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Migalhas de IA e Proteção de Dados

Oferecer uma visão 360º sobre a Lei Geral de Proteção de Dados.

Nelson Rosenvald, Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, Evandro Eduardo Seron Ruiz, Cintia Rosa Pereira de Lima e Newton de Lucca
"Camaradas, disse, tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer.Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas, às vezes, poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos parar?"Orwell, George. A Revolução dos Bichos1 Foi junto à evolução histórica e ao surgimento de demandas da vida em sociedade que emergiu a necessidade de se reconhecer e assegurar novos direitos fundamentais. O cenário atual, da consolidada era da informação, definida por Castells2 como sociedade em rede, convida a um importante debate acerca da imprescindibilidade de se resguardar dados pessoais, seja frente ao Estado, seja frente a outros particulares. Enquanto se entende que tal proteção de dados tem sido recepcionada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal como um direito fundamental autônomo, há que se refletir, também, sobre o papel da responsabilidade civil como fonte de incentivos a que esse direito seja efetivamente resguardado. Não se pode deixar de sublinhar, ainda que de maneira bastante breve, que os direitos fundamentais denominados de primeira geração apontam para a ideia de liberdade negativa clássica, tendo surgido ainda ao final do século XVIII, frente ao Estado absolutista. Dizem respeito, por exemplo, ao direito à vida, à propriedade, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de expressão e à participação política e religiosa. A primeira geração evidencia, portanto, uma ideia de abstenção (ou não prestação) do Estado em relação ao indivíduo, dando início "à fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente"3. Se em relação a esses direitos, de liberdade, são impostos limites à força estatal, a segunda geração, de direitos sociais (ou de igualdade), impõe, já a partir do século XX, a necessidade de que o Estado intervenha de modo a assegurar garantias individuais, especialmente em relação à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança etc.4 A terceira geração, consolidada após a Segunda Guerra Mundial, lançou luz sobre a importância direitos transindividuais e direcionados à globalização, ligados a valores de fraternidade e solidariedade, e voltados ao desenvolvimento, progresso, autodeterminação dos povos, meio ambiente e comunicação. O direito fundamental à proteção de dados, por sua vez, estaria inserido em uma nova geração de direitos fundamentais. Vale dizer, aliás, que a quarta e até mesmo quinta gerações ainda são objeto de discussão pela doutrina. Nas palavras do saudoso Paulo Bonavides5, ao mencionar a quarta geração, "Deles depende a concretização da sociedade aberta ao futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. (...) Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política". A quarta geração tem origem, então, nos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. É justamente nesse cenário, de novos direitos, especialmente frente a uma sociedade globalizada, dinâmica e volátil, que parece repousar o direito fundamental à proteção de dados pessoais.    Importante notar que os direitos fundamentais contavam, originalmente e em essência, com eficácia vertical, eis que oponíveis pelo indivíduo em face do Estado. Preocupação e necessidade similares, entretanto, surgiram também em relação a arbítrios eventualmente cometidos por particulares, dando espaço à chamada horizontalização dos direitos fundamentais - e vinculando a esses direitos, portanto, não apenas o Estado, mas também os particulares, em suas relações privadas. Esse movimento, diga-se, surgiu ao se perceber que o poder já não era de exclusividade do Estado. Impôs-se aos poderes públicos, então, "a tarefa de preservar a sociedade civil dos perigos de deterioração que ela própria fermentava"6. O risco à proteção dos dados pessoais, a propósito, evidencia-se nessas duas direções, tendo em vista poder partir tanto do Estado, quanto de entes privados, especialmente em relação às grandes corporações que atuam na economia globalizada dos dados. Diante desse cenário, notabiliza-se a importância de compreender se o direito à proteção de dados efetivamente se configuraria como um direito fundamental autônomo. Entende-se que sim. A proteção de dados, afinal, não se restringe à privacidade e à intimidade, como incialmente se poderia pensar. Isso porque há vários outros valores vinculados, como autodeterminação, não discriminação, livre iniciativa, livre concorrência, além da proteção do consumidor. Marco importante desta discussão se revelou o julgamento de Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387/DF, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - CFOAB contra a Medida Provisória 954, de 17 de abril de 2020, que dispunha sobre "o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado e de Serviço Móvel Pessoal com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid19), de que trata a lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020". A lista de informações que se pretendia fossem disponibilizadas envolvia nomes, números de telefone e endereço dos consumidores (pessoas físicas e jurídicas). A liminar que suspendeu a MP foi concedida em razão da ausência de indicação expressa de sua finalidade e de demonstração do interesse público que se visava a alcançar, além de não explicitar como e para que fim seriam utilizados os dados coletados. Ainda conforme o entendimento da relatora, Ministra Rosa Weber, permitir a liberação, ao IBGE, de dados de pessoas naturais e jurídicas por empresas de telefonia poderia causar "danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários". O voto ainda faz referência ao art. 5º, inciso XII da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para referir expressamente a necessidade de tutela do direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais. Chama-se a atenção, portanto, para o fato de que o entendimento adotado pelo STF no referido caso IBGE aponta para a existência de um direito fundamental autônomo à proteção de dados, que se desprende pura e simplesmente do direito à privacidade. É justamente daí que passam a merecer ainda mais destaque comprometidas discussões a respeito da responsabilidade civil na condição de ferramenta a não apenas resguardar, mas a promover e difundir o direito fundamental à proteção de dados. Mostra-se imprescindível, então, refletir sobre qual seria a mais adequada interpretação do art. 42 e seguintes da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que tratam, justamente, da responsabilidade do controlador ou operador de dados pessoais. Haveria, nesse sentido, três possíveis cenários, conforme inclusive abordado pelo autor Rafael Dresc7: parte da doutrina entende estar-se a tratar de responsabilidade subjetiva, que demandaria análise da culpa dos agentes de tratamento em casos de danos aos titulares de dados pessoais8; outra parcela defende que a LGPD apontaria para a responsabilidade objetiva, ante o risco proveito ou da atividade9; e, ainda, a responsabilidade objetiva especial - que, para fins do debate aqui proposto, merece destaque.   É prudente afirmar que a forma de responsabilidade civil adotada pela LGPD, em verdade, enquadra-se em uma categoria especial de responsabilidade objetiva10, que se dará ante o cometimento de um ilícito: o não cumprimento de deveres impostos pela legislação de proteção de dados, especial o dever de segurança por parte do agente de tratamento. É o que se extrai, inclusive, da análise do dever geral de segurança do qual esse se incumbe, conforme disposição do art. 44 da LGPD, e cuja violação é que acaba por ensejar sua responsabilização civil. Em outras palavras, faz-se fundamental observar eventual cumprimento ou não dos deveres decorrentes da tutela dos dados pessoais, especialmente, do dever geral de segurança ante a legítima expectativa quanto à possível conduta do agente, o que se faz por meio de standards de conduta - critérios que, não atendidos, apontam para o não cumprimento do dever de segurança. Essencial à responsabilização civil dos agentes de tratamento, portanto, é a existência de um ilícito. Contudo, o ilícito previsto nos artigos 42 e 44 não está centrado na culpa do agente, como ocorre no artigo 187 do Código Civil, mas no ilícito objetivo, pois não se indaga sobre dolo ou culpa em sentido estrito. Não há a necessidade da análise subjetiva - interna ao sujeito - com base na sua intenção ou falta de cuidado, caracterizada pela negligência, imprudência ou imperícia. O ilícito objetivo previsto na LGPD, assim como o do artigo 188 do Código Civil, demanda apenas a análise externa das práticas do agente de tratamento, de sua conduta de forma objetiva, para verificar se tal conduta está em conformidade (compliance) ou não com o padrão de conduta que se pode exigir de um agente de tratamento com base em standards técnicos de mercado e regulatórios. Ademais, transbordando a análise deontológica, a partir de uma análise funcionalista, essa parece ser a alternativa mais adequada com vistas a atender à finalidade de resguardar o indivíduo no campo da proteção de dados. Isso porque a responsabilidade objetiva pelo risco proveito ou pelo risco da atividade, ainda que defendida por muitos respeitados estudiosos do tema, não parece criar os corretos incentivos à proteção de dados da pessoa humana, especialmente porque toma iguais o agente que busca garantir a segurança no tratamento de dados (e que, para isso, se vale das adequadas ferramentas de tecnologia e corretas políticas de privacidade, de certificações e governança) e o agente que nada faz a esse respeito. O critério de imputação pelo risco (seja risco proveito, da atividade ou integral) trata indistintamente "bons e maus" agentes - e, nesse caso, pela ausência de distinção, acaba por não incentivar comportamentos cooperativos de proteção de dados da pessoa humana e incentivar comportamentos estratégicos omissivos em relação à segurança. Ao se adotar a teoria objetiva especial centrada no ilícito objetivo, por outro lado, dispensa-se, para fins de responsabilização civil, a análise da culpa para se proceder, de maneira objetiva, a verificação quanto à ocorrência ou não de uma falta aos deveres, em especial ao dever geral de segurança com base em padrões técnicos. Tal distinção acaba por se mostrar uma importante ferramenta a estimular os agentes de tratamento a investirem na proteção de dados pessoais. No fim do dia, é preciso refletir sobre o que se está a buscar: uma distopia coletivista, que trata a todos agentes de tratamento de forma indistinta, ou o fortalecimento dos indivíduos através do incentivo às boas práticas de segurança e proteção de dados? *Rafael Dresch é mestre pela UFRGS em Direito Privado. Doutor em Direito na PUC/RS, com estágio doutoral na University of Edinburgh/UK, Pós-doutor na University of Illinois/US e professor da UFRGS. Sócio-fundador do Coulon, Dresch e Masina Advogados. **Lílian Brandt Stein é mestranda em Direito na UFRGS e cursa especialização em Direito dos Contratos e Responsabilidade Civil na Unisinos. Bacharel em Direito e em Jornalismo pela Unisinos. Advogada no Neubarth Trindade Advogados. __________ 1 ORWELL, George. A Revolução dos Bichos / George Orwell - Cornélio Procópio, PR: UENP, 2015, 86p. p. 36. 2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 563. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 09. 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 571-572. 6 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 7 Vide: DRESCH, Rafael de Freitas Valle. A especial responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. Migalhas, Ribeirão Preto, 02 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16 nov. 2020. 8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGPD. In: Cadernos Adenauer - Proteção de dados pessoais: privacidade versus avanço tecnológico. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2019, ano XX, n. 3, p. 113-135 e; CRUZ, Gisela Sampaio da; MEIRELES, Rose Melo Venceslau. Término do tratamento de dados. In: Lei Geral de Proteção de Dados e suas repercussões no Direito Brasileiro. FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 219-241. 9 DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel. Reflexões iniciais sobre a nova Lei Geral de Proteção de Dados. Revista de Direito do Consumidor, v. 120, nov.-dez., 2018, p. 469-483. 10 Vide análise mais detalhada por Rafael Dresch e José Faleiros em: DRESCH, Rafael de Freitas Valle; FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. Reflexões sobre a responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018. In: ROSENVALD, Nelson; WESENDONCK, Tula; DRESCH, Rafael. (Org.). Responsabilidade civil: novos riscos. Indaiatuba: Editora Foco Jurídico Ltda., 2019. p. 65-90.
sexta-feira, 20 de novembro de 2020

LGPD, qual é a cor do meu sapato?

Evandro Eduardo Seron Ruiz, brasileiro, casado, professor, portador da cédula de identidade número 98.765.432, SSP-SP, inscrito no CPF sob número 123.456.789-10, residente e domiciliado descendo a Rua da Ladeira, 22, Ribeirão Preto, SP.  Acima vemos uma clássica qualificação individual que poderia constar de muitos documentos oficiais não fosse por alguns desvios de veracidade. Nesta qualificação, saltam aos olhos dois números importantes, o da cédula de identidade e o da inscrição no CPF. Esses números são também conhecidos como identificadores diretos de um indivíduo. Na linguagem das tecnologias de informação e comunicação, TIC, esses dois números são capazes de identificar univocamente um cidadão no território nacional. A bem da verdade, sabemos que o famoso número do RG não é um número nacional, mas mesmo assim, conhecendo o emissor deste identificador, essa identificação individual é possível. Até aqui, são poucas as novidades já que, se refletirmos um pouco mais, nós também, como cidadãos da webesfera, criamos endereços de emails, e nomes de perfis nas redes sociais que, neste universo de informação e conhecimento, também podem ser tratados como identificadores diretos. No entanto, do outro lado da vida real de consumidores, o poder destes identificadores diretos é ampliado quando muitos repositórios de dados usam os mesmos identificadores. Tomemos como base o CPF. Hoje o CPF é tudo o que a LGPD não gostaria de ter como BFF (best friend forever). O CPF, dado o enorme poder da Receita Federal de controlar da unicidade do seu cadastro, é certamente o mais confiável identificador direto que temos no Brasil. Além de ser usado como comprovação de identidade, o CPF está sendo utilizado com chave de acesso a benefícios sociais e cadastros dos mais variados, da conta da farmácia, aos serviços privados de medicina, do boleto da tv por assinatura à matrícula escolar. E qual seria o prejuízo ao consumidor desta 'viralidade' do CPF? O grande prejuízo ao consumidor, ao cidadão, é o que chamamos de ligação de registros [DE LIMA, 2020]. O fato de termos um único identificador como fator de ligação entre todos esses vários bancos de dados permite a fusão destes dados e a geração de novas informações e novos conhecimentos. Essa fusão de dados permite, por exemplo, identificarmos não só que uma mesma pessoa que compra um medicamento X na farmácia local é a mesma pessoa que está matriculada na escola Y do bairro, mas também que essa mesma pessoa pode estar vinculada a uma seguradora ou plano privado de saúde. Reparem no perigo desta circulação de dados indexados por um identificador único como o CPF. Nesta situação particular do vínculo entre farmácias e provedores de saúde, reparo que esse assunto já foi tema de investigação do MP do Distrito Federal em 2018 sobre eventuais repasses de dados de clientes de farmácias para planos de saúde [VEJA, 2018]. O CPF nunca teve essa finalidade, sempre foi apenas um identificador fiscal e deveria ficar restrito a este âmbito. No entanto, hoje ele é estranhamente vinculado até às certidões de nascimento, desde o ano de 2015, sob o pretexto de "agilizar a emissão para quem pretende, por exemplo, abrir um plano de previdência para o filho que acabou de nascer, em casos de doação de imóvel e inscrições em programas sociais ou ainda no acesso a remédios que são distribuídos de graça na área de saúde" [EBC, 2015]. Sob o mantra de incentivar a praticidade a despeito dos direitos à privacidade, seja bem-vindos os novos cidadãos a esse locus horrendus da privação de escolha e da liberdade a partir do momento em que seus pais compram, pela primeira vez, um singelo antibiótico. Há anos deveria estar claro, como elucida a LGPD, que o direito à privacidade compreende o direito à reserva de informações pessoais. Isso é claro como o sol entre os norte-americanos que reservam o uso do seu Social Security Number a situações muito específicas. Menos sutil é a sugestão de uso do CPF para a realização deste novo modelo nacional de pagamento instantâneo, o Pix. Além dos objetivos de estimular a competitividade e a eficiência dos sistemas de pagamento, o Pix surgiu como uma forma de promover a inclusão financeira. Os pagamentos via Pix são formas facilitadas de pagamento pois os correntistas bancários podem depositar em contas de outros correntistas usando apenas uma chave ao invés de usarem o nome, o tipo de conta, o banco, a agência e o número da conta do beneficiário, não esquecendo de citar o CPF ou o CNPJ deste. Agora, os pagamentos via Pix, podem ser realizados usando apenas uma chave. Esta chave pode ser uma chave aleatória criada pelo banco, um e-mail, um número de celular ou um dos dois cúmplices, o CPF, ou seu assemelhado, o CNPJ. Vejamos, a título de exemplo, como seria a praticidade da inclusão financeira de um ambulante. Agora este ambulante também pode aceitar pagamentos eletrônicos dispensando essas máquinas que operam com cartões bancários. Ele pode alcançar esse benefício dando publicidade ao seu email, ou ao número do seu telefone celular, ou a uma chave estranha para humanos lerem, ou também ao seu já calejado CPF. Estreia assim mais um capítulo da série "Adeus à sua privacidade". Oras BCB, ainda temos que comentar que aparte essa forçada paridade da segurança do CPF, garantido pela Receita Federal, a identificadores como emails gerados por agentes de qualquer provedor de endereço eletrônico, acompanha-se a sofrível confiabilidade do sistema de pagamentos quando o vê sugerindo chaves criadas por agentes externos ao sistema financeiro. Perde o Pix a grande oportunidade de gerar ou co-gerar essas chaves com seus usuários. Ganham os oportunistas que roubam identidades, os que promovem a ligação de registros, enfim, àqueles que não se importam com seu "direito de ser deixado em paz", numa tradução adaptada da expressão inglesa "the right to be let alone" que se tornou marca do artigo Warren e Brandeis, 1890, "um dos ensaios mais influentes na história do direito dos Estados Unidos da América" (GALLAGHER). Situações como essa apontada acima revelam a potencialidade da utilização dos identificadores diretos como promotores da agregação de um sem número de bases de dados que usam um mesmo tipo de atributo (o CPF, por exemplo) para identificar seus clientes. Se assim feito, o armazenamento deste tipo de dado e também o seu intercâmbio com outros agentes, deve ser sempre um motivo de alerta e preocupação tanto para o controlador, como para operador de dados. Cabe também a todos, nos seus papeis de cidadãos que zelam pelo bem comum, a tarefa de alertar os titulares dos dados sobre a real necessidade ou não de algumas instituições armazenarem identificadores deste tipo, ou pior, usarem estes identificadores para promoções de marketing e descontos em produtos. A banalidade no tratamento desse tipo de dado pessoal não só deveria nos impressionar pela investida inescrupulosa sobre nossos dados pessoais como também pela abrangência de instituições e serviços que usam deste expediente. Nessas situações, a moeda de troca invariavelmente é o desconto ou alguma vantagem promocional que resulta em favorecimento pecuniário ao usuário. A de se reparar, no entanto, que a clara moeda de troca, ou seja, o que o consumidor assente, é a violação do seu direito à privacidade e à sua liberdade. A troca implica na aquiescência, na permissão para esses agentes estabelecerem 'perfis de consumidor', na anuência tácita para a segmentação do extrato social ao bel-prazer dos interesses destas instituições a despeito de nossos direitos fundamentais. E o sapato? Bem, vamos agora mergulhar mais profundamente nestes conceitos de identificadores e analisá-los sob a luz da LGPD. Apertem os cintos! Não é novidade para os leitores dessa coluna que a navegação na web deixa vestígios. Esses vestígios não se resumem apenas ao histórico de navegação armazenado no nosso navegado de web, mas podem incluir a sua localização geográfica, seu IP, o tipo de dispositivo que você usa, o software que esse dispositivo usa, os anúncios que o usuário clica, o tempo de permanência em cada página, entre outros vários e vários indicadores que, na linguagem da Computação, chamamos de atributos. Esses atributos da navegação são marcas deixadas pelo usuário ao surfar na web. Alguns destes atributos também são conhecidos como metadados e eles expandem esse universo de informação que existe abaixo dos textos e imagens que vimos na tela. Esses metadados são dados que conceitualizam outros dados, ou seja, são dados que explicam outros dados. Por exemplo, uma mensagem de Twitter carrega mais de 100 metadados, dados que colocam a mensagem trocada num contexto. São alguns metadados de um tweet: data, hora, nome do usuário, localização, imagem de fundo da tela, hashtags usadas, links para outras páginas, entre vários outros. É obvio que esses dados não existiriam sem a ação do usuário, seja ele humano ou não. É este usuário que interage com a web e as suas "pegadas" são próprias daquela navegação. Em 2006 a Netflix lançou um grande desafio na intenção de melhorar o desempenho dos seus algoritmos de sugestão de filmes aos seus clientes. Para tanto, disponibilizaram dados anonimizados de 100 milhões de avaliações, de 480 mil clientes escolhidos aleatoriamente e que avaliaram mais de 17 mil títulos da, então, locadora de DVD. No mesmo ano, dois pesquisadores da Universidade do Texas, Arvind Narayanan e Vitaly Shmatikov [NARAYANAN; SHMATIKOV, 2006] mostraram que pouca informação é necessária para reidentificar um cliente destes registros proporcionados pela Netflix. Reforço que os dados anonimizados correspondiam a apenas 1/8 da base original da empresa. Com apenas 8 avaliações (2 das quais podem estar completamente erradas) e suas datas (com erro de até 14 dias) é possível reidentificar 99% dos clientes. É... lamento lembrar, mas o tinhoso mora nos detalhes. O Dr. Murilo Rosa é leitor assíduo da nossa coluna e não tardou em nos alertar sobre essa empresa que agrupa dados de navegação para formar um perfil de usuário e promover a venda de produtos da empresa. Ou seja, eles escolhem a cor do seu tênis para a próxima estação. Clever! Dangerous! Tirem suas conclusões [CROCT]. A minha todos sabem: Être entre le marteau et l'enclume. ____________  DE LIMA, Cíntia Rosa Pereira (Coord.). Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados: Lei 13.709/18, com alteração da lei 13.853/19. Almedina, 2020. Cap.4, p. 101-121. VEJA. MP investiga se farmácias repassam dados de clientes a planos de saúde. Disponível em: clique aqui. Acesso em: em 14 nov. 2020. EBC Agência Brasil. CPF passa a ser emitido junto com a certidão de nascimento. Disponível em: clique aqui. Acesso em: em 14 nov. 2020. Pix Banco Central do Brasil. Disponível em: clique aqui. Acesso em: em 14 nov. 2020. WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law Review, p. 193-220, 1890. GALLAGHER, Susan E. Introduction the "The Right to Privacy" by Louis D. Brandeis and Samuel Warren: A Digital Critical Edition. A ser publicado. NARAYANAN, Arvind; SHMATIKOV, Vitaly. How to break anonymity of the netflix prize dataset. arXiv preprint cs/0610105, 2006. Disponível em: clique aqui. Croct. Brazil Journal. Disponível em: clique aqui. Acesso em: em 14 nov. 2020.
Introdução Poucos dias após ter sido divulgada a notícia de que hackers invadiram as bases de dados do Superior Tribunal de Justiça e de outros órgãos públicos, incluindo Ministérios1, colocando em risco concreto dados de milhões de jurisdicionados, parece mais que oportuno à presente coluna dedicar atenção ao tema da responsabilidade civil no tratamento de dados pessoais pela Administração Pública. A matéria é complexa, por dizer respeito ao chamado "sistema legal de proteção de dados"2, que abrange a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11 - "LAI") e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18 - "LGPD"), dentre outros diplomas legais correlatos. A tarefa do intérprete torna-se, além de árdua, delicada, diante da constatação, para alguns perturbadora, da colossal magnitude do poder que os agentes de tratamento de dados exercem sobre os mais variados aspectos das vidas de muitos - em se tratando de órgão do Estado, quiçá de todos. A potência dos recursos tecnológicos atualmente disponíveis, com seus algoritmos e inteligência artificial3, tem o efeito de difundir uma perene sensação de exposição e fragilidade. Basta alguém comentar com um amigo que está com vontade de comer um bolo de chocolate, que logo surgirão notificações publicitárias em seu celular indicando uma doçaria há poucos quarteirões de sua casa. Imagine-se o que o Estado não consegue fazer com todos os dados pessoais que controla! Nesse incômodo estado de coisas, é natural esperar-se que o poder do tratamento de dados (com a natural correspectiva vulnerabilidade do titular de dados) seja balanceado por mecanismos de controle e, sobretudo, responsabilidade. A vida de todos está sendo registrada diariamente em indiscretos livros abertos. O "consentimento" que legitimaria o tratamento de dados pessoais é, no mais das vezes - certamente no caso das relações com o Estado - uma vazia formalidade. Não existe alternativa, é claro; pois permanecer alheio à economia digital, ou ao próprio contrato social, não é escolha viável. Resta, assim, esperar do Direito - tal qual elucidado pela Doutrina e pela jurisprudência - que cumpra a sua tarefa de impor efetiva responsabilidade a quem, exercendo o assustador poder do tratamento de dados pessoais, cause danos aos titulares indefesos. A responsabilidade civil do Estado no tratamento de dados pessoais pode ser examinada por diversos ângulos de ataque. Nas linhas seguintes, apresentaremos um panorama da matéria tendo por mote a interação entre a LAI e a LGPD. A Responsabilidade Civil na LAI A LAI trata da responsabilidade pelos danos causados pelo Estado ao titular de informações pessoais no art. 31, § 2º, cuja redação é a seguinte: "[a]quele que obtiver acesso às informações de que trata este artigo [as informações pessoais] será responsabilizado por seu uso indevido". Complementando este enunciado normativo, o art. 34 da LAI estabelece: "Art. 34. Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais (...)". O sentido da norma é satisfatoriamente elucidado pelo "estado da arte" da Doutrina e da jurisprudência acerca da responsabilidade civil do Estado. A evolução científica neste campo conduziu a` paulatina mitigac¸a~o dos requisitos exigidos para a responsabilização do Estado. A teoria tida como dominante no estágio civilizatório em que nos encontramos, a teoria do risco administrativo, sustenta que, revertendo os benefi'cios da atividade pu'blica a todos os administrados, impo~e-se da mesma forma reverter os seus riscos, devendo eles ser suportados por toda a coletividade. Desse modo, independentemente da culpa do agente pu'blico ou mesmo do servic¸o, deve o Estado responder pelos danos que causar ao particular, o qual na~o arcara' sozinho com esse o^nus, que sera' repartido por toda a sociedade4. Nestes moldes, confere-se sentido e extensão ao art. 37, § 6º, da Constituição. A responsabilidade estatal objetiva é atestada inclusive em casos de conduta omissiva, quando esta é específica, isto é, quando o Estado se encontra na condição de garante (ou guardião) de um bem jurídico do jurisdicionado5. Ainda que se dispense a análise da culpa da Administrac¸a~o para a sua responsabilização, impõe-se, a este fim, a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano causado ao particular (resultado do não acolhimento de outra teoria, a do risco integral, que ignoraria até mesmo o liame causal no exame da responsabilidade civil do Estado). E' dizer: na~o se imputa ao Poder Pu'blico a reparac¸a~o de danos que na~o decorram das suas atividades, mas de fatos exclusivamente atribui'veis a terceiros, a` pro'pria vi'tima, ou mesmo derivados de caso fortuito ou forc¸a maior. Com isto, constata-se que a responsabilidade civil do ente Estatal, conforme prevista no art. 31, §4º, e no art. 34 da LAI, é objetiva, logo, independente, da culpa do agente público; e somente se elide pela demonstração do rompimento do nexo causal, em razão de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, ou de caso fortuito ou força maior. Frise-se que, ainda que estes dispositivos façam alusão, em sua textualidade, exclusivamente aos danos decorrentes da divulgação ou utilização indevidas das informações pessoais, a responsabilidade objetiva aplica-se, nestas mesmas bases conceituais, aos danos decorrentes de qualquer tratamento de dados pessoais, ante a inexistência de qualquer fundamento, nesta seara, para o enquadramento da responsabilidade estatal na categoria da responsabilidade subjetiva. De mais a mais, sublinhe-se que a LAI se mostra compatível com o CDC, o que será particularmente importante para os casos de tratamento de informações pessoais vinculados à prestação de serviços públicos uti singuli. Como se sabe, o art. 22 do CDC submete os órgãos públicos à disciplina ali estabelecida, relativamente aos serviços públicos prestados em contextos que se caracterizem como relação de consumo. Esta possibilidade de aplicação conjunta da LAI com o CDC atrairia as regras de responsabilidade civil previstas na legislação consumerista para o âmbito do tratamento de informações pessoais realizadas por órgãos públicos. A Responsabilidade Civil na LGPD O art. 42 da LGPD estabelece que "[o] controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo". Chama atenção, em linha de partida, o fato de o dispositivo não fazer referência à culpa do agente de tratamento de dados6, o que levaria à crer que ali teria o legislador preconizado a responsabilidade objetiva pelos danos sofridos pelos titulares, em linha com a cláusula geral de responsabilidade objetiva prevista no § único do art. 927 e no art. 931 do CC7. A questão ganha contornos duvidosos, porém, quando se leva em conta as menções, presentes no art. 42, à "violação à legislação de proteção de dados pessoais"; e o disposto no art. 43 da LGPD, que estabelece, como causa de exclusão de reponsabilidade do agente de tratamento de dados, a prova de que "não houve violação à legislação de proteção de dados". A redação conjugada desses artigos é sintaticamente criticável, pois o mesmo elemento (violação à legislação de dados) aparece na delimitação positiva do antecedente normativo (art. 42) e na sua delimitação negativa (art. 43). Se a violação à legislação de dados fosse condicionante da responsabilidade (art. 42), a sua ausência evidentemente implicaria a irresponsabilidade, figurando como redundante e inócua a referência a ela no art. 43. Apesar da imprecisão redacional, o art. 43, ao tratar da ilicitude da conduta, parece desempenhar um papel - que exclui sua inutilidade -, qual seja, a de impor ao agente de tratamento de dados o ônus da prova da ausência da violação à legislação de dados. Daí decorrem importantes constatações. A primeira é a de que o legislador incorporou na LGPD um sistema de responsabilidade subjetiva8, baseado na culpa presumida9 do agente de tratamento de dados, que pode ser afastada pela prova do cumprimento da lei. Cuida-se, nessa instância, da designada culpa contra a legalidade, que consiste na consideração de que a infração de dever legal induz à presunção de culpa, sendo desnecessária a demonstração de qualquer imprevisão ou imprudência10. A segunda é a de que a violação à legislação de dados é, como ilícito e índice da culpa, elemento do suporte fático da responsabilidade. No entanto - esta é a terceira - a violação à lei é também presumida, bastando ao titular de dados, para formular uma pretensão ressarcitória, atribuir a um agente a realização do tratamento de dados, demonstrar o sofrimento do dano (sem prejuízo de, em certos casos, considerar-se caracterizado o dano in re ipsa), e demonstrar o nexo de causalidade entre ambos11. Fica, a essa altura do discurso, ainda "em suspensão" a elucidação do alcance da "ausência de violação legal" enquanto excludente de responsabilidade. Sobre isso, vale assinalar que o §3º do art. 12 e o § 3º do art. 14 do CDC, em que o art. 43 claramente foi inspirado, não indicam a conformidade legal do comportamento do agente como excludente de responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (matéria a que se dedicam esses dispositivos). Esses dispositivos estabelecem a responsabilidade por produtos ou serviços defeituosos, entendidos os que não atendem à legitima expectativa de segurança nutrida pelo consumidor. A ausência, neles, de menção ao cumprimento da lei como excludente de responsabilidade, deve-se, em primeiro lugar, ao paradigma teórico que se encontra ali acolhido (teoria objetiva fundada no risco da atividade), o qual se deixa identificar pela explícita irrelevância atribuída à culpa para fins da responsabilidade (cf. caput dos arts. 12 e 14 do CDC). Além disso, não faria sentido que essas normas aludissem à legalidade da conduta, como excludente de responsabilidade, quando a presença do defeito seria, por si, uma ilicitude (violação do dever geral de segurança12). Por fim, o cumprimento ou descumprimento da lei (texto expresso) é tido, no plano da responsabilidade por produtos ou serviços defeituosos, como elemento estranho à aferição da responsabilidade, que decorre unicamente do nexo de causalidade entre o dano e o defeito do produto ou do serviço. A redação da LGPD causa incerteza, todavia, ao contemplar, no art. 4413 (ou seja, depois da enumeração das excludentes de responsabilidade), a descrição do tratamento de dados "irregular": o tratamento de dados realizado com descumprimento da legislação de dados, ou que não ofereça a segurança que o titular dele pode esperar. Nesse dispositivo, a LGPD novamente se inspira no CDC (§1º do art. 12 e do §1º 14 do CDC). Ele, todavia, vem depois da regra geral (art. 42) e da exceção geral (art. 43). A ordem dos fatores pode, nesse caso, alterar o produto. É plausível sustentar que o art. 44 teria como finalidade preceituar a responsabilidade pelo "fato do tratamento de dados"; mas não teria, como faz o CDC nos arts. 12 e 14, estabelecido a responsabilidade imediata pelo descumprimento do "dever geral de segurança14. Dir-se-ia, nessa esteira, que o agente de tratamento de dados poderia, em qualquer caso, demonstrar que cumpriu os procedimentos de governança, controle, boas práticas etc. exigidos expressamente pela legislação de dados; e que, por conta disso, ainda que se constatasse a deficiência de segurança, não haveria responsabilidade a lhe ser imputada. Nesse caso, a ilicitude, enquanto índice da culpa, seria excluída. O caput do art. 44, ao apontar a violação à legislação de dados, e a frustração da expectativa de segurança do titular de dados, como causas alternativas de "irregularidade", não teria tratado esta última como causa de responsabilização par excellence, mas unicamente como circunstância capaz de caracterizar o "fato do tratamento de dados". Entrever-se-ia, então, a irregularidade pela qual o agente de tratamento de dados responde (com culpa presumida), e aquela pela qual ele não responde (afastada a culpa presumida). Por outras palavras, a LGPD teria traçado uma distinção entre "a segurança que o titular dele [do tratamento de dados] pode esperar" e a "segurança pela qual o agente de tratamento responde"15. Esse debate tende a ser superado em situações que, segundo a própria LGPD, continuam sujeitas ao CDC (art. 45), ou ainda em situações envolvendo o descumprimento deliberado ou evidente da legislação de dados. Todavia, nos casos mais complexos envolvendo invasões de bancos de dados por pessoas mal intencionadas, em relações não submetidas ao estatuto consumerista, deparar-se-ia com a dúvida sobre se, uma vez tendo cumprido tudo o que a legislação exigia (expressamente), o agente de tratamento de dados poderia ser responsabilizado - ainda que o dano decorresse de um risco anormal ao tratamento de dados. A solução afirmativa seria, sem dúvidas, mas simpática. Não nos parece, contudo, que seja a mais bem embasada. O legislador demonstrou, na LGPD, uma destacada preocupação em apontar o descumprimento da lei como pressuposto da responsabilidade do agente de tratamento de dados, e o seu cumprimento como excludente de responsabilidade. Demais disso, a suposição de que a LGPD teria contemplado um dever geral de segurança cuja violação seria suficiente para a responsabilização, como no CDC  não se compatibiliza com o texto do art. 44, que alude à infração legal como uma coisa, e à deficiência de segurança como outra ("[o] tratamento de dados pessoais será irregular quando deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar (...)"). Se toda deficiência de segurança correspondesse ontologicamente ao descumprimento da legislação de dados, a estrutura proposicional do caput desse dispositivo revelar-se-ia sem sentido. Daí a conclusão de que há irregularidades pela qual se responde, e outras que - pelo afastamento da culpa presumida - não induzem o dever de reparação de danos. Tais considerações, frise-se, não dão conta de toda a complexidade do tema. Questões outras relativas à densidade da comprovação do dano, à extensão da indenização, à caracterização de fortuitos internos no tratamento de dados, dentre outras, devem ainda ser enfrentadas - se bem que escapam ao espaço desta coluna. LAI x LGPD16 Por tudo que foi dito, pode-se concluir que a disciplina responsabilidade civil da LAI e da LGPD, no que possuem escopos coincidentes (tratamento de dados pessoais por entes públicos), não é idêntica. A questão que fica é a de definir qual marco normativo haveria de prevalecer. Levando-se em conta o fundamento constitucional da responsabilidade civil do Estado, parece que a disciplina da LAI é mais adequada. A bem se ver, a LGPD, no que se descola da teoria do risco administrativo, haveria de ser reputada inconstitucional. Com isso, mais especificamente, quer-se sustentar que o Estado não deve eximir-se de responsabilidade pela simples comprovação do cumprimento da legislação de dados (texto expresso). Do ponto de vista axiológico, a assertiva mostra-se sobremaneira consistente, dado que aquela relação de poder (e contraposta vulnerabilidade) que se verifica nas relações entre o Estado e os particulares, encontra nesse contexto sua máxima intensidade. Certamente estas linhas não têm a pretensão de encerrar a discussão. Muito pelo contrário, o que aqui se busca é tomar parte dela. Os influxos da Doutrina e da jurisprudência que já foram ofertados, e que ainda o serão, permitirão o amadurecimento dos entendimentos sobre o tema. _____________ 1 Clique aqui 2 Cf. BELIZZE OLIVEIRA, Marco Aurélio; LOPES, Isabela Maria Pereira. "Os princípios norteadores da proteção de dados pessoais no Brasil e sua otimização pela Lei nº 13.709/2018". In: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. "Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais". 2ª ed. São Paulo: RT, 2020, p.53-82. 3 ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Danos causados a dados pessoais: novos contornos. In Migalhas de Proteção de Dados, São Paulo, 28 de agosto de 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 09 de novembro de 2020. 4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. "Direito Administrativo". 25ª ed. Sa~o Paulo: Atlas, 2012, p. 701; Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 841526, Rel. Min. Luiz Fux, j. 30/03/2016. 5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. "Programa de Responsabilidade Civil". 14ª ed. SP: Atlas, 2020, p. 283 ss. 6 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Os agentes de tratamento de dados pessoais na LGPD. In Instituto de Estudos Avançados: Artigos, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 09 de novrmbro de 2020. 7 A doutrina e a jurisprudência sedimentaram o entendimento de que estes dispositivos orientam-se pela teoria do risco (em lugar da teoria da culpa), mais especificamente à variação da teoria do risco criado. Cuida-se de um avanço em direção à proteção das vítimas de danos, considerado o contexto de intensificação das atividades de risco verificada no curso das revoluções industriais e do amadurecimento do capitalismo tecnológico; e à maximização da probabilidade do ideal da reparação integral. 8 No mesmo sentido: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau, "Término do tratamento de dados", In: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. "Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais". 2ª ed. São Paulo: RT, 2020, p.217-236. Contra: MENDES, Laura Schertel; DONEDA, D. "Comentário à nova Lei de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), o novo paradigma da proteção de dados no Brasil".In: Revista de Direito do Consumidor, v. 120, p. 555, 2018. Por uma terceira via (responsabilidade "pró-ativa"), cuja distinção para com a responsabilidade subjetiva não é demonstrada com clareza, porém, vide: MORAES, Maria Celina Bodin de; QUEIROZ, João Quinelato de. "Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGDP". IN: Cadernos Adenauer, volume 3, Ano XX, 2019. 9 Cf. MENEZES CORDEIRO, A. Barreto. "Repercussões do RGPD sobre a responsabilidade civil". In: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. "Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais". 2ª ed. São Paulo: RT, 2020, p.771-790. 10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. "Programa de Responsabilidade Civil". 14ª ed. SP: Atlas, 2020, p.51-54. 11 A inversão do ônus da prova a que se refere o art. 42, §2º, diz respeito a esses elementos, não ao descumprimento da lei, que se presume presente diante da prova do tratamento de dados, do dano e do nexo de causalidade. 12 MIRAGEM, Bruno. "Curso de Direito do Consumidor". 7ª ed. São Paulo: RT, 2018, p.602 ss. 13 "Art. 44. O tratamento de dados pessoais será irregular quando deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar, consideradas as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo pelo qual é realizado; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi realizado. Parágrafo único. Responde pelos danos decorrentes da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as medidas de segurança previstas no art. 46 desta Lei, der causa ao dano". 14 O art. 44 se inspira em dispositivos do CDC que seguem a teoria do risco da atividade, mas submete-se a um regime, instaurado pelos arts. 42 e 43, de responsabilidade subjetiva. A escolha legislativa é problemática, pois inclui um suporte fático próprio da responsabilidade objetiva numa moldura diretiva orientada pela responsabilidade subjetiva. No final das contas, diante da redação dos arts. 42 e 43, o art. 44 vocaciona-se a cumprir duas funções: a impositiva de um dever (que, sob certa perspectiva, é um dever "de meio"), de atender as expectativas de segurança nutridas pelos titulares de dados, ou seja, cuidar dos investimentos de confiança por estes depositados no tratamento de dados; e a de servir de parâmetro para a avaliação das instâncias de fortuito interno (para afastamento do nexo de causalidade por caso fortuito ou força maior nas hipóteses de deficiência de segurança). 15 Note-se que o art. 43 da LGPD não traz a comprovação da ausência da deficiência de segurança (que seria o paralelo da comprovação da ausência do defeito, nos termos do §3º do art. 12 e do §3º do art. 14 do CDC), como excludente de responsabilidade. A rigor, o art. 44, ao prever a responsabilidade pelo "fato do tratamento de dados", cumpre o desiderato de expandir o campo da materialidade da responsabilidade, para contemplar as relações causais entre a deficiência de segurança e o dano (indo além, pois, da responsabilidade pelo "vício do tratamento de dados"). Dessa implicação causal decorre a presunção de ilicitude, como índice da culpa. Se o agente de tratamento de dados comprova que o tratamento oferecia a segurança esperada, mas não demonstra que cumpria a lei, permanece a responsabilidade. 16 ANDRADE Jr., Luiz Carlos. Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. In Instituto Avançado de Proteção de Dados: Eventos. Ribeirão Preto, 27 de outubro de 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 09 de novembro de 2020.
sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A polissemia da responsabilidade civil na LGPD

You cannot escape the responsibility of tomorrow by evading it today.Abraham Lincoln Muito se discute sobre responsabilidade civil na LGPD. A responsabilidade civil insculpida na lei 13.709/18 seria objetiva ou subjetiva? Caso considerada objetiva, o nexo de imputação remeteria ao risco da atividade (em razão do exercício - art. 42) ou ao defeito do produto/serviço (tratamento irregular- art. 44)? Em sendo a responsabilidade apreciada como subjetiva, assume-se a culpa como fator atributivo, ou nos serviremos de um conceito objetivo de ilícito? Em sendo assim, a eliminação da culpa excluiria a responsabilidade subjetiva (como em França) ou só se alcança a real obrigação objetiva de indenizar quando afastamos a ilicitude, tal como na legislação da Alemanha ou Portugal? Esse debate é importante - bem como as diversas soluções até então construídas -, mas não esgota as múltiplas variáveis e dimensões do termo "responsabilidade" e as suas possíveis aplicações na LGPD. Em verdade, a controvérsia sobre o exato fator de atribuição da responsabilidade civil concerne tão somente à qualificação da obrigação de indenizar, para que se proceda à reparação integral de danos patrimoniais e extrapatrimoniais a serem transferidos da esfera da vítima para o patrimônio dos causadores de danos. No common law há um termo que se ajusta perfeitamente ao clássico sentido civilistico da responsabilidade. Trata-se da "liability". Várias teorias desenvolvem a liability no contexto da responsabilidade civil. Em comum, remetem à uma indenização cujo núcleo consiste em um nexo causal entre uma conduta e um dano, acrescida por outros elementos conforme o nexo de imputação concreto, tendo em consideração as peculiaridades de cada jurisdição. Porém, este é apenas um dos sentidos da responsabilidade. Ao lado dela, colocam-se três outros vocábulos: "responsibility", "accountability" e "answerability". Os três podem ser traduzidos em nossa língua de maneira direta com o significado de responsabilidade, mas na verdade diferem do sentido monopolístico que as jurisdições da civil law conferem a liability, como palco iluminado da responsabilidade civil (artigos 927 a 954 do Código Civil). Em comum, os três vocábulos transcendem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas camadas à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e velocidade dos arranjos sociais. Cremos ser importante enfatizar o sentido de cada um dos termos utilizados na língua inglesa para ampliarmos o sentido de responsabilidade. Palavras muitas vezes servem como redomas de compreensão do sentido, sendo que a polissemia da responsabilidade nos auxilia a escapar do monopólio da função compensatória da responsabilidade civil (liability), como se ela se resumisse ao pagamento de uma quantia em dinheiro apta a repor o ofendido na situação pré-danosa. A liability não é o epicentro da responsabilidade civil, mas apenas a sua epiderme. Em verdade, trata-se apenas de um last resort para aquilo que se pretende da responsabilidade civil no século XXI, destacadamente na tutela dos dados pessoais. Começando por "responsibility", trata-se do sentido moral de responsabilidade, voluntariamente aceito e jamais legalmente imposto. É um conceito prospectivo de responsabilidade, no qual ela se converte em instrumento para autogoverno e modelação da vida. No campo do tratamento dos dados pessoais, assume duas vertentes: para agentes de tratamentos, significa a inserção da ética no exercício de sua atividade; para os titulares dos dados, a educação digital, no sentido de "...capacitação, integrada a outras práticas educacionais, para o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania" (art. 26 MCI). Se uma pessoa não sabe o que acontece com os seus dados, não poderá se proteger. Conceitos como de "anonimização de dados", sequer são dominados por advogados, quanto mais pelo cidadão em geral. Por isto a educação digital não se confunde com o direito fundamental à inclusão digital (tratado neste espaço na coluna de 23/10 por Carlos Edison do Rêgo e Diana Loureiro). A educação digital extrapola a ideia de acesso à internet, alcançando o sentido de uma autodeterminação informativa, tal como delineado entre os fundamentos da LGPD (art. 2, II, lei 13.709/18). Avançando para a "accountability", ampliamos o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post. No plano ex ante a accountability é compreendida como um guia para controladores e operadores, protagonistas do tratamento de dados pessoais, mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos, tal como se extraí do artigo 50 da LGPD. Impõe-se o compliance como planificação para os riscos de maior impacto negativo. Não por outra razão, ao discorrer sobre os princípios da atividade de tratamento de dados, o art. 6. da lei 13.709/18 se refere à "responsabilização e prestação de contas", ou seja, liability e accountability. Aliás, ao tratar da avaliação de impacto sobre a proteção de dados, em um viés de direitos humanos, a GDPR da União Europeia amplia o espectro do accountability para que os stakeholders sejam cientificados sobre operações que impactem em vulneração ao livre desenvolvimento da personalidade, causem discriminação, violem a dignidade e o exercício da cidadania. Já na vertente ex post, a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados. Assim, ao invés do juiz se socorrer da discricionariedade para aferir o risco intrínseco de uma certa atividade por sua elevada danosidade - o desincentivo ao empreendedorismo é a reação dos agentes econômicos à insegurança jurídica -, estabelecem-se padrões e garantias instrumentais que atuam como parâmetros objetivos para a mensuração do risco em comparação com outras atividades. Aliás, se o causador do dano houver investido em compliance, com efetividade, pode-se mesmo cogitar da redução da indenização, como espécie de sanção premial, a teor do parágrafo único do art. 944 do Código Civil. Em acréscimo, a ausência de previsão legal de um modelo jurídico similar aos punitive damages, não impede que em resposta às infrações cometidas por Agentes de Tratamento de Dados, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, sirva-se da accountability para a estipulação de sanções de natureza punitiva e quantificação de multas, conforme previsão do artigo 52 da LGPD. Não se pode afastar a possibilidade de que, em reação a perspectiva de uma liability acrescida de uma accountability, os agentes econômicos respondam ao esforço conjunto de legislação e regulação, mediante a padronização de arranjos contratuais aptos à diluição dos custos dos acidentes. O recurso à gestão contratual dos riscos, pode ser dar mediante a limitação de responsabilidade ou a sua transferência ao usuário ou a seguradoras. Mas não podemos olvidar da assimetria informativa dos usuários, associada à sua frequente condição de consumidores, para a rígida aferição das cláusulas contratuais gerais. Por último, entramos na seara da answerability. O termo é traduzido ao pé da letra como "explicabilidade", impondo-se como mais uma camada da função preventiva da responsabilidade. A answerability é um procedimento de justificação de escolhas que extrapola o direito à informação, facultando-se a compreensão de todo o cenário da operação de tratamento de dados. No âmbito da LGPD ela amplia o seu raio, convertendo-se em uma "ability to appeal", ou seja, o titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade (art. 20, lei 13.709/18). Prioriza-se uma revisão extrajudicial por humanos, de decisões produzidas por inteligência artificial. A liability surgirá em um momento posterior, se eventualmente eclodem danos em razão de atos ou atividades danosas que vulneram o profiling da pessoa ou alcançam situações existenciais. Responsibility, accountability e answerability executam exemplarmente as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil, eventualmente complementadas pela função compensatória (liability). Ao contrário do que propaga a escola clássica da responsabilidade, distancia-se o efeito preventivo de um mero efeito colateral de uma sentença condenatória a um ressarcimento. Aliás, a multifuncionalidade da responsabilidade civil não se resume a uma discussão acadêmica: a perspectiva plural da sua aplicabilidade à LGPD é um bem-acabado exemplo legislativo da necessidade de ampliarmos a percepção sobre a responsabilidade civil. Não se trata tão somente de um mecanismo de contenção de danos, mas também de contenção de comportamentos. Transpusemos o "direito de danos" e alcançamos uma responsabilidade civil para muito além dos danos. Evidencia-se, assim, uma renovada perspectiva bilateralizada: a responsabilidade como mecanismo de imputação de danos - foco da análise reparatória - no qual o agente se responsabiliza "perante" a vítima, convive com a responsabilidade "pelo outro", o ser humano. Aqui, agrega-se a pessoa do agente e a indução à conformidade mediante uma regulação de gestão de riscos, sobremaneira a sua mitigação, seja por parte de um desenvolvedor de tecnologias digitais emergentes como de um agente de tratamento (accountability/answerability). Porém, em uma noção de reciprocidade, a mitigação de ilícitos e danos também incumbe a cada um de nós, mediante a paulatina construção de uma autodeterminação responsável que nos alforrie da heteronomia e vitimização (responsibility), pois como já inferia Isaiah Berlin "O paternalismo é a pior forma de opressão". *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do MP/MG. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).  Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei 13.709 de 2018, elenca, em seu art. 2º, inciso II, como um dos  fundamentos da disciplina da proteção de dados pessoais, a autodeterminação informativa1. É possível dizer, que dos fundamentos presentes no art. 2º da LGDP, a autodeterminação informativa é aquele que guarda, juntamente com o respeito à privacidade, a relação mais próxima com a disciplina da proteção de dados pessoais. Isso porque consiste no único presente no rol dos incisos do dispositivo que tem a sua origem atrelada a esta matéria, que nos dias de hoje ganhou contornos de autonomia. Não há precedentes legislativos2 no Brasil de previsão da autodeterminação informativa3 em qualquer contexto. Na jurisprudência, antes do julgamento da ADIN 6389, havia aparecido em alguns precedentes4 do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, mas sem desenvolvimento mais detalhado. O objetivo do presente texto é o de abordar as origens alemãs da autodeterminação informativa, bem como o seu conteúdo, de forma a traçar alguns contornos de seu significado, com vistas a lançar luzes para o debate do significado que alcançará no ordenamento jurídico brasileiro. As origens alemãs da autodeterminação informativa   A opção do legislador da LGPD, de incluir a autodeterminação informativa no texto da lei, indica inspiração na dogmática alemã acerca da matéria, pois foi naquele país em que efetivamente se tornou conhecido e se desenvolveu com profundidade esse fundamento da disciplina de proteção de dados pessoais, a partir do julgamento da decisão do censo, de 1983. É certo que a decisão do censo foi influenciada por pensamentos anteriores5. No Parlamento Alemão, no ano de 1971, no contexto do início das discussões para a edição da Lei de Proteção de Dados Federal6, fora publicado extenso parecer abordando amplamente o tema proteção de dados em que já se fazia uso da expressão direito à autodeterminação informativa (informationelles Selbstbestimmungsrecht)7. Spiros Simitis indica que havia muita expectativa pela publicação da decisão do censo, e que nenhum caso, pelo menos até então8, havia gerado tamanha discussão pública9. Para que se tenha uma ideia, foram ajuizadas mil e seiscentas reclamações constitucionais contra a Lei do Censo de 1982, das quais quatro foram selecionadas para integrar os debates da sessão pública anterior ao julgamento10.    Nas palavras de Hornung e Schnabel, o direito à autodeterminação informativa, como âncora constitucional da proteção de dados, integra o denominado direito geral da personalidade11. O direito geral da personalidade na Alemanha teve origens na doutrina de Otto Von Gierke, no final do Século XIX, e posteriormente foi reconhecido pioneiramente pelo Tribunal Superior Federal (Bundesgerichtshof - BGH), em decisão de 195412. Na sequência, foi e vem sendo e desenvolvido pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), sendo derivado da combinação do art. 1º, I (dignidade da pessoa) e art. 2º, I (livre desenvolvimento da personalidade) da Lei Fundamental13, ou seja, a sua atuação em conjunto garante a cada indivíduo a possibilidade de desenvolver a sua própria personalidade14.  O direito geral da personalidade protege elementos da personalidade que não estejam cobertos pelas garantias especiais de liberdade da Lei Fundamental15. Na dogmática do direito geral da personalidade, é possível distinguir três categorias ou implementações, conforme o desenvolvimento do Tribunal Constitucional Federal: o direito à autodeterminação (Recht der Selbstbestimmung), o direito à autopreservação (Recht der Selbstbewahrung) e direito à auto-apresentação (Recht der Selbstdarstellung)16.  Conteúdo da autodeterminação informativa A autodeterminação informativa pretende conceder ao indivíduo o poder, de ele próprio decidir acerca da divulgação e utilização de seus dados pessoais17. Em passagem clássica da decisão do censo, assentou-se que: "Aquele que, com segurança suficiente, não pode vislumbrar quais informações pessoais a si relacionadas existem em áreas determinadas de seu meio social, e aquele que não pode estimar em certa medida qual o conhecimento que um possível interlocutor tenha da sua pessoa, pode ter sua liberdade consideravelmente tolhida"18. Uma das preocupações fundamentais da disciplina da proteção de dados é a de que o indivíduo não seja manipulado por informações que os seus interlocutores (sejam eles entes estatais ou privados) tenham sobre a sua pessoa, sem que ele saiba disso. Nestes casos de conhecimento prévio das informações sobre a outra parte, o detentor da informação invariavelmente se coloca numa posição privilegiada. Ele atalha os caminhos, adquirindo a possibilidade de manipulação e de direcionamento. Pode fazer colocações e perguntas dirigidas, pois todo um caminho que teria de ser traçado para que chegasse a uma informação não precisa ser percorrido. Em suma, a relação não se desenvolve como no caso de um encontro que inicia "do zero": perde sua espontaneidade e o seu natural desenvolvimento19. É por isso que na dogmática da área, a expressão livre desenvolvimento da personalidade (freie Entfaltung der Persönlichkeit), do art. 2º, I, da Lei Fundamental, ganha realce, significando que o indivíduo deve ter a liberdade de "desdobrar" a sua personalidade, no sentido de ele próprio se desenvolver: não deve ser permitido que tenha a sua personalidade encolhida. Não é sem razão, que a LGPD, da mesma forma, e muito embora em nível infraconstitucional20, contemplou a previsão do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, tanto como objetivo (art. 1º), quanto como fundamento da lei (art. 2º, VII). É por isso que a chave da melhor compreensão da autodeterminação informativa é a de sua leitura conjunta com o denominado livre desenvolvimento da personalidade. É de se notar a peculiaridade da criação e do significado do livre desenvolvimento da personalidade a partir do processo legislativo da Lei Fundamental, na Alemanha. Gabriele Britz21, juíza do Tribunal Constitucional Federal, registra que o legislador se valeu de uma expressão incomum, sem precedentes, sequer no exterior. Portanto, trata-se de criação genuinamente alemã. E, na origem dos trabalhos parlamentares, menciona-se a contribuição do deputado Eberhard, que associou o livre desenvolvimento da personalidade à ideia de atuação da pessoa com personalidade e posturas próprias, imune à manipulação por terceiros bem como livre da incitação que culmine em posturas extremistas22. Na linha de raciocínio do parlamentar Eberhard, há que se destacar outro aspecto do conteúdo da autodeterminação informativa extraído da decisão do censo, acerca do qual Alexander Roßnagel chama a atenção: é o de que a proteção de dados e consequentemente a autodeterminação informativa consistem em elementos estruturais da comunicação realizada no âmbito da sociedade23.  Inspirado por passagem da decisão, Roßnagel afirma que a proteção de dados é o pré-requisito de um engajamento do indivíduo em questões públicas e, portanto, pressuposto funcional da comunicação democrática (Funktionsbedingung demokratischer Kommunikation)24. Segundo o Professor da Universidade de Kassel, ao criar regras de proteção de dados, o Estado democrático cria as condições indispensáveis para a sua continuidade25. Portanto, a restrição do direito de liberdade do indivíduo pode acarretar a limitação do exercício de outros direitos fundamentais, conforme assenta a decisão do Tribunal Constitucional Federal: "Aquele que tem insegurança acerca de se o seu modo comportamental desviante seja, a todo momento registrado, e como informação, ao longo do tempo armazenado, utilizado ou disponibilizado a terceiros, tentará não incidir em tal modo comportamental. Aquele que parte do pressuposto de que, por exemplo, a participação em uma reunião ou em uma iniciativa do exercício de cidadania seja registrado por um órgão público, e que a partir dessas atividades possam lhe advir riscos, provavelmente abdicará do exercício dos direitos fundamentais relativos a essas atividades"26. Mas a importância da proteção de dados não se esgota na sua faceta de pressuposto funcional da comunicação democrática. Ao mesmo tempo é pressuposto de uma "autodeterminada decisão contratual" (selbstbestimmte Vertragsentscheidung) e, por conseguinte, pressuposto funcional de uma livre economia de mercado (Funktionsbedingung einer freien Marktwirtschaft),  no sentido de que uma decisão livre dos contratantes de um modo geral, e dos consumidores em particular, uma decisão ausente de manipulações, só é possível quando o fornecedor em potencial só tenha conhecimento dos dados fornecidos pelo próprio consumidor, ou que, no mínimo, este conheça as informações relativas a sua pessoa que o fornecedor disponha27. De outra banda, não se pode descurar   que o muito embora o poder que a autodeterminação informativa pretende garantir ao titular dos dados pessoais, não há o estabelecimento de uma relação absoluta entre o indivíduo e os dados a ele relacionados. No contexto da proteção de dados é importante referir a lição da decisão do censo de que não é adequado falar em propriedade por parte do indivíduo dos dados relativos a sua pessoa28. Ainda segundo  Roßnagel,  a concepção do ordenamento jurídico relativo à proteção de dados não se coaduna com a ideia de propriedade sobre os dados pessoais29. O mais adequado é que se considere os dados relacionados a uma pessoa como resultado de uma observação social ou de um processo de comunicação social multirrelacional30. Como modelos da realidade, teriam os dados pessoais sempre um autor e um objeto. Os dados têm relação com um objeto, mas também com o autor. Não podem ser associados exclusivamente ao objeto.  Assim, o direito da proteção de dados não regula a propriedade, mas sim consiste num ordenamento sobre a informação e a comunicação a eles relacionada, determinando quem, em qual relação, e em que situação, está autorizado a lidar com os modelos de uma determinada pessoa de uma determinada maneira. Em suma, a autodeterminação informativa não pode ser compreendida como garantidora de um domínio absoluto da pessoa sobre os dados a ela relacionados, como se fossem "seus" dados numa relação de exclusão de todos os demais membros da sociedade31. Roßnagel arremata dizendo que o direito da proteção de dados resguarda a pessoa não como proprietário de seus dados, mas a auxilia como titular de interesses e tomador de decisões no contexto do ordenamento comunicacional e informacional32. Veja-se o foco da proteção: a tomada de decisões pelo próprio indivíduo33. É por essa razão, que o conceito de dado pessoal, tanto na LGPD (art. 5º, I), quanto nas fontes normativas internacionais, emprega a expressão "informação relacionada a pessoa" e não "informação da pessoa". Enfim, esses alguns contornos das origens e do conteúdo da  autodeterminação informativa na Alemanha, de modo a lançar luzes para o debate acerca do significado que, na leitura da LGPD, será desenvolvido no Brasil. Um dos grandes desafios que nos dias de hoje enfrenta a autodeterminação informativa certamente é o relacionado à crise do consentimento e à dificuldade de garantir o poder decisório do indivíduo acerca do tratamento dos dados pessoais. A previsão legal de autoridades de proteção de dados34 robustas e independentes bem como as regras de responsabilização e prestação de contas são alguns dos aliados da autodeterminação informativa na missão de garantia do livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos. *Fabiano Menke é professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito e do programa de pós-graduação em Direito da UFRGS. Doutor em Direito pela Universidade de Kassel, com bolsa de estudos de doutorado integral CAPES/DAAD. Coordenador do Projeto de Pesquisa "Os fundamentos da proteção de dados na contemporaneidade", na UFRGS. Membro Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogado. Instagram: menkefabiano. __________ 1 O art. 2º da LGPD prevê ainda os seguintes fundamentos da disciplina da proteção de dados pessoais, nos incisos apontados a seguir: I - privacidade; III- a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV- a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V- o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI- a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII- os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoais naturais. 2 O Projeto de Lei do Senado, nº 281, de 2012, que tinha por objetivo reforçar a proteção do consumidor no comércio eletrônico, pretendia incluir o inciso XI no art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, com a seguinte redação: "a autodeterminação, a privacidade e a segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, por qualquer meio, inclusive o eletrônico"; 3 A LGPD adotou a expressão "autodeterminação informativa", mas também é possível o emprego da variação "autodeterminação informacional". 4 RE 673.707, Plenário, Rel. Min. Luiz Fux, j. 17.06.2015, DJ 30.09.2015; SS 3902, Min. Gilmar Mendes, j. 08.07.2009, DJ04.08.2009; REsp 1.630.659, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.11.2018, DJ 06.12.2018. 5 Como bem destaca Veridiana Alimonti, a ideia de autodeterminação já estava presente na obra de Alan Westin, Privacy and Freedom, de 1967, bem como em outras iniciativas normativas norte-americanas e europeias. ALIMONTI, Veridiana. Autodeterminação informacional na LGPD: antecedentes, influências e desafios. In: VILLAS BÔAS CUEVA, Ricardo, DONEDA, Danilo, MENDES, Laura Schertel (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018) - A caminho da efetividade: contribuições para a implementação da LGPD. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 177-192, p. 177-178. 6 Bundesdatenschutzgesetz, que viria a ser editada em 1977. 7 Disponível aqui. Acesso em 26.10.2020. Ainda sobre histórico do parecer e do julgamento da decisão do censo, ver STEINMÜLLER, Wilhelm. Das informationelle Selbstbestimmungsrecht: Wie es entstanden ist und was man daraus lernen kann. Disponível aqui. Acesso em: 20.10.2020. Sobre o histórico da decisão, ver ainda o primoroso trabalho de Laura Schertel Mendes: Autodeterminação informacional: origem e desenvolvimento conceitual na jurisprudência da corte constitucional alemã. In: VILLAS BÔAS CUEVA, Ricardo, DONEDA, Danilo, MENDES, Laura Schertel (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) - A caminho da efetividade: contribuições para a implementação da LGPD. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 177-192, p. 177-178. 8 Posteriormente, Marion Albers equiparou a ressonância da discussão da decisão do censo com aquela havida no âmbito do contexto da denominada Vorratsdatenspeicherung, que diz respeito ao dever dos fornecedores de acesso e das aplicações de armazenarem os respectivos dados de acesso e de conexão dos usuários, o que, no Brasil, é disciplinado no Marco Civil da Internet. ALBERS, Marion. Informationelle Selbstbestimmung als vielsichtiges Bündel von Rechtsbindungen und Rechtspositionen. In:  FRIEDEWALD, Michael, LAMLA, Jörn, ROßNAGEL, Alexander (Org.). Informationelle Selbstbestimmung im digitalen Wandel, Wiesbaden: Springer Vieweg, 2017, p. 11-35, p. 13. 9 SIMITIS, Spiros. Die informationelle Selbstbestimmung: Grundbedingung einer verfassungskonformen Informationsordnung. Neue Juristenwochenschrift, 1984, vol. 8, p. 394. 10 STEINMÜLLER, Wilhelm. Das informationelle Selbstbestimmungsrecht: Wie es entstanden ist und was man daraus lernen kann, p. 17. Disponível aqui. Acesso em: 20.10.2020. 11 HORNUNG, Gerrit, SCHNABEL, Christoph; Data protection in Germany I: The population census decision and the right to information self-determination. Computer Law & Security Report, vol. 25, número 1, 2009, p. 84. 12 GÖTTING, Horst-Peter. Inhalt, Zweck und Natur des Persönlichkeitsrechts. In: Handbuch des Persönlichkeitsrechts. GÖTTING, Horst-Peter; SCHERTZ, Christian; SEITZ, Walter. C.H. Beck, Munique, 2008, p. 2. 13 Art. 1º, I : A dignidade da pessoa é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público. Art. 2º, I, Toda pessoa tem o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que os direitos dos outros não sejam violados e desde que não atente contra a ordem constitucional ou contra a lei moral. (tradução livre da Lei Fundamental). 14 PIEROTH, B.; SCHLINK, B., Grundrechte Staatsrecht II, 27ª ed., Heidelberg: C.F.Müller, 2011, p. 91. 15 ROßNAGEL, Alexander; SCHNABEL, Christoph, Das Grundrecht auf Gewährleistung der Vertraulichkeit und Integrität informationstechnischer Systeme und sein Einfluss auf das Privatrecht. Neue Juristische Wochenschrift, 2008, 3534. 16 PIEROTH, B.; SCHLINK, B., Grundrechte Staatsrecht II, 27ª ed., Heidelberg: C.F.Müller, 2011, p. 91. 17 Sobre este ponto ver ROßNAGEL, Alexander. 20 Jahre Volkszählungsurteil. Multimedia und Recht, vol. 11, 2003, ps. 693-694. 18 Tradução livre do autor. Para a íntegra da decisão, acessar aqui. 19 Este raciocínio serve tanto para uma relação entre duas empresas que estão negociando, em que uma delas domine segredos corporativos da outra sem que esta saiba, quanto para uma relação entre um spammer que, por exemplo, obtém indevidamente dados sensíveis de um consumidor e lhe envia propaganda direcionada, relacionada a determinada doença que lhe acomete. Se numa entrevista de emprego o empregador conhece informações sobre o candidato, sem que este saiba, a entrevista também poderá perder a sua espontaneidade. Daí a importância de as pessoas serem alertadas sobre os riscos de exporem os seus dados sem nenhum controle em redes sociais e demais aplicativos disponibilizados na Internet.   20 A Constituição Federal de 1988 não contempla a expressão "livre desenvolvimento da personalidade". 21 BRITZ, Gabriele. Freie Entfaltung der Persönlichkeit (Art. 2 I 1 GG) - Verfassungsversprechen zwischen Naivität und Hybris? Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht (NVwZ) 2019, p. 672-677, 672. 22 BRITZ, Gabriele. Freie Entfaltung der Persönlichkeit (Art. 2 I 1 GG) - Verfassungsversprechen zwischen Naivität und Hybris? Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht (NVwZ) 2019, p. 672-677, 676. 23 Roßnagel, A. Einleitung. In: Roßnagel, A. (Org.). Handbuch Datenschutzrecht: Die neuen Grundlagen für Wirtschaft und Verwaltung, Munique, Beck Verlag, 2003,p. 8. 24 Roßnagel, A. Einleitung. In: Roßnagel, A. (Org.). Handbuch Datenschutzrecht: Die neuen Grundlagen für Wirtschaft und Verwaltung, Munique, Beck Verlag, 2003,p. 8. 25 Roßnagel, A. Einleitung. In: Roßnagel, A. (Org.). Handbuch Datenschutzrecht: Die neuen Grundlagen für Wirtschaft und Verwaltung, Munique, Beck Verlag, 2003,p. 8. 26 Tradução livre do autor, de trecho da decisão. 27 Idem, p. 4. 28 Idem, ibidem. 29 No Brasil, ver Marcel Leonardi, Tutela e Privacidade na Internet, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 77, que também rejeita a ideia de propriedade sobre os dados. 30 Idem, ibidem. 31 Idem, p.4. Em passagem específica de seu escrito, Roßnagel cita trecho emblemático da decisão do censo, a seguir traduzido livremente: "O indivíduo não tem um direito no sentido de um domínio absoluto, e irrestrito sobre os "seus" dados; antes pelo contrário, ele consiste em personalidade que se desenvolve no âmbito de uma comunidade social e que não prescinde da comunicação. A informação, até mesmo enquanto associada a uma pessoa, representa um retrato da realidade social, que não pode ser exclusivamente reservada ao usuário". 32 Idem, ibidem. 33 Na origem dogmática desta autodeterminação da pessoa, que está na base da autodeterminação informativa está a dignidade da pessoa humana, sendo que a base filosófica da autodeterminação está localizada na filosofia de Kant. Quanto a isso, ver SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível, in:  Sarlet, Ingo Wolfgang (Org.), Dimensões da Dignidade - Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 22, com especial destaque para a nota de rodapé 27, que faz menção à literatura alemã acerca do assunto. Sarlet aborda com precisão o denominado elemento nuclear da dignidade na "fórmula desenvolvida por Günter Dürig, na Alemanha, para quem (na esteira da concepção kantiana) a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos", idem, p. 34. Atente-se ainda ao exposto por Judith Martins-Costa em sua tese de livre-docência apresentada na USP, onde aborda a problemática referindo as contribuições de Max Scheler para o movimento personalista contemporâneo e a afirmação deste autor que a pessoa não se situa na ordem da substância ou do objeto e é, pois, essencialmente inobjetivável, sendo a unidade ontológica concreta dos atos. Martins-Costa, Judith, Pessoa, Personalidade, Dignidade (ensaio de uma qualificação), Tese de Livre Docência, USP, 2003, p. 176-178. 34 Sobre o tema, ver a excelente pesquisa da tese de Cíntia Rosa Pereira de Lima. LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Autoridade nacional de proteção de dados e a efetividade da Lei Geral de Proteção de Dados: de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018 e as alterações da lei 13.853/2019, o Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) e as sugestões de alteração do CDC (PL 3.514/2015). São Paulo: Almedina, 2020.
Em um sistema aberto, as figuras jurídicas passam por alterações em seus sentidos ao longo do tempo, ainda que a terminologia permaneça idêntica. Trata-se do caráter histórico-relativo dos conceitos, que sofrem verdadeira mutabilidade de significado, podendo desempenhar distintas funções, a depender do contexto histórico, geográfico, cultural e social em que se inserem. A privacidade parece constituir boa ilustração de tal característica. Tradicionalmente, a privacidade era definida como o direito a ser deixado só, isto é, a um espaço reservado de intromissões indesejadas. Todavia, na sociedade tecnológica, o conceito de privacidade passa a se distinguir do de intimidade e a ser concebido também como direito ao controle dos dados pessoais. Analisa-se a privacidade em perspectiva extrapatrimonial, diante de sua relação essencial com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do sistema jurídico (art. 1º, III, CRFB/88). Na prática, a adequada tutela do direito à privacidade depende essencialmente da efetividade do que se denomina de direito de acesso. De fato, escanteado do tratamento dos dados que lhe pertencem, torna-se inviável qualquer possibilidade de exercício do controle por parte do titular. O direito de acesso se traduz, assim, em pedra angular para a proteção das informações pessoais. Há, contudo, barreiras que devem ser transpostas para a plena realização das potencialidades funcionais do direito de acesso. A esse respeito, Stefano Rodotà enunciou as principais causas do tímido exercício desse direito na prática, as quais foram por nós divididas, para fins didáticos, em três grupos: (i) o aspecto do procedimento do acesso, relativo aos custos financeiros e de tempo envolvidos, à carência de alfabetização, à falta de informação e ao desnível de poder entre os titulares dos dados pessoais e os agentes que detêm as informações; (ii) o aspecto do funcionamento do acesso, que diz com a escassa relevância das informações fornecidas quando não se conhece a maneira de atuação do sistema de tratamento e (iii) o aspecto do âmbito de incidência do acesso, referente ao excesso de vedações a certas categorias de informações1. Buscando superar, de certo modo, esses conhecidos obstáculos, o legislador brasileiro fornece, na recém-vigente Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, lei 13.709/2018), inúmeras previsões para a efetividade do direito de acesso. É o que se passa a ver. A LGPD consagra, como dois de seus princípios basilares, o do livre acesso, estabelecendo a "garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais" (art. 6º, IV), e o da transparência, assegurando aos titulares "informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial" (art. 6º, VI). Mais especificamente quanto ao procedimento do acesso, cabe destacar que os custos financeiros envolvidos no exercício do direito em análise sem dúvida se traduzem em barreira à sua efetividade, sobretudo em países marcados por desigualdades sociais, como no caso brasileiro. Por tal razão, essencial a previsão do artigo 6º, IV, da LGPD, a respeito da gratuidade no exercício do direito, ao dispor sobre o princípio do livre acesso. No mesmo sentido, demanda o artigo 18, § 5º, da LGPD, que o requerimento de acesso seja atendido sem custos para o solicitante. Também no que diz com a superação dos obstáculos referentes à obtenção e à compreensão dos dados pelo titular, bem como à demora do processo, a lei visa a assegurar a facilitação do acesso (art. 6º, IV). Nesse sentido, estabelece o artigo 9º que as informações sejam disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva. Além disso, o requerimento de acesso será atendido em formato simplificado, de modo imediato, ou no prazo de 15 dias, contados da data do pedido, por meio de declaração clara e completa, que informe a origem dos dados, a inexistência de registro, os critérios utilizados e o objetivo do tratamento, ressalvado o sigilo comercial e o industrial (art. 19, I e II)2.  As informações poderão ser obtidas por meio digital, seguro e idôneo, ou por meio físico. A escolha da forma de atendimento do pedido caberá ao requerente (art. 19, § 2º, I e II). Por fim, prevê o artigo 19, em seu § 1º, que os dados pessoais serão armazenados em condições que favoreçam o exercício do direito de acesso. Sob outro ângulo, os obstáculos descritos, referentes ao desnível de poder entre as partes e à falta de informação do requerente, encontram importante solução na possibilidade de assistência do titular por profissional qualificado bem como de tutela coletiva desse direito. De fato, a assistência do titular por um especialista permite mitigar a disparidade de conhecimentos técnicos e jurídicos entre o titular dos dados e o agente de tratamento. No mesmo sentido, a forma coletiva de tutela do direito de acesso assegura uma ação coordenada, sistemática e, por consequência, possivelmente mais assertiva. A lei cuida do tema no artigo 18, § 3º, ao dispor que "os direitos previstos neste artigo serão exercidos mediante requerimento expresso do titular ou de representante legalmente constituído, a agente de tratamento", e no artigo 22, ao prever que "a defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na legislação pertinente, acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva", de modo a dotar de efetividade o direito de acesso. Já no aspecto do funcionamento do acesso, o obstáculo a ser superado diz com a escassa relevância das informações fornecidas quando não se conhece a maneira de atuação do sistema. A esse respeito, a lei permite que o acesso seja estendido, para além do dado pessoal em si, à forma de operação do tratamento, bem como à circulação da informação. Assegura-se, desta feita, que o direito de controle dos dados pessoais seja exercido de modo efetivo, abarcando o modo de desempenho do sistema e alcançando as informações onde quer que estejam, no bojo do processo dinâmico de uso e compartilhamento dos dados. Nesse sentido, o artigo 9º da LGPD garante o acesso a informações sobre a finalidade específica, a forma e a duração do tratamento, ressalvados os segredos comercial e industrial, a identificação e os dados de contato do controlador, o uso compartilhado de dados pelo controlador e a finalidade, as responsabilidades dos agentes que realizarão o tratamento e os direitos do titular, com menção explícita aos contidos no artigo 18 da lei. Ainda no tocante ao funcionamento do sistema, destaca-se a previsão do artigo 20, que, em tema de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais, inclusive com a formação de perfis, permite o pedido de revisão dessas decisões, bem como o acesso aos critérios e procedimentos utilizados na operação, observados os segredos comercial e industrial. Neste último caso, se o conhecimento esbarrar na proteção do sigilo, a autoridade nacional zelará pelo princípio da não discriminação, assegurando a isonomia. O dispositivo se destina à tutela do livre desenvolvimento da personalidade do titular. Com efeito, constata-se que, na sociedade tecnológica, a construção da identidade do sujeito passa a depender do modo como os dados o descrevem. O corpo se torna eletrônico e a percepção de si se opera de fora para dentro - a personalidade é aquela definida pelo conjunto de informações3. Nessa toada, o controle dos dados pessoais, por meio do acesso aos critérios e procedimentos utilizados e da solicitação de revisão das decisões automatizadas, objetiva evitar que aquela pessoa humana seja indevidamente discriminada com base em característica que lhe foi atribuída por meio do tratamento de dados pessoais. Sobre o tema, a lei contempla como princípio basilar de sua incidência o de não discriminação, que preconiza a "impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos" (art. 6º, IX). Note-se, portanto, que se admite que os titulares de dados pessoais sejam tratados de modo distinto, como o oferecimento de condições de crédito diferenciadas a partir do perfil de cada consumidor, mas se afigura vedada a discriminação quando ilícita ou abusiva4. Além disso, tomando-se o direito de acesso como instrumento de efetividade da tutela de diferentes situações jurídicas existenciais, cabe destacar a amplitude dos direitos conferidos pela lei ao titular dos dados pessoais, que pode requerer: (i) confirmação da existência de tratamento; (ii) correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; (iii) anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto na lei; (iv) portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial5;  (v) eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no artigo 16 da lei; (vi) informação das entidades com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; (vii) informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; (viii) revogação do consentimento, nos termos do § 5º do artigo 8º da lei6  (art. 18, incisos I a IX7); (ix) medidas em relação aos seus dados contra o controlador perante a autoridade nacional, bem como perante os organismos de defesa do consumidor (art. 18, §§ 1º e 8º); (x) oposição a tratamento realizado com fundamento em uma das hipóteses de dispensa de consentimento, uma vez descumprida a lei (art. 18, § 2º) e (xi) cópia eletrônica integral de seus dados pessoais, observados os segredos comercial e industrial, quando o tratamento tiver origem no consentimento do titular ou em contrato (art. 19, § 3º8).9 No que tange ao âmbito de incidência do acesso, pretendeu o legislador superar o obstáculo relativo ao excesso de vedações a certas categorias de informações. Para tanto, foi contemplado o direito de acesso à integralidade dos dados pessoais (art. 6º, IV) e prevista a regra da possibilidade de seu exercício em relação a qualquer tratamento realizado por pessoa natural ou por pessoa jurídica, de forma a estabelecer, em todas as searas sociais, a prevalência do controle sobre o sigilo (arts. 1º e 3º). Em síntese, o recém-chegado direito de acesso se apresenta, no cenário jurídico nacional, marcado pela busca por efetividade. Trata-se de produto da nova concepção do direito à privacidade e associado à transparência que permeia grande parte das relações sociais na contemporaneidade. Nesse cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que acaba de entrar em vigor no ordenamento pátrio, escorada nos avanços doutrinários sobre os assuntos de que se ocupa, procurou enfrentar as principais barreiras que obstaculizam o controle dos dados pessoais.  Incorporou, assim, poderoso cabedal de ferramentas, ora postas à disposição das pessoas, convidando-as, então, ao exercício do direito de controle de suas informações pessoais. Em meio às turbulências do mundo líquido do Século XXI, a plena eficácia social do direito de acesso consubstancia gigantesco passo civilizatório a favor da tutela integral da pessoa humana. *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). Advogado, parecerista em temas de Direito Privado. **Diana Loureiro Paiva de Castro é mestre em Direito Civil pela UERJ.  __________ 1 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 68. 2 Ressalve-se a previsão do artigo 19, § 4º, da LGPD: "A autoridade nacional poderá dispor de forma diferenciada acerca dos prazos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo para os setores específicos". 3 RODOTÀ, Stefano. Dal soggetto alla persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007, p. 35. 4 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais: uma análise à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18). Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 19, n. 3, 2018, p. 164. 5 Conforme o artigo 18, § 7º, da LGPD, "a portabilidade dos dados pessoais a que se refere o inciso V do caput deste artigo não inclui dados que já tenham sido anonimizados pelo controlador". 6 Aqui também há a garantia de gratuidade, conforme prevê o artigo 8º, § 5º, da LGPD. 7 Importante ressaltar que, consoante o artigo 18, § 6º, da LGPD, "O responsável deverá informar, de maneira imediata, aos agentes de tratamento com os quais tenha realizado uso compartilhado de dados a correção, a eliminação, a anonimização ou o bloqueio dos dados, para que repitam idêntico procedimento, exceto nos casos em que esta comunicação seja comprovadamente impossível ou implique esforço desproporcional". 8 Isso se dará, segundo o dispositivo, "nos termos de regulamentação da autoridade nacional, em formato que permita a sua utilização subsequente, inclusive em outras operações de tratamento". 9 Ademais, dispõe o artigo 21 da LGPD: "os dados pessoais referentes ao exercício regular de direitos pelo titular não podem ser utilizados em seu prejuízo".
Diante do cenário da nova lei 13.709/2018, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 18 de setembro de 2020, mudará muita coisa nas eleições municipais de 2020, adiadas para novembro devido à pandemia de coronavírus. A LGPD, quando interpretada em vistas ao processo eleitoral, visa a coibir as fake news1, as deepfakes2e os disparos em massa, sobretudo mediante a atenção dispensada ao uso de dados pessoais dos eleitores. Isso porque já são comuns as ferramentas que simulam vozes em áudios, vídeos, além daqueles que são chamados robôs - bots (programas de automatização) - sendo que conseguem, por exemplo, atingir grupos de pessoas específicos do colégio eleitoral do candidato que as contrata, por meio de empresas que utilizam os dados pessoais de usuários do facebook e instagram, Não obstante, as eleições municipais são, tradicionalmente, palco das primeiras aplicações de mudanças estruturais. Dessa vez, não será diferente, pois se sabe que o estado pandêmico altera gravemente, para além da data do pleito, as possibilidades de realização de campanha eleitoral. Além disso, a vigência da nova Lei Geral de Proteção de Dados tende a criar novos desafios para os candidatos, sobretudo, para aqueles desconhecidos do grande público. As intersecções possíveis entre os temas eleitorais e a proteção de dados são inúmeras. Fala-se, principalmente, na Resolução 23.610/2019 do TSE, que perfaz o assunto em seus dispositivos, dentre os quais, destacam-se: Art. 31. É vedada às pessoas relacionadas no art. 24 da Lei nº 9.504/1997, bem como às pessoas jurídicas de direito privado, a utilização, doação ou cessão de dados pessoais de seus clientes, em favor de candidatos, de partidos políticos ou de coligações. § 1º É proibida às pessoas jurídicas e às pessoas naturais a venda de cadastro de endereços eletrônicos, nos termos do art. 57- E, § 1º, da Lei nº 9.504/1997. § 4º Observadas as vedações do caput deste artigo, o tratamento de dados pessoais, inclusive a utilização, doação ou cessão destes por pessoa jurídica ou por pessoa natural, observará as disposições da Lei nº 13.709/2018 (LGPD) (Lei nº 9.504/1997, art. 57-J). (destaques nossos). A medida possui íntima relação com os ocorridos nos recentes pleitos em toda a comunidade internacional, sobretudo com o método utilizado pela Cambridge Analytica - a captação maciça de dados pessoais, como preferências pessoais e, a partir de tal, a personalização da propaganda nas redes, de modo a atingir os usuários em sua "bolha"3. Ainda que, a priori, tal relação possa não despertar problematização, basta um olhar atento aos resultados da crescente divisão popular e polarização política nas democracias modernas. O ambiente criado favorece a circulação de desinformação a partir da apresentação tautológica de uma "realidade virtual" personalizada que agrada o usuário e o aproxima do candidato, enquanto cria uma barreira intransponível para o contato com os outros, impossibilitando que as informações cheguem de maneira democrática. A LGPD, portanto, contribuirá para coibir tais práticas por meio da obrigatoriedade do consentimento do usuário em hipóteses de captação de dados pessoais, por exemplo, para que este faça parte da listagem de disparos propagandísticos em massa como já mencionado. É importante esclarecer que, na LGPD, não se proibiu a coleta de dados, o que se lê é a exigência do consentimento expresso do eleitor, com esclarecimento da finalidade para práticas de utilização dos dados pessoais. Trata-se de instituto novo e que carece de mais regulamentações por parte do legislador, da futura Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e de esclarecimentos pelas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral como explorado por Cíntia Rosa Pereira de Lima e Maria Eduarda Sampaio de Sousa na Coluna Migalhas de Proteção de Dados "LGPD e combate às fake news"4. O PL 2630, polêmico projeto de 'Lei das Fake News', prevê, em seu texto inicial, tratamento específico para a disseminação de mensagens em massa, sobretudo em período de propaganda eleitoral, emergência ou calamidade pública, determinando, nessas situações, a limitação de encaminhamento de mensagem privada a um usuário ou grupo, conforme o §1º do art. 135 (do texto inicial). Essa medida vai ao encontro da Resolução 23.610/2019 do TSE. São diversas maneiras de se enfrentar o problema da desinformação, para além da mera problemática da coleta de dados. Em todo caso, fomentam-se boas práticas no ambiente virtual, como a exigência de consentimento, a transparência e a vedação às contas inautênticas. Por esses motivos que a legislação eleitoral no Brasil é reconhecida por seu alto nível de intervenção, com inúmeras regras para realização da propaganda, como as legislações sobre comício, aparições midiáticas e regulamentações de audiovisual. Ainda, a campanha eleitoral terá duração de, aproximadamente, 45 dias6, sem possibilidade de doações financeiras provenientes de pessoa jurídica, proibidas pelo STF em 2015. Depreende-se disso uma grande dificuldade para que novos candidatos possam despontar no cenário político, com uma taxa alta de reeleição e perpetuação de nomes já conhecidos. A forma como se delineará, juridicamente, a campanha eleitoral em respeito à proteção de dados, portanto, passará pela compreensão dos candidatos e de sua equipe acerca do que são dados pessoais sensíveis e dados pessoais e como será o tratamento dos dados no período de campanha. O que são dados pessoais sensíveis?  A própria LGPD define em seu art. 5º, inc. II, que dados pessoais sensíveis são: "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural"7. Portanto, os dados dos eleitores podem ser dados pessoais sensíveis no que se referem às preferências políticas e pautas ideológicas dos candidatos, às filiações partidárias, às páginas e perfis dos candidatos curtidas, etc. O candidato que conhecer tais dados dos eleitores, por meio de uma equipe de marketing eleitoral, pode traçar sua campanha a fim de atingir públicos específicos e em grande quantidade. Acontece que a LGPD oferece proteção aos dados pessoais sensíveis e isso tem implicação direta numa campanha eleitoral, pois delimita o que pode ou não ser utilizado. Vale ressaltar o exemplo problemático do sistema "Filiaweb", da Justiça Eleitoral, que disponibiliza a relação de filiados a partidos políticos, um dado sensível, sem necessidade de qualquer informação ou consentimento. Para tanto, questiona-se a validade de tal mecanismo com a vigência do novo dispositivo. Contrapõem-se transparência e direito à privacidade. Essa limitação para a utilização de dados pessoais sensíveis exige o consentimento de cada usuário, e a LGPD dispõe, em seu art. 7,º as hipóteses em que pode haver tratamento de dados pessoais. As eleições municipais de 2020 e a LGPD  Com a campanha eleitoral em curso, o que se verifica é o aumento do marketing político dos candidatos nas redes sociais. Mesmo com a proibição do TSE aos disparos de mensagens em massa, o jornal Folha de São Paulo identificou ao menos 5 empresas vendendo o serviço de coleta de dados de perfis no facebook, instagram e whatsapp e oferecendo a candidatos8. Em razão disso, o Ministério Público eleitoral já anunciou abertura de investigação sobre o caso9. No Brasil, há 91 milhões de usuários do Instagram10; aproximadamente ,141 milhões de usuários do facebook11 e, aproximadamente, 142 milhões de usuários do aplicativo whatsapp12. Acrescenta-se que, por mais que essas plataformas sejam distintas, pertencem ao mesmo grupo empresarial Facebook, possibilitando o compartilhamento de dados de um mesmo usuário que possua 2 ou mais plataformas da empresa. Com tantos eleitores utilizando as redes sociais, sobretudo, neste período de isolamento social, é lógico e provável que os candidatos tracem seu marketing político com os dados do usuário, entretanto, essa prática, como entendeu o TSE, visa a burlar o processo eleitoral, impedindo que o eleitor reflita livremente sobre os candidatos, pois seria alvo de mensagens direcionadas quando utilizasse a sua rede. A prática ilegal na utilização de dados pessoais prevê multa de até R$50 milhões. Ressalta-se, mais uma vez, que a problemática das eleições municipais é complexa. Para além das novas restrições previstas, o cenário de adiamento eleitoral e das outras restrições legais no sentido de coibir abusos, dificulta, em muito, a viabilidade de novos candidatos desconhecidos disputarem a eleição em pé de igualdade com aqueles já conhecidos e que já puderam ocupar cargos eletivos anteriormente. É inevitável que surjam conflitos de interpretação na aplicação da LGPD nas lides eleitorais, tendo em vista muitas lacunas legais, o contexto de pandemia, o pioneirismo dos dispositivos legais e o tradicional protagonismo do Tribunal Superior Eleitoral em editar Resoluções que regulam a dinâmica das campanhas eleitorais. Essa realidade deve ser levada em conta ao se analisar a extensão das restrições trazidas pela LGPD no que concerne a sua aplicação nas eleições. Assim, ao se exigir o consentimento do eleitor para o recebimento de informações sobre o candidato, para coletar de dados e para as demais operações possíveis; visa-se a estabelecer uma barreira entre o cidadãos e o possível representante, fato que pode tornar a democracia ainda mais indireta, impactando, negativamente, no Estado Democrático de Direito, mas que também auxilia na redução da manipulação do processo eleitoral pelo abuso na utilização de dados dos eleitores. Por conseguinte, deve-se buscar um equilíbrio entre estas duas forças (disputas eleitorais em que haja viabilidade de novos candidatos disputarem de forma equânime as eleições e proteção dos dados) para preservar os princípios democráticos de nosso Estado. *Cristina Godoy Bernardo de Oliveira é professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP - CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. **Tiago Augustini de Lima é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP, bolsista PET e bolsista da Iniciação Científica PUB-USP. ***Pedro Sberni Rodrigues é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP. __________ 1 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. Proteção de dados pessoais: LGPD e possibilidade de combate às fake News. Disponível aqui, último acesso em 15 de outubro de 2020. 2 BRASIL. Justiça Eleitoral. Disponível aqui. Acesso em 06 de outubro de 2020. 3 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. LGPD e Eleições: Proteção dos Dados Pessoais dos Eleitores na era do Big Data. Disponível aqui, último acesso em 15 de outubro de 2020. 4 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 5 BRASIL. PL 2630/2020. Art. 13. Os provedores de aplicação que prestarem serviços de mensageria privada desenvolverão políticas de uso que limitem o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem a no máximo 5 (cinco) usuários ou grupos, bem como o número máximo de membros de cada grupo de usuários para o máximo de 256 (duzentos e cinquenta e seis) membros. §1º Em período de propaganda eleitoral, estabelecido pelo art. 36 da lei 9.504 de 1997 e durante situações de emergência ou de calamidade pública, o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem fica limitado a no máximo 1 (um) usuários ou grupos. Disponivel aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 6 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 7 Cf. PEROLI, Kelvin. O que são dados pessoais sensíveis? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 8 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 9 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 10 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 11 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020. 12 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.
O mundo enfrenta, desde o final do ano de 2019, a tragédia que o novo vírus, conhecido como SARS-CoV-2, desencadeou ceifando a vida de mais de 1 milhão de pessoas conforme último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS)1. Diante dos altos níveis de contágio pelo novo Coronavírus, cuja transmissão ocorre a partir do contato com o vírus transportado em gotículas no ar, além de outras formas de contágio, constatou-se que a forma mais eficiente de achatar a curva da disseminação da covid-19 é o isolamento e o distanciamento social. A corrida para o desenvolvimento da vacina tem mobilizado governos, empresas e entidades de pesquisa científica por todo mundo. Além disso, diante do avanço rápido da doença, alguns sistemas tecnológicos foram desenvolvidos, entre eles, aplicativos para celulares e sistemas de informação geográfica, que poderiam analisar tanto o contato pessoal, como também mapear o espalhamento da doença, a taxa de isolamento social, a interação entre grupos sociais, além de prever os riscos de contaminação. É importante destacar que a funcionalidade destes aplicativos está fundada na coleta e na análise de inúmeras informações sobre pessoas identificadas ou identificáveis. Portanto, os desenvolvedores destes aplicativos devem estar atentos aos princípios, às regras de tratamento de dados pessoais e aos direitos dos titulares de dados pessoais trazidos pela LGPD. A LGPD, em vigor desde 18 de setembro de 2020, quando o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 14.058/2020, convertendo em lei a Medida Provisória 959/2020, como debatido no primeiro texto desta coluna2 sobre as polêmicas em torno da vigência da LGPD. Muito embora as sanções administrativas previstas nos arts. 52, 53 e 54 da LGPD somente poderem ser aplicadas a partir de 1º de agosto de 2021, os desenvolvedores destes aplicativos podem ser processados caso os titulares de dados venham a sofrer danos materiais ou morais decorrentes do tratamento de dados. Assim, a quantificação do contato e o rastreamento pessoal é hoje fundamentada na utilização da telefonia móvel pessoal. Em outras palavras, os celulares (smart phones) são utilizados como ferramenta para poder identificar a locomoção, os trajetos, e, como cruzamento destas informações com outras, poder detectar se a pessoa está viajando, está em um shopping, foi diagnosticada com o novo coronavirus, etc... Esse modelo de aproximação da eventual realidade física de analisar contatos e fazer um rastreamento pessoal tem na telefonia celular um elevado grau de confiabilidade dada a permeabilidade destes aparelhos na sociedade. O Brasil, por exemplo, tem hoje mais de 227,3 milhões de aparelhos telefônicos móveis, o que indica uma densidade de 107,11 aparelhos a cada 100 habitantes, segundo informações da ANATEL divulgadas no portal TELECO Inteligência em Comunicações3. Portanto, como o número de aparelhos supera o número de habitantes, além de estarem os smart phones conectados com redes sociais, e tantos outros aplicativos utilizados pelo indivíduo, escolheu-se esse como uma boa ferramenta para viabilizar a medida de aproximação tanto do contato quanto do deslocamento de pessoas. As tecnologias de contato e rastreamento utilizam-se de dois tipos de sinais oriundos da telefonia móvel. O primeiro deles é o sinal de posicionamento global (GPS), obtido de satélites que circundam a terra a uma altitude aproximada de 20Km. Captando-se o sinal de ao menos três satélites os telefones conseguem se localizar na superfície terrestre por meio das coordenadas de latitude e longitude. Para comunicação sem fio entre aparelhos celulares, ou entre celulares e outros dispositivos eletrônicos, estes utilizam-se de sinais Bluetooth, que é um protocolo de comunicação padronizado projetado para o baixo consumo de energia. Neste contexto, o FluPhone foi um aplicativo, desenvolvido em Java, para telefones móveis planejado para coletar dados de outros dispositivos móveis na proximidade, dados de GPS e dados de sintomas auto reportados, todos esses por meio de sinais Bluetooth. Este aplicativo foi desenvolvido na Universidade de Cambridge, por uma equipe liderada pela Dra. Eiko Yoneki4. Os dados coletados destes dispositivos móveis eram eventualmente transferidos via protocolo 3G para um computador central, um servidor, que analisava os dados recebidos. O FluPhone era um aplicativo que carregava um patógeno virtual, ou melhor, um modelo matemático de um vírus, que era transmitido para outros telefones que possuíam o aplicativo e "infectava" esses aparelhos. O objetivo é simular a dispersão de uma doença na população, analisar as taxas de contágio e como era o comportamento das pessoas quando em contato com este vírus. Por tal razão, a Medida Provisória 959, de 17 de abril de 2020, autorizava o compartilhamento de informações pessoais entre as empresas de telefonia móvel e fixa com a Fundação IBGE para fins estatísticos cujo objetivo era o de monitorar as taxas de isolamento social. Os perigos deste tipo de compartilhamento são muitos, por isso, o Supremo Tribunal Federal5 suspendeu esta Medida Provisória, em caráter liminar, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393. Assim, deve-se distinguir entre "tecnologias de análise de contato pessoal" e "tecnologias de rastreamento pessoal", ambas são utilizadas na batalha contra a disseminação da covid-19. Mas os modelos para "análise de contato" visam prioritariamente informar e educar o usuário deste modelo sobre a doença em curso e suas possibilidades de contágio. Estes modelos são usualmente descentralizados, voluntários e limitados quanto à participação do Estado, pois o uso dos dados obtidos somente pode ocorrer para atender as finalidades informadas e relacionadas estritamente aos eventos epidemiológicos e para salvaguardar a vida e a saúde coletiva. Enquanto, as "tecnologias de rastreamento pessoal" partem de modelos centralizados, muitas vezes compulsórios, em que a unidade central busca mapear e controlar o avanço da doença a partir de informações pessoais dos usuários. Na Singapura, desde 20 de março de 2020, utiliza-se o aplicativo TraceTogether6, que usa a tecnologia Bluetooth para trocar sinas (tokens) com outros aplicativos.  As pessoas infectadas pelo coronavírus devem usar esse aplicativo, que rastreia e identifica pessoas com quem o infectado teve contato, em seguida, o aplicativo avisa essas pessoas, aconselhando-as a fazer quarentena e procurar o sistema de saúde. No início de abril de 2020, a China começou a rastrear seus cidadãos por meio de um aplicativo "detector de proximidade" para telefones móveis o qual estabelece as cores vermelha, amarela e verde aos portadores destes aparelhos7. A Índia lançou, no mês de abril de 2020, o aplicativo Aarogya Setu, que em tradução livre do sânscrito, pode ser aproximado para "uma ponte para saúde", para monitorar possíveis contatos com pessoas infectadas pelo novo coronavírus, tornando-se obrigatório o uso deste aplicativo em determinadas cidades8. No Japão, o COCOA, um acrônimo de Covid-19 Contact-Confirming Application, é um aplicativo desenvolvido pela Microsoft sobre uma infraestrutura de software, criada por um consórcio entre Google e Apple, denominado Privacy-Preserving Contact Tracing9, que criaram um aplicativo especialmente para essa finalidade de rastreamento de doenças. Na Alemanha, o Corona-Warn-App (CWA) foi totalmente desenvolvido usando o DP-3T, Decentralized Privacy-Preserving Proximity Tracing, que é um protocolo aberto, criado especialmente em resposta à pandemia da Covid-19 para facilitar o rastreamento do contato digital entre infectados. Este aplicativo adota técnicas de anonimização, além de vedar o compartilhamento das informações, estando adequado ao Regulamento Geral Europeu sobre Proteção de Dados10. Este sistema inspirou o aplicativo Stopp-Corona na Suíça, porém ele é mais restrito na medida em que inviabiliza o compartilhamento de informações via códigos QR de laboratórios. Na França, o aplicativo StopCovid foi desenvolvido pelo INRIA, Institut National de Recherche en Sciences et Technologies du Numérique, muito parecido com o aplicativo suíço, a única diferença é que a França preferiu adotar um modelo centralizado, ou seja, o Governo francês fica com todas as informações a fim de estabelecer políticas públicas e estratégias de contágio da doença, bem como servir como fonte de pesquisa na área da saúde11. Neste contexto pandêmico, o Brasil foi um dos piores países quanto aos resultados do enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, ficando atrás dos Estados Unidos e da Índia, tendo 4.969.141 casos confirmados e 147.494 mortes segundo a Organização Mundial de Saúde12. Quanto à proteção de dados pessoais, o país também não pode ser tido como exemplo. Tal constatação pode ser feita a partir do Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente (SIMI) do Governo do Estado de São Paulo, instituído por meio do Decreto Estadual nº 64.963, de 5 de maio de 2020, como a "ferramenta de consolidação de dados e informações coligidos por órgãos e entidades da Administração Pública estadual". Tema já analisado na segunda Coluna Migalhas de Proteção de Dados13 por Cristina Godoy Bernardo de Oliveira e Isadora Maria Roseiro Ruiz. O SIMI usado pelo Governo do Estado de São Paulo utilizava informações compartilhadas pelas empresas de telefonia móvel para medir o deslocamento das pessoas, monitorando a taxa de isolamento social. Todavia, a falta de transparência quanto ao processo de anonimização destes dados e quanto à segurança da informação armazenada, bem como a ausência de consentimento do titular de dados ou, ao menos, informar que este tratamento de dados está sendo feito e a inexistência de um Relatório de Impacto à Proteção de Dados conforme o art. XVII do art. 5º da LGPD, colocam em xeque o Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente do Estado de São Paulo. Em nível federal, a Medida Provisória 954, de 17 de abril de 2020, autorizava o compartilhamento de informações como nome, número de telefone e endereço pelas empresas de telefonia móvel e fixa com o IBGE. Todavia, ao analisar esta MP, o Supremo Tribunal Federal (nas Ações Diretas de Inconstitucionalidades n. 6387, 6388, 6389, 6393, 6390) suspendeu a aplicação desta MP, e reconheceu a proteção de dados pessoais como um direito fundamental14. Nota-se que estas informações relacionadas ao contágio da covid-19 são consideradas dados sensíveis, pois relevam informações sobre a saúde do indivíduo15. Portanto, deve-se observar as regras de tratamento de dados pessoais sensíveis estabelecidas no art. 11 da LGPD, quais sejam: - cumprimento de obrigação legal ou regulatória; - pela administração pública quando necessários à execução de políticas públicas; - para a realização de estudos por órgão de pesquisa (garantida a anonimização sempre que possível); - exercício regular de direito; obrigação legal ou regulatória; - para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; - para a tutela da saúde; e para a prevenção à fraude e à segurança do titular de dados. Destas, destacam-se a proteção da vida ou da incolumidade física do titular de dados ou de terceiros e a tutela da saúde, alíneas "e" e "f", respectivamente, do art. 11 da LGPD. Assim, ainda que seja dispensado o consentimento do titular dos dados, pois o tratamento se justifica na tutela da saúde dos titulares de dados e de terceiros, não se pode olvidar dos ditames legais. Portanto, alguns cuidados devem ser tomados notadamente quanto à segurança destas informações e ao compartilhamento de dados entre entes públicos e privados. Assim, todas estas informações devem ser coletadas e armazenadas com muita responsabilidade, apresentando o Relatório de Impacto à Proteção dos Dados Pessoais (art. 38), conceituado no inc. XVII do art. 5º da LGPD como a documentação que contem a descrição dos processos de tratamento de dados que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, apontando as medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco. Ainda que não seja obrigatória a manifestação do consentimento, se não for esta a base para o tratamento de dados, os agentes de tratamento de dados devem comunicar publicamente tal prática, pois a transparência é um princípio do tratamento de dados (inc. VI do art. 6º da LGPD), bem como o direito à informação previsto no art. 18, inc. I, II, VII e VIII da LGPD. Em suma, conclui-se que a União Europeia tem enfrentado o uso dessas tecnologias com muita responsabilidade com destaque para a Declaração Conjunta do Conselho Europeu sobre Proteção de Dados no Contexto da COVID-19, de 30/3/202016. As diretrizes na União Europeia quanto à proteção de dados na época da pandemia da covid-19 são: - tratar os dados minimamente necessários; - eliminação desses dados após a situação de emergência global decorrente da pandemia; - precedência do relatório de impacto à proteção de dados; - adoção de medidas técnicas e organizacionais que asseguram a inviolabilidade destes bancos de dados; - tecnologias de coleta e tratamento de dados pessoais, como as tecnologias de rastreamento pessoal, somente podem ser utilizadas se se comprovar que os benefícios superam em muito os prejuízos à proteção de dados pessoais. Parece-nos que tais diretrizes estão de acordo com a LGPD, devendo orientar os aplicativos de rastreamento pessoal, bem como para o compartilhamento de dados pessoais entre entes públicos e privados. *Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP).  Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada. **Evandro Eduardo Seron Ruiz é professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no programa de pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor Livre-docente pela USP e pós-Doc. pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. __________ 1 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 2 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 3 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 4 YONEKI, Eiko. Fluphone study: Virtual disease spread using haggle. In: Proceedings of the 6th ACM Workshop on Challenged Networks. 2011. pp. 65-66. 5 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 6 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. Cf., último acesso em 08 de outubro de 2020. 7 ABC News, 14 de abril de 2020. Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 8 GARG, Suneela; BHATNAGAR, Nidhi; GANGADHARAN, Navya. A case for participatory disease surveillance of the COVID-19 pandemic in India. In: JMIR Public Health and Surveillance, v. 6, n. 2, p. e18795, 2020. 9 APPLE 2020. Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 10 REELFS, Jens Helge; HOHLFELD, Oliver; POESE, Ingmar. Corona-Warn-App: Tracing the Start of the Official COVID-19 Exposure Notification App for Germany. Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 11 Cf. CNIL Revision. Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 12 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 13 Disponível aqui, último acesso em 8 de outubro de 2020. 14 Cf. STF, último acesso em 8 de outubro de 2020. 15 Cf. PEROLI, Kelvin. O que são dados pessoais sensíveis? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 16 Joint Statement on the right to data protection in the context of the COVID-19 pandemic by Alessandra Pierucci, Chair of the Committee of Convention 108 and Jean-Philippe Walter, Data Protection Commissioner of the Council of Europe. Disponível aqui, último acesso em 2/8/2020.
Nesta semana, a sociedade brasileira poderá ter uma definição sobre o "direito ao esquecimento". Isso é o que se espera, tendo em vista o Supremo Tribunal Federal ter pautado para o dia 30/09/2020, o julgamento do "Tema 786 - Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares". No entanto, este artigo pretende demonstrar que esta é uma figura caleidoscópica o que compromete a funcionalidade da aplicação de uma tese para outros casos "análogos". Isto porque dificilmente existirão casos análogos, o que se pode constatar da própria experiência dos tribunais estrangeiros e dos tribunais brasileiros, que enfrentou esta tese em casos propostos pelos condenados, pelas vítimas, pelos familiares das vítimas (como é o caso em debate no STF), e como se fosse sinônimo de direito à desindexação, etc. Preliminarmente cumpre  esmiuçar o conceito de "direito ao esquecimento". A gênese do direito ao esquecimento está relacionada à privacidade (riservatezza ou privacy) e proteção dos dados pessoais (autodeterminação informativa); mas não só1. Neste sentido, destaca-se a vagueza semântica do que vem a ser o "direito ao esquecimento". Quanto à terminologia, etimologicamente, a expressão que melhor traduz este direito é a expressão em inglês "right to oblivion", do grego Lethe (????), entendida como a perda forçada da memória2. Assim, percebe-se que em outros idiomas prevalece esta origem, por exemplo, na Itália, diritto all'oblio; na França, le droit à l'oublie; na Espanha, derecho al olvido. Quanto ao conteúdo, entende-se que o direito ao esquecimento é um direito de personalidade autônomo por meio do qual o indivíduo, a fim de não ser estigmatizado como o ser humano em determinado momento de sua vida, pode pedir para excluir ou deletar as informações a seu respeito, ou mesmo impedir a propagação e divulgação de determinado conteúdo que lhe diga respeito, notadamente quando tenha passado um lapso temporal considerável desde a sua coleta e utilização ou sua ocorrência, e desde que tais informações não tenham mais utilidade ou não interfiram no direito de liberdade de expressão, científica, artística, literária e jornalística3. Esta parte final é para destacar a dinamicidade do direito ao esquecimento, que é o resultado da ponderação entre outros direitos de personalidade e direitos e garantias fundamentais. Na feliz síntese de Massimiliano Mezzanotte4, trata-se de uma situação jurídica subjetiva com corpus de um direito à identidade pessoal; mas animus de direito à privacidade. Em outras palavras, para a pessoa não ser estigmatizada como aquela em determinado momento de sua vida, alguns fatos pregressos não podem ser veiculados de forma trivial, podendo ser até mesmo excluídos se esta for a maneira pela qual se deva efetivar o "direito ao esquecimento". Diante do conteúdo dinâmico do direito ao esquecimento, questiona-se a (in)utilidade de um tema de repercussão geral, pois dificilmente poderá ser aplicado a casos análogos. A Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, acrescentou o § 3º ao art. 102 da Constituição Federal de 1988, na tentativa de estabelecer um outro critério para a admissibilidade dos recursos extraordinários5. Este critério foi regulado pela lei 11.418/2006, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B no antigo Código de Processo Civil, bem como a reforma do artigo 21 do Regimento Interno do STF, de 03 de maio de 2007. Atualmente, estes dispositivos são os artigos 1.035 e 1.036 do Código de Processo Civil, lei 13.105/2015. Entretanto, o art. 926 do atual CPC determina, in verbis: Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.  § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.  § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. Deve-se atentar ao § 2º do art. 926, que obriga os tribunais atentarem-se às circunstâncias fáticas dos precedentes para que possam ser aplicados em fatos análogos. Aí está o principal problema em se tratando do direito ao esquecimento, seu conteúdo é dinâmico (o que chamamos "caleidoscópico") o que dificultará em muito a aplicação de um precedente em outros casos, pois estes apresentam tantos fatos distintos ("distinguishing facts"), o que compromete a utilidade de uma tese sobre o tema do direito ao esquecimento. Para citar alguns exemplos diversos sobre o "direito ao esquecimento", em um julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro6, uma esteticista que queimara sua cliente em um procedimento a lazer, solicitou, com base no direito ao esquecimento, que este fato fosse retirado da plataforma de busca da Yahoo! Em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo7 considerou inaplicável o direito ao esquecimento para um "skinhead", que participava de uma manifestação deste grupo e teve suas fotos publicadas nas notícias sobre tal acontecimento. O TJ/SP entendeu que o fato era recente e socialmente relevante na medida em que outras pessoas devem ter conhecimento desta manifestação, inclusive as autoridades públicas para as providências cabíveis. Nestes casos, quem ingressou com o pedido foi quem realizou a ação à qual se pretendia mitigar o acesso. Entretanto, no caso ora em debate iniciou-se no STJ8, sendo que o Ministro Relator Luis Felipe Salomão afirma reconhecer o direito ao esquecimento para todos, porém não se aplica no caso concreto. Em recurso, o caso está em debate no STF9, RE 1010606, Relator Ministro Dias Toffoli, em que os familiares da vítima se insurgem contra um documentário a ser transmitido sobre o brutal feminicídio do qual foi vítima sua parente. Observe-se que, nesse caso, trata-se de programa de televisão (não sobre ferramentas de busca na Internet como os casos supra mencionados), sendo o pedido feito pelos familiares da vítima. Estas circunstâncias fáticas tão distintas revelam à impossibilidade de se aplicar a tese sobre direito ao esquecimento a todos estes casos por serem distintos. Portanto, não se pode confundir o direito ao esquecimento com o  caso mais emblemático que tem chamado a atenção dos acadêmicos e pesquisadores de Direito, o famoso Google Spain. No dia 13 de maio de 2014, em decisão inédita, a Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu, em face da Google, o direito à desindexação, determinando a remoção ou "de-listagem" de dados sensíveis dos resultados de busca na Internet, (do inglês, right  to be delisted). O caso teve como origem um litígio entre a Google e um cidadão espanhol, Mario Costeja González. Ele pretendia excluir seus dados pessoais da ferramenta de busca, especialmente com relação ao fato de que seu imóvel, nos anos 1990, foi levado a leilão para pagamento de dívidas com a previdência social da Espanha, sendo que o débito chegou a ser quitado de modo a evitar a venda judicial. Foi rejeitado o argumento da Google de que somente exibe conteúdos indexáveis (que estão online e são passíveis de serem encontrados) e não teria responsabilidade sobre o seu conteúdo.  Embora satisfeito o débito, as dívidas e a referência ao leilão continuaram aparecendo nas buscas pelo nome do interessado no site da Google, de maneira ofensiva à sua dignidade, não obstante se tratasse de informação pretérita e sem relevância social, tendo em vista a publicação, em 1998, pelo jornal espanhol La Vanguardia, de dois editais de leilão do bem em questão.  O Tribunal de Justiça Europeu considerou que o operador de um motor de busca sofre a incidência do Artigo 2.º, d, da Diretiva 95/46 da Comunidade Econômica Europeia, que define o responsável pelo tratamento de dados pessoais como "a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais".                A desindexação envolve a possibilidade de se se pleitear a retirada de certos resultados (conteúdos ou páginas) relativos a uma pessoa específica de determinada pesquisa, em razão de o conteúdo apresentado ser prejudicial ao seu convívio em sociedade, expor fato ou característica que não mais se coaduna com a identidade construída com a pessoa ou apresente informação equivocada ou inverídica. A desindexação não atinge a publicação em si, pois não importa na remoção de conteúdo de página da web, mas sim importa na eliminação de referências a partir de pesquisas feitas com base em determinadas palavras-chave10.   Outra figura que não se confunde com o direito ao esquecimento, a remoção de conteúdo, que pode funcionar como um dos instrumentos ou meios para o seu exercício, do ponto de vista processual, nos termos do artigo 497, parágrafo único do Código de Processo Civil, no campo das obrigações de fazer ou não fazer,  independentemente de dolo ou culpa11. Em outras palavras, pode haver o exercício do direito ao esquecimento sem remoção de conteúdo, cingindo-se o pedido à indenização por perdas e danos  ou a outras medidas de apoio. Uma corrente contrária ao direito ao esquecimento aponta um Estado censor da liberdade de imprensa, que, em troca de indenizações às vítimas, permitiria que tudo fosse publicado, apagando-se todos os danos às situações jurídicas existenciais. As vozes contrárias ao direito ao esquecimento argumentam, muitas vezes, que é necessário atribuir preferência à liberdade de informação, resolvendo-se a questão em futura indenização por danos causados. Afirma-se que haveria uma imprevisibilidade quanto à possibilidade jurídica de realização de programas televisivos, edição de livros e daí por diante, instaurando-se uma insegurança generalizada que poderia prejudicar a liberdade de informação em detrimento de toda a sociedade12. Mas a principal consequência do exercício do direito ao esquecimento, tendo em vista o princípio da precaução, deve ser a imposição de obrigações de fazer e não fazer, consagrando o "direito de não ser vítima de danos", tendo em vista, após a ponderação dos interesses envolvidos, a retirada do material ofensivo. O contrário afronta a principiologia de toda a responsabilidade civil contemporânea, de modo que a deturpação da projeção do ser humano sobre a esfera pública é frequentemente irremediável e a "marca" que lhe é atribuível publicamente não se apaga com o recebimento de qualquer soma em dinheiro. Segundo Anderson Schreiber13, indenizações pecuniárias são ineficazes na reparação de um dano que se liga à própria identificação social de um indivíduo e que pode acompanhá-lo de modo permanente por toda a vida. Se algum dos interesses em conflito deve contar com uma preferência apriorística, certamente é o interesse ligado à dignidade da pessoa humana. O argumento de que o interesse da sociedade pela livre informação prevalece sobre interesses individuais reedita perigosamente uma equação tipicamente autoritária, que defende o coletivo como sendo superior ao individual. Em se tratando de atributos essenciais da personalidade humana, ocorre o oposto: o individual é que deve prevalecer, em sintonia com a ideia de autonomia existencial do ser humano, que não pode sofrer intervenções fundadas no existencial do ser humano, que não pode sofrer intervenções fundadas no interesse alheio. O corpo do ser humano é inviolável, ainda que a sociedade possa ser beneficiada por tratamentos médicos compulsórios; a privacidade e a imagem do ser humano não podem ser usurpadas, ainda que um banco de dados universal pudesse dar mais segurança á coletividade contra a prática de crimes; e assim sucessivamente. O utilitarismo social não justifica violações a interesses existenciais do ser humano, que são importante conquista da humanidade14.  A reparação de danos somente ocorrerá excepcionalmente, caso se trate de ofensa consumada a situação jurídica existencial, não passível de remédio por meio da execução específica15.  O ideal deveria ter sido a LGPD mencionar expressamente este direito como o faz o art. 17 do Regulamento Geral Europeu sobre Proteção de Dados (General Data Protection Regulation - GDPR)16. Entretanto, tal omissão não impede o reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito de personalidade autônomo. Esperamos que o STF esteja sensível às ponderações feitas neste artigo, conforme a melhor doutrina e jurisprudência sobre a matéria. Para além do julgamento do dia 30/9/2020 sobre o caso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados poderá, assim esperamos, atuar de maneira eficiente, recebendo reclamações dos titulares de dados conforme previsto no inciso V do art. 55-J da LGPD, reiterado no inciso V do art. 2º do decreto 10.474, de 26 de agosto de 2020.  Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-Doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP).  Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada.  Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça. Professor associado de Direito Civil-UFRJ. Doutor em Direito Civil pela UERJ. Pós-doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Integrante do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados. __________ 1 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito ao Esquecimento. Disponível aqui. Último acesso em 28/9/2020. 2 PARENTONI, Leonardo. O Direito ao Esquecimento (Right to Oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito & Internet III: Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015. pp. 539 - 618. 3 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito ao esquecimento e internet: o fundamento legal no Direito Comunitário Europeu, no Direito Italiano e no Direito Brasileiro. In: CLÊVE, Clêmerson Merlin; BARROSO, Luis Roberto. Coleção Doutrinas Essenciais em Direito Constitucional: direitos e garantias fundamentais, volume VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015, p. 511 - 544. 4 Il diritto all'oblio: contributo allo studio della privacy storica. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009. p. 81. 5 TUCCI, José Rogério Cruz e. A "repercussão geral" como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário, In: Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 10, pp. 1223-1230, São Paulo: Revista dos Tribunais, agosto, 2015. 6 Agravo de Instrumento n° 0051483-50.2012.8.19.0000, julgado em 23/10/2012, rel. Des. Antônio Saldanha Palheiro. 7 Apelação no 1113869-27.2014.8.26.0100 - São Paulo - VOTO No 14.177 C - 2/16. 8 Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4a TURMA, giudicato a 28/05/2013. Disponível aqui, último acesso em 28/9/2020. 9 STF. 10 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito ao esquecimento: uma expressão possível do direito à privacidade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor. O Direito Civil entre entre o sujeito e a pessoa; estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p.267-268. 11 Código de Processo Civil,  art. 497, p.único: "Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção da tutela pelo  resultado prático equivalente. Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática , a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrëncia de dano ou da existência de culpa ou dolo". 12 SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento, In SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flavio. Direito Civil; Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2018, p.77-78. 13 SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento, In SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flavio. Direito Civil,  op.cit, p. 78. 14 SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento, In SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flavio. Direito Civil,  op.cit, p. 78. 15 Como já tivemos a oportunidade de escrever, o princípio da precaução volta-se à "eliminação prévia (anterior à produção do dano) dos riscos da  lesão, paralelamente ao espaço já ocupado pela reparação dos danos já ocorridos, cujo monopólio deixa de existir". MARTINS, Guilherme Magalhães. Risco, solidariedade e responsabilidade civil. In: ______. (coord.)Temas de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. xiii. 16 Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the Council of 27 April 2016 on the protection of natural persons with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data, and repealing Directive 95/46/EC (General Data Protection Regulation). Disponível aqui, último acesso em 2/8/2020.
Controle epidemiológico requer sistematização, que, por sua vez, necessita, como um prompt de comando algorítmico, de informação: a coleta de dados pessoais e de dados sobre a situação da infraestrutura do sistema de saúde das regiões atingidas. O combate à COVID-19 demandou, portanto, os dados, sempre acurados, a refletir a realidade de cada instante. Isso somente foi possível tendo em vista algumas ferramentas, como a Inteligência Artificial, o Big Data, dentre outras. A "gripe espanhola" (assim conhecida após o Rei Afonso XIII e grande parte do Gabinete do governo espanhol convalescerem-se da doença, e divulgarem-na seriamente ao mundo), ou "gripe brasileira", no Senegal, ou "soldado de Nápoles", em Madrid, ou até "oença dos bolcheviques", na Polônia1, era, no início de 1918, tão incerta quanto o seu nome.  No entanto, o seu legado foi a revolução do modo de lidar com a saúde pública: a medicina socializada foi gradualmente sendo implementada em diversos países (inicialmente, na União Soviética)2 e a epidemiologia, como o estudo das causas e dos efeitos das patologias, considerada como uma ciência. Na Áustria, em 1919, foi inaugurada uma organização internacional de combate às pandemias - a precursora da OMS. Diversos países criaram seus ministérios da saúde apenas após a pandemia, durante a década de 1920. Na União Soviética, em 1924, o médico do futuro foi descrito como o profissional que teria a capacidade de não somente curar, mas de sugerir medidas de prevenção. É esta a visão que influenciou os sistemas públicos de saúde durante as décadas seguintes. É neste contexto que entra o âmbito epidemiológico - e a utilização de dados pessoais relativos à saúde, ou seja, de uma categoria de dados pessoais sensíveis3. A epidemiologia é o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas: enquanto a clínica é o estudo da doença no indivíduo, realizando análises casuísticas. A epidemiologia estuda os problemas de saúde em grupos de pessoas - por vezes, grupos pequenos, porém, majoritariamente, envolvendo populações numerosas4, de acordo com a Associação Internacional de Epidemiologia (IEA, em inglês), já em 1973. No contexto epidemiológico, a capacidade de contágio de um microorganismo é denominada de R0. R0=1 significa dizer que uma pessoa infectada infecta uma outra. R0>1 significa que uma pessoa infectada está a infectar muitas outras, em crescimento exponencial - o que desenvolve, ao passar do tempo, um contexto de epidemia ou, mais gravosamente, de pandemia5. No gráfico a seguir, é representada a situação da capacidade de contágio (da infectividade), no Brasil, da Covid-19, do início de março até meados de setembro de 2020, com dados tratados por Flávio Figueiredo6: Figura I: Infectividade estimada no Brasil pela SARS-CoV-2, entre 03 de março e 13 de setembro de 2020. Observa-se que o contágio por pessoa no Brasil ultrapassou a marca de seis, ou seja, uma pessoa foi capaz de contaminar outras seis, durante o período de proliferação do vírus, no mês de março, havendo um decréscimo nos meses posteriores, chegando, recentemente, a um índice de infectividade menor que um (R0<1), o que pode indicar a passagem do plateau da doença - a depender, por exemplo, da manutenção da taxa atual de isolamento social e do reforçamento da cultura de prevenção. Neste contexto, pergunta-se: qual a utilidade na exposição dos dados estatísticos da infectividade da Covid-19? Essencialmente, proporcionar os dados para o planejamento, para a execução e para a avaliação das ações de prevenção e contenção do vírus, estabelecendo prioridades para cada região, mais ou menos atingidas, isto para os agentes de saúde e para os policymakers. Estes últimos devem estar atentos aos estudos da epidemiologia sem se descuidar dos outros interesses da sociedade - neste caso, também a proteção dos dados pessoais relativos à saúde. Destaca-se que a proteção aos dados pessoais já foi reconhecida como um direito fundamental pelo STF no julgamento das ADIs 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393, suspendendo os efeitos da Medida Provisória n. 954/2020. Neste julgado, a Ministra Relatora Rosa Weber destacou que, no atual estágio da sociedade informacional, não existem dados pessoais insignificantes ou inofensivos e que o grande volume de informações coletadas é tratado com outras informações, resultando em valiosos perfis de cada pessoa, podendo ser utilizados para inúmeras finalidades, seja pelo Poder Público, seja pelos entes privados. Neste sentido, constatou-se uma corrida desenfreada pela coleta e pelo tratamento de dados pessoais, durante este período pandêmico, v.g., por softwares de localização de pessoas, em meio ao monitoramento do isolamento na pandemia, desenvolvidos e utilizados em diversos países, inclusive no Brasil (como o SIMI - Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente do Estado de São Paulo, cujas irregularidades já foram pauta de Isadora Maria Roseiro Ruiz e Cristina Godoy Bernardo de Oliveira7, nesta coluna). Todavia, percebe-se que os dados pessoais sensíveis são protegidos com maior rigor na LGPD. Entendem-se por dados pessoais sensíveis as informações sobre origem racial e étnica, convicção religiosa, opinião política filiação sindical, de caráter religioso, filosófico ou político e informações sobre a saúde, vida sexual, dado genético ou biométrico, conforme o art. 5º, inc. II da LGPD, em vigor desde 18 de setembro de 20208. Portanto, para o tratamento destes dados pessoais, deve-se atentar às regras de tratamento de dados previstas no art. 11 da LGPD9, quais sejam: - consentimento do titular ou seu responsável legal de forma específica e destacada; - cumprimento de obrigação legal ou regulatória; - pela administração pública quando necessários à execução de políticas públicas; - para a realização de estudos por órgão de pesquisa (garantida a anonimização sempre que possível); - exercício regular de direito; obrigação legal ou regulatória; - para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; - para a tutela da saúde; e - para a prevenção à fraude e à segurança do titular de dados. Dentre estas bases de tratamento de dados sensíveis, as alíneas "e" e "f" (acima, em destaque), além do art. 13 da LGPD, bem como o que dispõe o vigente Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005, e promulgado pelo decreto 10.212/202010, sobretudo em relação ao seu art. 45. Quanto ao art. 11 da LGPD, faz-se referimento à alínea "e" (para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro) e à alínea "f", relativamente à "tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária". Quanto ao seu art. 13, quando da realização dos estudos de saúde pública - "os órgãos de pesquisa poderão ter acesso a bases de dados pessoais, que serão tratados exclusivamente dentro do órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas e mantidos em ambiente controlado e seguro, conforme práticas de segurança previstas em regulamento específico e que incluam, sempre que possível, a anonimização ou pseudonimização dos dados, bem como considerem os devidos padrões éticos relacionados a estudos e pesquisas" - cujo acesso aos dados ainda deverá ser objeto de regulamentação pela ANPD e pelas autoridades de saúde, como impõe o § 3° do referido artigo. Quanto ao art. 45 do Regulamento Sanitário Internacional, faz-se referimento à transferência internacional de dados pessoais relativos à saúde, de valor fundamental no âmbito da reabertura de fronteiras e circulação de pessoas e da necessidade do monitoramento:  "1. As informações de saúde coletadas ou recebidas por um Estado Parte de outro Estado Parte ou da OMS, consoante este Regulamento, referentes a pessoas identificadas ou identificáveis, deverão ser mantidas em sigilo e processadas anonimamente, conforme exigido pela legislação nacional. 2. Não obstante o Parágrafo 1º, os Estados Partes poderão revelar e processar dados pessoais quando isso for essencial para os fins de avaliação e manejo de um risco para a saúde pública, no entanto os Estados Partes, em conformidade com a legislação nacional, e a OMS, devem garantir que os dados pessoais sejam: (a) processados de modo justo e legal, e sem outros processamentos desnecessários e incompatíveis com tal propósito; (b) adequados, relevantes e não excessivos em relação a esse propósito; (c) acurados e, quando necessário, mantidos atualizados; todas as medidas razoáveis deverão ser tomadas a fim de garantir que dados imprecisos ou incompletos sejam apagados ou retificados; e (d) conservados apenas pelo tempo necessário." É de se destacar, por fim, a imprescindibilidade do conhecimento, por parte dos policymakers, desse equilíbrio entre as necessidades da proteção aos direitos e liberdades fundamentais (dentre eles, a proteção de dados pessoais11) e do relevo da medicina epidemiológica, especialmente, capaz de sublinhar os efeitos de escala. Portanto, todo tratamento de dados pessoais deve atender à uma finalidade determinada, observada a base legal para o referido tratamento. Por isso, todas as ferramentas de tratamento de dados pessoais sensíveis devem observar, preferencialmente, o consentimento do titular de dados, que deve anuir às finalidades especificadas de forma destacada. A tutela da vida e da saúde do titular de dados e de terceiros, como duas das bases de tratamento, devem observar a real eficácia ao combate da disseminação da doença, a fim de justificar a conduta. De qualquer maneira, um pressuposto importante para realizar o tratamento de dados pessoais sensíveis em massa, ainda que num contexto pandêmico como o atual, é o Relatório de Impacto, entendido como "documentação do controlador que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco", nos termos do inc. XVII do art. 5º da LGPD. Em suma, deve-se buscar um equilíbrio necessário entre o tratamento de dados pessoais, em épocas históricas de pandemia, e a imperiosa proteção aos titulares dos dados pessoais, sem ignorar, por óbvio, os estudos epidemiológicos - como destacado por Ferreira Gullar, em 1962, em Poema Brasileiro12: "No Piauí,de cada 100 crianças que nascem78 morremantesde completar8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idadeantes de completar 8 anos de idade."  E cada uma tem um nome.  Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-Doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP).  Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada. Kelvin Peroli é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, com experiência acadêmica na Seconda Università degli Studi di Napoli (Itália). Membro dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Pesquisa do CNPq. Integrante do Grupo de Estudos "Tech Law", do Instituto de Estudos Avançados da USP. Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Membro do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Autor de livro e artigos sobre Direito Digital. __________ 1 FRANCIS, Gavin. The Untreatable. London Review of Books, vol. 40, n. 02, 25 de janeiro de 2018. Disponível aqui. Acesso em 5/9/2020. 2 SPINNEY, Laura. The 1918 Flu Pandemic that revolutionized Public Health: mass death changed how we think about illness, and Government's role in treating it. Zócalo Public Square, 26 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 3 Cf. PEROLI, Kelvin. O que são dados pessoais sensíveis? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 4 WHITE, Kerr Lachlan. Contemporary Epidemiology. International Journal of Epidemiology, vol. 3, n. 4, dezembro de 1974, pp. 295-303. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 5 MARRONE, Cristina. Coronavirus, che cosa è l'indice Rt e che differenza c'è con L'R0. Corriere della Sera, 17 de maio de 2020. Disponível aqui. Acesso em 5/9/2020. 6 FIGUEIREDO, Flávio. Estimativas de R(t) por Estados do Brasil. Disponível aqui. Acesso em 19/9/2020. 7 RUIZ, Isadora Maria Roseiro; OLIVEIRA, Cristina Godoy Bernardo. Os 4 problemas do Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente do governo de SP. Migalhas, 14 de agosto de 2020. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 8 Cf. PEROLI, Kelvin. O que são dados pessoais sensíveis? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 9 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de Lima. O que é a LGPD? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Diponível aqui. Acesso em 7/9/2020. 10 BRASIL. Decreto 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Brasília, Diário Oficial da União, 31 de janeiro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 6/9/2020. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. Precisamos da previsão de um direito fundamental à proteção de dados no texto da CF? Consultor Jurídico, 04 de setembro de 2020. Disponível aqui. Acesso em 5/9/2020. 12 MONTEIRO, Elisa. Literatura em tempos de pandemia. ADUFRJ, 27 de junho de 2020. Disponível aqui. Acesso em 7/9/2020.
Há grande expectativa quanto aos impactos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira. Sua própria vigência tem sido objeto de amplas discussões e tem gerado controvérsias acerca dos desdobramentos que poderá vir a ter, especialmente quanto às sanções administrativas que prevê (artigos 52 a 54) e à responsabilidade civil (artigos 42 e seguintes). O legislador brasileiro não cuidou, todavia, de aspectos penais relacionados às más práticas que envolvam dados pessoais, e este é um debate que suscita reflexões. Por isso, notícia recente informa que uma comissão de juristas está cuidando da elaboração de um anteprojeto voltado exatamente a este fim1. Uma das intenções é regulamentar a utilização de dados pessoais e as hipóteses de fornecimento nos casos de investigação penal, sendo que a hipótese de interesse público não poderia ser utilizada de forma ampla e irrestrita. Não se trata, portanto, da criação de tipos penais especificamente relacionados às violações de dados pessoais. Noutros ordenamentos jurídicos, porém, tem-se previsões de natureza penal mais específicas, e alguns breves apontamentos podem propiciar reflexões importantes sobre o tema e até mesmo sobre sua viabilidade no Brasil. Exemplo emblemático é o Japão, onde vigora uma legislação especificamente voltada à proteção de dados pessoais desde 30 de maio de 2017 - trata-se da   (lê-se "Kojin joho no hogo ni kansuru horitsu", na transliteração Hepburn), a "lei de proteção de dados pessoais" japonesa - que prevê tipos penais específicos em seus artigos 82 a 88. As penas são, basicamente, de multa, à exceção do crime descrito no artigo 84, que prevê pena restritiva de liberdade de até 6 (seis) meses, além de multa, para hipóteses variadas de violações (tendo em vista que o dispositivo faz remissão ao artigo 42, ns. 2 e 3):  Artigo 84. A pessoa que violar os termos do artigo 42, parágrafo (2) ou parágrafo (3) será punida com pena de prisão, com possibilidade de trabalho, por período não superior a seis meses ou multa de até 300.000 ienes. (tradução livre) Artigo 42. (...) (2) A Comissão de Proteção de Dados Pessoais pode ordenar ao operador de tratamento de dados pessoais que atue em conformidade com recomendação por ela expedida, ao reconhecer que uma violação grave aos direitos e interesses de um indivíduo é iminente quando já tenha, anteriormente, expedido uma recomendação ao agente de tratamento de dados pessoais, nos termos do parágrafo anterior, e este não tenha realizado ação em conformidade com a recomendação, tampouco apresentado fundamento legítimo para não fazê-lo. (tradução livre) (3) A Comissão de Proteção de Dados Pessoais pode, não obstante as disposições dos dois parágrafos anteriores, ao reconhecer a necessidade de tomar medidas urgentes porque há um fato que prejudica gravemente os direitos e interesses de um indivíduo, nos casos em que um operador de dados manipula informações pessoais e tenha violado as disposições dos Artigos 16, 17, 20 a 22, do Artigo 23, parágrafo (1), do Artigo 24 ou do Artigo 36, parágrafo (1), parágrafo (2) ou parágrafo (5), ou nos casos em que tenha havido violação às disposições do Artigo 38 (gestão de dados anonimizados), ordenar ao operador que tome as medidas necessárias para retificar a violação, como suspender o ato respectivo. (tradução livre)2.  O exemplo do país asiático não é isolado. Na Itália, um dos países pioneiros na positivação de normas para a proteção de dados pessoais, as alterações realizadas pelo decreto legislativo 101/2018 à Parte III, do Título II, do decreto legislativo 193/2003 (Codice della Privacy), justamente para adaptar a legislação já existente aos rigores do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (2016/679), da União Europeia (o conhecido RGPD europeu), ampliou o escopo protetivo da norma local, adaptando-a aos regramentos supranacionais, mas mantendo a tipificação penal. Basicamente, o DL 101/2018 passou a prever seis condutas típicas: (i) tratamento ilícito de dados (art. 167); (ii) comunicação e difusão ilegais de dados pessoais processados em grande escala (art. 167-bis); (iii) aquisição fraudulenta de dados pessoais processados em grande escala (art. 167-ter); (iv) comunicação falsa de ilícito à Autoridade Garante (Garante della Privacy) ou embaraço ao cumprimento, por esta, de suas funções institucionais (art. 168); (v) inobservância de provimentos emanados da Autoridade Garante (art. 170); (vi) violação de disposições em matéria de controle (art. 171). Além de anotar o fato de que, no referido país, a tipificação penal por decreto legislativo não viola o princípio da reserva legal3, cumpre analisar a hipótese clara de novatio legis incriminadora, na medida em que a redação anterior contemplava apenas a punição ao tratamento ilícito de dados (art. 167); a comunicação falsa de ilícito, embora sem a remissão - inserida pela reforma de 2018 - à possibilidade de enquadramento típico noutro delito, com pena mais grave ("[s]alvo che il fatto costituisca più grave reato", art. 168); e a omissão de medidas de proteção (art. 169), mantida com a mesma redação. Quanto à primeira figura, qual seja, o tratamento ilícito de dados (art. 167), a menos que o ato constitua uma ofensa mais grave, quem quer que, a fim de obter lucro para si ou para outrem ou causar danos à pessoa, agindo em violação às regras definidas, será punido com reclusão, que poderá variar de seis meses a um ano e seis meses. E, nos casos mais graves, até três anos4. A comunicação e difusão ilegais de dados pessoais processados em grande escala (art. 167-bis) é punível com pena de reclusão de um a seis anos5. Por sua vez, aquisição fraudulenta de dados pessoais processados em grande escala (art. 167-ter) é punível com pena de reclusão de um a quatro anos6. Enfim, o não cumprimento das funções de garante, devido à comunicação falsa ou à criação de embaraços (art. 168), gera sanção penal (pena de reclusão de três meses a dois anos) a quem o fizer, tendo ocorrido alteração, neste ponto, apenas quanto à já mencionada ressalva inserida na parte inicial do dispositivo. Os artigos 170 e 171, por outro lado, sofreram apenas alterações textuais para a correção de remissões feitas a outros dispositivos legais. Neste ponto específico, nota-se a preocupação do legislador italiano com a sanção de eventos relacionados à utilização indevida de dados pessoais. Indo além das sanções administrativas e da responsabilidade civil visualizadas nos artigos 77 a 84 do RGPD, tem-se tipos penais7, o que revela a preocupação extrema em punir determinadas condutas, notadamente em cenários de comercialização de dados e de criação de embaraços ou empecilhos ao exercício das funções da Autoridade Garante. Outrossim, a Lei de Proteção de Dados Pessoais Portuguesa (lei 58/2019), que regulamenta o RGPD, estabelece como crime a utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da coleta. Nesse diapasão, o art. 46º da referida norma prevê a pena de prisão até um ano ou multa para a referida hipótese. No mesmo sentido, o acesso indevido de dados pessoais também é combatido pelo art. 47 com prisão ou multa. Há naquele diploma a hipótese para desvio de dados, destruição de dados, inserção de dados falsos e também tipo penal para a violação do dever de sigilo. A LGPD brasileira, embora admita a sanção penal ao fazer remissão específica aos crimes tipificados no Código de Defesa do Consumidor (artigo 52, §2º8), não a regulamenta, deixando ao legislador a missão de, em lei própria, tipificar condutas relacionadas à violação da proteção de dados. Com efeito, o objetivo da Comissão de juristas, é ampliar o espectro de aplicação material da LGPD. Atualmente, o microssistema protetivo dos dados pessoais não se sujeita às atividades de segurança pública, assim como de investigação e repressão de infrações penais, como dispõe o art. 4º da lei. De acordo com a informação exarada, o objetivo é vincular as hipóteses de tratamento de dados pessoais em persecução penal, efetivamente, para melhor circunscrever o interesse público nessas hipóteses de tratamento. Por oportuno, é importante observar que em matéria de tramitação processual, notadamente, no que concerne aos atos, a regra constitucional é da publicidade dos mesmos (art. 5º, LX, e 93, IX, da Constituição da República). Nesse sentido, inevitavelmente, em termos práticos, as eventuais adequações devem observar essa máxima. Naturalmente, por força de processo judicial ou do próprio inquérito, dados são tratados e, inclusive, expostos em sistemas públicos. Em sendo assim, as hipóteses de avanço da proteção de dados pessoais em matéria persecutória deverão encontrar apoio nas balizas dos princípios constitucionais que iluminam o sistema de justiça brasileiro. Desse modo, a estrutura principiológica da carta constitucional endereça os limites da publicidade dos atos por meio da redação do inc. IX do art. 93:  "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação".                Nessa senda, a opacidade do tratamento referenciado pela Constituição deve ser analisada no caso concreto, situação em que o Juiz detém legitimidade para mitigar a publicidade. Entretanto, ao que consta, a iniciativa pretende avançar no cerne dos agentes responsáveis por investigações e/ou gestões de informação sobre inteligência. Atualmente, a cooperação entre agentes ocorre sob a tutela do controle jurisdicional, que não esclarece o dever do uso de bases de dados, assim como compartilhamento de informações para fins de investigação. Como se sabe, a estrutura estatal possui marcante capacidade de gerenciamento, organização e processamento de dados pessoais dos cidadãos em geral. O uso indevido dessas informações, sem limitações claras, pode mitigar as garantias constitucionais que permeiam a relação entre o indivíduo e o Estado. Nesse sentido, observa-se que o compartilhamento de dados entre agentes de investigação, em suas linhas gerais, enquadra-se como flexão de hipótese de tratamento de dados. Sendo assim, o avanço da LGPD penal poderia prever sanções claras para hipóteses dessa natureza, resguardando a legitimidade para situações suportadas por decisões judiciais autorizadoras nos limites da finalidade requerida. Acreditar que as pretensões não comprometeram a liberdade investigativa é um equívoco. De outro modo, sob a ótica do contraditório, ampla defesa e, principalmente, paridade de armas, será possível o debate aprofundado pelas partes angularizadas em um determinado procedimento de natureza penal. Por fim, a referida comissão de juristas acena para a possibilidade de regulação da cooperação internacional em matéria de compartilhamento de dados. O tema é de extrema relevância. Contudo, destacamos que eventual previsão nesse sentido deve prever a hipótese de resguardo técnico hígido dos dados pessoais, assim como não fazer com que o compartilhamento de dados entre Estados promova a alimentação de bancos de dados pessoais transfronteiriços.  *José Luiz de Moura Faleiros Júnior é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado. **Juliano Madalena é professor de Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público. Doutorando e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também adquiriu o título de especialista em Direito Internacional. É graduado em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Mercosul e Direito do Consumidor - CNPQ/UFRGS. Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Digital e Advocacia Corporativa da Fundação Escola Superior do Ministério Público. __________ 1 IGNACIO, Laura. Comissão de juristas elabora proposta para a LGPD penal. Valor Econômico, 15 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em 16 set. 2020.  2 JAPÃO. Kojin joho no hogo ni kansuru horitsu [Lei para a Proteção de Dados Pessoais], No. 57/2003 (30 maio 2003), com alterações pela Lei No. 51/2016. Disponível, no original, aqui. Disponível, em tradução para o inglês, atualizada até as emendas realizadas pela lei 65/2015, aqui. Acesso em 16 set. 2020.  3 O princípio da reserva legal, em matéria de direito penal, implica a expressa proibição de punir uma conduta específica na ausência de uma lei preexistente que a constitua como crime. Está previsto no art. 25, II, da Constituição italiana. Ocorre que, no sistema jurídico da Itália, para parte da doutrina, decretos legislativos e decretos-lei, que são comumente utilizados, não são compatíveis com a reserva legal. A doutrina dominante, porém, entende que tanto o decreto legislativo, quanto o decreto-lei, podem ser fontes do direito penal, uma vez que é o mesmo sistema constitucional que reconhece esses atos normativos de forma eficiente como ocorre quanto às leis comuns, em sentido formal. Nesse sentido, a doutrina anota que, na hipótese do decreto legislativo, o princípio da reserva legal é garantido pelo fato de o Parlamento preservar, com a lei de delegação, a iniciativa legislativa e a identificação das escolhas políticas criminais, ao passo que, no caso do decreto-lei, o mesmo requisito de proteção é satisfeito através do mecanismo de conversão do decreto em lei. (MANTOVANI, Ferrando. Principi di diritto penale. 2. ed. Pádua: Cedam, 2007, p. 11-16.).  4"Art. 167 (Trattamento illecito di dati).   1. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, chiunque, al fine di trarre per se o per altri profitto ovvero di arrecare danno all'interessato, operando in violazione di quanto disposto dagli articoli 123, 126 e 130 o dal provvedimento di cui all'articolo 129 arreca nocumento all'interessato, è punito con la reclusione da sei mesi a un anno e sei mesi.  2. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, chiunque, al fine di trarre per se o per altri profitto ovvero di arrecare danno all'interessato, procedendo al trattamento dei dati personali di cui agli articoli 9 e 10 del Regolamento in violazione delle disposizioni di cui agli articoli 2-sexies e 2-octies, o delle misure di garanzia di cui all'articolo 2-septies ovvero operando in violazione delle misure adottate ai sensi dell'articolo 2-quinquiesdecies arreca nocumento all'interessato, è punito con la reclusione da uno a tre anni.  3. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, la pena di cui al comma 2 si applica altresì a chiunque, al fine di trarre per se' o per altri profitto ovvero di arrecare danno all'interessato, procedendo al trasferimento dei dati personali verso un paese terzo o un'organizzazione internazionale al di fuori dei casi consentiti ai sensi degli articoli 45, 46 o 49 del Regolamento, arreca nocumento all'interessato.  4. Il Pubblico ministero, quando ha notizia dei reati di cui ai commi 1, 2 e 3, ne informa senza ritardo il Garante.  5. Il Garante trasmette al pubblico ministero, con una relazione motivata, la documentazione raccolta nello svolgimento dell'attività di accertamento nel caso in cui emergano elementi che facciano presumere la esistenza di un reato. La trasmissione degli atti al pubblico ministero avviene al più tardi al termine dell'attività di accertamento delle violazioni delle disposizioni di cui al presente decreto.  6. Quando per lo stesso fatto è stata applicata a norma del presente codice o del Regolamento a carico dell'imputato o dell'ente una sanzione amministrativa pecuniaria dal Garante e questa è stata riscossa, la pena è diminuita."  5 "Art. 167-bis (Comunicazione e diffusione illecita di dati personali oggetto di trattamento su larga scala).   1. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, chiunque comunica o diffonde al fine di trarre profitto per se' o altri ovvero al fine di arrecare danno, un archivio automatizzato o una parte sostanziale di esso contenente dati personali oggetto di trattamento su larga scala, in violazione degli articoli 2-ter, 2-sexies e 2-octies, è punito con la reclusione da uno a sei anni.  2. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, chiunque, al fine trarne profitto per se' o altri ovvero di arrecare danno, comunica o diffonde, senza consenso, un archivio automatizzato o una parte sostanziale di esso contenente dati personali oggetto di trattamento su larga scala, è punito con la reclusione da uno a sei anni, quando il consenso dell'interessato è richiesto per le operazioni di comunicazione e di diffusione.  3. Per i reati di cui ai commi 1 e 2, si applicano i commi 4, 5 e 6 dell'articolo 167."  6 "Art. 167-ter (Acquisizione fraudolenta di dati personali oggetto di trattamento su larga scala).  1. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, chiunque, al fine trarne profitto per se' o altri ovvero di arrecare danno, acquisisce con mezzi fraudolenti un archivio automatizzato o una parte sostanziale di esso contenente dati personali oggetto di trattamento su larga scala è punito con la reclusione da uno a quattro anni.  2. Per il reato di cui al comma 1 si applicano i commi 4, 5 e 6 dell'articolo 167." 7 A responsabilidade civil e seus desdobramentos administrativos estão contemplados no regulamento europeu e na lei brasileira, mas, nota-se uma lacuna no que diz respeito à tutela penal que, em eventos relacionados às violações de dados, se entrelaça fortemente às outras esferas punitivas. Nesse contexto, para uma melhor compreensão da correlação entre responsabilidade civil e crimes, confira-se: DYSON, Matthew. Tort and crime. University of Cambridge Faculty of Law, Cambridge, Research Paper n. 48, p. 1-26, out. 2013. Disponível aqui. Acesso em 19 jun. 2020. 8 "Art. 52. (.) § 2º O disposto neste artigo não substitui a aplicação de sanções administrativas, civis ou penais definidas na lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, e em legislação específica."
sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Certificarte: a arte da certificação em LGPD

Quando uma legislação possui normas de conteúdo programático, principiológico, aspiracional e sancionador a ponto de significar um verdadeiro marco regulatório  sobre o seu  objeto, levando àqueles que estarão sobre os seus efeitos, a tomarem providencias várias de adaptabilidade  e planejarem-se econômico e financeiramente para que possam bem cumprir o seu conteúdo e evitar a ação estatal sancionadora, mormente quando a norma não se encontra diretamente relacionada ao seu objetivo ou objeto social de atuação, diz-se que ocorreu uma externalidade negativa onde, objetivando a perenização das atividades praticadas pelo agente econômico, deve imediatamente ser internalizada, com margem de cautela, observando-se uma programação plena e eficiente para a absorção interna destes impactos gerados pela norma, independentemente dos eventuais sacrifícios econômicos a serem efetivados.  Com a LGPD vigorante, acompanhada das normas de estruturação regimental da recém-criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (decreto 10.474/20), não será diferente. Todavia, estas reflexões procurarão demonstrar que o advento destas normas de caráter protetivo, se trata sim de uma externalidade, porém,  positiva na medida em  que contribuirá não só para a harmonização de mercados e melhor proteção da privacidade da pessoa, como também, gerará segurança sistêmica e imporá claros limites na atuação das empresas e entes institucionais públicos ou privados,  a quem a norma se destina. Dentro deste escopo, pretende-se  apresentar, mesmo em visão absolutamente simplista,  algumas das  razões pelas quais,  devem empresas e instituições, independente das suas  naturezas jurídicas, familiarizarem-se com a cultura de proteção de dados e certificarem-se internamente acerca dos reflexos da LGPD sobre as suas atividades, revisando todos os seus processos e sistemas, buscando eventuais gaps de segurança, analisando setores, coletas e formas de tratamento de dados, preparando pessoal interno ou externo para vivenciar esta  realidade, contribuindo para a especialização e  sustentabilidade  no tratamento dos dados, em sintonia com os  princípios da prevenção, responsabilização e prestação de contas aos entes públicos regulatórios1. A outro lado, procurar-se-á demonstrar a necessidade de se incluir no contexto da adequação sistêmica esperada, o desenvolvimento da cultura da certificação  externa,  para com relação aos processo e  cautelosos procedimentos  que serão efetivados com vistas à adequabilidade à citada lei, não como forma de burocratizar ou onerar  as atividades organizacionais que já são por demais complexas, mas sim,  como forma de contribuir preventivamente para a contenção de danos, efetivando-se a  necessária proteção ao cidadão, gerando a possibilidade de   redução da  potencialização de riscos, danos e  impactos nocivos, com reflexos na eventual  aplicação  de  sanção decorrente de evento e/ou  incidente de vazamento  no tratamento ou na exposição de dados. A partir do momento em que houve a atualização pelo Supremo Tribunal Federal, da proteção constitucional do direito à proteção de dados como categoria autônoma no rol de direitos fundamentais do cidadão2, com conteúdo normativo independente dos direitos até então praticados com base na proteção ao sigilo das comunicações, não se pode dizer que uma norma de caráter protetivo que representa um minissistema completo, na sua pretensão e função social e econômica, possa ser visto como uma externalidade negativa cuja entronização na corporação,  deva ser efetivada apenas e tão só  como parte do cumprimento de regras de compliance ou para se evitar expressivas  perdas econômicas futuras. Trata-se, na realidade, da colaboração de todos os agentes e cidadãos para a construção de uma sociedade justa e solidária, observados os princípios cooperativos e  preceitos voltados para a proteção da ordem econômica. E será neste ambiente que o agente responsável, econômico ou institucional, independente de sua natureza, deverá certificar-se da adequabilidade da operação sobre o seu controle, com relação a todos os aspectos protetivos previstos em LGPD,  de maneira que possa ter melhor certeza de que terá dado guarida  ao direito fundamental do cidadão à proteção de dados. Esta certificação primária lhes compete,  não só em razão dos deveres de diligencia próprios daqueles que possuem  atividades empresarias3,  onde há a preponderância  legislativa de incentivos à criação de estruturas e programas voltados para o cumprimento de regras de compliance, como também por parte de todos os entes públicos e privados que, de alguma forma, tratam dados pessoais de terceiros. Estas condutas preventivas, acabam por contribuir para a melhoria da própria atividade e ou dos serviços ofertados, gerando clara responsividade por parte dos titulares dos dados, quer em razão destes passarem a ter ciência de que há real interesse dos agentes de qualquer natureza na sua proteção, quer porque são sabedores de que existem normas rígidas de caráter protetivo que podem penalizar excessivamente o não tratamento; a falha de tratamento ou qualquer problema que possa atingi-los, em razão de não terem  adequadamente manifestado a sua vontade ou, ainda, obtido  o necessário  respeito ao domínio de sua opção voltada para a concordância na utilização de seus dados  no âmbito de uma  finalidade especifica, direito de cancelamento, suspensão, modificação ou alteração no nível de seu consentimento. Se  a autonomia da pessoa jurídica a quem cabe realizar o tratamento de dados, não pode ser considerada como elemento de justificação de falhas ou negligencia na administração, a ponto de mitigar as consequências de um tratamento ineficiente de dados, é fato que  tanto os próprios dados, como seu sistema de tratamento e forma de utilização,  estão sendo vistos como ativos monetizáveis de tal natureza que, a depender dos métodos classificatórios e analíticos empregados, podem ressignificar os valores intangíveis de um estabelecimento empresarial. Também será fato que,  quanto mais o agente de tratamento se certificar de que as suas bases coletadoras estão eficientemente adequadas e seguras, no que tange aos riscos próprios do ambiente informacional e a necessária  obtenção de consentimento, quando for pertinente, ou de aplicação de outras bases legais autorizadoras de uso trazidas pela lei,  mais terá contribuído para a proteção dos titulares e o fomento e monetização deste importante ativo imaterial. Caberá assim,  aos agentes econômicos e institucionais que responsáveis pela efetivação da coleta e do tratamento de dados, entre outras verificações,  certificarem-se  de que este tratamento é regular e observa a legislação4, fornecendo e adotando as medidas de segurança esperadas, com a observância do modo de realização, resultados e  riscos inerentes, sempre lastreados nas  técnicas de tratamento de dados disponíveis à época. Quando da certificação interna, é de se adotar os necessários cuidados,  na qualificação e formação do  quadro de agentes de tratamento de dados composto pelo controlador e operador, como também, na contratação de encarregado (DPO-Data Protection Officer) interno ou externo, que  desenvolverá, além dos seus serviços regulares,  a integração  com a ANPD - Autoridade  Nacional de Proteção de Dados. E será neste ambiente que poderá ocorrer a certificação primária,  rigorosa e eficiente dos processos e procedimentos internos, voltados para a verificação da  qualidade dos dados, sistemas informáticos e de segurança, nível de adequação no  tratamento de dados sensíveis, de crianças e de idosos, eventuais falhas sistêmicas, além da análise nas operações de compartilhamento e ou de  transferência internacional de dados, implantando-se o necessário  sistema de  governança de dados5. A outro lado, não se pode descuidar das atividades a serem realizadas pelos agentes de qualquer natureza,  com vistas a gerar segurança na proteção de dados e a clara participação nas políticas públicas institucionais deste segmento, atividades estas,   voltadas para a obtenção  de  níveis  de  certificações institucionais. As certificações institucionais cumprem importante papel quando vigorantes as normas de natureza programática e com viés regulatório e sancionador, pois,  além de  atestarem níveis de segurança e de capacitações sistêmicas no tratamento de dados, também poderão certificar experiências pessoais, institucionais  ou empresariais e, ainda, o "estado da arte" com vistas a detectar um certo momento tecnológico, suas  evoluções ou, ainda,  lacunas e condições sistêmicas específicas como detalharemos oportunamente. A certificação institucional pode assim, ser entendida como uma comprovação realizada por uma Instituição ou ente independente, relativa a processos, produtos, serviços,  sistemas e pessoas. Seu objetivo maior é apontar se determinada empresa, instituição ou agente econômico, cumpre os padrões e normas técnicas exigidos e regularmente aceitos, gerando a comprovação da conformidade, com reflexos positivos  na  confiabilidade do produto ou do serviço ofertado, bem como, nos sistemas, pessoas  e processos envolvidos.  A certificação de adequabilidade com relação às normas e processos previstos em LGPD, deve abranger todo o ecossistema, gerando resultados de excelência e agregando valor econômico.    A outro lado, a certificação institucional de pessoas objetiva comprovar determinadas competências daqueles que pretendam obtê-la como forma precedente ao exercício de atividades técnicas específicas. Neste contexto, caberá às entidades certificadoras que possuam tal escopo, conceder certificados em vários níveis ao interessado, com prazos de duração e de validade especificados, mediante o cumprimento de determinados  critérios técnicos estabelecidos e parâmetros específicos e objetivos  a serem cumpridos pelo candidato. Como mencionado, há vários níveis de certificações possíveis e, ainda, várias espécies de entidades certificadoras, algumas independentes e autônomas e outras vinculadas a instituições nacionais ou internacionais, com objetivos certificatórios e tecnologias específicas, voltadas ao que pretendem realizar neste segmento.  Os parâmetros de certificação podem estar relacionados tanto à normas internas da entidade certificadora pública ou privada, como também a padrões internacionais, a exemplo das regras técnicas editadas pela International Organization for Standardization - ISO que proporciona especificações para produtos, serviços e sistemas visando assegurar a qualidade, eficiência e segurança com benefícios ao comércio internacional6.  No que se refere a certificação e acreditação inclusive de pessoa, registra-se a experiência europeia na geração de ferramenta que permite aos profissionais interessados, a confirmação de suas aptidões, habilidades e conhecimentos,  atestando-as em face de terceiros e  proporcionando maior comprometimento e segurança. Dentro deste escopo situa-se a  ENAC - Entidad Nacional de Acreditación, entidade fundada há mais de vinte anos, vinculada  a um ecossistema global de certificação, reconhecido em mais de sessenta países, cuja representante europeia é a entidade denominada EA-European Accreditation que opera na instrumentalização da certificação a nível internacional, como forma de medir competências.    No Brasil, entidades públicas ou privadas que pretendam instrumentalizar as certificações de sistemas, processo, serviços, produtos ou de pessoas, de forma  vinculada a entes públicos certificatórios,  devem  cumprir não só as  disposições do SBC-Sistema Brasileiro de Certificação que possui como organismo de acreditação Inmetro - Instituto Nacional de  Metrologia, Qualidade e Tecnologia,  como também, às eventuais normas a serem editadas pela  ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados,  que possam estar voltadas para a acreditação ou para a   certificação em seus diversos níveis. As entidades que se habilitarem e se credenciarem para conduzir e conceder a  certificação de conformidade, com base nos princípios e políticas adotados no âmbito do SBC e nos critérios, procedimentos e regulamentos estabelecidos pelo Inmetro (autarquia Federal vinculada ao Ministério da Economia), são designadas por  Organismo de Certificação Credenciado - OCC. Estes  Organismos de Certificação Credenciados pelo Inmetro, por sua vez, podem fazer acordos de reconhecimento de suas atividades com organismos de outros sistemas estrangeiros, para que suas certificações sejam aceitas mutuamente, desde que haja garantia de que tais certificações sejam realizadas segundo regras equivalentes às utilizadas no SBC. Na área de certificação voluntária, o OCC pode buscar o reconhecimento de entidades estrangeiras similares por meio de convênios, associações e subcontratações. Todavia, o OCC deve  atender continuamente os requisitos de acreditação estabelecidos pelo Inmetro e é  vedada a  sua participação na atividade de consultoria, de acordo com as normas e guias ABNT ISO/IEC e as recomendações dos foros internacionais, devendo exercer e acompanhar as atividades de certificação de acordo com os princípios e rotinas estabelecidos no âmbito do SBC- Sistema Brasileiro de Certificação. Qualquer entidade, independentemente de sua origem, pode ser credenciada como organismo de certificação, desde que atenda aos princípios e políticas do SBC e os critérios, regulamentos e procedimentos estabelecidos pelo Inmetro. Com o advento do Decreto nº. 10.474/2020, os assuntos relacionados à certificação em ambiente de proteção de dados, foram carreados ao Conselho Diretor, a quem compete, entre outras atividades, designar e fiscalizar organismos de certificação para a verificação da permissão para a transferência de dados internacional, como também, definir o conteúdo de cláusulas padrão e verificar, diretamente ou mediante designação de organismo de certificação, a garantia de cláusulas contratuais específicas, normas corporativas globais ou selos, certificados e códigos de conduta para transferência internacional por controlador de dados pessoais. O Conselho Diretor da ANPD funcionará, também, como revisor dos atos realizados por organismos de certificação, podendo, inclusive,  anulá-los quando forem tomados em descumprimento das disposições da LGPD. Tanto as certificações institucionais como as acreditações são voluntárias e,  além de um papel  contributivo na informação técnica acerca do objeto da análise, serão ferramentas auxiliares  dos agentes econômicos, quando eventualmente demandados, tanto administrativamente como civil ou  penalmente,  para comprovação de regularidades.  A exemplo temos o regramento do art. 43 da LGPD que trata da não responsabilização do agente quando este provar que não realizou o tratamento dos dados pessoais que lhe fora atribuído; embora tenha realizado o tratamento de dados pessoais, não violou a legislação de proteção de dados ou, ainda,  que o dano informado, decorreu de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros. Considerando-se, também, o elenco de sanções administrativas previsto no  art. 52 da LGPD,  a ser aplicado pela ANPD que compreende desde simples advertência buscando medidas corretivas, até a imposição de multas de variadas espécies e valores;  bloqueio ou eliminação de dados, além da suspensão parcial do funcionamento do banco de dados, até regularização da atividade infratora, chegando a suspensão total ou proibição desta atividade de tratamento de dados, é fato que a lei prestigia o pleno contraditório   ao mencionar a aplicabilidade de  sanções administrativas, deve ocorrer  somente após um procedimento que possibilite a oportunidade de ampla defesa, de forma gradativa, isolada ou cumulativa, de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Esta regra é objetiva e propugna pela consideração, na aplicação da sanção, dos seguintes  parâmetros e critérios: gravidade e natureza das infrações e   dos direitos pessoais afetados,  boa-fé do infrator,  vantagem auferida ou pretendida pelo infrator,  sua condição econômica,  cooperação, reincidência e grau de dano, além da  adoção de políticas de boas práticas e governança. A Adoção demonstrada e reiterada de mecanismos e procedimentos internos capazes de minimizar o dano, voltados ao tratamento seguro e adequado de dados, na forma da lei e, ainda,  a implantação de medidas corretivas associada a verificação da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção, são elementos complementares deste critério e  contribuem para demonstrar, em seu conjunto, a clara necessidade e a busca da habitualidade nos procedimentos de certificações institucionais concernentes às  atividades voltadas para o tratamento de dados. No Brasil, a ANPD, como órgão de regulação responsável por elaborar as diretrizes da Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade,  contribuirá, como mencionado, não só na  fiscalização e edição de  normas disciplinatórias no âmbito da certificação,  apresentando caminhos e rumos para o aprimoramento das entidades certificadoras públicas e privadas, como também, promover as ações cooperadas para a execução destas políticas,  em cumprimento de sua missão estimuladora da adoção de padrões que facilitem o exercício de controle dos titulares sobre os seus dados pessoais.   Neste contexto, anseia-se pela colaboração indistinta da sociedade,  na construção do ideário protetivo de dados pessoais, com a necessária especialização daqueles que pretendem atuar nesta área, facilitando o acesso às  certificações e  atestados profissionalizantes, assim como nas atividades e ofertas de serviços, produtos e soluções, de forma tal que possa se propiciar a preservação e as esperada proteção no tratamento de dados. A importância de os agentes adotarem a prática da obtenção das certificações institucionais regulares e perenes, a ponto de  poder se situar o  exato "estado da arte", encontra-se na própria lei a exemplo do que dispõe o art. 44 ao afirmar que o tratamento de dados pessoais será irregular quando deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança que o titular dele pode esperar, consideradas as circunstâncias relevantes, entre as quais o modo de realização, os resultados e riscos que razoavelmente dele se esperam e as técnicas de tratamento de dados pessoais disponíveis à época em que foi realizado. Desta forma, uma instituição que possa certificar e/ou atestar as condições tecnológicas  e o exato momento em que os fatos relacionados aos dados pessoais ocorreram, a partir de uma  verificação criteriosa, lastreada em metodologia apropriada, estará demonstrando o que denominamos de "estado da arte", contribuindo para com o sistema protetivo de dados de forma ativa, além de reduzir incertezas probantes. E a necessidade de se captar e de se  obter as "fotografias tecnológicas  de época", gerando  segurança na construção da caracterização  deste importante momento captador de um fato e de suas circunstâncias, permeia a LGPD. O art. 46, a exemplo, que trata de medidas de  segurança e  sigilo de dados no capítulo das  boas práticas,  já efetiva a previsão do que será o futuro ao dispor claramente sobre dois princípios: i) Padrões técnicos Mínimos: A autoridade Nacional poderá dispor sobre padrões técnicos mínimos para tornar aplicável as medidas de segurança disposta, considerados a natureza das informações tratadas, as características especificas do tratamento e o estado atual da tecnologia, especialmente no caso de dados pessoais sensíveis, assim como os princípios previstos no caput do art. 6º da lei  e, ii) privacy by design: Representa o emprego de mecanismos e soluções de privacidade e de  medidas protetivas, que  devem ser observadas desde a fase de concepção do produto,  até a sua execução e colocação no mercado.  Assim é que as entidades certificadoras institucionais devem se especializar para que possam bem cumprir a parcela informativa da LGPD, registrando, certificando e atestando o que for pertinente às necessidades dos agentes econômicos e aos interesses da comunidade, inclusive acerca do mencionado "estado da arte" para com relação aos  processos, sistemas tecnológicos e aos programas de boas práticas e de governança, levando-se em conta o princípio da atualização periódica contido na regra. E é desta forma que propugnamos por uma visão aberta e multidisciplinar da certificação institucional em que, as entidades voltadas  a estes objetivos, possam bem entender a importância de também  se habilitarem para certificações pontuais e temporais de temáticas variadas, todas relacionadas aos propósitos protetivos da LGPD, prestando serviço de utilidade pública de excelência e contribuindo para a redução das incertezas e  apaziguação social. As certificações internas, efetivadas primariamente pelos gestores e agentes de tratamento de dados, incrementadas pelas certificações institucionais,   desenvolvidas  a partir de técnicas e metodologias apropriadas, a nosso ver, se  assemelham  à  verdadeira  arte da certificação, tanto no contexto da percepção da relevância do fato e sensibilidade  na detecção do necessário para gerar a adequação prevista pelo legislador, como no conjunto de atividades humanas coordenadas e sincronizadas,  visando a formação de um processo criativo original,  eis que cada elo deste sistema possui particularidades e sinais  a serem   expressados  como resultado final da certificação, que se harmonizará com o todo, proporcionando  um significado protetivo único, embora diferente. *Adalberto Simão Filho é professor titular dos programas de mestrado e doutorado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP/RP. Obteve os títulos de mestre e de doutor em direito das relações sociais pela PUC/SP e de pós-doutor em Direito e Educação pela Universidade de Coimbra.  Diretor Jurídico do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. É autor de obras temáticas envolvendo o direito da sociedade da informação e a nova empresarialidade. **Janaina de Souza Cunha Rodrigues é advogada com mais de quinze anos de experiencia em departamentos jurídicos empresariais e escritórios de advocacia, com atuação na área empresarial e tecnológica. Associada fundadora e membro da Comissão permanente de assuntos Jurídicos do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.  Pesquisadora externa em grupo de estudo voltado para o Direito e a Tecnologia.  __________ 1  De Lucca, Newton et  Maciel,Renata Mota. A lei 13.709 de 14 de agosto de 2018: a disciplina normativa que faltava. Direito e Internet IV - Sistema de proteção de dados pessoais. Coordenação: Newton De Lucca, Adalberto Simão Filho.Cintia Rosa Pereira de Lima. Renata Mota Maciel. Quartier Latin: São Paulo, 2019, pag.21. 2 A eficácia da MP 954/2020  que permitia o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE), durante a pandemia,  foi suspensa nas ADINS 6387  da OAB e 6388 a 6393 de  Partidos Políticos. 3 Coelho,Fabio Ulhoa et Lotufo, Mirelle Bittencourt. A lei geral de proteção aos dados pessoais e as investigações internas das empresas. Direito e Internet IV - Sistema de proteção de dados pessoais. Coordenação: Newton De Lucca, Adalberto Simão Filho.Cintia Rosa Pereira de Lima. Renata Mota Maciel. Quartier Latin: São Paulo, 2019, pag.225 a 233. 4 Lima,Cintia Rosa Pereira de et Peroli, Kelvin. A aplicação da lei geral de proteção de dados do Brasil no tempo e no espaço. Comentários a lei geral de proteção de dados. Coordenação:Cintia Rosa Pereira de Lima. Editora Almedina: São Paulo, 2020,pág. 69. 5 Simão Filho, Adalberto. Regime jurídico do banco de dados- Função econômica e reflexos na monetização. Direito e Internet IV - Sistema de proteção de dados pessoais. Coordenação: Newton De Lucca, Adalberto Simão Filho.Cintia Rosa Pereira de Lima. Renata Mota Maciel. Quartier latin: São Paulo, 2019, pags.167- 189. 6 Gayo.Miguel Recio. El estatuto jurídico del data protection officer. Wolters Kluwer España:Madrid, 2019, pág. 224.
sexta-feira, 4 de setembro de 2020

LGPD e combate às fake news

As fake news são compostas por três elementos fundamentais: (i) intencionalidade do locutor em enganar o interlocutor; (ii) apropriação da estética jornalística a fim de auferir certo grau de legitimidade e; (iii) dimensão sistêmica, empoderando-se do modelo de fluxo de informações próprio das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs)1. A presente abordagem se concentra neste último aspecto, visto que a forma de circulação de conteúdos nas mídias digitais contribui para potencializar a disseminação de informações falsas. A migração do centro das discussões políticas para Internet conduz à reflexão sobre as consequências da mediação corporativa das relações políticas, num ambiente que segue modelos de negócios da publicidade. Aliás, observa-se que o mecanismo de segmentação de informações, inerente ao funcionamento das redes sociais, como Facebook, Instagram e Twitter, é um dos pilares da desordem informacional. O combustível que move a rede algorítmica de distribuição de informações nas redes sociais são os dados pessoais disponíveis às plataformas. Tais empresas coletam e analisam os dados pessoais dos seus usuários a fim de construir modelos de predição e identificar tendências de comportamento, atraindo o marketing direcionado. É possível citar dois casos em que informações pessoais de cidadãos foram empregadas na construção de redes de desinformação e manipulação do debate público, quais sejam: Cambridge Analytica nas eleições presidenciais estadunidenses de 2016 e; Yacows na campanha presidencial de 2018, no Brasil. A empresa Cambridge Analytica (CA) realizou a coleta de dados de 50 milhões de usuários do Facebook, por meio de um aplicativo chamado This Is Your Digital Life (tradução livre: "está é a sua vida digital"). O usuário ao conceder permissão de acesso ao respectivo aplicativo, também permitia, sem ter consciência, o acesso a informações sobre sua rede de amigos. A partir daí, deu-se a coleta de dados pessoais dos usuários, a maioria dos quais não concedeu permissão explícita de acesso à empresa CA2. Em posse desses dados pessoais, a Cambrige Analytica conseguiu construir perfis dos indivíduos, a partir dos quais era possível identificar o gênero, sexualidade, posições políticas e traços de personalidade dos usuários. Sabe-se, que CA foi utilizada na campanha eleitoral de Donald Trump durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016, para direcionamento de mensagens e notícias falsas a grupos eleitorais específicos3. No Brasil, verificou-se a contratação de serviços disparo de mensagens por campanhas eleitorais de 2018. Em depoimento na CPMI das Fake News, o sr. Lindolfo Alves, um dos sócios da empresa de marketing digital Yacows, informou que seus serviços foram contratados para algumas campanhas presidenciais, tais como a dos candidatos Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Ao explicar o modo de funcionamento dos seus serviços, Lindolfo alegou que os clientes disponibilizavam a lista de dados cadastrais do público destinatário das mensagens4. Importante ressaltar que à época, isto é, durante as eleições de 2018, não havia vedação legal expressa quanto ao emprego de serviços de disparo em massa de conteúdo, tal proibição passou a constar no art. 28, inc. IV, alíneas "a" e "b", da Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 20195. De qualquer forma, as alegações do sr. Lindolfo permitem refletir sobre o emprego de dados pessoais dos eleitores com finalidades de propaganda eleitoral, questão que ainda persiste haja vista a possibilidade de contratação dos serviços de impulsionamento de conteúdo oferecidos por provedores de aplicação de Internet, nos termos do art. 57-B, §3º, da lei 9.504/19976. Tais instrumentos de marketing relacionam-se às fake news à medida que o exercício de coleta e tratamento de dados pessoais pode ser empregado como mecanismo de distribuição de propaganda legítima ou enganosa. Evidente, portanto, a necessidade de regulação e fiscalização deste meio, principalmente no que diz respeito à proteção dos dados dos usuários, que correspondem à parcela considerável do eleitorado brasileiro7. Pois bem, a Resolução n. 23.610/2019 do TSE, que regula a propaganda eleitoral, menciona expressamente a LGPD em três momentos. Primeiro, o art. 28, inc. III da Resolução determina que a propaganda eleitoral na Internet por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, partido político ou coligação, deve observar a Lei Geral de Proteção de Dados quanto ao consentimento do titular. Em seguida, o art. 31, § 4º, prevê que as atividades de utilização, doação ou cessão de dados pessoais deve observar as disposições da lei 13.709/2018. Por fim, o art. 41 do regramento dispõe sobre a aplicação da LGPD, no que couber. A partir da leitura do art. 28, inc. III, supracitado, depreende-se a eleição da base legal do consentimento para reger os processos de tratamento de dados pessoais no contexto de propaganda eleitoral. A hipótese de tratamento de dados pessoais mediante o consentimento do titular está prevista no art. 7º, inc. I, da lei 13.709/2018, sendo necessário o consentimento específico caso o controlador deseje comunicar ou compartilhar dados pessoais com outros controladores, nos termos do art. 7º, § 5º, do respectivo Diploma Legal8. Importante ressaltar que diversos candidatos e partidos contratam empresas de marketing para gerenciamento da campanha eleitoral, assim, é necessário que os contratos definam a posição de cada um dos agentes perante a LGPD. Desse modo, deve-se distinguir a pessoa do controlador, ou seja, aquele que toma decisões referentes ao tratamento de dados pessoais (art. 5º, VI, da lei 13.709/2018); o operador, pessoa que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador (art. 5º, VII, da lei 13.709/2018 ; ou , ainda, o encarregado, aquele indicado pelo controlador e operador para atuar como canal de comunicação entre o controlador e os titulares dos dados (art. 5º, VIII, da Lei n. 13.709/2018). Tais discriminações são essenciais para fins de transparência e eventual responsabilização nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, inclusive, ressalte-se que a Lei determina que o controlador apresente o relatório de impacto à proteção de dados pessoais, documento que parecer ser também exigível no âmbito da campanha eleitoral. Apesar da referência expressa à LGPD, importa observar que o Marco Civil da Internet (MCI) já menciona o direito ao consentimento livre, expresso e informado para o fornecimento de dados pessoais a terceiros (art. 7º, inc. VII, da lei12.965/2014). No mesmo sentido, o inciso IX, do art. 7º, do MCI determina que o consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais deve ocorrer de forma destacada em relação às demais cláusulas contratuais. Todavia, quanto à qualificação do consentimento, o art. 5º, inc. XII da LGPD determina que o consentimento é a manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada. Assim, vigora o regramento atual e mais específico trazido pela lei 13.709/2018, ou seja, deve-se obter o consentimento livre e inequívoco dos possíveis eleitores, que devem ser informados sobre a finalidade para qual seus dados pessoais serão utilizados. Cabe mencionar, ainda, o art. 31 da Res. n. 23.610/2019 do TSE, que veda o compartilhamento de dados pessoais de clientes de pessoas jurídicas de direito privado e das entidades citadas no art. 24, da lei 9.504/97, em favor de candidatos partidos ou de coligações. Nesse ponto, há ampliação do escopo do art. 57-E, da Lei n. 9.504/97, pois este veda a utilização, doação ou cessão "de cadastro eletrônico" dos clientes das pessoas elencadas no art. 24, supracitado, em favor de candidatos partidos ou coligações. Ademias, o parágrafo quarto no art. 31, em questão, prevê a observância da LGPD no tratamento de dados pessoais, inclusive, sua utilização, doação ou concessão por pessoa jurídica ou por pessoa natural, observada as vedações citadas. Os dispositivos legislativos apresentados evidenciam que ainda é vaga a correlação entre a legislação eleitoral e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Sendo assim, é fundamental a construção de arcabouço interpretativo sobre a proteção de dados pessoais no âmbito eleitoral a partir a conjunção de atividades entre a Justiça Eleitoral e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais. Aliás, entende-se ser necessário que as atividades de tratamento de dados pessoais na esfera eleitoral sigam os princípios dispostos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, quais sejam: finalidade (art. 6º, inc. I); adequação (art. 6º, inc. II); necessidade (art. 6º, inc. III); livre acesso (art. 6º, inc. IV); qualidade (art. 6º, inc. V); transparência (art. 6º, VI); segurança (art. 6º, VII); prevenção (art. 6º, VIII); não discriminação (art. 6º, IX) e; responsabilização e prestação de contas (art. 6º, X). Cumpre destacar os princípios da transparência e da prestação de contas como essenciais para manutenção do processo eleitoral democrático. Ora, a prestação de informações referentes não apenas aos custos dispendidos com atividades de tratamento de dados pessoais, mas, também, relativas ao próprio processo de tratamento e identificação dos agentes contribui para preservar a autodeterminação informacional dos titulares-eleitores, em consonância com o princípio da autonomia da vontade e do direito à informação, que fundamentam a participação popular democrática. Além disso, a procidimentalização do processo de tratamento de dados pessoais, segundo as diretrizes previstas nas legislações eleitorais e na LGPD, reforça o princípio da igualdade de condições entre os candidatos participantes da corrida eleitoral, partindo do pressuposto de que os dados pessoais são combustível basilar das estratégias de marketing digital direcionado, o acesso ilícito acarreta em abuso de poder por parte do candidato ou partido político. Diante do exposto, urge a necessidade de construção de modelos legislativos e doutrinários a respeito da proteção de dados pessoais sob a perspectiva do Direito Eleitoral, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e do Marco Civil da Internet, haja vista à expansão da Era do Big Data sobre as campanhas eleitorais e a comunicação política. Por fim, cabe mencionar as contribuições do PL 2630/2020 como mecanismo de combate à desinformação. O referido projeto, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apresenta normas e instrumentos de transparência a serem seguidos por provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada, além de impor regras de conduta ao comportamento dos agentes políticos no meio digital, com o objetivo de "garantir segurança e ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento".  É certo que medidas legislativas, por si só, não são capazes de controlar, por completo, o fenômeno extremamente complexo da desinformação, entretanto, a conjunção do Projeto de Lei nº 2630/2020 e a LGPD representam passos importantes para o enfrentamento da questão. *Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada.  **Maria Eduarda Sampaio de Sousa é graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Integrante dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet" (CNPq) e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associada Fundadora e pesquisadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Bolsista FAPESP em Iniciação Científica ("Disseminação de informações falaciosas referentes ao processo eleitoral presidencial brasileiro de 2018: análise casuística e perspectivas de regulação"), orientado pela professora Dra. Cíntia Rosa Pereira de Lima. __________ 1 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. LGPD e Eleições: Proteção dos Dados Pessoais dos Eleitores na era do Big Data. Disponível aqui, último acesso em 01 de setembro de 2020. 2 GRANVILLE, Kevin. Facebook and Cambridge Analytica: What Your Need To Know as Fallout Widens. The New York Times, Nova Iorque, Estados Unidos, 19 mar. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 15 ago. 2018. 3 VASU, Norman; ANG, Benjamin; et.al. Fake News: National Security in the Post-truth Era. S. Rajaratnam School of International Studies, Singapura, jan. 2018, p. 11. Disponível aqui. Acesso em: 15 ago. 2018. 4 BRASIL. CPMI Fake News - Depoimentos dos sócios-proprietários da empresa Yacows. Vídeo (4:43:53) TV Senado, 21 fev. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 08 ago. 2020. 5 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019. Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. Disponível aqui. Acesso em: 14 ago. 2020. 6 BRASIL. Lei nº 9.504 de 30 de setembro de 1997. Estabelece norma para eleições. Disponível aqui. Acesso em: 14 ago. 2020. 7 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. Proteção de dados pessoais: LGPD e possibilidade de combate às fake News. Disponível aqui, último acesso em 01 de setembro de 2020. 8 BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível aqui. Acesso em: 14 ago. 2020.    
Uma das vantagens de compreendermos os direitos da personalidade em um enfoque de cláusula geral de tutela da pessoa humana é o de percebermos a sua permeabilidade, a vagueza do conteúdo semântico e a aptidão evolutiva das situações existenciais conforme a sociedade e a cultura que lhe conferem substrato. Não há numerus clausus em matéria de direitos da personalidade, pois o ser humano se exibe em inesgotáveis manifestações1.  Destarte, para além de um direito geral da personalidade - globalmente considerado - há um direito especial da personalidade composto por bens intrínsecos já mapeados (só para ficarmos nos limites do Código Civil direito ao corpo, imagem, nome, honra e intimidade), sem que isso impeça a progressiva decantação de novas zonas de relevância ainda não proclamadas de um conceito elástico, em permanente expansão2. Na sociedade tecnológica, defende-se abertamente a existência de um direito da personalidade à proteção de dados pessoais com autonomia perante o direito à privacidade3. Em todas as suas derivações, a privacidade revela aquilo que a pessoa tem ou faz em um contexto espacial delimitado. Todavia, em matéria de dados pessoais a informação extrapola o âmbito da pessoa. Ela ainda é um bem em si, mas capaz de ser objetivado e tratado longe e a despeito dela. Em um cenário de despersonalização, no qual a premissa antropocêntrica do ordenamento é subvertida pela coisificação do ser humano em um conjunto de algoritmos passíveis de transação no mercado, a consolidação de um direito da personalidade à tutela dos dados - voltada aos poderes público e privado - converte-se em pré-condição de cidadania na era eletrônica. O conceito dinâmico de autodeterminação informativa demanda mesmo um estatuto jurídico de dados, afinal, eles definem autonomia, identidade e liberdade da pessoa4. Paradoxalmente, a IA e outras tecnologias digitais emergentes não desafiam a gama já existente de danos reparáveis. Em países que seguem a tradição francesa, o dano como pré-requisito para a obrigação de indenizar é um conceito flexível e qualquer lesão a um interesse lícito pode ser o ponto de partida para a responsabilidade extracontratual5, cujo controle se dará pela verificação do nexo causal entre o dano e o comportamento culposo ou o risco de uma atividade.  Por conseguinte, o interesse em jogo pode ser mais ou menos significativo e a extensão do dano a esse interesse também pode variar, com impacto na avaliação quanto à justificação da indenização em um caso concreto6.   Nada obstante, algumas incipientes categorias de danos podem ser mais relevantes em casos futuros do que em cenários tradicionais de responsabilidade civil7-8. Os danos causados ??aos dados pessoais podem resultar em responsabilidade civil quando a responsabilidade surge do contrato9; ou quando a responsabilidade decorra da interferência de terceiro no ambiente em que os dados foram armazenados10; ou ainda, naquilo que nos interessa de maneira mais próxima, o dano foi causado por conduta antijurídica (violadora do dever geral de não lesar)11. Não é universalmente aceito que destruição de dados seja equiparada à perda de propriedade, uma vez que em alguns sistemas jurídicos a noção de propriedade é limitada a objetos corporais e exclui bens intangíveis, todavia12 o surgimento de tecnologias digitais enfatizou a importância dos danos aos dados, por meio de sua subtração, deterioração, contaminação, criptografia, alteração ou supressão13. Com grande parte de nossas vidas e nossas propriedades sendo "digitalizadas", é inviável, por óbvio, limitar a responsabilidade civil ao mundo tangível14. Referimo-nos à categoria dos digital assets, digital property ou bens digitais, como aqueles ativos incorpóreos, progressivamente inseridos na internet, que consistem em informações intangíveis fisicamente, de caráter pessoal - conteúdos postados ou compartilhados no ambiente virtual -, que trazem em si utilidade, tenham ou não conteúdo econômico15. No terreno da responsabilidade extracontratual, uma adaptação recorrente é a de traduzir os danos aos dados como danos ao meio físico no qual os dados foram armazenados. Assim, se A armazena os seus arquivos na unidade de disco rígido de seu computador pessoal em casa e um colega de faculdade negligentemente danifica o computador, tornando os arquivos ilegíveis. Independentemente da qualificação dos danos aos dados, em qualquer caso, a ilicitude se dirigiu à propriedade tangível de A (a unidade de disco rígido) e, apenas por esse motivo, B já seria responsável. Contudo, não é adequado simplesmente equiparar o tratamento normativo entre ambos objetos. Basta uma pequena modificação no exemplo, para o caso em que o proprietário do computador não coincida com a pessoa que tem um interesse digno de tutela nos dados. Seria o caso de classificar esse interesse merecedor de proteção semelhante à propriedade como propriedade intelectual ou um segredo comercial, ou a necessidade de tutelar o progresso intelectual em nada se relaciona com o resguardo de um "hard disk" inserido em computador? Seja como for, da lesão a dados pessoais podem decorrer danos patrimoniais ou extrapatrimoniais, nas mais variadas correntes de qualificação da responsabilidade, de seus fundamentos e de sua justificação. Caberá aos juristas, estudiosos do direito de danos e das novas tecnologias, a árdua tarefa de construir um sistema de responsabilidade civil adequado que, ao mesmo tempo que possibilite a efetiva prevenção e a reparação dos danos residualmente sofridos, permita o pleno desenvolvimento das tecnologias emergentes que tanto beneficiarão a sociedade. *Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). Advogado, pareceirista em temas de Direito Privado. **Nelson Rosenvald é professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD) __________ 1 Talvez Saramago tenha explicado o conceito de personalidade de forma mais clara do que qualquer jurista: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos". SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. 2 "O que está em causa nos direitos da personalidade não é apenas a tutela de um aspecto particular da pessoa humana, mas sim a tutela da pessoa humana globalmente considerada, podendo abranger novas zonas de relevância. Trata-se da pessoa não apenas perspectivada estaticamente, como ser humano, mas também em devir, em desenvolvimento" PINTO, Paulo Mota. Direitos da personalidade e direitos fundamentais. Coimbra: Gestlegal, 2018, p. 334. 3 "O esforço a ser empreendido pela doutrina e pela jurisprudência seria emo nosso ponto de vista uma interpretação dos incisos X e XII do art. 5. que seja mais fiel ao nosso tempo, reconhecendo a intima ligação que passam a ostentar os direitos relacionados à privacidade e à comunicação de dados. Dessa forma, a garantia da proteção dos dados pessoais, em si próprios considerados, com caráter de direito fundamental representa o passo necessário à integração da personalidade em sua acepção mais ampla e adequada à sociedade de informação" DONEDA, Danilo. O Direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital, 3. Ed, Indaituba: Foco, 2020, p. 52. 4 Neste conceito dinâmico do direito à proteção dos dados pessoais já se insere o direito à portabilidade dos dados: "trata-se de uma ferramenta posta à disposição dos titulares para incrementar o controle dos mesmos sobre os seus dados pessoais de uma forma ativa, concorrendo dessa maneira para o exercício da autodeterminação informativa, ou seja, o controle das informações que lhe digam respeito, evitando que os ados se tornem mero objeto de transação". CRAVO, Daniella Copetti; KESSLER, Daniela Seadi e DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Responsabilidade civil na portabilidade de dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (orgs.) Responsabilidade civil e novas tecnologias. 1ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 187. 5 Art. 927 CC/2002: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". 6 Neste sentido, o artigo 2:102 parágrafo 1, do PETL (Principles of European Tort Law): "O alcance da proteção de um interesse depende de sua natureza; sua proteção será mais ampla, quanto maior seja o seu valor, a precisão de sua definição e sua obviedade". 7 Exemplos sugeridos no Report from the expert group on liability and new technologies-New technologies formation-European Union 2019. Texto disponível aqui. 8 A utilização de dados pessoais para alimentar os novos sistemas de inteligência artificial e a sua utilização para tomar decisões proporcionam uma acurácia bastante significativa para um número crescentes de aplicações. Isto abre espaço para, ao menos, dois temas centrais para os debates sobre autonomia e direitos fundamentais nos próximos anos: os efeitos que a utilização desses sistemas causará para a pessoa e sua autonomia pessoal, bem como a necessidade de qualificar a natureza desses instrumentos e sistemas de inteligência artificial. (DONEDA, Danilo Cesar Maganhoto; MENDES, Laura Schertel; SOUZA, Carlos Affonso Pereira de; ANDRADE, Norberto Nuno Gomes de.  Considerações iniciais sobre inteligência artificial, ética e autonomia pessoal. In: Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, v. 23, n. 4, p. 1-17, out./dez. 2018, p. 3). 9 Ilustrativamente, A armazena os seus arquivos no espaço em nuvem fornecido pelo provedor B com base contratual. B não protege adequadamente o espaço na nuvem, e, aproveitando-se disso, um hacker exclui todas as fotos de A. B será responsável perante A pela violação contratual, com fundamento em danos patrimoniais consubstanciados nos custos que A assumiu para restaurar os arquivos. Porém, pode-se acrescer os danos extrapatrimoniais pela perda de memórias familiares. 10 Exemplificando, os arquivos de A estão armazenados no espaço em nuvem fornecida por C. Sem nenhuma negligência da parte de C, B danifica negligentemente os seus servidores e todos os arquivos de A são excluídos. Não está claro por que deveria fazer diferença na responsabilidade de B se os arquivos continham texto ou fotos sobre os quais A detinha os direitos autorais;  os arquivos continham texto ou fotos sobre as quais terceiros detinham os direitos autorais, ou, por fim, os arquivos continham "machine data" de grande valor econômico, sobre os quais ninguém ainda titularizava direito autoral ou outro direito de propriedade intelectual. Trata-se da necessidade do ordenamento assegurar a tutela dos referidos interesses legais protegidos com eficácia contra terceiros. Um ponto de partida para a incidência da responsabilidade pelo ato ilícito é a semelhança dos danos aos dados com a ofensa à propriedade. 11 "Em havendo grandes fluxos de dados, grandes preocupações passam a permear a sociedade da informação, não apenas com os riscos de eventual uso discriminatório dos acervos de dados, mas também com o surgimento de potencial dependência em relação a eles e às práticas de coleta massiva e mineração (data mining). Nesse espírito, o intuito do legislador brasileiro, ao promulgar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais está adequadamente alinhado ao propósito de assegurar direitos e promover o titular de dados - aqui visto como vulnerável". (MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Compliance digital e responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (orgs.) Responsabilidade civil e novas tecnologias. 1ed.Indaiatuba: Foco, 2020, p. 271). 12 Ilustrativamente, enuncia o §90 do Código Civil da Alemanha - BGB: "conceito de coisa: apenas objetos corpóreos são coisas, como definido por lei". 13 "Le tecnologie dell'informazione non solo si impadroniscono della nostra vita, ma costruiscono un corpo elettronico, l'insieme delle nostre informazioni personali custodite in infinite banche dati, che vive accanto al corpo físico". (RODOTÀ, Stefano. Persona, libertà, tecnologia. Note per una discussione. In: Diritto e questioni pubbliche, v. 5, 2005). 14 Quando B ingressa no espaço na nuvem e exclui os arquivos de A, para além da esfera cível, o comportamento doloso se qualifica como ilícito criminal. Na União Europeia o art. 82 do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) explicita que há responsabilidade quando os danos foram causados pela intencional violação dos seus requisitos. Ao definir tais regras o legislador assume a relevância dos dados como ativo e a sua ubiquidade. Se em tese é possível introduzir uma regra declarando amplamente a proibição de acesso ou modificação de quaisquer dados controlados por outra pessoa, atribuindo responsabilidade se esse padrão for violado, isso pode resultar em um desbalanceamento, na medida em que todos nós, constantemente acessamos e modificamos dados controlados por outras pessoas. 15 LACERDA, Bruno Torquato Zampier. A responsabilidade civil no universo dos bens digitais. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (orgs.) Responsabilidade civil e novas tecnologias. 1ed.Indaiatuba: Foco, 2020, p. 95. O autor se serve de quatro categorias para retratar as possibilidades de lesões a bens digitais: "a) Lesões oriundas de conduta de outro particular; b) lesões oriundas da conduta do próprio provedor; c) lesões oriundas da conduta do estado; d) lesões oriundas da conduta de familiares do titular".Op.cit, p. 97.  
Texto escrito por Isadora Maria Roseiro Ruiz Como toda novidade normativa, a Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018) também passará por várias análises, interpretações, críticas e estudos. Não por um capricho, mas, por trazer novos conceitos, normas e aplicações e, às vezes, até mesmo vocabulário. Como forma de contribuir na evolução e construção do debate envolvendo a LGPD, o terceiro texto da Coluna Migalha de Proteção de Dados irá abordar duas palavras, e suas consequências, trazidas por esse novo sistema legal. São elas: anonimização e, em especial, pseudonimização. Os termos, até então, não faziam parte do extenso e primoroso vernáculo jurídico e, como em outros aspectos da LGPD, exigem dos profissionais uma expansão em seus conhecimentos, demandando estudos interdisciplinares, e alargamento de informações. É o direito enfrentando a era tecnológica. Dessa forma, fez-se necessário conceituar determinados termos, criando, assim, uma base de conhecimento comum a todos para a aplicação da lei. O art. 5 foi incumbido desta missão e, dentre outros, traz o conceito de dado pessoal, dado pessoal sensível, dado anonimizado e anonimização; todos importantes para a continuidade desse texto. I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável; II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; III - dado anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento; XI - anonimização: utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo; Temos a anonimização como uma solução para a remoção de informações de um documento1, agindo de tal forma que os dados capazes de identificar e individualizar uma pessoa, tais como nome, endereço e telefone, passam por processos que o tornam dados anonimizados. Os processos pelos quais os dados pessoais podem passar para tonarem-se anonimizados são vários e não há, até então, diretrizes nacionais para uma definição sobre quais os parâmetros ou medidas mínimas que garantam a segurança dessa anonimização, ou seja, a segurança de que esses dados pessoais não permitam a associação, direta ou indireta, a um indivíduo. A importância da anonimização é que, uma vez anonimizados, esses dados, em tese, não teriam a capacidade de identificar uma pessoa natural, por isso, não são tidos como dados pessoais2 e, consequentemente, não são mais protegidos pela lei. Para compreender que o estado de anonimato pode não ser permanente é de extrema valia. A própria lei, em seu art.12, considera o processo de reversão da anonimização o que ocorre quando são aplicados procedimentos capazes de reverter o anonimato do dado, de tal forma que estes tornam-se dados pessoais novamente e, portanto, sujeitos às proteções da LGPD. O estudo interdisciplinar nesse assunto fornece uma singela amostra da necessidade de conhecimentos mais técnicos na área, como o fato de que não é possível a anonimização em absoluto de determinado dado e este continuar a ser útil para análises, informações e conhecimento3. Assim, a cautela e a prudência devem ser lembradas pois, em tese, todo dado anonimizado está sujeito a ser revertido e passível de identificação de seu titular. É possível observar que a anonimização é devidamente tratada na LGPD, que traz conceitos, aplicação e escopo de proteção. Diferentemente do que ocorre com a pseudonimização. Esta, por sua vez, é mencionada expressamente apenas duas vezes no texto da lei, no artigo 13 e, em seção destinada aos dados pessoais sensíveis; em contraste com o capítulo de disposições preliminares, local onde se encontra a anonimização. A pseudonimização é uma técnica que substitui informações contidas num conjunto de dados que identifica um indivíduo4 por um identificador artificial, um pseudônimo. Consideremos um conjunto de dados formados por dois tipos de dados, os dados pessoais, tais como nome e endereço, e demais dados que não singularizam a pessoa5. Na pseudonimização, os dados pessoais são substituídos por um identificador artificial e mantidos num banco de dados separado que liga dados pessoais e pseudônimo. Enquanto isso, os demais dados relativos à pessoa são referenciados por este pseudônimo e mantidos numa segunda base de dados. Desta maneira o processo de reidentificação só ocorre com a junção das duas bases de dados, ou seja, da base com os pseudônimos que os associa aos dados pessoais e os demais registros. Figura 1. Diagrama de pseudonimização. Utilizemos de um exemplo6 para uma compreensão mais facilitada e para notar o quão inserida na atualidade essa discussão está. Peguemos um tipo de empresa que está em alta em época de pandemia: uma empresa que faz entrega de produtos. Essa empresa processa dados, tais como: a distância percorrida pelos motoristas, a frequência e os tipos de viagens realizadas. Esses dados são considerados como pessoais, pois são dados relacionados aos motoristas. A empresa utiliza esses dados por dois motivos: (1) para calcular as despesas com as viagens; e (2) para cobrar os clientes pelo serviço. A identificação do motorista é essencial para realizar esses estudos. Porém, um departamento dessa empresa também utiliza esses dados para otimizar a eficiência das frotas e, para esse propósito, não é necessário a identificação do motorista. Portanto, a empresa se assegura de que esse departamento apenas tenha acesso aos dados em um formato em que não seja possível individualizar e identificar os motoristas. Ela utiliza uma técnica de pseudonimização para substituir identificadores tais como nome, cargo e histórico de navegação por um identificador artificial (um pseudônimo) como, por exemplo, uma sequência de números que, por si só, não possui significado algum. Os membros desse departamento só terão acesso aos dados pseudonimizados. No entanto, a empresa, como controladora, tem a capacidade de unir os dados originais aos dados pseudonimizados, tornando possível a (re)identificação dos motoristas. Em termos legais, a pseundonimização teve seu conceito tratado primeiramente no General Data Protection Regulation (GDPR), o regulamento europeu de proteção de dados. Aqui no Brasil, a LGPD trouxe sua definição no parágrafo 4º do art.13: § 4º Para os efeitos deste artigo, a pseudonimização é o tratamento por meio do qual um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo, senão pelo uso de informação adicional mantida separadamente pelo controlador em ambiente controlado e seguro. Notemos que há uma sintonia entre o GDPR e a LGPD quanto à pseudonimização. Em ambas normativas o texto legal é similar e não dispõe expressamente quanto ao dado pseudonimizado ser ou não um dado pessoal e, portanto, sujeito à proteção da lei. Porém, o GDPR resolve esse problema com os chamados recitais que funcionam como uma espécie de conjunto de prerrogativas e instruções que devem ser obedecidas quando da aplicação da lei. Os recitais7 26 e 28 determinam que dados pseudonimizados permaneçam sob a proteção dos dados pessoais. Isso pois a utilização de técnicas de pseudonimização, apesar de possuírem o potencial de reduzirem o risco da exposição dessas informações pessoais e servirem como mecanismos de auxílio para os controladores e processadores cumprirem com sua obrigação de protegerem esses dados, continuam com o potencial de serem atribuídos aos seus titulares. O recital 26 também diz que os princípios da proteção de dados devem ser aplicados para qualquer informação relacionada a um indivíduo identificado ou identificável. Diz, ainda, que dados pessoais que foram pseudonimizados e que podem ser atribuídos a uma pessoa natural com o uso de informação adicional, devem ser considerados informações de indivíduos identificáveis. O que se entende desses dois recitais acima mencionados é de extrema importância pois uma vez que se determina que dados capazes de tornar um indivíduo identificável devem ser considerados dados pessoais, entende-se que dados pseudonimizados são dados pessoais, pois eles possuem o poder de (re)identificar determinado indivíduo. Como dito anteriormente, a LGPD no Brasil foi espelhada no GDPR e esse espelhamento deve ser estendido com a adoção do entendimento de que dados pseudonimizados devem ser equiparados aos dados pessoais e, portanto, protegidos pela LGPD. Tal entendimento vai ao encontro com o objetivo da lei que, em seu artigo 1º, diz que a lei tem por objetivo a proteção de direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Também encontra respaldo nos princípios norteadores da lei que, elenca em seu artigo 2º, dentre outros princípios, o de respeito à privacidade (inciso I), a inviolabilidade da intimidade e da honra (inciso IV). Há, também, uma razão técnica que justifica o dado pseudonimizado ser um dado protegido pela LGPD, é que, atualmente, os dados relativos à pessoa natural podem possuir uma alta dimensionalidade. Isso significa que um indivíduo pode ser identificado por meio de mais de um tipo de conjunto de dados. Uma pessoa é normalmente identificada por seu nome, telefone, endereço e CPF, por exemplo. Esse tipo de dado é chamado de identificador direto8, ou seja, são atributos, características, que identificam explicitamente um indivíduo. Mas há, também, os chamados identificadores indiretos que, em conjunto, são capazes de identificar um indivíduo. Como exemplo, podemos citar os dados que um supermercado ou farmácia armazena das compras feitas por seus clientes, ou seja, aquele conjunto de dados do perfil de compra determina, singulariza uma pessoa. Temos, dessa forma, que a pseudonimização, para ocorrer, substitui os dados diretos por uma identificação artificial (ver Figura 1) e armazena essa associação em um banco de dados separado. Porém, ainda persistem os demais dados, que são os identificadores indiretos. E esses identificadores indiretos, ao serem analisados conjuntamente, podem (re)identificar o indivíduo. Num outro exemplo, suponhamos que a prefeitura de uma cidade com 100mil habitantes esteja realizando um estudo sobre a doença de Crohn, um tipo raro de doença9, e levanta os dados da população por meio do banco de dados das farmácias. Os dados que as farmácias locais possuem são os dados de compra de seus clientes e, portanto, dados pessoais. Para promover o sigilo dos clientes, as farmácias utilizam a técnica de pseudonimização para substituir os nomes, CPFs e endereços desses clientes por identificadores numéricos aleatórios e sem significado algum, armazenando essas informações que ligam esses dados diretos aos dados fabricados. Os outros dados desses clientes, e ainda dados pessoais, como os medicamentos comprados, a data de compra, a profissão do indivíduo e sua idade e gênero são permanecidos em sua forma original e repassados à prefeitura para o estudo. Ao divulgar o estudo, o jornal da cidade faz uma reportagem dizendo que a doença rara atingiu 1 morador daquela cidade: uma mulher de 57 anos, funcionária do hospital da cidade, que ficou doente no ano 2017. Para os moradores daquela cidade, ou pelo menos para a comunidade médica, a (re)identificação da pessoa que foi atingida pela doença rara é facilmente feita. Seus colegas, amigos, familiares e até outros habitantes irão associar que o indivíduo divulgado pelo jornal, resultado do estudo, é a pessoa que eles conhecem. No exemplo citado, vemos que a (re)identificação de um indivíduo, tomado o contexto, pode facilmente ocorrer com poucos dados. No exemplo, citamos apenas cinco. Mas, trazendo para uma realidade em que esses dados estão cada vez em formato digital, a quantidade de dados disponíveis é, em muito, superior. Essa multidimensionalidade de dados nem sempre é "visível". No exemplo acima, os clientes de farmácias e supermercados possuem um maior controle e ciência dos dados fornecidos, pois fizeram um cadastro, compartilharam dados voluntariamente e são recorrentemente lembrados que estão compartilhando esses dados quando informam seu número de CPF, por exemplo, no momento em que procedem com o pagamento das mercadorias. Porém, há tantos outros dados que indivíduos fornecem sem uma clareza de que suas informações pessoais estão sendo coletadas. São os casos das câmeras de segurança espalhadas por lojas, shoppings e ruas; o uso de aplicativos e sites de navegação na web e postagem de fotos em redes sociais, para mencionar alguns. A coleta desses dados é realizada com uma constância elevada e nem sempre seus titulares possuem uma visão de que tipo de informação está sendo fornecida. Dizer que os dados pseudonimizados devem ser considerados dados pessoais e, portanto, devem ter o respaldo da LGPD é defender a proteção dos dados pessoais dentro do próprio texto da lei. A LGPD, no artigo 5º, inciso I, diz, expressamente, que dado pessoal é informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável. Dessa forma, se dados que, por vezes, não são diretamente associados a um indivíduo, mas, analisados em conjunto com outros dados disponíveis, possuem altas chances de (re)identificação de um indivíduo, esse indivíduo é identificável e, portanto, esses dados devem ser considerados como dados pessoais. *Isadora Maria Roseiro Ruiz é pesquisadora e integrante dos Grupos de Pesquisa "Direito, Ética e Inteligência Artificial", "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", USP - CNPq. Graduada pela Faculdade de Direito de Franca - FDF. Advogada. Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. __________ 1 RUIZ, E. E. S. Anonimização, Pseudonimização e Desanonimização de Dados Pessoais. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. (coord.) Comentários à lei geral de proteção de dados: Lei n. 13.709/2018, com alteração da lei n. 13.853/2019. São Paulo: Almedina, 2020. pp. 101-122. 2 Artigo 12, da lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, diz: "Os dados anonimizados não serão considerados dados pessoais para os fins desta Lei, salvo quando o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido". 3 OHM, Paul. Broken promises of privacy: responding to the surprising failure of anonymization. In: UCLA Law Review, v.57, pp.1701-1777, 2010. 4 ICO. What is personal data? In: Information Comissioner's Office, Wilmslow, 2020. Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2020. 5 POSSI, Ana Carolina Benincasa. O que é anonimização e pseudoanonimização de dados? Disponível aqui, acessado em 20 de agosto de 2020. 6 ICO. What is personal data? In Information Comissioner's Office, Wilmslow, 2020. Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2020. 7 Thomson Reuters. GDPR: Recitals. In Thomson Reuters Practical Law, Londres, 2020. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2020. 8 Ruiz, E. E S. e Lima, C.R.P. "Perspectivas Regulatórias de Anonimização no Brasil a partir da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais" (comunicação pessoal de 10 de agosto de 2020). 9 VICTORIA, Carlos Roberto; SASSAK, Ligia Yukie; NUNES, Hélio Rubens de Carvalho. Incidence and prevalence rates of inflammatory bowel diseases, in midwestern of São Paulo State, Brazil. Arq. Gastroenterol., São Paulo , v. 46, n. 1, p. 20-25, Mar. 2009. Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2020.
Texto escrito por Isadora Maria Roseiro Ruiz e Cristina Godoy Bernardo de Oliveira A essa altura, o problema da pandemia não é novidade para ninguém: trata-se de um vírus transmissível entre humanos que causa uma doença que pode levar à morte. Sem vacinas e remédios específicos que garantam a curada Covid-19, as novidades (e as polêmicas) ficam por conta das estratégias que as autoridades públicas optam por adotar na tentativa de frear a disseminação do vírus e de evitar a contaminação de mais pessoas.Neste artigo, será realizado o estudo de caso1 concernente ao Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente (SIMI) do Governo do Estado de São Paulo que foi, oficialmente, instituído em 05 de maio de 2020. Por meio do método monográfico, serão analisadas as principais problemáticas relativas à proteção de dados em período de pandemia, tendo em vista a necessidade de se implementarem políticas públicas rápidas neste período de pandemia.As estratégias são várias e, dentre elas, o distanciamento social teve uma aceitação mais generalizada2,com a promessa de achatar a crescente curva do número de infectados e,consequentemente, de diminuir a contaminação em massa da população. Nessa linha, com um aumento de 1.350% no número de mortes do Estado de São Paulo no mês de abril3, em relação ao mês anterior, a necessidade do isolamento social estava clara,porém, era preciso um meio para monitorar e para medir esse isolamento.Dessa forma, a solução encontrada pelo Estado de São Paulo foi adotar a taxa de 70% de isolamento social como meta. Ainda que não analisemos os critérios aplicados na escolha desse percentual, o segundo problema era como realizar essa medição. Assim, instituiu-se o Sistema de Informações e Monitoramento Inteligente (SIMI) por meio do decreto estadual 64.963, de 5de maio de 2020, como a "ferramenta de consolidação de dados e informações coligidos por órgãos e entidades da Administração Pública estadual".Para funcionar, o SIMI precisa ser alimentado por dados capazes de informar se há ou não deslocamento populacional. Optou-se, então,por utilizar uma base de dados já existente e que abrangesse quase 100% da população, isto é, a base de dados das principais operadoras de telefonia do País: Claro, Oi, Vivo e Tim, que possuem a capacidade de monitorar o deslocamento(movimentação que corresponda ao não respeito ao isolamento social) da população a partir dos sinais enviados às torres de antena. Pode-se observar abaixo o cronograma do desenvolvimento do programa SIMI no Estado de São Paulo:A estratégia anunciada é digna do patamar técnico atingido em 2020: os avanços da tecnologia permitem a criação em massa de dados e,também, o compartilhamento destes. Esses dados, por serem muitos, permitem a realização de análises apuradas e diversificadas, possibilitando, portanto, um alto nível de geração de informações e, em um segundo momento, novos conhecimentos sobre o comportamento social paulista. Além disso, diferentemente das outras pandemias vividas pela humanidade, dessa vez, temos a tecnologia como aliada, proporcionando oportunidades diversas para a busca de soluções. No entanto, o Poder Judiciário foi provocado para que fosse feita a exclusão dos dados dos usuários que estavam sendo monitorados pelas quatro operadoras de telefonia acima citadas e repassados ao Governo do Estado de São Paulo. As alegações dos interessados convergiam, principalmente, no tocante ao direito à proteção dos dados pessoais, direito à privacidade e à restrição do direito de ir e de vir.Nossos telefones móveis têm receptores de dados de satélite de geolocalização que, por meio de sinais, permitem que os nossos telefones informem às operadoras a localização dos mesmos na superfície terrestre. Esse mesmo recurso é usado, por exemplo, pelos aplicativos de mapas que nos guiam pelas cidades. No entanto, há uma grande diferença em relação aos aplicativos de mapa, pois, esses dados da localização dos nossos telefones são passados para estas empresas com consentimento expresso e prévio.A discussão sobre a afronta à proteção de dados e privacidade dos titulares dos dados foi solucionada pelos tribunais com a alegação de que não houve tal violação por não se tratarem de dados pessoais, mas sim, dados já "anonimizados e agregados, sem a possibilidade de identificação do dado e da prestadora de serviços de telecomunicação que a disponibilizou", conforme estipula o referido Acordo de Cooperação Técnica (ACT)4.O Acordo de Cooperação Técnica5 estipula que as operadoras Claro S.A., Oi Móvel S.A., Telefônica Brasil S.A.,Tim S.A. e Associação Brasileira de Recursos em Telecomunicações - ABR - Telecom repassarão dados anônimos e agrupados ao Governo do Estado de São Paulo por meio do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Esses dados alimentarão a plataforma SIMI, que disponibilizará esse conteúdo às autoridades locais para monitoramento do distanciamento social.É importante mencionar que o termo dados "agregados" significa os dados que são vistos em blocos. No caso em questão, o SIMI disponibiliza um mapa de calor6 que permite a visualização dos agrupamentos de pessoas. Além disso, os dados são renovados e atualizados pelas operadoras para serem novamente compartilhados no dia seguinte. Apesar de se afirmar no ACT que os dados são agregados, surge a seguinte reflexão: o dado de um aparelho celular precisa de ser individualizado para que seja possível acompanhar esse deslocamento. Ora, se não identificado isoladamente é impossível saber se aquele celular, e não outro, se deslocou ou não.No que se refere ao conceito de dado anonimizado, o próprio acórdão7 do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza a norma do art. 5º, inciso III, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - lei 13.709/2018): é o "dado relativo ao titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento".Para que seja possível o processo de anonimização dos dados dos usuários de telefones móveis, as operadoras tratam esses dados para torná-los anônimos. São vários os tipos de procedimentos que podem ser feitos,como por exemplo, randomização e generalização8,mas o termo agregação sugere uma sumarização dos dados porque a agregação dedados converte um conjunto de dados de uma lista para valores resumidos, não sendo, portanto, necessários registros individuais9.O primeiro problema com que nos deparamos é a ausência de concordância, ou seja, de um consentimento esclarecido dos usuários sobre a disponibilidade das informações acerca da sua localização com o intuito de monitorar seu deslocamento. No início da relação contratual entre o usuário e a operadora, há, efetivamente, um consentimento amplo, com o objetivo primordial de ofertar um serviço adequado pela operadora; porém, não há o consentimento específico para qualquer finalidade que não se refira à comunicação à distância, por exemplo, a identificação de sua posição geográfica.Nesse sentido, o artigo 7º da LGPD é determina que o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado mediante o fornecimento de consentimento pelo titular. Ainda, a mesma lei reserva um capítulo específico para tratar dos direitos do titular dos dados, sendo um deles a eliminação dos dados tratados (artigo 18, inciso III).Esse entendimento nos permite perceber o segundo problema.Os usuários, assegurados pelo direito de seus interesses serem defendidos em juízo (artigo 22 da LGPD) pleitearam a remoção de seus telefones celulares do monitoramento feito pelas operadoras e repassadas ao IPT. Entretanto, os seus pedidos foram denegados pelo Poder Judiciário sob o argumento de que não há tratamento de dados pessoais. Neste sentido, cumpre-se mencionar que o processo de anonimização dos dados pessoais já se configura como tratamento de dados.Independentemente de estarem anônimos, esses dados estão sendo utilizados para formar o mencionado agrupamento, o qual tem como objetivo o monitoramento individual. Assim, pode-se compreender que há monitoramento quando a finalidade do uso do georreferenciamento é identificar o deslocamento de um indivíduo.Evidenciamos, ainda, um terceiro problema no que diz respeito a esses julgados. É inadmissível afirmar que o autor da ação deve provar que os dados não foram anonimizados. O fundamento legal para este entendimento está na própria LGPD (artigo 42, § 2º), que estabelece que haverá a inversão do ônus da prova quando "houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa". Por conseguinte, não há o que se discutir acerca da hipossuficiência do usuário do serviço de telefonia celular, visto que ele não possui condições (informacionais, técnicas e econômicas) de demonstrar a existência ou não do processo de a nonimização dos dados.Além dos problemas identificados no âmbito judicial, deve-se apontar um quarto problema, o qual é concernente às datas de disponibilização dos dados ao IPT pelas operadoras de telefonia e a celebração do ACT. O anúncio feito pelo Governador João Doria apresentando a plataforma SIMI foi realizado sem qualquer formalização prévia, pois o ACT somente foi assinado no dia 14 de abril, sendo que o anúncio foi dia 09 de abril, ou seja, 5 dias após o anúncio.Há, ainda, a denúncia10 de que o sistema SIMI começou a funcionar desde o dia 24 de março, coletando informações desde o dia 9 de março. Ademais, caso seja visitado o site do SIMI11,pode-se verificar que os dados referentes ao monitoramento do isolamento social começam a ser apresentados a partir do dia 06 de março de 2020. Assim, notamos que esses dados dos usuários, clientes dessas operadoras, foram indevidamente utilizados. É possível, ainda, estender para a dúvida de que se não havia convênio firmado entre essas empresas públicas com a entidade estadual, nada garante que, por esse período de mais de 20 dias, esses dados foram ao menos estavam anonimizados.Dessa forma, como quarto problema identificado, aponta-se a falta de instrumento jurídico para a realização de convênio entre o Governo do Estado de São Paulo e as empresas privadas. Apesar de flexibilizadas algumas normas da Lei de Licitação por conta da pandemia pela MPV 926/20 ( O PLV 25/20 que converte a MPV 926/20 em lei foi aprovado pelo Senado Federal e aguarda sanção presidencial, sendo o prazo máximo para a sanção ou veto: 20 de agosto de 2020), a Administração Pública não pode firmar acordos verbais sob pena de serem nulos (parágrafo único do artigo 60 da lei 8.666). Trata-se declara afronta ao princípio da publicidade e da garantia de acesso às informações como preconiza nossa Constituição Federal (artigo 37 e parágrafos).Em que pese o decreto estadual 64.879 de 20/3/2020 reconhecer o estado de calamidade pública no Estado de São Paulo, ou a Lei Federal nº 13.979,que dispõe acerca das medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da Covid-19, não é possível afirmar que o Estado pode intervir e monitorar o direito de ir e vir e invadir a inviolabilidade dos meios de comunicação individuais. Em síntese, o Estado não pode desrespeitar quaisquer direitos individuais se pode empregar outros meios (por exemplo, contact tracing tradicionais por agentes públicos) para assegurar o controle da pandemia.Todos os problemas e questionamentos trazidos ao longo deste artigo são relevantes para o mundo jurídico e, principalmente, para a sociedade brasileira, que ainda está se desenvolvendo e se ambientando com a proteção dos dados. Sabe-se que, apesar da LGPD ainda não estar em vigor, nosso sistema legislativo conta uma tutela esparsa que, direta ou indiretamente, protege os dados pessoais12. Por exemplo, o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) garante, no art. 7º: o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (inc. I); direito à inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações (inc. II); direito à inviolabilidade e sigilo de suas comunicações (inc. III); informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de dados pessoais (inc. VIII); direito ao consentimento (inc. IX); direito à exclusão(inc. X).Em suma, os questionamentos advindos, neste caso específico de monitoramento do isolamento social, configuram-se o início do que o Poder Judiciário enfrentará nos próximo anos, uma vez que, cada vez mais, problemas surgirão quanto à violação da proteção de dados e da privacidade dos cidadãos,sendo necessária a compreensão de como as tecnologias estão sendo empregadas e até que ponto está sendo realizado o correto tratamento dos dados pessoais. *Cristina Godoy Bernardo de Oliveira é Professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitorda Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo(2011). Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP - CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.*Isadora Maria Roseiro Ruiz é pesquisadora e integrante dos Grupos de Pesquisa "Direito, Ética e Inteligência Artificial", "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e"Observatório do Marco Civil da Internet", USP - CNPq. Graduada pela Faculdade de Direito de Franca - FDF. Advogada. Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.__________1 OLIVEIRA,Cristina Godoy Bernardo de; SILVA, Rafael Meira. O que é Estudo de Caso e Como Fazer? In Codex Data, São Paulo, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.2 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Saúde define critérios de distanciamento social com base em diferentes cenários. In Saúde Notícias, São Paulo, 06 abr.2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.3 G1SP. Mortes por coronavírus aumentam 1.350% em abril em São Paulo. In G1, Rio de Janeiro, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2020.4 IPT. Ações emergenciais no combate ao Covid-19. In Notícias do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, São Paulo,2020. Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2020.5 IPT. Ações emergenciais no combate ao Covid-19. In Notícias do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, São Paulo,2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.6 IPT. Ações emergenciais no combate ao Covid-19. In Notícias do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, São Paulo,2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.7 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Mandado de Segurança Cível nº 2073723-23.2020.8.26.0000. Relator: Desembargador Evaristo dos Santos, 2020,p.4. 8 POSSI, Ana Carolina Benincasa. O que é anonimização e pseudo anonimização dedados? In Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD), Ribeirão Preto, 3 nov. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.9 GOVERNO DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU. Guia para Técnicas Básicas de Anonimização de Dados. In Gabinete para a Proteção de Dados Pessoais,Macau, Abri/2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.10 UOL. Sem avisar, SPiniciou monitoramento de celular antes de acordo formal. In Tilti, o canalde tecnologia do UOL, São Paulo, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 11ago. 2020.11 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Adesão ao Isolamento Social em SP. São Paulo, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10ago. 2020.12 Ver texto inaugural da Coluna Migalhas de Proteção de Dados: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de - DE LUCCA, Newton.Polêmicas em torno da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados. In Migalhas,2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2020.
Texto escrito por Cíntia Rosa Pereira de Lima e Newton De Lucca Neste primeiro texto que inaugura a coluna "Migalhas de Proteção de Dados", escolheu-se explorar a problemática em torno da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Esta lei inaugura, no Brasil, um sistema de proteção de dados, trazendo princípios basilares para salvaguardar os titulares dos dados pessoais. Até a promulgação da LGPD, o Brasil oferecia uma tutela esparsa em algumas leis setoriais, como o Código de Defesa do Consumidor (especialmente o art. 43 do CDC), a Lei de Acesso à Informação (lei 12.527, de 18 de novembro de 2011), a Lei do Cadastro Positivo (lei 12.414, de 09 de junho de 2011), e o Marco Civil da Internet (lei 12.965, de 23 de abril de 2014), entre outras. Neste sentido, o grande avanço preconizado pela LGPD é estabelecer um sistema de proteção de dados, servindo de base para o tratamento de dados pessoais, realizado pelos entes públicos ou pelas empresas privadas1. Portanto, a LGPD é um importante instrumento para a segurança jurídica quanto aos direitos dos titulares de dados pessoais e às obrigações dos agentes de tratamento2, à semelhança do que dispunha a Diretiva 95/46/EC3, que foi substituída pelo Regulamento Geral Europeu sobre Proteção de Dados (General Data Protection Regulation - GDPR)4. Muito embora existissem (e continuam a existir) leis que traziam certa proteção aos titulares de dados, é inegável que a LGPD impõe uma mudança sociocultural. Em outras palavras, a "cultura da superexposição" dá lugar para a "cultura do controle das informações pelos seus titulares", ou seja, aquelas pessoas identificadas ou identificáveis a partir de determinadas informações têm direito à informação, ao acesso, à correção, entre outros direitos previstos na LGPD. Justamente por isso, a vacatio legis da LGPD, em seu texto original, já era longa. Importante destacar que a polêmica em torno da vigência da LGPD é marcada por um forte lobby que organizou muitas tentativas para se prorrogar a vigência da lei. O art. 65 da lei 13.709/2018, originalmente, estabelecia o prazo de vigência para 18 meses a partir da sua publicação. Todavia, esse prazo foi ampliado para 24 meses por ocasião da conversão da Medida Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018, que reinseriu a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, cuja criação fora vetada pelo então Presidente Michel Temer5. A MP 869/2018 foi convertida em lei pela lei 13.853, de 09 de julho de 2019, mantendo a vigência da LGPD em 24 meses a partir da publicação da lei 13.709/2018. Portanto, a lei entraria em vigor em 16 de agosto de 2020. Nota-se a constante influência do direito europeu na LGPD brasileira, inclusive o prazo de vigência. Em outras palavras, o art. 99 do GDPR previa a entrada em vigor da lei europeia para 25 de maio de 2018, ou seja, 25 meses após sua publicação, que se deu em 27 de abril de 2016. Assim, com toda a tradição europeia na matéria sobre proteção de dados, o GDPR trouxe mudanças importantes que exigiam um longo período para que os entes públicos e privados se adequassem aos ditames legais. Contudo, no Brasil, ainda segue incerta a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados. Alguns projetos de lei, como o PL 5.762/20196, que pretendia prorrogar a vigência da LGPD para 16 de agosto de 2020, insistem em adiar o quanto puderem o início da vigência da LGPD. Entretanto, diante da situação de emergência sanitária que o Brasil e o mundo enfrentam, decorrente da pandemia do coronavirus (covid-19), o tema voltou a ser destaque na pauta do Congresso Nacional. Assim, a Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020, pretende alterar o art. 65 da LGPD, determinando o início da vigência da lei para 03 de maio de 2021. Essa medida provisória precisa ser convertida em lei até 28 de agosto de 2020, caso contrário, a LGPD entrará em vigor imediatamente conforme o texto da lei 13.709/2020. Tal resistência à entrada em vigor da LGPD parece desarrazoada, ainda que se considere o contexto de emergência sanitária em que o mundo vive. Isto coloca o Brasil em uma situação vexatória e compromete a inserção do Brasil no capitalismo informacional, haja vista a necessária comprovação do nível adequado de proteção de dados para que empresas brasileiras possam receber dados pessoais de cidadãos que residam em países com um sólido sistema de proteção de dados, como Alemanha, Canadá, França, Itália, Estados Unidos etc7. Deve-se considerar, ainda, a lei 14.010, de 10 de Junho de 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavirus (covid-19), no art. 20, prorroga apenas a vigência dos artigos 52, 53 e 54 da LGPD, que tratam das sanções previstas na lei. Portanto, conforme o texto aprovado pelo RJET, a LGPD entra em vigor imediatamente, postergando apenas as sanções previstas na lei para agosto de 2021. Esta foi uma resposta ao temor dos agentes de tratamento de dados que estão sujeitos às penalidades previstas na LGPD por violação às regras legais para o tratamento de dados pessoais, principalmente à penalidade de multa prevista no inc. II do art. 52 da LGPD, de até 2% sobre o faturamento da empresa, limitada a 50 milhões de reais por infração. No entanto, parece-nos um paradoxo se comparar o valor dessa sanção com o inc. II do art. 12 do Marco Civil da Internet, plenamente em vigor, que prevê a multa de até 10% do faturamento da empresa, muito mais alta que o valor previsto na LGPD. Portanto, é possível que a multa prevista no MCI seja aplicada por violação aos direitos dos usuários da Internet previstos no art. 7º, entre os quais, os incisos VIII, IX e X garantem a proteção de dados pessoais. Em síntese, têm-se alguns possíveis cenários quanto à vigência da LGPD: 1) A MP 959/2020 não é convertida em lei: hipótese em que a LGPD entra em vigor imediatamente, sendo as sanções aplicáveis apenas a partir de agosto de 2021 conforme o RJET; 2) A MP 959/2020 é convertida em lei, vigorando com o RJET: a LGPD entraria em vigor no dia 3 de maio de 2021, no entanto, as sanções seriam aplicáveis apenas a partir de agosto de 2021; 3) A MP 959/2020 é convertida em lei revogando o RJET: a LGPD entraria em vigor no dia 3 de maio de 2021 em sua integralidade, com a possibilidade de aplicação das sanções. Esse desfecho incerto é uma grave ameaça à segurança jurídica, pois as empresas e os órgãos públicos não sabem, ao certo, a partir de quando terão de se adequar ao que dispõe a LGPD. Além disso, deixa margem ao ativismo judicial para colmatar lacunas quanto à proteção de dados pessoais, podendo, inclusive, aplicar a grave sanção prevista no Marco Civil da Internet. A relevância da LGPD é ainda mais acentuada no contexto da coleta de dados e compartilhamento de informações pessoais no contexto da pandemia da covid-19. Diante do uso das tecnologias de rastreamento pessoal para identificar a proximidade de pessoas infectadas pelo coronavirus ou do compartilhamento de dados pessoais entre empresas e órgãos públicos para medir a taxa de isolamento social, a proteção de dados pessoais precisa estar na ordem do dia. Entretanto, enquanto o Brasil ainda está patinando em matéria de proteção de dados, haja vista as tentativas de prorrogação de vigência da LGPD; a União Europeia tem enfrentado o uso dessas tecnologias com muita responsabilidade com destaque para a Declaração Conjunta do Conselho Europeu sobre Proteção de Dados no Contexto da COVID-19, de 30/03/20208. As diretrizes na União Europeia quanto à proteção de dados na época da pandemia da covid-19 são: tratar os dados minimamente necessários; eliminação desses dados após a situação de emergência global decorrente da pandemia; precedência do relatório de impacto à proteção de dados; adoção de medidas técnicas e organizacionais que asseguram a inviolabilidade destes bancos de dados; tecnologias de coleta e tratamento de dados pessoais, como as tecnologias de rastreamento pessoal, somente podem ser utilizadas se se comprovar que os benefícios superam em muito os prejuízos à proteção de dados pessoais. Em suma, a situação de emergência sanitária decorrente da pandemia do coronavirus não pode ser uma justificativa para prorrogar a vigência da LGPD. Ao contrário, tal situação demanda um olhar atento ao tema para que se possa garantir o pleno desenvolvimento da pessoa humana, tendo em vista o reconhecimento do direito à proteção de dados como um direito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade (ADI nº 6387, nº 6388, nº 6389, nº 6390 e nº 6393)9. *Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-Doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada. *Newton De Lucca é professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor do Corpo Permanente da Pós-Graduação Stricto Sensu da UNINOVE. Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 3a Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados. __________ 1 DE LUCCA, Newton; MACIEL, Renata Mota. A lei 13.709, de 14 de Agosto de 2018: a Disciplina Normativa que Faltava. In: DE LUCCA, Newton; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; SIMÃO FILHO, Adalberto; MACIEL, Renata Mota. Direito & Internet IV: Sistema de Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Quartier Latin, 2019. pp. 21 - 50. 2 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. O que é LGPD? Disponível aqui. Último acesso em 02/02/2020. 3 Directive 95/46/EC of the European Parliament and of the Council of 24 October 1995 on the protection of individuals with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data. Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020. 4 Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the Council of 27 April 2016 on the protection of natural persons with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data, and repealing Directive 95/46/EC (General Data Protection Regulation). Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020. 5 Sobre a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e os argumentos do veto à criação da ANPD vide: DE LUCCA, Newton; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) e Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados. São Paulo: Editora Almedina, 2019. pp. 373 - 398. 6 CAMARA DOS DEPUTADOS. Altera a lei 13.709, de 2018, prorrogando a data da entrada em vigor de dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD - para 15 de agosto de 2022. Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020. 7 PEROLI, Kelvin. Quais são as hipóteses em que é possível a transferência internacional de dados pessoais? Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020. 8 Joint Statement on the right to data protection in the context of the COVID-19 pandemic by Alessandra Pierucci, Chair of the Committee of Convention 108 and Jean-Philippe Walter, Data Protection Commissioner of the Council of Europe. Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020. 9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF suspende compartilhamento de dados de usuários de telefônicas com IBGE. Disponível aqui. Acesso em 02/08/2020.