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Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil e em Direito Notarial e Registral.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Neste artigo, cuidaremos de duas questões de Direito Comparado relevantes. A primeira é apresentar uma das principais instâncias da Espanha que decidem questões de direito privado no âmbito dos cartórios extrajudiciais. A segunda é comparar o direito espanhol com o brasileiro diante de uma hipoteca destinada a garantir um valor máximo (envolvendo, por consequência, condições suspensivas). Precedentes da DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN) Na Espanha, diversas questões de direito civil interessantíssimas frequentam os serviços notariais e registrais e são resolvidas pela Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Esse órgão, entre 1909 e 2020, era chamado de Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN1. Tendo em vista que a nomenclatura antiga (DGRN) é ainda a mais famosa e considerando que os principais julgados são anteriores à mudança de nomenclatura, manteremos a utilização do nome antigo. Trata-se de um órgão do Ministério da Justiça da Espanha. Sua atribuição é, essencialmente, gerir assuntos relacionados ao direito notarial e registral. Sua origem histórica foi a Lei Hipotecária de 1861. Uma de suas principais atuações é julgar os procedimentos provocados por recusas dos registradores a registrar títulos (procedimentos que, no Brasil, se assemelham ao procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos brasileira2). Comparando com o Brasil, a DGRN espanhola exerce um papel próximo das Corregedoria-Gerais de Justiça dos Tribunais estaduais ou do Conselho Nacional de Justiça. Historicamente, a DGRN sempre foi muito prestigiada na comunidade jurídica espanhola pela excelência técnica dos seus julgados e pela notável qualificação técnica dos seus julgadores. Há, porém, críticas ao prestígio atual da DGRN, como dá notícia a matéria intitulada Auge y caída de La Dirección General de los Registros y del Notariado, publicado na Revista Notario del Siglo XXI, em cuja capa foi estampada com o título Auge y caída de la Dirección General de los Registros y del Notariado3. Na referida matéria, são indicados os seguintes motivos para a alegada perda do prestígio da DGRN: (1) desmantelamento do corpo de letrados; (2) composição de membros que não ostentam independência intelectual nem imparcialidade; e (3) mudança para passar a admitir recurso judicial, o que teria gerado insegurança jurídica. O caso da hipoteca sob condição suspensiva Um interessante precedente do DGRN é a Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado4. O caso envolvia uma escritura pública lavrada por notário da cidade de Barcelona por meio da qual a sociedade CCP La Granada Logistics, S.L instituía uma hipoteca de máximo em favor de Hype Real State International, Sucursal Espanha. A Hype State disponibilizou à La Granada5um crédito mercantil máximo de ? 18.500.000,00 (dezoito milhões e quinhentos mil euros), o qual seria liberado por etapas sujeitas a condições suspensivas. Em contrapartida, a sociedade empresária devedora hipotecou o imóvel para garantir até 120% do valor acima, observadas as etapas de liberação do crédito e as pertinentes condições suspensivas. O valor garantido aumenta conforme se implementam as condições suspensivas. O Ofício de Registro de Imóveis (no caso, o Registro de La Propriedad de Vilafranca del Penedés) qualificou negativamente a escritura. Negou registrá-la, entre outros pelo seguinte motivo: o ordenamento não admitiria hipoteca sujeita a condição suspensiva. Em razão da impugnação pelo interessado contra essa negativa do registrador, o caso chegou à DGRN por meio do recurso administrativo6 do art. 19 bis da Lei Hipotecária espanhola7. No relevante, a DGRN contrariou o registrador e admitiu a hipoteca sob condição suspensiva no caso concreto. Apesar de se tratar de discussão acerca de um direito real típico (a hipoteca), o precedente em pauta discute até que ponto a vontade pode modelar esse direito mediante condição suspensiva. No caso, a DGRN realçou que o regime de numerus apertus foi adotado na Espanha, mas ressalvou que a mera vontade não é suficiente à criação de novos direitos reais. É preciso observar outros requisitos. Confira-se este excerto da Resolución em pauta8: Indubitavelmente, no nosso ordenamento, o proprietário pode dispor de seus bens e, assim, constituir gravares sobre eles, sem mais restrições que não as estabelecidas em lei (artigo 348 do Código Civil espanhol). Não somente se permite a constituição de novas figuras de direitos reais não especificamente previstas pelo legislador (cfr. artigos 2.2º da Ley Hipotecaria e 7º do Reglamento HIpotecario), mas também se permitem a a alteração do conteúdo típico dos diretos reais legalmente previstos e, em concreto (cfr. Artigos 647 do Código Civil espanhol e 11, 23 e 37 da Ley Hipotecaria), a sujeição desses direitos a condição, termo e encargo. Porém, é certo também que essa liberalidade tem de ajustar-se a determinados limites e respeitar as normas estruturas (imperativas) do estatuto jurídico dos bens, dado seu significado econômico-político e a transcendência erga omnes dos direitos reais, de modo que a autonomia da vontade deve ser temperada com a satisfação de determinadas exigências, tais como a existência de uma justificativa suficiente, a determinação precisa dos contornos do direito real, a inviolabilidade do princípio da liberdade de tráfego etc. (cfr. Resoluciones de 5 de junio; 23 e 26 de octubre; 4 de marzo de 1993). Esses limites alcançam especial significado em relação à hipoteca, pois são impostos em defesa do credor e para facilitar o tráfego jurídico imobiliário, o crédito imobiliário e, em última instância, a ordem pública econômica. Como se vê, no julgado acima, a DGRN invocou a tipologia de numerus apertus da Espanha para justificar a imposição de uma condição suspensiva para o direito real típico de hipoteca. Breves reflexões ao Brasil No Brasil, indaga-se: a sujeição da hipoteca a uma condição suspensiva na forma acima seria admitida? Entendemos que sim. Isso, porque nada impede que a hipoteca seja instituída indicando o valor máximo da dívida garantida, conforme art. 1.424, I, do Código Civil brasileiro. Não há necessidade de recorrer a discussões de tipicidade de direitos reais, pois o ordenamento jurídico brasileiro é textual em admitir hipoteca para garantir dívidas futuras até um valor máximo. Aliás, a plasticidade dos direitos reais já é suficiente para acomodar diversas situações concretas, sem necessidade de se pensar em criação de novos direitos reais. Logo, no Brasil, em que prevalece o entendimento de que os direitos reais são sujeitos a numerus clausus, a situação concreta analisada na Espanha seria perfeitamente admitida. __________ 1 Por curiosidade, na Colômbia, atribuição similar cabe à Superintendencia de Notariado & Registro - SNR, cujo site oficial é este. Um exemplo de decisão desse órgão colombiano é Resolución número 021 (marzo 09 de 2022), da SNR. 2 Lei 6.015/1973. 3 El notário, 2012, disponível aqui. 4 Iberley, 2005, disponível aqui. 5 E a outras empresas do mesmo grupo econômico da La Granada. 6 Esse recurso administrativo aproxima-se, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei 6.015/1973. 7 Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria (BOE, 1946). 8 Tradução livre de excerto da Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado (Iberley, 2005).
Na coluna anterior, tratamos de experiências de harmonização da União Europeia, ilustrando com o direito sucessória. Trataremos agora do ambiente normativo de direito processual e de direito material da União Europeia. 1. Interrelação dos sistemas judiciais dos Estados membros A União Europeia focou bastante um aspecto procedimental essencial para a operacionalização: as medidas necessárias à cooperação judiciária e à execução de decisões judiciais estrangeiras. Pouco proveito haveria em uma harmonização de direito material se, na prática, os cidadãos não conseguissem concretizar seus direitos por obstáculos à eficácia extraterritorial das decisões judiciais. Nesse sentido, a União Europeia, no Conselho de Tampere (reunião do Conselho Europeu ocorrida na cidade finlandesa de Tampere em 15 e 16 de outubro de 1999), aprovou o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais. Esse princípio estabelece que os Estados membros devem eliminar, ao máximo, exigências adicionais à eficácia, em seus territórios, de decisões judiciais uns dos outros. Devem-se abolir os procedimentos intermédios para o reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras. Os Estados membros devem reconhecer as decisões judiciais uns dos outros. Trata-se de uma pedra angular para a efetiva criação de um espaço de justiça dentro da União Europeia. O Conselho de Tampere, ainda, recomenda a adoção de regras processuais comuns em processos transfonteiriços (aqueles que envolvem a jurisdição de mais de um Estado membro). São esclarecedores estes excertos das conclusões do Conselho de Tampere1: 5. A liberdade apenas pode ser disfrutada num verdadeiro espac¸o de justic¸a, onde as pessoas possam recorrer aos tribunais e a`s autoridades de qualquer Estado- Membro ta~o facilmente como o fariam no seu pro'prio pai's. Os criminosos na~o devem ter a possibilidade de tirar partido das diferenc¸as entre os sistemas judicia'rios dos Estados-Membros. As sentenc¸as e deciso~es devem ser respeitadas e aplicadas em toda a Unia~o, salvaguardando simultaneamente a seguranc¸a juri'dica de base tanto dos indivi'duos como dos operadores econo'micos. E' necessa'rio alcanc¸ar um grau mais elevado de compatibilidade e de converge^ncia entre os sistemas juri'dicos dos Estados-Membros.  (...) B. UM VERDADEIRO ESPAC¸O EUROPEU DE JUSTIC¸A  28. Num verdadeiro espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os e as empresas na~o devera~o ser impedidos ou desencorajados de exercerem os seus direitos por razo~es de incompatibilidade ou complexidade dos sistemas juri'dicos e administrativos dos Estados-Membros.  (...) VI. Reconhecimento mu'tuo das deciso~es judiciais  33. Um maior reconhecimento mu'tuo das sentenc¸as e deciso~es judiciais e a necessa'ria aproximac¸a~o da legislac¸a~o facilitariam a cooperac¸a~o entre as autoridades e a protecc¸a~o judicial dos direitos individuais. Por conseguinte, o Conselho Europeu subscreve o princi'pio do reconhecimento mu'tuo que, na sua opinia~o, se deve tornar a pedra angular da cooperac¸a~o judicia'ria na Unia~o, tanto em mate'ria civil como penal. Este princi'pio devera' aplicar-se a`s sentenc¸as e outras deciso~es das autoridades judiciais.  34. Em mate'ria civil, o Conselho Europeu exorta a Comissa~o a apresentar uma proposta tendo em vista uma maior reduc¸a~o dos tra^mites intermedia'rios que ainda sa~o necessa'rios para o reconhecimento e execuc¸a~o de uma decisa~o ou sentenc¸a no Estado requerido. Como primeiro passo, estes procedimentos interme'dios devera~o ser abolidos no caso das pequenas acc¸o~es do foro comercial ou de consumidores e para certas sentenc¸as no domi'nio do direito da fami'lia (p. ex., em mate'ria de penso~es de alimentos e direitos de visita). Essas deciso~es seriam automaticamente reconhecidas em toda a Unia~o sem quaisquer procedimentos intermedia'rios ou motivos de recusa de execuc¸a~o. Tal passo poderia ser acompanhado da fixac¸a~o de normas mi'nimas sobre aspectos especi'ficos do processo civil.  Em decorrência dessa diretriz de Tampere, a União Europeia avançou na edição de normas para facilitar a cooperação judiciária e viabilizar a execução de decisões judiciais estrangeiras. São os casos, por exemplo, destes Regulamentos: a) Regulamento Europeu nº 1348/2000: lida com citações e intimações2. b) Regulamento Europeu nº 4/2009: versa sobre alimentos. c) Regulamento Europeu nº 2201/20033: trata de decisões em matéria de Direito de Família (divórcio, guarda, tutela, curatela etc.) e guarda sintonia com a Convenção de Haia de 25 de outubro de 19804. d) Regulamento Europeu nº 1215/2012: cuida de decisões em matéria civil e comercial5. e) Regulamento Europeu nº 650/2012 (Regulamento das Sucessões): trata, entre outras questões6, de decisões judiciais estrangeiras em matéria de direito sucessório7. f) Regulamento Europeu nº 606/2013: versa sobre o reconhecimento mútuo de medidas protetivas em matéria civil, assim entendidas as decisões destinadas à proteção de pessoas sob ameaça de dano à sua integridade física ou psicológica8. 2. Normas de direito material para harmonização na União Europeia Os movimentos de uniformização do direito privado europeu sempre envolveram a ideia de criação de um Código Civil Comum a toda a Europa. Símbolo dessa tendência são as manifestações do Parlamento Europeu em 19899 e em 199410. Elas recomendavam a criação de um código europeu comum de direito privado com oitiva dos Estados membros. Elas também estimavam os esforços para promover "a harmonização e a unificação no plano mundial ou europeu", com interação com organizações como a Unidroit, a Unicitral e o Conselho da Europa. Ilustra essa mesma linha a manifestação do Comitê Econômico e Social Europeu (CESE) em 201011. Esta defende que o mercado interno europeu reclama um direito europeu dos contratos. Apoia também os estudos para a criação de um Quadro Comum de Referências (QCR), ferramenta útil a facilitar o cotejo dos direitos de cada Estado membro. Igualmente, o CESE ratifica a importância de um Código Europeu Comum de Direito Privado12. Trata-se de desdobramento de diretrizes de harmonização já traçadas anteriormente no âmbito comunitário, a exemplo do Conselho Europeu de Tampere de 1999 (que solicitou à Comissão um estudo para a aproximação das legislações dos Estados membros)13. Também se cuida de fruto do convite feito pelo Programa Estocolmo para 2010-2015 para a Comissão apresentar uma proposta de Quadro Comum de Referência no domínio europeu dos contratos. Esse quadro seria um instrumento não vinculante com princípios fundamentais, definições e regras-padrão a inspirarem os legisladores comunitários e domésticos14. Em outras palavras, a ideia do Quadro Comum de Referência é ser um instrumento de soft law. Esses esforços de harmonização são mais adequados para o mercado. A estratégia "Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo" é nesse sentido. Reconhece ser mais fácil e menos oneroso para as empresas e os consumidores a conclusão de contratos com parceiros de outros países da União Europeia dentro de um ambiente de direito europeu dos contratos de natureza facultativa15. Em 2005, a Comissão Europeia financiou uma rede universitária europeia em pesquisas para a elaboração de um projeto de Quadro Comum de Referência (projeto de QRC ou, inglês, Draft of Common Frame of Reference - DCFR), com foco em consumidores e contratos. Participaram desse trabalho a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française bem como a Société de législation Comparée16, além de outras entidades (como o Study Group on European Civil Code e o Research Gourp on Existing EC Private Law - "Acquis Group"). Os trabalhos resultaram no projeto de Quadro Comum de Referência (mais conhecido por seu nome inglês Draft Comoon Frame of Reference - DCFR), de 200917. Trata-se de um vasto documento, de quase cinco mil páginas, que, na prática, mais se assemelha a um Código Civil Europeu comentado em matéria de obrigações, contratos e responsabilidade civil18. Prevê não apenas modelos de regras, mas também princípios e definições. O DCFR - que é um "rascunho" - servirá de suporte para os trabalhos do grupo de peritos criado em 2010 pela Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia19, com o objetivo de elaborar o Comoon Frame of Reference - CFR, intento ainda em marcha. O DCFR vai muito além de um documento para respaldar uma futura norma europeia. Ele é um documento acadêmico de valor inestimável, como uma das maiores empreitadas comparatistas em obrigações e contratos. É, portanto, útil a pesquisas acadêmicas20, à jurisprudência doméstica (que encontrará seguras referências de direito comparado) e a legisladores de países não europeus. Aliás, pode até ser considerado um instrumento de soft law e, entre outras finalidades, poderia ser escolhido como regra aplicável em contratos ou em julgamentos arbitrais21. Outra iniciativa igualmente relevante para a harmonização são os três volumes do Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como "Lando Commission" em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200322. __________ 1 EUROPEAN PARLIAMENT. Conselho Europeu de Tampere 15 e 16 de outubro de 1999: conclusões da presidência. Data: 15 e 16 de outubro de 1999 (Disponível aqui). 2 Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho. Data: 29 de maio de 2000 (Disponível aqui). 3 Revogou o Regulamento CE nº 1347/2000. 4 Eur-lex, Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho. Data: 27 de novembro de 2003 (Disponível aqui). Para aprofundamento na legislação europeia sobre direitos da criança, ver Manual de Legislação Europeia sobre Legislação Europeia sobre os Direitos da Criança (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS, EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS E CONCIL OF EUROPE. Manual de legislação europeia sobre os Direitos da Criança. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2016. Disponível aqui). 5 Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de dezembro de 2012-B (Disponível aqui). 6 Entre as outras várias questões, o Regulamento Europeu das Sucessões trata dos pactos sucessórios, assim entendido acordos dispondo de direitos sobre heranças futuras. O Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão C-277/20, definiu que se inclui no conceito de pacto sucessório o caso de um contrato de doação de um imóvel quando do falecimento do doador (Curia, Acórdão do Tribunal de Justiça 9 de setembro de 2021, processo C-277/20. Data: 9 de setembro de 2021 (Disponível aqui). 7 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012 (Disponível aqui). 8 Regulamento (UE) nº 606/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de junho de 2013 (Disponível aqui). 9 Resolução A2-157/89, JO nº C 158, de 26 de junho de 1989, p. 400 (Disponível aqui). 10 Resolução A3-0329/94, JO nº C 205, de 25 de julho de 1994, p. 158 (Disponível aqui). 11 A publicação, porém, deu-se em 2011 (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011. Disponível aqui). 12 Convém leitura destes excertos do Parecer do CESE (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011 (Disponível aqui): 1.1 O CESE partilha do ponto de vista da Comissa~o segundo o qual o mercado interno europeu deve ser realizado tambe'm na o'ptica do direito europeu dos contratos e reconhece a importa^ncia dos estudos dos investigadores acade'micos sobre o Quadro Comum de Refere^ncia (QCR), de que se poderia tirar partido ao ni'vel pra'tico.  (...) 1.4 O CESE e' de opinia~o que os instrumentos propostos pelo Quadro Comum de Refere^ncia podera~o contribuir para assegurar a coere^ncia global do direito europeu dos contratos, reduzir os obsta'culos ao come'rcio e promover a concorre^ncia no mercado interno.  (...) 2.1.7 O Parlamento Europeu aprovou uma se'rie de resoluc¸o~es sobre uma possi'vel harmonizac¸a~o do direito privado substantivo. Em 1989 e 1994, apelou ao ini'cio de um trabalho sobre a possibilidade de elaborar um Co'digo Europeu Comum de Direito Privado.  2.1.8 O Parlamento declarou que a harmonizac¸a~o de determinados domi'nios do direito privado e' essencial para a realizac¸a~o do mercado interno e que a unificac¸a~o dos ramos mais importantes do direito privado, sob a forma de um Co'digo Civil Europeu, constituiria a forma mais eficaz de levar a cabo essa harmonizac¸a~o.  2.1.9 O CESE ja' havia indicado no seu parecer de 2002 que «a elaborac¸a~o de um direito europeu dos contratos uniforme e geral, por exemplo, sob a forma de um regulamento, soluc¸a~o que o Comite' prefere para evitar diverge^ncias, pode requerer tempo e estudos complementares, mas deveria apoiar-se nos trabalhos ja' efectuados pelas va'rias comisso~es e instituic¸o~es ja' mencionadas e nas regras e pra'ticas internacionais em vigor»  2.1.10 Noutro seu parecer de 2010, o CESE sublinhou que «A rede "Princi'pios Comuns de Direito Europeu dos Contratos" (rede CoPECL) deu por terminado ha' pouco o seu Projecto de Quadro Comum de Refere^ncia e apresentou-o a` Comissa~o Europeia. Essas regras da~o manifestamente ao legislador europeu um modelo que poderia ser utilizado para a adopc¸a~o de um instrumento opcional, como advogado pela comissa'ria Viviane Reding»  13 European Parliament, 1999. 14 Ver: (1) Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010, pp. 109-111 (Disponível aqui); (2) Eur-lex, Programa de Estocolmo - uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, JO C 155, de 4 de maio de 2010-B, pp. 1-38 (Disponível aqui. O programa Estocolmo foi o último programa plurianual da União Europeia e era respaldado pelo art. 68º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Antes dele, houve o programa de Haia (2004 a 2009) e o programa de Tampere (1999-2004). O objetivo era estabelecer orientações estratégicas no âmbito da União Europeia. 15 Eur-lex, EUROPA 2020 Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. Ano: 2020 (Disponível aqui). 16 A Société de législation Comparée duas obras importantes: Principes contractuels Communs: projet de cadre comum référence e Terminologie Contratuelle Commune: projet de cadre commun de référence. 17 Em 2008, houve a publicação de uma versão interina para consulta pública. Após absorção das sugestões da comunidade jurídica, foi publicada, em 2009, a versão final. 18 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida (disponível aqui. Ver: Law Kuleuven, Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui).   19 Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia, JO L105, de 27 de abril de 2010, p. 109 (Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010-A, pp. 109-111 (Disponível aqui). Ver: (1) MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23; (2) ALPA, Guido. The European Civil Code: "E Pluribus Unum". In: Tulane European & Civil Law Forum, vol. 14, 1999, pp. 1-14; e (3) AQUINO, Leonardo Gomes de. A uniformização do Direito Privado: Uma perspectiva do Direito Privado europeu. Publicado em setembro de 2004 (Disponível aqui). 20 Luiz Cláudio Cardona Pereira, por exemplo, pesquisou o enriquecimento sem causa sob a perspectiva do DCFR (PEREIRA, Luiz Cláudio Cardona. Harmonização e unificação internacional do regime do enriquecimento sem causa: uma perspectiva a partir do DCFR. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 29, jul./set. 2021, pp. 123-161. Disponível aqui). 21 Sobre o DCFR, ver: (1) GILIKER, Paula. The Draft Common Frame of Reference and European contract law: moving from the "academic" to the "political". Publicado em 2019 (Disponível aqui); (2) RUSE-KHAN, Henning Grosse. The European Draft Common Frame of Reference - a source os Comparative Law; a new option for choosing the applicable law; or a template for a European Civil Code?. In: International Seminar on Comparative Law, Conference Proceedings, Kuala Lumpur, November 2008 (Disponível aqui); (3) HOUSE OF LORDS. European Contract Law: the Draft Common Frame of Reference. 12th Report of Session de 2008-09. Published 10 June 2009 (Disponível aqui). 22 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui).
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no Direito Internacional europeu. 1. Lei do domicílio habitual como elemento de conexão para a lei sucessória na União Europeia Outro ponto importante no processo de harmonização do direito na União Europeia é a escolha de elementos de conexão compatíveis com essa finalidade. Elementos de conexão são regras de Direito Internacional Privado para resolver conflitos entre leis de diferentes países. São regras que definem se se aplicará a lei de um país ou a lei de outro. Os elementos de conexão precisam ser hospitaleiros a situações transnacionais. É o caso, por exemplo, do estatuto sucessório (ou seja, da definição da lei aplicável a regular a sucessão mortis causa): adotou-se, na União Europeia, como elemento de conexão, a lei de residência habitual do falecido1. Esse elemento de conexão favorece a circulação de riquezas, pois geralmente o centro da vida das pessoas e seu patrimônio costumam estar no seu domicílio2. Além disso, esse elemento de conexão coincide com o foro competente para lidar com a sucessão mortis causa3. É verdade que a residência habitual como elemento de conexão apresenta alguns pontos negativos. Um deles é a facilidade na sua alteração: basta o indivíduo mudar-se para outro local com ânimo definitivo. Esse caráter itinerante pode gerar um pouco de insegurança jurídica. Outro ponto negativo é que, em alguns casos concretos, é difícil determinar qual é a residência habitual. O próprio Regulamento Europeu das Sucessões reconhece esse ponto negativo; tanto que, para alguns casos, a norma comunitária permite que o juiz indique o local com o qual o falecido guardava conexão manifestamente mais estreita à luz do caso concreto4. É o que expõem os Considerandos nº 24 e 255: (24) Em certos casos, podera' ser complexo determinar a resi­ de^ncia habitual do falecido. Podera' ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razo~es profissionais ou econo'micas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de ai' trabalhar, por vezes por um longo peri'odo, mas tenha mantido uma relac¸a~o estreita e esta'vel com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido podera', em func¸a~o das circunsta^ncias, ser considerado como tendo ainda a sua reside^ncia habitual no Estado de origem, no qual se si­ tuavam o centro de interesses da sua fami'lia e a sua vida social. Outros casos complexos podera~o igualmente ocor­ rer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em va'rios Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciac¸a~o global de todas as circunsta^ncias factuais.  (25) No que diz respeito a` determinac¸a~o da lei aplica'vel a` sucessa~o, a autoridade que trata da sucessa~o pode, em casos excecionais - quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua reside^ncia habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as cir­cunsta^ncias do caso indiquem que tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com outro Estado - chegar a` conclusa~o de que a lei aplica'vel a` sucessa~o na~o devera' ser a do Estado da reside^ncia habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita. No entanto, a rela­c¸a~o manifestamente mais estreita na~o devera' tornar-se em fator de conexa~o subsidia'rio caso se revele complexa a determinac¸a~o da reside^ncia habitual do falecido no momento do o'bito.  Todavia, esses pontos negativos são robustamente desprezíveis se se levarem em conta as exuberantes vantagens desse elemento de conexão à criação de um espaço internacional hospitaleiro a situações jurídico-transnacionais6. Além do mais, o próprio Regulamento Europeu fornece algumas ferramentas que aliviam esses pontos negativos. É o caso, por exemplo, da supracitada autorização para o juiz afastar a lei da residência habitual do falecido em favor da lei do Estado com o qual o falecido guarde manifestamente mais estreita relação (art. 21º, nº 2, do Regulamento UE nº 650/2012). Consideramos que essa hipótese deve ser aplicada com extrema cautela, para não frustrar a legítima expectativa dos sujeitos e para não instigar empreitadas oportunistas de herdeiros que seriam beneficiados com o deslocamento da lex successionis do Estado da residência habitual para o Estado supostamente mais conexo. Outra ferramenta que alivia os pontos negativos da lex domicilii para o estatuto sucessório é o caso do professio iuris em favor da lei da nacionalidade (art. 22º, nº 1º, do Regulamento UE nº 650/2012). Há quem critique a lex patriae como elemento de conexão por implicar uma discriminação quanto à nacionalidade. Todavia, essa crítica não prospera no presente caso, pois a lex patriae só será aplicada se a parte mesmo a eleger. Nessa situação, a lex patriae não gera discriminação quanto à nacionalidade, mas sim promove a autonomia da vontade e aumenta a previsibilidade jurídica aos sujeitos. Prosseguiremos na próxima Coluna. Até lá! __________ 1 Art. 21 do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012).   2 O art. 34 do Regulamento Europeu das Sucessões admite o reenvio entre os Estados membros da União Europeia sem restrição. E acata o reenvio em favor de um Estado não membro que aplicaria a própria lei. 3 Art. 4º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). 4 Art. 21º, nº 2, do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012): Artigo 21.º Regra geral Salvo disposic¸a~o em contra'rio do presente regulamento, a lei aplica'vel ao conjunto da sucessa~o e' a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o'bito. 2. Caso, a ti'tulo excepcional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o'bito, o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica'vel nos termos do n.º 1, e' aplica'vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.   5 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012-A (Disponível aqui). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 135.
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no direito internacional europeu. 1. Sistema unitário das sucessões mortis causa na União Europeia O normativo europeu de sucessões (o Regulamento EU nº 650/2012) busca evitar que a sucessão mortis causa transnacional fique vulnerável a uma insegurança jurídica que ocorreria caso a lei de mais de um Estado membro fosse aplicável. Assim, se uma pessoa falecer deixando bens em vários Estados membros, o Regulamento Europeu das Sucessões definirá uma única lei que será aplicável para reger a transmissão mortis causa de todos os bens, independentemente da sua localização. A norma comunitária censura a fragmentação da sucessão para leis diferentes por adotar o princípio da unidade sucessória1. Esse princípio contrapõe-se ao princípio do fracionamento da lei sucessória, que é comum quando se prestigia a lex rei sitae para reger a sucessão mortis causa em detrimento da lex successionis. Aliás, o sistema da sucessão unitária (assentado no princípio da unidade da lei sucessória) é a tendência dos ordenamentos desde a segunda metade do século XX em virtude das dificuldades do sistema de fracionamento da sucessão. É o que vigora em Portugal, na Alemanha, na Áustria, na Checoslováquia, na Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estônia etc. Foi proposto por Savigny e Mancini2. O sistema da sucessão unitária substituiu, em vários países, o sistema do fracionamento da sucessão, de origem feudal. Este último (o sistema do fracionamento da sucessão) é o sistema tradicional nos países anglo-saxões, nos influenciados pelo Código Civil napoleônico (como França, Bélgica, Luxemburgo), na Bulgária, na Lituânia e na Romênia3. O Regulamento Europeu das Sucessões, todavia, rejeitou o sistema do fracionamento da sucessão pelo fato de que a insegurança jurídica desse modelo tem o potencial de inibir a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Em sintonia com essa necessidade de conciliar os diversos sistemas jurídicos dos Estados membros com a vontade dos sujeitos, o Regulamento Europeu das Sucessões prestigia a autonomia da vontade, ao admitir o professio iuris em matéria sucessória4. Trataremos da professio iuris no próximo capítulo. 2. Professio iuris: escolha da lei aplicável como um prestígio à autonomia da vontade Professio iuris é a escolha da lei aplicável. Esse conceito era utilizado na Idade Média. Referia-se às manifestações de vontade das partes de um negócio quanto à lei a ser aplicada. Era termo mais utilizado em escolhas feitas em testamento para reger a sucessão mortis causa. Na Suíça do final do século XIX, esse termo foi resgatado para a escolha da lei aplicável pelo testador. A Convenção de Haia de 1989 sobre a Lei Aplicável a Sucessões mortis causa reforçou a figura e serviu de modelo a diversas outras legislações. O Regulamento Europeu das Sucessões positiva o professio iuris em matéria sucessória em favor da lei da nacionalidade5. De fato, o Regulamento Europeu das Sucessões adota, por exemplo, como elemento de conexão no caso de conflito de leis, o ordenamento da residência habitual do falecido, admitida, porém, a escolha da lei da nacionalidade (lex patriae) pelo autor da herança em testamento (arts. 21 e 22). Essa exceção representa a admissão do professio iuris em favor da lei da lei nacionalidade. O professio iuris é uma excelente alternativa para conciliar, de um lado, a autonomia da vontade dos sujeitos e, de outro lado, a importância em harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos implicados no caldeirão jurídico da União Europeia. Permitir que as partes possam escolher o direito aplicável é lhes conceder previsibilidade jurídica e condições efetivas de planejar suas relações privadas. É nesse contexto o professio iuris6é empregado em vários domínios do direito privado europeu. Em matéria obrigacional (contratual e extracontratual), a escolha da lei aplicável é uma das colunas da normatização comunitária. É o que estatui o Regulamento Roma I7, que disciplina a lei aplicável em obrigações contratuais. A liberdade de as partes escolherem o direito aplicável é "uma das pedras angulares do sistema de normas de conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais"8. É a mesma linha do Regulamento Roma II9, que regula a lei aplicável em obrigações extracontratuais, como a proveniente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa, de culpa in contrahendo (responsabilidade civil pré-contratual) e de gestão de negócios. O professio iuris em matéria contratual e extracontratual, todavia, deve ser feita sem abuso de direito. E, por isso, os Regulamentos Roma I e Roma II estabelecem limites à escolha da lei para evitar lesões à ordem pública e prejuízos a partes vulneráveis. Por exemplo, em contratos celebrados com consumidor, a escolha da lei não pode ser feita de modo a afastar proteções de ordem pública que são garantidas ao consumidor pela lei da sua residência habitual (art. 6º, nº 2, do Regulamento Roma I10). Em resumo, quando envolver consumidor, prestigia-se a aplicação da lei mais favorável a ele por conta de sua vulnerabilidade11. No mesmo sentido, para obrigações extracontratuais, é esclarecedor o Considerando nº 31 do Regulamento Roma II, in verbis: (31) Para respeitar o princípio da autonomia das partes e reforçar a certeza jurídica, as partes deverão poder escolher a lei aplicável a uma obrigação extracontratual. Esta escolha deverá ser expressa ou demonstrada com um grau de certeza razoável pelas circunstâncias do caso. Ao determinar a existência de acordo, o tribunal deverá respeitar as intenções das partes. É necessário proteger as partes mais vulneráveis, impondo determinadas condições a esta escolha. Prosseguiremos na próxima coluna. __________ 1 Transcreva-se o Considerando 37 do Regulamento Europeu das Sucessões (Disponível aqui): (37) Para que os cidada~os possam beneficiar, com toda a seguranc¸a juri´dica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento devera´ permitir-lhes co¬nhecer antecipadamente qual sera´ a lei aplica´vel a` sua sucessa~o. Devera~o ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contradito´rios. A regra principal devera´ assegurar previsibilidade no que se refere a` lei aplica´vel com a qual a sucessa~o apresente uma conexa~o estreita. Por razo~es de seguranc¸a juri´dica e para evitar a fragmentac¸a~o da sucessa~o, essa lei devera´ regular a totalidade da sucessa~o, ou seja, todos os bens da heranc¸a, independentemente da natureza dos bens e in¬dependentemente de estes se encontrarem situados nou¬tro Estado-Membro ou num Estado terceiro.  No mesmo sentido, os arts. 20º, 21º, n. 1, 22º, n. 1, e 23, n. 1, do Regulamento Europeu das Sucessões são incisivos em deixar claro que a lex successionis escolhida nos seus termos disciplinará "toda a sucessão", ou seja, "o conjunto da sucessão", ainda que ela não seja a lei aplicável à luz do ordenamento de algum Estado membro. Confira-se (Disponível aqui): CAPI´TULO III LEI APLICA´VEL Artigo 20.º Aplicac¸a~o universal E´ aplica´vel a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que na~o seja a lei de um Estado-Membro.  Artigo 21.º Regra geral 1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel ao conjunto da sucessa~o e´ a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o´bito.  2. Caso, a ti´tulo excecional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o´bito, o fale cido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica´vel nos termos do nº 1, e´ aplica´vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.  Artigo 22.º Escolha da lei 1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessa~o a lei do Estado de que e´ nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do o´bito.  Uma pessoa com nacionalidade mu´ltipla pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que e´ nacional no momento em que faz a escolha.  2. A escolha deve ser feita expressamente numa declarac¸a~o que revista a forma de uma disposic¸a~o por morte ou resultar dos termos dessa disposic¸a~o.  3. A validade material do ato pelo qual foi feita a escolha da lei e´ regulada pela lei escolhida.  4. Qualquer alterac¸a~o ou a revogac¸a~o da escolha da lei deve preencher os requisitos formais aplica´veis a` alterac¸a~o ou a` re¬vogac¸a~o de uma disposic¸a~o por morte.  Artigo 23.º A^mbito da lei aplica´vel 1. A lei designada nos termos do artigo 21.º ou do ar¬tigo 22.º regula toda a sucessa~o.  2. Essa lei rege, nomeadamente:  a)  As causas, o momento e o lugar da abertura da sucessa~o;  b)  A determinac¸a~o dos beneficia´rios, das respetivas quotas-par¬tes e das obrigac¸o~es que lhes podem ser impostas pelo fale¬cido, bem como a determinac¸a~o dos outros direitos suces¬so´rios, incluindo os direitos sucesso´rios do co^njuge ou parceiro sobrevivo;  c)  A capacidade sucesso´ria;  d)  A deserdac¸a~o e a incapacidade por indignidade;  e)  A transmissa~o dos bens, direitos e obrigac¸o~es que compo~em a heranc¸a aos herdeiros e, consoante o caso, aos legata´rios, incluindo as condic¸o~es e os efeitos da aceitac¸a~o da sucessa~o ou do legado ou do seu repu´dio;  f)  Os poderes dos herdeiros, dos executores testamenta´rios e outros administradores da heranc¸a, nomeadamente no que respeita a` venda dos bens e ao pagamento dos credores, sem prejui´zo dos poderes a que se refere o artigo 29.o, n.os 2 e 3;  g)  Responsabilidade pelas di´vidas da sucessa~o;  h)  A quota disponi´vel da heranc¸a, a legi´tima e outras restric¸o~es a` disposic¸a~o por morte, bem como as pretenso~es que pes¬ soas pro´ximas do falecido possam deduzir contra a heranc¸a ou os herdeiros;  i)  A colac¸a~o e a reduc¸a~o das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinac¸a~o das quotas dos diferentes beneficia´rios;    j)  A partilha da heranc¸a. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 124. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 124-125. 4 Santiago Álvarez González (2009, pp. 17-49) tratou do tema antes da superveniência do Regulamento (UE) nº 650/2012 (GONZÁLEZ, Santiago Alvarez. La professio iuris y la sucesión internacional em uma futura reglamentación comunitária. In: Estudios Jurídicos em Memoria del Profesor José Manuel Lete del Rio. Civitas, Thomson Reuter e Cizur Menor, 2009, pp. 17-49) 5 Josep M. Fontanellas Morell (2010 e 2011) faz aprofundada análise dessa figura na sua obra La profesio iuris sucesoria e no artigo La Professio Iuris Sucesoria a las puertas de uma reglamentación comunitária. A expressão professio iuris é utilizada para eleição de leis em outras questões que não sucessórias, como em matéria de casamento (Baarsma, 2011, p. 68). Sobre o assunto, ver: (1) MORELL, Josep María Fontanellas. La professio iuris sucessória. Madrid/Espanha: Marcial Pons, 2010; (2) MORELL, Josep María Fontanellas. La Professio Iuris sucesoriaa las puertas de una reglamentación comunitária. In: Dereito, vol. 20, nº 2, 2011, pp. 83-129 (Disponível aqui); (3) CARRASCOSA GONZÁLEZ, Javier. El Reglamento Sucesorio Europeo 650/2012 de 4 de julio de 2002: análisis crítico. Granada: Comares, 2014; (4) CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo. Residência habitual e lei aplicável à sucessão causa mortis internacional. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PGGDir.UFGRS. Porto Alegre, volume XI, nº 2, 2016, pp. 4-45; (5) PALAO MORENO, Guillermo. La Importancia de la autonomia de la voluntad conflictual em del derecho internacional privado de la Unión Europea. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, volume 102, nº 125-130, jul./dez. 2017, pp. 77-102. 6 Embora tecnicamente o conceito de professio iuris seja empregada em matéria sucessória por conta de seu contexto histórico medieval, temos por conveniente estender seu conceito para qualquer situação de escolha de leis, como fazem alguns autores (a exemplo de: BAARSMA, N. A. The Europeanisation of International Family Law. Hague/Netherlands: Asser Press; Berlin/Germany: Springer-Verlag, 2011, p. 68). 7 Regulamento CE nº 493/2008, de 17 de junho de 2008. 8 Considerando 11 do Regulamento Roma I. 9 Regulamento CE nº 864/2007, de 11 de julho de 2007. 10 Confira-se o art. 6º do Regulamento Roma I: Artigo 6º Contratos celebrados por consumidores 1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais («o profissional»), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional: a) Exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas actividades. 2. Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o. Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1. 3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o. 4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes: a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual; b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma viagem organizada na acepção da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (15); c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE; d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;   e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alínea h) do n.o 1 do artigo 4º 11 Confira-se o Considerando 23 do Regulamento Roma I: (23) No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê-las através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.
Nas colunas anteriores, buscamos tratar didaticamente do cenário institucional e normativa da União Europeia a fim de preparar o terreno para o foco destas séries de publicações: expor o cenário de harmonização jurídica no âmbito do direito privado europeu. Voltamo-nos agora para essa meta. 1. Visão panorâmica da harmonização jurídica na União Europeia no direito privado A harmonização internacional de direitos não necessariamente depende de uma de integração regional. Esta é apenas um catalisador da harmonização, a exemplo do que se testemunha com a experiência da União Europeia. No caso da União Europeia, a harmonização jurídica no direito privado é fortemente estimulada pelos seus próprios fundamentos principiológicos, especialmente o da liberdade de circulação de pessoas, de capital e de trabalhadores1 bem como o da busca por criar um espaço de liberdade, segurança e justiça2. Para viabilizar essa liberdade, é essencial que haja uma harmonização jurídica entre os Estados membros, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos e ao mercado. Devem-se reduzir, ao máximo, obstáculos jurídicos que inviabilizem ou dificultem demasiadamente a referida livre circulação. Não se pretendem, com isso, eliminar as particularidades jurídicas de cada Estado membro. O TFUE é expresso em preconizar o respeito "dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros" (art. 67º, item 1). A harmonização jurídica da União Europeia caminha não apenas em aproximar as normas de direito material e processual em direito privado, mas também em uniformizar as regras de direito internacional privado (relativamente aos conflitos potenciais entre os ordenamentos diante de situações privadas transnacionais). A doutrina costuma reportar-se a esse fenômeno na União Europeia como "europeização do direito internacional privado"3. Na verdade, o fenômeno vai além do direito internacional privado. A europeização é de todo o direito privado. Não se trata apenas de resolver potenciais conflitos entre os ordenamentos diante de situações transnacionais ou de harmonizar situações processuais (competência jurisdicional, cooperação judiciária etc.). Busca-se, também, propiciar aos sujeitos um espaço jurídico que abrange nações com ordenamentos, ao máximo, próximos, para assegurar segurança jurídica nos processos de circulação de pessoas, capital e serviços4. Alcança os próprios direitos privados domésticos, com aproximação da regulamentação. No âmbito do direito privado, a harmonização jurídica da União Europeia focou mais o direito contratual do que propriamente os direitos reais5. Em um primeiro momento, os órgãos legislativos da União Europeia concentraram-se em direito do consumidor para resolver problemas mais pontuais. Houve várias diretivas nesse âmbito, como: a) Diretiva 85/577, de 20 de dezembro6: protege o consumidor em compras a distância; b) Diretiva 90/314, de 13 de junho7: trata de viagens combinadas. A livre circulação de pessoas, de capital e de serviços no âmbito da União Europeia intensificou as relações jurídico-privadas transfronteiriças. Por consequência, aumentou o esforço por alcançar uma maior definição das regras de direito internacional privado e das regras comunitárias para dar segurança jurídica aos sujeitos. Entre as várias questões jurídicas de direito internacional privado e de direito comunitário, estão as que tocam a harmonização internacional dos direitos reais, a qual esmiuçaremos mais à frente. A harmonização jurídica na União Europeia tem avançado de modo expressivo, especialmente pela abundância de edição de Regulamentos e Diretivas em diversas matérias de direito privado. A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros em matéria de direito privado é essencial para viabilizar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Sem previsibilidade e clareza do direito que será aplicado para reger as relações privadas, os sujeitos ficão acuados a praticar atos jurídicos transfonteiriços. 2. Regulamento Europeu das Sucessões mortis causa Foi nesse contexto que, por exemplo, a União Europeia editou o Regulamento Europeu das Sucessões: o Regulamento UE nº 650/2012. A referida norma comunitária buscou dar clareza e previsibilidade jurídicas às sucessões mortis causa transfronteiriça. Sem esse ambiente normativo previsível e seguro, os sujeitos seriam inibidos a exporem-se a relações jurídicas privadas internacionais. Se o sujeito não tem clareza sobre como será a sucessão mortis causa caso ele tenha bens em outros países ou caso ele se mude do seu país de origem, a tendência é que esse fato seja um entrave à circulação transnacional. É nesse sentido que o Regulamento Europeu das Sucessões nasceu, pois, conforme seu Considerando nº 7: (7) É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves a` livre circulac¸a~o de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no a^mbito de uma sucessa~o com incide^ncia transfronteiric¸a. No espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessa~o. E' necessa'rio garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legata'rios, das outras pessoas pro'ximas do falecido, bem como dos credores da sucessa~o.  Essa preocupação já estava presente desde quando o Regulamento Europeu das Sucessões era apenas um projeto. Em 2009, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão, foi realçada a elevada importância em haver uma harmonização das regras sucessórias no espaço europeu8. Segundo o referido documento, em 2009, o volume patrimonial envolvido em sucessões mortis causa na União Europeia chegava a 646 bilhões de euros por ano. Estima-se que cerca de 10% desse volume dizem respeito a sucessões transnacionais. Sem uma regra sucessória de harmonização, o volume de bens que poderiam ficar fora do mercado por transtornos jurídicos em matéria sucessória seria expressivo. Os indivíduos seriam desencorajados a realizar relações privadas transnacionais pela insegurança jurídica da partilha de seus bens situados em outros países. Ter regras sucessórias claras e harmonizadas para sucessões transnacionais é um fundamental para alcançar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. O Regulamento Europeu das Sucessões centra-se em definir apenas questões transnacionais estritamente de direito sucessório, como a definição de quem são os sucessores e o modo de repartição do acervo hereditário. Foca essas questões sob o aspecto de conciliar os diversos ordenamentos jurídicos da União Europeia. Em suma, ele trata de três questões básicas diante de situações jurídicas transfronteiriças: (1) competência jurisdicional internacional; (2) conflitos de leis no espaço; e (3) forma de reconhecimento e de execução de decisões estrangeiras9. Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema. __________ 1 Reportamo-nos especialmente ao Título II do TFUE, que trata da livre circulação de mercadorias (arts. 28º e 29º) e ao Título IV, que lida com a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 45º a 66º) do TFUE. 2 Remetemo-nos ao Título V do TFUE, que trata do fato de a União Europeia ser um espaço de liberdade, segurança e justiça. 3 Nesse sentido: (1) JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do Direito Internacional Privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012; (2) RIBEIRO, Geraldo Rocha. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: algumas notas sobre o problema da interpretação do âmbito objetivo dos regulamentos comunitários. In: Revista Julgar, nº 23, maio/agosto 2014, pp. 265-292 (Disponível aqui). 4 Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Rui Manuel Moura Ramos coordenaram uma obra destacando diversos aspectos da unificação europeia do direito internacional privado: "Aspectos da Unificação do direito internacional privado" (MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016). 5 MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23. 6 JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. 7 JO nº L23, número 158, de 23 de junho de 1990. 8 Eur-lex, Documento De Trabalho Dos Servic¸os da Comissa~o que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a` compete^ncia, a` lei aplica'vel, ao reconhecimento e execuc¸a~o das deciso~es e dos actos aute^nticos em mate'ria de sucesso~es e a` criac¸a~o de um certificado sucesso'rio europeu. Data: 14 de outubro de 2009 (Disponível aqui). 9 Essas três questões básicas de direito internacional privado em matéria de sucessão foram disciplinadas em um único regulamento: o Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). Não se deu o mesmo em matéria obrigacional. O legislador comunitário fragmentou a disciplina em três regulamentos. Um foi para disciplinar forma de reconhecimento e execução de atos estrangeiros: Regulamento UE nº 1.215/2012. Outros dois para disciplinar as questões de competência jurisdicional internacional e de conflitos de lei no espaço em matéria de obrigações contratuais (Regulamento Roma I, ou seja, Regulamento nº 593/2008) e de obrigações extracontratuais (Regulamento Roma II, ou seja, Regulamento UE nº 864/2007).
Na Coluna anterior, lidamos com a jurisprudência comunitária europeia e com o modo de pesquisa a atos e a precedentes da União Europeia. Prosseguiremos hoje expondo os princípios fundamentais da União Europeia, o que é fundamental para compreendermos o modo como a harmonização jurídica europeia ocorre no direito privado. 1. Principais princípios fundamentais da União Europeia O direito comunitário é assentado em alguns princípios fundamentais, muito dos quais foram expostos e consolidados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)1. Destacam-se, entre eles: (1) o princípio do efeito direito do direito comunitário; (2) o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno; e (3) o princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares. O princípio do efeito direto do direito comunitário estabelece que o direito comunitário tem de ser observado pelos Estados membros independentemente de qualquer ato de internalização. Daí decorre que os particulares podem invocar o direito comunitário perante as jurisdições domésticas, seja em demandas contra outros particulares (efeito direto horizontal), seja em demandas contra o próprio Estado membro (efeito direto vertical). Esse princípio foi introduzido pelo TJUE no acórdão Vand Gend & Loor (1963). Nesse caso concreto, os Países Baixos estavam desrespeitando um Tratado da Comunidade Econômica Europeia (CEE) que proíbe o aumento de cobrança de direitos aduaneiros. O TJUE censurou essa postura neerlandesa, assentando que o referido tratado do direito comunitário tem efeito direto nos Estados membros. Com isso, o TJUE livrou a empresa Van Gend & Loor da cobrança indevida2. A aplicação do princípio do efeito direito do direito comunitário depende do tipo de ato envolvido. Atos não vinculantes, como os pareceres e as recomendações, não possuem efeito direto. Regulamentos, por outro lado, possuem efeito direto, pois são vinculantes, conforme art. 288º do TFUE3. Diretivas, em algumas situações, possuem efeito direto contra o Estado membro (efeito direto vertical) que permaneceu inerte durante o prazo pertinente nas hipóteses em que as disposições da Diretiva eram incondicionais e suficientemente claras e precisas4. Decisões têm efeito direto nos Estados membros que forem expressamente designados5. Acordos internacionais, em alguns casos, também tem efeito direto em razão de sua força vinculante6.  O princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional consiste no fato de as normas domésticas não poderem suplantar as normas comunitárias. Cabe, assim, ao Poder Judiciário doméstico e a todas as demais instâncias domésticas observar plenamente o direito comunitário e deixar de aplicar as normas domésticas contrárias, inclusive as normas constitucionais7. Esse princípio foi introduzido pelo TJUE em 1964, no acórdão Costa. Nesse julgado, o TJUE analisou uma consulta do Poder Judiciário italiano e estabeleceu que uma lei italiana sobre nacionalização do setor de energia elétrica não poderia prevalecer sobre um tratado da Comunidade Econômica Europeia. Embora não haja nenhum dispositivo específico sobre o referido princípio nos Tratados da UE, trata-se de princípio fundamental reconhecido pelo TJUE. O princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares estatui que os particulares têm direito a serem indenizados contra o Estado membro por violação às normas comunitárias. Entre as hipóteses de violação, está a hipótese de omissão do Estado membro em adaptar a legislação interna a uma diretiva da União Europeia, especialmente quando o exercício do direito do particular dependa dessa prévia adaptação. Entendeu a Corte comunitária que, sem esse direito de indenização contra o Estado, a plena eficácia do direito da União seria enfraquecida Esse princípio foi implantado pelo TJUE em 1991 no acórdão Francovich. No caso concreto, a Itália havia se omitido em transpor, para o direito interno, uma diretiva que protegia trabalhadores no caso de insolvência patronal. Dois obreiros obtiveram, por conta disso, direito a indenização contra o Estado por terem sofrido prejuízos com a insolvência do seu patrão e com a morosidade na regulamentação doméstica da referida diretiva8. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. __________ 1 Ver: (1) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui; e (2) Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui.) 2 Para aprofundamento, com menção a outros dois acórdãos do TJUE (o acórdão Becker e o acórdão Kaefer e Procacci contra o Estado francês), ver: Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 3 Confira-se: Artigo 288.o (ex-artigo 249.o TCE) Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. A diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes. As recomendações e os pareceres não são vinculativos. 4 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível em aqui). 5 Para aprofundamento (com citação do acórdão Hansa Fleisch contra Landrat des Kreises Schleswig-Flensburg), ver: O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 6 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui) (em que se reporta ao acórdão Demirel contra Stadt Schwäbisch Gmünd). 7 Ver: (1) FARINHAS, Carla. O princípio do primado do direito da união sobre o direito nacional e as suas implicações para os órgãos jurisdicionais nacionais. In: Julgar, nº 35, 2018 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Ver: Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui.
Na coluna anterior, tratamos das Diretivas e dos Regulamentos como principais normas da União Europeia. Prosseguiremos hoje cuidando da jurisprudência produzida no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia e indicaremos como o leitor pode fazer pesquisas de atos e precedentes. 1. Tribunal de justiça da união europeia O Tribunal de Justiça da União Europeia1 (TJUE ou apenas Tribunal de Justiça) é composto por 27 juízes, com uma estrutura tripartida de órgãos fracionários de julgamento: (1) Tribunal Pleno; (2) Grande Seção; e (3) Seções2. Há ainda o Tribunal Geral da União Europeia, que está associado ao TJUE e que aprecia causas específicas, especialmente as de iniciativa de particulares3. O principal tipo de processo julgado pelo Tribunal de Justiça é processo de reenvio prejudicial. Os principais julgados em matéria de Direito Privado costumam decorrer desses processos. O reenvio processual consiste em consultas feitas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados membros sobre a interpretação adequado do direito comunitário4. Dá-se quando o Poder Judiciário local depara-se com uma fundada dúvida acerca de qual seria a mais adequada interpretação de um ato normativo comunitário. Nesse caso, para evitar divergência de interpretação das normas comunitárias entre os Estados membros, o Poder Judiciário sobresta o julgamento do caso concreto e consulta o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre essa questão jurídica prejudicial. Há outros processos examinados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, como: a) Ação por incumprimento: é precedido de um procedimento perante a Comissão, e a legitimidade ativa ad causam é da Comissão ou de um Estado membro. Essa ação volta-se a suspeitas de violações do direito comunitário por outros Estados membros. b) Recurso de anulação: veicula pretensão de anulação de atos de órgãos da própria União Europeia, como um regulamento ou uma diretiva. A legitimidade recursal é dos Estados membros ou de particulares5. c) Ação por omissão: volta-se contra persistência em postura omissiva por parte de órgãos da União Europeia após provocação6. d) Recursos de decisão do Tribunal de Geral: só para questões de direito e volta-se contra acórdãos ou despachos do Tribunal Geral. Em suma, o sistema de justiça da União Europeia é dividido em dois âmbitos: os sistemas nacionais (constituídos pelo Poder Judiciário de cada Estado membro) e o sistema da União Europeia (representado pelo TJUE). Os julgados do TJUE possuem uma importância crucial no sistema jurídico comunitário. Diversos julgados estão na raiz da estrutura jurídica da União Europeia, respaldando regras e valores comunitários estruturais. Por exemplo, a propósito do direito à livre circulação de mercadorias, o acórdão Cassis de Dijon (1979) é uma referência. Nesse julgado, o TJUE assegurou aos comerciantes o direito de importar de outros países produtos, salvo se estes forem ilegais ou contrários à proteção da saúde ou do meio ambiente7. Sobre o direito à livre circulação de pessoas, há diversos julgados emblemáticos. No acórdão Kraus (1993), o TJUE estabeleceu que a homologação de diplomas estrangeiros tem de limitar-se à conferência meramente formal, destinada a investigar a fidedignidade do documento. No acórdão Bosman (1995), no acórdão Deutscher Handballbund (2003) e no acórdão Simutenko (2005), foram consideradas descabidas regras domésticas que impediam a transferência de jogadores ou que limitasse o número de estrangeiros em clubes de futebol, inclusive em relação a outros países que, embora não integrem da União Europeia, mantenham acordos internacionais. Em relação ao direito à livre circulação de serviços, destacam-se três julgados. O acórdão Cowan (1989) consagra o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, admitindo a um cidadão britânico que foi espancado em um metrô na França o direito a ser indenizado como qualquer cidadão francês. O acórdão Kohll (1998) assegurou a um cidadão luxemburguês o direito a que uma caixa de assistência de saúde de Luxemburgo8 reembolse despesas médicas efetuadas em outros Estados membros9. Entendimento diverso seria um injusto entrave à livre circulação de serviços. O acórdão Decker (1998) segue a mesma linha. Censurou a recusa da supracitada caixa de assistência de saúde de Luxemburgo a reembolsar as despesas com a aquisição de óculos em outro Estado membro. No tocante à igualdade de tratamento e direitos sociais, reportamo-nos a três julgados. O acórdão Defrenne (1976) fixou o princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos pelo mesmo trabalho e, com isso, concedeu razão a uma obreira cuja remuneração era inferior por causa do seu gênero. O acórdão Brown (1998) reputou ilegal a despedida de trabalhadora por faltas resultantes da gravidez, pois tal representaria uma discriminação por gênero. O acórdão Bectu (2001) censurou a legislação britânica que afastava o direito a férias anuais pagas para contratos de trabalho de curta duração. Em direitos fundamentais, há também acórdãos do TJUE. É o caso do acórdão Johnston (1986), que, em nome do direito fundamental à igualdade, censurou ato estatal que proibia mulheres policiais de portarem armas. Em matéria de cidadania, o acórdão Zhu e Chen (2004) estabelece que o direito do cidadão da União em residir em qualquer Estado membro estende-se também a crianças, ainda que sua mãe seja nacional de um país alheio à União Europeia. 2. Nomenclatura (direito comunitário ou direito da união?) e Como fazer pesquisas por atos comunitários O Alguns esclarecimentos adicionais calham. O primeiro diz respeito a uma questão taxonômica. As expressões "direito da União" e "direito comunitário" devem ser consideradas sinônimas. A rigor, a última expressão era mais adequada antes da criação da União Europeia, quando havia uma Comunidade Econômica Europeia. Todavia, o uso das expressões como sinônimas mesmo após esse marco segue vigente na literatura jurídica. O segundo é para esclarecer o modo de busca de atos produzidos no seio do direito comunitário. Para encontrar os atos normativos, precedentes e outros atos oficiais da União Europeia, convém algumas explicações operacionais. Em suma, é viável realizar buscas por palavras-chave ou acessar diretamente o Jornal Oficial da União Europeia (JO), tudo no site oficial mantido pela própria União Europeia: o site EUR-lex. Tomemos como exemplo este ato: Diretiva 85/577, de 20 de dezembro, a qual foi publicada no JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. Na catalogação das diretivas, o primeiro número reporta-se ao ano e a parte final indica o dia e o mês. No caso acima, a Diretiva é de 20 de dezembro de 1985. O segundo número indica a numeração sequencial do ato. A supracitada Diretiva é a de nº 577. O seu interior teor pode ser obtido por consulta no supracitado site EUR-lex. Há duas formas de encontrar o ato nesse site. A primeira é, ao buscar os atos jurídicos, indicar as palavras-chave cabíveis. No caso acima, basta informar o ano e o número da Diretiva no campo próprio para obter o produto. A segunda forma de pesquisa é clicar, no supracitado site, no campo do Jornal Oficial da União Europeia (JO) e buscar o ato na edição pertinente do JO. O JO corresponde ao que, no Brasil, conhecemos como "Diário Oficial". Nele são publicados todos os atos oficiais dos órgãos da União Europeia, tanto os normativos (como as diretivas) quanto os jurisprudenciais (como as decisões do Tribunal de Justiça) ou outros de natureza divesa (como comunicações). Cada edição do JO recebe uma numeração. No caso acima, o número do JO em que foi publicado a supracitada Diretiva é 372. Dentro da edição do JO, o ato a ser publicado é identificado por uma letra e um número. As letras correspondem às séries do JO, que são principalmente duas: (1) "L", quando se tratar de legislação; (2) "C", quando se cuidar de comunicações e informações. O número corresponde à página. Assim, no exemplo acima, a supracitada diretiva é identificada como L 31, porque integra a série de "legislação" e está na página 31 da edição do JO. Em resumo, no exemplo acima, a Diretiva está na página 31 da série "Legislação" do JO nº 372, publicado em 31 de dezembro de 1985. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. Até lá! __________ 1 Site. Não se pode confundir com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), fruto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Este integra o Conselho da Europa, que é organismo diferente da União Europeia. 2 Na sistemática de julgamento, não há espaço para votos vencidos. O juiz relator faz um projeto de acórdão. Qualquer juiz pode propor alteração. E só esse acórdão final é publicado, com a assinatura dos juízes que estiveram presentes na deliberação oral. 3 A rigor, o Tribunal de Justiça da União Europeia é dividido em duas jurisdições: o Tribunal de Justiça strcito sensu e o Tribunal Geral. Em termos de nomenclatura, a expressão "Tribunal de Justiça" é utilizada ora em alusão ao TJUE, ora em referência ao que chamamos de Tribunal de Justiça stricto sensu. Até 2016, havia também o Tribunal da Função Pública, mas, com sua extinção, as suas atribuições reverteram-se para o Tribunal Geral. 4 Conforme realçaremos mais abaixo, utilizaremos a expressão "direito comunitário" como sinônima de "direito da União" em virtude de tal emprego seguir sendo utilizada por doutrinadores em geral. 5 A competência será do Tribunal Geral se o recurso for de um particular. 6 Em alguns casos, a competência é do Tribunal Geral. 7 Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Essa caixa de assistência de saúde é estatal. 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 28 de abril de 1998: Raymond Kohll vs Union des caisses de maladie. Data: 28 de abril de 1998 (Disponível aqui. Acesso em 8 de abril de 2022).
Na coluna anterior, expusemos conceitos gerais da União Europeia e de sua estrutura institucional. Prosseguiremos hoje cuidando dos principais órgãos e das principais fontes normativas do bloco europeu, tudo com olhos em permitir a compreensão da harmonização jurídica do direito privado na Europa. Principais normas do Direito da União Europeia: regulamentos, diretivas e precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia O Conselho da União Europeia1 (ou apenas Conselho) é a principal instância decisória. É composto por ministros dos Estados membros, cujos votos possuem pesos diferentes a depender da sua bandeira. Além de outras competências2, o Conselho exerce o papel de legislador, gerando os atos normativos comunitários. Em geral, essa competência legislativa é exercida em conjunto com o Parlamento Europeu, mais especificamente quando for aplicável o processo legislativo ordinário. Quando, porém, se trata de aplicação do processo legislativo especial, o Conselho, sozinho, é quem exerce a função de legislador. Esclareça-se que o Parlamento Europeu3 exerce um papel de colegislador com o Conselho nos processos legislativos ordinários e um papel meramente consultivo no processo legislativo especial, além de outras atribuições4. Não tem competência para iniciativa legislativa: esta é da Comissão Europeia5. É composto por parlamentares eleitos pelos cidadãos dos Estados membros. Os principais atos normativos da União Europeia são estes6: a) Regulamento: é ato legislativo vinculante em todos os Estados membros; b) Diretivas: é ato legislativo que estabelece um objetivo geral aos Estados membros. Cabe a cada Estado membro editar normas domésticas para cumprir o objetivo das diretivas. No acórdão van Duyn vs. Home Office e no acórdão Ratti, o TJUE admitiu que a diretiva possa ser aplicada diretamente contra o Estado membro a pedido do particular no caso de omissão legislativa doméstica diante de uma diretiva com regras incondicionais e claras7. As questões de direito privado tratadas na União Europeia costumam ser veiculadas nesses dois atos normativos, além dos atos jurisdicionais do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Diretivas da União Europeia A propósito do efeito vinculante das diretivas, convém deitar holofotes nos dois julgados supracitados. O primeiro é o caso van Duyn vs. Home Office. Este decorreu de consulta feita ao TJUE (então, Tribunal de Justiça apenas) em 1974 pela Chancery Division da High Court of Justice da Inglaterra para interpretação do direito comunitário. Tratava-se de caso relacionado à livre circulação de trabalhadores. No caso concreto, o Reino Unido recusou a entrada de uma cidadã neerlandesa (a Sra. Ivonne van Duyn) para trabalhar de secretária na Church of Scientology. O motivo da recusa é o fato de o Reino Unido considerar a atividade da referida organização como de perigo social. A diretiva 64/221/CEE, todavia, estabelece que a negativa de ingresso de pessoas com fundamento na ordem ou segurança públicas só pode basear-se em comportamento pessoal do próprio indivíduo. Trata-se de regra destinada a limitar a discricionariedade das autoridades domésticas em matéria de entrada e expulsão de estrangeiros. Nesse caso, como a regra da referida diretiva não demanda nenhum ato posterior dos Estados membros por conta de sua clareza e pela falta de qualquer condicionante, o TJUE reconheceu-lhe efeito direto e vinculante contra o Reino Unido8. No supracitado caso Ratti, o TJUE assentou que, se o prazo de adaptação da legislação interna a uma diretiva expirar, o Estado membro não pode aplicar suas regras domésticas contrariamente a um particular que tenha cumprido os requisitos da diretiva, mesmo em questões de direito penal. No caso concreto, o cidadão italiano Tullio Ratti havia sido incriminado com base em lei penal italiana que exigia a indicação, na rotulagem dos produtos, da presença de determinadas substâncias (benzeno, tolueno e xileno). Acontece que, à época dos fatos, o referido cidadão havia cumprido as exigências da Diretiva nº 73/173, de 3 de julho de 1973, e da Diretiva nº 77/728, de 7 de novembro de 1977, às quais a legislação italiana não se havia adaptado apesar do transcurso do pertinente prazo. Com base nisso, o TJUE entendeu que nenhum cidadão pode ser punido com base em uma lei penal doméstica que, mesmo após a consumação do pertinente prazo de adaptação, permanece incompatível com diretivas9. Há outros julgados que reforçam a existência de efeito vinculante a diretivas com regras claras que independem de regulamentação. No acórdão Francovich, por exemplo, o TJUE esclareceu que o fato de os Estados membros terem liberdade para definir o modo como adaptará a legislação interna às diretivas não afasta o direito de os particulares invocarem direitos incondicionados previstos de modo claro na diretiva10. Na próxima Coluna, seguiremos tratando do tema. Até lá. __________ 1 Site. 2 O Conselho da União Europeia também coordena as políticas dos Estados membros, elabora política externa e de segurança da União Europeia com base nas orientações do Conselho Europeu, celebra acordos da União Europeia com países terceiros ou organismos internacionais e adota o orçamento da União Europeia em conjunto com o Parlamento Europeu. 3 Site. 4 O Parlamento Europeu também emite pareceres sobre relatórios da Comissão, do Banco Central, além de manifestar-se consultivamente em outras questões e de colaborar com parlamentos nacionais. 5 Para aprofundamento, ver: EUROPARL. O poder legislativo. Disponível aqui. 6 Há, ainda, as Decisões (que só vincula os seus destinatários em específico), as Recomendações (que não vinculam) e os Pareceres (que também não são vinculantes). 7 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 8 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 5 de abril de 1979, Processo nº 148/78: Ministerio Fiscal vs Tullio Ratti. Data: 5 de abril de 1979 (Disponível aqui). 10 Segue este excerto do sumário do acórdão Franovich: "A faculdade de um Estado-membro destinatário de uma directiva escolher entre uma multiplicidade de meios possíveis com vista a atingir o resultado estabelecido pela mesma não exclui a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos cujo conteúdo pode ser determinado com precisão suficiente apenas com base nas disposições da directiva." (Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui).
1. Introdução Uma das fontes importantes para estudos de Direito Comparado em Direito Privado é o europeu, seja pela herança de tradição jurídica brasileira, seja pela semelhança de muitos dos problemas sociais contemporâneos a serem enfrentados pelo Direito Privado. Este artigo objetiva expor o cenário de harmonização de Direito Privado Europeu, com foco na experiência ocorrida no âmbito da União Europeia. Começaremos por expor um breve histórico e a estrutura institucional da União Europeia. a fim de que o leitor conheça as principais formas de produção jurídica do direito comunitário europeu. Em seguida, trataremos das experiências europeias de harmonização jurídica comunitária no direito privado. Com essas noções, o leitor terá maior suporte para erguer reflexões úteis para o Direito Privado Brasileiro, conferindo o que de proveitoso podemos importar, respeitando-se, obviamente, as nossas particularidades. 2. Breve histórico da União europeia A União Europeia é o bloco mais avançado em termos de integração internacional. Com sua estrutura institucional e normativa robusta, caminha para avançar mais a ponto de haver quem atualmente mencione a existência do conceito de cidadania europeia1. A sua motivação não foi apenas por conveniência econômica. Colaborou também a proximidade dos valores históricos e culturais dos Estados membros, que compartilham de valores de matriz greco-romana, judaico-cristã e iluminista. Contribuiu, igualmente, a busca pela paz, tendo em vista um histórico povoado de conflitos armados entre as nações europeias. Após a II Guerra, as movimentações destinadas à integração da Europa recrudesceram. Em 1944, Bélgica, Holanda e Luxemburgo criaram uma zona de livre comércio e de união aduaneira, formando o bloco Benelux2. Em 1949, foi criado o Conselho da Europa, que atualmente desempenha o papel de promover a democracia e defesa dos direitos humanos3. Não se confunde com a União Europeia. Vários Estados-Membros do Conselho da Europa sequer integram a União Europeia. Em 1951, foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) por meio do Tratado de Paris. Por causa dela, os Estados membros eram obrigados a seguir as decisões da CECA em matéria de produção de carvão e aço. Os Estados membros, portanto, abriram mão de parte de sua soberania em favor dessa instância supranacional, o que representa um dos mais marcantes antecedentes históricos da União Europeia. Em 1957, foi criada a Comunidade Econômica Europeia (CEE) por meio do Tratado de Roma4 (que era conhecido pela sigla TCE em alusão ao seu epíteto Tratado da Comunidade Europeia), destinada a viabilizar a formação de uma nova etapa de integração regional: a do mercado comum. No mesmo ano, também foi criada a Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM), destinada ao uso pacífico da energia nuclear, especialmente para alcançar uma independência energética. A EURATOM segue vigente e não se confunde com a União Europeia. Foi da CEE que veio a nascer a União Europeia, que representa uma etapa mais avançada de integração regional: união econômica e monetária. A União Europeia, inicialmente, foi fruto do Tratado da União Europeia, também conhecido como Tratado de Maastrich ou pela sigla TUE (1992). Esse tratado foi posteriormente alterado pelo Tratado de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001) até vir a sofrer uma grande reforma com Tratado de Lisboa (2009). Atualmente, as bases normativas da União Europeia foram decisivamente alcançadas pelo Tratado de Lisboa5 (2009), que é conhecido como o Tratado de Reformador. Ele alterou o TUE (o Tratado de Maastrich) e o Tratado de Roma (o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia). Este último, inclusive, recebeu um novo nome de batismo: Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Portanto, o TFUE (antigo Tratado de Roma) e o TUE, com as alterações feitas pelo Tratado de Lisboa, são as principais bases normativas da União Europeia. São o Direito da União6. São "os Tratados", nas palavras do item 2 do art. 1º do TFUE7. O TFUE e o TUE não podem ser considerados uma Constituição, porque a União Europeia não é um Estado soberano. Ela é uma organização intergovernamental representantiva de uma forma avançada de integração regional. Todavia, "os Tratados" dão a estrutura e os fundamentos da União Europeia, assemelhando-se, ainda que parcialmente, a uma Constituição. Essas normas são utilizadas, entre outros fins, para guiar decisões em processos julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A União Europeia abrange 27 Estados membros. O mapa abaixo dá uma visão geográfica dos Estados membros da União Europeia, com a ressalva de que a Islândia (Ireland) suspendeu, por tempo indeterminado, seu pedido de adesão ao bloco e, portanto, não é um membro atual8: 3. Estrutura Institucional A União Europeia é formada por 8 principais órgãos9: a) Parlamento Europeu - PE; b) Conselho Europeu10; c) Conselho da União Europeia (ou simplesmente Conselho); d) Tribunal de Justiça da União Europeia; e) Comissão Europeia11 (ou simplesmente Comissão); f) Tribunal de Justiça da União Europeia (ou simplesmente Tribunal de Justiça); g) Banco Central Europeu - BCE12; h) Tribunal de Contas Europeu (ou simplesmente Tribunal de Contas)13; Além desses órgãos, há outros, como o Comitê Econômico e Social (CESE)14 e o Comitê das Regiões, os quais auxiliam os trabalhos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Para nosso estudo, importa-nos mais os órgãos incumbidos da produção de normas e precedentes em matéria de direito privado, a saber: o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça da União Europeia. Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. Até lá! __________ 1 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Diretios Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 1322. 2 O nome do bloco decorre das iniciais dos nomes dos países integrados: BElgique, NEderland e LUXembourg. 3 Site do Conselho da Europa. 4 Esse tratado foi posteriormente rebatizado como Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). 5 TRATADO DE LISBOA. Publicação: 17 de dezembro de 2007 (Disponível aqui). 6 Há quem também inclua o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA). Deixamos, porém, de problematizar o tema por conta de sua falta de pertinência com o objeto do nosso estudo, que é o direito privado. 7 Art. 1º do TFUE: Artigo 1.º O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. 2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo valor jurídico, são designados pelos termos "os Tratados". 8 CERKESAS, Evaldas. Cross Border Cases Under European Small Claim Procedure And European Order For Payment. Publicado em 24 de outubro de 2021 (Disponível aqui). Sobre o perfil dos países integrantes da União Europeia, ver seu site oficial.  9 Artigos 223º ao 287º do TFUE e art. 13 do TUE. 10 O Conselho Europeu não é instituição legislativa, ao contrário do Conselho da União Europeia. Cabe-lhe definir orientações e prioridades da União Europeia. É composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, além do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão Europeia. Site oficial do Conselho Europeu.  11 A Comissão Europeia é órgão executivo da União Europeia e toma decisões sobre o rumo político. Ela tem o monopólio para a iniciativa normativa. Site oficial. 12 O BCE cuida da política monetária da União Europeia. 13 O Tribunal de Contas fiscaliza as finanças da União Europeia. 14 O CESE, além emitir relatórios e pareceres, organiza eventos anuais para participação da sociedade civil.
1. Introdução Inauguramos hoje a Coluna Migalhas de Direito Privado Estrangeiro, com um objetivo claro: compartilhar questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil, em Direito Notarial e Registral. As publicações serão quinzenais, às terças-feiras, com eventuais edições extraordinárias em outros dias. Já mantemos iniciativas similares em outras plataformas, como no perfil @direitoprivadoestrangeiro no Instagram. Esperamos que, nesta Coluna, o leitor encontre espaço para conhecer mais o que acontece fora de nosso território. Não se trata de mera curiosidade. Conhecer experiências jurídicas estrangeiras abre-nos a criatividade, seja para formular novas teses jurídicas em processos judiciais, seja para discutir mudanças legislativas, seja para compreender mais adequadamente os fundamentos do nosso Direito. Hoje o objetivo é tratar de uma fonte importante para estudos de direito privado estrangeiro: o soft law. Os advogados, o legislador, os magistrados, enfim, os operadores do Direito em geral brasileiros podem valer-se dessa ferramenta para guiar debates sobre questões jurídicas práticas. No Brasil, já conhecemos instrumentos de soft law, como os enunciados das Jornadas de Direito Civil1 e os da I Jornada De Direito Notarial e Registral2, os quais - apesar de não serem vinculantes - guiam os operadores do Direito. 2. Soft Law e os estudos de Direito Privado Estrangeiro O soft law (também chamado de soft norm, droit doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados. Apesar de não terem força vinculante, essas regras de soft law guiam os negócios privados e as instituições jurídicas locais (especialmente o Parlamento e o Judiciário) para manter um ambiente de harmonização internacional de direitos. Podem, por exemplo, ser escolhidas pelas partes como a regra aplicável a um contrato. Podem guiar câmaras arbitrais no julgamento. Servem de parâmetro pelo Poder Judiciário nacional. O soft law consegue ter certa força orientadora por espelhar os costumes e os princípios gerais do direito, os quais costumam ser fontes dos ordenamentos jurídicos dos países. Os costumes refletem uma prática generalizada (elemento material do costume) acompanhada de uma opinio iuris (elemento subjetivo). A opinio iuris é a convicção acerca da juridicidade daquela prática generalizada3. Dentro do conceito de soft law, podem-se incluir normas vinculantes com um conteúdo aberto ou programático, marcado pela sua flexibilidade: uma espécie de direito flexível4. Não estamos, porém, a tratar dessa acepção5. Aqui estamos a focar a acepção do soft law como um quase-direito. Abrange, por exemplo, instrumentos não obrigatórios formalmente produzidos por organismos privados ou estatais. Alcança, inclusive, o gentlemen's agreement (acordo de cavalheiros), oriundo da doutrina anglo-saxã e que consiste em compromissos não obrigatórios que expressam uma diretriz dos Estados em concerto. Memorandos de entendimentos, declarações, declarações conjuntas, declarações das grandes conferências internacionais, atas finais, agendas, programas de ações, recomendações, acordos não vinculantes (non-binding agreements) e leis-modelo são, no plano internacional, nomes que são empregados a instrumentos que podem designar exemplos de soft law. É preciso, porém, tomar cuidado. Por vezes, esses nomes (com ressalva óbvia do termo "acordos não vinculantes") reportam-se a instrumentos vinculantes, escapando do conceito de soft law. É preciso olhar o caso concreto. No direito privado, um exemplo de soft law são os princípios Unidroit6 relativos aos Contratos Comerciais Internacionais7. Não se trata de uma convenção internacional internalizada por Estados. Não há caráter vinculante. Entretanto, os referidos princípios Unidroit guiam a prática do comércio internacional e orientam interpretações a serem feitas da legislação doméstica e internacional, pois refletem um topoi (um lugar comum) jurídico. São utilizados em arbitragem ou como lei escolhida pelas partes em contratos8. Há até decisões dos Poderes Judiciários domésticos valendo-se dos princípios Unidroit. O próprio preâmbulo dos Princípio Unidroit, ao tratar de seu âmbito de aplicação, reconhece que, apesar de não ostentar uma força vinculante formal estatal, gaba-se de uma força de fato em guiar contratos, leis (domésticas e internacionais), jurisprudência e doutrina9. Os princípios Unidroit caminham para ser uma espécie de "Restatements10 internacional dos princípios gerais de direito dos contratos"11. Aliás, as próprias partes podem eleger, em contratos, a aplicação dos princípios do Unidroit (ou outras normas não estatais), ao menos no âmbito da União Europeia, respeitadas as particularidades das normas comunitárias europeias e as normas domésticas12. Há importantes organizações internacionais privadas e intergovernamentais que trabalham na edição de leis uniformes ou de instrumentos de soft law, na elaboração de convenções internacionais e na promoção de práticas de harmonização internacional, especialmente em direito privado. Em suma, é importante sempre conhecer os principais instrumentos de soft law produzidos por instituições públicas e por respeitadas instituições privadas. No Brasil, os enunciados das Jornadas de Direito Civil e da I Jornada de Direito Notarial e Registral são exemplos de ferramentas de soft law muito utilizadas. Convém também que outras ferramentas de soft law desenvolvidas no âmbito transnacional também frequentem os debates de Direito Privado. Todavia, cabe um alerta: esse debate há de realizado com maturidade, ciente de que esses instrumentos de soft law, embora expressem o entendimento de juristas renomados de diversos países, não necessariamente representam uma unanimidade na comunidade jurídica: não são "verdades absolutas". Chamamos a atenção para estes instrumentos de soft law em direito privado no âmbito transnacional: a) Draft Common Frame of Reference (DCFR), também conhecido como Projeto de Código Civil Europeu ou como projeto de Quadro Comum de Referência, o qual foi desenvolvido no âmbito da União Europeia13. b) Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como Lando Commission, em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200314. c) os Princípios do Unidroit sobre Contratos Comerciais Internacionais, cuja última versão é de 201615; d) Lei Modelo de Leasing do Unidroit16; e) Convenção do Unidroit sobre Leasing Financeiro Internacional17 (UNIDROIT Convention on International Financial Leasing)18. f) Princípios sobre escolha da lei aplicável em contratos comerciais internacionais, da HCCH (sigla de Hague Conference on Private International Law; em francês, Conférence de La Haye de droit international privé; ou, em português, Conferência da Haia de Direito Internacional Privado)19. g) Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Uncitral (sigla de United Nations Comission on International Trade Law ou, em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional da ONU)20; h) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA - Organização dos Estados Americanos (Model Inter-American Law On Secured Transactions)21; i) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da Uncitral (UNCITRAL Model Law on Secured Transactions)22. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Ver: (1) NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 70-74, 92-93 e 156-157; (2) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018Mazzuoli, 2018, pp. 213-214. 4 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 97-140. 5 Paulo Henrique Gonçalves Portela dá didática definição (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 80-81):  O conceito foi desenvolvido pela doutrina norte-americana, em oposição à noção de hard law, que se refere ao Direito tradicional. No Brasil, Nasser define soft law como um conjunto de "regras cujo valor normativo seria limitado, seja porque os instrumentos que as contêm não seriam juridicamente obrigatórios, seja porque as disposições em causa, ainda que figurando em um instrumento constringente, não criariam obrigações de direito positivo ou não criariam senão obrigações pouco restringentes". O autor aponta ainda as seguintes modalidades de soft law:  - normas, jurídicas ou não, de linguagem vaga e de conteúdo variável ou aberto, ou, ainda, que tenham caráter principiológico ou genérico, impossibilitando a identificação de regras claras e específicas;  - normas que prevejam mecanismos de soluções de controvérsia, como a conciliação e a mediação;  - atos concertados entre os Estados que não adquiram a forma de tratados e que não sejam obrigatórios; atos das organizações internacionais que não sejam obrigatórios; - instrumentos produzidos por entes não estatais que consagrem princípios orientadores do comportamento dos sujeitos de Direito Internacional e que tendam a estabelecer novas normas jurídicas.  (...) Em suma, o soft law inclui preceitos que ainda não se transformaram em normas jurídicas ou cujo caráter vinculante é muito débil, ou seja, "com graus de normatividade menores que os tradicionais", como afirma Soares. Com isso, é comum que as regras de soft law tenham caráter de meras recomendações. (...) Exemplos relevantes de documentos internacionais que podem ser considerados como de soft law são a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as declarações de organismos internacionais referentes à saúde pública (como a Declaração de Alma-Ata e a Declaração de Cartagena), as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei Modelo sobre Arbitragem Internacional, a Carta Democrática Interamericana, as Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade e a Declaração Sociolaboral do Mercosul. Independentemente do caráter de fonte do Direito Internacional de que se revista ou não o soft law, é inegável a influência dos diplomas que têm esse formato no atual quadro do Direito das Gentes e da Ciência Jurídica como um todo. O soft law vem servindo, por exemplo, como modelo para elaboração de tratados e de leis internas, como parâmetro interpretativo, como pauta de políticas públicas e de ação da sociedade civil e como reforço da argumentação para operadores do Direito. (...) Cabe destacar que a própria jurisprudência dos tribunais brasileiros vem mencionando alguns desses documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Princípios Yogyakarta. (...) A respeito do emprego da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos julgamentos do Pretório Excelso, e a título de mero exemplo, ver os seguintes julgados do STF: ARE 639.337 AgR/SP e ADC 29/DF. A respeito do emprego dos princípios de Yogyakarta nos julgamentos do Pretório Excelso, ver os seguintes julgados: RE 477.554 AgR/MG, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF. 6 Unidroit é a International Institute for the Unification of Private Law ou Institut International pour l'unification du droit privé). Trata-se de uma organização intergovernamental, composta por 63 Estados membros. 7 Sobre os princípios do Unidroit em arbitragem internacional, ver: KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 8 KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 9 Segue o inteiro teor do dispositivo: PREÂMBULO (O objetivo dos Princi'pios) Estes Princi'pios estabelecem regras gerais para contratos comerciais internacionais. Devem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por eles.(*) Podem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por princi'pios gerais de direito, pela lex mercatoria, ou similares. Podem ser aplicados caso as partes na~o tenham escolhido nenhuma lei para regular o seu contrato. Podem ser usados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme. Podem ser usados para interpretar ou suplementar leis nacionais. Podem servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais. 10 A referência é aos Restatements of the Law, espécies de tratados que reúnem princípios gerais do common law para auxiliar os operadores do Direito nos EUA. São espécies de consolidação da jurisprudência. Assemelham-se às súmulas dos tribunais, com a diferença de que não são oriundas de órgão estatal. Os Restatements são publicados pela entidade privada American Law Institute (ALI), criada em 1923. Há quatro Restatements, os quais subdivididos em vários volumes conforme o conteúdo. Por exemplo, o Restatement of the Law Third possui volumes relativos a repsonsabilidade civil, a hipotecas (mortgages), a servidões (servitudes), a enriquecimento ilícito (restitution and unjust enrichment) etc.  (Romano, 2017; Texas Law, 2022). O site oficial da American Law Institute disponibiliza, para venda, os volumes. Recomendamos leitura destes artigos: (1) ROMANO, Rogério Tadeu. O restatement of the law dos norte-americanos. Publicado em maio de 2017 (Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2022); (2) TEXAS LAW. Restatements of the law. Disponível aqui. Acesso em 19 de abril de 2022. 11 Princípios Unidroit relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. Ano: 2016, p. 28 (Disponível aqui). 12 A propósito, o item 13 dos Considerandos do Regulamento Roma I (Regulamento CE nº 593/2008) dispõe: 13 O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato, um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional." 13 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida está disponível na Internet. LAW KUELEUVEN. Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui). 14 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui). 15 Unidroit, 2016. Disponível neste site. 16 Unidroit Model Law on Leasing. Ano: 2010 (Disponível aqui). 17 DUARTE, Rui Pinto. A Convenção do Unidroit sobre Locação Financeira Internacional - tradução e notas. In: Documentação e Direito Comparado, nº 35/36, 1988 (Disponível aqui). 18 UNIDROIT Convention on International Financial Leasing. Ano: 1988 (Disponível aqui). 19 É uma organização intergovernamental com 83 membros (82 Estados e a União Europeia). Foi fundada em 1893. Seu escopo é promover a progressiva unificação das regras de direito internacional privado. Quanto aos princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais internacionais, ele está disponível neste site. 20 UNCITRAL. Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional 1985 com as alterações adotadas em 2006. Ano: 2006. 21 Organization of American States, 2013. Para aprofundamento, reportamo-nos a: (1) SILVA, Fábio Rocha Pinto e. Garantias das Obrigações: uma análise sistemática doo Direito das Garantias e uma proposta abrangente para a sua reforma. São Paulo: Editora Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP, 2017; (2) RODAS, João Grandino. Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia. Publicado em 4 de junho de 2020. 22 UNCITRAL Model Law on Secured Transactions. Ano: 2019 (Disponível aqui).