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Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil e em Direito Notarial e Registral.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Na coluna anterior, expusemos conceitos gerais da União Europeia e de sua estrutura institucional. Prosseguiremos hoje cuidando dos principais órgãos e das principais fontes normativas do bloco europeu, tudo com olhos em permitir a compreensão da harmonização jurídica do direito privado na Europa. Principais normas do Direito da União Europeia: regulamentos, diretivas e precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia O Conselho da União Europeia1 (ou apenas Conselho) é a principal instância decisória. É composto por ministros dos Estados membros, cujos votos possuem pesos diferentes a depender da sua bandeira. Além de outras competências2, o Conselho exerce o papel de legislador, gerando os atos normativos comunitários. Em geral, essa competência legislativa é exercida em conjunto com o Parlamento Europeu, mais especificamente quando for aplicável o processo legislativo ordinário. Quando, porém, se trata de aplicação do processo legislativo especial, o Conselho, sozinho, é quem exerce a função de legislador. Esclareça-se que o Parlamento Europeu3 exerce um papel de colegislador com o Conselho nos processos legislativos ordinários e um papel meramente consultivo no processo legislativo especial, além de outras atribuições4. Não tem competência para iniciativa legislativa: esta é da Comissão Europeia5. É composto por parlamentares eleitos pelos cidadãos dos Estados membros. Os principais atos normativos da União Europeia são estes6: a) Regulamento: é ato legislativo vinculante em todos os Estados membros; b) Diretivas: é ato legislativo que estabelece um objetivo geral aos Estados membros. Cabe a cada Estado membro editar normas domésticas para cumprir o objetivo das diretivas. No acórdão van Duyn vs. Home Office e no acórdão Ratti, o TJUE admitiu que a diretiva possa ser aplicada diretamente contra o Estado membro a pedido do particular no caso de omissão legislativa doméstica diante de uma diretiva com regras incondicionais e claras7. As questões de direito privado tratadas na União Europeia costumam ser veiculadas nesses dois atos normativos, além dos atos jurisdicionais do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Diretivas da União Europeia A propósito do efeito vinculante das diretivas, convém deitar holofotes nos dois julgados supracitados. O primeiro é o caso van Duyn vs. Home Office. Este decorreu de consulta feita ao TJUE (então, Tribunal de Justiça apenas) em 1974 pela Chancery Division da High Court of Justice da Inglaterra para interpretação do direito comunitário. Tratava-se de caso relacionado à livre circulação de trabalhadores. No caso concreto, o Reino Unido recusou a entrada de uma cidadã neerlandesa (a Sra. Ivonne van Duyn) para trabalhar de secretária na Church of Scientology. O motivo da recusa é o fato de o Reino Unido considerar a atividade da referida organização como de perigo social. A diretiva 64/221/CEE, todavia, estabelece que a negativa de ingresso de pessoas com fundamento na ordem ou segurança públicas só pode basear-se em comportamento pessoal do próprio indivíduo. Trata-se de regra destinada a limitar a discricionariedade das autoridades domésticas em matéria de entrada e expulsão de estrangeiros. Nesse caso, como a regra da referida diretiva não demanda nenhum ato posterior dos Estados membros por conta de sua clareza e pela falta de qualquer condicionante, o TJUE reconheceu-lhe efeito direto e vinculante contra o Reino Unido8. No supracitado caso Ratti, o TJUE assentou que, se o prazo de adaptação da legislação interna a uma diretiva expirar, o Estado membro não pode aplicar suas regras domésticas contrariamente a um particular que tenha cumprido os requisitos da diretiva, mesmo em questões de direito penal. No caso concreto, o cidadão italiano Tullio Ratti havia sido incriminado com base em lei penal italiana que exigia a indicação, na rotulagem dos produtos, da presença de determinadas substâncias (benzeno, tolueno e xileno). Acontece que, à época dos fatos, o referido cidadão havia cumprido as exigências da Diretiva nº 73/173, de 3 de julho de 1973, e da Diretiva nº 77/728, de 7 de novembro de 1977, às quais a legislação italiana não se havia adaptado apesar do transcurso do pertinente prazo. Com base nisso, o TJUE entendeu que nenhum cidadão pode ser punido com base em uma lei penal doméstica que, mesmo após a consumação do pertinente prazo de adaptação, permanece incompatível com diretivas9. Há outros julgados que reforçam a existência de efeito vinculante a diretivas com regras claras que independem de regulamentação. No acórdão Francovich, por exemplo, o TJUE esclareceu que o fato de os Estados membros terem liberdade para definir o modo como adaptará a legislação interna às diretivas não afasta o direito de os particulares invocarem direitos incondicionados previstos de modo claro na diretiva10. Na próxima Coluna, seguiremos tratando do tema. Até lá. __________ 1 Site. 2 O Conselho da União Europeia também coordena as políticas dos Estados membros, elabora política externa e de segurança da União Europeia com base nas orientações do Conselho Europeu, celebra acordos da União Europeia com países terceiros ou organismos internacionais e adota o orçamento da União Europeia em conjunto com o Parlamento Europeu. 3 Site. 4 O Parlamento Europeu também emite pareceres sobre relatórios da Comissão, do Banco Central, além de manifestar-se consultivamente em outras questões e de colaborar com parlamentos nacionais. 5 Para aprofundamento, ver: EUROPARL. O poder legislativo. Disponível aqui. 6 Há, ainda, as Decisões (que só vincula os seus destinatários em específico), as Recomendações (que não vinculam) e os Pareceres (que também não são vinculantes). 7 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 8 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 5 de abril de 1979, Processo nº 148/78: Ministerio Fiscal vs Tullio Ratti. Data: 5 de abril de 1979 (Disponível aqui). 10 Segue este excerto do sumário do acórdão Franovich: "A faculdade de um Estado-membro destinatário de uma directiva escolher entre uma multiplicidade de meios possíveis com vista a atingir o resultado estabelecido pela mesma não exclui a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos cujo conteúdo pode ser determinado com precisão suficiente apenas com base nas disposições da directiva." (Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui).
1. Introdução Uma das fontes importantes para estudos de Direito Comparado em Direito Privado é o europeu, seja pela herança de tradição jurídica brasileira, seja pela semelhança de muitos dos problemas sociais contemporâneos a serem enfrentados pelo Direito Privado. Este artigo objetiva expor o cenário de harmonização de Direito Privado Europeu, com foco na experiência ocorrida no âmbito da União Europeia. Começaremos por expor um breve histórico e a estrutura institucional da União Europeia. a fim de que o leitor conheça as principais formas de produção jurídica do direito comunitário europeu. Em seguida, trataremos das experiências europeias de harmonização jurídica comunitária no direito privado. Com essas noções, o leitor terá maior suporte para erguer reflexões úteis para o Direito Privado Brasileiro, conferindo o que de proveitoso podemos importar, respeitando-se, obviamente, as nossas particularidades. 2. Breve histórico da União europeia A União Europeia é o bloco mais avançado em termos de integração internacional. Com sua estrutura institucional e normativa robusta, caminha para avançar mais a ponto de haver quem atualmente mencione a existência do conceito de cidadania europeia1. A sua motivação não foi apenas por conveniência econômica. Colaborou também a proximidade dos valores históricos e culturais dos Estados membros, que compartilham de valores de matriz greco-romana, judaico-cristã e iluminista. Contribuiu, igualmente, a busca pela paz, tendo em vista um histórico povoado de conflitos armados entre as nações europeias. Após a II Guerra, as movimentações destinadas à integração da Europa recrudesceram. Em 1944, Bélgica, Holanda e Luxemburgo criaram uma zona de livre comércio e de união aduaneira, formando o bloco Benelux2. Em 1949, foi criado o Conselho da Europa, que atualmente desempenha o papel de promover a democracia e defesa dos direitos humanos3. Não se confunde com a União Europeia. Vários Estados-Membros do Conselho da Europa sequer integram a União Europeia. Em 1951, foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) por meio do Tratado de Paris. Por causa dela, os Estados membros eram obrigados a seguir as decisões da CECA em matéria de produção de carvão e aço. Os Estados membros, portanto, abriram mão de parte de sua soberania em favor dessa instância supranacional, o que representa um dos mais marcantes antecedentes históricos da União Europeia. Em 1957, foi criada a Comunidade Econômica Europeia (CEE) por meio do Tratado de Roma4 (que era conhecido pela sigla TCE em alusão ao seu epíteto Tratado da Comunidade Europeia), destinada a viabilizar a formação de uma nova etapa de integração regional: a do mercado comum. No mesmo ano, também foi criada a Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM), destinada ao uso pacífico da energia nuclear, especialmente para alcançar uma independência energética. A EURATOM segue vigente e não se confunde com a União Europeia. Foi da CEE que veio a nascer a União Europeia, que representa uma etapa mais avançada de integração regional: união econômica e monetária. A União Europeia, inicialmente, foi fruto do Tratado da União Europeia, também conhecido como Tratado de Maastrich ou pela sigla TUE (1992). Esse tratado foi posteriormente alterado pelo Tratado de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001) até vir a sofrer uma grande reforma com Tratado de Lisboa (2009). Atualmente, as bases normativas da União Europeia foram decisivamente alcançadas pelo Tratado de Lisboa5 (2009), que é conhecido como o Tratado de Reformador. Ele alterou o TUE (o Tratado de Maastrich) e o Tratado de Roma (o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia). Este último, inclusive, recebeu um novo nome de batismo: Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Portanto, o TFUE (antigo Tratado de Roma) e o TUE, com as alterações feitas pelo Tratado de Lisboa, são as principais bases normativas da União Europeia. São o Direito da União6. São "os Tratados", nas palavras do item 2 do art. 1º do TFUE7. O TFUE e o TUE não podem ser considerados uma Constituição, porque a União Europeia não é um Estado soberano. Ela é uma organização intergovernamental representantiva de uma forma avançada de integração regional. Todavia, "os Tratados" dão a estrutura e os fundamentos da União Europeia, assemelhando-se, ainda que parcialmente, a uma Constituição. Essas normas são utilizadas, entre outros fins, para guiar decisões em processos julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A União Europeia abrange 27 Estados membros. O mapa abaixo dá uma visão geográfica dos Estados membros da União Europeia, com a ressalva de que a Islândia (Ireland) suspendeu, por tempo indeterminado, seu pedido de adesão ao bloco e, portanto, não é um membro atual8: 3. Estrutura Institucional A União Europeia é formada por 8 principais órgãos9: a) Parlamento Europeu - PE; b) Conselho Europeu10; c) Conselho da União Europeia (ou simplesmente Conselho); d) Tribunal de Justiça da União Europeia; e) Comissão Europeia11 (ou simplesmente Comissão); f) Tribunal de Justiça da União Europeia (ou simplesmente Tribunal de Justiça); g) Banco Central Europeu - BCE12; h) Tribunal de Contas Europeu (ou simplesmente Tribunal de Contas)13; Além desses órgãos, há outros, como o Comitê Econômico e Social (CESE)14 e o Comitê das Regiões, os quais auxiliam os trabalhos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Para nosso estudo, importa-nos mais os órgãos incumbidos da produção de normas e precedentes em matéria de direito privado, a saber: o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça da União Europeia. Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. Até lá! __________ 1 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Diretios Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 1322. 2 O nome do bloco decorre das iniciais dos nomes dos países integrados: BElgique, NEderland e LUXembourg. 3 Site do Conselho da Europa. 4 Esse tratado foi posteriormente rebatizado como Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). 5 TRATADO DE LISBOA. Publicação: 17 de dezembro de 2007 (Disponível aqui). 6 Há quem também inclua o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA). Deixamos, porém, de problematizar o tema por conta de sua falta de pertinência com o objeto do nosso estudo, que é o direito privado. 7 Art. 1º do TFUE: Artigo 1.º O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. 2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo valor jurídico, são designados pelos termos "os Tratados". 8 CERKESAS, Evaldas. Cross Border Cases Under European Small Claim Procedure And European Order For Payment. Publicado em 24 de outubro de 2021 (Disponível aqui). Sobre o perfil dos países integrantes da União Europeia, ver seu site oficial.  9 Artigos 223º ao 287º do TFUE e art. 13 do TUE. 10 O Conselho Europeu não é instituição legislativa, ao contrário do Conselho da União Europeia. Cabe-lhe definir orientações e prioridades da União Europeia. É composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, além do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão Europeia. Site oficial do Conselho Europeu.  11 A Comissão Europeia é órgão executivo da União Europeia e toma decisões sobre o rumo político. Ela tem o monopólio para a iniciativa normativa. Site oficial. 12 O BCE cuida da política monetária da União Europeia. 13 O Tribunal de Contas fiscaliza as finanças da União Europeia. 14 O CESE, além emitir relatórios e pareceres, organiza eventos anuais para participação da sociedade civil.
1. Introdução Inauguramos hoje a Coluna Migalhas de Direito Privado Estrangeiro, com um objetivo claro: compartilhar questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil, em Direito Notarial e Registral. As publicações serão quinzenais, às terças-feiras, com eventuais edições extraordinárias em outros dias. Já mantemos iniciativas similares em outras plataformas, como no perfil @direitoprivadoestrangeiro no Instagram. Esperamos que, nesta Coluna, o leitor encontre espaço para conhecer mais o que acontece fora de nosso território. Não se trata de mera curiosidade. Conhecer experiências jurídicas estrangeiras abre-nos a criatividade, seja para formular novas teses jurídicas em processos judiciais, seja para discutir mudanças legislativas, seja para compreender mais adequadamente os fundamentos do nosso Direito. Hoje o objetivo é tratar de uma fonte importante para estudos de direito privado estrangeiro: o soft law. Os advogados, o legislador, os magistrados, enfim, os operadores do Direito em geral brasileiros podem valer-se dessa ferramenta para guiar debates sobre questões jurídicas práticas. No Brasil, já conhecemos instrumentos de soft law, como os enunciados das Jornadas de Direito Civil1 e os da I Jornada De Direito Notarial e Registral2, os quais - apesar de não serem vinculantes - guiam os operadores do Direito. 2. Soft Law e os estudos de Direito Privado Estrangeiro O soft law (também chamado de soft norm, droit doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados. Apesar de não terem força vinculante, essas regras de soft law guiam os negócios privados e as instituições jurídicas locais (especialmente o Parlamento e o Judiciário) para manter um ambiente de harmonização internacional de direitos. Podem, por exemplo, ser escolhidas pelas partes como a regra aplicável a um contrato. Podem guiar câmaras arbitrais no julgamento. Servem de parâmetro pelo Poder Judiciário nacional. O soft law consegue ter certa força orientadora por espelhar os costumes e os princípios gerais do direito, os quais costumam ser fontes dos ordenamentos jurídicos dos países. Os costumes refletem uma prática generalizada (elemento material do costume) acompanhada de uma opinio iuris (elemento subjetivo). A opinio iuris é a convicção acerca da juridicidade daquela prática generalizada3. Dentro do conceito de soft law, podem-se incluir normas vinculantes com um conteúdo aberto ou programático, marcado pela sua flexibilidade: uma espécie de direito flexível4. Não estamos, porém, a tratar dessa acepção5. Aqui estamos a focar a acepção do soft law como um quase-direito. Abrange, por exemplo, instrumentos não obrigatórios formalmente produzidos por organismos privados ou estatais. Alcança, inclusive, o gentlemen's agreement (acordo de cavalheiros), oriundo da doutrina anglo-saxã e que consiste em compromissos não obrigatórios que expressam uma diretriz dos Estados em concerto. Memorandos de entendimentos, declarações, declarações conjuntas, declarações das grandes conferências internacionais, atas finais, agendas, programas de ações, recomendações, acordos não vinculantes (non-binding agreements) e leis-modelo são, no plano internacional, nomes que são empregados a instrumentos que podem designar exemplos de soft law. É preciso, porém, tomar cuidado. Por vezes, esses nomes (com ressalva óbvia do termo "acordos não vinculantes") reportam-se a instrumentos vinculantes, escapando do conceito de soft law. É preciso olhar o caso concreto. No direito privado, um exemplo de soft law são os princípios Unidroit6 relativos aos Contratos Comerciais Internacionais7. Não se trata de uma convenção internacional internalizada por Estados. Não há caráter vinculante. Entretanto, os referidos princípios Unidroit guiam a prática do comércio internacional e orientam interpretações a serem feitas da legislação doméstica e internacional, pois refletem um topoi (um lugar comum) jurídico. São utilizados em arbitragem ou como lei escolhida pelas partes em contratos8. Há até decisões dos Poderes Judiciários domésticos valendo-se dos princípios Unidroit. O próprio preâmbulo dos Princípio Unidroit, ao tratar de seu âmbito de aplicação, reconhece que, apesar de não ostentar uma força vinculante formal estatal, gaba-se de uma força de fato em guiar contratos, leis (domésticas e internacionais), jurisprudência e doutrina9. Os princípios Unidroit caminham para ser uma espécie de "Restatements10 internacional dos princípios gerais de direito dos contratos"11. Aliás, as próprias partes podem eleger, em contratos, a aplicação dos princípios do Unidroit (ou outras normas não estatais), ao menos no âmbito da União Europeia, respeitadas as particularidades das normas comunitárias europeias e as normas domésticas12. Há importantes organizações internacionais privadas e intergovernamentais que trabalham na edição de leis uniformes ou de instrumentos de soft law, na elaboração de convenções internacionais e na promoção de práticas de harmonização internacional, especialmente em direito privado. Em suma, é importante sempre conhecer os principais instrumentos de soft law produzidos por instituições públicas e por respeitadas instituições privadas. No Brasil, os enunciados das Jornadas de Direito Civil e da I Jornada de Direito Notarial e Registral são exemplos de ferramentas de soft law muito utilizadas. Convém também que outras ferramentas de soft law desenvolvidas no âmbito transnacional também frequentem os debates de Direito Privado. Todavia, cabe um alerta: esse debate há de realizado com maturidade, ciente de que esses instrumentos de soft law, embora expressem o entendimento de juristas renomados de diversos países, não necessariamente representam uma unanimidade na comunidade jurídica: não são "verdades absolutas". Chamamos a atenção para estes instrumentos de soft law em direito privado no âmbito transnacional: a) Draft Common Frame of Reference (DCFR), também conhecido como Projeto de Código Civil Europeu ou como projeto de Quadro Comum de Referência, o qual foi desenvolvido no âmbito da União Europeia13. b) Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como Lando Commission, em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200314. c) os Princípios do Unidroit sobre Contratos Comerciais Internacionais, cuja última versão é de 201615; d) Lei Modelo de Leasing do Unidroit16; e) Convenção do Unidroit sobre Leasing Financeiro Internacional17 (UNIDROIT Convention on International Financial Leasing)18. f) Princípios sobre escolha da lei aplicável em contratos comerciais internacionais, da HCCH (sigla de Hague Conference on Private International Law; em francês, Conférence de La Haye de droit international privé; ou, em português, Conferência da Haia de Direito Internacional Privado)19. g) Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Uncitral (sigla de United Nations Comission on International Trade Law ou, em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional da ONU)20; h) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA - Organização dos Estados Americanos (Model Inter-American Law On Secured Transactions)21; i) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da Uncitral (UNCITRAL Model Law on Secured Transactions)22. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Ver: (1) NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 70-74, 92-93 e 156-157; (2) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018Mazzuoli, 2018, pp. 213-214. 4 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 97-140. 5 Paulo Henrique Gonçalves Portela dá didática definição (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 80-81):  O conceito foi desenvolvido pela doutrina norte-americana, em oposição à noção de hard law, que se refere ao Direito tradicional. No Brasil, Nasser define soft law como um conjunto de "regras cujo valor normativo seria limitado, seja porque os instrumentos que as contêm não seriam juridicamente obrigatórios, seja porque as disposições em causa, ainda que figurando em um instrumento constringente, não criariam obrigações de direito positivo ou não criariam senão obrigações pouco restringentes". O autor aponta ainda as seguintes modalidades de soft law:  - normas, jurídicas ou não, de linguagem vaga e de conteúdo variável ou aberto, ou, ainda, que tenham caráter principiológico ou genérico, impossibilitando a identificação de regras claras e específicas;  - normas que prevejam mecanismos de soluções de controvérsia, como a conciliação e a mediação;  - atos concertados entre os Estados que não adquiram a forma de tratados e que não sejam obrigatórios; atos das organizações internacionais que não sejam obrigatórios; - instrumentos produzidos por entes não estatais que consagrem princípios orientadores do comportamento dos sujeitos de Direito Internacional e que tendam a estabelecer novas normas jurídicas.  (...) Em suma, o soft law inclui preceitos que ainda não se transformaram em normas jurídicas ou cujo caráter vinculante é muito débil, ou seja, "com graus de normatividade menores que os tradicionais", como afirma Soares. Com isso, é comum que as regras de soft law tenham caráter de meras recomendações. (...) Exemplos relevantes de documentos internacionais que podem ser considerados como de soft law são a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as declarações de organismos internacionais referentes à saúde pública (como a Declaração de Alma-Ata e a Declaração de Cartagena), as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei Modelo sobre Arbitragem Internacional, a Carta Democrática Interamericana, as Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade e a Declaração Sociolaboral do Mercosul. Independentemente do caráter de fonte do Direito Internacional de que se revista ou não o soft law, é inegável a influência dos diplomas que têm esse formato no atual quadro do Direito das Gentes e da Ciência Jurídica como um todo. O soft law vem servindo, por exemplo, como modelo para elaboração de tratados e de leis internas, como parâmetro interpretativo, como pauta de políticas públicas e de ação da sociedade civil e como reforço da argumentação para operadores do Direito. (...) Cabe destacar que a própria jurisprudência dos tribunais brasileiros vem mencionando alguns desses documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Princípios Yogyakarta. (...) A respeito do emprego da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos julgamentos do Pretório Excelso, e a título de mero exemplo, ver os seguintes julgados do STF: ARE 639.337 AgR/SP e ADC 29/DF. A respeito do emprego dos princípios de Yogyakarta nos julgamentos do Pretório Excelso, ver os seguintes julgados: RE 477.554 AgR/MG, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF. 6 Unidroit é a International Institute for the Unification of Private Law ou Institut International pour l'unification du droit privé). Trata-se de uma organização intergovernamental, composta por 63 Estados membros. 7 Sobre os princípios do Unidroit em arbitragem internacional, ver: KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 8 KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 9 Segue o inteiro teor do dispositivo: PREÂMBULO (O objetivo dos Princi'pios) Estes Princi'pios estabelecem regras gerais para contratos comerciais internacionais. Devem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por eles.(*) Podem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por princi'pios gerais de direito, pela lex mercatoria, ou similares. Podem ser aplicados caso as partes na~o tenham escolhido nenhuma lei para regular o seu contrato. Podem ser usados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme. Podem ser usados para interpretar ou suplementar leis nacionais. Podem servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais. 10 A referência é aos Restatements of the Law, espécies de tratados que reúnem princípios gerais do common law para auxiliar os operadores do Direito nos EUA. São espécies de consolidação da jurisprudência. Assemelham-se às súmulas dos tribunais, com a diferença de que não são oriundas de órgão estatal. Os Restatements são publicados pela entidade privada American Law Institute (ALI), criada em 1923. Há quatro Restatements, os quais subdivididos em vários volumes conforme o conteúdo. Por exemplo, o Restatement of the Law Third possui volumes relativos a repsonsabilidade civil, a hipotecas (mortgages), a servidões (servitudes), a enriquecimento ilícito (restitution and unjust enrichment) etc.  (Romano, 2017; Texas Law, 2022). O site oficial da American Law Institute disponibiliza, para venda, os volumes. Recomendamos leitura destes artigos: (1) ROMANO, Rogério Tadeu. O restatement of the law dos norte-americanos. Publicado em maio de 2017 (Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2022); (2) TEXAS LAW. Restatements of the law. Disponível aqui. Acesso em 19 de abril de 2022. 11 Princípios Unidroit relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. Ano: 2016, p. 28 (Disponível aqui). 12 A propósito, o item 13 dos Considerandos do Regulamento Roma I (Regulamento CE nº 593/2008) dispõe: 13 O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato, um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional." 13 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida está disponível na Internet. LAW KUELEUVEN. Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui). 14 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui). 15 Unidroit, 2016. Disponível neste site. 16 Unidroit Model Law on Leasing. Ano: 2010 (Disponível aqui). 17 DUARTE, Rui Pinto. A Convenção do Unidroit sobre Locação Financeira Internacional - tradução e notas. In: Documentação e Direito Comparado, nº 35/36, 1988 (Disponível aqui). 18 UNIDROIT Convention on International Financial Leasing. Ano: 1988 (Disponível aqui). 19 É uma organização intergovernamental com 83 membros (82 Estados e a União Europeia). Foi fundada em 1893. Seu escopo é promover a progressiva unificação das regras de direito internacional privado. Quanto aos princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais internacionais, ele está disponível neste site. 20 UNCITRAL. Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional 1985 com as alterações adotadas em 2006. Ano: 2006. 21 Organization of American States, 2013. Para aprofundamento, reportamo-nos a: (1) SILVA, Fábio Rocha Pinto e. Garantias das Obrigações: uma análise sistemática doo Direito das Garantias e uma proposta abrangente para a sua reforma. São Paulo: Editora Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP, 2017; (2) RODAS, João Grandino. Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia. Publicado em 4 de junho de 2020. 22 UNCITRAL Model Law on Secured Transactions. Ano: 2019 (Disponível aqui).