longa data, à luz do regime legal anterior. Exemplifica-se. No que tange à regulação e à liquidação de sinistros, pode-se dizer que, em alguma medida, a lei 15.040/24 veio a densificar as consequências da boa-fé no âmbito de tais estágios da relação securitária. Já no regime anterior, muito embora o Código Civil não os regulasse expressamente, a doutrina já vinha empreendendo esforços para definir as premissas que deveriam presidi-los, notadamente à luz da boa-fé. Nesse sentido, por exemplo, observava Judith Martins-Costa, ainda àquela época:  Essa é uma fase delicada, em que a boa-fé atua com especialíssima intensidade, pois a regulação do sinistro configura, ao mesmo tempo, um momento da relação contratual marcado por "fortes elementos de conflitos, os quais representam, necessariamente, interesses contrapostos" e procedimento investigativo de interesse comum do segurado e do segurador, consistindo em parte integrante da prestação devida pelo segurador ao titular da pretensão indenizatória. (...) [N]ão é apenas na criação de deveres que atua a boa-fé. Também desempenha função integrativa, para preencher lacunas contratuais que só se apresentam como tais no momento posterior ao sinistro e função corretora, atuando como limite ao exercício jurídico disfuncional, diante de "práticas oportunistas e vexatórias na fase da gestão e liquidação do sinistro".13  Outro exemplo semelhante consiste na disciplina do agravamento do risco segurado ao longo da relação contratual. O instituto era regulado em termos mais genéricos pelo Código Civil e, por essa razão, coube à doutrina e à jurisprudência, paulatinamente, delimitar o seu alcance em termos mais precisos. À medida do tempo, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento, aplicável de forma emblemática nos casos de embriaguez nos seguros de automóvel, no sentido de que o agravamento do risco, por si só, não é hábil a exonerar o segurador, devendo guardar nexo de causalidade com o sinistro.14 Tal entendimento também foi prestigiado em sede doutrinária, valendo citar, a esse respeito, o Enunciado n. 585, aprovado na VII Jornada de Direito Civil: "Impõe-se o pagamento de indenização do seguro mesmo diante de condutas, omissões ou declarações ambíguas do segurado que não guardem relação com o sinistro". Essa premissa - a respeito da exigência de correlação causal entre o agravamento do risco e o sinistro, apta a exonerar o segurador - foi expressamente acolhida pela lei 15.040/24, cujo art. 16 dispõe: "Sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado". Em vista das reflexões feitas ao longo deste texto, parece-nos possível concluir que, em observância à garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal - e em consonância com a interpretação que sucessivos julgados do Supremo Tribunal Federal lhe têm conferido -, a lei 15.040/24 não é, a rigor, aplicável aos contratos de seguro celebrados antes de sua vigência, notadamente em relação ao exame de sua validade, dos seus efeitos e das obrigações assumidas entre as partes. Por outro lado, mesmo no âmbito das relações securitárias iniciadas antes da vigência da lei 15.040/24, não se descarta em absoluto a possibilidade de serem invocados os seus dispositivos como norte interpretativo, especialmente quando refletirem entendimentos ou práticas já consagradas no mercado segurador. __________ 1 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, v. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971. p. 171-172. 2 Segundo disposto no art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/42, com a redação da Lei n. 12.376/10). 3 Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direto" (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 257). 4 "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto" (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28). 5 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "Quanto aos conflitos de lei no tempo, verifica-se que a alteração legislativa pode vir, em tese, a afetar as relações jurídicas constituídas sob o império da lei anterior. Confrontam-se, então, mais uma vez, duas preocupações fundamentais do Direito: justiça e segurança. De um lado, há de se exigir, tão logo entra em vigor, o cumprimento da lei nova, que traduz, nos regimes democráticos, decisão da maioria quanto ao padrão de comportamento a ser adotado e quanto à reprovação do modelo de conduta adotado pela lei revogada (imperativo de justiça). De outro lado, contudo, exige-se respeito às situações jurídicas constituídas sob o regime anterior, em atendimento ao padrão de conduta exigível à época de sua constituição (imperativo de segurança)" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 88). 6 STJ, REsp 1.273.955/RN, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 24/04/2014, DJe 15/08/2014. 7 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "(...) a retroatividade mínima se confunde com o efeito imediato da lei, respeitando o direito adquirido e atingindo tão-somente o ato jurídico perfeito quanto aos seus efeitos futuros, isto é, implicando a aplicação da lei nova às consequências (que a sucederem) de atos jurídicos celebrados sob a lei anterior" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 93). 8 "Articula-se, na petição inicial, quanto aos artigos 10, § 2º, e 35-E da lei 9.656/1998; e 2º da Medida Provisória nº 2.177-44/2001, com a ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. (...) Os dispositivos em análise preveem a incidência das novas regras relativas aos planos de saúde em contratos celebrados anteriormente à vigência do diploma. A norma destoa do Texto Maior. A vida democrática pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado mediante aplicação de lei nova. É o que decorre do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal (...). É impróprio inserir nas relações contratuais avençadas em regime legal específico novas disposições, sequer previstas pelas partes quando da manifestação de vontade. (...) A toda evidência, o legislador (...) extrapolou as balizas da Carta Federal, pretendendo substituir-se à vontade dos contratantes. Salta aos olhos a inconstitucionalidade" (STF, ADI 1.931/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 07/02/2018, DJ de 08/06/2018). 9 "Lei 8.177/1991. Incidência em contratos anteriores à promulgação do diploma normativo com a fixação de novos índices de correção. (...) A norma atacada, ao estabelecer a incidência da TR em substituição do IPC nas operações de crédito rural, contratadas junto às instituições financeiras, com recursos oriundos de depósitos à vista, sem qualquer ressalva, tem o condão de alcançar ajustes celebrados antes do advento da mencionada Lei. Disposição que se afigura incompatível com a garantia fundamental de proteção ao ato jurídico perfeito, pois tem o potencial de alterar uma relação jurídica preexistente e consolidada, em frontal violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal" (STF, ADI 3.005/DF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 01/07/2020, DJ de 13/11/2020). 10 STF, ADI 493/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 25/06/1992, DJ de 04/09/1992. 11 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28. 12 Sobre o tema do interesse no contrato de seguro, confira-se: WILLCOX, Victor. Interesse legítimo no contrato de seguro à luz do direito brasileiro (no prelo). São Paulo: Editora Roncarati, 2024. 13 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Edição Kindle. 14 "Com relação especificamente ao seguro de automóvel e à embriaguez ao volante, não basta a constatação de que o condutor ingeriu bebida alcóolica para afastar o direito à garantia. Deve ser demonstrado que o agravamento do risco objeto do contrato se deu porque o segurado estava em estado de ebriedade, e essa condição foi causa determinante para a ocorrência do sinistro (...)" (STJ, AgRg no AREsp 411.567/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 04/11/2014, DJe 10/11/2014).
Introdução No Brasil, o STJ tem reiteradamente qualificado as cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado, em contraposição à tradição jurídica que trata a prática médica, de forma geral, como obrigação de meios, e na prática, ignorando a vasta evidência científica em sentido contrário. Este artigo analisa criticamente esse entendimento, argumentando que a jurisprudência atual desconsidera a complexidade biológica dos pacientes, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências médicas. Propõe-se, ademais, uma reflexão sobre a necessidade de reformulação jurisprudencial para respeitar a ciência e garantir maior segurança jurídica aos profissionais de saúde. Para tanto, e de forma breve, enumera-se abaixo alguns pontos para ponderação: 1. A singularidade biológica dos pacientes A fisiologia humana é marcada por variações significativas entre indivíduos, incluindo fatores como capacidade de cicatrização, predisposição a complicações e reações imunológicas. Essas variáveis podem impactar de maneira determinante os resultados de cirurgias plásticas, tornando inviável a garantia de resultados. Ignorar essas diferenças equivale a desconsiderar o que há de mais fundamental na ciência médica: o reconhecimento de que cada organismo é único e responde de maneira distinta às intervenções. Por exemplo, um mesmo procedimento realizado com a mesma técnica em dois pacientes pode gerar resultados estéticos completamente diferentes em função de peculiaridades individuais, como qualidade da pele, tecido subcutâneo e estrutura óssea subjacente.   Além disso, fatores genéticos e epigenéticos exercem influência direta sobre a resposta do corpo a traumas, mesmo quando controlados todos os parâmetros operacionais. Em alguns casos, pacientes podem desenvolver cicatrizes hipertróficas ou queloides, mesmo com a aplicação das técnicas mais modernas de sutura. Esses fenômenos não são previsíveis com precisão e escapam ao controle do cirurgião, que não pode ser responsabilizado por uma reação biológica fora de seu alcance. Isso sem falar nos fatores comportamentais humanos envolvidos, uma vez que há pacientes que simplesmente não se mostram colaborativos com sua própria recuperação pós-cirúrgica, ignorando ou descumprindo recomendações médicas, não assumindo as responsabilidades pelo insucesso materializado. A jurisprudência do STJ, ao tratar as cirurgias plásticas como obrigação de resultado, de forma absolutamente pasteurizada e irrefletida, desconsidera também a interação entre fatores externos e internos ao organismo. Por exemplo, o tabagismo, a alimentação inadequada e a adesão incompleta às recomendações pós-operatórias impactam diretamente no processo de recuperação e nos resultados finais. Ainda que o paciente não relate hábitos prejudiciais durante a anamnese, o médico pode ser responsabilizado pelo insucesso do procedimento, o que configura uma distorção do princípio da boa-fé e da responsabilidade compartilhada. Mostra-se fundamental reconhecer que a medicina é uma ciência probabilística, não determinística. Os avanços tecnológicos e técnicos melhoraram significativamente os resultados de cirurgias plásticas, mas nunca os tornaram garantidos. Exigir do médico a entrega de um resultado exato é ignorar a natureza dinâmica e complexa da vida humana, além de penalizar injustamente profissionais que agem com a maior diligência possível. 2. A teoria geral das obrigações Segundo a teoria geral das obrigações, a distinção entre obrigação de meios e de resultado é essencial para compreender a dinâmica de diferentes relações contratuais. Uma obrigação de meios ocorre quando o devedor compromete-se a utilizar todos os recursos disponíveis e sua expertise para alcançar um objetivo, sem garantir o desfecho. Por outro lado, a obrigação de resultado implica a entrega de um produto ou serviço em condição previamente definida. Na prática médica, incluindo cirurgias plásticas, há fatores além do controle humano que impactam o desfecho. Essa imprevisibilidade é central para a caracterização dessas obrigações como de meios. Ao classificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ desconsidera o fato de que o sucesso estético não pode ser garantido, mesmo com a aplicação de técnicas avançadas e equipamentos modernos. Ademais, essa distorção jurídica pode levar a um desequilíbrio contratual, impondo ao médico uma responsabilidade excessiva e incompatível com a realidade biológica dos pacientes. Tal situação fere os princípios fundamentais do direito das obrigações e pode gerar insegurança jurídica, tanto para os profissionais quanto para os pacientes. 3. Risco de promessas irrealistas A classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado incentiva práticas que colocam em risco a ética profissional. Cirurgiões podem sentir-se pressionados a prometer resultados impossíveis de serem garantidos, criando expectativas irreais nos pacientes. Essa postura, além de comprometer a transparência necessária na relação médico-paciente, pode aumentar a judicialização desnecessária da medicina. É essencial que o médico, durante a anamnese e o esclarecimento pré-operatório, explique os limites do procedimento, bem como os riscos inerentes à intervenção. No entanto, ao imputar uma obrigação de resultado, o STJ inviabiliza essa relação honesta e transforma o processo em uma relação puramente mercantil, onde a subjetividade biológica do paciente é ignorada. 4. A ciência como base da prática médica A prática médica está profundamente enraizada na ciência, que é, por natureza, baseada em evidências e estatísticas probabilísticas. Nenhum procedimento cirúrgico, por mais avançado que seja, pode garantir resultados predeterminados. A cicatrização, por exemplo, depende de uma interação complexa de fatores, incluindo a resposta imunológica do paciente e sua adesão ao pós-operatório. Ao exigir que o médico entregue um resultado específico em uma cirurgia plástica estética, o STJ ignora as bases científicas que regem a prática médica. Essa imposição cria uma disparidade entre o que é possível cientificamente e o que é juridicamente demandado, prejudicando tanto os médicos quanto os pacientes. 5. Fatores externos e incontroláveis Complicações pós-operatórias, como infecções, rejeições a materiais implantados e formação de cicatrizes hipertróficas ou queloides, ilustram como fatores externos podem impactar negativamente o resultado de uma cirurgia plástica. Esses eventos muitas vezes ocorrem independentemente da perícia do médico ou da qualidade do procedimento realizado. Além disso, a falta de adesão do paciente às orientações médicas também pode comprometer os resultados. Por exemplo, o uso inadequado de cintas cirúrgicas ou a realização de atividades físicas antes do período recomendado são comportamentos que escapam ao controle do médico e que podem afetar o resultado final. Imputar ao cirurgião a responsabilidade por esses fatores desconsidera a natureza multifatorial do sucesso de um procedimento. 6. O caráter de meio da medicina A medicina, ao longo da história, sempre foi tratada como uma atividade que envolve uma obrigação de meio. Isso significa que o profissional de saúde compromete-se a aplicar seus conhecimentos e técnicas com diligência, mas não a garantir um resultado específico. Em cirurgias plásticas, essa abordagem é igualmente válida, pois a resposta biológica do paciente desempenha um papel central no desfecho do procedimento. Ao reclassificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ rompe com essa tradição, ignorando que o processo médico envolve variáveis imprevisíveis. Essa mudança de entendimento coloca o profissional em uma posição vulnerável, aumentando o risco de responsabilização injusta e distorcendo a prática da medicina. Além disso, ao tratar a medicina como uma ciência determinística, a jurisprudência desconsidera os avanços científicos que reconhecem a imprevisibilidade como parte inerente da prática médica. Essa perspectiva limitada compromete a segurança jurídica e a confiança dos profissionais no sistema de Justiça. 7. Impactos na qualidade dos serviços médicos A insegurança jurídica gerada pela classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado pode ter consequências significativas para a qualidade e disponibilidade dos serviços médicos. Muitos profissionais podem optar por abandonar a área de cirurgia estética, temendo a alta probabilidade de litígios e a pressão por resultados que fogem ao seu controle. Essa situação cria um cenário em que o mercado pode ser dominado por profissionais menos qualificados ou por clínicas clandestinas, onde os riscos são ainda maiores. Além disso, a busca por tratamentos estéticos no exterior pode aumentar, expondo os pacientes a sistemas menos regulados e práticas não supervisionadas. Portanto, o entendimento do STJ pode gerar um efeito contraproducente, prejudicando tanto os pacientes quanto a credibilidade da medicina estética no Brasil. 8. Contradição com o princípio da boa-fé contratual O princípio da boa-fé exige que ambas as partes em uma relação contratual atuem de forma cooperativa e transparente. No contexto de cirurgias plásticas, isso implica que o paciente deve seguir as orientações médicas e fornecer informações completas e precisas sobre sua saúde. Ao impor uma obrigação de resultado ao médico, o STJ desconsidera a contribuição do paciente para o sucesso do procedimento. Por exemplo, se o paciente não cumpre as recomendações pós-operatórias, como evitar esforços físicos ou utilizar medicamentos prescritos, o resultado final pode ser comprometido. Imputar exclusivamente ao médico a responsabilidade por tais situações é uma distorção do princípio da boa-fé, que deve ser compartilhada por ambas as partes. Essa postura também enfraquece a relação de confiança entre médico e paciente, transformando uma interação baseada em cuidado e colaboração em uma relação meramente contratual e adversarial. 9. Comparativo internacional Em sistemas jurídicos mais amadurecidos, como os da Europa e dos Estados Unidos, prevalece o entendimento de que procedimentos médicos, incluindo os de natureza estética, são tratados como obrigações de meio, e não de resultado. Essa abordagem reflete a compreensão de que fatores biológicos e imprevisíveis desempenham um papel significativo nos resultados médicos. Na Alemanha, por exemplo, a jurisprudência estabelece que o médico estético deve informar adequadamente o paciente sobre os riscos e limites do procedimento, mas não se compromete com um resultado específico. Nos Estados Unidos, a doutrina legal reforça que a medicina é uma ciência probabilística, e não determinística, priorizando a aplicação de padrões profissionais adequados. Ao divergir desse entendimento, o Brasil isola-se de uma visão jurídica que respeita a complexidade biológica e científica da prática médica. Essa desconexão pode gerar insegurança jurídica e dificultar a integração com os sistemas internacionais, especialmente em contextos em que há colaboração ou intercâmbio de profissionais e pacientes. Adotar uma perspectiva alinhada ao consenso internacional não apenas garante maior coerência jurídica, mas também reforça a credibilidade do sistema judicial brasileiro, incentivando uma prática médica mais responsável e cientificamente embasada. 10. Princípios bioéticos A imposição de uma obrigação de resultado ao médico em cirurgias plásticas estéticas viola princípios bioéticos fundamentais, como a beneficência, a não maleficência e a autonomia do paciente. O princípio da beneficência exige que o médico atue sempre em prol do paciente, utilizando os melhores recursos e técnicas disponíveis, mas sem prometer resultados que não dependem exclusivamente de sua conduta. Já a não maleficência reforça a necessidade de minimizar riscos, mas reconhece que o risco zero é impossível em qualquer procedimento médico. A autonomia do paciente também é comprometida quando há uma expectativa irrealista de resultados garantidos. Essa expectativa pode ser fruto de informações inadequadas ou interpretações distorcidas das possibilidades reais do procedimento, o que contraria o dever do médico de esclarecer os limites da intervenção e seus riscos. A bioética, enquanto pilar orientador da prática médica, reforça que a relação médico-paciente deve ser pautada pela confiança, pela transparência e pelo respeito mútuo. Ao desconsiderar esses princípios, a jurisprudência atual cria um ambiente de judicialização que prejudica tanto os profissionais quanto os pacientes. 11. Implicações para a responsabilidade civil médica Com o entendimento atual, a classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado cria um cenário jurídico de elevado risco para os médicos. Nesse contexto, qualquer desvio entre o resultado esperado pelo paciente e o resultado alcançado pode levar à responsabilização do profissional, mesmo quando ele adotou todas as medidas e práticas adequadas. Esse entendimento ignora a imprevisibilidade inerente à prática médica, especialmente em procedimentos que dependem de fatores biológicos únicos. Como consequência, há um aumento da judicialização da medicina, com processos que, muitas vezes, não consideram os elementos técnicos e científicos envolvidos. Isso desestimula a prática médica de qualidade, pois coloca os profissionais sob constante pressão legal e emocional, além de aumentar os custos com seguros de responsabilidade civil. Caso o entendimento seja alterado para reconhecer as cirurgias plásticas estéticas como obrigações de meio, a responsabilidade civil médica passaria a ser analisada com maior equilíbrio e respeito à realidade científica. O médico seria avaliado com base em sua diligência, na aplicação de técnicas adequadas e na transparência durante o processo de informação ao paciente. Essa mudança fortaleceria a segurança jurídica para os profissionais, preservando a confiança na relação médico-paciente. Além disso, reduziria a judicialização desnecessária, permitindo que apenas casos de efetiva má prática médica ou negligência fossem judicializados. Ao alinhar-se com os padrões internacionais e respeitar as evidências científicas, essa revisão também promoveria um sistema mais justo e eficiente, capaz de proteger tanto os direitos dos pacientes quanto a dignidade e o exercício profissional dos médicos. 12. Conclusão A classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado pelo STJ revela um descompasso com a ciência médica, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências científicas. Essa perspectiva ignora a complexidade biológica dos pacientes, os fatores imprevisíveis inerentes aos procedimentos cirúrgicos e a natureza probabilística da medicina. A necessidade de revisão desse entendimento jurisprudencial é urgente. Alinhar-se aos padrões internacionais e respeitar os princípios bioéticos não apenas proporcionará maior segurança jurídica aos profissionais, mas também fortalecerá a relação médico-paciente, promovendo uma prática médica mais ética e científica. Por fim, registro aqui que as críticas lançadas não representam um desrespeito à Corte, mas sim um necessário chamamento à reflexão, para que o entendimento atual - que representa um injustificado atraso e uma desconexão clara com a realidade científica - possa ser revisto, fazendo prevalecer o que os tribunais superiores tanto apregoam: que a ciência seja ouvida. É imperioso que a realidade se imponha, para que a justiça efetivamente prevaleça, fundada em racionalidade, e não em anacrônicos achismos.
1. Introdução O mercado de influência digital não é mais uma novidade ou uma promessa de futuro. Consolidado como um setor estratégico da economia, movimenta cifras milionárias e redefine a forma como marcas e consumidores interagem. Essa nova dinâmica comercial, naturalmente, não ocorre à margem do Direito. Relações de consumo, contratos de publicidade e questões de reputação digital passaram a integrar o cotidiano jurídico desse segmento, ainda pouco regulamentado, mas já repleto de conflitos. O recente vazamento de uma planilha com avaliações sobre influenciadores expôs parte desse universo. Supostamente criado por agências e profissionais autônomos, o documento classifica creators com base em critérios como entrega contratual, profissionalismo e até mesmo postura pessoal. A repercussão foi imediata. De um lado, a defesa da transparência e da necessidade de critérios objetivos para parcerias comerciais. De outro, o questionamento sobre os limites dessa exposição, possíveis danos à reputação e eventuais violações contratuais. A discussão ultrapassa o episódio específico. Empresas dependem desses profissionais para alcançar públicos segmentados, enquanto influenciadores constroem sua credibilidade com base na confiança dos seguidores e na previsibilidade das colaborações comerciais. Quando um dos lados falha - seja na entrega, seja na comunicação -, as consequências podem ir além da mera perda de contratos. Responsabilidade civil, rescisões litigiosas e até pedidos de reparação por danos são apenas alguns dos desdobramentos jurídicos possíveis. O episódio da planilha não revela nada novo, mas escancara o que muitas vezes se mantém nos bastidores. Contratos entre influenciadores e marcas precisam ser mais do que meros combinados informais, sob pena de transformar parcerias promissoras em disputas judiciais. 2. O mercado dos influenciadores, a planilha e as relações comerciais O marketing de influência se profissionalizou rápido, mas nem sempre na mesma velocidade em que suas relações contratuais amadureceram. Se no início bastava um envio de produtos em troca de divulgação espontânea, hoje as marcas exigem entregas detalhadas, relatórios de desempenho e cumprimento rigoroso de diretrizes. Do outro lado, os influenciadores, cientes de sua relevância no mercado, passaram a negociar valores mais altos, maior controle criativo e proteção de sua imagem. O problema é que, entre expectativa e realidade, nem sempre há alinhamento suficiente para evitar desgastes e litígios. Contratos com criadores de conteúdo podem assumir diferentes formatos, desde simples acordos para postagens pontuais até parcerias longas, com cláusulas de exclusividade e metas de engajamento. Dos "nanoinfluenciadores" a personalidades já consolidades no cenário virtual, o ponto comum é a crescente formalização dessas relações contratuais. As marcas já não querem depender da boa vontade dos creators para cumprir prazos, de outro lado, influenciadores buscam evitar acordos vagos que possam comprometer sua reputação ou liberdade editorial. A profissionalização do setor já é um caminho sem volta, sobretudo em razão da movimentação de cifras expressivas e gerenciamento de contratos de publicidade comparáveis aos da mídia tradicional. Empresas sofisticaram suas exigências, influenciadores ampliaram sua consciência contratual e as disputas tornaram-se mais frequentes. E, como ocorre em qualquer setor consolidado, os contratos passaram a definir quem sobrevive ao jogo e quem perde credibilidade no meio do caminho. Na prática, a atividade que influenciadores desenvolvem possue natureza verdadeiramente empresarial. Nos contratos, em particular, operam a prestação do serviço, enquanto empresários que são, submetidos a todas as regras comerciais previstas no ordenamento jurídico. O Direito Empresarial, é preciso que se diga, é um ramo do Direito que, por determinação legal, presume o caráter profissional dos agentes envolvidos nas operações contratuais. Não há muita margem para muita maleabilidade, escusas, nem revisão judicial em regras e cláusulas previamente previstas, justamente pela premissa de que as partes assumiram as obrigações e riscos inerentes à negociação realizada. O risco, portanto, está nos detalhes: contratos mal redigidos, exigências excessivas ou ambiguidades que geram interpretações conflitantes. Descumprimentos podem gerar penalidades, pedidos de indenização e, em alguns casos, ações judiciais que ultrapassam o campo do mero desentendimento comercial. A planilha viralizou neste cenário. Um documento supostamente interno, criado por agências e profissionais autônomos, em que influenciadores eram avaliados não apenas por seu desempenho técnico, mas também por critérios subjetivos - cumprimento de prazos, profissionalismo, facilidade de negociação e até traços de personalidade. A repercussão veio rápida, com reações polarizadas. Enquanto alguns viram a iniciativa como um instrumento legítimo para qualificar o mercado, outros apontaram o risco de exposição indevida e danos à reputação dos listados. A existência desse tipo de documento não é surpreendente. Empresas sempre tiveram suas formas internas de catalogar fornecedores e parceiros comerciais, separando os mais confiáveis dos problemáticos. O que torna o caso particular é a perda do caráter sigiloso dessa avaliação e os possíveis impactos jurídicos decorrentes. Se uma marca classifica um influenciador como "difícil de trabalhar", essa observação pode ser apenas um registro interno. Mas se essa informação se torna pública e compromete futuras contratações, abre-se uma discussão sobre eventuais danos morais e prejuízos financeiros. Embora não seja o objetivo central desse artigo, é preciso que se diga que o Direito não ignora a importância da reputação em relações comerciais. Em qualquer setor, listas de "bons e maus profissionais" podem gerar ações por difamação, concorrência desleal ou até mesmo responsabilização civil por prejuízos causados. A depender do conteúdo da planilha e da forma como foi divulgada, influenciadores que se sentirem lesados podem questionar judicialmente eventuais danos à sua imagem e buscar reparação. Não se pode esquecer que, ao mesmo tempo, empresas têm o direito de selecionar e avaliar seus parceiros, e a transparência nesses processos pode ser vista como um mecanismo natural de qualificação do mercado. A questão, portanto, não é se marcas podem ou não criar esse tipo de classificação, mas devem estar cientes de quais limites jurídicos devem ser observados para evitar que a análise extrapole o campo privado e se transforme em um risco legal. A planilha que viralizou coloca todos esses elementos em perspectiva. Se, de um lado, é legítimo que marcas avaliem influenciadores e selecionem aqueles que melhor se encaixam em suas estratégias, de outro, quando essa avaliação se torna pública e compromete futuras oportunidades profissionais, pode-se questionar a configuração de dano à reputação. Trata-se da necessidade de equilibrar liberdade empresarial, transparência no mercado e a proteção da imagem como um bem juridicamente tutelado. Influenciadores que ignoram suas obrigações contratuais podem enfrentar penalidades significativas, assim como empresas que não observam os limites legais na forma como avaliam e expõem seus parceiros. Voltando à análise proposta, aqui importa registrar como contratos bem estruturados e políticas claras de comunicação podem evitar desgastes como esse. Se influenciadores e marcas definirem desde o início os parâmetros da parceria e as expectativas de cada lado, há menos espaço para conflitos e menos riscos de que avaliações informais acabem se tornando um problema jurídico. 3. Responsabilidade civil e contratual de influenciadores Se há algo que a planilha expôs de forma incontornável, é o quanto a reputação se tornou um ativo de alto valor no mercado de influência digital. A confiança que um influenciador constrói junto ao público não apenas define seu alcance e engajamento, mas também sustenta suas relações comerciais. Quando essa confiança é abalada - seja por falhas contratuais, seja por exposições públicas inesperadas -, as consequências ultrapassam o mero prejuízo à imagem: podem gerar responsabilidade civil, com repercussões jurídicas relevantes. O influenciador, quando fecha um contrato com uma marca, assume um compromisso que envolve prazos, padrões de entrega e, acima de tudo, respeito às diretrizes de comunicação da empresa. Se descumpre esses termos, pode ser responsabilizado tanto por danos contratuais - como a devolução de valores pagos ou aplicação de multas - quanto por eventuais danos extrapatrimoniais, caso sua conduta cause prejuízos à imagem da marca. Há também o outro lado da equação. Se, por um lado, influenciadores podem ser responsabilizados por descumprimentos contratuais e práticas abusivas, por outro, são frequentemente vítimas de relações comerciais predatórias. Contratos que impõem cláusulas abusivas, exigências desproporcionais ou penalidades excessivas são mais comuns do que parece, sobretudo em parcerias firmadas sem assessoria jurídica adequada. A simetria contratual, nesses casos, costuma ser frágil, já que grandes marcas impõem seus termos a criadores individuais que, muitas vezes, não dispõem de estrutura para questionar exigências desarrazoadas. A responsabilidade civil, no entanto, não se esgota na relação entre influenciador e empresa. Em muitos casos, a publicidade digital cruza a fronteira do direito do consumidor, especialmente quando o creator promove produtos ou serviços que não cumprem o que prometem. Campanhas que induzem o público ao erro, ocultam informações relevantes ou exploram a credibilidade do influenciador para vender soluções duvidosas podem gerar não apenas penalizações administrativas, mas também ações de indenização movidas por consumidores lesados. O influenciador, ao endossar uma marca, não apenas divulga, assume, mesmo que implicitamente, um compromisso de veracidade perante seu público. No aspecto contratual, o Direito brasileiro prevê que o inadimplemento pode ser absoluto, quando há descumprimento total das obrigações, ou relativo, quando há uma execução defeituosa ou tardia, mas que ainda pode ser corrigida. No contexto da influência digital, isso se traduz em diferentes níveis de responsabilização: desde penalidades financeiras previstas em contrato, até pedidos de indenização por danos emergentes e lucros cessantes, caso se demonstre que a falha comprometeu resultados comerciais da marca. Cláusulas penais são frequentemente utilizadas para garantir o cumprimento das obrigações. Em contratos de publicidade digital, é comum que a multa por descumprimento contratual varie de 10% a 50% do valor do contrato, dependendo da gravidade da infração. Já em parcerias mais estratégicas, especialmente aquelas que envolvem exclusividade, descumprimentos podem acarretar penalidades ainda mais severas, como a obrigação de ressarcir investimentos realizados pela marca ou de remover conteúdos prejudiciais. O Código Civil, dos art. 408 a 416, permite a estipulação de cláusulas penais tanto compensatórias quanto moratórias, e sua aplicação nesse setor já começa a ser discutida de forma mais aprofundada no Judiciário. A cláusula penal moratória é aplicada quando há atraso na execução da obrigação, funcionando como uma sanção pelo inadimplemento relativo. Nos contratos com influenciadores, isso pode ocorrer quando o profissional não publica o conteúdo no prazo estipulado, comprometendo estratégias de marketing planejadas com antecedência. Para mitigar esse risco, muitas marcas inserem penalidades financeiras progressivas, atreladas ao tempo de atraso na publicação. O Judiciário tem reconhecido a validade dessas disposições, desde que a penalidade seja proporcional e previamente estipulada. Já a cláusula penal compensatória, regulada pelo art. 410 do Código Civil, destina-se a indenizar a parte lesada pelo descumprimento total ou parcial da obrigação. Sua aplicação é comum quando o influenciador, por exemplo, aceita um pagamento antecipado para promover determinado produto e, sem justificativa válida, não executa a campanha. Nesses casos, além da devolução dos valores recebidos, costuma ser exigida uma multa previamente fixada no contrato, com fito de evitar a necessidade de discussão judicial sobre a extensão dos danos sofridos pela marca. É preciso que se pondere, também, que há uma tendência crescente de contratos dessa natureza que impõem obrigações desproporcionais aos influenciadores, muitas vezes sem a contrapartida adequada. Cláusulas de exclusividade por períodos excessivos, exigências de retratação pública unilateral e obrigações de confidencialidade que se estendem por tempo indeterminado são algumas das disposições que podem ser questionadas judicialmente com base nos princípios da função social do contrato, art. 421 do CC, e do equilíbrio contratual, art. 421-A. O STJ, em diversas decisões, tem reiterado a necessidade de observância do equilíbrio entre as partes, inclusive em contratos empresariais. Ainda que o influenciador seja um prestador de serviço, não se pode perder de vista que, muitas vezes, ele negocia com grandes corporações em posição nitidamente superior, o que pode levar à caracterização de onerosidade excessiva e, em casos extremos, à revisão contratual. 4. Conclusões Influenciadores já não são apenas indivíduos que compartilham opiniões e experiências nas redes sociais; são agentes econômicos que negociam contratos, lidam com exigências comerciais e, como qualquer empresário, estão sujeitos a deveres contratuais e à responsabilidade por seus atos. Se, por um lado, os influenciadores precisam compreender suas obrigações contratuais e as consequências do descumprimento, por outro, as marcas devem garantir que suas exigências estejam alinhadas aos princípios de boa-fé e proporcionalidade. Sem contratos claros e juridicamente sustentáveis, as disputas e os litígios envolvendo influência digital seguirão se multiplicando. O mercado já não tolera amadorismo, e quem não se adapta à nova realidade jurídica, seja marca ou influenciador, estará cada vez mais vulnerável a litígios que poderiam ser evitados com uma abordagem contratual mais estratégica.
A responsabilidade objetiva no CDC - Código de Defesa do Consumidor é um dos pilares da proteção ao consumidor, conforme disposto nos arts. 12, 13 e 14, que tratam da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço. Entretanto, a doutrina e a jurisprudência têm enfrentado discussões sobre a possibilidade de exclusão da responsabilidade do fornecedor em situações de caso fortuito e força maior. Este artigo examina essas excludentes à luz do CDC, corrigindo equívocos relacionados ao conceito de fortuito interno e distinguindo-o do caso fortuito propriamente dito. 1. Responsabilidade objetiva e o papel do nexo causal O regime de responsabilidade objetiva no CDC dispensa a comprovação de culpa, concentrando-se na demonstração do dano, do defeito do produto ou serviço e do nexo causal entre eles. Contudo, o art. 12, §3º, e o art. 14, §3º, preveem hipóteses que rompem o nexo causal, como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros. Nesse contexto, os conceitos de caso fortuito e força maior são frequentemente evocados para afastar a responsabilidade do fornecedor. Ambos se caracterizam por eventos imprevisíveis e inevitáveis, externos à esfera de controle do fornecedor, que interrompem o nexo causal. Todavia, a confusão gerada pelo uso do termo "fortuito interno" exige uma análise mais precisa, especialmente no âmbito da responsabilidade consumerista. 2. Fortuito interno não é caso fortuito Embora a doutrina frequentemente distinga entre fortuito interno e externo, o tratamento dado ao fortuito interno na prática é equivocado. Equívoco conceitual este que, infelizmente, a jurisprudência e a doutrina, muitas vezes, por reforçar, senão vejamos:  "O caso fortuito interno envolve as situações em que o risco natural da atividade econômica desenvolvida pela empresa deve ser absorvido por estas, não tendo o condão de afastar a responsabilidade. Nessa hipótese, o aspecto surpresa que acompanha o caso fortuito não se mostra suficiente para isentar a empresa de responsabilidade..."1 A jurisprudência, inclusive, do STJ, recorre ao conceito de fortuito interno para retratar  situações, que não rompem o nexo causal, e que na verdade se referem a defeitos ou falhas no fornecimento de serviços financeiros, senão vejamos: "Para efeitos do art. 543-C do CPC: As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros - como, por exemplo, abertura de conta-corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos -, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno."2 Ao contrário do caso fortuito, que se refere a eventos imprevisíveis e inevitáveis, o fortuito interno envolve situações previsíveis e controláveis dentro da esfera de atuação do fornecedor. Assim, o fortuito interno não deve ser reconhecido como caso fortuito, mas sim como um defeito (no caso de produtos) ou falha (em serviços). Esse entendimento é defendido por Leonardo Roscoe Bessa3, que critica o equívoco dessa confusão conceitual: "Em vez de analisar presença de fortuito interno ou externo, o correto seria focar no conceito de defeito, em face das legítimas expectativas do consumidor... A noção de defeito resolve muitas situações sem qualquer necessidade de recorrer à ideia de caso fortuito. Em outros termos, a discussão principal nas ações indenizatórias por fato do serviço deve se concentrar no conceito normativo de defeito, ou seja, se, no caso concreto, foi atendida a legítima expectativa de segurança, considerando modo de fornecimento, resultado e riscos que razoavelmente se esperam e época do fato (art. 14, 5 19). No caso dos serviços, a conclusão pela presença de defeito não requer prova técnica (perícia): se dá a partir da argumentação em torno das circunstâncias do fato danoso, da argumentação em torno de expectativa de segurança no caso em exame. Ainda no tocante à ausência de defeito como excludente, pode parecer, numa primeira análise, que não faz qualquer sentido sua previsão: afinal, se o defeito é um dos elementos necessários para configurar o dever de indenizar, parece óbvio que sua ausência afasta, consequentemente, tal dever. E verdade, mas o propósito maior do dispositivo foi indicar que o ônus da prova da ausência do defeito é do fornecedor, o que, reitere-se, pode ocorrer a partir de argumentação. "Portanto, eventos atribuídos ao fortuito interno, como falhas de equipamentos ou erros humanos no processo produtivo, configuram defeitos, atraindo a responsabilidade do fornecedor, e não excludentes de responsabilidade. 3. Fortuito externo e caso fortuito: Excludentes de responsabilidade Diferentemente do fortuito interno, o fortuito externo caracteriza-se por eventos absolutamente alheios à atividade empresarial, imprevisíveis e inevitáveis, como desastres naturais (enchentes, terremotos) ou atos de guerra. Esses eventos rompem o nexo causal e excluem a responsabilidade do fornecedor. A força maior e o caso fortuito, embora não mencionados expressamente no CDC, encontram respaldo no art. 393 do CC e na jurisprudência. Quando devidamente comprovados, justificam a exclusão da responsabilidade objetiva, desde que o evento seja totalmente alheio ao controle do fornecedor. 4. Jurisprudência relevante A jurisprudência brasileira tem enfrentado o desafio de delimitar o caso fortuito e a força maior, além de esclarecer a inadequação do uso do termo "fortuito interno". Nesse Leading case, envolvendo disparo de arma de fogo no interior de uma sala de cinema localizada em conhecido shopping da capital paulista, o STJ afastou a responsabilidade do fornecedor exatamente por entender configurado o caso fortuito externo no caso concreto. O STJ entendeu que os disparos de arma de fogo dentro de uma sala de cinema configuravam caso fortuito externo, rompendo o nexo causal e afastando a responsabilidade da administradora do cinema: "A culpa de terceiro, que realiza disparos de arma de fogo contra o público no interior de sala de cinema, rompe o nexo causal entre o dano e a conduta do shopping center no interior do qual ocorrido o crime, haja vista configurar hipótese de caso fortuito, imprevisível, inevitável e autônomo, sem origem ou relação com o comportamento deste último.4" Em outro  caso, a 3ª turma do STJ reconheceu que o roubo à mão armada contra usuários de uma praça de pedágio, administrada por concessionária, configurava caso fortuito externo. A decisão afirmou: "A ocorrência de força maior ou caso fortuito, devidamente comprovada, é suficiente para excluir a responsabilidade objetiva do fornecedor, quando o evento é imprevisível, inevitável e totalmente alheio à atividade desempenhada.5" Esses precedentes reforçam a necessidade de distinguir corretamente entre eventos internos, que configuram defeitos ou falhas, e eventos externos, que rompem o nexo causal. 5. Conclusão O correto entendimento do fortuito interno e sua distinção do caso fortuito é essencial para evitar confusões doutrinárias e jurisprudenciais. O fortuito interno não pode ser tratado como excludente de responsabilidade, pois se refere a eventos previsíveis e controláveis pelo fornecedor, caracterizando defeitos ou falhas na prestação de serviços. Por outro lado, o caso fortuito e a força maior, quando devidamente caracterizados, afastam o nexo causal e, consequentemente, a responsabilidade do fornecedor. Essa distinção é fundamental para preservar o equilíbrio entre a proteção ao consumidor e a segurança jurídica, evitando a aplicação inadequada do regime de risco integral. Reconhecer essas nuances fortalece o sistema de defesa do consumidor, garantindo que os fornecedores assumam a responsabilidade por riscos inerentes à sua atividade, enquanto preserva a Justiça em situações alheias ao seu controle. 1 XAVIER, José Tadeu Neves. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 115, Jan-Fev./2018, p. 9. 2 (REsp 1.197.929/PR, relator ministro Luis Felipe Salomão, Segunda seção, julgado em 24/8/11, DJe de 12/9/11). 3 In Código de Defesa do Consumidor Comentado. 2ª. edição atualizada, p. 143, Gen Forense, 2011.  4 (AgInt nos EREsp 1.087.717/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda seção, julgado em 13/9/17, DJe de 20/9/17). 5 (REsp 1.872.260/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira turma, julgado em 4/10/22, DJe de 7/10/22).
Quando abordamos a internacionalidade de um contrato, é usual que primeiro nos detenhamos na identificação do Direito Material que o regerá. Nada mais natural em se tratando de um negócio jurídico que, por definição, atrai a incidência, concomitante, de mais de um sistema jurídico. É para resolver este 'conflito de leis' que utilizamos as ferramentas de Direito Internacional Privado. Qualquer docente da matéria, neste ponto, abre alguns parênteses para seus alunos: Justificamos a internacionalidade, apesar de as normas conflituais serem - ordinariamente - nacionais; explicamos o 'privado', apesar de o Direito Internacional Privado esgueirar-se por temas que fogem desta antiquada classificação e defendemos tratar-se de Direito (com maiúscula, ciência autônoma) apesar de muitos relegarem-no a simples metodologia de aplicação da norma. Aparentemente, este esforço é, ainda e infelizmente, atual. Gostaria, então, de tentar convencer o distinto leitor que precisamos conversar sobre o Direito Internacional Privado. Para fazê-lo, valho-me da hipótese em que o Direito Estrangeiro é aplicado por juiz nacional para solucionar dúvida contratual. Prometo ser breve e não perder sua atenção nos meandros do tema1. Para aquele que é não familiarizado com o tema, é importante ressaltar que - internacionalmente - se reconhece ao contratante uma liberdade adicional (além daquela de escolher seu parceiro, o objeto e a forma): A de escolha do regime jurídico. Assim, em contratos internacionais, não seria estranho que os próprios contratantes definissem o regime jurídico sob o qual realizam seu consenso, elegendo-o para a regência do contrato. Note que utilizei o futuro do pretérito para conjugar o verbo "ser". Isso porque esta noção não criou muitas raízes no Direito brasileiro. Explico. Sem voltarmos muito no tempo, lembro o leitor que o CC brasileiro que entrou em 1917 previa uma regra muito simples que tornava válida - em negócios internacionais e salvo algumas exceções - uma cláusula que dispusesse sobre o direito de regência das obrigações negociais2. Este estado de coisa, contudo, não sobreviveu os arroubos do Estado Novo. Eis, então, que dentre tantas liberdades, o brasileiro também foi privado daquela, já que o decreto-lei 4.657/42 passou a impor uma forma de determinação do Direito Aplicável, excluindo a escolha3. Este era, é claro, um momento anterior a efetiva internacionalização da economia brasileira. Contratos internacionais, então, eram tema de escassa preocupação doutrinária e judicial. Ao final do ano de 2024, o arcabouço jurídico geral permanece, majoritariamente, o mesmo. Apesar de o Brasil, sua economia e os brasileiros terem se transformado durante o longo século XX, nossa legislação não se alterou. Não se surpreenda, portanto, leitor, se ainda forem invocadas regras do século passado para reger seu contrato internacional. Ainda, é verdade, o Decreto-lei ganhou um lifting e passou a ter outro apelido: LINDB. Durante muito tempo, pairou sobre o tema dos contratos internacionais uma certa aura de exclusão: Eles não seriam para todos. Poucos eram os players do comércio internacional e, em menor número, os profissionais que atuavam na área. Hoje, contudo, todos nós estamos submetidos a negócios dessa índole. Dos dados pessoais cedidos à tributação dos importados, é preocupação do brasileiro médio a possibilidade de acesso a outros mercados. A questão, então, que motiva minha provocação, é como o Direito Contratual brasileiro vem sendo adaptado a esta realidade? Para fins de didatismo, permitam-me dividir a resposta em duas partes: A primeira é a aceitação da escolha do Direito Aplicável ao contrato internacional como regra geral e, a segunda, são os obstáculos criados pelo legislador. A aceitação de que contratantes possam escolher o Direito que será aplicado ao seu contrato, desde que internacionalizado, tem reconhecimento bastante amplo entre nossos parceiros do Mercosul, vizinhos das Américas e primos europeus. Neste sentido, inúmeras as iniciativas internacionais de destaque poderiam ser citadas, mas me contentarei com duas4 com viés de harmonização: Os Princípios da Haia relativos à escolha do Direito Aplicável aos contratos comerciais internacionais (2015)5 e o guia da OEA relativo ao Direito Aplicável aos contratos comerciais internacionais nas Américas (2019)6. A concentração destes esforços em negócios empresariais tem duas explicações: Uma certa tradição internacional de tratamento do tema dentro de maior espaço de liberdade e, claro, a necessidade de se assegurar a paridade negocial. No Brasil, o tema acaba sendo tratado - também - de forma a incluir a proteção dos consumidores, razão pela qual desde nossas propostas de tratamento junto a própria OEA (CIDIP), até os projetos de lei (por exemplo, PLS 1.038/20) em tramitação e o acordo aprovado no Mercosul tratam do tema sob perspectiva diferente. Em termos gerais, poderíamos dizer que não há uma regra que autorize contratantes (paritários) a escolher o Direito Aplicável ao seu contrato internacional. Contudo, com isso se criou, também, salvo engano, outra tendência: Afastar a escolha é medida de proteção do vulnerável. Acredito que, em algum sentido, há certa desconfiança de que o Direito Estrangeiro pode ser 'prejudicial' ao contratante brasileiro. Para isto, basta invocar um eloquente exemplo, verdadeiro jabuti incluído no PL que acabou alterando o CDC para tratar do tema do superendividamento. Pretendia-se tornar abusiva cláusula que previsse a aplicação de lei estrangeira7. E se ela fosse mais protetiva do consumidor? Eis, então, que adentramos no segundo ponto. A partir da percepção de que a aplicação de um Direito não nacional é, presumivelmente, prejudicial, nosso legislador passou a criar obstáculos gerais à possibilidade de isso vir a acontecer. Ao lado das restrições usuais, como a de ordem pública (art. 17 LINDB), temos outras. As mais recentes delas acabam de ser promulgadas por meio da lei 15.040/24 que dispõe sobre normas de seguro privado. Destaco, neste sentido, o rol do parágrafo 1° do art. 4°8, que estabelece hipóteses em que a legislação brasileira será de aplicação mandatória. Este dispositivo completaria as restrições já previstas pelo art. 209 da LC 126/07 nitidamente pensadas como reserva de mercado. Com este passe de mágica: O mero fato de o segurado ter residência ou domicílio no Brasil seria suficiente para atrair a incidência mandatória da legislação brasileira. Se pensarmos nos mais comuns dos contratos de seguro (vida e saúde, por exemplo), talvez a preocupação até fosse pertinente. Mas, aparentemente criou-se uma regra geral sem ressalvar as particularidades: E as operações internacionais complexas que envolvem execução em diferentes países? Ou, pior: Por que ferir de morte a autonomia privada para negociadores paritários? Poderíamos até mesmo argumentar que uma coisa é se proibir a escolha do Direito Aplicável (como, infelizmente, já estamos acostumados), outra é excluir a incidência do Direito Estrangeiro. Neste ponto, ouso indagar: E se este Direito fosse mais benéfico ao segurado? Até mesmo a forma como o referido dispositivo foi redigido pode causar problemas. Note que o seguro saúde contratado, no exterior, para viagem internacional (art. 20, II da LC 126/07) pode passar a, necessariamente, se submeter à legislação brasileira. Afinal, a LC não aborda o tema, limitando-se a autorizar a contratação. Esta perspectiva de exclusão da incidência do Direito Estrangeiro passa, ainda, por estratégias de limitação da escolha do foro. O art. 13010 da lei 15.040/24 inova a técnica legislativa ao estabelecer competência exclusiva brasileira para casos envolvendo contratos de seguro. Uma breve passada de olhos no art. 23 do CPC permite concluir que as demais hipóteses tinham algum fundamento territorial. Esta inovação é, até mesmo, mais agressiva que a tentada pela recente alteração do art. 63, §1°11 do mesmo CPC que tratou de limitar a escolha do foro para casos de consumo. Um último exemplo é o art. 12912 da lei 15.040/24 que consagra a arbitragem mandatoriamente sediada e regida pelo Direito brasileiro, criando exceção injustificada para o art. 2°, §§1° e 2° e art. 21, ambos da lei 9.307/96. E porque falar de DIPRI, então, é relevante? Perguntar-me-ia o atento leitor. Porque em todos estes exemplos, padecemos da síndrome do avestruz: Escondemos a cabeça até o risco passar. Preciso, contudo, contar dois segredos: Avestruzes não fazem isso, muitas vezes até mesmo tomam a ofensiva; e, além disso, o risco de inserção internacional não passará. A resposta que o Direito Contratual brasileiro precisa dar para os desafios que se avizinham é enfrentar as particularidades dos casos internacionais, criando as regras necessárias para que as soluções que tenhamos não sejam, apenas, chauvinistas por desconhecimento. * Frase da peça Huis clos de Jean Paul Sartre, que brinca com a infernal condenação de permanecer sempre juntos (entre quatro paredes, da tradução do título). Há um sentido de que a construção da alteridade exige o autoconhecimento. 1 Para o leitor que se interessar pelo tema, posso sugerir o artigo: Disponível aqui. 2 Art. 13. "Regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar, onde forem contraídas". 3 Art. 9º LICC: "Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituirem". 4 Se o leitor tiver a curiosidade, posso sugerir a leitura de minha tradução destes instrumentos: Disponível aqui. 5 A tradução oficial para o português está disponível aqui. 6 A tradução oficial para o português está disponível aqui. 7 Este trecho acabou sendo vetado. Para detalhes, sugiro a leitura de outro texto: A futura Lei do Superendividamento e o consumidor internacional. 8 Art. 4º O contrato de seguro, em suas distintas modalidades, será regido por esta lei. § 1º Sem prejuízo do disposto no art. 20 da LC 126, de 15/1/07, aplica-se exclusivamente a lei brasileira: I - aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; II - quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no país; ou III - quando os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos se situarem no Brasil. 9 Art. 20.  A contratação de seguros no exterior por pessoas naturais residentes no país ou por pessoas jurídicas domiciliadas no território nacional é restrita às seguintes situações: I - cobertura de riscos para os quais não exista oferta de seguro no país, desde que sua contratação não represente infração à legislação vigente; II - cobertura de riscos no exterior em que o segurado seja pessoa natural residente no país, para o qual a vigência do seguro contratado se restrinja, exclusivamente, ao período em que o segurado se encontrar no exterior; III - seguros que sejam objeto de acordos internacionais referendados pelo Congresso Nacional; e IV - seguros que, pela legislação em vigor, na data de publicação desta LC, tiverem sido contratados no exterior. Parágrafo único. Pessoas jurídicas poderão contratar seguro no exterior para cobertura de riscos no exterior, informando essa contratação ao órgão fiscalizador de seguros brasileiro no prazo e nas condições determinadas pelo órgão regulador de seguros brasileiro. 10 Art. 130. É absoluta a competência da Justiça brasileira para a composição de litígios relativos aos contratos de seguro sujeitos a esta lei, sem prejuízo do previsto no art. 129 desta lei. 11 Art. 63, § 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor. 12 Art. 129. Nos contratos de seguro sujeitos a esta lei, poderá ser pactuada, mediante instrumento assinado pelas partes, a resolução de litígios por meios alternativos, que será feita no Brasil e submetida às regras do Direito brasileiro, inclusive na modalidade de arbitragem.
O regramento do contrato de seguro do CC/02 passa por um momento histórico e evolutivo de modo a atender a várias situações fático-jurídicas até então não contempladas em seu texto ou previstas de forma insuficiente. Trata-se da lei 15.040/24 como o novo marco legal dos seguros, oficialmente publicada no dia 10/12/14, oriunda do PL 2597/24. Referida lei, cujo período de vacatio legis é de um ano a contar da data da publicação, revogou todos os dispositivos do capítulo XV do título VI da parte especial do CC/02 destinados à regulamentação do seguro privado. Contudo, há também em vista as propostas de alteração pelo anteprojeto de reforma do CC, em relação ao regulamento do contrato de seguro, mas nem todas em sintonia com os enunciados normativos do novo marco legal. É o caso da participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas pela vítima de danos causados por profissionais que tenham a responsabilidade civil segurada. Nesse aspecto, em especial, as previsões da nova lei de seguros e do anteprojeto são díspares. A legitimidade ad causam, ou legitimidade para a causa, é um pressuposto subjetivo de validade e desenvolvimento regular de um processo, um requisito para que os sujeitos atuem regularmente na demanda. Segundo Fredie Didier, "é a pertinência subjetiva da demanda". O autor pontua que é necessário que "os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discuta aquela relação jurídica de direito material deduzida em juízo." (p. 343 - Didier Júnior, Fredie).  É imprescindível, pois, que, em regra, haja correspondência total entre a situação jurídica submetida à apreciação judicial e a situação que legitima as partes a discuti-la em defesa de seus respectivos interesses. Relativamente ao seguro de responsabilidade civil profissional, em caso de sinistro, a legitimidade ativa é do terceiro, vítima do dano. Mas quem tem legitimidade para compor o polo passivo dessa relação processual? Em regra, o profissional, causador do dano. E qual o papel da seguradora nesse cenário processual? A obrigação da seguradora é deflagrada pela ocorrência do sinistro. Uma das hipóteses legais e contratuais de sua ocorrência é a condenação do profissional em virtude de decisão judicial condenatória transitada em julgado prolatada no bojo de um processo de conhecimento no qual o profissional segurado (um médico, por exemplo) tenha a oportunidade de se defender. Um processo no qual lhe sejam oportunizadas todas as prerrogativas do princípio da ampla defesa e do contraditório. E ainda que venha a ter sua responsabilidade civil pelo dano causado realmente reconhecida, o ato ou fato que deram ensejo a ela podem ou não estar previstos na cobertura securitária. Por tais razões, o dever da seguradora de pagar a indenização ao terceiro, vítima do dano e autor da ação, ocorrerá se: (i) em virtude de um comando judicial forem reconhecidos os pressupostos da responsabilidade civil e (ii) o ato ou fato do profissional estiverem dentro do âmbito de cobertura da apólice e no período de sua vigência. Como pode, então, a seguradora compor o polo passivo nesse tipo de ação em referência? Será na qualidade de ré ou de terceira por meio de uma das espécies de intervenção de terceiros? Nesse contexto, pergunta-se: Qual a relação jurídica da seguradora com o terceiro, vítima do dano? A resposta é nenhuma. Nenhuma relação jurídica. Daí, indaga-se: Instaura-se um litisconsórcio? Caso positivo, de qual natureza? Facultativo ou necessário? Ou caberia alguma hipótese de denunciação da lide? Ou, ainda, seria cabível o chamamento ao processo? Pois bem. No anteprojeto de reforma do CC foi inserido o § 5º ao art. 787, abaixo transcrito: § 5º É cabível a ação direta do terceiro contra a seguradora e o segurado conjuntamente, respeitados os limites e as condições estipulados na apólice. A redação do dispositivo supratranscrito permite que várias interpretações sejam extraídas de seu texto normativo, notadamente da expressão "conjuntamente". Com efeito, poderia ser tal expressão interpretada como uma solidariedade passiva, uma legitimação extraordinária, um litisconsórcio passivo, uma colegitimação ou, ainda, uma denunciação da lide? Qual é, afinal, a intenção do legislador ao permitir, por meio de uma norma de natureza processual no diploma civil, o cabimento da ação proposta pela vítima do dano direta e conjuntamente contra segurado e seguradora? Em paralelo, com a publicação da nova lei 15.040/24 em 10/12/24, outra redação foi conferida no tocante à participação da seguradora no polo passivo da ação de reparação civil contra o profissional segurado, conforme se verifica nos arts. 101 e 102 abaixo transcritos. Contudo, assim como o anteprojeto, não elucida a dúvida e controvérsia acerca da espécie de intervenção de terceiros apta a integrá-la ao processo ao preceituar, textualmente, a sua condição de litisconsorte por meio da possibilidade do segurado "chamá-la", porém, sem responsabilidade solidária.  Art. 101. Quando a pretensão do prejudicado for exercida exclusivamente contra o segurado, este será obrigado a cientificar a seguradora, tão logo seja citado para responder à demanda, e a disponibilizar os elementos necessários para o conhecimento do processo. Parágrafo único. O segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária. Art. 102. Os prejudicados poderão exercer seu direito de ação contra a seguradora, desde que em litisconsórcio passivo com o segurado. Parágrafo único. O litisconsórcio será dispensado quando o segurado não tiver domicílio no Brasil. Nessa conjuntura, apresentam-se possíveis, porém não exaurientes respostas, pautadas em interpretações sistemáticas e teleológicas dos dispositivos em comento. No que tange ao anteprojeto, uma possível explicação à expressão "conjuntamente", a princípio, é a hipótese de legitimação extraordinária. Trata-se a legitimação extraordinária de uma legitimação anômala, excepcional. Considera-se a aptidão conferida a alguém para discutir em juízo direito alheio, em nome próprio. Na legitimação ordinária, ao revés, há exata correspondência entre a situação legitimante e a situação submetida à apreciação do juiz e, em razão disso, uma perfeita coincidência entre os sujeitos dessa relação jurídica com as partes da relação processual. Pode-se aventar, portanto, a possibilidade da seguradora ser considerada como legitimada extraordinária? Estaria ela defendendo, em nome próprio, os direitos e interesses do segurado? Pela leitura dos arts. 18 e 190 do CPC/15 e do próprio § 5º do art. 787 do anteprojeto do CC, a resposta pode ser afirmativa no sentido de que o ordenamento jurídico autoriza, excepcionalmente, alguém a pleitear direito alheio em nome próprio, bem como prevê a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais. Amparada na previsão normativa do § 5º do art. 787 do anteprojeto que admite o cabimento da ação conjuntamente contra o segurado e seguradora, seria viável a legitimação extraordinária. Baseando-se em uma interpretação teleológica da norma em comento, essa seria, portanto, uma hipótese cabível. Para tanto, procura-se afastar a possibilidade de colegitimação que é o concurso de legitimados quando a lei atribui a legitimidade para várias pessoas, de forma concorrente e simultânea, a fim de discutirem em juízo o mesmo objeto, o mesmo fato, a exemplo dos condôminos na defesa do bem comum. Nessa hipótese, o colegitimado é, igualmente, titular do direito sub judice, ou seja, titular do direito material objeto da discussão no processo, o que não é o caso da seguradora, eis que sequer participou do evento danoso. Com base nessas discussões ora apresentadas, passa-se à análise dos enunciados normativos dos arts. 101 e 102 da nova lei de seguros, a lei 15.040/24. O parágrafo único do art. 101 dispõe que o segurado poderá chamar a seguradora a integrar o processo, na condição de litisconsorte, sem responsabilidade solidária. A princípio, a expressão "chamar" apresenta uma atecnia, pois remete à ideia de chamamento ao processo, hipótese de intervenção de terceiros por meio da qual o réu convoca seus codevedores solidários para compor o polo passivo, de modo que todos sejam incluídos na mesma condenação. Com efeito, a seguradora não é devedora solidária do segurado, muito pelo contrário; sua relação jurídica com o profissional segurado a obriga ao pagamento da indenização de forma individual e integral (nos limites do capital segurado). Nesse sentido, no dispositivo supratranscrito, há expresso afastamento de tal solidariedade, pelo que se infere da expressão "sem responsabilidade solidária". Entretanto, tal norma civil é contrária à essência do instituto do chamamento ao processo, bem como das normas processuais civis que o regulamentam. Quanto à possibilidade de litisconsorte, a expressão "poderá" nos permite concluir tratar-se de um litisconsórcio passivo facultativo. O caput do art. 102, entretanto, impõe - e não permite - a participação da seguradora no polo passivo na qualidade de litisconsorte, caso o prejudicado contra ela também queira demandar. Há nesse dispositivo várias situações a serem elucidadas, o que não é possível nesse espaço. Contudo, provoca-se, por meio deste texto, outra possível atecnia. O litisconsórcio facultativo ativo ou passivo forma-se em razão da vontade de quem propõe a demanda; porém, o legislador exige a presença da seguradora e segurado nas ações propostas pelos prejudicados, o que permite a interpretação de um litisconsórcio necessário. De fato, no litisconsórcio facultativo a formação do polo passivo não é imposta, mas tão somente permitida, caso assim não o fosse, seria um litisconsórcio necessário, por disposição de lei, nos termos do art. 114 CPC/15. A consequência da falta de citação de um litisconsorte necessário simples (como nesse caso) é a ineficácia - e não nulidade - da decisão relativamente a ele, nos termos do art. 115 do CPC. Infere-se que a finalidade do legislador foi seguir o entendimento sumulado do STJ, enunciado 529, decidido em sede de recurso repetitivo, segundo o qual não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora, justamente para assegurar o princípio do contraditório ao profissional segurado. Nesse sentido, pelo que se denota da lei 15.040/24, as hipóteses previstas para a integração da seguradora na relação processual entre vítima (autora) e profissional segurado (réu) são na qualidade de litisconsorte. Contudo, o litisconsórcio previsto na nova lei de seguros, seja ele facultativo ou necessário, pode ser interpretado tão somente considerando-se a seguradora como legitimada extraordinária e não como colegitimada pelas razões acima expostas. Porém, não se pode descurar da hipótese da denunciação da lide pelo réu, modalidade provocada de intervenção de terceiros, nos casos em que a seguradora figure como terceira e se recuse a pagar a indenização, situação que deflagra um segundo conflito muito comum: A seguradora contra o próprio segurado. Múltiplos são os casos em que a seguradora tenta se eximir da sua obrigação. Uma delas, a mais recorrente, é a alegação de que o risco não fora objeto de cobertura. Instauram-se, portanto, duas demandas por meio da denunciação da lide: (i) a principal, entre vítima, na qualidade de autora, e o profissional segurado, como réu; e (ii) a segunda demanda, de natureza secundária e regressiva, entre o profissional segurado como réu da primeira e denunciante da segunda; e a seguradora como terceira denunciada. No caso do profissional réu ser o denunciante, caso seja vencido, o juiz analisa a segunda demanda (que é a regressiva da denunciação). Mas se o réu denunciante for vencedor, a denunciação não será examinada. Para além dessas hipóteses, por meio de um método hipotético-dedutivo, propõe-se, ainda, a possibilidade de assistência simples pela seguradora como outra espécie de intervenção de terceiros mais consentânea se não houver recusa da seguradora ao ser comunicada do evento danoso, na medida em que ela poderá ingressar nessa demanda devido ao seu interesse jurídico em que o segurado seja vencedor, podendo, para tanto, praticar os atos processuais a fim que tal desiderato seja realmente alcançado. Com efeito, não seria o caso de assistência litisconsorcial, eis que, nessa modalidade, o terceiro apresenta-se como colegitimado ou cotitular do direito invocado em juízo. Por tal razão, a assistência simples seria a intervenção de terceiros mais adequada diante da eventual ausência de conflito entre seguradora e segurado. Enfim, a possibilidade de participação da seguradora no polo passivo das ações de reparação civil propostas em face do profissional segurado é prevista tanto no novo marco legal dos seguros quanto no anteprojeto de reforma do CC, mas não podem ser desconsideradas as hipóteses de intervenção de terceiros. Ambos os regramentos apresentam uma finalidade comum: A possibilidade de beneficiar a vítima ao facultar-lhe a propositura da ação conjuntamente contra a seguradora que, em tese, tem condições patrimoniais para satisfação do valor objeto da condenação. Isso sem desalijar da relação processual o profissional segurado, eis que, por responder subjetivamente - conforme determina o art. 14 §4º do CDC - deve sim participar do polo passivo da ação reparatória na qual poderá apresentar suas teses de defesa, em observância ao princípio do contraditório.  Tal finalidade comum está em consonância com uma das funções primordiais da responsabilidade civil, a função reparatória. Contudo, não podem se descurar das normas de natureza processual civil nem avançarem em descompasso recíproco, sob pena de estarmos diante de uma nítida (e não aparente) antinomia jurídica. Resta saber qual será o destino da seguradora nas ações de reparação civil propostas pela vítima contra o segurado. Diante da fase do processo legislativo em que se encontra o anteprojeto, se aprovado nos termos até então propostos, surgirá, possivelmente, uma antinomia jurídica cujos critérios para solução são: O critério da especialidade e o critério cronológico. A partir disso, outra discussão certamente surgirá: Qual dos mencionados diplomas normativos prevalecerá? Importa que estas normas civis estejam alinhadas recíproca, teleológica e sistematicamente àquelas de natureza processual, visando à efetiva reparação de danos aos terceiros prejudicados. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos. _______________ BRASIL. Lei 15.040/24. Disponível aqui. BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Disponível aqui. BRASIL. Câmara dos deputados. PL 2597/24. Disponível aqui. BRASIL. Lei 13.105, de 16/3/15, Brasília, DF, CPC. Disponível aqui. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
No âmbito da tomada de decisão, como na vida em geral, a memória ocupa espaço de relevância (BERGSON, 1999). A memória define o passado, o presente e o futuro1. Muitas vezes não nos damos conta da importância do estudo e aplicação do tema e, bem assim, da sua inserção no ambiente da valoração das provas, mas, a despeito dessa aparente invisibilidade, não teríamos condições sequer de compreender o conceito e os contextos das situações que nos cercam (memória semântica), ou a reconstrução de fatos a serem provados (memória eventual, ou episódica) acaso não tivéssemos em plena operação toda uma engrenagem interna que nos auxilia a perceber o mundo e atuar conforme a vida em sociedade nos exige (IZQUIERDO, 2018). Imagine que está sendo discutido em juízo um acidente de trânsito no qual um carro azul teria ultrapassado o semáforo e colidido com outro automóvel, este verde, atropelando uma família. Na antessala do Tribunal, aguardam duas testemunhas presenciais, Dona Maria e Dona Josefa. Elas não se conhecem previamente e se encontram em um ambiente estranho e pouco acolhedor. Enquanto o juiz ouve o depoimento de outra pessoa, Dona Maria decide iniciar uma conversa com Dona Josefa, buscando aliviar a tensão do momento. Convencida do que acredita ter visto, Dona Maria comenta: "Que coisa triste esse acidente, não foi? Fiquei tão nervosa quando aquele carro vermelho ultrapassou o sinal amarelo e bateu no carro preto. Aquela senhora atropelada me lembrou a minha irmã, eram tão parecidas...".  Dona Josefa, que não se sente completamente segura em relação ao que presenciou, concorda com a narrativa de Dona Maria. Ela ainda acrescenta que também achou a pessoa atropelada parecida com alguém que conhecia, ensejando, assim, o fenômeno da calibragem mútua. Posteriormente, ao ser chamada para depor, Dona Josefa provavelmente repetirá a versão que ouviu de Dona Maria, assumindo-a como verdade. Para ela, essa história terá se consolidado como a realidade dos acontecimentos presenciados. Esse cenário exemplifica a formação de uma falsa memória, um fenômeno comum e não patológico, que reflete o funcionamento natural da memória. Essa dinâmica pode ocorrer tanto no cotidiano quanto, de forma crítica, no contexto judicial, influenciando a avaliação da credibilidade dos relatos sobre eventos específicos. (LOFTUS, 1997; ROEDIGER e MCDERMOTT, 1995; BRAINERD e REYNA, 2002). A partir desse singelo exemplo, duas questões aqui merecem atenção e estudo mais verticalizado. A primeira se situa na interface entre teoria e metateoria. Em geral, utilizamos como base alguma vertente teórica jurídica para definição dos casos, recolhendo os pressupostos legais (ou doutrinários), agregando algum posicionamento jurisprudencial, e, ao final, sacando conclusões para resolução de algum problema concreto. A teoria de base nos auxilia no que chamaremos de tomada de decisão geral, ou circunscrita aos elementos jurídicos do caso em julgamento. Ocorre que, para além da teoria de base que utilizamos, há, de certa forma escondida, alguma metateoria que lhe dá sustentação e cujo manejo pode ultimar por alterar a própria percepção do ponto nodal fático tratado pela teoria utilizada para resolução do caso. Esta, que não é necessariamente jurídica, influencia no que chamaremos tomada de decisão específica, ou inserida no contexto das pequenas definições fáticas que resultem na reconstrução dos fatos narrados. No caso da responsabilidade civil, penal ou administrativa, a metateoria relativa ao funcionamento da memória ocupa lugar central para definição dos fatos, sendo geralmente ignorada ou pouco abordada. Independentemente do quadro normativo ou teórico que utilizemos para definição da responsabilidade pertinente ao acidente de carros (tomada de decisão geral), teremos uma resposta final enviesada se simplesmente ignorarmos o funcionamento central das pequenas tomadas de decisão a respeito de circunstâncias que pareçam acessórias (tomada de decisão específica), como, por exemplo: (a) como a testemunha/declarante, ou quaisquer participantes se recordam dos eventos; (b) a prova está sendo, ou foi, contaminada antes mesmo da sua produção; (c) o que podemos fazer para evitar que a reconstrução dos fatos se aparte dos fatos em si; (d) como podemos incrementar o grau de credibilidade dos relatos trazidos pelos participantes internos? No caso citado, a Dona Maria inadvertidamente inseriu uma falsa memória no contexto mnemônico da Dona Josefa, que terá certeza do que lhe fora comentado como se efetivamente tivesse vivido aquele acontecimento narrado. Acaso o decisor desconheça o funcionamento da memória e se revele, bem por isso, incapaz de perceber as diferenças entre eventos imaginados e eventos vivenciados2 (apoiando-se, para tanto, na tomada de decisão específica), acabará, por causalidade, por encontrar um padrão decorrente das falas das duas senhoras e, como consequência, estará muito tendente a compreender, no contexto da tomada de decisão geral, que a reconstrução dos fatos se deu como o padrão sugere. Em que pese pareça questão secundária, o conhecimento dos meandros de funcionamento da tomada de decisão específica (no presente caso a compreensão da memória), ligada à metateoria da tomada de decisão, cobra fundamental importância a fim de delinear a (re)construção dos fatos, não se podendo cogitar de uma boa tomada de decisão relativa ao caso concreto se não observados os aspectos inerentes às pequenas tomadas de decisão que influenciem a contextualização dos fatos e a sua evocação. Outro ponto que chama a atenção é que, em geral, o estudo do funcionamento da memória e dos aspectos científicos da valoração probatória costumam ser lembrados por ocasião de discussões inerentes à verdade e, mais especificamente, no contexto daqueles casos tidos pela doutrina e jurisprudência como de maior dificuldade probatória (os crimes cometidos às escondidas, por exemplo). Ocorre que as duas questões estão mal posicionadas. Tanto não existe processo com maior ou menor dificuldade probatória, senão, em realidade, uma maior ou menor capacidade de percepção dos eventos e fatores que se inserem no contexto da valoração dos fatos, como, da mesma forma, a ideia de que a compreensão metodológica dos fatos assume importância apenas no ambiente da verdade está equivocada. Em relação à primeira questão, se um processo costuma ofertar o que se entende como pouco material probatório, para utilizar um jargão usual no Direito, o decisor atua de duas maneiras: (a) ou recorre à teoria do ônus probatório para resolver a questão controvertida; (b) ou se utiliza de alguma presunção. As duas maneiras de solucionar o problema se revelam equivocadas, no entanto. Repisemos o caso supramencionado, em que um veículo alegadamente ultrapassou o semáforo e colidiu com outro veículo. Assumindo inexistir outro elemento probatório afora o depoimento das duas senhoras, Maria e Josefa, e, considerando que o decisor tomará por base o que lhe foi dito, sem perceber que a versão por elas trazida é decorrente de uma falsa memória, decerto entenderá que o autor se desincumbiu corretamente do ônus probatório ao comprovar que o acidente teve como causa primária e direta o comportamento do réu, que, ultrapassando o semáforo, chocou-se contra outro veículo e atropelou a família. As regras de ônus probatório, no caso, ademais de não auxiliarem na reconstrução do fato, ainda produziram um resultado enviesado.  Agora imaginemos que as senhoras Maria e Josefa não presenciaram o ocorrido, mas quem estava presente era Júlio, um guarda municipal de serviço no dia. Júlio é portador de discromatopsia (e não sabe disso), de modo que se confunde quanto às cores de objetos. No caso, ao narrar o que aconteceu, acaba por trocar as cores dos veículos e afirma categoricamente o contrário do que ocorreu na realidade, isto é, que o carro que ultrapassou o semáforo não era azul, senão verde (decorrente da tritanopia, ou deficiência no cone azul) e que o abalroado era azul e não verde (decorrente da deteranopia, ou deficiência no cone verde). Ao não ter acesso a qualquer outro meio probatório e, ainda, considerando o cargo ocupado por Júlio, o juiz não terá dúvidas em reputar acertada a sua versão, aplicando, para tanto, jurisprudência conhecida que atribui ao agente público a presunção juris tantum de veracidade das suas afirmações3. Nesse caso, a presunção utilizada pelo juiz, conquanto ostente amparo jurisprudencial, confundiu confiança, um atributo do sistema jurídico, com credibilidade, elemento individual de quem narra4. Outro falso positivo foi formado. Em síntese, nem a teoria do ônus probatório, tampouco o recurso às presunções auxiliou na reconstrução adequada do fato ocorrido. Mas há outra questão - e com ela finalizo esse breve artigo. É que o estudo do fato em si, suas metodologias de percepção, características, elementos e categorização costumam ser examinados, quando o são, a partir de encadeamentos teóricos epistemológicos inerentes às teorias da verdade, como se prova e fato fossem coisas idênticas, passíveis de análise por idênticos marcadores epistemológicos ligados à verdade (FERRER BETRÁN, 2024 e GASCÓN ABELLAN, 2012). O fato precede a prova, assim como sua percepção, tanto pelos observadores externos quanto pelos participantes internos do evento. A questão central é determinar como, e com qual metodologia, o fato poderá ser percebido - sem ainda adentrar nas discussões sobre prova ou verdade. Por exemplo, se um participante interno estiver sob influência de uma causa transitória de alteração cognitiva, como o uso de drogas, ele perceberá o fato de maneira específica. Essa percepção deverá ser compreendida pelo decisor para avaliar o grau de credibilidade da reconstrução da dinâmica apresentada por esse narrador. Por outro lado, se o narrador for portador de uma causa permanente de alteração cognitiva, como uma neurodivergência, sua interpretação da realidade será igualmente influenciada, exigindo análise detalhada de seus limites, características e peculiaridades. Isso permitirá confrontar os resultados esperados dessas condições com a narrativa oferecida. Já no caso de um observador externo, sem qualquer causa de alteração cognitiva, transitória ou permanente, sua leitura da realidade será diferente, fundamentada em outros padrões, parâmetros e limites. Para compreender como ocorre a leitura dos fatos (independentemente da teoria da verdade adotada para fins probatórios, cuja relevância poderá surgir em momento posterior), o decisor deve recorrer a fundamentos teóricos específicos. Isso inclui o entendimento do funcionamento da memória, dos padrões cognitivos de indivíduos neurotípicos e neurodivergentes, dos efeitos de substâncias psicoativas, da influência da idade, do estresse, entre outros fatores. Esse processo requer um verdadeiro exercício de alteridade, posicionando-se o decisor no campo de percepção tanto do afetado quanto do observador externo ao evento. Somente assim será possível reconstruir os fatos a partir da forma como foram percebidos e, então, investigar os parâmetros probatórios pertinentes.  Caso contrário, o decisor estará operando em um terreno frágil, marcado por desvios cognitivos, baseando decisões em causalidades equivocadas, acreditando em padrões estereotipados e adotando presunções jurídicas desconectadas da análise e percepção efetiva dos fatos. Procedendo dessa forma, mesmo ao adotar teorias jurídicas de vanguarda, corre-se o risco de avaliar os fatos sob uma ótica anacrônica, reminiscentes das provas tarifadas da antiguidade, sem efetivamente avançar na compreensão científica moderna. ___________ 1 Não resisto à indicação da leitura do conto "Funes, o Memorioso", de Borges, que narra a história de uma pessoa portadora de hipertimesia, ou seja, uma memória episódica e autobiográfica prodigiosa, o que, em primeiro momento poderia ser muito proveitoso e benéfico, mas, ao contrário, revela-se maléfico e fatal. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997. 2 Como sugere a Hipótese de Udo Undeutsch. A esse respeito, entre outros trabalhos: STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245. E, ainda, VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005. 3 ARE: 1399175 (Supremo Tribunal Federal, 2022), entre outros. 4 Como esse não é o objeto central do texto, remeto o leitor interessado a outro trabalho em que abordei a diferença entre as duas categorias. ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Confianza o credibilidad: un debate entre el Derecho y la Psicología del Testimonio. In: Congreso internacional de Derecho Constitucional: Argumentación e interpretación en el Estado Constitucional. Corte de Constitucionalidad - Instituto de Justicia Constitucional. Guatemala, 2024, p. (do artigo): 163-178  5 BERGSON, Henri. Resumo e conclusão. In: BERGSON, Henri. (org.). Matéria e memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 6 BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997. 7 BRAINERD, Charles J.; REYNA, Valerie F. Fuzzy-trace theory and false memory. Current Directions in Psychological Science, v. 11, n. 5, p. 164-169, 2002. 8 FERRER BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Salvador: Juspodivm, 2024. 9 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Cuestiones probatorias. Madrid: Marcial Pons, 2012. 10 IZQUIERDO, Iván. Memória. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018. 11 LOFTUS, Elizabeth F. Creating false memories. Scientific American, v. 277, n. 3, p. 70-75, 1997. 12 ROEDIGER, Henry L.; McDERMOTT, Kathleen B. Creating false memories: Remembering words not presented in lists. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, v. 21, n. 4, p. 803-814, 1995. 13 STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245. 14 VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005.
A intersecção entre a responsabilidade civil e o direito das famílias continua a ser um tema que chama atenção dos juristas, nas mais variadas situações. No presente texto, o recorte a ser feito refere-se aos danos e indenizações decorrentes da violência doméstica. Recentemente, em 9/10/24, houve a edição da lei 14.994 com o objetivo de alterar a legislação penal e "para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher". Entretanto, desde 2006, com a edição da lei 11.340/06, mais conhecida como lei Maria da Penha, encontra-se no art. 5º a descrição do conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Inclusive, o mencionado texto legislativo não coloca como um de seus requisitos o vínculo familiar ou a coabitação, tampouco a orientação sexual das pessoas envolvidas, aplicando-se, portanto, para casos de namoro, relações homoafetivas e outros tipos de relações. A lei Maria da Penha assegura, no art. 9, §4º e 5º, que aquele que causar a violência doméstica em qualquer grau deve ressarcir não só a vítima, mas também o SUS por todo o serviço prestado em decorrência da sua conduta. Ademais, no art. 24, inciso IV, está prevista a prestação de caução provisória, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica contra a ofendida. Em 22/11/21, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a lei Mariana Ferrer, cujo objetivo é coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. O contexto de aprovação da referida lei ocorreu após uma audiência na qual a vítima de violência contra a mulher foi a todo tempo revitimizada, sendo que as imagens e gravações de tais fatos viralizaram em redes sociais causando intensa comoção social no país. Por isso, os artigos 400-A e 474-A foram acrescentados ao CPP, os quais preveem a pena de responsabilização civil, penal e administrativa para aqueles que realizarem a chamada violência institucional. Já em 2022, com a edição da lei 14.344/22, denominada como lei Henry Borel, houve a descrição da violência doméstica e familiar contra criança e adolescente como qualquer ação ou omissão que importe em morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou patrimonial. E, de igual forma ao que dispõe a lei Maria da Penha, a violência também se caracteriza independentemente do vínculo familiar e de coabitação para sua configuração, incluindo-se, portanto, relações como a de padrastos, madrastas e enteados. E, não obstante a edição de tais legislações, conforme o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 20241, tem-se que o ano de 2023 apresentou um crescimento de mais de 23 mil casos de lesão corporal dolosa no âmbito da violência doméstica, se comparado ao ano de 2022. Também houve aumento no número de medidas protetivas concedidas, em um percentual de 26,7 em cotejo aos anos de 2022 e 2023. As denúncias de prática de stalking também cresceram no mesmo período em 34,5%, bem como as de violência psicológica em 33,8%. A agressão no ambiente doméstico persiste no momento contemporâneo, o que implica no ajuizamento de ações indenizatórias e faz com que os Tribunais tenham que enfrentar a temática da quantificação dos danos extrapatrimoniais. Sem olvidar da questão sob a esfera penal, Pontes de Miranda discorre sobre a existência de entendimento no sentido de inexistir a possibilidade de se cogitar em perdas e danos e indenização no âmbito da família, em razão do direito de família já prever certas sanções a determinadas situações. Todavia, tal concepção deveria ser posta de lado, uma vez que é "possível haver causa suficiente para indenização ou reparação, com fundamento noutra regra de direito civil".2 Assim sendo, é plenamente possível que o réu seja condenado a indenizar a vítima de suas agressões. Já se sustentou em sentido similar, em momento anterior, ao afirmar que o divórcio e os alimentos não seriam suficientes para tutelar adequadamente os integrantes da família. É preciso que a responsabilidade civil ingresse em alguns casos que o direito de família não consegue abarcar sozinho. Acaso fosse afastada a possibilidade de responsabilização civil no âmbito do direito das famílias, estar-se-ia incentivando a impunidade.3 Sobre este prisma deliberativo, o Tema 983 do STJ dispõe que, nos casos de violência doméstica, é possível a fixação de um mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que exista pedido expresso pela acusação ou pela ofendida, cuja fixação independe de instrução probatória. A fixação do valor de indenização extrapatrimonial, em regra, tem seguido o conhecido método bifásico, cujo idealizador foi o ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, em pesquisas realizadas sobre o "princípio da reparação integral".  O autor descreve que tal método seria "uma autêntica operação de concreção", na qual haveria duas fases: Na primeira, arbitrar-se-ia um valor inicial de acordo com o interesse jurídico lesado, o que permitiria uma razoável igualdade de tratamento para os casos semelhantes.4 Em um segundo momento, haveria a fixação definitiva da indenização, com a respectiva adequação do valor às peculiaridades do caso em concreto. Assim sendo, eleva-se ou reduz-se o montante conforme a gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes e culpa concorrente da vítima. Tal critério para quantificação da indenização está inserido no projeto de atualização do Código Civil que nos incisos I e II, do § 1º, do art. 944-A, cuja redação dispõe: "I - quanto à valoração do dano, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de indenização adotados pelos Tribunais, se houver, em casos semelhantes; II - quanto à extensão do dano, as peculiaridades do caso concreto, em confronto com outros julgamentos que possam justificar a majoração ou a redução do valor da indenização".5 Neste sentido, decisões recentes do TJ/SP na competência criminal têm fixado valores diversos, que variam entre um salário-mínimo (1500470-06.2023.8.26.0404)6, dois mil reais (1500365-77.2022.8.26.0270) e dez mil reais (1501823-62.2023.8.26.0572). Todas reafirmando que o dano moral é presumido (in re ipsa), inclusive decidindo que a hipossuficiência não é causa suficiente para o afastamento da indenização (1500365-77.2022.8.26.0270). Logo, o fato de o agressor ser hipossuficiente não deve gerar uma indenização de menor montante pecuniário para que não incentive a continuidade da violência, afetando a função preventiva da responsabilidade civil. Na esfera cível, em específico, de acordo com os casos julgados pelo TJ/SP entre 2023 e 2024, quanto às competências para fixar a indenização, os valores encontrados estão entre dez mil reais (0003529-63.2010.8.26.0491, 1023057-32.2014.8.26.0554 e 1012286-45.2014.8.26.0020); perpassando por vinte mil reais (0109811-24.2007.8.26.0009, 1015800-45.2014.8.26.0007 e 1002452-38.2015.8.26.0002). Em casos mais graves, como tentativas de homicídio, observa-se possível fixação de indenização em valores maiores, de até R$ 176.000,00 (0013367-82.2011.8.26.0624). A questão que se coloca em debate é se a responsabilidade civil seria o instituto que melhor abarca a reparação do dano causado à vítima de violência doméstica no Brasil. Verificou-se, no decorrer do estudo, que há vários instrumentos nas legislações que preveem a responsabilização do agressor pelos danos causados não só à vítima, mas também ao sistema que prestou serviços de saúde em razão do ocorrido e, ainda assim, o cenário de violências domésticas no país está longe de ser cessado. Houve recente aumento de pena ao crime de violência doméstica contra a mulher, mas o agressor que comete a conduta, no momento em que realiza o crime, não pensa se a pena é alta, se deverá ressarcir a vítima ou algo do tipo. A responsabilidade civil, ao que se viu diante dos julgados mencionados, não tem obtido êxito em ressarcir os danos na esfera penal, mas situação diversa foi notada no âmbito cível. Acontece que, no caso de violência doméstica contra a mulher, o ressarcimento do dano está deveras ligado ao patrimônio dos envolvidos, de modo que quanto mais dinheiro o agressor possuir, maior será a sua condenação. No entanto, não são esses casos que chegam ao Poder Judiciário com mais frequência, e sim aqueles cujo agressor tem menor condição financeira. Assim, ao se fixar um salário mínimo como medida de reparação - por levar em consideração a sua condição financeira -, o agressor não vai entender a compensação como uma forma de punição pelo crime cometido, e pode gerar a sensação de que violentar a mulher compensa. A responsabilidade civil em casos de violência doméstica precisa caminhar melhor na quantificação do dano causado à vítima, visando alcançar todo o contexto. Deve assegurar, inclusive, a sua adoção como método de prevenção e punição, de modo que os casos de ameaça e stalking - os crimes iniciais da violência -, sejam analisados celeremente, de maneira a reprimir o agressor, impedindo-o de dar continuidade aos atos e de violar a integridade física da mulher. Em resumo, é possível identificar que as vítimas de violência doméstica demandam no Poder Judiciário a respectiva indenização que, não obstante a reprimenda penal e cível, não é suficiente para impedir tais casos, tampouco reduzi-los. E, bem por isso, também caminhou o projeto de alteração do Código Civil de modo a permitir que o juiz analise todas as circunstâncias que impliquem em uma majoração nos valores a serem fixados, conforme parágrafo 2º e seguintes do art. 944-A. Portanto, verificou-se que, apesar de haver instrumentos que determinam o ressarcimento do dano causado à vítima de violência doméstica, os casos crescem. Assim, a responsabilidade civil, aliada à imprescindível persecução penal, se aplicada de maneira correta e com valores indenizatórios adequados, poderá cumprir não só uma função ressarcitória, mas também preventiva e punitiva. _________ 1 ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 2 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955, p. 190. 3 PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 27, n. 01, 2021, p. 45. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. 5 BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024. 6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. _________ ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 14.994 de 9 de outubro de 2024. (Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuc¸a~o Penal), a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher. Diário Oficial da União, 09 de outubro de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. (Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 07 de agosto de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Lei n. 14.344 de 24 de maio de 2022. (Cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, nos termos do § 8º do art. 226 e do § 4º do art. 227 da Constituição Federal e das disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), e 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 24 de maio de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 30 out. 2024. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, tomo VII, 1955. PAIANO, D. B.; FURLAN, A. C. Responsabilidade civil nas relações conjugais e convivenciais. Revista Brasileira de Direito Civil, [S. l.], v. 27, n. 01, p. 37, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024. SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da Reparação Integral, 1. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2024.
A Câmara dos Deputados aprovou em 05.11.2024, o projeto de lei 2597/24, como substitutivo ao projeto de lei da câmara 29, de 2017 (PL 3.555, de 2004). O diploma legal estabelece normas gerais em contratos de seguro privado e revoga dispositivos do CC, do CCB e do decreto-lei 73 de 1966. O presente texto, escrito antes de sua sanção presidencial, examina alguns dos reflexos da nova legislação dos contratos de seguros no direito de danos. Do ponto de vista do conteúdo, o novo marco legal dos seguros trata de princípios, interpretação do contrato, regulação e liquidação de sinistros, prazo prescricional, do interesse segurado, entre outras matérias. Sua estrutura contempla seis títulos: disposições gerais, seguros de danos, seguros sobre a vida e a integridade física, seguros obrigatórios, prescrição e disposições finais e transitórias. Quando sancionada e publicada, a nova lei revogará todo o capítulo do CC dedicado ao contrato de seguro, além de outras disposições pontuais sobre o tema, como o prazo de prescrição do art. 206, §1º, II. Com essa mudança, os seguros passam a contar com um diploma legal específico, o que demandará um importante diálogo com o CC, e com o anteprojeto de sua revisão, sobretudo para que seja mantida a sempre desejável unidade sistemática. A matéria dos contratos de seguro está hoje regulada em 46 arts. no CC. Com a sanção da nova lei, passam a ser 132 arts.s sobre o tema. A ampliação do número de dispositivos que regulamenta o tema revela a preferência por um regramento mais detalhado e previsível, deixando menor margem de discricionariedade para os aplicadores, cuja interpretação, muitas vezes, acaba por desconsiderar o cálculo atuarial e a distribuição de riscos que constituem a realidade econômica e técnica intrínseca a esta modalidade contratual. Nesse setor, o conhecimento prévio e a clareza das regras constituem aspectos essenciais para o cumprimento de seu objetivo, seja pelo potencial de direcionar o comportamento do segurado, seja por possibilitar cálculos mais precisos quanto ao risco coberto (STIGLITZ, Ruben S. Derecho de seguros. 2008). A longo prazo estes elementos podem reduzir o valor dos prêmios e expandir a utilização dos seguros, o que seria benefício não só aos contratantes quanto a toda sociedade.  Em âmbito funcional, a nova legislação externaliza dois vetores que a norteiam: a prevenção de danos e a maior proteção ao segurado. Em relação ao primeiro, observa-se que o segurado passa a ter um dever legal de comunicar o sinistro ao "tomar ciência (...) da iminência de seu acontecimento" (art. 66 do projeto de lei 2597/24), e não apenas a partir de seu acontecimento. Essa alteração reforça o dever de mitigar danos e agir de forma diligente. Para melhor compreensão, vale comparar o teor da redação vigente do CC:Os objetivos desta cientificação prévia ao dano, pontuados nos incisos do art. 66, não deixam dúvida que a alteração visa uma função preventiva, que, em rigor, não é nova. Encontra-se na doutrina francesa, já em 1936, que "a prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas também da repressão civil" (MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile). A nova lei torna expresso este objetivo, referendando uma vez mais o locus da colaboração das partes e da função preventiva no direito de danos, na linha do que é proposto também pelo anteprojeto de reforma do CC (cf. art. 187-A, §1º). O segundo vetor que parece ter guiado a nova legislação é a proteção ao segurado, por vezes de forma até mesmo paternalista. Para ilustrar, tome-se o parágrafo segundo do art. 9º o qual estabelece: "se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado". Essa determinação deve ser vista com cautela para que seja preservado o equilíbrio contratual, mormente considerando que o cálculo atuarial do prêmio é realizado tomando como elemento o valor da garantia de cada contrato, e não do modelo geral. Ainda na linha de maior proteção ao segurado, a nova legislação incorpora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em dois temas cujo regramento do CC se apresentava insuficiente, precisamente os efeitos da mora do segurado e a delimitação do que constitui agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária. Na literalidade do art. 763 do CC, "não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação". Assim, aquele que tivesse apenas uma ou algumas prestações vencidas quando da ocorrência do sinistro, perderia o direito à indenização. O STJ já havia sedimentado que "não basta o atraso no pagamento de parcela do prêmio para o desfazimento automático do contrato de seguro, sendo necessária a prévia constituição em mora, por interpelação específica" (STJ. AgRg no AREsp 543.101/SP, 13/2/20). Vale recordar o teor do enunciado da súmula 616 do STJ: "A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do contrato de seguro". A lei dos contratos de seguro incorpora a posição jurisprudencial, estatuindo que apenas a mora do segurado em relação ao adimplemento da primeira ou única prestação resolvem o contrato, ao passo que "a mora relativa às demais parcelas suspenderá a garantia contratual, sem prejuízo do crédito da seguradora ao prêmio, após notificação do segurado concedendo-lhe prazo não inferior a 15 dias, contado do recebimento, para a purgação da mora" (art. 20, §1º), de modo que o segurado apenas perderá o direito à indenização caso não seja purgada a mora no prazo concedido pela notificação.   Também quanto à definição do agravamento do risco para fins de exclusão da cobertura securitária a nova lei incorpora a jurisprudência do STJ. O art. 768 do CC estatui que o "segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato", em redação que claramente permite inferências diversas quanto a sua amplitude, notadamente se o agravamento abstrato do risco seria suficiente, ou se teria de estar diretamente relacionado ao sinistro concretamente ocorrido. Para a Corte de Vértice, a perda da garantia apenas é permitida quando o agravamento do risco constitui causa determinante para o sinistro, estando, portanto, a ele diretamente relacionado (STJ. REsp 1.466.237/SP, DJe de 18/12/2019). É nesta linha a disposição do art. 16 da nova lei, pelo qual "sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado". Como se percebe, a matéria vem mais bem detalhada na lei dos contratos de seguro: O agravamento voluntário do risco por parte do segurado permanece previsto como causa de perda da garantia (lei do contrato de seguros, art. 11, §1º), devendo ser imediatamente comunicado à seguradora para que opte entre a resolução ou o reajuste das prestações contratuais (art. 14). Caso não seja comunicada do agravamento, ocorrendo o sinistro, será da seguradora o ônus da prova do nexo causal entre o agravamento e o sinistro para justificar recusa ao pagamento da indenização (lei do contrato de seguros, art. 16). Vale ainda observar que a provocação dolosa de sinistro implica a extinção do contrato, sem direito ao capital segurado (lei do contrato de seguros, art. 69). Idêntica penalidade se aplica em caso de fraude cometida por ocasião da reclamação de sinistro (lei do contrato de seguros, art. 69, § 4º), temas que apresentam correspondência com o anteprojeto de reforma do CC, especificamente o disposto em seu art. 771-B.1 Há ainda outras interessantes alterações a serem analisadas, e tendo o presente texto o escopo apenas de apresentar as primeiras reflexões se limitará a destacar cinco outros temas. Em boa hora, o seguro de responsabilidade civil recebe especial atenção, passando a contar com regramento em capítulo próprio entre os seguros de dano. A positivação legal apenas materializa o que a doutrina há muito enuncia, notadamente que "a era da responsabilidade individual está encerrada. O direito moderno reclama uma completa revisão da responsabilidade civil, que deve evoluir para um contexto de seguros e seguridade social (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico, 2019). A facilitação do seguro de responsabilidade civil é de todo desejável: ganha o mercado, com a maior segurança dos profissionais no exercício de sua atividade, e também as vítimas, que passam a não depender da saúde financeira do causador do dano para obter a devida reparação pelos danos que venha a suportar. A prescrição passa a ter regramento mais extenso e detalhado. O art. 127 da lei do contrato de seguros define uma hipótese específica de interrupção da prescrição, a saber, quando a seguradora receber pedido de reconsideração da recusa de pagamento. A suspensão cessa quando o interessado recebe a comunicação da seguradora acerca de sua decisão. Em caso de mora da seguradora, a lei do contrato de seguros (art. 88) estabelece multa de 2% sobre o montante devido, corrigido monetariamente, sem prejuízo dos juros legais e da responsabilidade por perdas e danos, criando assim uma penalidade significativa.  No tocante à sub-rogação, é interessante notar que se impõe dever expresso do segurado "colaborar no exercício dos direitos derivados da sub-rogação, respondendo pelos prejuízos que causar à seguradora" (lei do contrato de seguros, art. 94, § 1º). A colaboração, como denota o art. 100, abrange informar de imediato a seguradora das comunicações recebidas que possam gerar reclamação futura; fornecer documentos; comparecer aos atos processuais para os quais for intimado, e abster-se de agir em sentindo contrário aos direitos e das pretensões da seguradora. Há inovação também em relação aos atos praticados por cônjuge, parentes e empregados, excluindo a possibilidade de ação própria da seguradora ou derivada de sub-rogação quando, nos termos da lei "decorrer de culpa não grave" (lei do contrato de seguros, art. 95). O resgate de gradação de culpa e distanciamento da responsabilidade por fato de terceiro de que trata o CC merece crítica2.       O novo texto legal apresenta uma exceção interessante a exclusão de medidas contra o causador nas hipóteses recém referidas. Na forma da lei do contrato de seguros, art. 95, parágrafo único. "Quando o culpado pelo sinistro for garantido por seguro de responsabilidade civil, é admitido o exercício do direito excluído pelo caput deste artigo contra a seguradora que o garantir", ainda que seja cônjuge, parente ou empregado. Em visão prospectiva, o material legislativo se encontra na iminência de sanção e aprovação. Caberá agora a doutrina desempenhar o seu papel de "explicitar, sistematizar, compreender e desenvolver o que está 'posto' pelas normas de direito" (MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de Direito Privado. 2014). ________ 1 BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do CC. 2024. Art. 771- B. "A provocação dolosa de sinistro gera a perda do direito à garantia, sem prejuízo do prêmio vencido e da obrigação de ressarcir as despesas feitas pela seguradora". Disponível aqui.  2 Em relação a controvérsia sobre a expressão, recorde-se o que estabelece a CIRCULAR SUSEP 541/2016, art. 3º, inc. VIII: "culpa grave: é aquela que, por suas características, se equipara ao dolo, sendo motivo para a perda de direitos por parte do Segurado. A culpa grave deverá ser definida pelo Judiciário ou por arbitragem".
Recente decisão da 11ª Vara do Trabalho de João Pessoa, vinculada ao TRT13, condenou uma Igreja ao pagamento de indenização no valor de R$200.000,00 pelo constrangimento ilegal e imposição a um pastor em realizar uma vasectomia. De acordo com uma testemunha do processo, "as ações de constrangimento passaram desde a entrega de um envelope com dinheiro para o pagamento da cirurgia até impedir o homem de contar sobre a vasectomia aos pais ou, até mesmo, de prosseguir com o casamento caso se recusasse a se submeter ao procedimento"1.  Conforme nota publicada na UOL, são mais de 65 processos envolvendo a Universal e ex-pastores que teriam sido coagidos a realizar vasectomia.2 É incontroverso que o direito ao planejamento familiar envolve a programação de ter filhos ou não filhos, quantos ter e quando os ter e eventual invasão nessa seara tão íntima é causa legítima e desencadeadora do dever de indenizar.3 A autonomia reprodutiva não pode ser vulnerada por um suposto vínculo empregatício e também por uma suposta proteção aos interesses da Igreja invadindo aspecto da vida dos pastores. Ademais, impor uma medida de não reprodução para alguém que é empregado de determinada igreja e segue a Bíblia seria contrapor o próprio texto sagrado que estabelece "sede férteis e multiplicai-vos!". O ponto em destaque da presente decisão é o suposto descompasso entre a jurisprudência trabalhista e civilista. O mesmo Judiciário possui decisão do TJPB que adota que a realização não consentida de uma laqueadura em hospital público geraria o dever de indenizar no valor de R$20.000,00.4 Ocorre que as decisões judiciais em relação aos danos extrapatrimoniais devem seguir o método bifásico, conforme reconhecido pelo STJ desde 2011, por ocasião do AgRg no Ag 1.331.805/RJ, de relatoria do min. Paulo de Tarso Sanseverino.  A primeira fase busca trazer precedentes judiciais análogos para firmar uma base indenizatória comum e a segunda fase se propõe a reconhecer as particularidades do caso concreto diante das agravantes e atenuantes para majorar ou minorar o quantum indenizatório.5 Ou seja, os processos submetidos à justiça comum e trabalhista seguem precedentes análogos em função da matéria, mas distintos em relação ao quantum, resultando em uma significativa diferença de valor. Se o Judiciário se propõe a ser uno e indivisível, caberia uma suposta falta de uniformidade tão gritante no padrão indenizatório? Essa suposta falta de parâmetro indenizatório comum acaba por gerar uma evasão da justiça comum e uma tentativa de enquadramento da relação de emprego ou trabalho visando justificar a competência da Justiça do Trabalho e aplicar uma série de julgados justrabalhistas com valores indenizatórios maiores. Nesse sentido, há uma busca de um suposto forum shopping e a multiplicação de conflitos judiciais por causa da escolha, pelo particular, do juízo mais conveniente e supostamente competente para apreciar a demanda. Como bem alertam Ivo Gico Júnior6 e Luciana Yeung7, a partir de um juízo de seletividade, o autor pode buscar, por estratégia processual, litigar no juízo trabalhista e não no juízo comum. Especificamente em relação aos casos dos ex-pastores, inúmeras são as decisões justrabalhistas que ratificam a relação de emprego e responsabilizam as igrejas por vasectomias compulsórias, além de também haver ações e pedidos formulados por cônjuges objetivando a reparação por danos em ricochete com fundamento também na violação ao direito reprodutivo. Porém, também são recorrentes as decisões judiciais que identificam a ausência de prova da imposição das esterilizações não consentidas. Essa suposta evasão da justiça comum acaba por agravar a quantidade de conflitos, conforme se observa em recente notícia veiculada pelo STJ, por ocasião do julgamento do conflito de competência 202513 PE, que decidiu suspender a reclamação trabalhista proposta pela mãe do menino Miguel sob o argumento de que o processo trabalhista e o processo civil envolvem fatos e causa de pedir comuns e sobrepostas. A decisão a título precário confirma que a morte do menino Miguel não teria fundamento propriamente na relação trabalhista, mas de uma relação tipicamente civil. Ocorre que, independente da competência originária, mostra-se racional, sob uma perspectiva individual, que o autor busque deslocar a demanda para esfera trabalhista, pois, como visto, o método bifásico trabalhista possui um quantum indenizatório referencial maior do que em comparação ao da justiça comum. Talvez por caracterizar um maior grau de reprovabilidade da conduta do empregador e também em razão da condição de vulnerável do trabalhador, o parâmetro indenizatório trabalhista seja diferenciado, porém enquanto não existir uma uniformidade decisória, haverá uma proliferação de demandas e um excessivo questionamento sobre o quantum indenizatório, notadamente quando utilizarmos como standard o da Justiça do Trabalho. O ponto de partida da justiça especializada e comum seria o mesmo, porém a trajetória seria distinta. Nesse cenário, é incontroverso que a conduta isolada de desrespeito aos direitos reprodutivos e planejamento familiar é grave, porém é também legítimo debater se os agravantes e atenuantes analisados pela Justiça do Trabalho permitem uma espécie de distinguishing jurisprudencial, em virtude dos valores sociais distintos envolvidos na ratio decidendi civil tradicional. Enquanto não houver o discernimento de que a Justiça do Trabalho promove decisões especializadas e fundada em balizas decisórias diferenciadas da justiça comum, haverá diversas críticas sem a necessária compreensão da história, função e valores envolvidos no processo decisório. Paralelamente, também haverá uma série de ações tipicamente civis que buscarão considerar os parâmetros justrabalhistas para condenações, o que, de igual forma, não se mostra razoável. Os desafios principiológicos são evidentes, pois a mercantilização em prol da escolha de foro traduz a densidade axiológica do acesso à justiça, devido processo legal e boa fé processual em que se veda o abuso de direito. Existe espaço para o fórum shopping visando majorar indenizações em decorrência de violações aos direitos reprodutivos e planejamento familiar? Ficam as reflexões. ________ 1 Disponível aqui. 2 COSTA, Raniere. UOL. Ex-pastores acusam Universal de obrigá-los a fazer vasectomia: 'Ameaças'. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024. 3 SANTOS, Andressa Regina Bissolotti dos. "Filiação afetiva planejada": livre planejamento familiar e filiação à luz da inseminação artificial caseira. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 32, 1, p. 91-114, jan./ mar. 2023. 4 GUEDES, Lenilson. Erro médico: Estado deve indenizar mulher em danos morais. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024. 5 Nesse sentido sugerimos a leitura de FAMPA, Daniel Silva; PENNA, João Vitor. O Método bifásico de quantificação das indenizações por danos morais: apontamentos a partir da jurisprudência do STJ. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024; FACCHINI NETO, Eugênio. Origens e evolução do método bifásico na quantificação dos danos morais. Disponpivel aqui. Acesso em 28 set. 2024 e MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Disponível aqui. Acesso em 28 set. 2024 6 GICO JÚNIOR, Ivo T. Análise Econômica do Processo Civil. Indaiatuba: Editora Foco, 2020. 7 YEUNG, Luciana. Jurimetria ou Análise Quantitativa de Decisões Judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha (org.). Pesquisar empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. p. 249-274
O STF iniciará, no dia 27 de novembro, o julgamento do recurso extraordinário 1.037.396 (repercussão geral tema: 987), que discute a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI - Marco Civil da Internet1. O julgamento traz em seu bojo a discussão essencial do futuro da liberdade de expressão no Brasil2. A proposta é responder a questões fundamentais que possam orientar o STF a conduzir este julgamento, equilibrando a proteção da liberdade de expressão com o controle de conteúdos ilegais: Quais diretrizes os padrões internacionais de Direitos Humanos fornecem para estabelecer limitações à liberdade de expressão? Considerando essas diretrizes de Direitos Humanos, quais critérios claros e objetivos podem ser usados para restringir a liberdade de expressão no combate a conteúdos ilegais? Quais são as hipóteses de restrição de conteúdos ilegais que o STF deve definir no combate a conteúdos ilegais? Quais diretrizes os padrões internacionais de Direitos Humanos fornecem para estabelecer limitações à liberdade de expressão? Os padrões internacionais de direitos humanos definem aspectos fundamentais para a liberdade de opinião, que possui duas dimensões: uma interna, relacionada com o direito à vida privada e à liberdade de pensamento; e outra denominada externa, relativa à liberdade de expressão3. A liberdade de opinião é absoluta, ampla e inerente aos seres humanos, já que protege as opiniões das pessoas. Envolve o direito de mudar de opinião, no momento, e pelo motivo que a pessoa eleger, de forma livre4. Já a liberdade de expressão é mais abrangente e engloba, inclusive, a liberdade de procurar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, independentemente das fronteiras e através de qualquer meio de comunicação, offline ou online4. Por isso, o Estado tem o dever de se abster de interferir na vulneração deste direito humano e, ao mesmo tempo, também a obrigação de garantir que outros, incluindo empresas privadas, não interfiram nele. A liberdade de expressão pode ser restringida em determinadas circunstâncias3. O seu exercício não é ilimitado, implicando em deveres e responsabilidades. Tais deveres e responsabilidades são claramente delimitados por instrumentos internacionais, assim como estão sujeitos a critérios muito restritivos quanto à sua interpretação e à sua aplicação. O art. 29 (2) da Declaração Universal dos Direitos Humanos determina que o exercício da liberdade de expressão pode sofrer limitações previstas em lei, com o objetivo de "promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática"13. De igual maneira, o art. 19 (3) do PIDCP - Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos determina que o exercício do direito à liberdade de expressão implicará em deveres e responsabilidades especiais, podendo estar sujeito a restrições expressamente previstas em lei que se façam necessárias para: "a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas"13,5. Considerando essas diretrizes de Direitos Humanos, quais critérios claros e objetivos podem ser utilizados para restrição da liberdade de expressão no combate a conteúdos ilegais? O teste tripartite, previsto no art. 19, especificamente no parágrafo 3°, estabelece os critérios para restrições legítimas à liberdade de expressão, estruturados em um teste de três partes. Para serem legítimas, as restrições à Liberdade de expressão devem obedecer aos seguintes critérios: Legalidade: Qualquer limitação à liberdade de expressão deve ter sido prevista com antecedência, de forma expressa e clara em lei, no sentido formal e material. Uma vez que existe proibição de censura prévia, a lei que estabelece a limitação à liberdade de expressão só pode referir-se à exigência de responsabilidades subsequentes. Assim, quaisquer interferências que se baseiem em outras medidas, em princípio, são ilegítimas. Objetivo legítimo (justificação para proteção): Qualquer limitação deve ser orientada para a consecução de objetivos legitimamente autorizados, que visem proteger os direitos humanos de outros, proteger a segurança direito nacional, ordem pública, saúde pública ou moral pública. Necessidade e proporcionalidade: A limitação deve ser necessária em uma sociedade democrática para a consecução dos fins imperativos que se buscam; estritamente proporcional ao fim perseguido; e adequado para alcançar o objetivo convincente que busca alcançar. Não se deve limitar um direito além do estritamente indispensável para o alcance da finalidade. Importante ter em mente que quando um Estado impõe restrições ao exercício da liberdade de expressão, estas não podem colocar em risco o próprio direito. Portanto, apresentam-se quais seriam as hipóteses de restrição de conteúdos ilegais que o STF deve definir no combate à conteúdos ilegais dentro dos limites de atuação do Poder Judiciário. Quais são as hipóteses de restrição de conteúdos ilegais que o STF deve definir no combate à conteúdos ilegais? O próprio MCI estabelece que, além da liberdade de expressão, outros princípios devem ser observados, como a dignidade da pessoa humana e a garantia dos direitos humanos (art. 2°, lei 12.965/14)7. O art. 19 não apresenta as hipóteses de restrição de conteúdos ilegais, devendo ser interpretado em consonância com o ordenamento jurídico internacional para admitir exceções2,6. Embora o MCI já preveja situações excepcionais para aplicação do sistema de notice and takedown, especialmente em casos de conteúdos contendo nudez ou cenas de atos sexuais (art. 21), isso não impede que tais disposições sejam aprimoradas e atualizadas. Esse aperfeiçoamento não significa que o Judiciário estaria invadindo competências legislativas - que devem ser desenvolvidas pelo processo legislativo adequado -, mas, sim, aplicando uma interpretação conforme a CF/88, para abranger outras exceções que possam se justificar. As exceções podem ser ampliadas, em uma interpretação conforme à constituição, para abranger casos em que há violação grave aos direitos fundamentais, estabelecendo parâmetros claros para que as plataformas tomem ações mais rápidas e eficazes. As novas hipóteses devem constituir exceções bem definidas de conteúdos manifestamente ilegais gerados por terceiros que: Atentem contra o Estado Democrático de Direito; Atentem contra o processo eleitoral; Racismo; Exploração e Abuso sexual de crianças; Terrorismo; Emergência em saúde pública; Violência de gênero contra mulheres2. O fundamento da proposta da fixação destas hipóteses para restrição da liberdade de expressão no combate a conteúdos manifestamente ilegais é justamente a sua previsão e consolidação em instrumentos internacionais de direitos humanos. Atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito O conteúdo ilegal disseminado em plataformas digitais também pode atentar contra o Estado Democrático de Direito e comprometer o processo eleitoral, representando uma grave ameaça à segurança e à confiança da população nas instituições. Sobre os Atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito, seu fundamento se dá nos principais documentos estruturantes das democracias contemporâneas, como a DUDH e o PIDCP. A remoção desse conteúdo exige uma atuação preventiva das plataformas, especialmente no combate à desinformação. De acordo com a ONU, as plataformas digitais, como principal ator na manutenção da integridade da informação, devem abster-se de usar, apoiar ou ampliar a informação falsa usada para enfraquecer os processos democráticos24. Atos que atentem contra o processo eleitoral Nos Atos que atentem contra o processo eleitoral, seu fundamento se dá nos principais documentos estruturantes das democracias contemporâneas, como a DUDH, no art. 21 e o PIDCP, no art. 25. Racismo Sobre o racismo, DUDH, o art. 1, a convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial8 e a declaração da UNESCO sobre raça e preconceito Racial9. Consoante a declaração da UNESCO sobre raça e preconceito racial, a mídia de massa deve contribuir para a erradicação do racismo (art. 5º, item 3). O documento reconhece que a comunicação proveniente da liberdade de expressão deve ser um processo "[...] que lhes permita manifestar-se e fazer compreender-se com toda a liberdade"9. Exploração e abuso sexual de crianças Segundo a UNESCO10, a proteção das crianças no ambiente digital deve ser realizada em cooperação com o setor privado, que deve ter funções de moderação e ferramentas efetivas de denúncias. A UNICEF, em cooperação com o Global Compact da ONU e a organização Save the Children, reconhecem que as crianças têm necessidades de desenvolvimento peculiares e são especialmente vulneráveis à exploração e ao abuso. De acordo com o Children's Rights and Business Principles11, as plataformas devem assumir a responsabilidade e evitar tais violações. A proteção desse aspecto já está consolidada por meio da ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança12. O documento elenca o princípio do melhor interesse da criança e o direito à sobrevivência, que devem sustentar qualquer ação tomada pelas empresas11. Terrorismo Outro aspecto relevante que exige uma rápida atuação das plataformas é a remoção de conteúdo de atos de terrorismo. O direito internacional já proíbe o incitamento à discriminação na Declaração Universal dos Direitos Humanos13, que é definido pelas Nações Unidas como uma forma de expressão que provoca e/ou inclui atos de terrorismo14. Além disso, a declaração de Delhi, adotada pelo Conselho de Segurança da ONU, consolidou o compromisso do Brasil no combate ao uso de novas tecnologias para fins terroristas15. A comunidade internacional considera que as plataformas digitais possuem o dever de agir para coibir tais conteúdos. A UNESCO16, por exemplo, já atribuiu às plataformas a responsabilidade pela remoção de transmissões ao vivo de atos de terrorismo. Emergência em saúde pública Outra situação delicada ocorre durante episódios de emergência em saúde pública, como observado durante a pandemia da COVID-19. Em tais momentos, a integridade da informação é essencial para a confiança e a segurança da população nas instituições. Durante a pandemia, a proliferação de informações falsas sobre vacinas e medidas de saúde pública causaram danos globais. No âmbito jurídico, o PIDESC - Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais17 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos13 garantem o direito fundamental à saúde. A OMS determina que as plataformas de mídia social têm a responsabilidade de garantir o acesso à informação de alta qualidade e baseada em evidências na área da saúde18. Violência de gênero contra mulheres Outro contexto sensível envolve o aumento da violência facilitada pela tecnologia, que afeta especialmente mulheres em todo o mundo. Do ponto de vista normativo, a convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher exige que a condenação de todas as formas de violência contra a mulher seja feita "[...] por todos os meios apropriados e sem demora" (art. 6)19. No âmbito das Nações Unidas, a declaração sobre a eliminação de violência contra as mulheres garante o direito à proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em qualquer campo da vida da mulher (art. 3)20. Disposição semelhante também é vista na convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, de 197921. Outra situação crítica refere-se à difusão de conteúdos pornográficos, especificamente em relação à divulgação não consensual de imagens e/ou vídeos íntimos ou manipulados por novas tecnologias (deepfakes, IA, etc). Conforme o DSA - Digital Services Act da União Europeia, as plataformas digitais devem garantir os direitos das vítimas por meio do tratamento rápido de notificações e da célere supressão do conteúdo pornográfico ilegal (considerando 87)22. Essa proibição decorre diretamente da proteção contra violência psicológica e sexual da mulher, prevista em diversos documentos internacionais. Como exemplo, a convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (art. 1) e a Resolução da ONU sobre privacidade na era digital23. A proteção desse aspecto decorre de instrumentos jurídicos internacionais, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que submete o direito à liberdade de expressão a restrições que considera "[..] necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública"25. Conclusão Em conclusão, a necessidade de combate à conteúdos ilegais em casos de graves violações aos direitos humanos exige uma abordagem mais proativa e ágil das plataformas digitais.  Nesse sentido, a resposta juridicamente adequada do STF seria declarar a constitucionalidade do art. 19 da lei nº 12.965/2014, proferindo uma interpretação conforme à Constituição para reconhecer o dever de limitação da liberdade de expressão nos casos excepcionais destacados no texto, que atentam contra direitos humanos reconhecidos internacionalmente. Como se sugere ser o dispositivo deste julgamento, equilibrando a proteção da liberdade de expressão com o controle de conteúdos ilegais que possibilite uma aplicação prática destas hipóteses? Art. 19 da lei 12.965/14 é declarado constitucional, mas, em razão da interpretação conforme à CF/88, reconhece-se que os provedores de internet, websites e gestores de redes sociais poderão realizar a limitação da liberdade de expressão nos seguintes casos excepcionais, desde que o conteúdo seja manifestamente ilegal e se enquadre nas situações abaixo, sem a necessidade de ordem judicial prévia: Atentem contra o Estado Democrático de Direito; Atentem contra o processo eleitoral; Racismo; Exploração e Abuso sexual de crianças; Terrorismo; Emergência em saúde pública; Violência de gênero contra mulheres. O provedor de aplicações de internet poderá agir de forma autônoma e imediata na remoção desses conteúdos manifestamente ilegais, sem necessidade de ordem judicial, desde que tal conteúdo seja claramente identificado como violador de direitos fundamentais ou infrator da ordem pública, conforme a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. A limitação da liberdade de expressão deve ser restrita ao mínimo necessário para a proteção dos direitos fundamentais, com base nos critérios da necessidade, proporcionalidade e adequação. ________ 1 NUNES, Vinícius. STF julga ações sobre o Marco Civil da Internet no dia 27 de novembro. 2024. 2 BORGES, Gustavo. STF decide futuro da liberdade de expressão no Brasil. Migalhas, 2024. 3 ONU. A/HRC/47/25: Desinformação e liberdade de opinião e expressão: relatório da Relatora Especial sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, Irene Khan. 2021. Disponível aqui. 4 ONU. Comentário Geral n. 34: art. 19 Liberdade de opinião e liberdade de expressão. 2011. Disponível aqui. 5 BRASIL. Decreto no 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. 1992. Disponível aqui. 6 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Controle de constitucionalidade do Marco Civil da Internet em audiência no STF. Consultor Jurídico, 2023. 7 BRASIL. lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2014. 8 ONU. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. ONU, 1968. 9 UNESCO. Declaração sobre Raça e Preconceito Racial. Paris, UNESCO, 1978. 10 UNESCO; CHILDHOOD BRASIL; INTERNATIONAL TELECOMMUNICATION UNION; BROADBAND COMMISSION FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT. Segurança online de crianças e adolescentes: minimizar o risco de violência, abuso e exploração sexual online. 2020. Disponível aqui. 11 UNICEF; THE GLOBAL COMPACT; SAVE THE CHILDREN. Children's Rights and Business Principles. 2010. Disponível aqui. 12  ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. 13 ONU. Assembleia Geral. Declaração Universal de Direitos Humanos. Paris. 1948. Disponível aqui. 14 PÉREZ, Ana Laura. As políticas das grandes plataformas referentes a discurso de ódio durante a COVID-19. UNESCO, 2021. Disponível aqui. 15 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. XIII Cúpula do BRICS - Declaração de Nova Delhi. 2021. Disponível aqui. 16 UNESCO. Diretrizes para a governança de plataformas digitais: salvaguardar a liberdade de expressão e o acesso à informação por meio de uma abordagem multissetorial. 2023. Disponível aqui. 17 ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). 1966. Disponível aqui. 18 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Reunião de consulta online da OMS para discutir princípios globais para identificar fontes confiáveis ??de informações sobre saúde nas redes sociais. 2022. Disponível aqui. 19 ONU. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, "Convenção de Belém do Pará". 1994. Disponível aqui. 20 ONU. Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres: resolução / adotada pela Assembleia Geral. 1993. Disponível aqui. 21 ONU.Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. 1979. Disponível aqui. 22 UNIÃO EUROPEIA. Digital Services Act: Regulation (EU) 2022/2065 of the European Parliament and of the Council of 19 October 2022 on a Single Market For Digital Services and amending Directive 2000/31/EC. 2022. Disponível aqui. 23 ONU NEWS. Nações Unidas adotam resolução sobre privacidade na era digital. 2014. Disponível aqui. 24 ONU. Informe de Política para a Nossa Agenda Comum: Integridade da Informação nas Plataformas Digitais. 2023. Disponível aqui. 25 CONSELHO DA EUROPA. Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 1950. Disponível aqui.
O desastre ambiental vivenciado no Brasil com a proliferação de queimadas e a absorção da atmosfera por uma colcha de fumaça e poluição estacionada sobre o país provoca o enfrentamento das potencialidades de risco ambiental ligadas ao uso e descontrole do fogo. Tem-se aqui tanto um enfrentamento quanto a ações e omissões culposas quanto dolosas. Nesse horizonte, abre-se um tema de direta repercussão: em que medida o princípio da prevenção pode se materializar em obrigações diretas em face do risco de queimadas e de sua proliferação? O desafio enfrentado passa pela concretização de obrigações de análise e gestão de risco que retirem o princípio da prevenção de uma articulação puramente centrada em conceituações juridicamente indeterminadas e lhe permitam assumir tons efetivos de densificação. O quadro estrutural de desastre atmosférico provocado pelas queimadas possui dois diplomas regulatórios recentes e implicados nessa tarefa de densificação da prevenção, a lhe dotar de critérios diretos e de teor obrigacional, que certamente influenciam tanto a dinâmica da responsabilidade administrativa quanto da responsabilidade civil ambiental. O primeiro desses marcos regulatórios é a lei 14.944, de 31 de julho de 2024. A Lei instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que, apesar de toda sua relevância, provocou pouco calor jurídico-social, por irônico que o seja. A prevenção de incêndios foi conceituada como conjunto de atividades relacionadas com o controle e a extinção de incêndios desde a sua detecção até a sua extinção completa, sendo previsto um plano operativo de prevenção e combate a incêndios florestais. Juntamente com a obrigação de prevenção e gestão regular do uso do fogo, a Lei estabeleceu em seu artigo 45 a disciplina da responsabilização pelo uso irregular. O marco regulatório dispõe que o uso irregular do fogo provoca responsabilidades civil, administrativa e penal. Apesar de já ser isso possível, §1º do artigo 45 estabelece uma dinâmica própria de obrigação de prevenção e gestão de risco. Dispõe expressamente que o responsável pelo imóvel rural implementará ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama. Isso significa que os imóveis rurais como um todo no Brasil, principalmente em áreas de risco de incêndios, passam a ter obrigações de concretização específicas para prevenir e combater o risco de queimadas. Em sequência, o artigo 46 determina que o descumprimento das atividades estabelecidas nos planos de manejo integrado do fogo que resultar em incêndios florestais e causar prejuízos ambientais, socioculturais ou econômicos sujeita diretamente à responsabilidade civil, administrativa e penal. A obrigação de prevenção e gestão de risco passa a contar com atributos de aplicação direta e densificada. A regulação dessas obrigações ocorreu por meio do Decreto 12.189, de 20 de setembro de 2024, que alterou o Decreto n. 6.514/08. Há especial destaque para a previsão do artigo 58-C. A norma administrativa estabelece como infração ambiental deixar de implementar, o responsável pelo imóvel rural, as ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama. Portanto, as normas de prevenção e gestão de risco do Ibama passam a ser obrigatórias na adoção de gestão de risco em face de queimadas tanto por atores privados quanto públicos. A multa prevista, além de outras penalidades e medidas acautelatórias como o embargo, é de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). O dever de prevenção, além de ganhar carga densificadora, passa a contar com disposição expressa de teor punitivo sob o ângulo do comando controle. É relevante enfatizar que a norma não é uma vedação ao uso do fogo. Trata-se de um regramento normativo justamente para que as práticas ainda existentes de uso do fogo sejam executadas nas hipóteses e formas permitidas. Por essa razão se fala de Manejo Integrado do Fogo (MIF). O potencial de responsabilização será configurado se as disposições de prevenção e manejo integrado do fogo forem violadas. A partir do novel marco regulatório do uso regular do fogo e de prevenção a queimadas, o Ibama procedeu ao mapeamento de áreas vulneráveis, assim como de áreas de maior incidência em ignição de queimadas. O termo ignição significa justamente o fator de origem que acarreta o início da ocorrência do fogo. A pura situação de clima seco ou de propagação no tempo das secas não acarreta por si as queimadas. As rotineiras propagações do senso comum de ocorrência natural e contínua de queimadas não correspondem plenamente à realidade. No fluxo natural, se ausente a atuação humana, podem ocorrer incêndios cujo fator de ignição é um raio, por exemplo. Entretanto, em uma situação como esta, a própria conjuntura já indica chuva a ocorrer. Assim, ignições naturais de queimadas por raios são em curto prazo levadas ao fim pela própria chuva intercalada com a situação de causa do início do fogo. Situação congênere não ocorre com causas antrópicas de ignição. É a ação humana a fonte da queimada, seja culposa, seja dolosa ou mesmo com intuito criminoso. As ocorrências de incêndio atuais são eminentemente de causa humana, são antrópicas, tanto em sua ocorrência quanto em sua propagação. Advém daí toda a relevância da atuação preventiva sobre as áreas de risco de ignição e propagação. Além disso, o uso e ocupação humanas é comumente realizado com plantação de vegetação ou gramíneas exóticas, cujo potencial de combustão é superior ao da vegetação nativa, elevando tanto o risco quanto a propagação de incêndios também por fator contributivo antrópico do titular da área. Para fins de operacionalização de diretivas quanto à prevenção por proprietários e possuidores de áreas rurais, o Ibama elabora as denominadas Notificações Preventivas, constantes em editais publicados e disponíveis publicamente, sem prejuízo de seu encaminhamento pessoal. Para fins de exemplificação, aborda-se aqui o Edital de Notificação n. 21/2024, datada a publicação no Diário Oficial de 9 de outubro de 2024. No edital, o Ibama fundamenta a seleção de área com base em monitoramento por satélite, que veio a avaliar o alto risco de ocorrência de incêndio florestal. Os imóveis são identificados no anexo, com listagem numérica do registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), dimensão de área, município em que está localizado, nome do imóvel e dados do proprietário ou possuidor. Além disso, são arroladas as obrigações concretas de prevenção a serem adotadas. No caso da Notificação n. 21/24, tem-se as seguintes obrigações dispostas:  1 - Construir aceiros no entorno de áreas cobertas por vegetação nativa (Reserva Legal, Áreas de Proteção Permanente e demais remanescentes florestais nativos). A largura adequada do aceiro dependerá das condições climáticas da região, topográficas e material combustível florestal existente na propriedade; 2- Capacitar mão de obra e disponibilizar ferramentas, equipamentos e maquinários para utilização em prevenção e combate aos incêndios florestais; 3- Manejar adequadamente as áreas de pastagens para evitar acúmulo de material combustível florestal (crescimento excessivo das gramíneas exóticas); 4 - No período crítico para ocorrência de incêndios florestais, manter constante vigilância da propriedade e articulação com os vizinhos. Ao sinal de fumaça (mesmo que fora da propriedade) acionar os recursos necessários e avisar os vizinhos; 5 - Observar se na Unidade Federativa (Estado) onde está localizada sua propriedade, existem leis, decretos ou outras normas relacionadas à proibição de uso do fogo para limpeza e manejo de áreas rurais. O Ibama notifica os proprietários rurais, que o descumprimento dessa notificação pelo uso ilegal do fogo em áreas agropastoris resultará em multa de R$3.000,00 (três mil reais) por hectare ou fração, conforme previsto no artigo 58 do Decreto Federal 6.514/2008 - Descrição da infração ambiental: Fazer uso do fogo em área agropastoril, sem autorização do órgão competente. Caso o fogo atinja área de vegetação nativa (Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente ou outras categorias de remanescentes florestais nativos), o proprietário ou possuidor a qualquer título de imóvel rural, incorrerá na prática de infração ambiental com multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração (dependendo do caso concreto), conforme previsto no artigo 58-A do Decreto Federal 6.514/2008, além de responder por crime ambiental previsto na Lei 9605/1998. Além disso, o não cumprimento desta notificação configura a infração prevista no art. 58-C do Decreto Federal 6.514/2008, Descrição da infração ambiental: Deixar de implementar, o responsável pelo imóvel rural, as ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em sua propriedade de acordo com as normas estabelecidas pelo Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo e pelos órgãos competentes do Sisnama, com multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$10.000.000,00 (dez milhões de reais). Por fim, de acordo com os artigos 3º, 15, 16 e 101 do decreto Federal 6514/2008, o embargo será aplicado sempre que a atividade não obedecer às determinações regulamentares.  Essa cominação soma-se às previsões de responsabilização civil pelo dano, que se coliga às atuações administrativas sancionatórias. A notificação deriva um dever especial de diligência e proteção ao proprietário ou possuidor, que acarreta efeitos tanto em termos de responsabilidade punitiva quanto de responsabilidade reparatória. Há, portanto, ponto de comunicância da atribuição de dever administrativo especial com a obrigação reparatória potencial decorrente da condição de proprietário ou possuidor. O Tema Repetitivo n. 1204, firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, configurou a responsabilidade propter rem em matéria de dano ambiental pela ótica do poluidor indireto, para além da figura do poluidor direto, também prevista como responsável. A consequência em termos de responsabilidade civil ambiental é relevante, quando se articula a obrigação de prevenção, que ganhou densificação, com a obrigação propter rem. Há julgados no âmbito federal e estadual que tratam da responsabilidade civil sob a perspectiva de quebra do nexo de causalidade em situações de dano ambiental advindo de incêndio, inclusive provocado por terceiros. O argumento de exclusão não seria, por óbvio, uma excludente em si da responsabilidade objetiva pela teoria do risco integral, mas sim a quebra do nexo de causalidade por não ter o proprietário ou possuidor contribuído, positiva ou negativamente, para a situação do dano. Essa dimensão de responsabilidade e sua exclusão não alcança apenas a reparação do dano em si, o denominado dano ambiental material, mas também o dano moral ambiental e o dano interino ou intercorrente. A modificação normativa imprime ainda maior ênfase à corrente jurisprudencial que afirma a caracterização de lastro de responsabilidade, e manutenção do nexo de causalidade, quando o proprietário ou possuidor não adota medidas preventivas e de resguardo em face seja de incêndios, seja de atuações de terceiros que contribuam para danos. A causa normativa dessa responsabilidade é a qualificação do proprietário ou possuidor como poluidor indireto, conforme dispõe a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), aplicando-se o dever de cuidado como aditivo à obrigação propter rem. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no julgamento da Apelação Cível n. 572623-0002480-11.2012.4.05.8000, firmou que o nexo de causalidade em responsabilidade ambiental se sustenta no dever geral, ou mesmo especial, de adoção de providências eficazes em face do ilícito ambiental. Já o Tribunal Regional Federal da 1ª Região firmou decisão recente, datada de maio de 2024, fundada no Tema Repetitivo n. 1204 do STJ, no sentido de que a responsabilidade reparatória ambiental é derivada da função social da propriedade e dos deveres a ela inerentes (Apelação Cível n. 0000923-70.2006.4.01.4100). A lei 14.944/24 e o Decreto 12.189/24 determinam uma guinada de densificação nas obrigações ambientais dos proprietários e possuidores rurais, com a concretização de planejamentos e gestão de riscos em face de incêndios, em uma verdadeira due diligence ambiental, cujo descumprimento ocasiona tanto a responsabilidade reparatória quanto a sancionatória. Há uma concretização de dever de cuidado a robustecer as obrigações derivadas da função social da propriedade. A tendência verificada é o fortalecimento das linhas jurisprudenciais que já afirmam a obrigação de responsabilidade em face do dano ambiental derivado de queimadas, tornando mais sólida a identificação da amplitude de nexo de causalidade quando se trata de situação de lesão ecológica derivada de descontrole ou uso irregular do fogo.
Nesta coluna já foram abordados, em outras ocasiões1, a relevância da informação e do consentimento informado na relação médico-paciente, com o apoio de inúmeros artigos bem fundamentados de autores extremamente qualificados. Nosso objetivo é trazer, ainda que de forma breve, outras perspectivas e contribuições para enriquecer mais esse debate, abordando ao final as implicações de seu descumprimento sobre a responsabilidade civil. O dever de informação na relação médico-paciente A informação na área médica deve ser compreendida como o conhecimento técnico-médico, coletado e refletido de forma científica e/ou empírica pelo profissional, que deve ser transmitida de forma simples, clara e compreensível ao paciente, enquanto vulnerável na relação, para que este tenha ciência da questão de saúde que lhe aflige. No campo da medicina, a informação é um processo contínuo que deve ser transmitida com antecedência suficiente para que o paciente possa ponderar e absorver os riscos e benefícios da intervenção em seu corpo. Apesar do direito à informação, que possui assento constitucional, não ser disciplinado expressamente no CC Brasileiro, ela se desenvolveu como um dever lateral decorrente do princípio da boa-fé objetiva, em verdadeiro processo colaborativo entre as partes2. Isto porque, o direito à informação está diretamente relacionado com a liberdade de escolha daquele que consome, pois, "a autodeterminação do consumidor depende essencialmente da informação que lhe é transmitida, pois esse é um dos meios de formar a opinião e produzir a tomada de decisão a respeito do que é consumido"3. Verifica-se como qualitativamente viável a informação devida ao paciente como correta, clara, precisa, ostensiva e em língua portuguesa, conforme determina o artigo 31 do CDC. A quantidade da informação também está devidamente alinhada ao padrão de divulgação médica (medical standard of disclosure). Nesse sentido, são três os padrões adotados na jurisprudência da common law para a transmissão da informação dentro do processo comunicativo na relação médico-paciente, de forma a averiguar quando a informação é quantitativamente recomendável: a) o padrão do médico razoável (professional standard)4; b) o padrão do paciente razoável5, e; c) o padrão do paciente concreto ou subjetivo6. Neste último, se analisa o que deverá ser informado ao paciente. Em particular, dentro de suas próprias circunstâncias e condições, é considerado o modelo que melhor representa o objetivo final do consentimento informado, pois analisa o paciente dentro de suas próprias circunstâncias e condições. Em relação ao conteúdo da informação, de acordo com o item 9.1.3 da recomendação 1 do CFM de 2016, o termo de consentimento livre e esclarecido deve prever: a) justificativa, objetivos e descrição sucinta, clara e objetiva, em linguagem acessível, do procedimento recomendado ao paciente; b) duração e descrição dos possíveis desconfortos no curso do procedimento; c) benefícios esperados, riscos, métodos alternativos e eventuais consequências da não realização do procedimento; d) cuidados que o paciente deve adotar após o procedimento; e) declaração do paciente de que está devidamente informado e esclarecido acerca do procedimento, com sua assinatura; f) declaração de que o paciente é livre para não consentir com o procedimento, sem qualquer penalização ou sem prejuízo a seu cuidado; g) declaração do médico de que explicou, de forma clara, todo o procedimento; h) nome completo do paciente e do médico, assim como, quando couber, de membros de sua equipe, seu endereço e contato telefônico, para que possa ser facilmente localizado pelo paciente; i) assinatura ou identificação por impressão datiloscópica do paciente ou de seu representante legal e assinatura do médico; j) duas vias, ficando uma com o paciente e outra arquivada no prontuário médico. Nota-se que se trata de conteúdo direcionado aos médicos dentro do processo comunicativo que deverá, dentro do possível, obedecer a esses parâmetros, embora não haja sanções para o seu descumprimento por se tratar de recomendação expedida por seu órgão de classe. Sobre a questão dos riscos a serem informados pelo médico ao seu paciente, a doutrina estrangeira desenvolveu a denominada teoria dos riscos significativos. Para ela há quatro pontos distintos a se verificar quando for necessária a comunicação dos riscos: (1) a necessidade terapêutica da intervenção; (2) em razão da sua frequência (estatística); (3) em razão da sua gravidade, e (4) em razão do comportamento do paciente7. Clique aqui para ler íntegra da coluna _______ 1 Para aqueles que desejam se aprofundar no tema  e conhecer os trabalhos dos autores da coluna Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. Acesso em 02/10/24.   2 Com efeito, já se pronunciou o STJ: "Mais do que obrigação decorrente de lei, o dever de informar é uma forma de cooperação, uma necessidade social. Na atividade de fomento ao consumo e na cadeia fornecedora, o dever de informar tornou-se autêntico ônus proativo incumbido aos fornecedores (parceiros comerciais, ou não, do consumidor), pondo fim à antiga e injusta obrigação que o consumidor tinha de se acautelar (caveat emptor)" (STJ, REsp 1.364.915. Rel. Min. Humberto Martins, 2ª turma, j. 14/05/13). 3 STJ, EREsp 1.515.895, Rel. Min. Humberto Martins, Corte Especial, j. 20/09/17. O STJ também entendeu que o "direito à informação visa a assegurar ao consumidor uma escolha consciente, permitindo que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas, manifestando o que vem sendo denominado de consentimento informado ou vontade qualificada" (REsp 1.121.275/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, j. em 27.03.12). 4 O modelo do padrão do médico razoável, também denominado de modelo da prática profissional ou critério da prática profissional considera suficiente a informação repassada ao paciente quando outro médico, em seu lugar, agisse da mesma forma, transmitindo as mesmas informações. Significa dizer que se houver consenso dentro da classe médica de que a quantidade, qualidade e conteúdo das informações prestadas foram satisfatórios, o médico adimpliu com a sua obrigação. A grande crítica que sempre se fez a esse modelo é que bastaria ao médico acusado de negligência apresentar outros peritos que concordassem e ratificassem o procedimento escolhido, que inviabilizaria sua condenação por negligência. Ademais, lembram Tom L. Beauchamp e James F. Childress que esse modelo subverte o direito de escolha autônoma do paciente. Isto porque ponderar sobre riscos no contexto das crenças, temores e esperanças subjetivas de uma pessoa não é habilidade profissional e a informação devida aos pacientes tem de ser libertada dos valores inerentes da medicina. BEAUCHAMP, Tom. L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de Luciana Pudenzi, São Paulo: Loyola, 2002, p. 169. 5 Por sua vez, o padrão do paciente razoável (reasonable person standard ou material risk), também considerado modelo do doente médio ou da pessoa sensata, trata-se de um padrão emergente a partir de 1972, em três casos muito bem definidos pelas Cortes Norte-Americanas: Canterbury v. Spence, Cobbs v. Grant e Wilkinson v. Vesey. Referidos julgados entenderam que a pessoa razoável seria o melhor parâmetro para definir o que é devido ao paciente dentro da relação médica. Esse padrão determina o que a pessoa razoável necessita saber sobre os riscos, alternativas e consequências da intervenção. O grau de divulgação a ser determinado deve ser o materialmente adequado, ou seja, a informação deve abranger tudo o que for relevante para que o paciente possa tomar a decisão em saúde. O paciente, em vez do médico, será o julgador se a informação foi relevante. Tem-se notícias de que este é o modelo mais aceito pela jurisdição norte-americana, conquistando espaço em pelo menos vinte e três Estados daquele país. KING, Jaime Staples; MOULTON, BenjaMin. Rethinking Informed Consent: The Case for Shared Medical Decision-Making. American Journal of Law & Medicine, 32, 2006, p. 445. 6 Já no que diz respeito ao padrão do paciente concreto ou subjetivo (subjective patient standard), simplesmente denominado por alguns como modelo subjetivo ou padrão subjetivo do doente, determina que "a adequação da informação é julgada por referência às necessidades específicas da pessoa individual, mais do que da 'pessoa sensata hipotética'" (BEAUCHAMP, Tom. L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de Luciana Pudenzi, São Paulo: Loyola, 2002, p. 171).   Nesse padrão analisa-se o que deveria ser informado ao paciente em particular, dentro de suas próprias circunstâncias e condições. Conforme demonstra André Gonçalo Dias Pereira, esse critério tem por base o que o paciente concreto queria conhecer e não o que uma pessoa razoável quereria conhecer (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 443). Da mesma forma, João Vaz Rodrigues alerta que esse modelo "permite exigir ao agente médico explicações mais exaustivas e direcionadas, por forma a garantir o direito daquele a tomar decisões que, inclusive, sejam más opções à luz dos critérios do médico e do paciente razoável (RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado para o ato médico no ordenamento jurídico português. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 258.). Busca-se uma informação mais individualizada possível. 7 Para maiores informações, consulte: PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 396 e seguintes.
Introdução O marketing de influência tem sido planejado como uma das estratégias de comunicação eficientes nas plataformas on-line, aproveitando a imagem de pessoas para promover produtos e divulgar serviços. Contudo, esta nova forma de publicidade suscita questões jurídicas significativas, particularmente em relação à responsabilidade civil dos participantes. Conforme o CDC, a responsabilidade civil objetiva ocorre quando o fornecedor é responsável pelos prejuízos causados ??ao consumidor, sem a necessidade de comprovação de culpa, fundamentada na teoria do risco. O CDC também define publicidade enganosa e abusiva. Os influenciadores revolucionaram a forma como os consumidores decidem sobre os produtos, especialmente em segmentos como o esportivo, alimentício, vestuário, dentre outros.  Por exemplo, no âmbito da corrida, os influenciadores de grande alcance digital promovem equipamentos, suplementos e programas de treino. Contudo, a promoção de produtos sem a devida orientação médica ou orientação do profissional de educação física, pode expor seguidores a sérios riscos à saúde. Além disso, a intensa publicidade para adquirir produtos caros ou alcançar padrões de desempenho inalcançáveis, principalmente para adolescentes, pessoas acima do peso, ou mesmo quem busca um padrão exibido pelos influenciadores, pode afetar a autoestima e desencadear algum processo de ansiedade1. O arcabouço jurídico brasileiro, pautado pelo CDC e pelo CC, já oferece subsídios para responsabilizar influenciadores e empresas por danos causados aos consumidores. Neste contexto, a jurisprudência e a doutrina têm sido desafiadas a adaptar conceitos tradicionais de responsabilidade civil ao mundo digital, em especial à atuação dos influenciadores. Fundamentação legal da responsabilidade civil no marketing de influência A responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro pode ser dividida em responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva. No caso do marketing de influência, a aplicação de ambas as modalidades dependerá da natureza do dano causado e do envolvimento do influenciador ou da empresa que patrocina a campanha publicitária. Os arts. 12 e 14 do CDC, trazem a previsão  que o fornecedor de produtos ou serviços responde independentemente de culpa pelos danos causados ao consumidor em razão de defeitos na prestação do serviço ou no produto fornecido. No caso de marketing de influência, a empresa que contrata o influenciador pode ser responsabilizada objetivamente por danos gerados por uma divulgação inadequada ou enganosa. Segundo Tartuce (2024), o CDC adotou expressamente a ideia do risco- proveito, aquele que gera a responsabilidade sem culpa, justamente por trazer benefícios ou vantagens, em outras palavras, aquele que expõe aos riscos outras pessoas, determinadas ou não, por dele tirar um benefício, direto ou não, deve arcar com as consequências da situação. A Responsabilidade subjetiva, previstas nos arts. 186 e 927 do CC exige a comprovação de culpa, seja na forma de dolo ou negligência, para que haja responsabilização. O influenciador pode ser responsabilizado de forma subjetiva quando, deliberadamente ou por imprudência, promove um produto de forma enganosa ou induz seus seguidores a erro. Influenciadores e a necessidade de clareza na publicidade Um dos principais pontos de discussão no marketing de influência é a publicidade enganosa, que ocorre quando o influenciador omite ou distorce informações relevantes sobre o produto ou serviço, induzindo o consumidor a erro. O CDC, em seu art. 37, veda expressamente a publicidade enganosa, sendo considerado ilícito qualquer tipo de publicidade que contenha informações falsas ou que omita informações essenciais, capazes de confundir o consumidor. Outro ponto sensível é a falta de clareza na divulgação de conteúdo patrocinado. O CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária exige que influenciadores deixem claro quando o conteúdo divulgado é patrocinado, a fim de evitar que os consumidores sejam levados a acreditar que as opiniões expressas são genuínas e não pagas. Em um caso recente, o CONAR notificou uma influenciadora por não ter indicado de forma clara que uma série de postagens no Instagram sobre um novo lançamento de roupas que era patrocinada por uma marca de moda. A situação era delicada, pois, o influencer era seu filho menor de idade, prática vem crescendo, no marketing de influência.2 Embora a mãe (responsável pleo perfil), tenha argumentado que o público sabia que se tratava de publicidade, o CONAR entendeu que a omissão violava os princípios de transparência e lealdade, resultando em uma advertência à influenciadora (mãe) e à marca. Além da publicidade enganosa, outra forma de responsabilização pode surgir quando o influenciador promove produtos que sejam perigosos ou nocivos à saúde dos consumidores, como por exemplo, no caso da blogueira Gabriela Pugliesi3, no anúncio do produto desinchá, que teria em sua composição sustância diurética e pode causar riscos à saúde de pessoas que não poderiam ingerir tal ativo.  A influenciadora argumentou que não tinha conhecimento de nenhum risco e que apenas promovia o produto a partir das informações fornecidas pela empresa. No entanto, o Conar entendeu que, como figura pública, a influenciadora tem o dever de diligência ao promover qualquer produto, especialmente aqueles relacionados à saúde, o que configura uma responsabilidade solidária com a empresa. Essa análise reitera a importância do influenciador verificar a idoneidade dos produtos e serviços que promove, sob pena de responder civilmente por eventuais danos. Relação entre empresa e influenciador: Solidariedade na responsabilidade civil A relação jurídica entre influenciador e empresa patrocinadora também é um ponto relevante no que diz respeito à responsabilidade civil. O art. 7º, parágrafo único, do CDC estabelece a solidariedade entre todos os participantes da cadeia de fornecimento, o que inclui tanto a empresa quanto o influenciador. Isso significa que o consumidor pode demandar reparação tanto da empresa quanto do influenciador, cabendo a estes discutir entre si a divisão da responsabilidade. Os influenciadores têm o dever de cautela ao divulgar produtos e serviços, e a jurisprudência brasileira vem reforçando a aplicação do princípio da boa-fé na relação entre influenciadores e seus seguidores/consumidores. O influenciador deve atuar com diligência e transparência, assegurando que as informações fornecidas sejam verídicas e que o conteúdo patrocinado seja claramente identificado como tal, visto que, eles estabelecem uma relação de confiança com seus públicos. A boa-fé exige que o influenciador não apenas se atenha às normas de publicidade, mas também se responsabilize por eventual dano causado por informações incorretas ou produtos defeituosos que promove. Em casos onde fica comprovada má-fé ou dolo, como a promoção intencional de produtos sabidamente inadequados, a responsabilidade pode ser agravada. Conclusão A responsabilidade civil no marketing de influência está em ascensão no cenário legal do Brasil, à medida que a internet se consolida como o principal veículo de promoção de produtos e serviços. O direito a informações claras e exatas, garantidas pelo CDC, deve ser respeitado tanto pelas empresas quanto pelos influenciadores, que, ao se transformarem em plataformas de publicidade, também assumem obrigações perante os clientes. As recentes decisões judiciais apontam para um aumento da supervisão e responsabilização no marketing de influência, intensificando as obrigações de prudência e transparência dos influenciadores. Portanto, tanto o influenciador quanto uma empresa ou marca que divulga produtos ou serviços nessas plataformas precisa estar ciente das normas de publicidade e do princípio da transparência, prevenindo práticas fraudulentas e garantindo a proteção dos consumidores. A responsabilidade civil no marketing de influência não deve ser vista apenas sob o prisma legal, mas também sob uma perspectiva ética. Influenciadores devem agir com responsabilidade social, evitando promover produtos que possam causar danos ou afetar negativamente a saúde mental e física de seus seguidores. Além disso, devem ter cuidado para não criar falsas expectativas ou incentivar o consumismo desenfreado, que pode trazer prejuízos financeiros e emocionais a seus seguidores. ________ 1 Dos 36,9% dos brasileiros que passaram 3 horas ou mais por dia nas redes sociais, 43,5% possuem diagnóstico de ansiedade. É o que aponta o relatório "Panorama da Saúde Mental", do Instituto Cactus e da AtlasIntel. Disponível aqui. Acesso em 06/10/24. 2 Representação Nº 210/22  Autor: Conar, por iniciativa própria  Anunciante e influenciadora: Malwee Malhas e Cleila Mamãe Miguelreche  Relatora: Conselheira Fabiana Soriano  Sétima Câmara  Decisão: Alteração  Fundamento: Artigos 1º, 3º, 6º, 28, 37 e 50, letra "b", do Código . A direção do Conar propôs esta representação contra anúncio divulgando produtos da Malwee nas redes sociais de @miguelreche, Cleila Mamãe do Miguel Reche. O anúncio, no entendimento da denúncia, não apresenta clara identificação de sua natureza publicitária, orientação que é ponto de partida para a correta apresentação da publicidade divulgada por influenciadores digitais, tanto mais quando dirigida a crianças e adolescentes. A direção do Conar questiona ainda se há uso de apelo imperativo de consumo, linguagem considerada inadequada pelo Código. A defesa da Malwee alega tratar-se de postagem espontânea, sem propósito publicitário e que só tomou conhecimento da postagem em tela quando do recebimento da notificação pelo Conar. Considera ainda não haver apelo imperativo de consumo ou qualquer outro desrespeito às recomendações do Código. Escreveu a relatora em seu voto: "o aumento significativo de tutores de crianças e adolescentes que desejam tornar seus filhos influenciadores mirins é um fenômeno que demanda cuidado e atenção por este Conselho, com atenção compartilhada por todo o mercado publicitário. Em análise do vídeo objeto desta denúncia, apesar de toda a argumentação transcorrida pela defesa, percebe-se que sua gravação se passa em um cenário no interior de uma loja franqueada da representada, previamente preparada para este fim (com espaço propício e exposição do kit objeto da promoção), o que pode configurar uma coparticipação da representante da marca na produção do vídeo, portanto, na ingerência editorial do conteúdo. Vale ressaltar que a mesma promoção e o mesmo kit estão sendo anunciados em outra postagem dos mesmos perfis, com comentário e interação da marca. No entender desta relatora, a vocalização pela influenciadora ao final do vídeo 'vem pra Malwee, vem' configura apelo direto, dirigido a crianças e adolescentes, já que a rede social permite usuários serem cadastrados a partir de 13 anos e, antes disso, acessar o seu conteúdo por meio de um administrador responsável como no caso dos menores @miguelreche e @ rafaelareche. A própria representada admite esta possibilidade". A relatora concluiu pela alteração do anúncio, para que fique clara a identificação da natureza publicitária e que seja omitida ou alterada a chamada à ação: "Vem pra Malwee, vem!", de modo a não proferir apelo direto ao consumo. 3 Mês/Ano Julgamento: FEVEREIRO/2019. Representação nº:294/18Autor(a):Conar mediante queixa de consumidor Anunciante: Desinchá e Gabriela Pugliesi. Relator (a):Conselheira Milena Seabra Câmara: Sexta Câmara Decisão: Advertência Fundamentos: Artigos 1º, 3º, 6º, 23, 27 e 50, letra "a", do Código e seu Anexo H.  Resumo: Consumidora paulistana enviou e-mail ao Conar denunciando publicidade em redes sociais do produto denominado Desinchá. Segundo a denunciante, a peça publicitária pode levar o consumidor ao engano, levando-o a crer que não há risco no consumo do produto, que conteria diuréticos em sua fórmula. A Desinchá negou em sua defesa tratar-se de publicidade; a blogueira teria agido espontaneamente, depois de ter recebido amostras do produto. A defesa considerou este fato sinal de que o produto surte os resultados prometidos. Juntou laudos que demonstrariam os benefícios do produto. Já a blogueira Gabriela Pugliesi comprometeu-se em futuras postagens a empregar linguagem adequada, recomendando a seus seguidores que consultem profissionais especializados sobre o consumo do produto. A relatora não aceitou os argumentos da anunciante, considerando ser publicitária a postagem. Levando em conta que, pelo seu formato, ela já não mais está em exibição, propôs a advertência à Desinchá e Gabriela Pugliesi, sendo acompanhada por unanimidade. ________ BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução Carlos Alberto Medeiros, 1 ed., Rio de Janeiro, Zahar, 2022. Brasil. lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. ( CC). Disponível aqui. Acesso em: 07/10/24. BRASIL. lei 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF, Disponível aqui. Acesso em: 07/10/2024.  http://www.conar.org.br/codigo/codigo-de-etica GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 13. ed. São Paulo: Forense, 2024.
terça-feira, 22 de outubro de 2024

Educação digital e responsabilidade civil

O conceito de educação digital vem ganhando destaque cada vez maior com o incremento da desinformação online, dos crimes cibernéticos e dos perigos relacionados à hiperexposição de dados pessoais na internet. É fato que as implicações éticas, legais e sociais do uso das TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação também têm suscitado importantes debates sobre a responsabilidade civil em relação ao uso inadequado dessas tecnologias, principalmente no Brasil, onde o acesso desigual às TICs acentua as discrepâncias socioeconômicas. Em 2023, 92,5% dos domicílios brasileiros tinham acesso à internet, um aumento em relação aos anos anteriores, conforme dados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE. A pesquisa destacou também que a falta de conhecimento sobre o uso da internet e o custo elevado do serviço foram os principais motivos para a ausência de conexão nos lares. Além disso, foi observada uma alta presença de televisores (94,3%) e acesso a serviços de streaming em 31,1 milhões de domicílios, especialmente nas regiões Sul e Sudeste1. Claramente, embora não se possa desconsiderar que, em números absolutos, 7,5% da população brasileira represente um contingente populacional de aproximadamente 16 milhões de pessoas sem algum tipo de acesso à Internet - número superior ao das populações de inúmeros países -, é fato que o Brasil está, em geral, conectado à rede2. Talvez o que falte seja, de fato, acesso letrado, que viabilize a contenção difusa de danos pela postura adequada de uma população mais bem preparada para lidar com os efeitos deletérios do mau uso da internet. A promulgação da lei 14.533, de 11/1/23, que estabelece a PNED - Política Nacional de Educação Digital, representa um avanço significativo na promoção do letramento digital no Brasil. A legislação estrutura-se em quatro eixos principais: Inclusão Digital, Educação Digital Escolar, Capacitação e Especialização Digital, e Pesquisa e Desenvolvimento em TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação. O objetivo primordial é garantir que a população brasileira, especialmente as populações mais vulneráveis, tenha acesso a ferramentas e práticas digitais que possibilitem sua inserção no mundo digital de forma responsável e segura. A política pública foi lançada em sintonia com o comando normativo do art. 26 da lei 12.965, de 23/4/14 (Marco Civil da Internet), sobre o qual já comentei em publicação da coluna Migalhas de IA e Proteção de Dados, quando notei que "a compreensão das potencialidades da educação digital ultrapassa as lindes da tecnocracia e deságua no clamor por um Estado capaz de dar concretude normativa aos deveres de proteção que lhe são impostos"3. O eixo da Educação Digital Escolar, conforme o art. 3º da PNED, visa à inserção da educação digital nas escolas, estimulando o letramento digital e informacional, além de promover a aprendizagem de competências como programação e robótica. Este eixo é essencial para garantir que os jovens brasileiros desenvolvam pensamento computacional, uma habilidade crucial para a resolução de problemas e para o desenvolvimento de soluções inovadoras. No mais, essa integração da educação digital no sistema educacional tem um impacto direto na formação de cidadãos críticos e conscientes dos riscos e das responsabilidades que o ambiente digital impõe. No entanto, apesar dos avanços trazidos pela PNED, persiste a necessidade de uma implementação eficaz, que leve em consideração as disparidades regionais e sociais, especialmente no acesso às tecnologias em áreas menos favorecidas do Brasil. A educação digital não se limita ao ensino de habilidades técnicas. Ela também desempenha um papel crucial na conscientização sobre o uso seguro e ético das tecnologias digitais, o que tem implicações diretas na responsabilidade civil, que, como um instituto jurídico ao qual usualmente se recorre para a discussão das diversas vicissitudes da vida em sociedade, não se cogita mais da singela noção de que se deve reparar danos causados a terceiros em decorrência de condutas ilícitas ou do risco criado por atividades potencialmente perigosas. Bem mais do que isso, é preciso construir um ambiente preventivamente apto a sustentar os diversos usos potencialmente lesivos da internet. Nesse contexto, a educação digital pode ser vista como uma ferramenta de prevenção de danos, uma vez que prepara os indivíduos para utilizarem a tecnologia de forma consciente e responsável. Por certo, o uso indevido de dados, a disseminação de informações falsas (fake news) e os cibercrimes são exemplos de situações em que a responsabilidade civil pode ser invocada. No Brasil, a LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais estabeleceu uma série de obrigações para os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, impondo-lhes o dever de adotar medidas de segurança que evitem danos aos titulares dos dados.  De acordo com o princípio da "accountability", previsto tanto na LGPD quanto no PL 2338/23, que visa regulamentar o uso da inteligência artificial no Brasil, os agentes envolvidos no tratamento de dados e no desenvolvimento de tecnologias digitais devem adotar práticas transparentes e responsáveis, sendo passíveis de responder pelos danos causados por suas atividades4. Assim, a educação digital pode desempenhar um papel importante na promoção da responsabilidade e da prestação de contas (accountability), ao fornecer aos indivíduos e organizações os conhecimentos necessários para o cumprimento das normas de proteção de dados e o uso ético das tecnologias. O desenvolvimento e a implementação de sistemas de IA - Inteligência Artificial têm revolucionado diversos setores, mas também levantam importantes questões sobre a responsabilidade civil em casos de danos causados por esses sistemas. A aplicação da IA em áreas como a educação, a saúde e os serviços públicos tem o potencial de aumentar a eficiência e a acessibilidade, porém, também envolve riscos que precisam ser mitigados por meio de uma regulamentação adequada. O PL 2338/23 estabelece diretrizes para o uso de IA no Brasil, incluindo princípios de boa-fé, prevenção, precaução e mitigação de riscos. Um dos pontos-chave do projeto é a previsão de responsabilidade e prestação de contas pelos danos causados por sistemas de IA, tanto de forma intencional quanto não intencional. Isso significa que, mesmo sem a culpa direta de um operador humano, o uso inadequado de IA que cause danos pode resultar em responsabilidade civil. Nesse contexto, a educação digital desempenha um papel crucial. Ao capacitar os profissionais e usuários a compreenderem o funcionamento e os limites das tecnologias de IA, almeja-se contribuir para a prevenção de danos e a mitigação dos riscos associados a essas tecnologias. Além disso, ao promover uma cultura de responsabilidade e transparência, a educação digital ajuda a garantir que os sistemas de IA sejam utilizados de maneira ética e segura, evitando a violação de direitos fundamentais, como a privacidade e a dignidade humana. A desigualdade no acesso às tecnologias digitais é um dos maiores desafios para a implementação de uma política efetiva de educação digital no Brasil. Como visto, de acordo com dados da pesquisa realizada pelo IBGE, ainda existe uma disparidade significativa no acesso à internet e a equipamentos tecnológicos entre as diferentes regiões do país e entre as classes sociais. Essa desigualdade tecnológica não apenas limita o acesso à educação digital, mas também aumenta a vulnerabilidade de populações marginalizadas a práticas ilícitas no ambiente digital. Indubitavelmente, a exclusão digital pode levar à violação de direitos, como o direito à educação, ao trabalho e à privacidade, gerando responsabilidades civis para os agentes que não asseguram o acesso universal às tecnologias da informação. Por outro lado, a inclusão digital, como prevista na PNED, visa mitigar essas desigualdades, promovendo uma distribuição mais equitativa das oportunidades geradas pela digitalização. Nesse sentido, é fundamental que as políticas públicas de inclusão, educação e letramento digital não apenas forneçam diretrizes para a maximização do acesso às tecnologias digitais emergentes, mas também promovam o uso consciente e responsável das mesmas, de modo a prevenir a ocorrência de danos.  Logo, a interseção entre a educação digital e a responsabilidade civil apresenta-se como um campo fértil para a discussão de novas formas de prevenção de danos e de regulação do uso das TICs. O avanço das políticas públicas, como a PNED, e a implementação de leis como a LGPD e o eventual avanço do PL 2338/23, representam importantes passos na direção de uma maior responsabilização dos agentes envolvidos no ambiente digital. Por fim, é imperativo que o Brasil continue investindo na expansão da educação digital, assegurando que ela seja acessível a todos e que inclua a formação ética e legal dos indivíduos quanto ao uso das tecnologias digitais. Apenas por meio de uma educação digital inclusiva e consciente será possível minimizar os riscos associados à digitalização e promover uma cultura de responsabilidade civil no ambiente digital. __________ 1 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Informações atualizadas sobre tecnologias da informação e comunicação. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024. 2 O uso da internet globalmente tem crescido exponencialmente, e em 2023, 63% da população mundial estava conectada à rede. Essa expansão tem proporcionado benefícios como a comunicação global, educação e desenvolvimento econômico. No entanto, há disparidades significativas no acesso, particularmente em regiões menos desenvolvidas. A internet se tornou uma ferramenta essencial para o progresso social e econômico, mas desafios relacionados à inclusão digital ainda precisam ser enfrentados para garantir o acesso equitativo a todos. Cf. RITCHIE, Hannah; MATHIEU, Edouard; ROSER, Max; ORTIZ-OSPINA, Esteban. Internet. Our World in Data, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024. 3 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Proteção de dados pessoais e a Política Nacional de Educação Digital. Migalhas de IA e Proteção de Dados, 12 abr. 2024.  Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024. 4 A conotação relacional do termo é apontada pela doutrina: "Accountability can be defined as a social relationship in which an actor feels an obligation to explain and to justify his or her conduct to some significant other". DAY, Patricia; KLEIN, Rudolf. Accountabilities: five public services. Londres: Tavistock, 1987, p. 5. 5 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Da mera inclusão à necessária educação digital: tecnologia e direitos humanos como vetores da efetiva cibercidadania. In: GUIMARÃES, João Alexandre Silva Alves; ALVES, Rodrigo Vitorino Souza (org.). Os direitos humanos e a ética na era da inteligência artificial. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 129-152
O MCI - Marco Civil da Internet1 é considerado uma legislação pioneira no mundo ao estabelecer contornos regulatórios para o uso da internet no Brasil. Nele estão estabelecidos princípios, garantias, direitos e deveres para usuários, provedores de serviços e plataformas digitais. O MCI trouxe uma abordagem regulatória inovadora, sobretudo ao conseguir harmonizar a proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, com a supremacia da liberdade de expressão, com o modelo de responsabilização de intermediários de internet previsto no art. 19.2 Uma das inovações significativas do MCI é a previsão do art. 19, que estabelece a responsabilidade dos provedores de aplicações por conteúdo de terceiros condicionada à existência de ordem judicial específica para remoção. De acordo com a regra, as plataformas digitais somente podem ser civilmente responsabilizadas por conteúdo de terceiros se descumprirem uma ordem judicial específica que determine sua remoção. Esse sistema, conhecido como "judicial notice and takedown"3 (notificação judicial e retirada), estabelece que a responsabilidade civil das plataformas está condicionada à existência prévia de uma ordem judicial.4 Há alguns países que adotam outro sistema, o "notice and takedown"5 (notificação e retirada), que estabelece que as plataformas são compelidas a uma atuação prévia, podendo ser responsabilizadas civilmente por omissão a partir do momento em que são notificadas sobre a existência de conteúdos indesejados. Com a amplificação dos debates internacionais sobre a questão da responsabilidade das plataformas digitais, surgiram algumas críticas sobre a eficácia do modelo brasileiro. Esta discussão chegou até o STF, que reconheceu a existência de Repercussão Geral e discute a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI no âmbito do RE 1.037.3966. O  presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, anunciou recentemente que pretende pautar o julgamento da ação para o dia 27/11 próximo. Esse julgamento representa um dos maiores desafios atuais do Poder Judiciário brasileiro no contexto da regulação da internet, sobretudo porque a questão envolvida orbita em torno de uma temática sensível de um direito humano, a liberdade de expressão. Uma eventual decisão que siga o caminho da declaração de inconstitucionalidade do art. 19 poderá atribuir às plataformas um encargo e uma responsabilidade do exercício de um controle preventivo e preliminar sobre a legalidade, ou ilegalidade, de conteúdos postados por terceiros, o que poderá impactar sobremaneira todo o ecossistema digital do país. A regra brasileira do art. 19 adota um modelo equilibrado e calibrado, situando-se como um ponto de equilíbrio entre os países que adotam o sistema "notice and takedown", entre eles, China, Irã, Rússia, Venezuela, por exemplo, que são considerados não democráticos. A inovação e a importância do art. 19 foram inclusive reconhecidas internacionalmente pela ONU, que destacou a efetividade da regra para a proteção da liberdade de expressão.7 O dispositivo respeita a garantia do devido processo legal e a garantia da reserva judicial exigidas pela CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos7 quando da imposição de medidas restritivas à liberdade de expressão na internet. A necessidade de participação do Poder Judiciário na definição dos contornos de legalidade, ou ilegalidade, de determinado conteúdo garante segurança jurídica8, tanto para os usuários, quanto para as próprias plataformas. É fundamental ter-se em mente que estamos diante da possibilidade de violações do direito humano à liberdade de opinião e expressão. E, deixar a critério de entes privados - provedores de aplicação de internet - a análise do que é ou não uma possível violação de direitos fundamentais e o que pode violar tais direitos não parece ser a decisão mais adequada e juridicamente sustentável. Como mencionamos na pesquisa nacional que se debruçou sobre uma detalhada análise da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros sobre as desinformações, quando se está diante de uma possível violação de um direito humano, os tribunais internacionais seguem a diretriz do teste tripartite prevista no art. 19 do PIDCP - Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.9 O exercício da liberdade de expressão não é absoluto; envolve deveres e responsabilidades. Esses aspectos estão claramente definidos por normas jurídicas e internacionais, sendo sujeitos a critérios rigorosos de interpretação e aplicação. O teste tripartite, frequentemente negligenciado no Brasil, deveria ser aplicado em casos que envolvem restrições à liberdade de expressão, com a utilização das normas internacionais de direitos humanos. O parágrafo terceiro do PIDCP estabelece condições específicas para restrição da liberdade de expressão: (1) Objetivo legítimo (Qualquer limitação deve ser orientada para a consecução de objetivos convincentes autorizados, que visem proteger os direitos dos outros, proteger a segurança do direito nacional, ordem pública, saúde pública ou moral pública); (2) Legalidade (Qualquer limitação à liberdade de expressão deve ter sido prevista com antecedência, expressa, restritiva e clara em lei, no sentido formal e material) e; (3) Necessidade e proporcionalidade (A limitação deve ser necessária em uma sociedade democrática para a consecução dos fins imperativos que se buscam; estritamente proporcional ao fim perseguido; e adequado para alcançar o objetivo convincente que busca alcançar).10 Portanto, qualquer limitação ou vulneração à liberdade de expressão deve ser previamente prevista em lei, de forma expressa, restritiva e clara, uma vez que a censura prévia é proibida. Impor esse ônus de verificação ativa dos contornos de legalidade ou ilegalidade, papel constitucional do Poder Judiciário, às plataformas digitais, afrontaria os princípios estabelecidos nos instrumentos internacionais de direitos humanos. Os casos submetidos à apreciação do Judiciário cotidianamente envolvem conflitos complexos entre direitos fundamentais, que demandam uma atuação criteriosa. Por essa razão, o Judiciário atuará como órgão de ponderação7, analisando o impacto de uma eventual restrição no direito fundamental à liberdade de expressão em cada caso concreto. Regras que imponham a responsabilidade civil pelo conteúdo ilegal de terceiros unicamente às plataformas digitais - como o notice and takedown - não asseguram proteção à liberdade de expressão11, pelo contrário, podem incorrer em uma indiscriminada e disseminada censura. Portanto, o sistema do art. 19 é um importante mecanismo contra a censura prévia7, pois evita que as plataformas adotem uma postura rigorosa e unilateral de remoção antecipada do conteúdo12, que pode implicar no chamado chilling effect ou efeito inibitório.13 Diante de sua reconhecida importância internacionalmente, não se mostra razoável a declaração de inconstitucionalidade; em vez disso, é possível ajustá-lo e aperfeiçoá-lo, introduzindo hipóteses específicas de adoção do sistema notice and takedown para situações relevantes que exijam uma resposta mais rápida das plataformas. Apesar de o MCI já estabelecer hipóteses de adoção do sistema notice and takedown, em situações excepcionalíssimas, notadamente nos casos de conteúdos com cenas de nudez ou de atos sexuais (art. 21), nada impede que as hipóteses do dispositivo sejam aperfeiçoadas e atualizadas, não atuando o Judiciário na usurpação legislativa, caminho adequado de construção por meio do devido processo legislativo, mas pela vida da interpretação conforme à constituição, contemplando outras exceções14 que estão de acordo com o sistema normativo, desde que no âmbito e nos limites técnicos do serviço dos provedores de aplicações de internet. As exceções podem ser ampliadas, em uma interpretação conforme à constituição, para abranger casos em que há violação grave aos direitos fundamentais, estabelecendo parâmetros claros para que as plataformas tomem ações mais rápidas e eficazes. As novas hipóteses devem constituir exceções bem definidas de temas manifestamente ilegais gerados por terceiros que: Atentem contra o Estado Democrático de Direito, atentem contra o processo eleitoral, violência contra a mulher, emergência em saúde pública, racismo, homofobia, atos de terrorismo, abusos sexuais de crianças e disseminação de conteúdo pornográfico. Por outro lado, a eliminação ou alteração radical do art. 19 do MCI poderia gerar uma série de consequências, especialmente no tocante à inovação e à competição no mercado. As plataformas precisariam de mecanismos de monitoramento e remoção de conteúdos em tempo real para gerir todas as notificações de conteúdo ilegal, o que exigiria um alto investimento em infraestrutura tecnológica. Logo, seria inviável exigir das plataformas uma fiscalização abrangente e repressiva. Portanto, o art. 19 do Marco Civil da Internet desempenha um papel importante ao atribuir ao Poder Judiciário a responsabilidade pela análise criteriosa de conteúdos ilegais e pela ponderação entre direitos fundamentais. No entanto, a preservação do núcleo do dispositivo não impede que ajustes pontuais sejam feitos para aperfeiçoar o sistema brasileiro de judicial notice and takedown. A introdução de exceções bem delimitadas para casos de conteúdos manifestamente ilegais garantirá a manutenção dos pilares que sustentaram a criação do MCI, ao mesmo tempo em que preservará a inovação e a concorrência do mercado tecnológico no Brasil. ________ 1 BRASIL. Lei n.12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2014. 2 PONTIERI, Alexandre. Marco Civil da Internet e liberdade de expressão. JOTA, 2024. Acesso em: 17 out. 2024. 3 NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade - parte II. Consultor Jurídico, 2020. Acesso em: 17 out. 2024. 4 MAIA, Flávia. Marco Civil da Internet: Toffoli diz que libera recurso para julgamento até junho. JOTA, 2024. Acesso em: 17 out. 2024. 5 CONSTANT, Isabel. O Sistema de Notice and Takedown: Aviso e Retirada. IP.rec, [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 1.037.396 - São Paulo. Relator: Min. Dias Toffoli. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 7 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - CIDH. Liberdade de expressão e Internet: Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 2013. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 8 NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Marco Civil da Internet sob o prisma da constitucionalidade - parte I. Consultor Jurídico, 2020. Acesso em: 17 out. 2024. 9 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 10 SALOMAO, Luis Felipe; BORGES, Gustavo Silveira; MADEIRA; Daniela Pereira; BARZOTTO, Luciane Cardoso; TAUK, Caroline Somesom; et al;. O que é desinformação do judiciário brasileiro? [livro eletrônico]: uma análise da jurisprudência dos tribunais superiores sobre as fake news. Brasília, DF: AMB, 2023. 11 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - CIDH. Mecanismos Internacionais para a Promoção da Liberdade de Expressão: Declaração conjunta sobre liberdade de expressão e internet. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 12 TAVARES, Viviane. Por que somos a favor da constitucionalidade do artigo 19? Carta Capital, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 13 MARTINS, Thiago Souza. Além de foguetes: Elon Musk, STF e a (in)constitucionalidade do art.19 do MCI. Migalhas, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2024. 14 TAJRA, Alex. Inovador em sua aprovação, Marco Civil da Internet fica obsoleto frente às big techs. Consultor Jurídico, 2023. Acesso em: 17 out. 2024.
terça-feira, 15 de outubro de 2024

Rol da ANS e o Superior Tribunal de Justiça

Considerações iniciais O Poder Judiciário brasileiro tem um excesso de demandas judiciais1 envolvendo pedidos de autorização para a realização de tratamentos e procedimentos prescritos por médicos ou odontólogos, diante da recusa de cobertura pelas operadoras de planos de saúde, respaldados na divergência de entendimento entre a 3ª e 4ª turma do STJ, sobre o rol da ANS ser taxativo ou exemplificativo. No entanto, no dia 24 de abril de 2024, a 2ª Seção do STJ reanalisou a matéria mantendo o entendimento pacificado sobre o rol da ANS e definindo o marco temporal de aplicabilidade da lei 14.454/222. Isso porque, pouco tempo após o STJ ter pacificado o entendimento sobre o rol da ANS, a mencionada lei entrou em vigor no dia 21 de setembro de 2022, alterando o art. 10 da lei 9.656/983, com a inserção dos parágrafos 12 e 13, para tornar obrigatória a cobertura de todo tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontologista, desde que comprovada a eficácia por meio de evidências científicas ou que exista recomendação do Conitec ou órgão de avaliação de tecnologia que tenha renome internacional e sejam aprovadas para seus nacionais, por parte das empresas que prestam serviço de saúde. Em que pese a objetividade, a alteração legislativa, fez renascer as dúvidas e o conflito entre as operadoras de planos de saúde e os usuários, supostamente, pacificado por meio do entendimento unificado entre a 3ª e a 4ª turma do STJ sobre o tema, pouco antes da vigência da lei. Portanto, necessária a análise das decisões da Segunda Seção do STJ e, como devemos entender o que estabelece o novo regramento, principalmente para compreender qual o entendimento atual após tantas mudanças, com o foco principal de compreendermos quais são as repercussões práticas para os particulares e para as empresas prestadoras de serviços médico e hospitalares, regidas pela lei 9.656/98. Qual entendimento prevalece? Rol taxativo ou exemplificativo? Não obstante a aplicação da lei 9.656/98 aos planos de saúde, temos que é atribuída à ANS - Agência Nacional de Saúde, nos termos da lei 9.961/004 à fiscalização e o controle dos serviços prestados por todas as operadoras de planos de saúde. Além disso, compete à própria ANS a elaboração do rol de procedimentos e tratamentos que devem ser oferecidos pelos planos de saúde aos respectivos contratantes ou usuários. Mesmo com a previsão específica na lei quanto à atribuição à ANS de elencar o rol de procedimentos e tratamentos que devem ser cobertos pelas operadoras de planos de saúde, a mesma norma não indica se o rol é exemplificativo ou taxativo. Diante da dúvida real, as operadoras têm fundamentado a recusa de autorização para procedimentos e tratamentos para usuários, desencadeando na judicialização do tema. As dúvidas e inseguranças jurídicas apenas contribuem para o aumento dos processos judiciais na área da saúde, especialmente quando o tema é a obrigatoriedade ou não de cobertura de um tratamento ou procedimento prescrito por médico, devidamente inscrito no Conselho de Medicina, como demonstra o painel de estatísticas processuais de direito à saúde do CNJ. A 3ª turma do STJ5 interpretava o rol de procedimentos e tratamentos elaborados pela ANS como exemplificativo (numerus apertus), cujo entendimento era o de que o rol corresponde a uma relação de tratamentos possíveis de serem ofertados pelas operadoras e a empresa contratada estaria obrigada a autorizar todo e qualquer procedimento prescrito pelo médico. O fundamento utilizado para este entendimento era o de que a operadora poderia estabelecer em contrato quais as doenças estariam cobertas, mas não quais os tratamentos ou procedimentos estariam cobertos. De modo que, para a turma, sendo o rol da ANS meramente exemplificativo, competiria exclusivamente ao médico a prescrição do necessário ao seu paciente, segundo a sua autonomia e técnica, cuja interferência das operadoras e negativa de cobertura caracterizaria uma limitação abusiva. Seguindo o entendimento adotado pela 3ª turma do STJ, o TTJSP, editou a súmula 1026, que estabelece: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS. Além da previsão expressa na súmula do TJSP, muitas decisões proferidas pelo mesmo tribunal, consideram obrigatória a cobertura de procedimentos ou tratamento para doenças previstas na CID - Classificação Internacional de Doenças. Neste sentido, podemos citar a decisão proferida na Apelação 1002241-44.2019.8.26.03637, julgado pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a relatoria da desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, no dia 04 de maio de 2024, cujo acórdão seguiu o entendimento de negar provimento ao recurso da operadora de plano de saúde, visando manter a decisão de parcial procedência de primeira instância que determinou o fornecimento do medicamento OCRELIZUMABE (OCREVUS), para o tratamento de esclerose múltipla, sob o fundamento de que "...o plano de saúde pode definir quais doenças serão cobertas, mas não a forma de tratamento, tendo prevalência a prescrição médica". Por outro lado, a 4ª turma do STJ entende de forma diametralmente oposta, ou seja, interpreta o rol da ANS como sendo taxativo. Segundo acórdão proferido no REsp. 1.733.013/PR8, extrai-se pela interpretação taxativa do rol da ANS. O entendimento da 4ª turma do STJ sobre o tema, segue no sentido de buscar o equilíbrio e maior segurança na relação contratual que se estabelece entre as operadoras de planos de saúde e seus usuários, devendo, igualmente, considerar todos os impactos sociais. Isso porque, quando a operadora de plano de saúde é obrigada a cobrir todo e qualquer procedimento ou tratamento prescrito por um médico sem um parâmetro específico, notoriamente será imprescindível elevar os preços com a finalidade de resguardar custos imensuráveis no momento da contratação. Especialmente, pelo fato de tratar-se de um serviço que visa lucro e não filantropia. Portanto, considerando o contrato sinalagmático, que demanda a contraprestação do usuário, inegável o repasse dos custos ao contratante, parte mais prejudicada com um rol meramente exemplificativo. Ao mesmo tempo, é inquestionável que toda a população será afetada, mas, principalmente a parcela mais carente financeiramente. Assim, uma decisão judicial proferida pelo STJ deve considerar todos esses aspectos, uma vez que não se trata de um caso específico, mas todos os contratos de prestação de serviços celebrados por operadoras de planos de saúde e usuários. Sob o enfoque social, a 4ª turma entende que a interpretação atribuída ao rol da ANS como um rol mínimo e obrigatório que deve ser prestado por todo e qualquer plano de saúde em benefício de todos os seus contratantes é a mais vantajosa para ambas as partes da relação contratual. Isso porque, o plano sabe exatamente o que tem que prestar para o seu cliente e com isso pode calcular exatamente os seus custos, repassando ao consumidor o preço exato sem precisar colocar acréscimos para cobrir custos inestimáveis e imprevisíveis. Ao mesmo tempo, visa possibilitar a redução de demandas judiciais para discussão deste tema, uma vez que todos sabem previamente que se está inserido no rol da ANS e deve ser coberto pelo plano, sem que exista discricionariedade na cobertura ou não. O conhecimento prévio de todos os direitos e obrigações geram maior segurança e reduzem a probabilidade de recusas indevidas por parte dos planos de saúde. Ao mesmo tempo, possibilitam segurança por parte do consumidor que sabe previamente ao que faz jus, algo que inexiste com o rol exemplificativo, pois pode haver ou não cobertura. Para a 4ª turma do STJ, este entendimento assegura a aplicabilidade da boa-fé objetiva aos contratos, haja vista a plena compreensão por todos os contratantes de todas as regras e direitos assegurados, evitando a frustração das expectativas do cidadão. O entendimento atribuído pela 4ª turma do STJ não tem o caráter limitativo ou de exclusão de outros procedimentos, como equivocadamente se interpreta, mas com finalidade de segurança aos usuários que sabem exatamente o que deve ser assegurado dentro da prestação dos serviços, sem permitir a negativa aos tratamentos e procedimentos, como ocorre diante da interpretação de rol exemplificativo. Isso porque, o rol exemplificativo corresponde ao rol de procedimentos que podem ou não ser cobertos pela operadora, ou seja, não corresponde a uma obrigatoriedade de cobertura, ficando a cargo da operadora a decisão de cobertura ou não. Diferentemente, quando se interpreta o rol como taxativo, pois dentre o rol que a ANS estabelece, todos os planos devem cobrir todos os tratamentos previstos, sob pena de abusividade. Com isso existe segurança quanto ao que deve ou não ser coberto. Em suma, a 4ª turma interpretou o rol como taxativo (numerus clausus), mas sem atribuí-lo uma característica limitativa, pois permite a contração de outras coberturas e assegurou a possibilidade de discussão judicial, sobre matérias que não sejam tratadas no rol pela ANS. O entendimento visa garantir um rol de procedimentos e tratamentos mínimos assegurados a todo e qualquer cidadão, em absoluta igualdade de direitos e deveres. Em outras palavras, exatamente um piso mínimo de coberturas obrigatórias e taxativas, sem qualquer direito aos planos de recusa. No entanto, o fato de assegurar os tratamentos e procedimentos mínimos e obrigatórios de cobertura pelos planos não impede o direito de algum cidadão, diante de um caso específico postular a cobertura de um procedimento ou tratamento não previsto no rol, como decidido, posteriormente, no julgamento do EREsp 1.886.929/SP9. Portanto, as dúvidas práticas que rodeavam os conflitos entre os prestadores de serviço e os usuários foram mantidas diante da divergência instalada entre as turmas do STJ. Em virtude disso, foi interposto recurso de embargos de divergência em recurso especial visando a uniformização dos entendimentos da 3ª e 4ª turma do STJ, cujo julgamento foi realizado pela 2ª seção do STJ no dia 8 de junho de 2022, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, integrante da 4ª turma.  Para tanto, ele votou na mesma linha do entendimento anterior, consagrado pela 4ª turma no acórdão paradigma proferido no REsp. 1.733.013/PR, julgado em 2019, ou seja, rol taxativo. De modo que, ambas as turmas do STJ, acabaram seguindo o entendimento do Ministro Luis Felipe Salomão quanto à interpretação taxativa do rol de procedimentos e tratamentos da ANS quando julgaram os recursos: EREsp 1.886.929/SP e 1.889.704/SP9, mas estabeleceram a possibilidade de mitigação quando atendidos determinados critérios. Entretanto, após pouco mais de três meses da solução da matéria pelo STJ, entrou em vigor no Brasil, a lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, para incluir o parágrafo 13, ao art. 10 da lei 9.656/98, prevendo a obrigatoriedade de cobertura. Diante da significativa alteração trazida pela lei, pouco mais de três meses após o julgamento EREsp 1.886.929/SP, a compreensão quanto ao rol da ANS foi absurdamente modificada, haja vista a explícita obrigatoriedade de autorização de cobertura por parte da operadora de planos de saúde de todo e qualquer tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo que não esteja inserido no rol da ANS, mas, desde que tenha a comprovação da eficácia do tratamento ou procedimento segundo a ciência ou existam recomendações da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS ou exista recomendação de, no mínimo, 1 órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais. Em que pese tratar-se de lei posterior ao entendimento do STJ, as operadoras de planos de saúde permaneceram se recusando em autorizar os tratamentos e procedimentos não previstos no rol da ANS, mesmo prescrito por médico ou odontólogo, seguindo a interpretação anterior atribuída pelo STJ. Com isso, houve um retorno ao status quo, diante da nova celeuma instalada, especialmente porque compete ao STJ dar a interpretação final sobre lei federal. Em razão disso, a matéria foi novamente submetida à análise do STJ e, assim, três recursos especiais: REsp 2.037.616 - SP11; REsp 2.038.333 - AM12 e REsp 2.057.897 - SP13, aguardavam julgamento desde 2023. Contudo, os mencionados recursos encontravam-se sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, integrante da 3ª turma do STJ, a qual adotava o entendimento de rol exemplificativo. Diante disso, existia uma grande expectativa quanto à possibilidade de mudança de entendimento do STJ. Entretanto, diferentemente do esperado, no dia 24 de abril de 2024, todos os recursos foram conhecidos, mas quanto ao mérito, tiveram o provimento negado. Com isso, a 2ª seção do STJ, ao julgar os mencionados recursos, sob a relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, manteve o entendimento quanto ao rol taxativo da ANS, mas com a possibilidade de mitigação, observando cada caso de forma específica. Do mesmo modo, extrai-se que o STJ estabeleceu o termo inicial para aplicação da lei 14.454/22 a partir de sua vigência. Assim, processos em trâmite, cuja recusa de autorização foi anterior à vigência da lei, não foram afetados pela falta de aplicabilidade, haja vista a irretroatividade da lei. Por fim, necessário registrar que embora o rol de tratamentos e procedimentos da ANS inclua o fornecimento de medicamentos, autorização de home care e o tratamento clínico e medicamentoso para pacientes com transtorno do espectro autista, o STJ atribui para os mencionados casos, interpretação peculiar as três situações, mas que não serão objeto de análise neste estudo. Diante de todo o exposto, tem-se que as operadoras de planos de saúde são obrigadas a cobrir todos os tratamentos e procedimentos previstos no rol da ANS e aquilo que não esteja incluído no rol ou tratado de forma específica pelo STJ, como o fornecimento de medicamentos off-label, poderá ser objeto de judicialização, haja vista a não restrição pela corte, através do entendimento consolidado. ________ 1 CNJ.Disponível aqui. Acesso em: 04 maio,2024. 2 BRASIL. lei 14.454, de 21 de setembro de 2022. Disponível aqui. 3 BRASIL, lei 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024. 4 BRASIL. lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024. 5 STJ. Acórdão. REsp 668.216/SP. EMENTA: Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento com quimioterapia. Cláusula abusiva.1. O plano de saúde pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não que tipo de tratamento está alcançado para a respectiva cura. Se a patologia está coberta, no caso, o câncer, é inviável vedar a quimioterapia pelo simples fato de ser esta uma das alternativas possíveis para a cura da doença. A abusividade da cláusula reside exatamente nesse preciso aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno disponível no momento em que instalada a doença coberta. 2. Recurso especial conhecido e provido. Disponível aqui. Acesso em 06 maio, 2024. 6 SÃO PAULO. TJSP. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024. 7 SÃO PAULO. TJSP, Acórdão. APELAÇÃO. 1002241-44.2019.8.26.0363, Relatora Clara Maria Araújo Xavier, 8ª Câmara de Direito Privado Julgado em 04.05.24. PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTO. COBERTURA. Autor portador de esclerose múltipla. Sentença de parcial procedência, para determinar que a requerida custeie o tratamento com o medicamento OCRELIZUMABE (OCREVUS). Inconformismo. Acórdão que negou provimento ao recurso da ré, sob o fundamento de que o Plano de saúde pode definir quais doenças serão cobertas, mas não a forma de tratamento, tendo prevalência a prescrição médica. Incidência das súmulas 102 e 96 deste E. Tribunal de Justiça. Reapreciação após a tese firmada no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.889.704/SP e 1.886.929/SP. Conversão em diligência. Nota Técnica da NAT-JUS quanto à necessidade/eficácia do tratamento prescrito ao autor. Constatação de que a requerida não logrou oferecer, como alternativa de tratamento ao autor, remédio com a mesma segurança que o prescrito, o qual, ao contrário, oferece menor risco à saúde do paciente. Recurso da ré desprovido, mantido o parcial provimento ao recurso adesivo do autor, nos termos do acórdão de fls. 237/246. RECURSO DESPROVIDO. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024. 8 STJ. Acórdão. REsp 1.733.013/PR. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024. 9 STJ. Acórdão, EREsp 1.886.929-SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, Julgado dia 08.06.2022, DJe. 03.08.2022. Disponível aqui. 10 STJ. Acórdão, EREsp 1.889.704-SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, Julgado dia 08.06.2022, DJe. 03.08.2022. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024. 11 STJ. Acórdão, REsp 2.037.616-SP, Relator Ministro Humberto Martins, Terceira turma, Julgado dia 24.04.2024, DJe. 27.04.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024. 12 STJ. Acórdão, REsp 2.038.333-AM, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, Julgado dia 24.06.2024, DJe. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024. 13 STJ. Acórdão, REsp 2.057.897-SP, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, Julgado dia 24.04.2024, DJe. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024.
terça-feira, 8 de outubro de 2024

Nexo causal e o seu caminho de aferição

Historicamente, a responsabilidade civil esteve ligada à noção de culpa, exigindo que a vítima provasse a falha do causador do dano. Essa prova era difícil, especialmente em casos cuja apuração (prova técnica) dependesse de dados ou registros que geralmente não estavam em poder da vítima ou cujo acesso era difícil ou impossível ("prova diabólica").  Em muitos casos, o nexo entre o fato e o dano dependia de prova a respeito da conduta do responsável ou do ofensor, que não cooperava na produção da prova porque nenhuma consequência lhe era imposta ao deixar de carrear prova aos autos ou de colaborar para a sua realização e durante a sua produção, escudado pela regra geral de que cabe ao autor comprovar as suas alegações e ao réu incumbe a demonstração dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do alegado direito do autor.   Com o tempo, a noção de ilícito na responsabilidade civil subjetiva foi tomando corpo, evoluindo para uma perspectiva objetiva que hoje é presente em grande parcela dos casos de ações indenizatórias sub judice. A constatação do declínio da culpa na responsabilidade civil lança maior protagonismo à causa do evento lesivo, espaço no qual o nexo entre conduta e dano é crucial para atribuir responsabilidade (subjetiva ou objetiva), para definir os contornos da obrigação de indenizar e para estabelecer a imputabilidade. Ao Direito compete traçar os critérios de seleção da causa juridicamente qualificada para determinar a responsabilidade, que também serve para fixar as consequências danosas que devem ser indenizadas (compensadas ou reparadas) e quem deve ser responsabilizado. A tarefa é complexa, especialmente em casos de concurso de causas, causalidade indireta, presunção ou probabilidade, dano por ricochete e perda da chance. Sabe-se que o nexo causal é um vínculo entre um evento e um resultado, a ligar conduta e dano, ambos juridicamente qualificados. Ele responde às perguntas Por quê? e Quem?, estabelecendo a causa e o responsável. A certeza ou suficiência da causa para ser juridicamente qualificada constitui um desafio à responsabilidade civil, e diferentes teorias foram doutrinariamente construídas para tentar solucionar o desafio.  A teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non) considera todas as condições antecedentes ao dano como possíveis causas, mas é criticada por sua amplitude excessiva1. A teoria da causalidade próxima considera o último evento determinante como suficiente para estabelecer o nexo causal (art. 403 do CC). Contudo, nem sempre a última ocorrência é determinante e nem sempre danos indiretos podem ser excluídos do âmbito da responsabilidade civil2.  A teoria da causalidade eficiente identifica condições aptas à produção do dano, estabelecendo a mais determinante como causa3.  A teoria da causalidade adequada, por fim, requer apreciação abstrata das circunstâncias, verificando se há relação de causa e efeito em casos semelhantes ou se decorre de  situações especiais4. A resposta ao questionamento da causa envolve prognose ulterior e diz respeito ao curso previsível dos acontecimentos "com veste jurídica", podendo-se perguntar qual será a consequência esperada do ato ou acontecimento x, em seu curso normal e se o resultado teria ocorrido mesmo sem que adviesse o ato ou o acontecimento x5. Na jurisprudência, não há consenso sobre a teoria do nexo causal que deva incidir. Diversos julgados mencionam as teorias do dano direto e imediato e da causalidade adequada, sem critérios objetivos definidos ou suficiente uniformidade de requisitos aptos à determinação da causa jurídica de um dano. A tendência do STJ é determinar o nexo causal segundo critérios de causalidade adequada, buscando verificar se o evento indicado como vinculado ao dano efetivamente é direto, imediato e eficiente6, não instituindo responsabilidades quando houver causas excludentes do nexo causal, tais como a conduta exclusiva da vítima ou de terceiro, o caso fortuito ou a força maior7.  A causalidade jurídica depende da seleção das consequências indenizáveis, podendo ser utilizado um critério trifásico de aferição. Inicialmente, apura-se de modo abstrato o curso dos acontecimentos até o dano, conforme um padrão médio admissível de conduta, sob a perspectiva de um "observador experiente"8, atentando-se ao desencadear ordinário (razoavelmente esperado) dos fatos, mantendo-se as condições juridicamente qualificadas e extraindo-se aquelas desprovidas de veste jurídica, pois "a repetição, previsibilidade e probabilidade conferem credibilidade ao processo causal"9. O "observador experiente" permite um raciocínio distanciado e sensato, evitando distorções de premissas equivocadas. Conforme a regra do art. 375 do CPC, para esse fim, o julgador deve adotar regras de experiência comum e técnicas na coleta e na análise das provas. Na segunda fase, recapitula-se o evento ou eventos que causaram o dano. Na terceira fase, transpõem-se os elementos das fases anteriores para identificar tanto os componentes causais comuns quanto os distintivos, determinando os que são decisivos e os que podem excluir a responsabilidade. Verificar-se-á igualmente se a responsabilidade é atribuída ao causador direto do dano ou a um terceiro responsável (como o empregador pelo ato do empregado), total ou parcialmente, se o critério de imputação é objetivo ou subjetivo10, se incide sobre alguém por determinação legal ou negocial (como a responsabilidade do financiador por danos ambientais causados durante a execução ou em razão de uma obra financiada11). Ao determinar um fato como causa adequada de um dano, o responsável terá o ônus de provar que o dano está fora do "âmbito de proteção da norma" ou que resultou de um evento "novo e independente", excluindo a relação de causalidade anterior12. Exemplos incluem a conduta de terceiros, da própria vítima ou casos fortuitos (na responsabilidade objetiva, apenas fortuitos externos). Após definir a causa e a imputação, a última etapa é delimitar o dano juridicamente qualificado a ser indenizado.  No entanto, essa "equação" não resolve todos os desafios da causalidade, pois nenhuma fórmula pode fornecer uma solução universal para questões complexas, como concausas ou hipóteses nas quais o nexo causal não seja irrefutável, apesar da probabilidade de que um dano decorra de uma conduta ou evento específico. A conhecida "flexibilização do nexo causal" é um prolongamento da causalidade jurídica, aplicável a danos por ricochete, perda de uma chance, responsabilidade de terceiros ou danos com causa imprecisa, devido à impossibilidade de confirmação absoluta dos elementos envolvidos na verificação precisa da causa.  Outro entrave é que nenhum resultado é satisfatório sem considerar a prova do nexo causal, com as suas referidas e conhecidas vicissitudes. Desafios incluem eventos que rompem a cadeia causal, concorrência de causas ou causas difíceis de identificar, como desastres ambientais, agravamento de danos por exposição prolongada de trabalhador a agentes danosos em diferentes vínculos empregatícios, e dificuldade de identificar fornecedores de produtos de consumo prolongado, como no caso de fumantes diagnosticados com câncer após consumirem cigarros de diferentes fabricantes13. Para romper o nexo causal, a causa prevalente deve suprimir a causa anterior e sustentar o novo liame entre fato e dano. Na concausa concomitante ou posterior, sem modificar o dano, há solidariedade entre os concausadores (art. 942, parágrafo único do CC)14. Se elevar o dano, o concausador responde solidariamente pelo dano, assim como o seu acréscimo. Com conduta concorrente da vítima, a responsabilidade considera a gravidade da conduta comparada à do autor do dano (art. 945 do CC). Se várias causas forem determinantes para o dano (produzido em razão do concurso), cada uma pode ser considerada causa do dano, atraindo solidariedade entre os concausadores. Se cada causa isolada não produziria o mesmo dano, aplica-se a regra do art. 942, parágrafo único do CC, com responsabilidade integral dos concausadores e possibilidade de ação regressiva para dividir o resultado econômico da obrigação, conforme a participação de cada um15. Em situações de causalidade incerta, na qual múltiplos fatores podem ter contribuído para um dano, é adequado que o agente responda proporcionalmente à probabilidade de sua atuação ter sido a causa ou que esteja sob a sua responsabilidade por determinação legal. A doutrina sugere aplicar o critério probabilístico para estabelecer o nexo causal em casos em que não há certeza científica absoluta acerca da causa jurídica do dano. Assim, um evento pode ser atribuído ao agente apenas quando a existência do nexo de condicionamento atinge um elevado grau de confirmação ou de credibilidade. Este requisito é satisfeito se o julgador, com base em evidências e dados estatísticos, considerar improvável que o evento tenha ocorrido devido a outros processos causais16.  Não há uma definição percentual para a probabilidade de um resultado específico. A teoria do "mais provável que não" 17 sugere que, em casos de difícil verificação da causa, deve prevalecer o que for mais provável, desde que normalmente decorra de um ato ou evento específico, exceto se houver um fato relevante que o secundarize (teoria do novus actus interveniens). Essas linhas preliminares têm como objetivo oferecer uma proposta de aferição de nexo causal, que é um tema que segue atual, intrincado e absolutamente relevante, bem como tenciona servir como um convite aos que desejam explorar os seus contornos em suas complexas nuances, implicações e aplicações. A análise detalhada dos casos concretos e a proposta de modelo de aferição exposta podem servir para iniciar um debate necessário e sobre o qual persiste um amplo espaço de contribuição à responsabilidade civil, que demanda premente aperfeiçoamento.  ___________ 1 Há interessante caso julgado pelo STJ, no qual expressamente a teoria da equivalência das causas antecedentes foi rejeitada, conforme demonstra a sua ementa: "Civil e processual. Acórdão estadual. Nulidade não configurada. Ação ordinária de responsabilidade civil. Quebra de sigilo bancário. Informação dada a terceiro sobre saldo de correntista por preposto do banco. Dívida cobrada pelo credor, que culminou em assassinato do devedor. Atribuição de nexo causal, pela instância ordinária, ao banco. Pedido de suspensão do feito cível, para aguardar desfecho da ação penal corretamente indeferido. Inexistência de responsabilidade do réu pelo crime. Reconhecimento, contudo, de dano moral pela revelação de informação financeira reservada. Indenização proporcionalizada. Pensionamento excluído. (...) II. Descabimento do pedido de suspensão do andamento da ação civil para se aguardar o desfecho da penal, porquanto a responsabilidade atribuída à ré na primeira é inteiramente dissociada da tese de ocorrência ou não de legítima defesa na órbita criminal. III. A responsabilidade civil decorre do concreto e efetivo nexo causal entre o ato e o evento danoso, não colhendo procedência o entendimento sufragado pelo Tribunal estadual, com apoio em discutível teoria da equivalência das causas antecedentes, no sentido de que o banco é culpado pela morte do esposo e pai dos autores, assassinado por credor que, obtendo de gerente de agência do réu informação sigilosa sobre existência de saldo em conta corrente pessoal suficiente ao pagamento de dívida, terminou por assassinar o devedor, ante a sua recusa em pagar o valor do cheque por ele emitido contra conta empresarial, sem fundos. IV. Condenação do banco réu que se limita ao ato ilícito de quebra de sigilo por seu preposto, traduzida em dano moral proporcionalmente fixado, afastados os danos materiais, inclusive o pensionamento. V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido. (REsp 620777/GO. Disponível aqui. 2 A respeito, veja-se: JORGE, Fernando Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1999, p. 388 e ss; PERESTRELO DE OLIVEIRA, Ana. Causalidade e imputação na responsabilidade ambiental. Coimbra: Almedina, 2007. p. 53 e seguintes; SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 36 e ss.  3 MIRAGEM, Bruno. Direito civil. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 229. 4 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 345. 5 Veja-se, por exemplo, julgado do STJ tratando de dano ambiental decorrente de explosão de embarcação que transportava produtos químicos. Para a referida Corte, a responsabilização de poluidor indireto somente ocorre se houver prova de comportamento omissivo da proprietária da mercadoria transportada ou se o risco de explosão no transporte marítimo de produtos adquiridos fosse relacionado às atividades desempenhadas pela proprietária da mercadoria transportada. Os possíveis responsáveis pela explosão, segundo apurado no inquérito, seriam a transportadora dos produtos e o terminal onde o navio estava ancorado. Segundo a prova pericial, a proibição da pesca na região afetada decorreu do derramamento do óleo da embarcação, e não de contaminação pelo conteúdo da carga de metanol transportada, pois este produto é volátil e provavelmente foi diluído na água do mar após o acidente. A ementa do julgado é a seguinte: "Agravo interno. Agravo em recurso especial. Acidente ambiental. Explosão do navio vicuña. Proibição de pesca. Nexo causal. 1. As empresas adquirentes da carga transportada pelo navio Vicuña no momento de sua explosão, no Porto de Paranaguá/PR, em 15/11/2004, não respondem pela reparação dos danos alegadamente suportados por pescadores da região atingida, haja vista a ausência de nexo causal a ligar tais prejuízos (decorrentes da proibição temporária da pesca) à conduta por elas perpetrada (mera aquisição pretérita do metanol transportado, o qual evaporou logo após o acidente, não sendo a causa da poluição ambiental). (...). REsp n. 1.602.106. 6 Vide: STJ. 4ª Turma. REsp 1.414.803-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/5/21. Ementa parcial: Responsabilidade civil. Ação de indenização decorrente de ato ilícito. Acidente aéreo. Colisão de aeronaves durante voo. Diversas mortes. Responsabilidade objetiva do transportador e da arrendadora. Sinistro ocorrido durante as comemorações do 55º aniversário do aeroclube de Lages. Nexo causal não configurado. Ausência de responsabilidade. (...) 6. A Segunda Seção do STJ, no âmbito de recurso repetitivo (REsp 1596081/PR, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva), reconheceu que a ausência de nexo causal é apta a romper a responsabilidade objetiva, inclusive nos danos ambientais (calcada na teoria do risco integral). 7. Ao contrário do que ocorre na teoria da equivalência das condições (teoria da conditio sine qua non), em que qualquer circunstância que haja concorrido para produzir o dano pode ser considerada capaz de gerar o dano, na causalidade adequada, a ideia fundamental é que só há uma relação de causalidade entre fato e dano quando o ato praticado pelo agente é de molde a provocar o dano sofrido pela vítima, segundo o curso normal das coisas e a experiência comum da vida. 8. No caso, a recorrente, proprietária e arrendadora da aeronave, não pode ser responsabilizada civilmente pelos danos causados, haja vista o rompimento do nexo de causalidade, afastando-se o dever de indenizar, já que a colisão da aeronave se deu única e exclusivamente pela conduta do piloto da outra aeronave, que realizou manobra intrinsecamente arriscada, sem guardar os cuidados necessários, além de ter permitido o embarque de passageiros acima do limite previsto para a aeronave. 9. Os fatos atribuídos à recorrente - ser proprietária da aeronave, ter realizado contrato de arrendamento apenas no dia do evento (oralmente e sem registro), ter auferido lucro, bem como ter contratado piloto habilitado para voos comerciais, mas sem habilitação específica para voos com salto de paraquedismo - não podem ser considerados aptos a influenciar imediata e diretamente a ocorrência do evento danoso, não sendo necessários nem adequados à produção do resultado, notadamente porque o avião ainda estava em mero procedimento de decolagem. Portanto, não há efetivamente uma relação de causalidade entre fato e dano, tendo em conta que o ato praticado pelo agente não é minimamente suficiente a provocar o dano sofrido pela vítima, segundo o curso normal das coisas e a experiência comum da vida, conforme a teoria da causalidade adequada. 10. Recurso especial provido. 7 STJ. 3ª Turma. REsp 1615971/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, j. em 27/09/2016, DJe 07/10/2016. 8 A expressão "observador experiente" está em SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. Ob. cit. p. 70. 9 MAGADAN, Gabriel de Freitas Melro. Responsabilidade civil extracontratual: causalidade jurídica - seleção das consequências do dano. São Paulo: Editora dos Editores, 2019. p. 73. 10 "O ato de menor gravidade cometido por determinado sujeito, no sentido de causar um dano menor, não pode abarcar os danos maiores, ainda que tenha criado as circunstâncias para que se deflagrem. As situações mais gravosas havidas pelas precondições estabelecidas não configuram o curso normal dos acontecimentos (exceto, como se disse, frente à prova da culpabilidade), e poderiam gerar a responsabilidade pelo improvável, imponderável, admitindo a aleatoriedade como regra para a reparação." MAGADAN, Gabriel. Ob. cit.p. 93. 11 A respeito do tema: RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade civil ambiental do financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, especialmente p. 211 e ss; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 397 e ss.; GRIZZI, Ana Luci Esteves, BERGAMO, Cintya Izilda, HUNGRIA, Cynthia Ferragi; CHEN, Josephine Eugenia. Responsabilidade civil ambiental dos financiadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 31 e ss. 12 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 639. 13 A respeito do tema, com profunda análise a respeito do nexo causal, veja-se: FACCHINI NETO, Eugênio. Há via do meio na responsabilidade civil pelos danos à saúde do fumante?. Revista IBERC, v. 2, n. 1, p. 1 - 27, 22 maio 2019. 14 Atente-se ao enunciado da Súmula n. 385 do STJ, com o seguinte teor: "Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento". Esse enunciado deva ser revisto, pois anotações sucessivas podem afetar o score de crédito do indivíduo no mercado, conforme o seu perfil, que considera as anotações de débito em cadastros de pagadores. Para esse fim, portanto, haveria causalidade entre a nova anotação e o prejuízo àquele que tenha sido injustamente inscrito em cadastros de devedores.  15 Quanto a conduta da vítima, veja-se o que dispõe o Enunciado n. 630 CJF: "Art. 945: Culpas não se compensam. Para os efeitos do art. 945 do Código Civil, cabe observar os seguintes critérios: (I) há diminuição do quantum da reparação do dano causado quando, ao lado da conduta do lesante, verifica-se ação ou omissão do próprio lesado da qual resulta o dano, ou o seu agravamento, desde que (II) reportadas ambas as condutas a um mesmo fato, ou ao mesmo fundamento de imputação, conquanto possam ser simultâneas ou sucessivas, devendo-se considerar o percentual causal do agir de cada um". 16 MANZON, Riccardo; NEGRO, Antonello; SELLA, Mauro; ZIVIZ, Patrizia (a cura di Paolo Cendon). Trattario di diritto civile. Illeciti. Danni. Risarcimento. Milano: Giuffrè, 2013. p. 115. 17 Exemplifique-se com a condenação da indústria do cigarro por doença pulmonar de fumante: "Apelação cível. Ação de reparação de danos. Tabagismo. Responsabilidade civil da indústria do fumo. Agravo retido da ré. Prescrição. Inocorrência. Agravo retido da autora. Provimento. Cerceamento de defesa. Necessidade de produção das provas requeridas. Nexo de causalidade. Multifatorialidade que não impede o acolhimento, em tese, da demanda. Livre-arbítrio. Limitação. Invocabilidade apenas parcial da ideia. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade da ideia de periculosidade inerente. (...) NEXO DE CAUSALIDADE. O simples fato de a doença que acarretou a morte do marido da autora ser multifatorial (doença pulmonar obstrutiva crônica) não exclui a possibilidade de se evidenciar que a sua causa principal estivesse vinculada ao vício do tabagismo. O acolhimento irrestrito da tese ventilada na sentença e acolhida em muitos julgados leva, com a devida vênia, a um absurdo lógico. Deve-se levar a sério as conclusões da ciência médica que apontam, com dados cientificamente irrefutáveis e atualmente indiscutíveis, pois objeto de consenso médico universal, para o fato que determinadas doenças (especialmente as pulmonares) estão necessariamente vinculadas ao vício do fumo num percentual que por vezes se situa entre 80 e 90% dos casos. (...)  Inequívoco, portanto, o nexo de causalidade científico e irrefutável entre a conduta (tabagismo) e o efeito (desenvolvimento da doença), dentro dos limites estatísticos. Todavia, se todas essas cem pessoas ajuizassem ações individuais, a invocação da tese sentencial faria com que todas as cem pretensões fossem desacolhidas, apesar da certeza científica e irrefutável de que entre 80 a 90% daqueles autores tinham inteira razão. (...) Nosso sistema probatório não exige uma prova uníssona e indiscutível, mas sim uma prova que possa convencer o juiz, dentro do princípio da persuasão racional. É verdade que há que se ter elementos que apontem para a existência dos fatos constitutivos do direito do autor. Mas não há necessidade de que tal prova seja incontroversa. (...)  Lição doutrinária no sentido de que ainda que se aceite a impossibilidade de se aferir, com absoluta certeza, que o cigarro foi o causador ou teve participação preponderante no desenvolvimento da enfermidade ou na morte de um consumidor, é perfeitamente possível chegar-se, mediante a análise de todo o conjunto probatório, a um juízo de presunção (oriundo de provas indiciárias) sobre a relação que o tabagismo teve num determinado acidente de consumo." TJRS. Nona Câmara Cível. Apelação cível n. 70059502898. Rel. Des. Eugênio Facchini Neto. J. em 16 dez. 2015. Disponívelm aqui. 18 SOARES, Flaviana Rampazzo. O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida? In: PASQUALOTTO, Adalberto; MELGARÉ, Plínio. 20 anos do Código Civil brasileiro. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 69-88.
1. INTRODUÇÃO Desde a entrada em vigor do Código Civil atual o debate em torno da interpretação do art. 406 se manteve ativo. Duas correntes disputaram a fixação do significado da expressão "taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". De um lado, havia aqueles que se filiavam à interpretação de que referida taxa é a prevista no art. 161, §1º do CTN, qual seja de 1% ao mês, e de outro a corrente que apontava como taxa aplicável a SELIC, por força do que dispõem as leis 9.250/95, 8.981/95 e 9.430/96. A doutrina majoritariamente se filiou à primeira tese1. Por outro lado, no âmbito do STJ, ainda que não especificamente sobre as dívidas civis, a posição sempre se inclinou pela aplicação da SELIC, em especial a partir de decisões da 1ª seção sob relatoria do falecido ministro Teori Zavascki2 e na decisão do Tema repetitivo 1123, vindo essa posição a ser reiterada no julgamento do Tema repetitivo 9054 e, mais recentemente, na decisão proferida pela corte especial no REsp 1.795.9825. Com a conclusão do julgamento do REsp 1.795.982 e o advento das alterações do Código Civil promovidas pela lei 14.905/24, nasce para a sociedade um problema a ser tratado: a existência, ou não, de impacto sobre os negócios jurídicos firmados fora do âmbito do Sistema Financeiro Nacional e de outras áreas de exclusão do alcance do decreto 22.626/33, durante a vigência da redação original do art. 406 do CC e no período em que não firmado precedente qualificado sobre a taxa de juros aplicável sobre as dívidas civis. Além disso, um outro problema se coloca. É fato notório que, influenciada pela redação do CC/16 que fixava a taxa legal em 6% ao ano e pela redação do art. 192 da CF/88 vigente até a EC 40/03, a sociedade brasileira se acostumou, quanto às dívidas civis, com uma taxa fixa de juros legal de 12% ao ano a partir da vigência do CC/02. Com a recente alteração legislativa - e mesmo com a predominância no STJ da posição doutrinariamente minoritária de aplicação da SELIC às dívidas civis mesmo antes dela - passa-se a ter uma taxa móvel ou variável como fiel para avaliação das disposições contratuais firmadas anteriormente. Desse modo, pensando-se em uma cláusula que fixou juros moratórios à taxa de 1% ao mês, há meses em que esse percentual poderá estar acima da taxa legal, e há meses em que poderá estar abaixo. No que se refere aos impactos para a responsabilidade civil, os juros moratórios, que enfrentavam já a discussão sobre a sua taxa, passam a apresentar outras problemáticas que influenciam diretamente a composição das dívidas decorrentes de decisões judiciais, o efeito da mora para os negócios e a capacidade de as partes prefixarem as consequências do inadimplemento. É o que se buscará, nessas breves linhas, abordar à luz das alterações promovidas pela lei 14.905/24 e das regras de direito intertemporal do CC. 2. EFEITOS DA LEI - DIREITO INTERTEMPORAL A primeira grande questão que se coloca em relação à lei 14.905/24 se relaciona com a produção dos seus efeitos. Publicada em 1/7/24, a sua vigência plena se deu, por força da vacatio legis estabelecida em seu art. 5º, II, no dia 30/9/24. Mas não é essa a polêmica que se vislumbra, e sim um aspecto de direito intertemporal relacionada com a mencionada norma. Não se ignora que a vigência da lei se iniciou apenas a partir do fim do período de vacância, e que não há espaço para discussão sobre uma retroatividade da lei. Discussões judiciais sobre qual a taxa aplicável aos juros legais encerradas antes da lei não sofrem os seus efeitos, em prestígio à proteção da coisa julgada. A dúvida que fica é a seguinte: a nova taxa de juros legais que passou a viger a partir do final de agosto aplica-se aos negócios jurídicos celebrados anteriormente à publicação da lei? E se sim, a partir de quando os efeitos serão sentidos? Em princípio a resposta seria claramente negativa, pois sabe-se que normas de direito material não comportam retroatividade e, em regra, só se aplicam a negócios constituídos após o início de vigência de uma lei6. Ocorre que nesse caso não há que se falar em retroatividade ou produção de efeitos imediatos, mas sim a verificação de efeitos que serão produzidas no âmbito do plano da eficácia de um negócio jurídico. Isso porque, a aplicação dos juros legais não impacta a formação de um negócio jurídico, atuando no momento de produção dos seus efeitos, mais especificamente a partir do momento que o inadimplemento for verificado. Interessante notar que do ponto de vista regulatório, a resposta para as dúvidas acima colocadas se encontra no meio termo. Após a regulamentação das novas regras aplicáveis aos juros legais realizada pelo CMN7, o Banco Central do Brasil passou a disponibilizar na sua aplicação "Calculadora do Cidadão" uma aba destinada exclusivamente ao cálculo dos juros legais8. Porém, a mencionada aplicação não permite que o cidadão calcule a nova taxa de juros legais imputando uma data inicial anterior a 30/9/24. Nesse sentido, a aplicação não se preocupa com a data de constituição da dívida, até porque não é função do BACEN se preocupar com tal questão, mas por outro lado não permite que no cálculo a taxa leve em conta uma data anterior à da vigência da lei 14.905/24. Para dar uma solução para essa questão, busca-se na correta interpretação do art. 2.035 do CC uma resposta. O mencionado artigo, que faz parte do livro complementar das disposições transitórias do CC, estabelece que aos negócios jurídicos celebrados antes da sua vigência aplicam-se, quanto à validade, as regras jurídicas anteriormente vigentes. Por sua vez, quanto a eficácia dos negócios jurídicos, deve-se observar as regras do próprio código. Ao comentar o mencionado dispositivo, Mario Luiz Delgado esclarece que ela estabelece uma espécie de retroatividade mediana, possibilitando que a lei posterior se aplique a negócios jurídicos nos quais os efeitos jurídicos ainda não foram consumados9. Diferente não é a doutrina de Limongi França, para quem a lei nova se aplica aos facta pendentia quanto às suas partes posteriores, bem como aos facta futura10, isto é, tratando-se de mora, a partir da nova lei os juros posteriores passam a obedecer à nova taxa legal. Dessa forma, entendemos que o disposto na lei 14.905/24, e mais especificamente a nova regra sobre a taxa legal de juros, deve ter aplicação imediata, pois é uma lei que afeta o plano da eficácia do negócio jurídico. Assim, a forma de cálculo atualizada dos juros legais deve ser aplicada a todos aqueles negócios jurídicos existentes e válidos anteriormente à vigência da lei, salvo obviamente disposição em contrário ou estabelecimento convencional da taxa de juros, nas hipóteses em que permitido11. Mais que isso, defendemos que a forma de cálculo deve acompanhar a integralidade da evolução da dívida, mesmo que o inadimplemento tenha ocorrido antes da vigência da lei12. Isso porque o momento de fixação da taxa legal se dá quando a decisão judicial ou arbitral for proferida, aplicando-se, portanto, as regras de eficácia vigentes no momento da aplicação.13 1. 3. EFEITOS DA LEI - APLICAÇÃO EM TABELAS E ÍNDICES PRÉ-DEFINIDOS Limongi França em obra clássica sobre o tema do direito intertemporal destaca que o fato de a lei nova ter efeito imediato sobre os negócios jurídicos não é colidente com a regra geral de não retroatividade, porque os efeitos imediatos não afetam, a priori, os fatos anteriores e os efeitos anteriores decorrentes desses fatos14. Assim, continua Limongi França, "as novas leis ainda quando não expressas, se aplicam às partes posteriores dos facta pendentia, ressalvado o Direito Adquirido"15. Ou seja, os efeitos posteriores à nova lei, ainda que decorrentes de fatos anteriores, são por ela regulados. Como exposto, a aplicação dos juros moratórios em uma dada relação jurídica insere-se no plano da eficácia. Ainda que o inadimplemento seja anterior, a situação de mora se renova periodicamente, se protraindo no tempo, de modo que as renovações posteriores à nova lei devem obedecer ao regramento por ela determinado. Nos casos em que as partes se omitiram quanto à taxa de juros moratórios em contratos anteriores à lei 14.905/24 a solução não é diferente, mas não apenas por uma questão de eficácia, senão pela mera supletividade da regra. Ao se omitirem, as partes se sujeitam integralmente à norma vigente ao tempo dos efeitos. Mudando a regra de regência supletiva, muda-se a taxa vigente no negócio. E quando as partes expressamente previram no contrato a aplicação de juros moratórios de 1% ao mês? Ou mesmo previram a aplicação da SELIC? Vale lembrar que a nova taxa legal é calculada de forma simplificada através da fórmula SELIC - IPCA, portanto, nos dois casos a problemática surge. Diferentemente dos juros moratórios, os ditos remuneratórios se encontram no plano da validade, em um momento de formação contratual, integrando, usualmente, a própria contraprestação em razão da disponibilização do capital por uma das partes. Os juros moratórios, ainda que inseridos no contrato desde a sua formação, são previstos apenas para a hipótese de inadimplemento. Isso significa que eles não integram a contraprestação originária, mas somente passam a integrar o patrimônio do contratante quando do inadimplemento da contraparte, a cada mês em que o período de mora se renove. Assim, o momento de avaliação da legalidade da taxa de juros moratórios é quando estes se tornam exigíveis e passam a integrar o patrimônio do credor, e não o da formação do contrato. A leitura isolada do texto do art. 406 do CC poderia levar à interpretação, equivocada, de que as expressões "Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada" permitiriam a prevalência das cláusulas que fixam a taxa de juros moratórios em qualquer hipótese. A norma do art. 406, contudo, não é dispositiva para todos os seus destinatários. Há de ser realizada a devida leitura sistemática, de modo que a prevalência, no caso dos juros moratórios, da taxa contratada sobre a legal se dá em duas hipóteses: i) nos casos em que a taxa convencionada for inferior à taxa legal; ii) nos casos em que o contrato tem como uma das partes pessoa autorizada a pela lei a contratar juros moratórios acima das taxas legais. Caso a taxa de juros moratórios prefixada ou utilizada para o cálculo de tabelas seja nominalmente inferior à taxa legal, deve prevalecer o que convencionado pelas partes. O art. 406 não é norma puramente cogente, há parte dispositiva, contudo, limitada a liberdade contratual das partes à taxa legal. Assim, caso as partes prevejam como índice de juros moratórios ou utilizem tabelas destinadas ao cálculo de prestações no caso de mora que sejam inferiores à taxa legal, prevalecerá o que contratado, privilegiando-se aquilo que as partes livremente convencionaram. Por outro lado, para os efeitos do inadimplemento que ocorrerem após a entrada em vigor da lei 14.905/24, se a taxa de juros moratórios convencionada for superior à taxa legal, ajustes precisarão ser realizados. Isso, a depender se o negócio se insere nas exceções aos limites da lei de Usura ou não, o que será objeto de análise no tópico seguinte. Diferente não era a interpretação na vigência da redação original do art. 406 do CC, que já trazia a referida abertura, ainda que com redação diversa. É assente que somente poderiam convencionar juros além do limite legal as pessoas cuja liberdade não é restringida pela lei de Usura. A nova lei, portanto, não traz nova interpretação quanto aos limites da norma dispositiva contida na redação do art. 406 do CC. Assim, a abertura dispositiva contida na primeira parte do art. 406 do CC não representa autorização para que os índices e taxas de tabelas previamente contratados para a situação de inadimplemento prevaleçam sobre a taxa legal, ficando limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei, dado que não caracterizados como fatos pretéritos, mas como partes posteriores de fatos pendentes (facta pendentia). 2. 4. REVOGAÇÃO DA APLICAÇÃO DA LEI DE USURA AOS NEGÓCIOS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS A lei 14.905/24 trouxe outra importante alteração, o alargamento das exceções aplicáveis às restrições de liberdade contratual presentes na lei de Usura. No período pretérito à nova legislação, poucas eram as exceções à lei de Usura. Basicamente apenas as pessoas jurídicas de direito público e privado integrantes do Sistema Financeiro Nacional estavam autorizadas a contratar juros acima do limite legal, conforme sedimentado na súmula 596 do STF, editada em 197616.  O projeto de lei que originário (PL 6233/23) previa originalmente três novas exceções à lei de Usura, para além da exclusão das entidades do SFN de seu alcance, a saber as operações: contratadas entre pessoas jurídicas; representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; ou contraídas perante fundos ou clubes de investimento. Após emendas, a redação final foi além, incluindo entre as obrigações não alcançadas pelos limites da vedação legal aquelas contraídas perante, expressamente, as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central; sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; e organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a lei 9.790, de 23 /3/99, que se dedicam à concessão de crédito. Das exceções inseridas, duas previsões merecem destaque. A primeira nas obrigações contraídas entre pessoas jurídicas e a segunda naquelas representadas por títulos de crédito e valores mobiliários. Surgem duas questões: i) nas operações contratadas entre pessoas jurídicas a análise dos limites de liberdade é meramente formal de modo que não há qualquer limitação legal à taxa de juros a ser contratada?; ii) no que diz respeito aos títulos de crédito, qualquer obrigação representada por título de crédito está excluída do alcance da lei de Usura? Dado à limitação de espaço, em linhas preliminares, parece que a resposta a ambas as perguntas é negativa. Sequer para as operações contratadas no âmbito do SFN no período anterior à nova lei havia irrestrita liberdade quanto à taxa de juros contratada. Portanto, a exclusão das obrigações contratadas entre pessoas jurídicas das restrições da lei de Usura não significa ampla e irrestrita liberdade formal, devendo ser realizado um juízo de proporcionalidade a partir dos parâmetros de mercado. Ainda que nos contratos entre pessoas jurídicas os espaços de liberdade negativa sejam ampliados, isso não significa que são irrestritos. Interagem com outros perfis na relação negocial17. A livre fixação de taxas de juros moratórios nos negócios firmados por pessoas jurídicas prestigia a autonomia privada e a alocação de riscos do negócio pelas partes, de modo que a avaliação de razoabilidade das taxas prefixadas não foge dos critérios de interpretação gerais dos negócios jurídicos que se presumem simétricos e paritários, conforme previsto no art. 421-A do CC. Ressalvado que, para os fins da exceção prevista na lei 14.905/24, o contrato assim considerado deve ser o firmado entre partes que sejam pessoas jurídicas, não se admitindo aí relações entre uma pessoa jurídica e outra natural. Também quanto aos títulos de crédito, especialmente, a interpretação da exclusão não deve ser a mais abrangente. O entendimento de que, por exemplo, qualquer nota promissória pudesse prever juros acima da taxa legal, significaria uma abertura para evitar a limitação do art. 591 do CC nos contratos de mútuo, por exemplo. Bastaria às partes que ao invés de formalizarem o contrato via instrumento próprio, emitissem uma promissória com vencimento para a data da devolução do capital e a taxa de juros superior ao limite legal. Seja por interpretação pela visão sistemática ou finalística, a conclusão é a de que os títulos de crédito vinculados a operações excluídas do âmbito das restrições da lei de Usura. Os juros moratórios são uma sanção contra o inadimplemento parcial da obrigação. Assim, a sua definição pelas partes representa alocação de riscos dos negócios, devendo ser privilegiada nos contratos em que autorizada a sua fixação em valores acima da taxa legal, observada a razoabilidade e a condição dos contratantes no caso concreto. Dessa forma, com base nos controles e filtros legais que tutelam o exercício de posições jurídicas pelas partes, uma redução de taxa de juros que seja reputada abusiva pelo julgador será justificável, em especial considerando a vedação do abuso de direito e a função corretiva que emana da boa-fé objetiva. 5. LIMITE LEGAL APLICÁVEL AOS JUROS QUANDO CONVENCIONADOS - INTERPRETAÇÃO DA LEI DE USURA A última controvérsia que cabe analisar no presente texto diz respeito ao limite legal a ser aplicado quando as partes convencionam os juros moratórios aplicáveis ao contrato. Como se viu acima, a lei de Usura continua em vigor para relações jurídicas que tenha pelo menos uma parte que seja pessoa natural. Em razão disso, as disposições contidas nos arts. 1º e 5º da mencionada lei aplicam-se à essas relações jurídicas, o que pode levar à nulidade da cláusula que estabelece os juros em um contrato18. Adicionado a isso, observa-se a prática contratual brasileira que na sua grande maioria adota a taxa de 1% ao mês, calculada pro rata die, como taxa de juros convencionalmente utilizada. Assim, surgem as seguintes dúvidas: como definir o limite legal aplicável aos juros estipulados pelas partes? Como calcular o que seria o dobro da taxa legal? As taxas de 1% ao mês estabelecidas em contratos serão ou poderão ser consideradas nulas? A correta interpretação dos artigos acima mencionados à luz do disposto no atual CC sempre foi bastante controversa. Na vigência da antiga regra, Daniel Bucar e Caio Ribeiro Pires, de forma bastante minuciosa, apontavam que, a partir da análise doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, podemos encontrar argumentos para defender 5 limites legais diversos, quais sejam: 1) a própria SELIC; 2) o dobro da SELIC; 3) a SELIC acrescida de 12% ao ano; 4) a taxa1% ao mês, ou seja 12% ao ano; 5) o dobro de 1% ao mês, ou seja 24% ao ano19. Como a alteração promovida pela lei 14.905/25, algumas dessas hipóteses são afastadas, já que a taxa legal restou definida. Mas essa definição não é capaz de afastar as dúvidas colocadas acima. Isso porque o legislador acabou por acolher uma taxa que é essencialmente móvel, com variação diária de acordo com a regulamentação do CMN20. Dessa forma, calcular qual valor representa uma "taxa(s) de juros superior(es) ao dobro da taxa legal" não é uma tarefa das mais fáceis. Considerando tal variação, a taxa fixada pelas partes pode ser maior ou menor que o dobro da taxa legal a cada dia que se passa. Se as partes estabelecerem, como ocorre usualmente, uma taxa de juros de 1% ao mês para o caso de atraso no pagamento da remuneração de um contrato de prestação de serviços, é possível que em um dia a taxa esteja dentro do limite legal, enquanto no outro ela esteja acima. Nesse caso, a taxa como um todo seria nula, ou apenas deve-se considerá-la nula nos dias nos quais o seu patamar superar o dobro legal? A resposta não se mostra simples. Certo é que as regras que estabelecem a nulidade de um negócio jurídico, em razão do seu interesse coletivo, são normas de ordem pública, não comportando confirmação ou convalescimento.21 Por outro lado, declarar nula uma cláusula que encontra uma enorme adesão social por conta de um excesso mínimo ou pontual, pode se mostrar excessivo. Tendo isso em mente, a solução mais adequada deve ser a intermediária, sendo necessário verificar a taxa média aplicada ao longo da situação de inadimplemento da obrigação. Será nula a estipulação quando as partes estabelecerem juros superiores ao dobro legal22. Mas somente nos casos nos quais a média da taxa convencionada for mais que o dobro da taxa legal. Se as partes estabelecerem um patamar médio que seja inferior ao limite legal (ou seja, o dobro), ela deve ser considerada válida. Por outro lado, caso me média a taxa convencionada seja superior ao dobro da média da taxa legal para o mesmo período, o julgador deve declará-la nula e aplicar a taxa legal. Duas são as ressalvas finais sobre essa questão. Em primeiro lugar, deve-se sempre lembrar que essa limitação se aplica apenas às relações sujeitas à lei de Usura e que não tenham regulamentação específica. Em segundo lugar, por se tratar de um controle que atua no plano da validade do negócio jurídico que estabelece os juros moratórios convencionais, o disposto na lei 14.95/24 só se aplica aos contratos celebrados após o início da sua vigência. 4. 6. CONCLUSÃO Com o advento da lei 14.905/24, uma das grandes dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais sobre a correta interpretação do CC acaba por se encerrar. A mencionada norma, como demonstrado, ao alterar a redação do art. 406 do diploma civil encerra a discussão que durou mais de 20 anos, fixando como taxa de juros legal o resultado líquido da subtração da taxa SELIC pelo IPCA. Com isso, na falta de disposição em contrário, uma relação jurídica de direito privado na qual se verificar uma situação de inadimplemento estará submetida aos juros moratórios calculados considerando essa taxa. Se a lei tem como principal mérito definir de forma definitiva a taxa de juros supletiva vigente na realidade brasileira, infelizmente ela acaba por deixar algumas lacunas e dúvidas adicionais. Em razão disso, não alcança a plena segurança jurídica que se propôs. Nesse breve ensaio sobre a lei, procuramos apontar quatro questionamentos que ainda pairam sobre o regime legal aplicável aos juros moratórios, cogitando soluções para cada um deles. Assim, para concluir o presente texto de forma propositiva, apresentamos as seguintes considerações: 1) Em que pese a vigência plena da lei 14.905/24 tenha se iniciado apenas em 30/8/2024, a nova taxa de juros legal por ela introduzida aplica-se a todas as relações jurídicas em curso, quanto às suas partes posteriores, mesmo aquelas constituídas anteriormente à publicação da lei, atuando, pois, no plano da eficácia. 2) A lei 14.905/24 não criou uma autorização para que as partes não excepcionadas da lei de Usura estabeleçam índices e taxas de tabelas para a situação de inadimplemento que prevaleçam sobre a taxa legal, sendo certo que esses ficarão limitados quanto a seus efeitos posteriores à nova lei. 3) A maior liberdade trazida pela lei 14.905/24 quando à fixação da taxa de juros moratórios, em razão das novas hipóteses de exceção à lei de Usura, ainda que autorize que as partes excepcionadas estabeleçam taxas superiores ao limite legal, não permite que o façam de modo abusivo. 4) No exercício de controle da taxa de juros moratórios, de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 1º e 5º da lei de Usura, deve-se considerar como nula a taxa convencionada pelas partes que supere o dobro da taxa média legal para o período avaliado. __________ 1 É o que se extrai do Enunciado nº 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça: "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês". Essa era também a posição de um dos autores desse texto: Disponível aqui. Cabe apontar que aquilo que se defendeu no mencionado artigo não foi acolhido pela Lei 14.905/2024, que optou por seguir uma direção diversa. O tema também foi objeto de debate com a Professora Renata Steiner (que defendeu a posição adotada pela lei) em webinar organizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil: Disponível aqui. 2 EREsp 727.842/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, 8/9/08 e REsp 1.102.552/CE - 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 6/4/09. 3 Cf. Disponível aqui. 4 STJ. REsp n. 1.495.146/MG, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 2/3/2018: "[...] nos termos do art. 406 do CC/2002, 'quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional'.  Conforme entendimento pacificado pela Corte Especial/STJ, 'atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)' 5 Nesse caso, a Corte Especial do STJ reafirmou o entendimento de que a interpretação a ser conferida ao art. 406 do Código Civil é de que a taxa ali indicada é a SELIC 6 Como leciona Franciso Amaral ao destacar que o direito intertemporal é regido por dois princípios fundamentais, quais sejam, o do efeito imediato e o da irretroatividade. (Direito civil: introdução. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018 p. 188). 7 Por força da introdução do §2º do art. 406 do Código Civil, alterado pela lei 14.905/2024: "§ 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil." 8 Que pode ser acessada por meio desse link: Disponível aqui. 9 DELGADO, Mário Luiz. Comentários ao art. 2.035. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1712-1713. 10 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 258. ' 11 No mesmo sentido é a posição de Carlos E. Elias de Oliveira, o qual adverte que situações como essas não garantem direito adquirido aos credores, em razão da sua natureza de situação jurídica institucional. (Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui. 12 O que, ao nosso ver, se harmoniza com o enunciado 300 da IV Jornada de Direito Civil do CJF: "A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio." 13 Interessante notar que essa solução foi a adotada pela Lei de Usura (Decreto 22.626/1933), que no seu art. 3º estabelece o seguinte "Art. 3º As taxas de juros estabelecidas nesta lei entrarão em vigor com a sua publicação e a partir desta data serão aplicaveis aos contratos existentes ou já ajuizados." 14 LIMONGI FRANÇA, R. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 200. 15 LIMONGI FRANÇA, R. op. cit. p. 202. 16 STF. Súmula nº 596. As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional. (Sessão Plenária de 15/12/1976). 17 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Liberdade(s) e Função. contribuição crítica para uma nova fundamentação da dimensão funcional do Direito Civil brasileiro. 2009. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, p. 229. 18 Em razão da chamada nulidade virtual prevista no art. 166, VII do Código Civil: "Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção." 19 BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Juros moratórios na teoria do inadimplemento: em busca da sua função e disciplina no direito civil. In: Inexecução das Obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 474. 20 Como se extrai da redação do art. 6º, Parágrafo Único, da Resolução CMN 5.171 de 29 de agosto de 2024. 21 Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. 22 Nesse sentido, concordamos com a posição de OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a Lei dos Juros Legais (Lei nº 14.905/2024): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Disponível aqui.
 No último dia 25 de setembro de 2024, o STF, após longa e injustificável demora, finalmente concluiu o julgamento sobre o direito à recusa à transfusão de sangue, por pessoas maiores e capazes, Testemunhas de Jeová. Por unanimidade os ministros da Corte Superior, confirmaram o direito à recusa terapêutica e definiram que o Estado tem a obrigação de oferecer, quando possível, procedimentos alternativos que estejam incorporados no SUS (o que também está em consonância com o definido no recente julgamento do tema 12341 e na Súmula Vinculante 602). As decisões ocorreram no âmbito dos recursos extraordinários 9797423 e 12122724, de relatoria dos ministros Roberto Barroso e Gilmar Mendes, respectivamente, das quais resultaram as seguintes teses de repercussão geral (temas 952 e 1069): RE 979742 Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no SUS podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio. RE 1212272 É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde por motivos religiosos é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade. É possível a realização de procedimento médico disponibilizado a todos pelo Sistema Único de Saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente. A demora nos dois julgamentos talvez seja reflexo do ranço cultural brasileiro de querer controlar os corpos a partir dos próprios valores pessoais, desconsiderando a autonomia do titular desse corpo para a tomada de decisões. Isso pode ser confirmado com as primeiras manifestações postadas após a divulgação das decisões: "como assim, a pessoa prefere morrer a receber tratamento médico?"; "vou realizar a transfusão mesmo contra a vontade"; "não vou deixar morrer por questões religiosas"; "liberdade religiosa não pode dar direito a morrer"; "mas e se for urgência, não é obrigatória a intervenção?"; "o que acontece com o médico que optar por salvar a vida do paciente, desconsiderando o seu desejo de não receber o tratamento?"... As frases não só foram proferidas por profissionais da saúde, como também por profissionais e acadêmicos de Direito, insistentes na visão paternalista que coloca ênfase na cura ou tratamento a qualquer custo, desconsiderando a visão humanizada que considera a prevalência das escolhas pessoais do paciente. Embora a discussão tenha sido estabelecida a partir de dois casos que versavam sobre escolhas realizadas em razão de valores religiosos, é possível compreender de que se está a tratar de algo muito maior: de autodeterminação sobre escolhas existenciais. O direito ao próprio corpo foi reconhecido expressamente como direito de personalidade no art. 13, do Código Civil, parte da tutela à integridade física. No entanto, ao mesmo tempo em que o legislador declarou o direito ao próprio corpo, ainda prevalecem visões muito conservadoras sobre que se referem a escolhas sobre tratamentos médicos. Isso se dá não só porque ainda se considera o direito ao próprio corpo como referente apenas à saúde física, afastando-se do conceito estabelecido pela OMS, de que saúde é estado de completo bem-estar físico, psíquico e social (o que inclui as escolhas realizadas a partir de valores religiosos), mas também porque se faz uma leitura muito restritiva da autorização contida no art. 15, do Código Civil. Essa obsessão histórica, científica e cultural pelo controle do corpo resulta das tentativas de controle da própria subjetividade humana, fruto do Biopoder que atua constantemente sobre os corpos controlando-os, marcando-os, dirigindo-os, estimulando-os, adestrando-os, limitando-os. No entanto, o corpo físico não pode mais ser pensado dissociado do psicológico ou do meio social em que está inserido, nem tampouco é suficiente para se falar em pessoa, vez que esta emerge daquele. Por isso, pode-se afirmar que "a pessoa humana é um sistema específico que emerge do corpo humano (seu componente) em relação com o meio que o circunda, graças a estruturas e mecanismos específicos [...], portanto, a pessoalidade não está no cérebro, mas fora dele, na interação"5. Daí a necessidade de se compreender a recusa terapêutica como um direito do paciente, do qual médicos não possuem qualquer direito de desconsiderar, ignorar, subverter ou rejeitar6. O corpo humano (como elemento da pessoalidade) deve ser pensado a partir de um conceito pós-metafísico de pessoa, ou seja, como elemento conformador da identidade pessoal e instrumento realizador da própria identidade.  Esta premissa é importante para se compreender a abrangência do direito ao próprio corpo, uma vez que a autodeterminação (como capacidade de fazer escolhas e se responsabilizar por elas) deverá ser pensada a partir dos valores constitutivos da própria pessoalidade e a forma como estes valores interagem com o corpo e com a autonomia visando a autorrealização de seu titular. A indisponibilidade dos direitos de personalidade, disposta no art. 11, do Código Civil, não pode conduzir a autorizações de intervenções médicas não consentidas sobre o corpo do paciente. Portanto, é preciso mudar o falso discurso pró-vida (normalmente fundado em uma intangibilidade da vida justificada por quantidade e não por qualidade) e entender que o paciente que, esclarecido sobre as consequências de sua recusa e os riscos dela decorrentes, mantém sua decisão, não está escolhendo morrer por suas convicções (morais ou religiosas), mas sim, viver de acordo com elas. Significa dizer, assim, que o art. 11, do Código Civil, não deve ser interpretado apenas em sua literalidade, mas sim, sob a luz da dignidade da pessoa humana. Logo, afirmar o direito ao próprio corpo é, sem dúvida, falar em respeito à autonomia. Autonomia tomada não em seu sentido restrito de autorregulação de interesses privados, mas sim, em seu sentido amplo: corolário de liberdades constitucionais e consubstanciada na ideia de autodeterminação, autogoverno, manifestação da subjetividade, exprimindo a ideia de que a cada pessoa se confere liberdade de ditar suas próprias regras, desenvolvendo e realizando a própria personalidade. E, nesse sentido, afirma Godinho7 (2015, p. 99) "a autonomia tem um papel nobre a cumprir: o de facultar a cada pessoa o sentido da sua existência, ancorada nos seus valores, suas crenças, sua cultura e seus anseios", impulsionando, assim a individualidade e sua vida privada. A autonomia aqui defendida não é aquela plena e irrealizável, alheia aos valores sociais; mas sim, uma autonomia razoável, ponto de equilíbrio entre a dominação completa e a liberdade absoluta, capaz de conciliar autorrealização pessoal, dignidade da pessoa humana, desenvolvimento da personalidade e valores decorrentes do princípio da solidariedade social. Uma autonomia concretizadora de liberdades individuais e construída por meio da privacidade. Afastar do alcance da autonomia o direito sobre o próprio corpo com fundamento em modelos éticos e sociais preestabelecidos conduz à degradação do próprio titular do direito que, por escolhas pessoais ou por questões clínicas, não consegue se adequar a esses padrões. É por isso que negar aos pacientes o respeito às suas escolhas existenciais, e portanto, o exercício do direito à recusa terapêutica, contraria a natureza dos direitos de personalidade, limitando-se injustificadamente uma liberdade em nome de molduras biológicas e fisiológicas estabelecidas por padrões sociais, que violam a dignidade humana em seu mais elementar instrumento: o desejo de autorrealização e, por fim, desconsidera o próprio direito à saúde. Neste contexto, surgem inúmeras dúvidas acerca da conduta que o médico deve ter diante de uma recusa terapêutica, dúvidas estas que são resolvidas a partir dos seguintes pressupostos: a decisão do STF refere-se apenas à pacientes capazes, ou seja, maiores de 18 anos em pleno gozo de sua capacidade decisória; o paciente tem direito à recusa terapêutica em casos eletivos e também em casos de urgência ou emergência; se o paciente estiver lúcido, não pode ser coagido a receber o tratamento ao qual está se recusando e deve ser esclarecido das consequências da recusa. Neste caso, é importante que a decisão seja documentada em um termo próprio de recusa terapêutica; se o paciente não estiver lúcido, é preciso verificar a existência de documento de diretiva antecipada (ou equivalente) contendo esta recusa. Caso haja, a manifestação de vontade deve ser respeitada pelos profissionais de saúde e, também, pelos familiares; se o paciente não estiver lúcido e inexistir documento de diretiva antecipada (ou equivalente), não sendo, portanto, possível que o médico saiba da recusa, todos os tratamentos que visam a preservação da vida devem ser realizados. Caso o médico desrespeite a recusa terapêutica estará incorrendo em ato ilícito, punível no âmbito cível (por meio de indenização por danos morais ao paciente ou a seus familiares) e também em âmbito criminal8 (incorrendo no crime de constrangimento ilegal e/ou lesão corporal). No que tange à responsabilidade civil, deve-se ter em mente que o descumprimento da recusa terapêutica é, de per se, causador de dano (de ordem moral ou existencial) uma vez que viola a autodeterminação do paciente e, por consequência, sua dignidade. Importante, ainda, deixar claro que o ato de "salvar a vida do paciente" não exclui a culpa, uma vez que esta existe exatamente em razão de o profissional ter, de forma consciente, praticado um ato à revelia do paciente. Nota-se, inclusive, que há nos EUA a figura de um novo dano, chamado wrongful prolongation of life9, surgido exatamente do descumprimento da vontade do paciente. Nesses casos, é possível enquadrar o desrespeito à recusa terapêutica neste novo dano, quando nessas situações a morte representaria um risco refletidamente assumido pelo paciente que ao recusar o tratamento estaria conscientemente optando por assim resguardar seus valores. Situação mais complicada se dá no âmbito administrativo pois, apesar de há muito sabermos que o médico não pode realizar um tratamento contra a vontade do paciente, a resolução CFM 2.232/201910 permite, em seu (absurdo) art. 11, que o médico desrespeite a recusa terapêutica, ainda que expressa, em caso de situações de urgência e emergência que caracterizem iminente perigo de morte. Assim, nestes tempos tão sombrios para a bioética clínica brasileira, só nos resta esperar que, em breve, o STF julgue a ADPF 64211 e declare a inconstitucionalidade do referido ato normativo. Afinal, é preciso compreender que: (i) o paciente é uma pessoa e que, como tal, deve ser respeitado; (ii) a conduta dos médicos deve ser respaldada pela CF/88, logo, ele só deve salvar a vida de quem quer ser salvo, porque o valor-fonte de todo o sistema é a dignidade da pessoa humana. Então, o dever médico é atuar de acordo com a dignidade do paciente - e isso pode ter diferentes significados que apenas o enfermo poderá dar; (iii) ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei (art. 5o., II, CF) e, não há lei que obrigue a (sobre)viver a qualquer custo (o art. 15, CC, inclusive autoriza a recusa terapêutica), assim como também não há norma que obrigue a tratar quando o paciente expressamente recusa o tratamento; (iv) a realização de tratamento médico não é um direito do médico, mas sim um direito do paciente e um dever do médico que deve ser exercido na exata medida do aquele autorizar. ________ 1 Disponível aqui. 2 Súmula Vinculante n. 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Disponível aqui. 3 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 952 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a seguinte tese: "1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. 2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde - SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio". Tudo nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente). Ausente, por motivo de licença médica, o Ministro Dias Toffoli. Plenário, 25.9.2024. Disponível aqui. 4 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.069 da repercussão geral, julgou prejudicado o recurso extraordinário e fixou as seguintes teses: "1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde, por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente". Tudo nos termos do voto do Relator. Ausente, por motivo de licença médica, o Ministro Dias Toffoli. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 25.9.2024. Disponível aqui. 5 LARA, Mariana. O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo. Belo Horizonte: D'Plácido, 2014. p. 23-24. 6 Não estamos aqui a nos referir à objeção de consciência. Ao médico é assegurado o direito de não concordar com as escolhas do paciente, mas não é dado o direito de fazer sobrepor suas decisões às do paciente. A objeção de consciência está prevista no inciso VII do Capi´tulo I do Código de Ética Médica, que dispõe que "o me´dico exercera´ sua profissa~o com autonomia, na~o sendo obrigado a prestar servic¸os que contrariem os ditames de sua conscie^ncia ou a quem na~o deseje, excetuadas as situac¸o~es de ausência de outro me´dico, em caso de urge^ncia ou emerge^ncia, ou quando sua recusa possa trazer danos a` sau´de do paciente". 7 GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao próprio corpo. Curitiba: Juruá, 2015. p. 99. A 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o Município de Taubaté a pagar R$35.000,00 a título de indenização por danos morais à filha de uma senhora que recebeu hemotransfusão contra vontade (e morreu mesmo assim). Segundo a Desembargadora Relatora Maria Laura de Assis Moura Tavares, a paciente "era pessoa capaz, que manifestou a sua vontade ao não recebimento da transfusão de sangue de forma livre e informada, em situação que não se caracteriza como de urgência e emergência, para o tratamento de doenças próprias e das quais tinha pleno conhecimento, tendo compreendido e consentido com os riscos da sua escolha, inclusive à sua vida, ao mesmo tempo em que aceitou e recebeu tratamentos alternativos que buscaram a preservação da sua vida" (Fonte: TJSP, Ap. Civ. 1000105-93.2021.8.26.0625. Des. Rel. Maria Laura de Assis Moura Tavares. DJ 13.08.2024). 8 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, Consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo, Márcia Pons, 2019. 9 Dadalto, Luciana; Gonsalves, Natália Recchiutti. (2020). "Wrongful prolongation of life": um novo dano para um novo paradigma de proteção da autonomia. Revista Brasileira De Direito Civil, 25(03), 271. Disponível em Recuperado aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui.
Há alguns anos, a convite da profa. Fernanda Schaefer, ilustre editora desta Coluna, assumi o desafio de escrever capítulo de livro sobre os aspectos internacionais relacionados à telemedicina. Esta convocação, com feições de convite, se dava no contexto da intensificação da regulamentação daquela atividade e na elaboração dos primeiros comentários sobre o tema publicados no Brasil (pela Editora Foco, 1ª edição em 2022 e a 2ª edição, revista e ampliada, em 2024). De forma nada velada, ela me instigava a unir dois temas que vinham sendo objeto de minhas pesquisas há muitos anos: as contratações internacionais e a ampliação de sua realidade prática. Confesso que talvez esta tenha sido uma espécie de gota d'água, verdadeira provocação para "sair à rua como quem foge de casa" e escrever "como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo", como filosofaria Quintana. Propus-me, então, a identificar o tratamento dispensado pelo Direito brasileiro ao tema dos contratos internacionais, sua conceituação, seu tratamento jurídico, a identificação do Direito que lhe é aplicável e, por fim, a percepção que atualmente fazemos dele. Minha premissa era de que, ao contrário dos anos 1990, quando o Brasil reabria sua economia, hoje não poderíamos mais concebê-los como restritos a players profissionais acostumados com a dinâmica do comércio internacional. Isto é, hoje, cada um de nós está potencialmente submetido a regimes contratuais que podem não ser regidos pelo Direito brasileiro. Para identificar os esboços do Direito contratual internacional visto pelo prisma brasileiro tratei de me apropriar de metodologia e linguagem não usuais. Algo que pudesse suavizar o tratamento de matéria que muitas vezes é vista, injustamente, como desinteressante e excessivamente complexa. A linguagem coloquial, exposição explicativa e viés provocativo foram, então, incorporados à redação, não sem deixar exposta um pouco da personalidade daquele que redigiu. Também me apropriei de personagens, alegorias e figuras de linguagem que pudessem contribuir para a fluidez do texto e para acrescentar elementos que pudessem tornar a leitura um pouco mais instigante. É por isso que, no curso da leitura, você é apresentado a uma das mais famosas obras de Albrecht Dürer, ilustrador alemão, e à personagem que o inspirou. O formato proposto serviria, assim, para uma escrita mais livre e acesso a recursos não disponíveis/recomendados aos manuais. Voltando-se, ainda, a um público, potencialmente, muito mais amplo e à valorização e construção do debate. Foi com estas ideias em mente que tentei adaptar a inspiração metodológica aos meus próprios propósitos. Como resultado, gostaria de lhes apresentar o "Guia para o Direito Contratual internacional brasileiro", recém-lançado pela Editora Foco, cujo propósito central é o de apresentação de um recorte atual da discussão sobre a internacionalidade do contrato sob a perspectiva do Direito contratual brasileiro, promovendo, no que fosse possível, debate sobre o tema, fomentar conexões e apontar pontos de destaque que pudessem a receber a atenção do debate legislativo e jurisprudencial ou o interesse profissional e acadêmico do leitor. Minha certeza ao escrever foi a de que este Guia se projetaria à desatualização. Em termos de redação, o Guia foi redigido a partir de algumas perguntas que serviram de balizas e que foram apresentadas no primeiro capítulo. No segundo capítulo, o objetivo foi destacar como - historicamente - é construída a noção de 'contrato' e como ela deve ser - hoje - desconstruída. Na sequência foi apresentado aquilo que torna internacional um contrato e, no quarto capítulo, o objetivo foi entender como se faz a identificação do Direito material aplicável a cada negócio. Como conclusão, em capítulo exploratório, busquei retomar alguns dos questionamentos do primeiro e segundo capítulos, para abordar uma das realidades da contratação internacional pelo viés brasileiro: os contratos com vulneráveis. Gostaria de destacar três pontos deste trabalho. Em primeiro lugar a absoluta preocupação com a atualização da abordagem. Neste sentido, posso mencionar não apenas a menção aos projetos de lei existentes sobre a matéria do Direito aplicável e aos tratados ratificados pelo Brasil em matéria contratual mas, também, a incorporação ao texto das mais recentes alterações legislativas na área (como por exemplo a polêmica regra do art. 63, §1° do CPC).  Em segundo lugar, busquei enriquecer a análise, sempre que julguei apropriado, a partir de casos concretos. Daí porque, sejam eles precedentes judiciais ou cláusulas concretas, julgo que o leitor poderá contextualizar a análise de forma mais completa. E, por fim, no capítulo final, procurei sintetizar as preocupações do Guia utilizando-me, livremente, de um caso concreto. A partir do estudo de um importante precedente do STJ tentei delinear os espaços de abordagem que podem merecer atenção do leitor, do legislador e da jurisprudência de modo a preparar melhor o Direito contratual brasileiro para os desafios internacionalizantes do século XXI.  Dito isso, espero, então, ter-lhe convencido de que este Guia propõe algo distinto do que já lhe foi apresentado antes e, ao final de sua leitura, gostaria de lhe ter retribuído a confiança de que a leitura deste livro permitirá a "estar só e ao mesmo tempo acompanhado", como diria Quintana.
A questão de regulação dos efeitos do tempo nas relações jurídicas suscita, classicamente, especial indagação por se tratar de matéria de relevante interesse teórico e fundamental alcance prático. Trata-se, em linha de princípio, de combinar a tutela da segurança jurídica e da necessidade de estabelecer certa dinâmica no âmbito das relações jurídicas.  No contexto da relevância das figuras da prescrição e da decadência, o direito civil brasileiro é pródigo em estudos, tendo dedicado ao tema um de seus estudos mais famosos: o trabalho do professor Agnelo Amorim Filho sobre a distinção entre a prescrição e a decadência. A preocupação com a análise da matéria persiste na atualidade, como revela a atenção dada por ilustres doutrinadores contemporâneos com o seu desenvolvimento e suas bases teóricas.  A preocupação com as questões relativas ao efeito do tempo no direito não escapou à comissão do nosso atual CC. Na verdade, pode-se dizer que elas constituíram um ponto central de sua atenção. Com efeito, o exame da obra de Miguel Reale sobre o projeto do CC aponta que um de seus objetivos expressos foi o princípio da operabilidade, tendo como exemplo dessa preocupação o delineamento entre prescrição e decadência, a fim de estabelecer os traços distintivos entre as duas figuras, para evitar um fator de confusão e insegurança jurídica.  Ao mesmo tempo, verifica-se que o CC/02 continha um propósito claro nessa matéria: a redução dos prazos prescricionais, tendo sido um dos mais nítidos exemplos dessa tendência a previsão relativa à pretensão indenizatória: 3 anos! O contraste não poderia ser mais marcante quando se recorda o prazo para a mesma situação no direito anterior! Perceptível aqui que o codificador possuía um nítido objetivo: contribuir para uma maior dinâmica social, ditar uma certa aceleração das decisões adotadas pelos particulares, de modo que os eventuais conflitos jurídicos no âmbito da responsabilidade civil fossem suscitados em tempo ágil, relativamente reduzido: 03 anos ! Ao mesmo tempo, estabelecer a paz social após o decorrer desse mesmo período, evitando a inércia por parte dos partícipes das relações jurídicos-sociais.  Cumpre pontuar que a solução preconizada originariamente pelo codificador de 2002 tinha o mérito de harmonizar-se, em princípio, com a solução contida no CDC para as hipóteses de defeito do produto: com efeito, o art. 27, do CDC, prevê o prazo de 05 anos para a ação indenizatória nesse caso.  Ora, sob a premissa de que o CDC regula a relação em que uma das partes é vulnerável, no caso o consumidor, apresenta-se como pertinente a constelação em que o principal prazo prescricional nele previsto é maior que o prazo para as relações hoje qualificadas como paritárias: as civis e empresariais, reguladas pelo CC.  Contudo, numa demonstração cristalina de que a sociedade pode resistir às pretensões do legislador, e consequentemente interferir sobre a eficácia das normas jurídicas , deu-se paulatinamente no direito civil brasileiro uma reação ao projeto de dinamização social formulado a partir do encurtamento dos prazos para as ações indenizatórias. Nesse sentido, a jurisprudência nacional afastou-se da solução de um mesmo prazo para a pretensão de ressarcimento, os citados 3 anos, tendo definido o prazo para a responsabilidade contratual como sendo o decenal, previsto no art. 205, do CC.  Muito embora revestida de fina base doutrinária, que não cabe recordar aqui, esta circunstância demonstra a resistência do meio econômico-social brasileiro a um projeto reformador: considera-se, na verdade, necessária a existência de prazos mais longos para que se possa obter a concretização dos créditos.  Não obstante a presença de relevantes questões constitucionais relativas à necessária tutela do meio ambiente, pode-se vislumbrar a resistência tácita ao prazo de 03 anos como um fator para a decisão do STF de considerar imprescritível a pretensão de reparação cível ambiental. Cabe indagar se a mesma solução seria estabelecida por nossa corte constitucional se o prazo prescricional para a ação de reparação cível atual fosse de vinte anos, como ao tempo do CC/16.  Nesse contexto, a proposta de 05 anos contida no art. 205, do texto de reforma do CC quanto ao prazo de prescrição para a responsabilidade civil possui diversos méritos. Ela retoma, inicialmente, a ideia de um mesmo prazo para as esferas da responsabilidade contratual e extracontratual, a fim de estabelecer segurança jurídica a esse cenário, respeitando o nosso panorama social, na medida em que o estabelecimento do prazo de 03 anos revelou-se exíguo para a realidade brasileira. Em segundo lugar, aprofunda a ideia sistematizante, adotando o mesmo prazo tanto para o sistema geral, regulado pelo CC, como para o sistema especial das relações de consumo, no caso a disposição do art. 27, do CDC, o que se apresenta como uma benesse, ao estabelecer uma harmonização para pretensões que, em essência, decorrem da responsabilidade civil.  Em terceiro lugar, a partir da previsão contida no caput do art. 205, pretende recuperar o projeto de dinamização das relações jurídico-sociais, mediante o estabelecimento de um prazo geral de cinco anos para as pretensões decorrentes de ações condenatórias. Fica a dúvida, porém, se os players do cenário econômico jurídico brasileiro reagirão favoravelmente a essa proposta.  Em quarto lugar, o projeto pauta-se pela moderação, ao manter-se na via binária da responsabilidade civil. É certo que se poderia adotar a tentativa de estabelecer uma terceira via de responsabilidade, no esforço de abranger situações que mereceriam um tratamento especial, como é o caso da hipótese da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares. No entanto, esse caminho poderia conduzir à indeterminação jurídica. A solução de ampliação para o prazo de 05 anos para a responsabilidade civil extracontratual representa uma solução de meio termo para esses casos, o que talvez reconduza a jurisprudência a perseguir os prazos legais estabelecidos, evitando, assim, a justificável invocação da teoria subjetiva da actio nata para preservar a possiblidade de reparação em difíceis questões situadas na zona intermediária entre contrato e delito.  Ao mesmo tempo, estabelece o projeto de reforma o mesmo prazo de 05 anos para a hipótese do ressarcimento por enriquecimento sem causa. Também aqui a solução tem o nítido propósito de racionalização. Atualmente, a previsão existente no art. 206, § 3º, IV institui o prazo de 03 anos para essa situação, que se equipara ao prazo originariamente previsto para a pretensão decorrente da responsabilidade civil.  Ajustando-se o prazo prescricional da responsabilidade civil para 05 anos, opta-se, no projeto, em manter essa simetria. Ao mesmo tempo, a previsão desse prazo iguala-se, conforme já referido acima, ao prazo constante do art. 27, do CDC, o que se constitui em uma tentativa de reduzir a possibilidade de invocação do argumento de que em determinadas hipóteses de ressarcimento, por enriquecimento sem causa, seria invocável o CDC.   Em síntese, pode-se considerar que existem sólidos argumentos a embasar a solução constante do projeto de reforma do CC em um tema tão relevante para essa nevrálgica área do direito privado, que se interliga não somente com a matéria de responsabilidade civil, como também com a efetividade das soluções jurídicas e a sempre perene tentativa de estabelecer a certeza do direito. Mas só o tempo - o fenômeno que se pretende regular -  dirá se a solução proposta pelo projeto de reforma do CC será realmente efetiva...
Nas últimas décadas, já se transformou em truísmo o dizer de Ulrich Beck de que vivemos a sociedade de riscos; ao que ele, no título de seu livro, acrescenta a expressão "em busca da seguridade perdida", a qual não pode ser tomada apenas na perspectiva ambiental, mas considerando-se a conjuntura social como um todo. Pois bem, nessa sociedade de riscos é indubitável que se fazem presentes aqueles que são denominados "de desenvolvimento" (ou estado da arte) que, conforme pacífica doutrina reconhecida no cenário nacional e afirmada por Antonio Herman V. Benjamin é "... aquele risco que não pode ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto ou serviço. É defeito que, em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço em circulação era desconhecido e imprevisível".  E aos quais, seguindo a mesma linha doutrinária, Ana Paula Atz refere que conglobam "os defeitos que - em face da ciência e da técnica à época da colocação do produto ou serviço - eram desconhecidos e imprevisíveis".  Trata-se, segundo Benjamin, de espécie do gênero defeito de concepção . Foi principalmente a partir da década de 50 do século passado que esse tipo de problema passou a despertar mais atenção devido a repercussão dos casos ligados aos efeitos da talidomida, medicamento que quando do lançamento no mercado estava sendo considerado seguro (usado para aliviar ansiedade e enjoo), mas posteriormente restou demonstrado que quando consumido por mulheres grávidas, era a causa de malformação congênita nos fetos destas. Desde então, esse tipo de constatação pontuou a detecção de vários outros casos, justificando preocupação com a problemática dos riscos de desenvolvimento. A primeira observação a se fazer é que muito embora essa questão, de modo muito especial envolva a responsabilidade civil em relações de consumo regidas pela lei 8.078/90 (CDC), podem também existirem em situações envolvendo relações regidas pelo CC (exemplo: sob a garantia de tratar-se de um produto seguro, um distribuidor compra um estoque deste, adquire equipamentos ou compra instrumentos relacionados a colocação destes bens no mercado e depois, havendo a descoberta científica de efeito perigoso (por exemplo: radiação), a agência reguladora proíbe a comercialização do mesmo. Então, naturalmente, que os problemas dessa ordem envolvendo consumidores são os mais complexos e delicados, mas não se pode excluir a possibilidade de outros tipos de danos para quem não esteja caracterizado como consumidor. No tocante a responsabilidade civil, os diplomais legais brasileiros mais relacionados com a matéria não trazem referência expressa a riscos de desenvolvimento ou estado da arte. No art. 927 do CC, a expressão "... ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" não pode ser tomada como focada em termos de abarcar riscos de desenvolvimento. Essa interpretação seria generalizar/ampliar excessivamente a concepção, visto que riscos também podem existir em produtos e serviços já suficientemente testados e com resultados comprovados (não contrariados) por novidades surgidas de conhecimentos científicos posteriores ao lançamento. Já o CDC, dentre os motivos excludentes do dever de responsabilização do fornecedor, não elenca expressamente (ope legis) esse tipo de risco como justificativa para isenção. Apenas um detalhe: como argumento para os defendem a isenção, observe-se que o CDC em seu art. 12 diz que o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera levando-se em consideração, dentre outros aspectos, a época em que foi colocado em circulação; e mesmo que outro de melhor qualidade tenha sido colocado no mercado. Entretanto, esse dispositivo não vai além da distinção entre produtos de concepção mais avançada comparando-os com os de projeto mais antigo, sem que isso implique em eliminar o dever de segurança inerente a qualquer deles. Pois bem, em várias legislações estrangeiras, os riscos de desenvolvimento são acolhidos como um excludente do dever de indenizar, opção adotada em nome de incentivo à criação de inovações. Isso está previsto, por exemplo, na diretiva 85/374/CEE e na proposta de sua reformulação (se bem que os estados-membros, tal como fez a França, podem não aderir e não internalizar essa diretriz). Ao mesmo estilo, nos EUA igualmente tem sido aceita essa justificativa que livra o fornecedor do dever de indenizar. O argumento prevalecente reside em que, além de ser necessário criar-se um ambiente favorável ao surgimento de produtos e serviços inovadores, existe a consideração de que responsabilizar um fornecedor por um perigo impossível de ser conhecido segundo o alcançado pela ciência até a época do lançamento, seria torná-lo espécie de segurador virtual do produto . Indubitavelmente, as inovações são muito ressaltadas na contemporaneidade e há notório incentivo ao empreendedorismo, a pesquisa e aos avanços trazidos pelas inovações. Há todo um ambiente social favorável para que ser incentivada a criação de produtos e serviços mais adequados, com melhor qualidade, inclusive até gerados com uso de inteligência artificial. Entretanto, não há como ignorar-se os casos em que alguns deles redundam em efeitos que não são completamente conhecidos quando de seu lançamento no mercado (e mesmo durante fabricação). São produtos ou serviços que, apesar de passarem por pesquisas que o fabricante, a seu critério, julgou suficientes (podendo a regulação, em seu poder-dever, vir a interferir, algo que, na maioria dos casos, não tem sido rotineiramente demonstrado), só posteriormente mostram seus reais efeitos quando da utilização. E isso nas mais diversas áreas, incluindo, por exemplo, algumas muito sensíveis como a da medicina (remédios e terapias), veículos de locomoção autônomos (total ou parcialmente, de automóveis a aviões) e até situações mais sutis como os efeitos causados pelo uso excessivo de eletrônicos (e tecnologias neles acopladas), os quais comprovadamente modificam o cérebro das crianças e adolescentes com adicção. Convém atentar que há muitos fatores a se considerar nesse contexto. Perceba-se que o consumidor não pode acabar sendo parte do experimento que irá demonstrar os efeitos do produto ou serviço (como uma cobaia) e é injustificável deixar esse tipo de risco ser imputado a ele. Não se trata de uma mera externalidade que deve ser suportada por todos, sendo completamente injusto deixar-se para o consumidor-vítima, as consequências danosas que vierem a surgir. Também cabe citar-se peculiaridades como as dificuldades práticas para se precisar o momento exato do lançamento do produto, bem como, a forma de se superar a subjetividade da expressão "efeitos imprevisíveis", em especial ao se tentar dar-lhe contornos precisos quando em análise de caso concreto. Advirta-se a contrário senso, sobre a possibilidade de se indagar se há como serem previsíveis todos e quaisquer efeitos que poderão advir da utilização do produto ou serviço e, diante dos riscos de desenvolvimento, como interpretar-se o art. 10 do CDC que prescreve: "O fornecedor não pode colocar no mercado de consumo produto ou serviços que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança" (grifo nosso). Afinal, a par de não se ter unanimidade quanto ao tipo e número de pesquisas que o fornecedor deve realizar para assegurar inexistência de defeito, há que se considerar o fato de inexistir um banco de dados unificado do conhecimento científico que possa ser consultado no momento do lançamento; afim de identificar-se quais efeitos poderiam ou não serem os efeitos realmente enquadráveis como desconhecidos. Note-se, inclusive as dificuldades de saber-se o que ocorre em todos os laboratórios de pesquisas (e até em quais informações se pode alcançar e considerar científicas, dos costumes indígenas ao que existe postado na internet). E mais, à quem cabe o ônus da prova de que à época do lançamento do produto ou serviço, ainda não existiam conhecimentos científicos para sinalizar os efeitos causadores dos danos que depois se demonstraram reais quando o produto ou serviço foi utilizado. É oportuno lembrar-se, tanto a dificuldade para o fornecedor de fazer prova da não existência do conhecimento (prova negativa), assim como, da vítima em demonstrar que já havia conhecimento científico indicando a possibilidade de efeito danoso, informação que em muitos casos é de difícil acesso para ela trazer aos autos e integrarem o conjunto probatório no processo judicial. Portanto, tem-se um rol complexo de aspectos a serem observados para, desde logo, numa situação prática, afirmar-se a certeza de se estar a tratar de um risco de desenvolvimento. Focando no ponto de vista dos interesses empresariais, há que se considerar que para o fornecedor, as pesquisas normalmente são custosas e/ou demoradas, sendo que inserir celeremente o produto ou serviço no mercado tem potencial de impactar positivamente o resultado econômico-financeiro da organização. Nessa condição, o dito popular de que "tempo é dinheiro" ganha força para que, o quanto possível, sejam acelerados os lançamentos dos produtos ou serviços. E, compondo esse cenário, rememore-se que as agências reguladoras - seja por omissão, seja por genuína impossibilidade (fática ou mesmo de competência/atribuição) - nem sempre realizam o papel de contribuir para assegurar que no mercado não seja lançado produto ou serviço defeituoso. Independente disso, a experiência demonstra que um simples recall, normalmente não é suficiente para reparar todas as situações provocadas por danos causados por produtos ou serviços defeituosos, sendo que com base nas considerações recém-expostas, emerge a necessidade de se repensar o tratamento conferido aos riscos de desenvolvimento como motivo para exoneração do dever de indenizar. Muito embora seja muito difícil para o fornecedor estimar os custos para suportar os riscos que ele ainda desconhece quando do lançamento do produto, mesmo assim deve-se considerar que produtos inovadores contam um sistema de proteção da propriedade industrial que no caso dos medicamentos, por exemplo, assegura para empresa criadora, a possibilidade de exercer longo período de monopólio , sendo que esses produtos costumam ser colocados no mercado por preços consideravelmente mais elevados. Isso, por si só, deve ser suficiente para atrair a responsabilidade civil pelo risco-proveito. Outro detalhe: pelo processo de internalização, a verdade é que, rotineiramente, são os próprios consumidores que pagam as indenizações, posto que, normalmente, a empresa inclui esses gastos nos preços de seus produtos comprados por esses destinatários finais da produção. Ou seja, repassa os prejuízos que teve de arcar. E no que é deveras importante, acrescente-se que as empresas têm condição de suportar os resultados desses riscos, principalmente considerando instrumentos muitos conhecidos e adotados no mercado com vistas a socorrê-las para serem evitadas falências/quebras, tais como, por exemplo, os seguros (e resseguros), os fundos públicos ou privados criados para amparar empresas em dificuldades, etc. Ressalve-se apenas que não se pode ignorar a possibilidade de, na sociedade de risco em que vivemos, surgirem situações excepcionais, tal como ocorreu quando da epidemia do COVID-19 (causada pelo vírus SARS-CoV-2) em que a indústria farmacêutica e laboratórios não tiveram um tempo adequado para testar completamente os efeitos das vacinas que criaram e com rapidez tiveram de colocar no mercado. Como se tratava de momento aflitivo de busca por salvar vidas humanas aos milhares ou milhões, as vacinas tinham de chegar ao mercado e serem aplicadas no tempo mais curto possível, mesmo sem maiores testes que demandariam mais tempo. Não havia como delongar. E tratando-se de uma excepcionalidade, seu tratamento precisava e precisa considerar essa circunstância, ou seja, como uma exceção a comportar também uma solução diferenciada que não penalize as empresas. Todavia, não havendo situação caracterizada por comprovada excepcionalidade, conforme os argumentos já descritos, em todos os demais casos envolvendo riscos de desenvolvimento, não mais existe razão para justificar a manutenção dessa concepção de tratar-se de motivo eximente de responsabilidade; concepção essa que pode ser considerada ultrapassada e desconforme com o capitalismo do século XXI. Apoie-se a livre iniciativa nos termos do art. 170 da CF/88 e não se descuide das proteções para as empresas, mas conforme o já demonstrado, tal não deve lhes conferir um salvo-conduto que, inclusive, as dispense de se utilizarem de outras alternativas já conhecidas para se protegerem. É fundamental entender-se que se as inovações que impelem o progresso capaz de trazer benefícios para os consumidores individualmente e para a sociedade em geral, na realidade acabam sendo benesses para todos, não é justo que o "preço" ou o "custo" disso (na prática: o efeito que resultou em dano) acabe recaindo somente no ser humano vítima de um defeito classificado como risco de desenvolvimento. Portanto, em resumo, reitera-se de forma objetiva: os riscos de desenvolvimento devem estar sob a responsabilidade do fornecedor. Evoluir-se para essa certeza, é o que atende melhor aos direitos humanos, fundamentais e da personalidade inscritos em nossa carta magna, principalmente considerado o ideal de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
O Código Civil de 2002 trata da RHA - reprodução humana assistida de maneira limitada, apenas mencionando o tema nos incisos III, IV e V do art. 1.597, que versam sobre as presunções de filiação. Embora inicialmente vistas como inovadoras, essas disposições demonstraram, ao longo dos anos, mais deficiências do que soluções, gerando incertezas jurídicas que ainda perduram, é o que observam Carlos Henrique Félix Dantas e Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022, p. 146-147) "a contar do desenvolvimento de novas tecnologias e também das transformações sociojurídicas em matéria de direito das famílias, essa sistemática mostrou-se insuficiente para tutelar as relações paterno-materno-filiais na contemporaneidade". Além disso, a falta de uma legislação específica e a grande quantidade de projetos de lei em tramitação destacam a necessidade urgente de uma regulamentação adequada. De acordo com a pesquisa realizada por Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022), com dados coletados até 19 de abril de 2022, foram identificados 24 projetos de lei em tramitação no congresso nacional brasileiro, todos com a intenção de regulamentar, de alguma forma, o uso das RHA no Brasil. No atual contexto jurídico brasileiro, a reprodução assistida é regulamentada por um instrumento que representa um acordo de vontades com proteção jurídica, devendo seguir as diretrizes estabelecidas na resolução 2.320/22 do CFM - Conselho Federal de Medicina. O cumprimento integral das cláusulas pactuadas é imprescindível para evitar a responsabilidade civil por eventual descumprimento. Por isso, essas resoluções deontológicas têm um papel fundamental na definição dos parâmetros para a prática da reprodução assistida. Por outro lado, a resposta a essas lacunas legislativas, foi instituída em 2023 a comissão de juristas para a elaboração de um anteprojeto de revisão do diploma civil de 2002. Essa iniciativa visa alinhar o Código Civil às demandas jurídicas contemporâneas. A proposta de reformulação inclui a atualização do art. 1.597 e a criação de novos dispositivos, como o art. 1.598-A, que trata da presunção de filiação em casos de RHA, além de um capítulo específico dedicado à filiação decorrente da reprodução humana assistida. Esse capítulo incluirá artigos que dispõem sobre disposições gerais, doações de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem e consentimento informado. No que tange a responsabilidade contratual em casos de reprodução assistida, Flaviana Rampazzo Soares (2021) destaca a exigência de um vínculo obrigacional prévio e a ocorrência de dano decorrente do descumprimento do contrato. A importância do termo de consentimento, um documento essencial para garantir que o paciente tenha sido devidamente informado e concordado com o procedimento, é igualmente crucial. Nota-se que a relação de confiança nos bionegócios reprodutivos é peculiar, pois envolve não apenas a prestação de um serviço altamente especializado, mas também a realização de sonhos de parentalidade e a busca pela felicidade e plenitude existencial. Como afirmam Carla Froener e Marcos Catalan (2020), o avanço da biotecnologia é impulsionado por esses sonhos, que vão desde tratamentos estéticos até a gestação de filhos que possam trazer esperança a vidas vazias de sentido. Portanto, o material genético criopreservado e os embriões gerados exigem cuidado, zelo e comprometimento ético e jurídico, para que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em um pesadelo irreparável, mesmo com a tutela jurídico-ética. Apesar da possibilidade de buscar reparação na esfera civil e penal, a valoração pecuniária raramente consegue sanar os prejuízos existenciais dos envolvidos, tornando a prevenção de tais incidentes a melhor alternativa. 1. Risco de Violação de Sigilo e Consequências Jurídicas O art. 1.629-I do anteprojeto propõe o tratamento sigiloso e estrito dos dados relativos a doadores, receptores e demais envolvidos nas técnicas de reprodução assistida. A violação desse sigilo não apenas configura uma infração ética, mas também pode resultar em ações judiciais por danos extrapatrimoniais e materiais, comprometendo a privacidade e a dignidade das partes envolvidas. A divulgação indevida dessas informações poderia gerar conflitos familiares e demandas por reconhecimento de paternidade, desencadeando uma série de questões jurídicas complexas. Art. 1.629-I. Todos os dados relativos a doadores, receptores e demais recorrentes das técnicas de reprodução medicamente assistida devem ser tratados no mais estrito sigilo, não podendo ser facilitadas nem divulgadas informações que permitam a identificação do doador e do receptor. O sigilo das informações, especialmente sobre doadores e receptores, é um ponto central no anteprojeto. O art. 1.629-K prevê a manutenção do anonimato, exceto em situações excepcionais, como o direito da pessoa nascida de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial. Art. 1.629-K. É garantido o sigilo ao doador de gametas, salvaguardado o direito da pessoa nascida com a utilização de seu material genético de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, para a preservação de sua vida, a manutenção de sua saúde física, a sua higidez psicológica ou por outros motivos justificados. § 1º O mesmo direito é garantido ao doador em caso de risco para sua vida, saúde ou por outro motivo relevante, a critério do juiz. § 2º Nenhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador. E é nesse ponto que surgem questionamentos, pois as situações em que o sigilo pode ser relativizado dependem exclusivamente do "critério do juiz". Além da discussão sobre a excessiva judicialização desse tema, observa-se que o próprio CFM já flexibilizou a regra do anonimato, em função das decisões judiciais que vinham relativizando esse sigilo nos casos de parentes até o 4º grau, autorizando o tratamento de fertilização in vitro com um doador conhecido pela receptora, afastando a regra de anonimato do doador de gametas, prevista nas normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida, item IV, 2, do anexo da Resolução n. 2.294/21 do CFM (VIEIRA, 2022). Dessa forma, parece que a proposta de atualização do código devolverá ao Judiciário o papel de se debruçar sobre essa questão, sendo novamente chamado a se pronunciar sobre uma prática que já se tornava comum no uso das técnicas de reprodução humana assistida. 2. Manipulação Genética: Limitações e Implicações O art. 1.629-D do anteprojeto estabelece restrições rigorosas quanto ao uso das técnicas de reprodução assistida, com o objetivo de proteger a integridade do patrimônio genético humano e assegurar que as práticas sejam conduzidas de maneira ética e segura. Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para: fecundar ócitos humanos com qualquer outra finalidade que não o da procriação humana; criar seres humanos geneticamente modificados; criar embriões para investigação de qualquer natureza; criar embriões com finalidade de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras; intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional. As técnicas principais e auxiliares de reprodução assistida não poderão: Inciso I (possuir finalidade diferente da reprodução humana), ou seja, o único propósito de utilização das técnicas deve ser exclusivamente o tratamento da infertilidade humana, visando concretizar o projeto de parentalidade. Qualquer uso diverso desse objetivo está estritamente proibido. Inciso II (intenção de criar seres humanos geneticamente modificados), a norma proíbe qualquer intervenção que vise modificar geneticamente seres humanos. Essa vedação está alinhada ao princípio jurídico da diversidade no patrimônio genético humano, que serve como limitador da autonomia no planejamento familiar, principalmente diante dos avanços na terapia gênica (DANTAS, 2023). Essa proteção garante que o avanço da ciência não comprometa a integridade genética das futuras gerações. Inciso III (fecundar embriões com a finalidade exclusiva de pesquisa científica), fica proibida a fecundação de embriões com o único intuito de pesquisa, salvo em situações específicas previstas no ordenamento. A esse respeito, a lei de biossegurança (n. 11.105/2005) permite o uso de embriões crioconservados há mais de três anos para fins de pesquisa científica, desde que com o consentimento dos beneficiários, e conforme ratificado pelo STF na ADIn n. 3.510/DF, julgada em 2008. Inciso IV (escolher o sexo, realizar eugenia, ou criar híbridos ou quimeras), o anteprojeto traz uma vedação relativa à manipulação genética em várias frentes. A distinção entre práticas terapêuticas e de aprimoramento humano se torna nebulosa na prática, o que justifica a proibição. A eugenia, historicamente controversa, é vista com cautela para evitar intervenções que possam ser interpretadas como tentativa de melhorar a espécie humana com base em valores sociais questionáveis (DANTAS, 2022). A mestiçagem entre espécies, especialmente a coligação do DNA humano com outras espécies, é vedada, preservando a pureza genética humana. A criação de quimeras, que ocorre quando um indivíduo possui dois tipos distintos de DNA, é igualmente proibida. Esta condição, embora raríssima, é vista como altamente controvertida quando artificialmente induzida (RAMOS; CUNHA, 2016). Inciso V (intervir no genoma), a vedação à modificação do patrimônio genético humano em linhagem germinativa é reiterada, em linha com o art. 25 da Lei de biossegurança, que estabelece: "praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa". Por outro lado, a intervenção genética é permitida apenas para tratamentos especializados de "doenças graves". A questão subjetiva dessa norma reside na definição precisa do que constitui uma doença grave, o que pode levar a uma nova análise pelo Judiciário. O uso das técnicas de reprodução assistida deve ser sempre precedido de uma análise clínica detalhada, assegurando que o tratamento seja adequado ao quadro do paciente. Além disso, é essencial que os pacientes sejam plenamente informados sobre todos os possíveis riscos, tanto à saúde física quanto à saúde da descendência. Essas informações devem ser registradas em um termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo uma efetiva compreensão por parte de todos os envolvidos acerca das implicações do procedimento. 3. Falha na informação ao sistema nacional de produção de embriões O art. 1.629-J do anteprojeto impõe uma obrigação às clínicas e centros médicos de informar ao SisEmbrio - sistema nacional de produção de embriões sobre os nascimentos decorrentes de reprodução assistida com material genético doado. Art. 1.629-J. É obrigatório para as clínicas, hospitais e quaisquer centros médicos de reprodução medicamente assistida informar ao SisEmbrio os nascimentos de crianças com material genético doado, seus respectivos dados registrais e os dados do doador, a fim de viabilizar consulta futura pelos ofícios de registro civil de pessoas naturais, em razão de verificação de impedimentos em procedimento pré-nupcial para o casamento. Parágrafo único. O SisEmbrio manterá arquivo atualizado, com informação de todos os nascimentos em consequência de processos de reprodução assistida heteróloga, sendo este arquivo perene. A omissão dessa informação pode gerar problemas legais significativos, especialmente em questões de impedimentos matrimoniais e herança, resultando em insegurança jurídica e potenciais litígios. O registro adequado desses dados é fundamental para preservar a ordem jurídica e garantir os direitos de todos os envolvidos. A obrigação de informar ao SisEmbrio busca evitar casamentos e uniões putativas e garantir a fiscalização das clínicas, assegurando que os dados sobre nascimentos de crianças resultantes de reprodução assistida sejam devidamente registrados. Essa medida visa não apenas proteger os direitos dos envolvidos, mas também assegurar a integridade do processo reprodutivo, prevenindo conflitos futuros. Considerações finais As normas propostas no anteprojeto do código civil sobre reprodução assistida estabelecem parâmetros para a prática segura e ética dessas técnicas. A definição de critérios claros na legislação proporciona segurança na análise de possíveis violações dessas disposições, que podem resultar em graves consequências jurídicas. Muitas vezes essas implicações transcendem a esfera civil, afetando também as dimensões éticas e existenciais das partes envolvidas. É importante destacar que, no caso específico do dano biológico, tais lesões empobrecem a existência humana, reduzindo, sobremaneira, o valor e a dignidade da pessoa (QUEIROZ, 2015, p. 193). Portanto, deve-se buscar, sobretudo, a reparação integral desses danos, conforme estabelecido no sistema de responsabilidade civil vigente (TRIGO, 2012, p. 177). Logo, a positivação de normas claras é essencial para proteger os direitos dos envolvidos e manter a integridade do processo reprodutivo, evitando que o sonho da parentalidade se transforme em um pesadelo irreparável. O anteprojeto é acertado ao estabelecer parâmetros e discutir temas biojurídicos que necessitam de regulamentação, fortalecendo a segurança jurídica e criando diretrizes para futuras responsabilizações civis, ao encontro da prevenção de danos. Ao regulamentar o uso das técnicas de reprodução assistida, o anteprojeto não apenas estabelece direitos e obrigações para os envolvidos e os profissionais de saúde, mas também contribui para a prevenção de graves consequências jurídicas e danos irreparáveis, garantindo uma abordagem ética e responsável na aplicação dessas tecnologias. ________ CORRÊA, Daniel Marinho. Danos extrapatrimoniais: Interfaces entre prevenção, punição e quantificação. Londrina, Thoth: 2021. DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. DANTAS, Carlos Henrique Félix. O princípio jurídico da preservação da diversidade no patrimônio genético humano como um limitador da autonomia no planejamento familiar. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola. (Org.). Constitucionalização das relações privadas: fundamentos de interpretação do direito privado brasileiro. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 169-184. DANTAS, Carlos Henrique Félix; SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. O 'abismo' normativo no trato das famílias ectogenéticas: a insuficiência do art. 1597 (incisos III, IV e V) em matéria de reprodução humana assistida homóloga e heteróloga nos 20 anos do Código Civil. In: BARBOZA, Heloisa Helena; TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. (Orgs.). Direito Civil: o futuro do direito. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022. FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020. QUEIROZ, Luísa Monteiro de. Do dano biológico. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano. 75, n. 1, jan.-jun. 2015. RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire; CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. Um outro eu: o caso das quimeras humanas. Revisto Bioética y Derecho, Barcelona, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago.  2024. SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. A reprodução humana assistida e as dificuldades na sua regulamentação jurídica no Brasil: uma análise dos vinte e quatro projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo. (Orgs.). Direito Civil e Tecnologia Tomo II. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022. SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021. TRIGO, Maria da Graça. Adopção do conceito de "dano biológico" pelo direito português. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, vol. I, jan.-mar. 2012. VIEIRA, Cristiane Pinho. Fertilização in vitro com doador conhecido. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
As plataformas digitais têm um papel importante no desenvolvimento de crianças e adolescentes, oferecendo um espaço para interação social, educação, lazer e envolvimento político e cultural. De acordo com estudos da Ofcom1, cerca de 96% das crianças e adolescentes entre 3 a 17 anos estavam conectadas à internet em 2023. Ainda conforme o relatório, 51% das crianças entre 3 a 12 anos fizeram uso de alguma rede social, apesar das restrições de idade para menores de 13 anos. Nos dias atuais, o ambiente digital adquiriu muita importância para as crianças. Considerando isso, algumas plataformas digitais se adaptam ou desenvolvem métodos para mitigar os riscos aos quais as crianças podem ser expostas, como a questão envolvendo a verificação etária. Diante disso, surge a preocupação em garantir que o ambiente online seja seguro e apropriado para a sua faixa etária. Nesse contexto, a verificação etária revela-se como um dos recursos existentes para a promoção da segurança digital. A verificação etária, ou verificação de idade, é um dos vários métodos que fazem parte do conceito amplo da garantia de idade ou "age assurance" em inglês. A garantia de idade (age assurance) é o gênero que abrange várias técnicas usadas para determinar ou confirmar a idade dos usuários.2 De acordo com a Comissão Europeia, as técnicas de garantia de idade são divididas em: Estimativa de idade; Verificação etária; Autodeclaração. A estimativa de idade usa técnicas para determinar com extrema precisão a idade de alguém. Por outro lado, a verificação etária usa técnicas para verificar se o usuário está acima ou abaixo de uma determinada idade, mas não tem a pretensão de descobrir sua idade exata. Já a autodeclaração demanda que o próprio usuário declare sua idade. A Fundação 5Rights reconhece que "a garantia de idade não é uma solução milagrosa para manter as crianças seguras online"3, mas pode ser muito eficiente quando combinada com uma estratégia mais ampla de proteção. A maioria dos países não conta com legislações ou documentos que detalhem aspectos sobre a verificação de idade. Na ausência de padrões, proliferam-se variados métodos de verificação, que podem ser usados de maneira isolada ou combinados entre si.4 O método mais utilizado de garantia de idade é a autodeclaração. Ele consiste na declaração voluntária do usuário, que irá declarar sua idade ou confirmar que possui idade superior à pré-determinada pela plataforma digital. Apesar da popularidade, esta técnica possui segurança e precisão limitadas, pois depende da sinceridade do usuário. Para além da autodeclaração, o método da verificação de idade pode adotar técnicas mais precisas, como por meio de identificadores físicos. Nesse caso, os usuários fornecem documentos de identidade oficiais, como passaporte, RG, CPF e outros emitidos pelo governo. Em alguns casos o identificador físico também pode ser um cartão de crédito para confirmar a maioridade. O fornecimento dos documentos pode ser feito por meio de: a) digitalização dos documentos pelo próprio usuário ou, b) parcerias entre as plataformas digitais e o governo, que as permitam acessar a base de dados eletrônica. De acordo com a UNICEF5, o método de verificação de idade baseado em dados oficiais é altamente preciso, mas tem suas limitações. Depender exclusivamente de documentos oficiais excluiria "cerca de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo que não tem nenhuma forma de identificação oficial". No Brasil, o número de crianças com até 5 anos de idade prejudicadas pela ausência do registro civil ultrapassa 87 mil. O problema afeta desproporcionalmente os povos indígenas: Nesse segmento populacional, mais de 10 mil crianças não contam com identificação oficial. Além disso, o acesso aos bancos de dados oficiais por empresas privadas traz preocupações de impactos pela coleta massiva de dados, em especial com a questão da privacidade. Isso porque os documentos oficiais contêm outros dados pessoais além da idade do usuário, incluindo dados sensíveis como raça e sexo. Devido a tais riscos, a Fundação 5Rights afirma que essa verificação de idade deve ser usada apenas em "serviços restritos a usuários com mais de 18 anos, o que coloca ênfase em provar que são adultos".3 Outro método de verificação de idade trata-se da análise facial. De acordo com a União Europeia6, o usuário compartilha uma imagem estática ou um vídeo ao vivo para que a IA faça uma estimativa de idade. Contudo, é popularmente sabido que a IA pode causar discriminações, havendo um longo histórico de falhas no reconhecimento de características de pessoas com pele muito clara ou escura.7 Além disso, pesquisas do NIST8 descobriram que a IA encontra desafios para analisar as crianças, pois elas podem aparentar ser mais novas ou mais velhas do que realmente são, devido à puberdade. A análise facial para verificação de idade também traz perigos para a privacidade das crianças. De acordo com a UNICEF5, os dados faciais contêm características únicas que podem ser usadas para rastreamento e criação de perfis de crianças. Outra técnica de verificação de idade é a criação e análise do perfil comportamental. De acordo com o roteiro para verificação de idade da eSafety9, a criação do perfil é feita por meio da coleta de dados ou por deduções das interações do usuário. A criação do perfil por inferência coleta uma variedade de dados deixados pela pegada digital ou trilha digital do usuário. Isso pode incluir dados como localização, histórico de navegação, tempo diário de utilização, horários de acesso e até por onde o cursor do mouse passa. Apesar da precisão desse método, a criação de perfis precisa de uma grande quantidade de dados. Por isso, há riscos de coleta massiva de dados e de desvio de finalidade, principalmente para fins publicitários. Por isso, as políticas de privacidade e os termos de uso das plataformas têm um papel importante. O ICO, em seu Código de Design Apropriado para a Idade10, reconhece que "é particularmente importante ser claro sobre os propósitos para os quais seu serviço usa dados pessoais para criar perfis". A maioria das técnicas de verificação de idade que estão surgindo carregam consigo benefícios e incertezas. Logo, é preciso encontrar um equilíbrio entre as vantagens e os riscos dos métodos de garantia de idade. De acordo com a Fundação 5Rights, muitas das técnicas de garantia de idade "têm um grande potencial, mas todas são prejudicadas pela falta de definições comuns". Logo, as ferramentas de verificação de idade devem ser adaptáveis e contextualizadas conforme os riscos de cada serviço e os estágios de desenvolvimento das crianças e adolescentes. Ora, os riscos para uma criança que acesse aplicativos de relacionamento não são os mesmos de acessar sites de comércio eletrônico. Cada serviço oferece um risco que demanda uma técnica contextualizada de verificação de idade. Essas técnicas devem ser flexíveis e reconhecer o que a UNCRC - Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança chama de "capacidades em evolução da criança".11 Nesse sentido, é essencial adaptar as ferramentas de verificação de idade aos graus de desenvolvimento da criança e do adolescente. Logo, enquanto a infância demanda medidas de acompanhamento parental mais robustas, a adolescência exige uma maior liberdade. Ou seja, reconhecer que "à medida que as crianças crescem e se desenvolvem, suas capacidades evoluem, e os pais devem ajustar sua direção e orientação para permitir que seus filhos exerçam cada vez mais agência sobre suas vidas".12 Em suma, mostra-se necessária a adoção de padrões para o desenvolvimento de técnicas de verificação de idade, orientados para o melhor interesse da criança, mas é preciso que haja maior estudo e desenvolvimento de técnicas e mecanismos para a sua efetivação. É salutar que a verificação de idade seja feita de forma contextualizada e adaptável a cada modalidade de tecnologia e iteração. Cada vez mais o tema é discutido e vem gerando soluções e indicações de modo de tratamento de verificação de idade. Um exemplo são os os princípios e diretrizes adotados pela Cúpula Global de Padrões de Garantia de Idade em 2024. A Cúpula estabelece que os sistemas de garantia de idade devem observar os princípios da minimização de dados, da cooperação e da participação, entre outros.13 É do melhor interesse das crianças aproveitar os benefícios do mundo online com segurança. Portanto, as técnicas de verificação de idade podem ser grandes aliadas, desde que desenvolvidas e aplicadas de acordo com padrões de privacidade e segurança. A garantia de um ambiente digital seguro e apropriado para crianças e adolescentes exige a implementação de diretrizes padronizadas e claras para a verificação de idade. A parametrização deve ser fundamentada em princípios basilares, como o direito fundamental à proteção e à privacidade definidos na Convenção sobre os Direitos da Criança. A implementação de padrões permitirá que o cenário evolua para métodos de verificação de idade confiáveis e eficazes, alinhados com as melhores práticas internacionais. A colaboração contínua rumo a este cenário mostra um futuro promissor. A padronização garantirá a segurança jurídica necessária para que os agentes reguladores promovam um ambiente digital seguro sem abdicar da competitividade e inovação inerentes ao setor da tecnologia. Os esforços rumo à construção de técnicas de verificação de idade estão avançando rapidamente. Os debates e pesquisas sobre o tema são um passo fundamental para garantir que as crianças tenham uma experiência digital efetiva e segura. No entanto, a implementação desses mecanismos demanda tempo e esforços contínuos da sociedade. É essencial a colaboração e a participação das partes interessadas, incluindo desenvolvedores de tecnologia, legisladores, pais ou responsáveis, academia, sociedade civil e outros, para que seja possível criar soluções conjuntas robustas que equilibrem o acesso com a segurança no ambiente digital. _____________ 1 OFCOM. Children and Parents: Media Use and Attitudes Report. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 2 RAIZ SHAFFIQUE, Mohammed et al. Mapping age assurance typologies and requirements: Research report: executive summary. 2024. 3 5RIGHTS FOUNDATION. But how do they know it is a child? Age Assurance in the Digital World. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 4 DIGITAL TRUST & SAFETY PARTNERSHIP. Age Assurance: Guiding Principles and Best Practices. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2024. 5 UNITED NATIONS CHILDREN'S FUND (UNICEF). Digital Age Assurance Tools and Children's Rights Online across the Globe: A Discussion Paper. 2021. 6 euCONSENT. Electronic Identification and Trust Services for Children in Europe: D2.2 EU Methods for AVMSD and GDPR Compliance Report. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 7 BBC. Passport facial recognition checks fail to work with dark skin. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 8 HARWELL, Drew. A booming industry of AI age scanners, aimed at children's faces. THE WASHINGTON POST. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 09 ago. 2024. 9 ESAFETY COMMISSIONER. Roadmap for age verification and complementary measures to prevent and mitigate harms to children from online pornography. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2024. 10 INFORMATION COMMISSIONER'S OFFICE (ICO). Age appropriate design: a code of practice for online services. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2024. 11 UNICEF. UN Convention on the Rights of the Child (UNCRC). 1989. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2024. 12 VARADAN, Sheila. The Principle of Evolving Capacities under the UN Convention on the Rights of the Child. The International Journal of Children's Rights, v. 27, n. 2, p. 306-338, 2019. 13 AGE CHECK CERTIFICATION SCHEME. Global Age Assurance Standards Summit 2024. Manchester/UK, 2024. SafeOnline. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2024.