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Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil e em Direito Notarial e Registral.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Apesar da tradicional distinção da família do common law com a do civil law, essa diferença é cada vez menos nítida. Essa dicotomia não é, de todo, adequada. Ao contrário do mito da insularidade do direito inglês (segundo a qual o direito inglês teria-se desenvolvido em postura de isolacionismo cultural em relação ao direito da Europa continental), a Inglaterra, desde a conquista normanda1, manteve-se em interação com a cultura jurídica da Europa continental. Foi, pois, influenciada pelo direito romano.2 Houve, ainda, influência do direito romano ao tempo do domínio da Ilha pelos romanos nos anos 43 a 410 d.C.: A Ilha correspondia à província romana de Britânia (Britannia). Charles Phineas Sherman3 destacou que, nos séculos II e III, o direito romano avançou rapidamente pela Grã-Bretanha, fato atestado pelos juristas romanos Javolenus e Ulpiano. Registra que a Grã-Bretanha contou, ao longo de três anos, com altos tribunais romanos compostos por jurisconsultos ilustres, como Ulpiano, Paulus e Papiniano. Sobre esse episódio, Sherman faz esta metáfora: "Era como se a Suprema Corte dos EUA fizesse sessões no Alasca". 4 A influência do direito romano na Grã-Bretanha também ocorreu no final do século VI com a reintrodução do cristianismo, com a conversão dos anglo-saxões.5 Juristas ingleses mantiveram essa conexão, com produções jurídicas marcantes na recepção e na adaptação da cultura jurídica da Europa continental. São os casos, por exemplo, de juristas ingleses, como Henry of Bacton (1210-1268), além de vários juízes.6 A fundação da Universidade de Oxford em 1090 também foi um marco no diálogo com o direito romano. Nos seus quadros de docentes, esteve o jurista italiano Vacarius (1120-1200), que lecionou direito justianeu. Esse estudo do direito romano nas universidades, porém, desempenhou uma influência mais restrita no direito inglês. É que, na prática, as jurisdições aplicavam mais os costumes. Na Inglaterra dessa época, juízes e advogados não precisavam de título universitário para atuar, o que colaborou para reduzir a intensidade da influência do direito romano.7 Isso, porém, não significa que não tenha havido essa influência romana no direito inglês. No século XIII, Henry Bracton, em 1258, em latim, escreveu um dos principais tratados de direito inglês reconhecendo as influências do direito romano e expondo que o direito inglês era assentado no respeito a precedentes jurisprudenciais.8 O tratado foi conhecido como De Legibus et Consuetudinibus Angliae (Of The Laws and Customs os England). Por conta desse tratado, Bracton é considerado um dos pais do common law inglês por ter sistematizado mais de 450 precedentes e por ter desenhado teoricamente o direito inglês. E, para tanto, Bracton valeu-se insistentemente do direito romano, pois tinha domínio da matéria: Bracton foi formado na Escola dos Glosadores. Isso, porém, não significa que Bracton tenha reconhecido o direito romano como um direito positivo na Inglaterra, mas apenas que havia pontes de conexão entre o direito inglês e o romano.9 Os estudos de Bracton marcaram profundamente o common law. Três séculos depois, mesmo Sir Edwart Coke - que era um defensor da tese mítica de isolacionismo cultural do common law em relação ao direito europeu continental - contraditoriamente teve de valer-se dos trabalhos de Bracton.10 Continuaremos na próxima coluna. ___________ 1 No século XI, o exército normando liderado pelo duque Guilherme II da Normandia (Guilherme, o Conquistador) atravesso o Canal da Mancha e invadiu a ilha da Grã-Bretanha. Guilherme II reivindicava o trono por conta de seu parentesco com o falecido rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor. Ainda que, à época da conquista, houvesse a defesa de que a conquista normanda tivesse resultado de um consenso com os saxões, a realidade é que se tratou de uma conquista armada, à base da força, por parte dos normandos, conforme se passou a reconhecer mais tarde (LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 54). 2 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18-23; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica - Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 318-329. 3 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. Chales P. Sherman (1874-1962) foi professor de direito romano e de direito canônico em diversas universidades, inclusive na Yale Law School. 4 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. A assimilação da cultura romana, com inclusão do direito, pelos habitantes da Bretanha ao tempo do domínio romano não foi tão intensa. As próprias origens das instituições inglesas são mais conectadas à influência germânica do que à romana. Entre as justificativas históricas, estão as invasões dos povos germânicos (especialmente dos Anglo-Saxões) à Bretanha, com o surgimento de sete reinos medievais: East Anglia, Essex, Kent, Mercia, Northumbria, Sussex e Wessex. Os senhores territoriais mantiveram-se com forte influência mesmo após a invasão normanda em 1066. O rei normando colaborou para uma maior centralização jurídica, com o surgimento de um direito comum britânico (o common law), que convivia com o direitoaplicada em cada unidade senhorial. Esse common law britânico não foi, porém, fruto de normas produzidas pelo rei, mas principalmente como resultado do sistema judicial, marcado pela eficácia territorial ampla das decisões das Cortes de common law. Por conta da importância dos precedentes jurisprudenciais, estes passaram a ser sistematizados e organizados nos chamados Year Books e nos Laws Reports, espécies de repositórios jurisprudenciais (CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 98-106). 5 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. 6 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18 e 20. 7 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 3. 8 O outro principal tratado foi de Ranulf de Glanville (falecido em 1190), intitulado Tractatus de legibus et consuetudinibus regni Angliae (Treatise on the Laws and Customs of the Kingdom of England). Esse foi o primeiro grande tratado do direito inglês (Cabral, 2019, pp. 102-103). 9 Gustavo César Machado Cabral lembra que, na obra de Bracton, "a influência do Direito Romano foi patente a ponto de Maitland afirmar que a obra de Bracton era romanesca na forma e inglesa no conteúdo, o que implicava que o autor reconhecia o valor do método dos juristas formados no ius civile, mas pretendia construir um livro dedicado ao direito real da Inglaterra, meta que foi alcançada" (Cabral, 2019, p. 103). 10 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 326; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica - Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).
Damos seguimento ao que tratamos na coluna anterior. No exemplo da companhia ferroviária, o fato de as partes etiquetarem o contrato como lease não é suficiente para que o pacto feito seja considerado um direito in rem. É preciso que o conteúdo do contrato condiga com o lease. Por exemplo, se o arrendatário (o leasee) não tiver o controle exclusivo do imóvel, não se trata de lease, ainda que o instrumento contratual tenha sido batizado como tal. Nesse ponto, Stevens cita esta famosa sentença do Lord Templeman no julgamento, pela Câmara dos Lordes do Reino Unido (United Kingdom House of Lords), do caso Street v. Mountford, em 19851: A fabricação de um instrumento de cinco pontas para escavação manual é um garfo, mesmo se o fabricante, não familiarizado com a língua inglesa, insista em que pretendia fazer, e fez, uma pá. O julgado Street v. Mountford é emblemático para distinguir o lease da licence e foi julgado pela Câmara dos Lordes do Reino Unido. Este órgão legislativo - que corresponde à câmara alta do parlamento britânico - exercia um papel jurisdicional para determinadas questões até o ano de 20092, quando, então, a Supremo Tribunal do Reino Unido3 (Supreme Court of the United Kingdom) absorveu-lhe a competência. No caso4, a Roger Theodore Crispin Street concede licence a Wendy Mountford para ocupação de 2 quartos mediante pagamento de aluguéis mensais. Street poderia resilir o contrato mediante aviso prévio de 14 dias. O instrumento contratual foi intitulado como Licence Agreement e continha expressa declaração de que não se tratava de arrendamento (lease ou tenancy). A Câmara dos Lordes, porém, entendeu que, apesar do rótulo do instrumento contratual, havia um lease (ou tenancy): O importante é o conteúdo do contrato e a realidade fática da relação contratual, e não a sua etiqueta. No Reino Unido, o lease (ou tenancy) é disciplinado pelo Landlord and Tenant Act 19545 e caracteriza-se pela concessão do uso exclusivo da coisa em troca de aluguel a ser pago pelo um inquilino (chamado, em inglês, de tentant, se aluga um imóvel inteiro, ou de lodger, se aluga um quarto de um imóvel).6 Pode ser por prazo determinado ou indeterminado (neste último caso, o locador - landlord ou owner - pode denunciar o contrato mediante aviso prévio). Não se trata de uma mera licença, ainda que o instrumento contatual o tenha assim rotulado (Street v. Mountford [1985] AC 809). O lease não é um direito in personam, e sim um direito in rem. É um estate in land. Por isso, subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. Pode ser comprado ou vendido. No caso de locação comercial, se observados os requisitos da Part II of the Landlord and Tenant Act 1954, o inquilino (tenant) tem direito de permanecer no imóvel mesmo após o fim do prazo, salvo justas causas legais específicas. A resilição do lease pelo arrendante (landlord) é mais difícil diante das proteções legais previstas no Landlord and Tenant Act 1954. Além da exigência de aviso prévio - que, a depender do tipo de lease, tem de ser de 6 meses -, o arrendante pode ter de provar judicialmente um dos permissivos legais e pode vir a ser obrigado a pagar compensações financeiras ao arrendatário (tenant). O lease britânico distingue-se substancialmente do license. O licence (a licença) é um contrato de natureza pessoal por meio do qual alguém (o licensor) autoriza outrem (o licensee) a fazer algo, como ocupar um imóvel. Não confere direito in rem. Não subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. O beneficiário (licensee) tem posição jurídica precária. Como o lease atrai diversas proteções legais em favor do inquilino, há proprietários que tentam rotular o instrumento contatual como licence como forma de burla a esse regime protetivo. Todavia, a Câmara dos Lordes, no julgado supracitado (Street v. Mountford, de 1985), censurou esse teatro textual. Outras tentativas de burla ao regime protetivo do lease já foram reprimidas no Reino Unido, a exemplo do caso London College of Business v. Tareem, de 20087, julgado pela EWHC - England and Wales High ourt of Justice. O London College of Business ocupou por muitos anos um imóvel ao abrigo de sucessivos acordos intitulados como licence e com previsão expressa de que não se poderia considerar existente aí um lease no sentido do Landlord and Tenant Act 1954. Apesar de o acordo conter o direito de o proprietário poder acessar o imóvel em qualquer momento razoável, tal nunca ocorreu. Além disso, o London College of Business equipou o imóvel para o seu negócio, que foi efetivamente implementado. O acordo continha uma cláusula de rescisão por violação em tudo semelhante às cláusulas presentes em caso de lease. O Londo College of Business também tinha de pagar um valor a título de "taxa de serviço" (service charge). Surgiu, então, uma controvérsia sobre o valor devido a título de taxa de serviço. O proprietário, então, tentou despejar o colégio por não ter pagado esse valor. A Alta Corte Inglesa (England and Wales High ourt of Justice), todavia, à vista da realidade dos fatos e da maior vulnerabilidade do colégio (que não teve assessoramento jurídico), decidiu que havia um lease, apesar de os sucessivos acordos terem sido etiquetados como licence. Em consequência, o tribunal rejeitou a demanda do proprietário, especialmente pelo fato de este não ter utilizado o procedimento legal devido para despejo por justa causa (acaso efetivamente houvesse uma justa causa no caso concreto). A exposição dos casos acima sobre a diferença do lease e do licence ilustram que, mesmo no Reino Unido, a ideia de numerus clausus para os direitos reais está presente, ainda que sob a ótica da análise de distinção entre direitos in personam e direitos in rem. É equivocado pensar que o princípio do numerus clausus em direitos reais é restrito aos sistemas jurídicos do civil law. Ele também está presente nos países do common law. Embora poucos Códigos tratem textualmente do princípio do numerus clausus, ele é reconhecido principalmente na doutrina e na jurisprudência de vários países, como na Alemanha, na França, na Itália, na Holanda, na Argentina, na Colombia, no Chile, no Peru8, no Brasil9, no Japão, na Finlândia, na Áustria, em Portugal, na Suíça, na Suécia.10 Há, porém, particularidades a depender de cada país. Na França, a legislação não foi pensada para o numerus clausus. O tema é controverso. Há juristas franceses que sustentam a prevalência da autonomia da vontade em matéria de direito real. E invocam o clássico caso Caquelard, de 1834.11 Luis Díez-Picazo averba que prevaleceria, na França, a tipologia de numerus apertus.12 A jurisprudência francesa, no entanto, inclina-se a prestigiar o numerus clausus, acatando os direitos reais previstos no Código Civil ou em outras leis. Há pouquíssimos casos em que se poderia discutir se houve ou não a criação de um novo direito real. Na França, na área dos direitos reais de garantia, há forte presença de legislação especial. É, por exemplo, o caso da lei dubanchet (loi dubanchet), de 198013, que garante um direito de retenção da coisa em face de outros credores do adquirente.14 Na Itália, a doutrina majoritária defende que, após o Código de 1942, adotou-se o sistema de numerus clausus.15 São poucos os Códigos Civis que são expressos acerca do numerus clausus dos direitos reais. Um exemplo é a Argentina, conforme o art. 1884 do seu Codigo Civil y Comercial de la Nacion, que assim dispõe: Artículo 1884. Estructura La regulación de los derechos reales en cuanto a sus elementos, contenido, adquisición, constitución, modificación, transmisión, duración y extinción es establecida sólo por la ley. Es nula la configuración de un derecho real no previsto en la ley, o la modificación de su estructura. A maior parte dos Código Civis lista direitos reais, mas não externa se o rol é ou não taxativo. Cabe à doutrina e à jurisprudência essa tarefa. __________ 1 Tradução livre do inglês (Robert Stevens). 2 O julgamento na Câmara dos Lordes era conduzido pelos Law Lords (os Lordes da Lei), que eram 12 juízes nomeados pelos membros da Câmara dos Lordes. 3 O Supremo Tribunal do Reino Unido foi criado em 2005, mas iniciou suas atividades judiciais em 2009. Atualmente é a última instância recursal em questões civis para todo o Reino Unido e, em questões penais, é a última instância apenas para casos procedentes da Inglaterra, País de Gales e Irlando do Norte. Para compreensão da história e do papel do Supremo Tribunal do Reino Unido. Disponível aqui. 4 [1985] 2 WLR 877, [1985] UKHL 4, [1985] AC 809 (United Kindgom House of Lords Decisions, 1985). 5 O inteiro teor do diploma inglês. Disponível aqui. 6 O procedimento de despejo é diferente: no caso de tenant, há necessidade um processo de eviction; no caso de lodger, basta chamar a polícia após notificação prévia (Coble, 2015). 7 London College of Business Ltd v Tareem Ltd & Anor [2018] EWHC 437 (Ch) (07 March 2018). 8 Fernando Gamarra-Alayza trata do tema levando em conta o direito alemão, francês, argentino, chileno, colombiano, mexicano e peruano. Realça que, no México, a disciplina cabe a cada entidade federativa e que, no Distrito Federal, o entendimento majoritário é que se adotou o sistema de numerus clausus. 9 Apesar de haver controvérsia, prevalece o entendimento de que se adotou, no Brasil, o numerus clausus. 10 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133. 11 Rafael Vanzella trata disso. 12 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, pp. 133-134. 13 Loi n°80-335 du 12 mai 1980. 14 Robert Stevens trata disso. 15 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133.
Em continuação à coluna anterior, seguimos a tratar dos numerus clausus. De modo mais recente, é certo que, a partir da década de 1990, a expressão numerus clausus ou sistema fechado de direitos reais assumiram títulos e conteúdos de inúmeros trabalhos acadêmicos. O princípio do numerus clausus está associado ao modelo jurídico-real de cada país. Por exemplo, para Antonio Huerta Trólez, Alemanha, Áustria e Suíça adotam o princípio do numerus clausus por conta seu modelo de aquisição e transmissão de direitos reais. Nesse modelo, o negócio jurídico causal não transfere o direito real, mas apenas o negócio jurídico real. A autoridade registral não qualifica o negócio jurídico causal, mas sim o negócio jurídico real, dada a autonomia deste em relação àquele1. A base das discussões acerca do numerus clausus está na distinção entre ius in rem e ius in personam. Historicamente, direitos in rem distinguem-se dos direitos in personam, segundo tradição romana. Os primeiros referem-se a uma relação jurídica com uma coisa física e oponível contra terceiros. Já os direitos in personam envolvem relação jurídica entre as pessoas e é oponível inter partes. Essa distinção é a base dos debates sobre direitos de propriedade nos sistemas jurídicos em geral, com inclusão do inglês2. José Luiz Lacruz Berdejo3 destaca que o conceito de direitos reais é fruto de uma generalização feita pelos juristas. Estes observaram que, ao longo da história, foram surgindo formas de dominação do homem sobre a coisa, como a propriedade, o usufruto, a hipoteca e outras figuras. Identificou traços comuns entre elas, aptos a aglutiná-las sob um mesmo conceito: o de direitos reais. Em Roma, já havia variações dessas generalizações. O foco, porém, não eram os direitos subjetivos, e sim as ações. Os romanos do período clássico contrapunham a actio in rem à actio in personam, mas não desenvolveram teoricamente a ideia de direitos reais. Não é viável listar direitos reais em Roma4. Se, porém, associarmos os direitos reais aos que, em Roma, eram respaldados pelas ações in rem ou pela vindicatio, seria viável apontar, como "direitos reais" romanos, os seguintes itens: direito de propriedade, direito de superfície (como uma forma especial de propriedade), servidão e, por acréscimo da tradição justiniana, o usufruto5. Eduardo C. Silveira Marchi defende, ainda, a existência de propriedade horizontal no direito romano desde o período clássico6. Enfim, sob essa ótica, em Roma, ao lado da propriedade, havia poucos direitos reais7. Foi só na Idade Média que os juristas do direito comum (ius commune) começaram a focar os direitos subjetivos, e não as ações. E, por isso, desenvolveram os conceitos de ius in personam e ius in rem e, em consequência, desenharam as primeiras linhas fronteiriças entre os direitos pessoais (obrigacionais) e os direitos das coisas. Robert Stevens (2011, pp. 83-84) dá exemplo com base no direito inglês, envolvendo responsabilidade civil. Na Inglaterra, quando se trata de direitos in rem, o titular tem direito oponível a terceiros, inclusive o direito à indenização (responsabilidade civil). No caso de ius in personam, o direito só é oponível contra a parte, e não contra terceiros. Suponha que uma companhia ferroviária adquira o direito de utilizar uma ponte para travessia de vagões mediante um lease. Trata-se de um direito in rem à luz do direito inglês. Suponha que um terceiro negligente, com seu caminhão, cause um dano à ponte e, assim, inviabilize o seu uso pela companhia ferroviária. Nesse caso, o direito de arrendatária (leaseholder) foi violado por um terceiro. Como o referido direito é oponível erga omnes, o terceiro terá o dever de indenizar a companhia ferroviária: esta, pois, pode pleitear indenização diretamente contra o caminhoneiro negligente. Situação diferente seria se a companhia ferroviária tivesse adquirido o direito de usar a ponte por meio de uma licença (contractual licence) negociada com o proprietário. A contractual licence não é direito in rem na Inglaterra, e sim direito in personam. O direito da companhia (licensee) só seria oponível contra o dono da ponte. Se, pois, o caminhoneiro negligente causar dano à ponte, a companhia férrea não poderá pleitear indenização contra ele por falta de direito oponível a ele. Nesse exemplo, a companhia só poderia pleitear indenização do dono da ponte. Este, a seu turno, por ser o titular da propriedade (que é um direito in rem), poderá reivindicar indenização contra o caminhoneiro relapso, mas essa indenização ater-se-á aos danos sofridos com a ponte e, portanto, não abrangerá os direitos da companhia ferroviária ou de outros licenciados (licensees). Enfatize-se que esse regime de responsabilidade civil vigora na Inglaterra, porque o direito inglês não adota a concepção germânica de transferred loss. Alerte-se que, no Brasil, a solução seria diferente, pois o dever de indenizar não seria vinculado propriamente à natureza jurídica do vínculo da vítima com a coisa. Quem causa dano a outrem tem de indenizar. O motorista relapso causou dano à companhia. Em último caso, poder-se-ia invocar a doutrina do terceiro cúmplice para fortalecer o dever de indenizar contra o motorista negligente. Igualmente o dono da ponte poderia pedir indenização contra o caminhoneiro pelos prejuízos sofridos com a ruptura dos contratos de "licença". Retornando ao exemplo acima sob a perspectiva do direito inglês. No common law lease, o arrendatário (leasee) tem o exclusivo controle de coisa arrendada. Há um direito in rem, oponível erga omnes. É diferente do licence, por meio do qual o dono da coisa apenas concede ao licenciado (licensee) um simples privilégio em relação ao próprio dono para usar a coisa. Cuida-se de um ius in personam. Como se vê, nos sistemas jurídicos - com inclusão do inglês -, é preciso definir as categorias de direitos que se configuram como ius in rem no sentido romano e os que constituem ius personam também no sentido romano. No caso do ius in rem, como ele vincula terceiros, há necessidade de lei. Deixar as partes criarem livremente direitos in rem geraria insegurança jurídica a terceiros. Estes poderiam ser incapazes de descobrir o conteúdo do direito, como os seus deveres e seus direitos em relação à coisa. A criação de direitos in rem livremente pelas partes poderia criar restrições excessivos ou até mesmo incompreensíveis nos bens, afastando-os do tráfego jurídico pelo receio de terceiros em adquiri-lo. Basta imaginar o impacto bruto e deletério na economia se todos os imóveis do país estivessem onerados por direitos in rem de difícil compreensão ou de excessivas restrições. Além disso, à luz do princípio da legalidade, terceiros só podem ser obrigados a algo por lei ou por pacto expresso do qual eles sejam partes. Enfim, os sistemas jurídicos, com inclusão do inglês, possuem, ainda que em diferentes intensidades, um regime de numerus clausus de direitos in rem no sentido puro romano8. E, para definir se um direito é in rem ou in personam, é irrelevante o nomen iuris. O que importa é o conteúdo. Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. __________ 1 TRÓLEZ, Antonio Huerta. El Derecho Real. El Derecho de Propiedad. Adquisición: el título y el modo. Pérdida de Dominio. In: PÉREZ, Manuel Ángel Rueda (coord.). Instituciones de Derecho Privado. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2017, p. 88. 2 Robert Stevens trata disso. 3 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, p. 1. 4 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, pp. 1 e 159. 5 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 111. 6 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. A propriedade horizontal no Direito Romano. São Paulo/Brasil: Quartier Latin, 2002, p. 113. 7 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 135. 8 Robert Stevens trata disso.
Um tema importantíssimo é saber se podemos ou não criar direitos reais? Isso tem várias repercussões práticas. Uma delas é, por exemplo, saber se podemos inventar algum direito real sobre imóvel e promover o seu registro no cartório de imóveis. Buscaremos aqui expor fundamentos históricos e fazer reflexões de direito comparado sobre o tema, a fim de respaldar os debates. Segundo o princípio do numerus clausus1 (também chamado de sistema fechado de direito real, como na Holanda2), os direitos reais (property rights) são taxativos na lei: As partes não podem criar novos direitos reais nem modificar os já previstos direitos reais catalogados taxativamente em lei. É um marcante dogma, especialmente nos sistemas jurídicos da família do civil law.3 Em 1953, Vera Bolgar escreveu artigo intitulado "Why no Trust in the Civil Law?" e criticou a pouca abertura prática do sistema do numerus clausus4: O princípio do numerus clausus, que não aparenta ter valor prático, poderia muito bem ser deixado para o museu da Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz).5 O sistema do numerus clausus é um dos obstáculos ao ingresso da figura do trust em vários países da família do civil law.6 Há uma visão tradicional de que o princípio do numerus clausus é característica apenas dessa família e de que ele seria desconhecido do common law. Mas essa afirmação não é precisa. Bram Akkermans, em um dos estudos mais aprofundados já realizados sobre o princípio do numerus clausus na Europa7, defende a existência desse sistema fechado na Inglaterra.8 Convém investigar o alcance, a origem e a justificação do princípio do numerus clausus. Não há clareza quanto à origem da expressão numerus clausus. Costuma-se associar à Alemanha, especificamente aos pandectistas no século XIX. Para grande parte dos doutrinadores, o princípio do numerus clausus estava enraizado no pensamento jurídico alemão do século XIX.9 A limitação à autonomia privada em direitos reais integrou o modelo do direito de propriedade desenvolvido por Savigny e seus seguidores.10 Além da restrição à autonomia da vontade, esse modelo desenvolve um novo conceito abstrato, absoluto e total de propriedade. Exclui daí os bens incorpóreos. Promove a separação das regras de direito das coisas (law of property) em relação aos direitos obrigacionais bem como a proteção de terceiros adquirentes de boa-fé diante de vícios do título de transferência.11 O princípio do numerus clausus foi incorporado em 1900 ao projeto do BGB - Código Civil Alemão. Na exposição de motivos ao projeto do Código Civil alemão de 1888, já se fazia referência à expressão "número fechado" de direitos reais (die geschlossene Zahl). A primeira vez que provavelmente mencionou-se a expressão numerus clausus foi em 1930 com Philipp Heck. Depois, em 1938, também se tem notícia do uso do termo por Franz Wieacker.12 A expressão reapareceu em várias publicações posteriores, como na Itália (no manual de direito privado de A. Torrente em 1952), nos EUA (como no art. de 1953 de Vera Bolgár e no título de resposta de Merryman13 ao referido art. de Bolgár).14 Na Holanda, a primeira referência à expressão "sistema fechado" de direitos reais deu-se em 1961 em uma notícia sobre as deliberações legislativas sobre a elaboração do Código Civil Holandês (Burgelijk Wetboek de 1992 - BW). Apesar disso, há fontes holandesas que apontam que o princípio do numerus clausus já estava presente na Holanda no início do século XIX, especificamente em rascunhos do Código Civil Holandês elaborados peor Joan Melchior Kemper em 1816. Nesse esboço, havia a previsão textual de que só seriam considerados direitos in rem os assim indicados no código. Os demais direitos seriam pessoais. Esses rascunhos, porém, foram substituídos por códigos modelados com base no Código Civil Francês. O Código Civil holandês (BW15), nascido em 183816, continha um catálogo não exaustivo de direitos reais (real rights). Por esse motivo, as cortes holandesas no século XIX consentiam com a maior liberdade das partes para criar tipos de direitos reais. A doutrina holandesa do século XIX era mais receptiva ao princípio do numerus clausus do que as cortes. Dão exemplo disso os escritos de dois grandes juristas holandeses do século XIX: Diephuis e Opzoomer. Eles defendiam uma interpretação restritiva do BW em matéria de direitos reais. Faziam referência aos escritos do jurista francês Demolombe, que criticava a postura dos tribunais franceses em, no século XIX, favorecer demasiadamente a autonomia privada em matéria de direitos reais e que defendia a observância dos tipos jurídico-reais previstos pelo legislador. Na Holanda, a linha perfilhada por Diephuis e Opzoomer no sentido da adoção do numurus clausus para os direitos reais enraizou-se no pensamento jurídico holandês até que a Suprema Corte Holandesa (Hoge Haad), em 1905, consagrou essa tendência no caso Blaauboer v. Berlips, sobre o qual deitaramos holofotes mais à frente. Assim, a doutrina holandesa incorporou a maior restrição à autonomia privada nos moldes dos estudos dos pandectistas bem como seus conceitos de coisa, de liberdade de disposição da coisa e de proteção a terceiros adquirentes de boa-fé. Em suma, o princípio do numerus clausus já estava presente no pensamento jurídico neerdelandês desde o início do século XIX. Todavia, foram os trabalhos de Savigny e dos pandectistas alemães no final desse século que deram corpo a esse princípio. Continuaremos o tema na próxima coluna. __________ 1 No direito alemão, refere-se a Typengbundenheit com dois significados: um é de limitação ao dos números dos direitos reais (o que é conhecido como Typenzwang) e outro é com o de limitação do conteúdo do direito real (o que é chamado de Typenfixierung), conforme registra Bram Akkermans (AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 6-7). 2 No Direito Holandês, é mais comum referir-se a sistema fechado de direitos reais (het gesloten system van het goederenrecht). 3 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 59. 4 Tradução livre (apud STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 1999). 5 A lembrança da Jurisprudência dos Conceitos deve-se à acusação que esse movimento sofreu de distanciamento em relação à realidade, por conta da sua busca por uma orientação matemática do Direito. Para a Jurisprudência dos Conceitos, o direito não teria lacunas e poderia ser reduzido a sistemas conceituais lógicos (pyramid of concepts). A nova lei poderia deduzida logicamente de conceitos jurídicos superordenados, os quais podem ser identificados por meio de um raciocínio indutivo (método de inversão). A Jurisprudência dos Conceitos é acusada de ingenuidade epistemológica e lógica, de afastamento da realidade, de ofuscação de valores, de desconsideração do direito supradispositivo e de superestimação do método puramente dogmático (HAFERKAMP, Hans-Peter. Begriffsjurisprudenz/Jurisprudence of Concepts. Publicado em 6 de abrol de 2011 (Disponível aqui). 6 Sobre a difusão do trust pelo mundo, Kenneth G. C. Reid faz interessante abordagem em artigo integrante de obra sobre os caminhos a um Código Civil chinês, obra essa anterior ao mais recente Código Civil chinês (REID, Kenneth G. C. Conceptualizing the Chinese Trust: Some Thoughts from Europe. In: CHEN, Lei; VAN RHEE, C.H. Towards a Chinese Civil Code: Comparative and Historical Perspective. Leiden/The Netherlands; Boston/EUA: Publishers and Martinus Nijhoff Publishers, 2012, pp. 209-234). Ainda sobre o trust, ver: KOESSLER, James. Is there room for the trust in a civil law system? The French and Italian perspective. Publicado em março de 2012 (Disponível aqui). 7 Outro estudo de aprofundado sobre o numerus clausus, embora com foco nos direitos reais mobiliários, é de Bénédict Foëx (FOËX, Bénédict. Le numerus clausus des droit réels em matiére mobilière. Lausanne: Payot, 1987). 8 AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 387-396. 9 Robert Stevens trata disso. 10 O Pandectismo, também chamado de Jurisprudência dos Conceitos, recebeu esse nome pelo fato de os manuais dos autores integrantes da Escola Histórica do Direito intitularem-se pandectas como referência às Pandectas de Justiniano. A Escola Histórica entendia que o direito nasce do espírito do povo (Volksgeist, em alemão), ou seja, nas palavras de Savigny, das "forças silenciosas, e não do arbítrio do legislador" (Morais, 2021, p. 19; Cury e Marçal, 2009). A Escola Histórica foi precursora do positivismo normativista que surgiu com a Jurisprudências dos Conceitos. Opunha-se ao jusnaturalismo. Ihering criticou a Jurisprudência dos Conceitos por sua abstração e formalismo e desenvolveu, em oposição, a Jurisprudência dos Conceitos. 11 Robert Stevens trata do tema. 12 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, pp. 59-60. 13 MERRYMAN, John Henry. Policy, autonomy, and the numerus clausus in Italian and American property law. In: The American Journal of Comparative Law, vol. 12, nº 2, Spring 1963, pp. 224-231. 14 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 60. 15 Burgerlijk Wetboek, em holandês. 16 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicadas progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês, como lembra Liane Schmiedel.
O cartório de imóveis deve ou não exigir o registro de pacto antenupcial (ou de instrumento estrangeiro equivalente) no livro 3 no caso de casamentos realizados no exterior, com adoção de regime de bens em consonância com a lei brasileira? Esse registro é previsto para casamentos brasileiros, conforme art. 1.657 do Código Civil1 e nos arts. 178, V, e 244 da lei 6.015/73 - lei de registros públicos2. A pergunta é: Devemos ou não estender essa exigência para casamentos com elementos de transnacionalidade? Trataremos dessa questão envolvendo direito internacional privado no presente artigo. A pergunta envolve questão quotidiana nos cartórios de imóveis. Em conversa com o talentoso registrador de imóveis e professor Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, tomamos ciência de um caso interessante. Uma brasileira, casada com um belga na Bélgica, adotou o régime de la séparation de biens pure et simple3, ou seja, um regime de bens previsto na legislação belga que mantém a regra da incomunicabilidade dos bens. Na constância do casamento, ela comprou um imóvel no Brasil. Ao apresentar a escritura de compra e venda para registro no cartório de imóveis no Brasil, indaga-se: O registrador deveria ou não devolver o título, exigindo previamente o registro do pacto antenupcial ou do instrumento equivalente no livro 3 do cartório de imóveis? Entendemos a resposta é negativa. Isso, porque entendemos que a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de Imóveis do domicílio do casal é apenas para caso de regimes de bens regidos pela legislação brasileira. Não se aplica para regime de bens regidos pela lei estrangeira. De fato, no caso de casamento em situações transnacionais, o regime de bens será regido pela lei do primeiro domicílio do casal (se os nubentes tiverem domicílios diversos), conforme art. 7º, § 4º, da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/1942).4 No exemplo em pauta - em que uma brasileira domiciliada no Brasil se casou com um belga -, o primeiro domicílio do casal foi a Bélgica. Logo, o regime de bens a orquestrar esse casamento será o da legislação belga. Daí se se segue que não se pode aplicar a ele regras formais extensíveis apenas a regimes de bens da legislação brasileira, como a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do casal. Cabem alguns aprofundamentos. Em primeiro lugar, em matéria de Direito Internacional Privado, o ordenamento jurídico brasileiro precisa ser o mais hospitaleiro possível aos particulares, evitando interpretações legais extensivas que criem obstáculos burocráticos à formalização das relações jurídico-privadas transnacionais. Trata-se de uma inferência do princípio da harmonização internacional de direitos, tema que tratamos em outra oportunidade5. Sob essa ótica, adotar uma interpretação extensiva para exigir registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis diante de regimes de bens estrangeiros seria burocratizar indevidamente a formalização de relações jurídico-privadas transnacionais. Em segundo lugar, ao nos depararmos com regimes de bens regidos pela lei estrangeira, é preciso atentar para o fato de que eles não necessariamente guardarão correspondência com os regimes de bens da legislação brasileira. Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação de direitos estrangeiros, tema já tratado anteriormente.6 Em regra, o oficial de registro ou de notas não deve promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro. Deve, no lugar disso, buscar sempre referir-se ao regime de bens estrangeiro na sua forma pura com sua expressa indicação dos elementos de transnacionalidade. No exemplo citado no início deste artigo, o registrador de imóveis deverá remeter-se ao regime de bens pelo nome estrangeiro (ainda que acompanhado de eventual tradução) com indicação expressa do domicílio dos nubentes ao tempo do casamento bem como do primeiro domicílio conjugal, tudo a fim de permitir que o leitor identifique qual legislação será aplicável à luz do art. 7º, § 4º da LINDB. Não necessariamente o régime de la séparation de biens pure et simple previsto na legislação belga é idêntico ao regime da separação convencional de bens do Brasil. O próprio CNJ já acenou nesse sentido, em situação análoga, ao tratar de registro de união estável com elementos de transnacionalidade. O art. 539, III, do CNN-CNJ - Código Nacional de Normas do CNJ (provimento 149/23 - CNJ) estabelece que o registrador civil das pessoas naturais deve ater-se a indicar os dados essenciais para identificação desses elementos de transnacionalidade, sem promover qualquer tipo de adaptação de direito estrangeiro.7 Esse dispositivo esclarece o § 2º do art. 94-A da LRP.8 Sob essa ótica, não há motivos para se exigir o registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis para regimes de bens estrangeiros, especialmente porque sequer se deve, no âmbito extrajudicial, promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro (ao menos, em regra). Em último lugar, a própria exigência de registro da escritura pública de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis de domicílio do casal já não guarda mais aderência à realidade social atual. De fato, no Brasil, o pacto antenupcial é exigido para a escolha de regime de bens diverso do da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC9). O objetivo da exigência do registro do pacto antenupcial no cartório de imóveis do domicílio do casal é permitir que terceiros consigam, com mais facilidade, acessar o seu conteúdo. Credores, por exemplo, podem ter interesse em saber o regime de bens adotado pelo devedor, a fim de saber se poderão ou não pleitear a penhora de bens em nome da esposa dele. A regra fazia muito sentido no Brasil analógico da década de 1970, quando os serviços eletrônicos dos cartórios eram ainda meras ficções. Basta pensar em um casal cujo casamento ocorreu em Porto Alegre/RS, com escolha de um regime de bens atípico mediante escritura pública lavrada em um tabelionato de notas gaúcho. Imagine que esse casal se mude para Rio Branco/AC, mais de 4 mil quilômetros de distância. É fácil perceber o imenso transtorno que um terceiro interessado teria para viajar até Porto Alegre/RS a fim de obter uma certidão da escritura pública de pacto antenupcial. Por isso, a legislação exige o registro do pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do domicílio do casal. No exemplo, o casal gaúcho teria de registrar a escritura pública de pacto antenupcial no registro de imóveis de Rio Branco/AC, de modo a facilitar as buscas do terceiro. É intuitivo que, no Brasil digital da atualidade, marcado pela digitalização dos serviços notariais e registrais, já não há mais grandes dificuldades para terceiros obterem uma certidão da escritura do pacto antenupcial. Aliás, é nesse sentido que o próprio anteprojeto de reforma do Código Civil, elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal (ATS 11/13)10, propõe a supressão do registro auxiliar do pacto antenupcial. Seja como for, atualmente, ainda é obrigatório esse registro auxiliar no Brasil. Devemos, porém, interpretar isso apenas para regimes de bens brasileiros, sem adotar interpretações extensivas que venham a prejudicar casos de transnacionalidade. ___________ 1 Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges. 2 Art. 178 - Registrar-se-ão no Livro nº 3 - Registro Auxiliar: (...) V - as convenções antenupciais; (...) Art. 244 - As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros.   3 É preciso tomar cuidado, pois os regimes de bens da legislação belga possuem particularidades. Disponível aqui. 4 Art. 7o  A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. (....) § 4o  O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal. (...) 5 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Publicado em 2022. Disponível aqui. 6 Confira-se: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte I (noções gerais). Disponível aqui. 7 Art. 539. O registro dos títulos de declaração de reconhecimento ou de dissolução da união estável será feito no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar, no mínimo: (...) III - caso se trate da hipótese do § 2.º do art. 94-A da Lei n. 6.015, de 1973: a) a indicação do país em que foi lavrado o título estrangeiro envolvendo união estável com, ao menos, um brasileiro; e b) a indicação do país em que os companheiros tinham domicílio ao tempo do início da união estável e, no caso de serem diferentes, a indicação do primeiro domicílio convivencial. 8 Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) (...) § 2º As sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, nos quais ao menos um dos companheiros seja brasileiro, poderão ser levados a registro no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) § 3º Para fins de registro, as sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados de tradução juramentada. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) 9 Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. 10 Disponível aqui.
1. Introdução Cuidaremos de como o Código Civil Argentino (CC/Ar)1 trata das situações de incapacidade, com foco na situação das crianças e adolescentes. Para esclarecimentos de alguns pontos, tivemos a oportunidade de conversar com a professora Aida Kemelmajer de Carlucci, que foi uma das integrantes da Comissão de Juristas para Elaboração do Código Civil argentino/15 e que é umas das civilistas mais importantes da Argentina. Ao final, realizaremos comparações com o direito civil brasileiro. Antecipamos que a conclusão é no sentido de que a legislação brasileira não precisa ser explícita sobre a autonomia progressiva da criança e adolescente, pois essa afirmação genérica não representaria nenhuma inovação legislativa efetiva, tudo conforme sugestão da Comissão de Juristas para atualização do Código Civil brasileiro. O caminho é a doutrina e a jurisprudência ir amadurecendo os casos concretos que forem surgindo, no que a experiência argentina poderá ser útil para enriquecer as reflexões. A positivação deverá acontecer de modo mais específico, a partir dos consensos que vierem a ser formados a partir de casos concretos. 2. Argentina O CC/Ar admite a categoria de capacidade de exercício (capacidad de ejercicio) e estabelece que toda pessoa é apta para exercer, por si só, os seus direitos, observada as limitações previstas em lei e em sentença. É o art. 23 do CC/Ar: ART. 23.- Capacidad de ejercicio. Toda persona humana puede ejercer por sí misma sus derechos, excepto las limitaciones expresamente previstas en este Código y en una sentencia judicial. Sob essa ótica, o art. 24 e 25 do CC/Ar indica que são incapazes de exercício: as pessoas a nascer, ou seja, o nascituro; as pessoas com idade inferior a 18 anos (pessoas menores de idade); as pessoas declaradas incapazes por sentença judicial na extensão dela.  Veja os referidos dispositivos: ART. 24.- Personas incapaces de ejercicio. Son incapaces de ejercicio: la persona por nacer; la persona que no cuenta con la edad y grado de madurez suficiente, con el alcance dispuesto en la Sección 2ª de este Capítulo; la persona declarada incapaz por sentencia judicial, en la extensión dispuesta en esa decisión. Seccion 2ª Persona menor de edad ART. 25.- Menor de edad y adolescente. Menor de edad es la persona que no ha cumplido dieciocho años. Este Código denomina adolescente a la persona menor de edad que cumplió trece años. No caso das crianças e dos adolescentes2, a regra é a de elas exerçam seus direitos por meio de seus representantes legais. Todavia, o art. 26 do CC/Ar reconhece que, mesmo para quem idade inferior a 18 anos, é preciso reconhecer-lhes autonomia para a prática de alguns atos jurídicos sem representação. Para essas hipóteses, o referido dispositivo refere-se a mirins com idade e grau de maturidade suficiente ("edad y grado de madurez suficiente"). A vontade da criança e do adolescente é, ao máximo, respeitada pelo CC/Ar, respeitado o seu grau de maturidade. Nesse sentido, o art. 26 do CC/Ar estatui que essas pessoas menores de 18 anos, no caso de conflito de interesse com os representantes legais (como os pais), podem "intervir com assistência letrada", ou seja, podem buscar um advogado para acessar a Justiça contra seus pais3. A propósito, em conversa pessoal, a professora argentina Aida Kemelmajer esclareceu que, na Argentina, após muitas dificuldades operacionais, quase todas as províncias possuem uma estrutura que permite as crianças e adolescentes obterem assistência judiciária para acessarem a Justiça. A propósito, transcrevemos excerto de suas considerações lançadas por conversa eletrônica com este autor: El articulo 26, al igual que otros muchos artículos del código argentino (por ej., art. 677 ART. 677.- Representación. Los progenitores pueden estar en juicio por su hijo como actores o demandados. Se presume que el hijo adolescente cuenta con suficiente autonomía para intervenir en un proceso conjuntamente con los progenitores, o de manera autónoma con asistencia letrada.) recoge la figura del abogado del niño, aceptada por la Convención Internacional de los derechos del niño. El abogado del niño ha sido objeto de muchos estudios con diversas opiniones (le envio copia de la parte pertinente de un trabajo mio sobre autonomia progresiva, que quizás pueda servirle). (...) En los hechos, ese adolescente conoce al abogado a través del propio sistema judicial, o la asistencia de los colegios de abogados que tienen un departamento etc... O sea, costó mucho organizar ese servicio pero hoy está en casi todas las provincia.s. La figura va unida a la de la AUTONOMIA PROGRESIVA de los niños, niñas y adolescentes. Al principio se criticaba la figura porque se decía que contratar a un abogado es un contrato y hay que tener capacidad contractual que el niño no tiene; después de analizó con mayor profundidad; no se trata solo de contratar sino de tener ACCESO A LA JUSTICIA; no hay verdadero acceso sin asistencia de un letrado; si es así, basta la autonomia progresiva y no la mayoría de edad. Também se assegura à pessoa menor de idade o direito de ser ouvida em qualquer processo judicial que lhe diga respeito. Também tem o direito de participar das decisões que digam respeito à sua pessoa. No caso de tratamentos médicos, o art. 26 do CC/Ar é mais detalhado a depender da idade do mirim. Se ele tem mais de 16 anos, ele é considerado adulto para tomar as decisões em relação ao seu próprio corpo. Se, porém, sua idade é de 13 a 16 anos, o adolescente poderá decidir sozinho apenas se o tratamento médico não for grave (ou melhor, invasivo ou arriscado à vida ou à integridade física). Caso o tratamento seja grave, o adolescente terá de decidir com assistência dos seus pais. Veja o art. 26 do CC/Ar: ART. 26.- Ejercicio de los derechos por la persona menor de edad. La persona menor de edad ejerce sus derechos a través de sus representantes legales. No obstante, la que cuenta con edad y grado de madurez suficiente puede ejercer por sí los actos que le son permitidos por el ordenamiento jurídico. En situaciones de conflicto de intereses com sus representantes legales, puede intervenir con asistencia letrada. La persona menor de edad tiene derecho a ser oída en todo proceso judicial que le concierne así como a participar en las decisiones sobre su persona. Se presume que el adolescente entre trece y dieciséis años tiene aptitud para decidir por sí respecto de aquellos tratamientos que no resultan invasivos, ni comprometen su estado de salud o provocan un riesgo grave en su vida o integridad física. Si se trata de tratamientos invasivos que comprometen su estado de salud o está en riesgo la integridad o la vida, el adolescente debe prestar su consentimiento con la asistencia de sus progenitores; el conflicto entre ambos se resuelve teniendo en cuenta su interés superior, sobre la base de la opinión médica respecto a las consecuencias de la realización o no del acto médico. A partir de los dieciséis años el adolescente es considerado como un adulto para las decisiones atinentes al cuidado de su propio cuerpo. 3. Comparação com o Brasil No Brasil, o texto legal não é detalhado. Mas, doutrinariamente, a tendência é o respeito da vontade da criança e do adolescente a depender de sua idade e de seu grau de maturidade. Reconhece-se, na prática, a autonomia progressiva da pessoa menor de idade. A regra geral é a de que, até os 16 anos, o mirim é absolutamente incapaz e, por isso, precisa ser representado por seus pais ou, se for o caso, outro representante legal na prática de atos jurídicos. Em palavra mais populares, só o representante legal assina os contratos ou manifesta a vontade em nome do mirim. Este sequer é ouvido. Se a pessoa menor de 16 anos praticar o negócio jurídico solitariamente, haverá nulidade absoluta. A partir dos 16 anos, a pessoa é relativamente incapaz e, nessa condição, tem de manifestar pessoalmente a vontade para a prática de atos jurídicos. Seus pais ou, se for o caso, outro amparador4 precisam consentir também: atuam como assistentes do adolescente de mais de 16 anos. Sem a assistência do amparador, o negócio jurídico praticado pela adolescente de mais de 16 anos será anulável. Esse é o figurino legal textual, conforme arts. 3º, 4º, 166, I, 171, 1.634, VII, e 1.747, I, do CC5. Entretanto, o art. 185 do CC - em uma regra extremamente elogiável - deixa uma abertura para o juiz analisar cada caso concreto quando se tratar de ato jurídico stricto sensu, e não de negócio jurídico. Isso, porque as regras de invalidade dos atos praticados pela pessoa menor de 18 anos são endereçadas a negócios jurídicos. A diferença é que o ato jurídico stricto sensu tem seus efeitos predeterminados pela lei, ao passo que os efeitos jurídicos dos negócios jurídicos são desenhados pela vontade da própria pessoa. Isso significa que os negócios jurídicos exigem uma vontade incrementada da pessoa, para garantir que ela tenha pleno discernimento acerca dos deveres e direitos que está a assumir. Já o ato jurídico stricto sensu pode satisfazer-se com uma vontade menos incrementada do indivíduo, pois os efeitos jurídicos procederão da lei (efeito ope legis). Ao lado desse quadro geral, há alguns pontos em que a legislação brasileira é mais específica. Por exemplo, ela: condiciona a adoção ao consentimento do adolescente, definido no Brasil para quem tem mais de 12 anos6, conforme art. 45, § 2º, do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90)7; permite o trabalho a partir de 16 anos e, no caso de aprendiz, a partir de 14 anos, conforme inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal8; autoriza o testamento por adolescente de mais de 16 anos (art. 1.860, parágrafo único, CC9); credencia testemunhas com idade a partir de 16 anos (art. 228, I, CC10). Em outros pontos, a legislação é silente, abrindo espaço para debates doutrinários. A doutrina majoritária é no sentido de reconhecer a relevância da vontade da pessoa incapaz para situações existenciais, respeitado o seu grau de discernimento. Veja o enunciado 138 das JDC - Jornadas de Direito Civil: Enunciado 138/JDC: A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto. A doutrina também é pacífica em admitir atos-fatos jurídicos praticados apenas por crianças e adolescentes, especialmente em questões de pequeno valor e toleráveis socialmente. Por exemplo, é válido o contrato de compra de um sorvete por uma criança ou um adolescente, mesmo sem a participação de seus pais. O problema, porém, é discutir casos concretos, tarefa da qual a doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm se desincumbido paulatinamente. De qualquer forma, entendemos que a solução do CC/Ar merece atenção nas reflexões a serem feitas diante dos casos concretos que forem surgindo. Pense, por exemplo, no caso de um adolescente, de 17 anos, que precisa realizar uma cirurgia de amputação da perna para tentar salvar-se de um sério problema de saúde. Seria necessário consentimento de seus pais para tanto? Ou bastaria a vontade do adolescente? O médico teria de aguardar o consentimento dos pais para realizar a cirurgia? Entendemos que, se a vida do adolescente está em flagrante perigo, não há por que aguardar consentimento dos pais, especialmente se o próprio adolescente manifestou sua vontade favorável ao procedimento. Afinal, além da recomendação médica, a vontade do adolescente de 17 anos é juridicamente relevante. Há vários casos concretos sensíveis ainda a serem enfrentados, como a autonomia da criança ou do adolescente para fazer cirurgias meramente estéticas sem o consentimento dos pais. Trata-se de assuntos ainda não amadurecidos na comunidade jurídica. Nesse contexto, consideramos que a legislação brasileira não precisa ser textual acerca da autonomia progressiva da criança e do adolescente. Isso, porque essa autonomia progressiva já é um lugar comum na doutrina e na jurisprudência. Afirmar isso textualmente não importaria em nenhuma novidade legislativa. O que realmente importa é definir casos concretos, o que, em um primeiro momento, deve ficar a cargo da doutrina e da jurisprudência. Futuramente, com amadurecimento da doutrina e da jurisprudência, convirá a positivação dessas regras específicas e pontuais. Aliás, essa foi a posição da Comissão de Juristas para Atualização do Código Civil do Senado Federal, da qual tivemos a honra de ser membro11. O anteprojeto entregue ao Presidente do Senado não positivou a autonomia progressiva da criança e do adolescente por mera desnecessidade legislativa. Durante os debates da comissão, o tema foi levantado para debates, com o surgimento de um texto muito bem escrito nesse sentido12. Todavia, a Comissão preferiu manter o silêncio no texto legal, o que nos pareceu adequado. __________ 1 Referimo-nos ao Codigo Civil y Comercial de La Nacion (Ley 26.994), que entrou em vigor no ano de 2015. Disponível aqui. 2 O CC/Ar não emprega os termos criança e adolescente. Ele apenas se refere a pessoas menores de idade para se referir a todos que têm menos de 18 anos, além de se referir a adolescente para se reportar a quem tem mais de 13 anos (art. 26 do CC/Ar). 3 Deixaremos para tratar do tema em outra ocasião. 4 Chamamos de amparador aqueles que recebem o munus de algum instituto de amparo (como a tutela, a curatela e a guarda do Estatuto da Criança e Adolescente). 5 Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.  (...) Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:  I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (...) Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; (...) Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; (...) Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (...)  VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; (...) Art. 1.747. Compete mais ao tutor: I - representar o menor, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte; 6 Art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990): Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 7 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando. (...) § 2º. Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento. 8 Art. 7º, XXXIII, CF: "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos". 9 Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento. Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos. 10 Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas: I - os menores de dezesseis anos; 11 Sobre os trabalhos da Comissão, ver aqui. 12 O texto é este, fruto de sugestão da Relatoria-Geral da Comissão de Juristas (a Relatoria-Geral foi composta pelos geniais Professores Flávio Tartuce e Rosa Nery): Art. 4o-A. E' reconhecida a autonomia progressiva da criança e do adolescente, devendo ser considerada a sua vontade em todos os assuntos a eles relacionados, de acordo com sua idade e maturidade.
1. Introdução Quando há conflito entre leis de diferentes países para regular situações privadas transnacionais, a solução geralmente é encontrada nos tradicionais elementos de conexão. Um deles é o lex rei sitae, segundo o qual se deve aplicar a lei do lugar do bem para disciplinar questões relativas à titularidade dele, como os direitos reais (estatuto real). Se, por exemplo, compro um imóvel em Paris (França), o meu direito de propriedade sobre esse bem será disciplinado pela lei francesa, pois é a lei do lugar do bem. Não será a lei brasileira, ainda que eu tenha nacionalidade brasileira. Isso, porque vigora o lex rei sitae como elemento de conexão na maior parte dos ordenamentos jurídicos. Uma figura interessantíssima que vem sendo admitida em alguns ordenamentos para flexibilizar esses elementos de conexão à vista das particularidades do caso concreto é a chamada escape clause. Antecipamos que, apesar da falta de previsão expressa na legislação brasileira, entendemos como aplicável a escape clause. Deixaremos, porém, para outra oportunidade os fundamentos. 2. Escape clause Convém aprofundar a cláusula de exceção, também chamada de cláusula de salvaguarda, de cláusula de escape ou, em inglês, de the escape clause ou exception clause. Embora a doutrina portuguesa costume valer-se da expressão "cláusula de exceção", preferimos "cláusula de escape" como mais adequada tradução para evitar confusão com o uso que a doutrina brasileira faz do verbete "exceção" para diversas outras situações1. Nomenclaturas devem ser selecionadas de modo a evitar confusões prima facie do pesquisador. Ela foi introduzida pelo Direito Alemão em 19992, especificamente no art. 46 da Lei de Introdução ao Código Civil Alemão (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Como o referido dispositivo do EGBGB remete-se aos arts. 43 e 45, transcrevem-se todos eles3: Art. 43. Direitos in rem (1) Os direitos reais são regidos pela lei do Estado em que a coisa estiver situada. (2) Se a coisa à qual se vinculam os direitos reais chegar a outro Estado, esses direitos não podem ser exercidos em contradição com a ordem jurídica desse Estado. (3) Se um direito real em um item que ingressa no País sem ter sido adquirido previamente, os fatos ocorridos no Estado de origem quanto à aquisição do item consideram-se feitas neste País. Art. 45. Meios de transporte (1) Direitos reais sobre veículos de transporte aéreo, aquático e ferroviário são regidos pela lei do Estado de origem. Isto é:                 1. quanto às aeronaves, o Estado de sua nacionalidade;                 2. quanto às embarcações, o Estado onde estão registradas ou, se inexistir registro, o Estado do porto de origem ou do local de origem.                 3. quanto aos veículos ferroviários, o Estado de seu registro. (2) A constituição de garantias reais sobre esses veículos sujeita-se à lei aplicável ao crédito garantido. A classificação entre as várias garantias reais segue o art. 43(1). Art. 46. Conexão substancialmente próxima Se houver uma conexão substancialmente mais estreita com a lei de um Estado diferente daquele em que se aplicaria à luz dos arts. 43 e 45, então essa lei será aplicável. A cláusula de exceção foi introduzida na Alemanha com o objetivo de socorrer as situações em que a lex situs se revelasse insuficiente diante de certas figuras jurídico-reais e com o intento de prevenir problemas gerados pela circulação de bens móveis4. Esse dispositivo permite afastar a lex situs em favor da lei de outro Estado com a qual as particularidades do caso concreto guardem maior conexão. A introdução da cláusula de exceção pelos alemães não se ateve ao estatuto real. Alcançou também matérias de obrigações e de responsabilidade civil, conforme art. 41 do EGBGB. Veja o seu teor5: Art. 41. Conexão substancialmente próxima (1) Se houver uma conexão substancialmente mais estreita com a lei de um Estado diferente da aplicável nos termos dos arts. 38 a 40(2), aplicar-se-á a lei desse outro Estado. (2) Uma conexão substancialmente mais próxima pode ser baseada:                 1. em uma relação jurídica ou de fato entre pessoas envolvidas na obrigação;                 2. nos casos do art. 38, parágrafos 3 e 3, e do art. 39, sobre o fato de as pessoas envolvidas terem sua residência habitual no mesmo Estado no momento dos fatos relevantes. O art. 40, parágrafo 2º, 2ª parte, aplica-se mutatis mutandi. O supracitado art. 41 do EGBGB prevê a cláusula de escape para flexibilizar os elementos de conexão adotados como regra geral para o enriquecimento sem causa (art. 38, EGBGB), gestão de negócios (art. 39, EGBGB) e responsabilidade civil (art. 40, EGBGB). O art. 46 do EGBGB pode ser complementado pelo art. 41 do EGBGB, pois ambos versam sobre a cláusula de escape, embora para domínios diferentes (o art. 46 para o estatuto real, e o art. 41 para os estatutos obrigacional e de responsabilidade civil). Por exemplo, a ideia de avaliar eventual conexão mais próxima a partir da análise da proximidade dos sujeitos envolvidos - tal qual previsto no art. 41(2) - pode ser transposto para a aplicação da cláusula de escape para o estatuto real. Chama a atenção a preocupação com terceiros de boa-fé no art. 41(2) do EGBG. O preceito reconhece o direito real de garantia como acessório em relação a um veículo e, por isso, determina aplicação da lei que rege o crédito para a constituição do direito real de garantia. Todavia, preocupado com terceiros de boa-fé, o dispositivo estabelece que, para determinar o grau de prioridedade entre os ônus reais incidentes sobre o veículo (como na hipótese de pluralidade de direitos reais de garantia sobre o mesmo bem), aplica-se a lex rei sitae. Com isso, outros titulares de direitos reais de garantia não serão prejudicados no caso de concorrência na excussão da coisa: a ordem de prioridade será da lex rei sitae, e não uma aleatória que poderia ser escolhida a depender do crédito garantido. Não haverá insegurança jurídica quanto à lei regente da ordem de prioridade creditória. O art. 41(2) do EGBGB, em suma, prestigia o professio iuris (a autonomia conflitual) para afastar a lex rei sitae, salvo no que for prejudicial a terceiros de boa-fé6. Parece-nos que o art. 23 do EGBG também prevê uma cláusula de escape, apesar de não fazer referência expressamente à ideia de conexão. O critério aí seria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ("o interesse superior da criança") para afastar a regra geral do elemento de conexão. Transcreve-se o referido dispositivo7: Art. 23. Consentimento A necessidade e a outorga de consentimento da criança e da pessoa a ela relacionada à luz do direito de família como requisito de atribuição de um nome ou de adoção são adicionalmente regidas pela lei da nacionalidade da criança. Quando o interesse superior da criança assim o exigir, será aplicada a lei alemã. A cláusula de escape também está presente na legislação da Suíça e da União Europeia. Na Suíça, a referência é aos arts. 15 e 48 do Código Suíço de Direito Internacional Privado (Switzerland's Federal Code on Private International Law - CPLI)8: Art. 15. Cláusula de exceção 1. A lei designada por este Código não será aplicada nas situações excepcionais em que, à luz das circunstâncias, seja manifesto que o caso tem apenas uma muito limitada conexão com aquela lei e possui uma conexão muito mais forte com outra lei. 2. Este artigo não se aplica no caso de escolha da lei pelas partes. Art. 48. Lei aplicável 1. Os efeitos do casamento serão regidos pela lei do Estado de domicílio dos nubentes. 2. No caso de os nubentes terem domicílios diversos, os efeitos do casamento serão governados pela lei do Estado do domicílio com o qual o caso concreto tenha uma conexão mais próxima. (...) O supracitado art. 15 do CPLI aplica-se a todos os elementos de conexão, inclusive ao lex rei sitae, enquanto o retrocitado art. 48 foca o estatuto matrimonial. No âmbito do direito comunitário europeu, a cláusula de escape está no Regulamento (UE) Roma I (Regulamento UE nº 593/2008) e no Regulamento (UE) Roma II (Regulamento UE nº 864/2007). Nesses casos, a cláusula de escape aplica-se para o estatuto obrigacional (obrigações contratuais e extracontratuais). Confira os itens 20 e 21 do considerando e o art. 4º(3) do Regulamento (UE) Roma I9: (20)  Se o contrato apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 4.º, uma cla´usula de salvaguarda devera´ estabelecer que e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s. Para determinar qual e´ esse pai´s, devera´ ser tido em conta, nomeadamente, se o contrato em questa~o esta´ estreitamente ligado a outro contrato ou a uma se´rie de contratos.  (21) Na falta de escolha, se a lei aplicável não puder ser determinada com base no fato de o contrato poder ser classificado num dos tipos especificados ou como sendo a lei do país de residência habitual do contratante que deverá efetuar a prestação característica do contrato, o contrato deverá ser regulado pela lei do país com o qual apresenta conexão mais estreita. Para determinar qual é esse país, deverá ter-se em conta, nomeadamente, se o contrato em questão está estreitamente ligado a outro contrato ou a uma série de contratos. (...) Artigo 4.º Lei aplicável na falta de escolha 1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.o e sem prejui´zo dos artigos 5.o a 8.o, a lei aplica´vel aos contratos e´ determinada do seguinte modo:  a)  O contrato de compra e venda de mercadorias e´ regulado pela lei do pai´s em que o vendedor tem a sua reside^ncia habitual;  b)  O contrato de prestac¸a~o de servic¸os e´ regulado pela lei do pai´s em que o prestador de servic¸os tem a sua reside^ncia habitual;  c) O contrato que tem por objecto um direito real sobre um bem imo´vel ou o arrendamento de um bem imo´vel e´ regulado pela lei do pai´s onde o imo´vel se situa;  d)  Sem prejui´zo da ali´nea c), o arrendamento de um bem imo´vel cele¬ brado para uso pessoal tempora´rio por um peri´odo ma´ximo de seis meses consecutivos e´ regulado pela lei do pai´s em que o proprieta´rio tem a sua reside^ncia habitual, desde que o locata´rio seja uma pessoa singular e tenha a sua reside^ncia habitual nesse mesmo pai´s;  e)  O contrato de franquia e´ regulado pela lei do pai´s em que o fran¬ queado tem a sua reside^ncia habitual;  f)  O contrato de distribuic¸a~o e´ regulado pela lei do pai´s em que o distribuidor tem a sua reside^ncia habitual;  g)  O contrato de compra e venda de mercadorias em hasta pu´blica e´ regulado pela lei do pai´s em que se realiza a compra e venda em hasta pu´blica, caso seja possi´vel determinar essa localizac¸a~o;  h)  Um contrato celebrado no a^mbito de um sistema multilateral que permita ou facilite o encontro de mu´ltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos financeiros, na acepc¸a~o do ponto 17) do n.º 1 do artigo 4.º da Directiva 2004/39/CE, de acordo com regras na~o discriciona´rias e regulado por uma u´nica lei, e´ regulado por essa lei.  2. Caso os contratos na~o sejam abrangidos pelo n.o 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das ali´neas a) a h) do n.o 1, esses contratos sa~o regulados pela lei do pai´s em que o contraente que deve efectuar a prestac¸a~o caracteri´stica do contrato tem a sua reside^ncia habitual.  3. Caso resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que o contrato apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  4. Caso a lei aplica´vel na~o possa ser determinada nem em aplicac¸a~o do n.º 1 nem do n.º 2, o contrato e´ regulado pela lei do pai´s com o qual apresenta uma conexa~o mais estreita.  Confira, ainda, os itens 14, 18, 19 e 20 dos Considerandos bem como o art. 4º(3), o art. 10º(4), o art. 11º(4) e o art. 12º(2)(c) do Regulamento Roma II10: (14) A exige^ncia de certeza juri´dica e a necessidade de administrar a justic¸a nos casos individuais sa~o elementos essenciais de um espac¸o de justic¸a. O presente regulamento estabelece os factores de conexa~o mais apropriados para a consecuc¸a~o desses objectivos. Consequentemente, o presente regulamento estabelece uma regra geral, mas tambe´m regras especi´ficas e, em certas disposic¸o~es, uma «cla´usula de salvaguarda» que permite na~o aplicar essas regras se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com outro pai´s. Assim, este conjunto de regras cria um quadro flexi´vel de regras de conflitos. Ale´m disso, permite ao tribunal em que a acc¸a~o e´ proposta tra- tar os casos individuais da forma adequada.  (...) (18)  A regra geral consagrada no presente regulamento devera´ ser a lex loci damni, prevista no n.º 1 do artigo 4.º. O nº 2 do artigo 4.º devera´ ser visto como uma excepc¸a~o a este princi´pio geral, criando uma conexa~o especial caso as par- tes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s. O n.º 3 do artigo 4.º devera´ ser entendido como uma «cla´usula de salvaguarda» relativamente aos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com outro pai´s.    (19) Deverão ser previstas regras específicas para os casos especiais de responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco em relação aos quais a regra geral não permite obter um equilíbrio razoável entre os interesses em presença.  (20) A regra de conflito de leis em mate´ria de responsabilidade por produtos defeituosos devera´ responder aos objectivos que consistem na justa repartic¸a~o dos riscos inerentes a uma sociedade moderna de alta tecnologia, na protecc¸a~o da sau´de dos consumidores, na promoc¸a~o da inovac¸a~o, na garantia de uma concorre^ncia na~o falseada e na facilitac¸a~o das trocas comerciais. A criac¸a~o de um sistema em cascata de factores de conexa~o, acompanhada de uma cla´usula de previsibilidade, constitui uma soluc¸a~o equilibrada em relac¸a~o a estes objectivos. O primeiro aspecto a ter em conta e´ a lei do pai´s onde o lesado tenha a sua reside^ncia habitual, no momento em que tenha ocorrido o dano, se o produto tiver sido comercializado nesse pai´s. Os outros elementos da cascata sa~o desencadeados se o produto na~o tiver sido comercializado nesse pai´s, sem prejui´zo do n.º 2 do artigo 4.º e da possibilidade de uma conexa~o manifes- tamente mais estreita com outro pai´s.  (...) Artigo 4.º Regra geral 1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel a`s obrigac¸o~es extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco e´ a lei do pai´s onde ocorre o dano, independentemente do pai´s onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do pai´s ou pai´ses onde ocorram as conseque^ncias indirectas desse facto.  2. Todavia, sempre que a pessoa cuja responsabilidade e´ invocada e o lesado tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o dano, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s. Uma conexa~o manifestamente mais estreita com um outro pai´s podera´ ter por base, nomeadamente, uma relac¸a~o preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligac¸a~o estreita com a responsabilidade fundada no acto li´cito, ili´cito ou no risco em causa.  Artigo 10.º Enriquecimento sem causa 1. Se uma obrigac¸a~o extracontratual que decorra de enriquecimento sem causa, incluindo o pagamento de montantes indevidamente recebidos, estiver associada a uma relac¸a~o existente entre as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em res- ponsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco que apresente uma conexa~o estreita com esse enriquecimento sem causa, e´ aplica´vel a lei que rege essa relac¸a~o.  2. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base no n.º 1 e as partes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao enriquecimento sem causa, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base nos n.º 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei do pai´s onde tenha ocorrido o enriquecimento sem causa.  4. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso, que a obrigac¸a~o extracontratual que decorra de enriquecimento sem causa tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.os 1, 2 e 3, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  Artigo 11.º Negotiorum gestio 1. Se uma obrigac¸a~o extracontratual que decorra da pra´tica de um acto relativamente a nego´cios alheios sem a devida autorizac¸a~o estiver associada a uma relac¸a~o previamente existente entre as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco que apre- sente uma conexa~o estreita com essa obrigac¸a~o extracontratual, a lei aplica´vel e´ a lei que rege essa relac¸a~o.  2. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base no n.º 1 e as partes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao dano, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei do país onde tenha sido praticado o ato. 4. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a obrigac¸a~o extracontratual que decorra da pra´tica de um acto relativamente a nego´cios alheios sem a devida autorizac¸a~o tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.os 1, 2 e 3, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  Artigo 12.º Culpa in contrahendo 1. A lei aplica´vel a uma obrigac¸a~o extracontratual decorrente de negociac¸o~es realizadas antes da celebrac¸a~o de um contrato, independentemente de este ser efectivamente celebrado, e´ a lei aplica´vel ao contrato ou que lhe seria aplica´vel se tivesse sido celebrado.  2. Caso na~o possa ser determinada com base no n.o 1, a lei aplica´vel e´:  a)  A lei do pai´s onde ocorre o dano, independentemente do pai´s em que tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e do pai´s ou pai´ses em que ocorram as conseque^ncias indi- rectas desse facto; ou,  b)  Quando as partes tiverem a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao dano, a lei desse pai´s; ou,  c)  Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a obrigac¸a~o extracontratual, decorrente de negociac¸o~es realizadas antes da celebrac¸a~o de um contrato, tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nas ali´neas a) e b), a lei desse outro pai´s.  __________ 1 Aludimos, exemplificamente, às figuras da exceção de contato não cumprido, da exceção de inseguridade, da exceção como meio de defesa diante de uma pretensão etc. 2 DEUTSCHER BUNDESTAG. Entwurf eines Gesetzes zum Internationalen Privatrecht für außervertragliche Schuldverhältnisse und für Sachen. Publicado em 1999 (Disponível aqui). 3 Tradução livre (FEDERAL MINISTRY OF JUSTICE. Introductory Act to the Civil Code (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Disponível aqui). 4 PATRÃO, Afonso. Autonomia conflitual na hipoteca e reforço da cooperação internacional: Removendo obstáculos ao mercado europeu de garantias imobiliárias. Lisboa/Portugal: Livros Horizonte, 2017, p. 481. 5 Tradução livre (FEDERAL MINISTRY OF JUSTICE. Introductory Act to the Civil Code (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Disponível aqui). 6 VAN DER WEIDE, Jeoroen. Party Autonomy in Dutch International Property Law. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 112. 7 Tradução livre (Federal Ministry of Justice, 2022). 8 Tradução livre (FEDLEX. Federal Act on Private International Law. Data 18 de December 1987 (Disponível aqui). 9 Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (Roma I). Data: 17 de junho de 2008 (Disponível aqui). 10 Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho (Roma II). Data: 11 de julho de 2007 (Disponível aqui).
Situações transnacionais podem gerar conflitos de leis. Se, por exemplo, uma pessoa faz um testamento em um país envolvendo imóvel situado em outro, poderá haver conflitos das leis. Cuidaremos aqui de um interessante caso ocorrido na União Europeia sobre esse tema, com o objetivo de deixar espaço para reflexões a casos que possam vir a ocorrer envolvendo problemas transnacionais no Brasil. O caso envolveu a necessidade de utilização da técnica de adaptação de direito real estrangeiro, já tratado nesta coluna. De fato, a adaptação de direitos reais estrangeiros em decorrência de transferência por sucessão mortis causa nos termos do Regulamento Europeu das Sucessões1 foi tratada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) poucas vezes. O principal acórdão sobre a matéria é o Acórdão Kubicka (processo nº C-218/2016)2, o qual merece relato para ilustração casuística da figura. O acórdão envolve conflito entre a lei alemã e a lei polonesa. A cidadã polonesa Aleksandra Kubicka morava na cidadã alemã de Francoforte do O'der. Dirigiu-se à cidade polonesa de Slubice para lavrar um testamento público3 perante uma notária polonesa. No testamento, a Sra. Kubicka deixou a seu marido, a título de legado vindicatório (per vindicationem), a fração ideal que titularizava sobre um imóvel situado na Alemanha. A lei polonesa acolhe dois tipos de legado: o vindicatório e o obrigacional (arts. 968º e 981º, nº 1, do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny)4. Em relação ao legado vindicatório, é exigido testamento por escritura pública. Esse tipo de legado é caracterizado por acarretar a transmissão imediata da propriedade ao legatário quando da morte do testador (art. 981, n. 1, do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny). Nesse caso, o legatário passa a ser titular do direito real de propriedade sobre o legado no momento da morte do testador. Já o legado obrigacional (per damnationem) pode ser formalizado por qualquer tipo de testamento e é caracterizado pelo fato de o herdeiro receber o dever de transferir o legado ao legatário (art. 968 do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny). No legado obrigacional, a transmissão da propriedade não ocorre com a morte, e sim com um ato postetrior dos herdeiros: estes recebem a propriedade quando da morte e, posteriormente, "pagam" os legatários, transferindo-lhes o legado. Nesse caso, o legatário, quando da morte, é titular de um direito pessoal (obrigacional) em exigir dos herdeiros a entrega da coisa legada5. O problema é que o imóvel objeto do legado vindicatório está situado na Alemanha e, nesse país, o legado vindicatório não é admitido. O § 2174 do Código Civil Alemão (BGB) só permite o legado obrigacional (per dammanationem). Considerando que, para direitos reais, deve-se aplicar a lei do lugar da coisa (lex rei sitae), surge a discussão: deve ou não ser admitido o legado vindicatório previsto na lei polonesa em relação a imóvel situado na Alemanha? O fato é que a Sra. Kubicka, objetivando evitar discussões jurídicas, escolheu a lei polonesa para reger a sucessão mortis causa. O notário polonês, todavia, recusou-se a lavrar o testamento. Entendeu que a lei alemã necessariamente teria de ser aplicada ao caso por se tratar de questão envolvendo direito real sobre imóvel, tudo à luz do elemento de conexão da lex rei sitae. Irresignada, a Sra. Kubicka, após recusa do notário polonês em reconsiderar sua decisão, recorreu ao Tribunal Regional de Gorzów Wielkopolski6. Essa Corte polonesa deflagrou um processo de reenvio prejudicial perante o Tribunal de TJUE para obter uma interpretação adequada do Regulamento Europeu das Sucessões. O TJUE entendeu que, na espécie, não se estava tratando de regra de direito real, e sim de direito sucessório. A qualificação dada ao fato não foi de direito real, e sim de direito sucessório. A Corte europeia esclarece que, em termos de direitos reais, o que está em discussão é o direito real de propriedade, o qual é conhecido tanto no direito polaco quanto no direito alemão. Entendeu que a divergência entre o direito polaco e o direito alemão dá-se não em relação ao direito real de propriedade, e sim quanto ao momento da transmissão do legado (o tempo da abertura da sucessão ou ato posterior do herdeiro). Isso é uma questão de direito sucessório, e não de direito real. Por consequência, o TJUE entendeu que não havia um problema de adaptação de direito real estrangeiro, o que afastava a discussão acerca da aplicação do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões. O TJUE reforçou esse entendimento com a lembrança de que, caso se entendesse diversamente, a sucessão mortis causa seria fragmentada em dois grupos: um regido pela lei alemã (bens situados na Alemanha) e outro pela lei polonesa (demais bens). Tal solução contraria o princípio da unidade da lei sucessória, adotada pelo Regulamento Europeu das Sucessões. __________ 1 Regulamento Europeu das Sucessões: Regulamento UE nº 650/2012. 2 Disponível aqui. 3 Testamento público é o formalizado por escritura pública lavrada por tabelião de notas. 4 A versão atualizada do Código Civil Polonês é disponível neste site oficial. Uma versão traduzida para o inglês está neste site. Sobre o assunto, transcreva-se este excerto do acórdão em pauta. O artigo 981, n.º 1, do Kodeks Cywilny (Código Civil) dispõe: "O testador pode determinar, por testamento lavrado sob a forma de instrumento notarial, que o bem objeto de um legado seja transmitido a determinada pessoa no momento da abertura da sucessa~o (legado vindicatório)." Segundo o n.º 2, ponto 2, deste artigo 981, o objeto de tal legado poderá consistir, nomeadamente, numa quota-parte da propriedade sobre um bem imóvel, que constitua um direito de propriedade transmissível. O artigo 968.º do Código Civil refere-se ao "legado obrigacional» no qual o testador pode escolher qualquer forma testamentária admissível, incluindo o testamento hológrafo. Neste tipo de legados, o herdeiro está obrigado a transmitir o direito sobre o bem ao legatário, podendo este último exigir também ao herdeiro a execução do legado.   5 Com base no direito romano, há 4 espécies de legados: a) Legado per vindicationem: a transferência do legado ao legatário dá-se de modo direto com a morte do autor da herança. O legatário passa a ter direito a uma ação reivindicatória. Conforme já expusemos, a Polônia admite essa espécie de legado, desde que seja contemplada em testamento por escritura pública. Também adotou esse tipo de legado o Brasil (art. 1.923 do Código Civil brasileiro), a Espanha (art. 882 do Código Civil espanhol), a Itália (art. 649 do Código Civil italiano), a França (art. 1.014 do Código Civil francês) e a Catalunha (art. 2713 do Código Civil catalão). b) Legado per praeceptionem: legatário recebe o objeto antes da partilha. É uma subespécie do legado per vindicationem. c) Legado sinendi modo: herdeiro não pode impedir legatário de escolher o objeto entre os integrantes do acervo hereditário. d) Legado per dammnationem ou obrigacional: cria ao herdeiro o dever de transmitir o bem ao legatário. Este, com a morte, passa a ter um direito pessoal contra os herdeiros. Trata-se da espécie de legado adotada na Alemanha (§ 2174 do Código Civil alemão), na Áustria (§ 6491 do Código Civil austríaco), na Holanda (art. 117, Livro 4, do Código Civil holandês). A Polônia também admite esse tipo de legado, ao lado do legado per vindicationem. 6 Os arts. 81 e 83º, nº 2, do Código do Notariado Polonês (Prawo o notariacie, em polonês) impõem ao notário o dever de recusar-se a prática atos ilícitos, assegurado ao interessado recorrer ao próprio notário para reconsideração ou para remessa da queixa ao tribunal competente. Trata-se de um procedimento similar, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973).
Há diversos exemplos envolvendo o emprego da adaptação stricto sensu envolvendo o estatuto real (geralmente correspondente à lex situs), tema que já tratamos em artigos anteriores nesta coluna, especialmente este . Há um exemplo que merece ser citado neste artigo por envolver um caso decorrente de conflito de qualificação: o caso da herança vaga de um inglês envolvendo imóvel em Portugal1. Suponha que um inglês, sem herdeiros, residente na Inglaterra, tenha falecido. Deixa imóveis em Portugal. Trata-se, pois, de um caso de herança vaga (bona vacantia). De um lado, o direito inglês trata o tema do destino da herança vaga como estatuto real, e não como estatuto sucessório. As normas sucessórias inglesas nada versam sobre o assunto. São suas normas de direito das coisas que estabelecem o right to escheat (o direito de confisco), de origem feudal, que foi mantido pelo Administration of Estates Act, de 1925, para imóveis. Segundo essa regra, a herança vaga reverte-se em favor da Coroa como uma espécie de expropriação. De outro lado, o direito português cuida da herança vaga como regra de estatuto sucessório, e não como estatuto real. As regras de Direito das Coisas em Portugal não oferecem solução. São suas regras sucessórias que estabelecem a reversão da herança vaga ao Estado2. Trata-se de um vácuo de normas materiais aplicáveis (Normenmangel, no direito alemão) ou de um conflito negativo de qualificação. Pelas regras tradicionais de conflito de normas, não haveria lei alguma a ser aplicada. Haveria um vácuo normativo. A lex successionis é a lei inglesa, a qual - nas suas regras sucessórias - é silente quanto ao destino da herança vaga por qualificar esse assunto como estatuto real. A lei rei sitae (que é a lei de Portugal) guarda também silêncio, pois Portugal qualifica o tema do destino da herança vaga como estatuto sucessório. Sob essa ótica, no caso acima, os imóveis situados em Portugal tornar-se-iam res nullius, o que é um resultado inadmissível por contrariar o espírito de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. Por essa razão, o caso atrai a técnica da adaptação stricto sensu para afastar esse resultado inadmissível. A doutrina aponta dois caminhos para essa adaptação stricto sensu3, todos desaguando no mesmo resultado: a apropriação da herança vaga pelo Estado português. O primeiro é fazer a adaptação recair sobre o elemento de conexão, alterando-o. A ideia seria aplicar a lex rei sitae para a questão sucessória da herança vaga. Assim, a lei portuguesa (lex rei sitae) seria aplicada para reverter os imóveis vagos para o Estado português. Essa solução parece-nos mais adequada por força do que chamamos de subsidiariedade na intervenção no conteúdo material das normas. O segundo é adaptar as normas materiais, criando, na lex rei sitae, a regra de que o Estado português apropria-se das heranças vagas. Promove-se, assim, uma integração do direito lusitano. Alerte-se que, no âmbito da União Europeia, esse conflito negativo de qualificação em relação à herança vaga não mais existe: o art. 33º do Regulamento Europeu das Sucessões4 disciplinou o tema, outorgando ao Estado membro do lugar do imóvel o direito à apropriação5. Expostos esses exemplos, indaga-se: quais são os parâmetros para a adaptação stricto sensu? A doutrina não nos parece ter clareza. Reporta-se, na prática, ao juízo equitativo do juiz no caso concreto, adaptando as regras conflituais e o próprio conteúdo das normas materiais6. Adota, como diretriz, a busca por uma situação jurídica justa no caso concreto. Por essa razão, o tema costuma ser abordado pela doutrina mediante exemplos empíricos com respostas a cada caso concreto. Em resumo, a adaptação stricto sensu é técnica que corrigirá um resultado inadmissível ou impossível causado pelas regras conflituais tradicionais de direito internacional privado e operará mediante alteração, no caso concreto, dessas regras conflituais ou do conteúdo das próprias normas em conflito. Exemplos como o tratado neste artigo podem ser úteis para iluminar problemas sucessórias transnacionais envolvendo imóveis situados no Brasil. __________ 1 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, p. 145; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 556. 2 É o art. 2152º do Código Civil português: Artigo 2152.º (Chamamento do Estado) Na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis, é chamado à herança o Estado. 3 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 557-559. 4 Art. 33º do Regulamento (UE) nº 650/2012: Artigo 33.º Herança vaga Na medida em que, nos termos da lei aplica´vel a` sucessa~o por forc¸a do presente regulamento, na~o houver herdeiros nem legata´rios de quaisquer bens ao abrigo de uma disposic¸a~o por morte, nem qualquer pessoa singular que possa ser considerada herdeiro por via legal, a aplicac¸a~o da lei assim determinada na~o impede que um Estado-Membro ou uma entidade designada para o efeito por esse Estado-Membro possa apropriar-se, nos termos da sua pro´pria lei, dos bens da heranc¸a situados no seu territo´rio, desde que os credores tenham o direito de obter a satisfac¸a~o dos seus cre´ditos a partir da totalidade dos bens da heranc¸a. 5 Afonso Patrão defende que, no caso supracitado, ainda que não se aplicasse (e realmente não será aplicável pelo fato de o Reino Unido ter saído da União Europeia no ano de 2020), o caso seria resolvido pelo reenvio (doctrine of renvoi): o direito inglês devolveria a regra sucessória para Portugal em razão da adoção da foreign court theory. Por essa foreing court theory, há de aplicar-se a lei que seria aplicada pelos tribunais da lex rei sitae. O direito inglês admite o sistema do fracionamento da sucessão (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 145). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, p. 143.
Em colunas anteriores, tratamos de adaptação de direito estrangeiro. Hoje, cuidaremos de um caso clássico de adaptação stricto sensu: o caso Chemouni. Ele foi apreciado pelo Judiciário francês nos idos das décadas de 1950 e 19601. O caso desperta discussão sobre a flexibilização da ordem pública para a recepção de situações jurídicas transnacionais. Também enseja debates sobre conflito móvel, o qual, embora geralmente gere problemas de transposição (uma outra espécie de adaptação lato sensu), pode também atrair a aplicação da adaptação stricto sensu. O "conflito móvel" é o conflito de normas no Direito Internacional Privado em razão da mudança, no tempo ou no espaço, do elemento de conexão relativamente a uma situação jurídica.  Essa mudança pode ocorrer em razão da superveniência de mudança legislativa (as regras de conexão mudam por mudança legislativa) ou de mudança fática (ex.: mudança de domicílio para outro país, transporte da coisa para outro país, mudança de nacionalidade etc.). Assim, uma situação jurídica transnacional ficará potencialmente sujeita a dois ordenamentos jurídicos no tempo, gerando ao jurista o conflito em definir se se deve aplicar o direito antigo (de um país) ou direito novo (do outro país)2. O caso Chemouni é um exemplo de conflito móvel por envolver situação de mudança do elemento de conexão em razão da mudança de domicílio e de nacionalidade. Chemouni era um tunisiano israelita. Era polígamo e veio a adquirir a nacionalidade francesa por ter-se estabelecido na França. Casara-se com duas esposas concomitantemente na Tunísia. Após chegar à França, separou-se de sua segunda esposa, a qual recorreu a Cour de Cassation em busca da condenação do marido a lhe pagar alimentos. Sua esposa também era tunisiana israelita. Nesse caso, contrapõe-se, de um lado, a lei francesa (que proíbe a poligamia) e, de outro lado, a lei da Tunísia (que admite a poligamia). À luz das normas de conflito tradicionais - fornecidas pela lex fori (direito francês) -, deveria ser aplicada a lei francesa por ser a lei nacional comum dos cônjuges. Por consequência, o segundo casamento seria nulo. A corte francesa, porém, para evitar esse resultado inadmissível, valeu-se da técnica de adaptação stricto sensu para aplicar a lei ao tempo da celebração do casamento, ou seja, a lei tunisiana. Esse caso merece destaque por se tratar de hipótese em que a técnica da adequação stricto sensu para alterar as regras de conflitos de lei no espaço no lugar de alterar o próprio conteúdo da norma. A adaptação stricto sensu, portanto, corrigiu o resultado inadmissível criando uma nova regra conflitual, sem intervir no conteúdo das leis em conflitos. Ainda em relação ao caso Chemouni, há outros autores que fazem leitura diversa da fundamentação do julgado francês. Há quem sustente que, na verdade, não houve adaptação, mas apenas delimitação espaciotemporal das normas: a lei tunisiana aplica-se à validade do casamento por este ter ocorrido antes da naturalização francesa de Chemouni, ao passo que a lei francesa aplica-se aos efeitos do casamento (como o dever de alimentos) após a naturalização3. Foi com base nessa concepção hospitaleira de ordem pública que o Tribunal de Versalhes entendeu que proteger a segunda esposa de Chemouni com o direito aos alimentos não violaria a ordem pública francesa. Esta rejeita casamento polígamos celebrados na França. Não rejeita, porém, casamentos polígamos celebrados legitimamente à luz da lei doméstica da época nem deixa desprotegidos os cônjuges cujo estatuto pessoal mude para o francês. Essa situação de mudança de estatuto pessoal (uma hipótese de conflito móvel de normas), do tunisiano para o francês, deve ser feita sem prejudicar as legítimas expectativas dos envolvidos. Há ainda quem tenha enfrentado esse caso sob a ótica da ordem pública internacional. Sabe-se que normas estrangeiras não podem ser admitidas em um país em contrariedade à ordem pública doméstica. O conceito de ordem pública, porém, precisa ser visto com maior flexibilidade, sob uma ótica internacionalista, destinada a não contrariar legítimas expectativas de sujeitos envolvidos em situações jurídicas transnacionais. No caso Chemouni, o Tribunal de Versalhes (que apreciou o caso antes da Cours de cassation) sublinhou essa noção mais universalista, aberta e tolerante de ordem pública para evitar que resultados agressivos contra a justiça e a equidade. Antonio Marques dos Santos manifesta-se favoravelmente a essa ideia, rotulando-a como um efeito atenuado da ordem pública internacional4. Com base nas palavras do Procurador da República adjunto Flamant que atuou perante o Tribunal de Versalhes, deve-se defender "uma ordem pública que une as nações em vez de opô-las", "que não varia de uma fronteira para outra"5. O conceito de ordem pública precisa ser mais tolerante com situações jurídicas que nasceram legitimamente no exterior e que, por razões de transnacionalidade, reivindicam agora efeitos com base na lei doméstica. No caso acima, o casamento polígamo nasceu legitimamente, mas, por conta da mudança de estatuto pessoal, a segunda esposa reivindica, com base na lei francesa, um efeito do casamento: o dever de pagar alimentos. O conceito de ordem pública não pode ser empregado contra essa situação. Diferente seria a solução se o casamento polígamo tivesse nascido ilegitimamente, como se tivesse sido celebrado na França, cuja lei o censura. Nesse caso, o conceito de ordem pública poderia ser um obstáculo aos efeitos desse casamento nulo. Portanto, o conceito de ordem pública é mais flexível e universal quando lida com situações transnacionais nascidas legitimamente no exterior relativamente ao conceito de ordem pública para situações jurídicas nascidas contrariando a legislação aplicável. __________ 1 Ut  FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, p. 31. MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 561-570. O caso percorreu diferentes instâncias da justiça francesa 1955 e 1963.   2 Felipe Rocha dos Santos lembra que, nesses casos de conflitos móveis, a doutrina divide-se em três posições: (1) a aplicação da teoria dos direitos adquiridos; (2) a aplicação da teoria do direito transitório; e (3) a aplicação contextual e valorativa da norma do Direito Internacional Privado com olhos na sua principiologia e nos seus objetivos (SANTOS, Felipe Rocha dos Santos. A problemática do conflito móvel no Direito Internacional Privado. Publicado em 2008 (Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/34129. Acesso em 4 de abril de 2022). 3 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 567.   4 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 562. 5 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 563.
Em colunas anteriores, explicamos a adaptação stricto sensu e a substituição. Passamos, agora, à transposição. Transposição Assim como a substituição, a transposição também envolve discussão de equivalência ou não entre dois institutos de direito material de leis distintas. A diferença está na causa. Na substituição, a causa é uma relação de prejudicialidade. Já, na transposição, a causa é a própria dinâmica da relação jurídica. A transposição é mais um problema de direito comparado do que propriamente de direito de conflitos. É, grosso modo, buscar traduzir juridicamente um direito estrangeiro. A transposição (recognition, em inglês) é a transformação de um direito em outro que deveria ter o mesmo efeito, conforme Bram Akkermans e Eveline Ramekers1. Na transposição, responde-se à seguinte pergunta: o instituto jurídico da lei de um país pode ou não traduzir-se no instituto da lei chamada a regular certa situação jurídica transnacional? O instituto da lei estrangeira pode ou não ser transposto para o instituto da lei escolhida para regular a situação plurilocalizada? Exemplos envolvendo deslocamento, para outro país, de coisas móveis oneradas por direitos reais costumam atrair debates de transposição. Cuida-se de hipóteses de conflitos móveis, as quais são férteis em discussões sobre transposição2. Essas questões são mais comuns em direitos reais menores (os direitos reais sobre coisa alheia), especialmente os de garantia3. A doutrina costuma acenar que não é tão comum esses problemas envolvendo o direito real de propriedade, por se tratar de um direito admitido em quase todos os países do mundo4. Já manifestamos nossa ressalva pessoal quanto a essa afirmação, calçado no argumento de que, se o regime jurídico do direito de propriedade difere de um país para o outro, há necessidade de adaptação lato sensu (na modalidade da transposição), ainda que essa operação possa ser mais simplificada (ut item 2.3.2.5.). Suponha um penhor de uma valiosa pintura situada na França, sem que haja a entrega da coisa. A lei francesa (que é a lei aplicável ao caso por força do elemento de conexão lex rei sitae) admite essa espécie de penhor. Se essa pintura for levada a Portugal - cuja lei não admite penhor desacompanhada da entrega da coisa -, indaga-se: a garantia real será ou não extinta? A pergunta surge pelo fato de que a lei que regula os direitos sobre a coisa é a da sua localização (lex rei sitae ou lex situs). Com o deslocamento da coisa para Portugal, a lei portuguesa passa a ser a competente para a regular os direitos reais. E essa lei não admite penhor sem entrega da coisa (tradição) nem admite a criação de direitos reais por vontade das partes (numerus clausus). A resposta à pergunta depende do manuseio da técnica da transposição, por meio da qual será investigado se o penhor sem tradição pode ou não ser "traduzido" (transposto) em outro direito real previsto na lei portuguesa, de modo a conservar, em favor do credor pignoratício, uma garantia real sobre a coisa. A transposição é a espécie de adaptação lato sensu destinada a viabilizar essa operação de Direito Internacional Privado. Um outro caso de transposição merece averbação. A referência é o Colorado case, fruto de acórdão da Court of Appeal of England and Wales Colorado, de 12 de fevereiro de 19235. Trata-se de hipótese que se valeu da figura da transposição antes mesmo da publicação da principal e pioneira obra doutrinária sobre o tema da adaptação: a obra Règles Générales des Conflits de Lois, de Hans Lewald (1939). O caso versava sobre definir uma hipoteca marítima (hypothèque maritime) constituída sob a égide da lei francesa. Pela lei francesa, o credor hipotecário - que era o banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique - tinha prioridade em relação a outros credores na excussão da coisa. O navio foi penhorado e vendido em hasta pública na Inglaterra por conta de ação judicial de cobrança dívidas da empresa proprietária da embarcação. A lei inglesa não previa essa hipoteca marítima. Surgiu discussão acerca da prioridade creditória entre o credor hipotecário e outros credores (que haviam feito reparos no navio e não haviam sido pagos). A Corte inglesa entendeu que, em relação à prioridade creditória, deveria ser aplicada a lei inglesa em respeito à lex rei sitae e à lex fori. E, para tanto, é preciso traduzir (transpor) a hipoteca marítima francesa para uma figura próxima do direito inglês. É preciso, pois, realizar uma transposição. E, ao realizar essa transposição, a hipoteca marítima francesa deve ser considerar como um direito de garantia com prioridade creditória em relação a outros credores. Deve ser considerada como uma figura com prioridade creditória similar a um penhor marítimo (maritime lien) ou uma hipoteca inglesa (English mortgage). Portanto, feita a transposição da hipoteca marítima francesa para uma figura similar do direito inglês, é de reconhecer-se a prioridade creditória do banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique na excussão da coisa. Outros exemplos de aplicação da transposição merecem averbação. Um deles é o Acórdão do Tribunal da Justiça Federal da Alemanha (Bundesgerichtbof - BGH) de 20 de março de 1963. Nesse caso, a Corte alemã transpôs um penhor de direito instituído à luz da lei francesa para uma propriedade fiduciária regida pelo direito alemão6. Outro exemplo é o caso do Banco da Tanzânia, que já tratamos em outro artigo publicado nesta coluna. __________ 1 AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022), p. 4. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 129. 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; CASE BOOKS. Court of Appeal, 12 February 1923: The Colorado. Data: 12 February 1923 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.
Na Coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos tratar agora da substituição, outra espécie de adaptação lato sensu. 6. SUBSTITUIÇÃO A substituição lida com problemas de equivalência de institutos jurídico-materiais dentro de uma relação de prejudicialidade1. Cuida de definir se o instituto da lei de um país pode ou não servir de condição prejudicial (ex.: filiação) para um efeito produzido por uma questão principal (ex.: sucessão mortis causa) da ordem jurídica de um outro país pressupondo figuras distintas. A substituição destina-se a definir se o instituto de uma lei pode ser considerado equivalente ao instituto que, à luz da lei de outro país, é questão prejudicial à resolução de uma questão principal. A substituição visa a responder a esta pergunta: o instituto da lei de um país é ou não equivalente à condição jurídica referida pela lei de outro país2? Há quem defenda que a substituição só se aplica quando se trata de uma questão prejudicial para a lex fori3. Afonso Patrão, com razão, discorda dessa necessidade de se envolver a lex fori4. Basta que haja uma relação de prejudicialidade entre questões de leis diferentes, sem que necessariamente uma dessas leis seja o do foro. Ex.: sucessão mortis causa (questão principal) disciplinada por uma lei e filiação (questão prejudicial) disciplinada por outra lei. Não necessariamente essas leis envolvidas são as do foro. A substituição exigirá do jurista enfrentar um problema de interpretação das regras materiais envolvidas. Citamos um exemplo: o caso da sucessão mortis causa de um brasileiro residente no Brasil com dois filhos adotivos: um adotado de acordo com a lei brasileira e que mora no Brasil; e outro adotado à luz da lei da Arábia Saudita e que mora nessa nação do Golfo Pérsico. A lex successionis é a lei brasileira. Ela disciplinará a questão principal: a sucessão mortis causa. A lei brasileira reconhece os filhos adotivos como herdeiros. O problema é que, para resolver a questão principal, é necessário resolver uma questão prejudicial: o que é filho adotivo? A rigor, a lei brasileira (lex successionis), ao estabelecer que filho adotivo é herdeiro, parte da premissa de que o instituto da adoção é igual ou semelhante ao da lei brasileira. Em relação ao filho adotivo brasileiro, não há complicações: ele é herdeiro. O instituto da adoção é dado pela própria lei brasileira. No tocante, porém, ao filho saudita, teremos um problema: não há propriamente um conceito de adoção na lei árabe. Há, sim, uma figura parecida: a kafâla, a qual gera consequências jurídicas diferentes do instituto de adoção conhecido dos países ocidentais em geral5. Daí surge a pergunta: é ou não viável considerar a kafâla da lei saudita equivalente à adoção da lei brasileira para efeito sucessório? A resposta a essa pergunta é decisiva para definir se o filho adotivo saudita é ou não herdeiro. Adoção e kafâla são figuras diferentes. É preciso definir se elas são ou não equivalentes para efeito de definir quem é herdeiro. Em outras palavras, é fundamental estabelecer se ambas as figuras são substituíveis para efeito da questão principal: a sucessão mortis causa. A substituição é técnica do direito internacional privado destinada a avaliar essa equivalência entre institutos de leis de países diferentes tidos como questão prejudiciais para a aplicação de uma lei. Para definir se os institutos são ou não equivalentes, há necessidade de averiguar a função de cada um deles, segundo Hans Lewald6. Tal exigirá um aprofundamento do jurista no estudo de cada figura7. Não se pode confundir o problema da substituição com o da questão prévia em Direito Internacional Privado, apesar de haver quem confunda os termos8. Substituição consiste em averiguar a equivalência entre institutos jurídico-materiais como uma questão prejudicial. Já a questão prévia consiste em escolher a lei competente para regular uma questão prejudicial (ex.: a filiação). Nesse ponto, um julgado que merece citação é este, da Cour de Cassation (França, de 1931): o caso Ponnoucannamalle vs Nadimoutoupolle9. É mais adequado defender que, nesse caso, cuidou-se de uma questão prévia (definição qual lei regularia a validade de uma adoção), e não de uma substituição. Em suma, nesse precedente, discutiu-se se a adoção validamente feita à luz do direito hindu deveria ou não ser admitida diante do direito francês (que invalidaria essa adoção). Essa questão era prejudicial para o desate da questão principal: a definição dos herdeiros na sucessão mortis causa. De modo mais específico, o falecido tinha vários filhos legítimos e, mesmo assim, adotou outro, indiano, de acordo com o direito indiano. A lei francesa, que era aplicável à sucessão mortis causa dos imóveis deixados pelo falecido10, proibia a adoção quando o adotante já possuísse filhos legítimos. Foi o caso concreto. Assim, à luz da lei francesa, a adoção do filho indiano foi inválida e, por consequência, esse filho não poderia ser herdeiro. Já a lei indiana - sob a qual foi feita a adoção - não continha essa restrição. A adoção era válida à luz dessa lei. Como se vê, para definir a questão principal (sucessão mortis causa), é necessário definir uma questão prévia: qual a lei regerá a validade da adoção11, a francesa ou a indiana. A Cour de Cassation entendeu que deve prevalecer a lei francesa para a questão prévia: a adoção é nula e, por consequência, não há direito sucessório12. Esse julgado representa um problema de questão prévia no Direito Internacional Privado, e não propriamente de substituição. Não se discutiu, propriamente, a equivalência jurídico-material de institutos para efeito de definir uma questão prejudicial. Na próxima coluna, cuidaremos da transposição, outra espécie de adaptação lato sensu. _____________ 1 JAYME, Erik. La substitution et le principe d'e'quivalence en droit international prive'. In: Annuaire de l'Institut de droit international - Session de Santiago du Chili, volume 72, p. 2007; PAREDES PÉREZ, José Ignacio. Alcance y contenido de la noción de equivalência em el derecho internacional privado. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 91-126; ROZAS, José Carlos Fernández; LORENZO, Sixto Sánchez. Derecho Internacional Privado. Navarra/Espanha: Editorial Arannzadi, 2018; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148. 3 GODERCHOT-PATRIS, Sara. Retour sur la notion d'équivalence au service de la coordination des systems. In: Revue critique de droit international privé, nº 2, 2010, pp. 271-312. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 5 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição. Sobre essa espécie, deitaremos holofotes mais à frente. Para um aprofundamento sobre a kafâla, ver: CORDEIRO ÁLVAREZ, Clara Isabel. Adopción en Europa y Efectos de la Kafâla em el marco del convenio europeo de derechos humanos. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 455-489. 6 LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 132. 7 Jorge Alberto Silva faz interessante análise sobre o reconhecimento, no México, de casamento religioso celebrado no exterior. Considera que, à luz da lei mexicana, o casamento religioso não gera efeitos civis: no máximo, indica um concubinato "o un simple amasiato". Pondera, porém, que a jurisprudência mexicana reconhece casamentos religiosos celebrados no exterior por questões de direito internacional privado (ALBERTO SILVA, Jorge. Reconocimiento del matrimonio religioso contraído en el extranjero (perspectiva mexicana). In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XLVII, núm. 141, septiembre-diciembre de 2014). Assim, seria possível, pela técnica da substituição, considerar o casamento religioso celebrado em um país que o admite como equivalente ao casamento civil mexicano, se essa questão for prejudicial. 8 FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 231. 9 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148; FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 235; ALBERTO SILVA, Jorge. Aplicación de Normas Conflictuales: La Aportación del Juez. México: Editora Fontamara, 2010. 10 Os imóveis situavam-se na Cochinchina (região sul do atual Vietname), que foi uma colônia francesa até 1948. 11 Há quem trate esse julgado como não sendo um tema de questão prévia propriamente dito. 12 No caso concreto, o neto do autor da herança (o filho indiano adotivo do autor da herança) pleiteava o direito hereditário por direito de representação. É que o filho indiano adotivo era premorto ao tempo da abertura da sucessão. O neto - que foi representado por sua mãe (a Sra. Ponnoucannamalle) - pleitou sua participação da herança como herdeiro necessário (que tem direito à legítima) diante do fato de que o autor da herança havia feito um testamento excluindo-o totalmente da herança. Antes de morrer, o autor da herança havia feito um testamento excluindo totalmente esse neto da herança. O neto, a seu turno, pleitou a nulidade do testamento por este ter violado a legítima, que é assegurada aos herdeiros necessários.
Na coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos expor mais exemplos práticos, além dos já mencionados. João Baptista Machado (1960, pp. 331-332) dá outro exemplo convidativo da adaptação. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19601. Suponha um casal alemão que tenha obtido a nacionalidade sueca. Suponha que o marido faleça. Indaga-se: o outro terá direito à meação dos bens comuns? E terá também direito sucessório? A rigor, pelos elementos de conexão indicados por João Baptista Machado na década de 1960, a viúva nada herdaria (direito sucessório) nem nada mearia (direito de família). É que o direito sueco haveria de disciplinar a sucessão mortis causa e, à luz dele, a viúva nada herdaria. E nada herdaria por um motivo: a lei sueca parte da premissa de que a viúva já terá sido beneficiada com a meação por regras de direito de família. O direito alemão daria as regras de direito de família e, sob sua ótica, a viúva não teria direito algum a meação. E não teria direito à meação, porque, sob a lógica da lei alemã, a viúva seria herdeira. Tanto na lei alemã quanto na lei sueca, a regra de meação (direito de família) está umbilicalmente conectada à regra da herança (direito sucessório) na lei alemã. Fragmentá-las no caso concreto geraria um resultado inadmissível no exemplo acima. Não é admissível que, por regras tradicionais de conflito de normas, a viúva não tenha qualquer direito patrimonial. Trata-se de uma situação que, a nosso sentir, envolve tanto uma contradição teleológica (a finalidade das leis se contradize no caso concreto) quanto de incompatibilidade material (o conteúdo das normas não é compatível). Cabe ao jurista corrigir esse resultado inadmissível por meio da adaptação stricto sensu. João Baptista Machado2 fornece outro exemplo similar. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19603. Dois ingleses, domiciliados na Inglaterra, casam-se sem uma convenção antenupcial. Posteriomente, mudam-se para a França. Morre o marido. Indaga-se: a viúva terá direito à meação (direito de família) ou direito à herança (direito sucessório)? À luz das regras tradicionais de conflito de normas em direito internacional privado, nada tocaria à viúva. É que a lei inglesa seria aplicada para o direito de família. Segundo ela, o regime de bens de quem casa sem pacto antenupcial é o da separação de bens. Essa regra de direito de família inglesa justifica-se pelo fato de que, futuramente, o viúvo terá direito hereditário. A opção legislativa de direito de família está umbilicalmente conectada à opção sucessória no direito inglês. Assim, no exemplo acima, a viúva não teria qualquer meação, portanto. Acontece que a sucessão mortis causa não será disciplinada pela lei inglesa na hipótese acima, segundo as regras tradicionais de conflito de normas. Aplicar-se-á aí o direito de francês, em virtude do qual, no exemplo acima, a viúva não terá nenhum direito na sucessão mobiliária. Essa opção legislativa sucessória francesa conecta-se intrinsecamente com a regra francesa de direito de família em assegurar o direito à meação sobre os bens adquiridos ao longo do casamento. Ao aplicar a lei inglesa apenas quanto à meação (direito de família) e a lei francesa em relação à herança (direito sucessória), chegaremos a um resultado inadmissível: a viúva, no exemplo acima, não terá direito a qualquer proveito patrimonial4. É mister corrigir esse contrassenso lógico e essa incompatibilidade material das normas oriundas da aplicação distributiva das duas ordens jurídicas. A ferramenta adequada para tanto é adaptação stricto sensu. Conflitos entre o estatuto real também podem atrair a adaptação stricto sensu. A lei que rege a constituição, a modificação e extinção dos direitos reais (geralmente, a lex situs) nem sempre é a mesma lei que rege o título gerador desse direito (ex.: lex sucessionis, lex contractus etc.). Ao aplicar as regras conflituais tradicionais, um resultado inadmissível ou impossível pode ser obtido, o que convocará a incidência da técnica da adaptação strcito sensu. João Baptista Machado (1960, p. 334) cita um julgado de 1986, do tribunal de Dresden, capital do Estado5 alemão da Saxônia.  A esposa herdou um imóvel situado na Saxônia. O regime de bens era regido pela lei de outro local, da antiga região de Westfália6. Por esse regime de bens, haveria comunicação do imóvel em razão do regime de bens em favor do marido. Acontece que a lei da Saxônica, que regrava o estatuto real, estabelecia que a transmissão do bem por força de regime de bens não pode ser automática; não é ex vi legis. O "simples jogo de normas de conflito" desaguou em um resultado inadmissível ou impossível: o marido tem direito ao imóvel pela comunicação decorrente do regime de bens à luz da lei de Westfália, mas a efetivação desse direito (a transmissão imobiliária) encontra obstáculo na lex situs. Para corrigir esse contrassenso teleológico e essa incompatibilidade material, o Tribunal de Dresden valeu-se de uma adequação stricto sensu: obrigou a esposa a criar uma situação jurídica próxima à do estatuto matrimonial, conferindo ao marido um direito de disposição sobre o imóvel. Na próxima coluna, trataremos das outras espécies de adaptação lato sensu. __________ 1 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 2 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 333-334. 3 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 4 João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 332-333) lembra exemplo absolutamente similar nos EUA, levando em conta o quadro normativo da década de 1960. A lei do Massachussets adota o regime da separação de bens como regra, mas, em compensação, garante direito sucessório ao viúvo. Já a lei da Califórnia elege o regime da comunhão de bens como regra e, como contrapartida, nega direito hereditário ao viúvo. 5 Bundesland. 6 Integrante atualmente do Estado alemão de Renânia do Norte-Vestfália.
Na coluna anterior, estávamos a tratar da adaptação stricto sensu, a qual é utilizada para resolver acidentes técnicos de conflitos de leis em situações transnacionais. Esses acidentes técnicos podem consistir em contradições (lógicas ou teleológicas) ou em incompatibilidades materiais. Já tratamos das contradições. Agora, passamos a cuidar das incompatibilidades materiais No tocante às incompatibilidades materiais, elas consistem em hipóteses em que as normas convocadas a disciplinar uma situação transnacional geram, na prática, um resultado que denota uma incompatibilidade do conteúdo de ambas e a insuficiência dos critérios tradicionais de conflitos de normas. A adaptação stricto sensu é a via para afastar essa incompatibilidade material entre as normas. O exemplo clássico é da comoriência1. Suponha um pai português residente em Portugal, com um filho inglês residente na Inglaterra. Suponha que ambos morram em uma mesma ocasião, sem que se possa saber quem morreu em primeiro lugar (comoriência)2. Para disciplinar a extinção da personalidade jurídica (momento da morte) e a sucessão mortis causa, deve-se aplicar a lei do domicílio do falecido, conforme elemento de conexão preponderante no caso. Assim, aplica-se a lei portuguesa para a extinção da personalidade e para a sucessão mortis causa do pai português. E aplica-se a lei inglesa para a extinção da personalidade e a sucessão mortis causa do filho inglês. Acontece que esse critério tradicional de conflito de normas (a de elementos de conexão) acabará gerando uma incompatibilidade material entre as leis lusitana e inglesa. É que, à luz da lei portuguesa, a comoriência faz presumir que a morte foi simultânea (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, nenhum dos comorientes herdaria nada do outro (sucessão mortis causa). No exemplo acima, o pai português presumidamente teria morrido no mesmo momento do filho e, portanto, nenhum seria herdeiro do outro. Todavia, a lei inglesa tem solução diferente para a extinção da personalidade jurídica no caso de comoriência. Ela faz presumir que o comoriente mais velho morreu em primeiro lugar3 (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, o filho inglês teria morrido em segundo lugar. E é aí que surge uma incompatibilidade material entre a lei portuguesa e a lei inglesa. Pela lei inglesa, a presunção de precedência da morte do comoriente mais velho está umbilicalmente ligada à sua regra sucessória de que o comoriente mais novo poderá ser herdeiro daquele. Já pela lei portuguesa, a presunção de morte simultânea dos comorientes está intrinsecamente conectada à sua regra sucessória de que nenhum dos comorientes será herdeiro um do outro. As leis não são compatíveis no seu conteúdo quando são fracionadas para disciplinar aspectos diferentes de uma mesma situação jurídica transnacional. Essa incompatibilidade material entre as duas normas exigiria que o jurista se valesse da adaptação stricto sensu para encontrar um resultado admissível e que sincronize as regras. Problemas como esse ocorrem, porque cada ordenamento jurídico possui uma coerência lógica e sistemática interna. É um todo unitário dentro de si mesmo. Uma norma encontra justificativa em outra do mesmo ordenamento por serem frutos de um jogo de compensações de justiça do legislador. Praticamente nenhuma norma pode ser "isolada da 'sintaxe' desse todo sem perder a significação jurídico-material que lhe é própria"4. Por isso, ao se deparar com problemas como esses, o direito internacional privado precisa dar uma solução por meio da técnica da adaptação stricto sensu. O objetivo do direito internacional privado é estender o "sentido de justiça material da legislação competente"5. Esclarecemos que, no caso da União Europeia, o exemplo acima não seria aplicável, porque o art. 32º do Regulamento nº 650/2012[6] evitou, na raiz, essa incompatibilidade material. O referido dispositivo comunitário estabelece a presunção de morte simultânea no caso de comoriência e, portanto, os comorientes não serão herdeiros uns dos outros. Considerando, porém, que o Reino Unido não é mais Estado membro da União Europeia em razão do Brexit, o exemplo acima voltou a ser atual. A realidade é que nem sempre é nítido definir quando há um caso de contradições (lógicas ou teleológicas) ou um de incompatibilidade material. Há hipóteses que misturam as duas situações. E nem nos parece tão relevante uma obsessão por categorização diante da proximidade entre as hipóteses. O que importa mesmo é identificar se o "simples jogo das normas de conflito" (as regras tradicionais de conflitos de normas) gera ou não um resultado impossível ou inadmissível. Se gerar, o caso é de o jurista valer-se da técnica de adaptação para corrigir esse resultado, interferindo no conteúdo material das regras. Prosseguiremos tratando de exemplos de problemas práticos de adaptação stricto sensu na próxima coluna. __________ 1 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 142. 2 A propósito, o art. 21º, item 1, do Regulamento (UE) nº 650/2012 indica a lei do local da residência habitual do falecido como a competente para regular a sucessão mortis causa. 3 Sec. 184 do Land Property Act, de 1925. 4  MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 5 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 6 Confira-se (Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012; disponível aqui): Artigo 32.º Comorientes Sempre que duas ou mais pessoas cujas sucessões são regidas por leis diferentes morram em circunstâncias em que haja in­ certeza quanto à ordem em que os óbitos ocorreram e que essas leis regulem esta situação de forma diferente ou não a regulem, nenhuma destas pessoas tem direito à sucessão da outra ou das outras.
Damos continuidade ao tema tratado na coluna anterior. 4. Espécies de adaptação lato sensu Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino1). Até o presente momento, empregamos a expressão "adaptação" em seu sentido amplo: a adaptação lato sensu. Há, porém, espécies desse tipo de adaptação, a saber: a) adaptação stricto sensu2; b) substituição; e c) transposição. Doutrina minoritária inclui a transposição dentro da substituição. Não é essa a melhor corrente Mais adequado é separar as figuras, apesar de haver certa proximidade entre elas3. A adaptação4, em qualquer uma das suas espécies, é caracterizada por implicar uma aplicação parcial de uma lei estrangeira a uma situação plurilocalizada. Esse é o ponto em comum entre elas5. A diferença está nos tipos de problemas a serem enfrentados. A adaptação lato sensu é empregada em situações de insuficiência das regras tradicionais de conflitos de normas em direito internacional privado. Estas não logram resolver todos os problemas conflituais. A adaptação é "o expoente paradigmático de algumas insuficiências do método conflitual"6. É uma amostra da necessidade de haver certa flexibilidade nas técnicas de soluções conflituais em direito internacional privado para obter resultados adequados. 5. Adaptação stricto sensu A adaptação stricto sensu dá-se quando há um "acidente técnico", na expressão de João Baptista Santos (1960, p. 328). O acidente técnico ocorre quando, para uma situação transnacional, duas leis de países diferentes são consideradas competentes para regulá-la e entram em conflito a ponto de gerar resultados impossíveis ou inadmissíveis7. A adaptação stricto sensu é a técnica do direito internacional privado para conciliar essas duas normas que foram convocadas para regular a questão privada internacional e que, por si sós, acarretariam contradições (lógicas ou teleológicas) ou incompatibilidades materiais. O objetivo da adaptação stricto sensu é encontrar uma congruência lógica ou teleológica diante da insuficiência dos métodos tradicionais de conflitos de normas, como os elementos de conexão. É corrigir o resultado inadmissível ou impossível que o "jogo de normas de conflito"8 acarreta em um caso concreto. As contradições (lógicas ou teleológicas) e as incompatibilidades materiais são resultados impossíveis ou inadmissíveis que a adaptação stricto sensu busca desmanchar. Cabe ao jurista tal tarefa em respeito à necessidade de preservar o vínculo natural que há entre os diversos ordenamentos jurídicos, dentro de uma ideia de unidade do sistema jurídico mesmo no plano internacional9. O fato de inexistir uma regra de conflito para essa situação específica é irrelevante: cabe ao jurista preencher essa lacuna, adotando, por vezes, uma postura de legislador para ajustar o conteúdo material das normas estrangeiras envolvidas. O jurista, porém, precisa ter cautela para não subverter as normas envolvidas. Tem de ser minimalista e cauteloso no manuseio da técnica da adaptação stricto sensu no caso concreto, com a acuidade própria de um neurocirurgião na fase mais sensível de uma operação no cérebro. João Baptista Machado10 destaca, in verbis: Ao juiz não será lícito aceitar de braços cruzados um tal resultado: terá de o corrigir, ao decidir a hipótese litigiosa, procurando guardar respeito, na medida do possível, àquela interconexão de sentido que solidariza e argamassa as normas no ordenamento respectivo. Tem de preencher as lacunas que apareçam - tal como se lhe impõe para hipóteses internas -, tem de eliminar os contrassentidos e ajeitar a coatuação das diferentes leis, por forma a obter um "mosaico ilacunar" (Wengler) e harmônico. Por isso se reconhece hoje em geral a necessidade de recorrer, em certos casos, a um procedimento de adaptação das normas materiais aplicáveis. Na expressão de Wengler, o juiz terá de proceder como se se tratasse de construir um automóvel com peças de marcas diferentes: passando além da simples função "constatadora" de normas de conduta dadas, o juiz avançará no sentido de uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão, no uso de uma faculdade quase-legislativa. É caso para dizer-se que ele atua não só secundum legem mas também de legibus. Essa atividade requer, por parte do juiz, um bom conhecimento do direito estrangeiro a adaptar, e o interesse da segurança jurídica pede que se limite ao mínimo a alteração introduzida no conteúdo da lei estrangeira. Tratemos das contradições e das incompatibilidades. A rigor, contradição lógica e contradição teológica são diferentes, nas palavras de Antônio Marques dos Santos11, que se apoia em G. Kegel. Contradição lógica dizem respeito a casos "assim não pode ser". Contradição teleológica já aludem a casos "assim não deve ser". Apesar de ser didático pensar assim, temos por mais didático tratá-las em globo dentro do termo "contradições", pois o resultado de ambas é o mesmo: a utilização da técnica da adaptação stricto sensu. Quanto às contradições lógicas ou teleológicas (também chamadas de contrassentidos lógicos ou teleológicos), elas ocorrem quando a aplicação das duas leis competentes para disciplinar o caso gera um resultado incompatível com a finalidade de ambas as leis. Dá-se quando a aplicação pura das regras tradicionais de conflito internacional de normas cria uma contradição teleológica: colide com a ratio de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. O exemplo clássico da doutrina é do pai biológico português em conflito com o pai adotivo marroquino12. Suponha que A (português residente em Portugal) tenha um filho biológico C. Suponha que C tenha sido adotado por B (marroquino residente em Marrocos) à luz da lei marroquina. A adoção em países muçulmanos não corresponde propriamente à adoção comum nos países ocidentais. É chamada de kafâla e acarreta consequências jurídicas diferentes13. C, portanto, é filho biológico do português e filho adotivo de B. A lei portuguesa exclui o filho biológico que foi adotado por outrem da herança do pai biológico. Pressupõe que o filho biológico, ao ser adotado por terceiro, participará da herança deste último. No caso acima, à luz da lei lusitana, se o pai português (A) morresse, o seu filho biológico (C) não seria seu herdeiro, pois já foi adotado por outrem. Acontece que a lei marroquina parte de lógica diferente. Ela exclui o filho adotivo da herança do pai adotivo. Escora-se na premissa de que o filho adotivo se beneficiará da herança do pai biológico. Na hipótese em pauta, à luz da lei marroquina, se o pai marroquino (B) morrer, o seu filho adotivo (C) não lhe será herdeiro. Pelas regras tradicionais de solução de conflito (especificamente a de elementos de conexão), a lei portuguesa disciplinará a sucessão mortis causa do pai português, e a lei marroquina, a do pai marroquino. É que, nesses casos, o elemento de conexão é a lex domicilli: aplica-se a lei do domicílio do falecido para disciplinar sua sucessão mortis causa. Dado esse cenário, suponha que ambos os pais faleçam. Nessa hipótese, se aplicarmos isoladamente cada uma das leis em tela, C não receberá herança alguma: nem do pai português, nem do pai marroquino. Trata-se de uma contradição teleológica: a finalidade de cada uma das leis em conflito está sendo frustrada. Cada uma das leis colimava que o filho recebesse uma herança. Mas, na espécie, C não receberá herança alguma se aplicarmos as duas leis isoladamente. No exemplo acima, percebe-se que a aplicação dos métodos tradicionais de solução de conflitos de normas estrangeiras desaguará em um resultado inadmissível diante da contradição teleológica. A adaptação stricto sensu é a técnica de direito internacional privado destinada a dissolver essa contradição lógica. Deixaremos para a próxima coluna o tratamento das hipóteses de incompatibilidades materiais. __________ 1 Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. 2 Há autores, como Luis de Lima Pinheiro, que adotam nomenclatura diferente: no lugar de "adaptação lato sensu" e "adaptação stricto sensu", emprega respectivamente os termos "adaptação-problema" e "adaptação-solução" (Lima Pinheiro, 2019, pp. 540-545; Patrão, 2016, p. 139). No mais, admitem os termos substituição e transposição. Preferimos, porém, as expressões mais tradicionais para evitar dispersões taxonômicas que mais confundem do que esclarecem. Melhor, portanto, é referir-se à adaptação stricto sensu. Embora não se encontre na doutrina a expressão adaptação lato sensu, utilizamo-la aqui por entendermos estar implícita na escolha da doutrina em empregar o termo "adaptação" como um grande gênero dentro do qual a "adaptação stricto sensu" é uma espécie (Monaco, 2019, p. 153). Há, ainda, autores, como Giorgio Cansacchi, que deram sentido muito mais amplo ao conceito de adaptação, mas é adequadamente criticado por misturar o tema com problemas diferentes de direito internacional privado, como qualificação e reenvio (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140). 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 126 e 146. 4 Quando utilizarmos o termo "adaptação", a referência é ao sentido amplo (lato sensu). 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. 6 ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, p. 11. 7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 140-142. 8 Expressão de João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338). 9 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. 10 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 330-331. 11 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, P. 570. 12 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 141. 13 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição.
1. Esclarecimentos iniciais Em artigo anterior, tratamos de um exemplo de adaptação lato sensu de direito estrangeiro (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/393052/julgado-da-suprema-corte-da-holanda). Naquele caso, a Suprema Corte Holandesa adaptou a garantia flutuante instituída segundo a legislação da Tanzânia para o penhor silencioso da legislação holandesa. Expusemos que esse caso poderia ser estendido ao Brasil, com eventual adaptação lato sensu da garantia flutuante para a propriedade fiduciária em garantia. No presente artigo, passaremos a tratar um pouco mais desse que é um dos principais institutos de Direito Internacional Privado: a adaptação lato sensu. E, nesse ponto, registramos nossos elogiosos à produção de um dos principais internacionalistas brasileiros atuais que se dedicam ao tema: o Professor Gustavo Ferraz de Campos Mônaco. Em um primeiro momento, exporemos o tema de modo mais superficial para facilitar a compreensão de leitores de primeira viagem nesse tema. Em artigos futuros, aprofundaremos o instituto. 2. Noções gerais Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino[1]). Por desconhecimento total, designamos a situação de o ordenamento do país de destino não admitir o direito do país de origem. Por desconhecimento parcial, batizamos a situação em que o ordenamento do país de destino admite o direito do país de origem com ressalvas. Essas ressalvas referem-se a diferenças de regime jurídico ou a diferenças de nomen iuris. Em sucessões mortis causa envolvendo bens situados em diferentes países, é potencial o problema de a lei do lugar do bem (lex rei sitae ou lex situs) não conhecer total ou parcialmente o direito real que a lei sucessória outorgue a um herdeiro. Lembramos que, na maioria dos países, a lex situs é o elemento de conexão adotado para disciplinar direitos reais sobre bens, especialmente no caso de imóveis. Se, por exemplo, uma lei sucessória ou um testamento defere um direito real de habitação a um herdeiro, indaga-se: o que se fará se a lex rei sitae não conhecer total ou parcialmente esse direito real dentro de sua legislação? Seria viável onerar o bem com um direito real totalmente desconhecido pela lex rei sitae (desconhecimento total)? E como ficaria essa questão na hipótese de o direito real ser apenas parcialmente conhecido pela lex rei sitae, como na situação em que o direito real é sujeito a um regime jurídico diferente (com, por exemplo regras de transmissão e de extinção diversas)? Para situações como essa, discute-se se seria ou não cabível a adaptação lato sensu do direito estrangeiro para sua admissão no país de destino. 3. Conceituação geral O tema da adaptação de direitos estrangeiros é tratado pela doutrina do direito internacional privado. Hans Lewald é tido como um dos pais desse instituto por ter implantado a discussão sobre essa figura no seu artigo Règles générales des conflits de lois, na Recueil des cours de 1939 (Lewald, 1939). Outros juristas cuidaram do assunto a partir dessas reflexões de Hans Lewald[2].  No presente artigo, tratamos da adaptação lato sensu, assim entendido gênero do qual são espécies a adaptação stricto sensu, a transposição e a substituição. Deixaremos para aprofundar cada uma dessas espécies em outro artigo posteriormente. Assim, quando nos referirmos ao termo "adaptação", estaremos fazendo alusão à adaptação lato sensu. A doutrina costuma seguir essa convenção taxonômica. De um modo simples, mas bem impressivo, a adaptação de direito estrangeiro pode ser vista como uma tradução, nas palavras de Gustavo Ferraz de Campos Monaco[3]. Nas palavras de Afonso Patrão, é o "conjunto de mecanismos aptos a solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis"[4]. É um expediente técnico para que o julgador possa resolver esses problemas. Esses problemas ocorrem quando estamos diante de situações jurídicas plurilocalizadas, ou seja, de situações jurídicas transnacionais. Nesses casos, a adaptação é a técnica do direito internacional privado destinada a lidar com questões claramente sujeitas a distintas leis e a distintas normas de conflito[5]. A necessidade de resolver esses problemas por meio da técnica da adaptação decorre da ideia de unidade do sistema jurídico. No plano internacional privado, há um vínculo natural entre as diversas regras jurídicas. Por vezes, esse vínculo natural pode ser abalado "no jogo das normas em conflito"[6]. Para dissolver esse abalo ao vínculo internacional das normas, pode ser necessário ajustar a própria solução material das leis em conflito[7]. A doutrina majoritária do direito internacional privado admite a figura, embora ainda esteja tateando na sua aplicação nos casos concretos. Não há muitas normas chancelando expressamente a figura. As principais são em caso de adaptação de direitos reais. É o caso, por exemplo, do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões[8] e também do art. 15 da Convenção de Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao Trust e ao seu reconhecimento[9]. Este último estabelece a necessidade de o trust ser adaptado em outro direito admitido pelo ordenamento local com efeitos similares[10]. Mesmo sem previsão normativa expressa, entendemos que a adaptação pode ser admitida no Brasil com base nos princípios gerais de Direito Internacional Privado. Em artigo posterior, aprofundaremos as espécies de adaptação lato sensu.   [1] Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. [2] Entre outros, citamos: ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, pp. 9-44; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016; PATRÃO, Afonso. Reflexões sobre o reconhecimento de Trusts voluntários sobre imóveis situados em Portugal. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  87, 2011; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 521-606; MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 327-351; MACHADO, João Baptista. Contributo da escola de Coimbra para a teoria do direito internacional privado. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 61, pp. 159-176, 1985; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-160; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; ANCEL, Bertrand. Regards critiques sur l'érosion du paradigme conflictual. Disponível em: https://www.ehu.eus/documents/10067636/10730148/2005-bertrand-ancel.pdf. Acesso em 2 de fevereiro de 2022. Destaca-se também o jurista francês Henri Batiffol (1905-1989), que dominou a doutrina francesa de direito internacional privado e que é multicitado pelos demais internacionalistas privados também em matéria de adaptação de direitos estrangeiros (SOCIÉTÉ FRANÇAISE POUR LE DROIT INTERNATIONAL. Henri Batiffol. Disponível em: https://www.sfdi.org/internationalistes/batiffol/. Acesso em 4 de abril de 2022). Entre as diversas contribuições dele, destaca-se artigo sobre as contribuições das regras norte-americanas de soluções de conflitos para o direito francês (LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, pp. 48-74). [3] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-159. [4] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. [5] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 139-140. [6] MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. [7] LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 541. [8] Regulamento (UE) nº 650/2012 (Eur-lex, 2012-A). Confira-se o teor do dispositivo:   Artigo 31.º Adaptac¸a~o dos direitos reais   No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica'vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e' invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa'rio e na medida do possi'vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro'ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados. [9] HCCH, 30: Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. Data: 1 de julho de 1985 (Disponível: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59#:~:text=para%20os%20prop%c3%b3sitos%20desta%20conven%c3%a7%c3%a3o,ou%20para%20alguma%20finalidade%20espec%c3%adfica. Acesso em 3 de fevereiro de 2022). [10] Confira-se o dispositivo o art. 15 da Convenção de Haia de 1985:   Artigo 15 A Convenção não prevê a aplicação de disposições de direito designadas pelas regras de conflitos do foro, na medida que estas disposições não possam ser derrogadas por ato voluntário, relacionado em particular às matérias que seguem:   a) a proteção de menores e partes incapazes; b) os efeitos pessoais e de propriedade do casamento; c) direitos de sucessão, testamentária e não testamentária, especialmente a reserva a cônjuges e parentes; d) a transferência do título de propriedade e garantias reais; e) a proteção dos credores em questões de insolvência; f) a proteção de terceiros de boa-fé.   Caso o reconhecimento do trust seja impossível pela aplicação do parágrafo precedente, a corte buscará dar efeitos aos objetivos do trust por outros meios jurídicos.
Trataremos de interessante julgado da Suprema Corte da Holanda, cujo raciocínio poderia ser estendido ao sistema brasileiro, por conta da similaridade. A Holanda, assim como o Brasil, não prevê a garantia flutuante (floating charge) como direito real na sua lei. Isso acarreta problemas práticos no caso de execução dessa garantia flutuante pactuada em contrato celebrado no exterior, quando a garantia vier a recair sobre bem situado no país. Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação lato sensu de direito estrangeiro, mais especificamente um problema de transposição. Deixaremos para outra oportunidade o aprofundamento desses conceitos. Passamos, porém, a expor julgado holandês que enfrentou o problema acima e deu uma solução que poderia ser adotada pelas Cortes brasileiras, mutatis mutandi: entendemos que a transposição da garantia flutuante poderia ser feita para uma propriedade fiduciária em garantia por conta de sua maior força executiva do que o penhor, à luz da legislação brasileira. Trata-se do que chamaremos de Caso do Banco da Tanzânia, formalmente conhecido como NBC Holding Corporation (Tanzania National Bank of Commerce) v. Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A., julgado pela Suprema Corte da Holanda (Hoge Raad der Nederlanden) em 23 de abril de 19991. Nesse caso, a Suprema Corte holandesa (Hoge Raad) transpôs uma garantia flutuante (floating charge) instituída à luz da lei da Tanzânia em um penhor sem apossamento da lei holandesa2. Esse caso convida aprofundamento por sua riqueza fática e pela sua utilidade para outros casos concretos envolvendo conflitos móveis envolvendo a técnica do Direito Internacional Privado de transposição (recognition, no direito norte-americano)3. Os fatos podem ser resumidos da seguinte maneira. Uma empresa chamada Codage tinha uma dívida de 2 milhões de dólares perante o banco da Tanzânia (NBC Holding Corporation4). E, em garantia dessa dívida, a Codage ofereceu um floating charge (uma garantia flutuante) sobre o patrimônio da sua atividade empresarial (como as mercadorias). O floating charge não recai sobre um bem específico, mas sobre o patrimônio em si (a universalidade de bens), abrangendo bens presentes e futuros dessa universalidade. Desse modo, a empresa devedora tem liberdade para dispor dos seus bens na sua atividade empresarial, como mercadorias, recebíveis (créditos perante clientes) etc. Quando o credor tiver de executar a garantia por conta de uma inadimplência, ele, então, especializará a garantia, fazendo-a incidir sobre um bem específico entre os que, naquele momento, estiver sob a titularidade do devedor. Cabe-lhe nomear um receptor por meio de um procedimento executivo previsto na lei da Tanzânia. Nesse momento, o floating charge transformar-se em um fixed charge (garantia fixa). Em outras palavras, a floating charge é um ônus que fica flutuante dentro de uma universalidade de bens até, quando da execução, possa fixar em um bem específico. De modo metafórico, é um espírito que fica pairando em cima do patrimônio presente e futuro do devedor à espera de, no caso de inadimplência, encarnar-se em um bem específico. Acontece que a empresa Codage tinha, na Holanda, um bem avaliado em 2,35 milhões de dólares5. A rigor, esse bem, por integrar o patrimônio da empresa, estava também onerado pela garantia flutuante da lei da Tanzânia. A empresa Codage passou a desonrar suas dívidas não apenas perante o banco da Tanzânia, mas também perante um outro credor (a sociedade Sisal6). A Codage não pagou a dívida de 1,95 milhões de dólares que detinha perante a sociedade Sisal7. Essa credora, então, ajuizou ação na Holanda e obteve a penhora do supracitado bem que a Codage tinha na Holanda. O problema é que esse bem, a rigor, era objeto de uma garantia flutuante (floating charge) anteriormente instituída em favor do banco tanzaniano. O banco da Tanzânia reagiu e, diante da inadimplência da Codage, executou o floating charge e especializou a garantia sobre esse mesmo bem situado na Holanda. Por consequência, o banco tanzaniano buscou onerar esse bem situado na Holanda com um fixed charge, fruto da execução sumária do floating charge. O conflito entre esses dois credores (Sisal e banco tanzaniano) foi instalado. Quem teria prioridade na excussão da coisa: o banco tanzaniano por força de seu fixed charge ou a Codage por força de sua penhora? O banco tanzaniano interveio no processo para reivindicar a prioridade na excussão da coisa com base no seu floating charge instituído à luz da lei da Tanzânia. A Codage, porém, contra-atacou. Afirmou que, para reger direitos reais sobre a coisa, há de aplicar-se a lei da sua localização (lex rei sitae), que, no caso, é a lei holandesa. E, à luz da lei holandesa, que adota a tipologia de numerus clausus de direitos reais, o floating charge não é admitido. Logo, o banco tanziano não teria nenhuma prioridade creditória. O Judiciário holandês, então, teve de decidir quem teria direito. E, para tanto, imergiu em debates de transposição: o floating charge tanzaniano, com seu alto enforcement garantido por um rito de execução sumária, poderia ou não ser transposto para algum direito real similar admitido na Holanda? Esse foi o cerne dos debates no supracitado acórdão. A discussão é se a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana poderia ou não ser objeto de transposição para o direito real holandês mais próximo: o penhor silencioso (stil pandrecht, em holandês), também chamado de penhor não possessório (bezitloos pandrecht) ou penhor sem punho (vuistloos pandrecht)8. O penhor silencioso holandês é um penhor sem tradição: o devedor pignoratício não entrega a coisa9. Recai sobre um bem presente e específico. A Sisal defendeu que não cabia a transposição, entre outros motivos, pelo fato de o penhor silencioso neerlandês recair sobre um bem presente e específico, ao contrário da garantia flutuante tanzaniana (que recai sobre uma universalidade de bens). Invoca, também, outro motivo processual: o de que o penhor silencioso neerlandês enseja um procedimento de execução sumário, o qual não existiria para a garantia flutuante tanzaniana. O grau de enforcement dos direitos cotejados seria diferente. O Hoge Raad (Supremo Tribunal da Holanda) rejeitou esses argumentos da Sisal. Admitiu, pois, a transposição da garantia flutuante (floating charge) tanzaniana para o penhor silencioso holandês. O fato de a garantia flutuante recair sobre uma coisa futura não seria obstáculo para a transposição. O que importa é a proximidade das figuras e o fato de que, no caso concreto, o banco tanzaniano pleiteia a especialização da garantia flutuante sobre um bem específico. São esclarecedoras estas palavras do acórdão do Tribunal de Recurso de Amsterdã - que foi secundado pelo Hoge Haad nesse ponto: 4.20. a avaliação da possibilidade de assimilação não se trata de identificar pontos de divergência, mas de saber se a lei estrangeira em questão apresenta tal grau de concordância com a lei holandesa que se pode concluir que a lei estrangeira persegue o mesmo objetivo. Se a lei holandesa e em circunstâncias comparáveis ??levarem ao mesmo resultado. A avaliação disso deve ocorrer no momento em que a lei relevante se manifesta no sistema jurídico holandês.10   Além disso, para efeito da transposição, o rito executivo do floating charge tanzaniano, consistente na nomeação de um receptor, é equivalente à execução sumária do penhor silencioso holandês. Os meios executivos são similares. Os graus de enforcement são parecidos. A doutrina também acena para a equivalência do floating charge para o penhor, inclusive o penhor silencioso holandês (stil pandrecht). O Procurador-Geral oficiante perante o Hoge Haad no caso concreto sublinhou11: 12. Na literatura, o floating charge é considerado equiparável ao penhor (silencioso holandês). Veja, por exemplo, R.J. Botter, Nn 1992, pp. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, pp. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2ª ed. (1998), pp. 511-524 (ver em particular pp. 517 e 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, pp. 417-436. Tanto a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana quanto o penhor silecioso holandês (stil pandrecht) possuem o mesmo objetivo: servir de uma garantia real que não inviabilize as atividades do devedor pelo fato de deixar este com a posse direta sobre o bem onerado. Ambas as garantias não subtraem a posse da coisa pelo devedor. A principal diferença entre esses dois direitos reais de garantia é que, no penhor silencioso holandês (stil pandrecht), só os bens expressamente listados podem ser onerados. Não recai, portanto, sobre bens futuros e eventuais, como futuros créditos, ao contrário do floating charge. No penhor silencioso holandês (stil pandrecht), a lista de bens oneradas tem de ser levada a registro no competente órgão registral. A lista pode ser periodicamente atualizada por um mero procedimento eletrônico simplificado. O próprio registro segue um procedimento bem simplificado. Diante das fortes semelhanças entre o penhor silencioso holandês (stil pandrecht) com a garantia flutuante (floating charge) tanziano, as pequenas diferenças são irrisórias e não substanciais. Na essência, as figuras equivalem-se. __________ 1 DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011. (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022) 2 Ulrich Drobnig problematiza várias outras situações decorrentes de direitos reais de garantias sobre imóveis (DROBNIG, Ulrich. Security Rights in Movables. Data: 15 de janeiro de 2010 (Disponível aqui. Acesso em 30 de janeiro de 2022). _____________. Unified Rules on Proprietary Security - in the World and in Europe. In: BFD, n. 85, 2009, pp. 667-678). 3 Bram Akkermans e Eveline Ramaerkers tratam do tema com olhos nos conflitos móveis entre os Estados norte-americanos (AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011). 4 O NBC Holding Corporation é um dos bancos mais antigos da Tanzânia (site oficial). 5 O bem eram recebíveis que estavam sob a custódia de um banco holandês por terem sido integrados a uma carta de crédito. Os recebíveis eram créditos de 2,35 milhões de dólares que a empresa Codage tinha perante clientes canandenses. 6 Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A. 7 A empresa Sisal havia reivindicado 2,5 milhões de dólares como crédito, mas os tribunais holandeses só reconheceram 1,95 milhões de dólares 8 Está previsto no livro 3, art. 239 do Código Civil holandês (3:329 BW).O Código Civil holandês (Burgerlijk Wetboek em holandês e abreviado como BW) está disponível neste site. 9 O penhor com tradição é chamado de penhor de punho (vuistpand vestigen, em holandês) e está no livro 3, art. 236 do Código Civil holandês (3:226 BW). 10 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 4.20 Het gaat bij beoordeling van de mogelijkheid van assimilatie immers niet om het signaleren van verschilpunten, maar om de vraag of het desbetreffende buitenlandse recht een zodanige mate van overeenstemming vertoont met een Nederlands recht, dat geconcludeerd kan worden dat het buitenlandse recht hetzelfde doel nastreeft als het Nederlandse recht en in vergelijkbare omstandigheden tot hetzelfde resultaat leidt. De beoordeling van een en ander dient te geschieden op het tijdstip dat het desbetreffende recht zich in het Nederlandse rechtssysteem manifesteert. 11 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 12. In de literatuur wordt de floating charge vergelijkbaar geacht met het (Nederlandse stille) pandrecht. Zie bijv. R.J. Botter, Bb 1992, blz. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, blz. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2d ed. (1998), blz. 511-524 (zie met name blz. 517 en 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, blz. 417-436.
terça-feira, 29 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte III

Na coluna anterior, começamos a tratar da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. Continuemos. Na Ásia, a família do civil law deitou raízes, ainda que, em alguns casos, em mescla com outras famílias. Foi o caso, por exemplo, da Turquia, que, embora tenha mantido elementos do direito muçulmano, incorporou do civil law uma forma de modernização do seu direito, tudo a partir de 18391. A dinâmica plural do Império Otamano concorreu para essa configuração. No século XIX, o Império Otomano introduziu elementos laicos no seu sistema jurídico, que, até então, era preponderamente muçulmano. A pluralidade de povos sob o domínio otomano colaborou para esse cenário. A ideia de um direito turco mais racional e justo ganhou força. Houve uma seculização do direito turco. É desse contexto que decorrem, por exemplo, o Código Comercial otomano (1850), o Código Marítimo otomano (1863) e as Regras de Processo Civil (1879). No século XIX, a ideia de um Código Civil em si sofreu resistência e, em seu lugar, houve publicação de partes da Sharia em 16 livros, os quais ficaram conhecidos como Mecelle (Mecelle-i ahkami adliye, em turco), também traduzida em outros países como Mejelle, Majalla, Megelle, Medjélié. O Mecelle, de qualquer forma, pode ser considerada uma espécie de Código Civil do Império Otomano2. No século XX, especialmente entre 1926 e 1929, a Turquia - fundada em 1923 após o desmantelamento do Império Otomano - passou por mudanças estruturais rumo a formação de uma república parlamentar ocidentalizada, marcada por um maior secularismo e pela adoção de um modelo de Estado de Direito.  Nesse contexto, o primeiro Código Civil turco nasceu em 1926 como fruto dessa conexão, com fortíssima inspiração do ZQB3 (Código Civil suíço). A escolha do ZQB como referência explica-se por vários motivos, como: (1) o fato de alguns juristas turcos terem estudado na Suíça francesa; (2) a maior familiaridade desses juristas com idioma francês; (3) o fato de o ZQB ser um dos mais recentes; (4) a extensão do ZQB ser consideravelmente inferior ao BGB4; (5) o uso de muitas cláusulas gerais colaborou para a recepção das regras do ZQB pela Turquia5. O antigo Código Civil turco foi substituído pelo atual, de 20026. Os Estados árabes do Oriente Médio, a seu turno, não foram tão receptivos ao civil law. Mantiveram-se fiéis ao direito muçulmano, ao menos em relação aos cidadãos muçulmanos. A influência do civil law foi pequena na pensínsula da Arábia7. Israel sofreu maior influência do common law por conta dos britânicos. Iraque e Jordânia também seguiram esse caminho em um primeiro momento, mas, posteriormente, regressaram à tradição romano-germânica8. O civil law exerceu influência em alguns outros países asiáticos, como na China, no Vietnã, no Japão, na Coréia do Sul, na Coréia do Norte, na Tailândia, em Camboja, no Laos, Filipinas, Sri Lanka, Idonésia. Vários deles, porém, seguem um modelo misto por ter elementos de outras famílias9. Mesmo dentro da família do civil law, há variações, como: (1) os direitos franceses (civil law francês); (2) os dos direitos germânicos (civil law germânico); (3) o dos direitos escandinavos (civil law escandinavo); e (4) os dos direitos da América Latina10. O civil law francês é marcado não apenas pela estrutura do Código Civil napoleônico, mas também por uma valorização da cultura jurídica judicial. O Código foi uma sistematização e positivação dos costumes e da jurisprudência, além, obviamente, das teorizações do direito romano. Os profissionais do Direito, como advogados e, em alguns países - como na Espanha -, os notários, possuem notável relevância nesse sistema11. O civil law francês espalhou-se na América Latina (com certas ressalvas em alguns países, como no Brasil e no Peru), na América do Norte (estado norte-americano de Luisiana e províncias canandeses de Quebec), nos países do Oriente Médio com forte influência francesa (Egito, Síria e Líbano) e nas antigas colônias francesas na África e na Ásia. Na Europa, a presença do civil law francês expressa-se nos Estados do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e em parte dos Bálcãs (especialmente Romênia), além de inegável influência em praticamente todas as demais nações europeias12. Já o civil law germânico refere-se especialmente às codificações das nações de língua germânica, como o Código Prussiano de 1794 (Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten - ALR)13 e o Código Civil Austríaco de 1811 (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch - ABGB). Reporta-se também ao Código Civil Alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB) e à segunda maior codificação pandectista: o Código Civil Suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB)14. Apesar da proximidade, o BGB e o ZGB possuem diferenças estruturais. O ZGB, por exemplo, não é tão favorável a cláusulas gerais nem possui uma Parte Geral por conta de sua maior perspectiva próxima da realidade, ao contrário do BGB15. A preocupação com uma redação legislativa mais clara, expressiva e acessível é mais intensa no ZGB, que, por vezes, vale-se de expressões que, embora não sejam técnicas juridicamente, são mais bem compreendidas (a exemplo da frase "o casamento emancipa"). O ZGB é marcado por uma maior participação do próprio cidadão, o que foi obtido pela menor intensidade na cientificação da consciência jurídica popular16. O civil law germânico foi marcado pela influência da versão científica da pandectística, pela influência dos costumes germânicos. Destacam-se, como característica do civil law germânico, uma sistemática rigorosa e uma preocupação perfeccionista com conceitos jurídicos17. Na Alemanha, a classe jurídica é mais técnica e menos política, tudo sob uma busca por neutralidade científica oriunda do positivismo científico e legalista. Profissionais do Direito, como advogados e juízes, raramente alçam-se a posições e a posturas políticas. Difere, nesse ponto, das demais famílias jurídicas18. O civil law germânico, além de estar presente nos países europeus de língua germânica, alcançou outras nações. Embora haja certa indeterminação para definir o alcance fora da Europa, é certo que o BGB influenciou fortemente o Japão e, em certa medida, a Tailândia. O ZGB, a se turno, influi intensamente na Turquia de Mustafá Kemal Ataturk19 (1927), além de ter inspirado a Hungria (especialmente até a segunda guerra mundial), a Iugoslávia, a Polônia (especialmente o Código de Direito das Obrigações de 1933) e a Grécia. A influência do civil law germânico (ora por conta do BGB, ora em razão do ZGB, ora graças a ambos) teve influência (importante, mas menos intensa) em outras nações, como nos Estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), na América Latina (notadamente Brasil - 1916 -; México - 1928 -; e Peru - 1936), no Líbano (1933), no Código Civil da União Soviética de 192320, na Albânia, na Bulgária, China pré-comunista e na Tailândia.  O civil law escandinavo reporta-se aos cinco países nórdicos: Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia e Finlândia. Foi influenciado pelo civil law francês e pelo civil law germânico, mas mantém particularidades que permitem uma categorização apartada. Sua principal marca decorre da menor intensidade da influência de uma concepção científica e fria do direito. A consciência escandinava do direito é forte, o que torna o sistema jurídico mais maleável para adaptar-se a novos problemas sociais e morais. O direito é mais hospitaleiro a soluções jurídicas de índole progressiva e social21. __________ 1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 79-80. 2 Atamer, 2012. 3 Sigla de Zivilgesetzbuch, em alemão. 4 O BGB continha 2.385 artigos. O Código Civil Suíço (ZGB) e o Código das Obrigações Suíço (Obligationenrecht - OR) continham, juntos, 1.528 artigos. O Código das Obrigações suíço (OR) é a quinta parte do Código Civil Suíço (ZGB), apesar de contar com uma numeração própria (Siehr, 2012). 5 ATAMER, Yesim M. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2009 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 6 TUSEV. Turkish Civil Code. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022; MAX-EUP. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2012 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80. 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 80-81. 10 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-589. 11 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 12 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 13 Os mais de 1.900 artigos do ALR abrangiam regras não apenas de Direito Civil, mas também de Direito Penal, de Direito Constitucional, de Direito Canônico etc. (Ricken, 2022). 14 Sobre as particularidades históricas da Suíça, as quais lhes outorgam traços que o distinguem da Alemanha, reportamo-nos a Franz Wieacker (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-570). O ZGB foi fruto do trabalho de sistematização de Eugen Huger, que atentou para as particularidades jurídicas de cada cantão (alguns dos quais já tinham códigos de direito privado, a exemplo do Código de Direito Privado de Zurique - Zürcher Privatrechtliches Gesetzbuch). 15 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 564. 16 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 565-566. 17 Franz Wieacker  aponta que essas características do civil law alemão, notadamente sob a influência do BGB, pode, por vezes, descambar para perfeccionismos vazios e limitados. E há aspectos positivos e negativos nessas características, as quais realçadas no direito hipotecário e no sistema cadastral (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578). 18 (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 579. 19 A Turquia de 1927 era mais europeizada e laicizada (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578, p. 568). 20 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 578 e 568-569. 21 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 581 e 568-569.
terça-feira, 15 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte II

Na coluna anterior, expusemos os países do mundo que se incluem na família do civil law. Hoje, passaremos a tratar do movimento de disseminação de Códigos Civis pelo mundo. II. Códigos Civis no mundo A família do civil law decorre de desenvolvimento dos estudos de direito romano realizados ao longo da história (com inclusão dos estudos dos glosadores e comentadores na Idade Média) até a deflagração dos movimentos de codificação. Embora os costumes tenham importância, o civil law marcou-se por uma busca de um sistema jurídico mais racional, assentado em normas escritas, fruto dos fortes estudos acadêmicos do direito romano realizado desde a Baixa Idade Média1. As codificações a partir do século XIX consolidaram esse modo mais racional de pensar, fundado em um direito escrito. A influência do direito romano subsistiu mesmo após as codificações, pois os fundamentos do civil law estão umbilicalmente ligados a ele2. A expansão da codificação, iniciada com o Código Civil francês de 1804, ajudou para espalhar a família do civil law para dentro e fora da Europa3. Na Europa, destacam-se, após o Código Civil napoleônico (1804), o Código Civil holandês em 1838 (Burgerlijk Wetboek - BW), o Código Civil português de 1867 (Código de Seabra4), o Código Civil espanhol de 1889 (Real Decreto de 24 de julio de 1889), o Código Civil alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB), o Código Civil suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB). Na América, o movimento da codificação disseminou-se5. Na América do Norte, o estado norte-americano de Luisiana editou seu Código Civil em 1808. Na América Central e do Sul, destacam-se os Códigos Civis do Haiti (1825), do estado mexicano de Oaxaca (1827-1829)6, da Bolívia (1830), da Costa Rica (1841), da República Dominicana (1845), do Peru (1852), do Chile (1855)7, do Estado Soberano de Magdalena (1857)8, do Equador (1856-1860), do Estado Soberano de Santander (1858)9, de El Salvador (1859), do Estado Soberano de Cauca (1859)10, do Estado Soberano de Cundinamarca (1859)11, do Estado Soberano do Panamá (1860), do Estado Soberano de Tolima (1861)12, do estado mexicano de Veracruz (1861), da Venezuela (1861, posteriormente substituído em 1873)13, do Estado Soberano de Bolívar (1862), do Estado Soberano de Boyacá (1863) e do Estado Soberano de Antioquia (1864), do Império Mexicano (1866), da Nicarágua (1867, posteriormente substituído em 1904) e do Uruguai (1868). Em seguida a esses Códigos, sobrevieram os Códigos Civis da Argentina (1869)14, da Colômbia (1887), de Honduras (1898, posteriormente substituído em 1906) e do Brasil (1916)15. Apesar de o primeiro Código Civil brasileiro só ter nascido em 1916, houve, ao longo do século XIX, diversos movimentos de codificação com a apresentação de projetos de códigos por diferentes juristas. A primeira tentativa de codificação foi por meio do Esboço de Código Civil, de Teixeira de Freitas, publicado em três partes entre os anos de 1860 e 1865 (1983-A e 1983-B). Teixeira de Freitas já havia entregado a Consolidação das Leis Civis em 1858, organizando sistematicamente o caótico sistema jurídico privado da época. José de Alencar16 fez, publicamente, análise crítica do projeto de Teixeira de Freitas com esta afirmação: "'o que uma vez se entregou à publicidade pertence-lhe, entra no seu domínio soberano: é julgado' (CORREIO MERCANTIL, 1860)" (Paranhos, 2012).  O Esboço de Teixeira de Freitas, todavia, não avançou por questões políticas. Em 1872, o ministro da Justiça Duarte de Azevendo contratou José Tomás Nabuco de Araujo17 para a elaboração de um novo projeto de Código Civil. Nabuco de Araujo esforçou-se por manter o que fosse possível do Esboço e Teixeira de Freitas, mas não conseguiu concluir o trabalho por conta de sua morte em 187818. O pai do Código Civil português, Visconde de Seabra, chegou a oferecer-se para elaborar um projeto de Código Civil para o Brasil. Após as duas tentativas (a de Teixeira de Freitas e a de Nabuco Araujo), Joaquim Felício dos Santos19, após obter a permissão do Conselheiro Lafayette (então Ministro da Justiça) em 1872, elaborou um projeto de Código Civil em 1882 (Felício dos Santos, 1891). Também foi o caso do Projeto de Código Civil de Antônio Coelho Rodrigues após ter sido contratado em 1890 para tal tarefa pelo Ministério da Justiça (Quintela, 2017; Coelho Rodrigues, 1893; Costa Filho, 2014). Os projetos de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues não vingaram por questões políticas e por conta da rivalidade existente entre os juristas da época "por escrever o próprio nome na história do Direito Brasileiro" (Tomasevicius Filho, 2016, p. 88). Foi Clóvis Beviláqua, jurista ligado à Escola de Recife (liderada por Tobias Barreto), que se sagrou vitorioso sob essa ótica. Foi do seu anteprojeto que, com ajustes ocorridos ao longo da tramitação legislativa, gerou o Código Civil de 1916. Inspirou-se na experiência alemã, além dos trabalhos dos juristas brasileiros anteriores20. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. __________ 1 Com enfoque no direito francês, ver: DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 1-2. 2 A ênfase do direito romano era no direito privado. E desse desenvolvimento privatista dos romanos que descende a essência da família do civil law. O direito público romano, apesar de sua importância, foi um espelhamento do desenvolvimento do desenvolvimento do direito privado. René David (O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 2) destaca, in verbis: ... Nossa concepção do direito permanece bastante marcada pela ciência dos romanistas. O direito por excelência continua a ser, para nós, o direito privado, que rege as relações entre os particulares; o direito público, pelo qual os juristas romanos não se interessam, só se afirma com certa dificuldade quando modelado à imagem do direito privado. Nossos conceitos e nossas categorias jurídicas permanecem essencialmente os conceitos ensinados nas Universidades, tendo por base o direito romano. 3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 67. 4 O epíteto é uma homenagem a António Luís de Seabra e Sousa, o 1º Visconde de Seabra, considerado pai do primeiro Código Civil português. Esse Código foi revogado com o advento do novo Código Civil português de 1966. 5 Guzmán Brito, 1999-2000. 6 Ut GUZMÁN, BRITO, Alejandro. La influencia del Código Civil de Vélez Sarsfield em las codificaciones de iberoamérica hasta princípios del siglo XX. In: Revista Chilena de Historia del Derecho, n. 18, 1999-2000, pp. 263-273; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificación Civil em México: aspectos generales. Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificacion Civil em Mexico. In: Iurisdictio, n. 1, 2020, pp. 92-123. 7 Andrés Bello é tido como pai do Código Civil chileno. 8 O Estado Soberano da Magdalena foi um dos estados da atual Colômbia. Ut Mayorga Garcia, 1991. 9 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 10 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 11 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 12 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 13 GALITO, Einstein Alejandro Morales. Evolución Histórica del Código Civil Venezolano. Publicado em 24 de março de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 31 de março de 2022). 14 Dalmacio Vélez Sarsfield é considerado o pai do Código Civil argentino. Foi influenciado pelos trabalhos de Teixeira de Freitas: o Esboço de Código Civil e a Consolidação das Leis Civis (FERREIRA, Waldermar. Teixeira de Freitas e o Código Civil argentino. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 25, 1929, pp. 181-186; NOCCHI, Carolina Penna. A influência de Augusto Teixeira de Freitas na elaboração do Código Civil argentino. In: Revista do CAAP, número especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, jul./dez., 2010, pp. 37-48; LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022); CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 63-96). A influência dos trabalhos de Teixeira de Freitas alcançou também o Uruguai, o Paraguai, a Venezuela, o Chile e a Nicarágua. Sobre a notável reputação jurídica de Teixeira de Freitas no Brasil, Joseane Suzart Lopes da Silva averba: Reconheceu Clóvis Beviláqua que Teixeira de Freitas sedimentou "um edifício de grandes proporções e de extraordinária solidez". Rui Barbosa referiu-se a ele como "o maior civilista morto" e segundo Orlando Gomes, "pagou pela audácia de ter sido original e autêntico ao passar à frente do seu tempo, e, por isso, não foi esquecido. Nem será" (LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022) 15 Ut Costa, 2004. Venceslau Tavares Costa Filho desenvolveu tese de doutorado problematizando o processo histórico da codificação civil no Brasil (COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código "social" e "impopular": uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife. Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Junior. 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de novembro de 2021). Eduardo Tomasevicius Filho destaca o legado que o Código Civil de 1916 deixou para o direito brasileiro, abordando, entre outros aspectos, o histórico de sua formação (TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, pp. 85-100). 16 José de Alencar, além de grande romancista brasileiro, foi juristas e Ministro dos Negócios da Justiça (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, p. 69). 17 Nabuco de Araújo fora quem, na condição de Ministro dos Negócios da Justiça, havia convidado seu ex-colega de graduação e seu amigo Augusto Teixeira de Freitas para elaborar a Consolidação das Leis Civis e o projeto de Código Civil (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019). 18 Havia, porém, quem sustentasse que os trabalhos haviam sido concluídos (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 70-71). Sobre a morte de Nabuco Araujo, o Jornal do Commercio publicou: "se não bastassem os regulamentos dos tribunais de comércio, o regimento de custas, a lei hipotecária e o seu regulamento, o projeto de lei de locação de serviços, e tantas outras provas do seu alto mérito, lega ele à família e ao país, para eternizar o seu nome, o projeto de Código Civil, que felizmente completara e que, na opinião dos entendidos e insuspeitos, será um monumento para a jurisprudência pátria" (MIGALHAS. Há 200 anos nascia José Tomás Nabuco de Araújo. Disponível aqui. Publicado em 14 de agosto de 2013 (Acesso em 31 de março de 2013). 19 Joaquim Felício dos Santos era senador. 20 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, p. 89.
terça-feira, 1 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte I

I. Visão panorâmica dos países da família do civil law A família do civil law disseminou-se por diversos países do mundo. O mapa abaixo indica, de vermelho, os locais em que prevalece essa família, além de indicar as regiões de influência das outras famílias jurídicas1:   Na Europa, os países da Europa continental encaixam-se no modelo do civil law, ainda que haja particularidades entre eles. No continente americano, na América do Norte, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico2 e a Província canadense de Quebec adotam o civil law, conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law. Na América Central e do Sul, a maioria dos Estados adotaram o modelo do civil law, especialmente por conta das colonizações portuguesa e espanhola. A exceção corre à conta da Guiana (que adota um sistema misto), de Belize e de alguns outros países da América Central (especialmente do Caribe), conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law em outro artigo publicado nesta Coluna3. Na Ásia, entre outros países que adotam a família do civil law, estão o Japão4 e a Rússia. Há países asiáticos que adotam um regime misto de civil law e common law, como as Filipinas5. Há outros em que o regime misto é do civil law com o direito consuetudinário ou com o direito islâmico. É o que, por exemplo, da Indonésia, em que há um regime misto de civil law (de tradição holandesa), de direito costumeiro (o sistema hukum adat) e de direito islâmico6. A China tem um regime predominantemente vinculado ao civil law, mas há particularidades ao longo do território. Na China continental, as leis foram influenciadas pelos direitos soviético, alemão e japonês. Em Hong Kong, vigora um regime do common law. Em Taiwan, vige um modelo de civil law influenciado pelos direitos alemão e japonês7. Na África, há alguns países que adotaram a família do civil law, como Moçambique8. Na próxima Coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de Códigos Civis pelo mundo. __________ 1 Ut INTERNATIONAL BUSINESS LAW. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. Publicado em outubro de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022). 2 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 3 Disponível aqui. 4 Ut TAYLOR, Veronica; BRITT, Robert R.; ISHIDA, Kyoko; CHAFFEE, John. Introduction: Nature os the Japanese legal system. In: Business Law in Japan, vol. 1; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 55). Publicado em 15 de fevereiro de 2017. Acesso em 25 de março de 2022). 5 Ut CONCIL OF ASEAN CHIEF JUSTICES. Philippines. Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022. 6 Ut BLACK, E. Ann; BELL, Gary F. Law and Legal Institutions of Asia: Traditions, Adaptations and Innovations. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. 7 Ut ROU, Tong. The General Principles of Civil Law of The PRC: Its birth, characteristics, and role. In: Law and Contemporary Problems, vol. 52, nº 2, 1989, pp. 151-175 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).; CHINA JUSTICE OBSERVER. Does China Have Common Law? - China Law in One Minute. Publicado em 9 de novembro de 2020 (Disponível aqui. Acesso de 30 de março de 2022). 8 Ut RAINHA, Paula. UPDATE: Republic of Mozambique - Legal System and Research. Publicado em abril de 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).
É importante ter uma visão panorâmica dos países do mundo que foram influenciados pelo civil law e pelo common law, especialmente com olhos no Direito Privado. A compreensão de regras de direito comparado exige uma necessária contextualização com o sistema jurídico de cada país. Hoje, exporemos os principais países ligados à família do common law. A família do common law tem sua gênese na Inglaterra com os trabalhos dos juristas e dos Tribunais Reais de Justiça após a conquista normanda no século XI. Essa família jurídica espalhou-se para outros países que sofreram a influência da Inglaterra, especialmente pelo expansionismo do Império Britânico e pela colonização de povoamento desenvolvida após o Mayflower atracar, em 1620, no território do atual EUA. Com algumas exceções, países de língua inglesa e membros da Commonwealth1 perfilham-se à família do common law. Ainda que esses países tenham particularidades jurídicas vinculadas às suas idiossincrasias, é inegável que a influência britânica no pensamento jurídico local e na estruturação institucional foi marcante2. Por exemplo, apesar de o sistema jurídico dos EUA (rectius, da maioria dos Estados norte-americanos) e da Inglaterra poderem ser enquadrados na família do common law, há diferenças marcantes. Na década de 1960, Franz Wieacker creditou essa distinção, entre outras causas, à diferença de ideologias jurídicas. Na ideologia, os norte-americanos assentam-se mais em uma ideia de otimismo revolucionário, em um controle pela Constituição e em uma atuação mais intensa dos juízes. Já os ingleses estavam mais impulsionados por confrontos entre grupos políticos de uma sociedade tradicional sob a mediação da coroa, fato que vem sendo modificado diante da perda de influência das oligarquias sobre a política3. Vejamos, por continente, os principais países integrantes da família do comoon law. No continente europeu, três países integrantes do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte) encaixam-se na família do common law. A Escócia, apesar de integrar o Reino Unido, posta-se em uma linha intermediária entre a família romano-germânica e a família do common law4. Historicamente, a particularidade jurídica escocesa resulta da precoce autonomia conquistada e da relação próxima da Igreja presbiterial escocesa e o calvinismo da Europa ocidental. Por conta dessa proximidade, por cerca de um século, a formação de juristas escoceses ocorreu na França e, posteriormente, na Holanda, o que colaborou para a influência romanística no sistema jurídico escocês5. No continente americano, o ambiente é sortido. Na América do Norte, os EUA e o Canadá integram a família do common law, ressalvados, porém, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico6 e a Província canadense de Quebec. Na América Central, integram a família do common law Barbados7, Belize8, Bahamas9, República de Trindade e Tobago10 e outros países do Caribe (como as Ilhas Cayman11 e Antígua e Barbuda12). Na América do Sul, a Guiana adota um sistema misto, com elementos do common law e do civil law13. No caso dos EUA, por influência da colonização francesa e espanhola, o Estado de Luisiana e Porto Rico14 alinham-se à família do civil law. No Estado de Luisiana, seu código Civil (Lousiana Civil Code) remonta a 1808, lavrado pelo trabalho do jurista Louis Casimir Moreau-Lislet. Foi revisado em 1825 e sofreu algumas alterações, como as ocorridas em 1870, 1960 e 1992. Segue sendo o Código Civil atualmente em vigor15. A inspiração desse Código foi o Código Civil francês de 1804 (Código Napoleônico). Razões históricas justificam essa singularidade: o território correspondente ao atual Estado norte-americano de Luisiana pertenceu à França desde o final do Século XVII até 1803. O próprio nome de batismo dessa região (que alcançava uma extensão territorial maior do que a atual16) foi uma homenagem ao rei francês Luís XIV. Napoleão, premido por necessidade financeira e desinteressado em manter colônias em outro continente, vendeu o território para os EUA em 1803 em uma transação conhecida como Louisiana Purchase. A tradição jurídica francesa manteve-se forte especialmente na região sul do grande território adquirido, ou seja, na região atualmente correspondente ao Estado norte-americano de Luisiana. Isso justifica a vinculação do Estado norte-americano de Luisiana à família jurídica do civil law17. Em Porto Rico, foi editado um novo Código Civil em 2020 (Ley núm. 55 de 1 junio de 2020), o qual revogou o anterior (que remontava a 1930). Ambos mantêm inspiração no Código Civil espanhol conforme exposição de motivos do novo Código Civil de Porto Rico18. Antes do antigo Código Civil (o de 1930), vigorava o Código Civil de 1902, que se inspirara tanto no Código Civil francês de 1804 (O Código Civil napoleônico) quanto no Código Civil do Estado norte-americano de Luisiana. Em momento anterior, vigorava o Código Civil Espanhol por força da Real Orden de 31 de julio de 188919, código esse que - como se sabe - espelhou-se no Código Civil francês de 1804 (O Código Napoleônico). Apesar da tradição de Porto Rico ser a do civil law, houve influências do common law, especialmente após Porto Rico ter sido adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. No caso do Canadá, a Província de Quebec segue o sistema do civil law por influência francesa, ao menos no direito privado. De fato, Quebec é a única província canadense que possui um Código Civil, o qual é baseado no Código Civil francês20. O primeiro Código Civil na província de Quebec é de 1866 e era conhecido como o Código Civil do Baixo Canadá21 (Code civil du Bas-Canada), que costuma ser abreviado como CCBC. Ele foi revogado pelo atual Código Civil de Quebec, que é de 1994 e cuja sigla é CCQ. Esse novo Código manteve-se vinculado à tradição do civil law, com forte influência do direito francês. Razões históricas justificam esse alinhamento da Província canadense de Quebec à família romano-germânica. O Canadá foi originariamente colonizado pela França, com o envio das primeiras expedições em 1534 a mando do rei francês Francisco I. Quebec - então batizada de Nouvelle France - foi uma das primeiras colônias. Juridicamente, desde o século XVII, as colônias, além das ordenações régias (ordonnances), seguiam o Coutume de Paris22 e, no que este fosse omisso, o Direito Romano (na sistematização dos juristas franceses) e o Direito Canônico (nas disciplinas em que fosse cabível, como em família e sucessões)23. Apesar do posterior avanço britânico em detrimento da França no século XVIII, os colonos franceses conseguiram, por meio do The Quebec Act, de 1774, manter o direito de continuar regidos pelas leis francesas, salvo as penais (que seriam britânicas). O Coutume de Paris, portanto, seguiu a reger o direito privado em Quebec até 1866, ano em que foi promulgado o Código Civil do Baixo Canadá, inspirado tanto no Código francês de 1804 quanto no Código Civil de Luisiana24. Na Oceania, a Austrália25 e a Nova Zelândia vinculam-se à família do common law. Na Ásia, como nações vinculados à família do common law, citam-se Hong Kong26, Índia27, Paquistão28 e Bangladesh. No continente africano, citam-se, como nações vinculadas ao common law, Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Nigéria, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Gana, Libéria, Serra Leoa e Gâmbia. Em relação aos demais países sul-americanos, há os que seguem a família do civil law (sob a tradição napoleônica), outros que mesclam as famílias do civil law com a do common law e outros que perfilham um regime misto do civil law com o direito muçulmano. Seja como for, o fato é que os países africanos possuem modelos jurídicos que partem de três famílias: a do civil law, a do common law e a do direito muçulmano. Camile Astier (2012) disponibiliza este didático desenho mapeando os sistemas jurídicas africanos: Cabe uma ressalva acerca da África do Sul e de outros países africanos que se espelharam na África do Sul, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia, ou que sofreram múltiplas colonizações, como as Ilhas Maurício. Prevalece o entendimento de que, lá, vigora um regime misto de common law com civil law. De um lado, houve a influência do common law pelos britânicos. De outro lado, houve a influência do civil law pelos holandeses, sob uma versão holandesa conhecida como direito romano-holandês (Roman-Dutch law). O direito holandês, que é uma variante da família romano-germânica, vigorou na região da África do Sul, notadamente na atual localidade da Cidade do Cabo, tudo durante o período de colonização holandesa (séculos XVII e XVIII). Após a invasão dos Países Baixos pela França de Napoleão Bonaparte, o direito holandês deixou de ser um direito não codificado para seguir a tendência inaugurada pelo Código Civil francês de 1804: o Código Civil Holandês (Burgerlijk Wetboek ou BW) nasceu de 183829, com forte inspiração no Código Civil napoleônico. Além disso, o direito holandês absorveu tanto experiências do direito romano quanto do pensamento do common law inglês. Isso colaborou para que, na África do Sul, fosse formado um sistema jurídico que mescla a família do civil law com a do common law. A colonização britânica - ocorrida após de 1795 durante a quarta guerra Anglo-Holandesa (1780 a 1785) - também contribuiu para esse cenário. Sob domínio britânico, houve a interiorização territorial da África do Sul, com uma consequente difusão do regime jurídico misto30. O regime misto sul-africano espalhou-se para outros países africanos, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia31. As Ilhas Maurício, a seu turno, adotaram um regime jurídico que mescla o common law (fruto da colonização britânica) com o civil law das versões francesas (resultante da colonização francesa) e holandesa (derivada da colonização holandesa). _______________ 1 A Commonwealth é uma organização intergovernamental que reúne 54 países independentes (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). Com exceção de alguns países (como Moçambique e Ruanda), todos já integraram o Império Britânico. O site da Commonwealth é este: https://thecommonwealth.org/. 2 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 351-352. 3 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 572. 4 Há juristas que enquadram a Escócia na família romano-germânica (Guido Fernando Silva Soares, 1997), ou como um regime híbrido (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). 5 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 573. 6 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 7 Para uma visão do sistema jurídico de Barbados, recomendamos acesso a estes dois sites: https://www.barbadoslawcourts.gov.bb/ e https://guides.law.fsu.edu/caribbean/barbados. 8 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 9 LEX BAHAMAS. Overview of the Bahamian Legal System. Publicado em 28 de janeiro de 2009 (Disponível em: http://www.lexbahamas.com/overview_of_the_bahamian_legal_s.htm#:~:text=The%20Bahamian%20legal%20system%20is,are%20enshrined%20in%20the%20Constitution. Acesso em 30 de março de 2022). 10 FITZWILLIAMSTONE. Trinidad and Tobago Government, Legal System and Economy. Disponível em: http://fitzwilliamstone.com/legal-insight/trinidad-and-tobago-government-legal-system-and-economy/#:~:text=The%20law%20of%20Trinidad%20and,Commonwealth%20States%20mainly%20Canada)%20statutes. Acesso em 24 de março de 2022. 11 CAYMAN ISLANDS JUDICIAL ADMINISTRATION. Laws of the Cayman Islands. Disponível: https://www.judicial.ky/laws#:~:text=The%20Cayman%20Islands'%20legal%20system,assented%20to%20by%20the%20Governor. Acesso em 30 de março de 2022. 12 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 13 ADAMS, Errol A. Guyana Law and Legal Research. Publicado em maio/junho de 2020 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Guyana.html. Acesso em 24 de março de 2022). 14 Porto Rico é um Estado Livre Associado vinculado aos EUA. Não é um país independente. Historicamente, Porto Rico foi adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. Em 1952, Porto Rico tornou-se "Estado Livre Associado" aos EUA, um status jurídico que não frui das mesmas prerrogativas dos 50 Estados norte-americanos. É que o estabelece o preâmbulo da Constituição de Porto Rico, de 1952 (Porto Rico, Constitucion del Estado Libre Asociado de Puerto Rico. Disponível em: https://www2.pr.gov/sobrepuertorico/documents/elaconstitucion.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021). 15 O governo local disponibiliza o texto do Lousiana Civil Code neste site: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent (LOUSIANA. Civil Code. Disponível em: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent. Acesso em 24 de março de 2022). 16 A colônia francesa de Luisiana, à época, ocupava uma área que abrange não apenas o atual Estado norte-americano de Luisiana, mas também outros 14 Estados norte-americanos bem como 2 Províncias canadenses (Facchini Neto, 2013, p. 81). 17 Ut FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp 81-82. 18 PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 19 Esse ato normativo espanhol havia estendido a vigência do Código Civil espanhol para Porto Rico, Cuba e Filipinas (PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 20 Government of Canada, 2022. Além disso, o governo canadense disponibiliza informações jurídicas gratuitamente neste site: https://www.justice.gc.ca/eng/csj-sjc/just/03.html. O atual Código Civil de Quebec está disponível neste site: https://www.legisquebec.gouv.qc.ca/fr/document/lc/ccq-1991. 21 Baixo Canadá ou Canadá Inferior era o antigo nome de Quebec 22 ZOLTVANY, Yves F. Esquisse de la Coutume de Paris. In: Revue d'histoire de l'Amérique française, volume 25, numéro 3, décembre 1971, pp. 365-384; FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 82. 23 FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp. 82-83. 24 A inspiração no Código Napoleônico e no Código Civil de Lusiana foi determinada expressamente pela lei de 1857 que determinou a elaboração de um Código Civil destinado a substituir o Coutume de Paris na Província de Quebec (FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 83). 25 A título de curiosidade, o Estado Australiano da Tasmânia disponibiliza informações jurídicas gratuitas neste site oficial: https://www.hobartlegal.org.au/handbook/the-justice-system/the-law/. 26 Hong Kong é, na verdade, um território autônomo da China. Adota um sistema jurídico baseado na common law, embora seja complementado por leis (como, de resto, tem ocorrido nos diversos países da família do common law). Apesar de integrar a China, mantém um sistema jurídico diferente, tudo dentro do princípio "um país, dois sistemas" (one country, two systems) (HONG KONG. Hong Kong: the facts legal system. Disponível em: https://www.gov.hk/en/about/abouthk/factsheets/docs/legal_system.pdf. Acesso em 24 de março de 2022). O governo de Hong Kong disponibiliza acesso à legislação e a informações jurídicas neste site: https://www.elegislation.gov.hk/. 27 Ut NAGAR, Raghav. What is common law? Does it apply in India? Disponível em: https://blog.ipleaders.in/common-law-apply-india/. Acesso em 24 de março de 2022 (Publicado em 23 de abril de 2015).   28 O sistema jurídico paquistanês integra a família do common law, fruto da inspiração da Índia britânica. O Paquistão é uma República Islâmica, conforme sua Constituição de 1973, razão por que não se pode ignorar a influência do direito muçulmano (LAU, Martin. Introduction to the Pakistani Legal System, with special reference to the Law of Contract. In: Yearbook of Islamic and Middle Eastern Law, vol. 1, 1994, pp. 3-28). 29 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicados progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês. 30 Ut Zimmermann, Reinhard. Direito Romano e cultura europeia (Tradução e Notas: Otávio Luiz Rodrigues Junior e Marcela Paes de Andrade Lopes de Oliveira). In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, ano 3, vol. 7, abr./jun. 2016, pp. 243-278; ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); Rodrigues Junior, Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos. Publicado em 9 de abril de 2014 (Disponível em:https://www.conjur.com.br/2014-abr-16/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022); Rodrigues Junior, Otávio Luiz. Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos II. Publicado em 16 de      abril de 2014 (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-09/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-reino-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022; 31 ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); LAC. Common Law (Law in Namibia, Factsheet Series, nº 4 of 6). Disponível em: https://www.lac.org.na/projects/grap/Pdf/Law_4-Common_Law.pdf. Acesso em 24 de março de 2022; DUBE, Brian. Roman-Dutch and English common law: the indespansable law in Zimbabwe. In: Afro Asian Journal of Social Sciences, volume V, nº 4, Quarter IV, 2014 (Disponível em: http://www.onlineresearchjournals.com/aajoss/art/164.pdf. Acesso em 25 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo. The Law and Legal Research in Lesotho. Publicado em fevereiro de 2008 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Lesotho.html. Acesso em 24 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo; MAGAGULA, Alfred. The Law and Legal Research in Swaziland. Publicado em outubro de 2007 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Swaziland.html#:~:text=Swaziland%20also%20applies%20the%20common,but%20excludes%20Swazi%20customary%20law. Acesso em 24 de março de 2022).
Para pesquisas de Direito Comparado Privado, é importante ter noções gerais sobre as principais famílias jurídicas. Trataremos hoje do direito islâmico para facilitar investigações de direito comparado, especialmente no âmbito do direito privado. Na mesma linha do que sucede com direitos de origem religiosa (divina), a família do direito muçulmano é marcada por uma maior valorização do conteúdo das regras do que por um foco no procedimento. Não que o procedimento seja desprezado. O que sucede é que o direito muçulmano parte da lógica de que o direito já é dado pela divindade e, portanto, não precisa ser definido por meio de procedimentos. O direito religioso dá forte atenção para a substância (o conteúdo normativo), e não para o procedimento. Há uma sacralidade no conteúdo normativo. O direito religioso é um direito mais substantivo e menos procedimental, ao contrário da concepção de direito dos países ocidentais (em que o mais importante é que as normas tenham sido fruto de um procedimento previamente estabelecido). Nessa linha, o legislador por excelência, além de Deus, são os sábios religiosos, e não uma instituição legisladora que cria o direito por meio de procedimentos democráticos (como um Parlamento)1. Uma das consequências é que o direito religioso é mais difícil de mudar: não é fácil justificar a mudança de uma regra estabelecida por Deus. Similar raciocínio vale para outros direitos religiosos, como o direito talmúdico, o direito hindu2 e o direito canônico3. Potencialmente, o direito muçulmano não tem limitação geográfica. Não é o direito de um país. Ele pretende ser aplicável em todo lugar onde houver uma sociedade muçulmana. Daí decorre que cada Estado tem uma postura diante do direito islâmico. Em Estados muçulmanos4, o direito islâmico pode ser adotado como oficial. Isso ocorre de modo diverso entre as nações que atualmente admitem a aplicação da Lei Sharia. Em alguns, o direito islâmico é uma entre outras fontes estatais. Em outros - de modo mais raro (como a Arábia Saudita5) -, todo o direito é islâmico: não haveria, em princípio, legislação, pois o direito islâmico é aplicado diretamente para todas as questões. Nos Estados não muçulmanos, o Poder Público poderá ter de lidar com problemas decorrentes de um ordenamento jurídico paralelo vigente de fato, cultivado por minorias muçulmanas em seu território6. Também pode haver, em contratos ou em arbitragem, a escolha do direito islâmico para disciplinar a relação jurídica. De um modo geral, o direito islâmico possui maior incidência sobre o estatuto pessoal, ou seja, sobre regras que disciplinam pessoas, direito de família e direito das sucessões. Em matéria contratual e em de direito das coisas7, apesar de se poder falar em aplicação do direito muçulmano, há uma tendência de ocidentalização jurídica, com incorporação de regras próprias das famílias do civil law ou do common law. Tal justifica-se especialmente em razão do fato de o comércio internacional pressupor certo grau de harmonização jurídica. Além disso, o direito muçulmano preocupa-se, sobretudo, com a pessoa em si, ou seja, com o modo de viver de cada indivíduo8. Além disso, em alguns países muçulmanos, há uma tendência de codificação do direito islâmico. Como vantagem desses trabalhos de codificação, a compreensão das regras jurídicas torna-se mais fácil. O aplicador do direito terá ganhos de sistematicidade. Reduzir-se-á o caos assistemático causado pela profusão de obras e textos (por vezes, confusos), escritos em idioma árabe (que nem sempre é o idioma do Estado). Há, porém, resistência a esses trabalhos de codificação ou de consolidação, pois a racionalização própria desses trabalhos entra em conflito com os tradicionalistas muçulmanos por lhes subtrair o seu poder normativo. Nesse contexto, houve trabalhos de codificação que permaneceram privados, apesar de seu reconhecido valor jurídico, a exemplo dos códigos de estatuto pessoal elaborados no Egito por Mohammed Pacha, na Tunísia por D. Santillana e na Argélia por M. Morand9. Na Arábia Saudita, em 2010, o governo anunciou a pretensão de codificar a Sharia. Em 2018, o Estado publicou um manual de princípios e preceitos legais10. O direito muçulmano corresponde à aplicação da Sharia11 (Châr'ia, Charia ou Xaria12), a qual pode ser vista como o conjunto de leis islâmicas. Não se trata de um código ou de uma lei, e sim do conjunto de normas. Essencialmente, o direito muçulmano (a lei Sharia) consiste essencialmente na aplicação do Alcorão (Corão, al-Qur-ãn ou Qorân) e nas fontes jurídicas dele decorrentes. Em suma, estas são as fontes do direito muçulmano: o Alcorão, a Suna (ou Sunna), o Idjmâ' (ou Ijmâ') e o Qiyâs13. O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. Contém as revelações de Alá a Maomé, o último e o principal dos profetas para os muçulamanos. É a primeira e a mais importante fonte do direito muçulmano. Como o Alcorão não dispõe sobre todas as questões sociais, ele é insuficiente enquanto fonte jurídico, razão por que o direito muçulmano socorre-se de outras fontes. A Suna é a segunda fonte do direito muçulmano. Corresponde ao modo como Maomé vivia. Contém os atos, os comportamentos e os pensamentos de Maomé, ou seja, o h'adith. Diante da insuficiência de o Alcorão e a Suna fornecerem respostas jurídicas a todas as relações sociais, o direito muçulmano vale-se de uma terceira fonte: o Idjmâ'. Trata-se de um acordo unânime entre os doutos sábios religiosos. Trata-se de um dogma acerca da infalibilidade das deliberações unânimes dos sábios integrantes da comunidade muçulmana. Não se trata de costume nem de uma busca da unamidade popular. Cuida-se, sim, de uma unanimidade apenas entre aqueles os jurisconsultos do islã (fuqahâ), os quais são considerados como os herdeiros dos profetas. Nesse ponto, há, porém, divergências no meio jurídico muçulmano: há diferentes vias (madh'hab), as quais são também chamadas de "ritos" ou de escolas. Essas escolas são as responsáveis por formar a jurisprudência islâmica (fiqh). Há quatro principais escolas (madh'hab, ritos ou correntes): (1) a escola Hanafi ou o hanafismo; (2) a escola chafeíta ou o chafeísmo (ou xafeísmo); (3) a escola malequita ou o maliquismo; (4) a escola hanbalita ou hanbali14. Os nomes dessas escolas vinculam-se a um jurista muçulmano que deu origem à linha interpretativa15. Assim, quando um país adota a Lei Sharia (o direito muçulmano), é preciso indicar a escola (madh'hab) que será aplicada. A escola Hanafi é a mais antiga e a mais difundida, especialmente por ter sido espalhada ao longo dos vastos territórios do Império Otomano, do Império Mongol e do Califado Abássida. É a que mais adeptos têm no mundo, da ala dos muçulmanos sunitas. É mais liberal do que as demais. A escola malequita prepondera na África subsaariana e na África Ocidental. A escola chafeíta vige na Malásia, na Indonésia e na costa oriental da África. A escola hanbalita hospeda-se na Arábia. A quarta fonte do direito muçulmano é o Qiyâs, que é fruto de um raciocínio por analogia. É uma fonte útil para oferecer respostas jurídicas a situações novas que não foram contempladas nas demais fontes. Como o jurista muçulmano parte da lógica de respeito à autoridade, não lhe é própria a ideia de criar novas regras, ao contrário do que se dá com o jurista do civil law ou do common law. O jurista muçulmano apenas extrai regras que estariam implícitas nas fontes do direito islâmico. O Qiyâs é resultado dessa lógica do jurista muçulmano em prestigiar a autoridade divina. __________ 1 É o que destaca Salem Nasser em didática palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 2 David, 2014, pp. 545-582. 3 Sobre o direito talmúdico (direito hebráico), ver: Campos Neto, Antonio Augusto Machado de. O Judaísmo. O direito talmúdico. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, jan./dez. 2008, pp. 27-67 (Disponível aqui); NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 4 ABC Internacional, 2021. 5 Embora haja quem sustente que o Irã se encaixaria nesse perfil, Salem Nasser dissente (NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 6 Sobre esse assunto, tivemos a oportunidade de trarar de um problema enfrentado por um tribunal inglês diante de um casamento islâmico (nikah) ocorrido dentro da Inglaterra. Na ocasião, o tribunal inglês considerou que o nikah era nulo por não observar a legislação britânica sobre casamento; todavia, apesar disso, foram reconhecidos efeitos patrimoniais em favor do casal (Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. Casamento religioso no Brasil: rápido comparativo com experiência da Inglaterra com os casamentos islâmicos ("nikah"). Disponível aqui. Data da publicação: 2018). 7 A propósito, Richard A. Debs esmiuça o regime de direito de propriedade no Egito, sob a perspectiva do direito muçulmano (DEBS, Richard A. Islamic law and Civil Code: the law of property in Egypt. New York/USA: Columbia Univeristy Press, 2010). 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 534-538; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350. 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 536-537. 10 NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 11 "Etimologicamente, "charia" é uma palavra árabe que significa "avenida", "abertura" ou "caminho". O professor Wael Hallaq da Universidade Colúmbia explica que a charia "era tanto uma forma de viver e ver o mundo quanto um corpo de crenças" (Unesco, 2017). 12 LOURO, A. Tavares; COSTA, José Mário. Sharia. Publicado em 23 de julho 2004 (Disponível aqui. Acesso em 5 de abril de 2022). 13 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp 524; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350; GÓMEZ, Rebeca Vázquez. Aproximación al derecho islâmico y su regulación del velo. In: Ius Canonicum, XLVII, nº 94, 2007, pp. 591-615; ASCANIO, Lorenzo; CASTELLARI, Massimiliano. El jurista colombiano y el derecho islámico y de los países musulmanes. Nuevas fronteras de la comparación jurídica. In: Revista Misió Jurídica, vol. 4, n. 4, Diciembre de 2011, pp. 85-105; LAGE, Leonardo Almeida. Transconstitucionalismo, direito islâmico e liberdade religiosa. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Professor Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves. Data: agosto de 2016 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022); CARMONA GONZÁLEZ, Alfonso. Ley islâmica y Derecho positivo. In: Anales de Historia Contemporanea, nº 13, 1997, pp. 25-32. 14 Sobre o direito islâmico, ver: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014; LIPOVETSKY SILVA, Nathália. Breve estudo sobre o sistema jurídico islâmico. In: Revistado CAAP, Belo Horizonte, jul-dez-2009, pp. 49-73 (Disponível aqui). 15 Por exemplo, a escola Hanafi reporta-se ao jurista iraquiano Abu Hanifa Na-nu'man Ibn Thabit, do século VII. A escola Hanbali refere-se ao jurista Amade Ibne Maomé Ibne Hambal, do século IX.
Em coluna anterior, em relação ao Direito Espanhol, apontamos a importância dos precedentes da antiga DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN), atualmente designada Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Hoje trataremos de caso interessante envolvendo a obrigatoriedade de consentimento de cônjuge para negócios envolvendo direitos reais à luz do direito espanhol.   Antes, lembramos que, no Brasil, essa exigência é feita para a hipótese de o cônjuge "alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis", salvo regime da separação convencional de bens ou regime da participação final nos aquestos com previsão no pacto (arts. 1.647 e 1.656, Código Civil brasileiro). Vamos, porém, ao direito espanhol. A pauta é o seguinte julgado: Resolución de 13 de junio de 2018, de la Dirección General de los Registros y del Notariado (DGRN)1. Nele, discute-se se é ou não necessário consentimento do cônjuge para a constituição de uma servidão de passagem permanente sobre um terraço de um imóvel. O oficial de registro de imóveis (registrador de la propriedade) da cidade espanhola de San Cristóbal de la Laguna qualificou negativamente o título. O título era uma escritura pública lavrada pelo notário dessa cidade espanhola, constituindo uma servidão de passagem permanente (servidumbre de paso permanente) sobre um terraço de um imóvel. Irresignado, o notário da cidade de San Cristóbal de la Laguna interpôs recurso administrativo para a DGRN. A discussão foi em torno do artigo 1320 do Código Civil espanhol, que exige a autorização conjugal para a alienação da moradia habitual e dos móveis de uso ordinário da família. Confira-se o referido preceito: Artículo 1320 Para disponer de los derechos sobre la vivienda habitual y los muebles de uso ordinario de la familia, aunque tales derechos pertenezcan a uno solo de los cónyuges, se requerirá el consentimiento de ambos o, en su caso, autorización judicial. La manifestación errónea o falsa del disponente sobre el carácter de la vivienda no perjudicará al adquirente de buena fe. A DGRN entendeu que esse dispositivo refere-se apenas aos casos de alienação envolvendo o lar comum (vivienda familiar habitual) do casal, à vista do artigo 70 e do artigo 1406.4º do Código Civil espanhol, os quais referem-se ao domicílio conjugal que é fixado pelo casal. Veja os retrocitados dispositivos: Artículo 70 Los cónyuges fijarán de común acuerdo el domicilio conyugal y, en caso de discrepancia, resolverá el Juez, teniendo en cuenta el interés de la familia. Artículo 1406 Cada cónyuge tendrá derecho a que se incluyan con preferencia en su haber, hasta donde éste alcance: 1.° Los bienes de uso personal no incluidos en el número 7 del artículo 1.346. 2.° La explotación económica que gestione efectivamente. 3.° El local donde hubiese venido ejerciendo su profesión. 4.° En caso de muerte del otro cónyuge, la vivienda donde tuviese la residencia habitual. Segundo a DGRN, o casal costuma fixar um lar comum, fruto de comunhão de vida (comunidad de vida) associada a uma comunhão de lar (comunidad de lar). É a regra geral. Trata-se do local de residência familiar. É o local onde se vive a maior parte do ano. E, ainda que haja mais de um imóvel com esse requisito, não se considera, para tal efeito, a segunda residência da família utilizada para recreio ou férias. Se houver, porém, justo motivo (ex.: razões profissionais), cada consorte pode ter lar diferente (comunidad de vida sem comunidad de vivenda). A lei protege o lar comum (vivenda familiar habitual). Uma das proteções é o artigo 1.320 do Código Civil espanhol, que exige o consentimento do cônjuge para a disposição do imóvel que serve ao lar comum ou dos móveis de uso ordinário da família, ainda que esses bens sejam de propriedade exclusiva de apenas um dos consortes. Essa exigência de outorga conjugal é apenas se o casal tem um lar comum, fruto de uma coabitação (comunidad de vivienda). A razão de ser da norma é conceder mecanismos de controle para evitar arbitrariedades individuais do outro cônjuge, conforme realçou o Tribunal Supremo de España2. Para a DGRN, não se aplica a exigência de anuência conjugal se cada cônjuge tiver um lar próprio, fruto de uma hipótese em que o casal mantém uma comunhão de vida sem uma coabitação (comunidad de vida sem comunidade de vivenda), o que pode ocorrer de modo excepcional. O objetivo do art. 1.320 do Código Civil espanhol é proteger o lar comum (vivienda familiar habitual). Cabe a cada disponente declarar ao terceiro se o lar é ou não comum para tal efeito. Mentiras dele não prejudicará terceiros de boa-fé, conforme previsão expressa do art. 1.320 do Código Civil espanhol. É irrelevante se os filhos se opuserem: a exigência legal é de anuência conjugal, e não filial. Não importa sequer o regime de bens (regímen económico matrimonial de bienes): em qualquer deles, aplica-se o art. 1.320 do Código Civil espanhol. A regra do art. 1.320 do Código Civil espanhol é reproduzida, com algumas variações, nos direitos civis forais de algumas comunidades autônomas da Espanha, como no art. 231-9 do Código Civil da Cataluña e no art. 190 do Código del Derecho Foral de Aragón. Não se trata, portanto, de uma regra específica do direito civil comum espanhol. Cabe um aparte para esclarecimento sobre a situação do direito civil espanhol. Não há uma legislação civil única para toda a Espanha. Há, de um lado, o chamado derecho civil común, que é representado pelo Código Civil espanhol e pela legislação extravagante. E há, de outro lado, o derecho civil foral de algumas comunidades autônomas espanholas (regiões político-administrativa que reúnem diversas cidades), especificamente de Aragón, Cataluña, Baleares, Galicia, Navarra e País Vasco. Também se pode falar, ainda que parcialmente, em direito foral na Comunidad Valenciana apenas para regime de bens do casamento (régimen económico del matrimonio) para casamentos em determinado período3. Há ainda direito foral no chamado Fuero de Baylión, que é uma região dentro da comunidade autônoma de Extremadura e que abrange alguns povos limítrofes com Portugal. Neste mapa abaixo, pode-se ver, em cor verde, os locais em que vigora o direito foral da respectiva comunidade autônoma, e não o direito comum espanhol. Em verde claro, estão as comunidades em que esse direito foral é parcial (Comunidad Valenciana e Extremadura)4: A exigência de outorga conjugal prevista no artigo 1.320 do Código Civil espanhol precisa ser fiscalizada pelo registrador na sua qualificação registral, conforme art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. A obrigatoriedade da autorização conjugal no Código Civil espanhol abrange não apenas atos de natureza real, mas também pessoal. Por exemplo, para renunciar a locação (arrendamento) ou a sua renovação em relação à moradia (vivienda familiar), é necessário também o consentimento do outro consorte. Trata-se de um ato de "disposição" para efeito do art. 1.320 do Código Civil espanhol e do art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. Sob essa ótica, o art. 1.320 do Código Civil espanhol abrange também constituição de um direito real de servidão de passagem, como é o caso em pauta. No caso concreto, porém, a servidão recai sobre uma área externa à moradia familiar: o terraço, ao qual o aceso dá-se de forma independente, a partir da rua. Não atinge, pois, a morada familiar por se tratar de área externa. Além disso, não haverá uso exclusivo do terraço: os proprietários do prédio serviente também poderão utilizá-lo. Por esse motivo, não há necessidade de consentimento conjugal para a instituição de direito real de servidão de passagem sobre o terraço nesse caso concreto, tendo em vista uma interpretação teleológica do art. 1.320 do Código Civil espanhol. Esse dispositivo só se refere a atos de disposição relacionados à moradia familiar (vivenda familiar habitual). __________ 1 Disponível aqui. 2 Sentencia del Tribunal Supremo de 8 de octubre de 2010: SSTS de 3 de enero de 1990 y 31 de diciembre de 1994, citado no julgamento em pauta da DGRN. 3 Na Comunidad Valenciana (ou País Valenciano), foi editada lei específica para disciplinar regime de bens. Ela, porém, foi declarada inconstitucional pela Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha (STC) de 28 de abril de 2016. Em consequência, casamentos celebrados entre 30 de junho de 2007 e 21 de dezembro de 2007 bem como entre 1º de julho de 2008 e 31 de maio de 2016, terão o regime da separação de bens (régimen econômico matrimonial de separación de bienes) como o regime subsidiário (régimen econômico matrimonial supletório). 4 Disponível aqui.
Neste artigo, cuidaremos de duas questões de Direito Comparado relevantes. A primeira é apresentar uma das principais instâncias da Espanha que decidem questões de direito privado no âmbito dos cartórios extrajudiciais. A segunda é comparar o direito espanhol com o brasileiro diante de uma hipoteca destinada a garantir um valor máximo (envolvendo, por consequência, condições suspensivas). Precedentes da DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN) Na Espanha, diversas questões de direito civil interessantíssimas frequentam os serviços notariais e registrais e são resolvidas pela Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Esse órgão, entre 1909 e 2020, era chamado de Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN1. Tendo em vista que a nomenclatura antiga (DGRN) é ainda a mais famosa e considerando que os principais julgados são anteriores à mudança de nomenclatura, manteremos a utilização do nome antigo. Trata-se de um órgão do Ministério da Justiça da Espanha. Sua atribuição é, essencialmente, gerir assuntos relacionados ao direito notarial e registral. Sua origem histórica foi a Lei Hipotecária de 1861. Uma de suas principais atuações é julgar os procedimentos provocados por recusas dos registradores a registrar títulos (procedimentos que, no Brasil, se assemelham ao procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos brasileira2). Comparando com o Brasil, a DGRN espanhola exerce um papel próximo das Corregedoria-Gerais de Justiça dos Tribunais estaduais ou do Conselho Nacional de Justiça. Historicamente, a DGRN sempre foi muito prestigiada na comunidade jurídica espanhola pela excelência técnica dos seus julgados e pela notável qualificação técnica dos seus julgadores. Há, porém, críticas ao prestígio atual da DGRN, como dá notícia a matéria intitulada Auge y caída de La Dirección General de los Registros y del Notariado, publicado na Revista Notario del Siglo XXI, em cuja capa foi estampada com o título Auge y caída de la Dirección General de los Registros y del Notariado3. Na referida matéria, são indicados os seguintes motivos para a alegada perda do prestígio da DGRN: (1) desmantelamento do corpo de letrados; (2) composição de membros que não ostentam independência intelectual nem imparcialidade; e (3) mudança para passar a admitir recurso judicial, o que teria gerado insegurança jurídica. O caso da hipoteca sob condição suspensiva Um interessante precedente do DGRN é a Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado4. O caso envolvia uma escritura pública lavrada por notário da cidade de Barcelona por meio da qual a sociedade CCP La Granada Logistics, S.L instituía uma hipoteca de máximo em favor de Hype Real State International, Sucursal Espanha. A Hype State disponibilizou à La Granada5um crédito mercantil máximo de ? 18.500.000,00 (dezoito milhões e quinhentos mil euros), o qual seria liberado por etapas sujeitas a condições suspensivas. Em contrapartida, a sociedade empresária devedora hipotecou o imóvel para garantir até 120% do valor acima, observadas as etapas de liberação do crédito e as pertinentes condições suspensivas. O valor garantido aumenta conforme se implementam as condições suspensivas. O Ofício de Registro de Imóveis (no caso, o Registro de La Propriedad de Vilafranca del Penedés) qualificou negativamente a escritura. Negou registrá-la, entre outros pelo seguinte motivo: o ordenamento não admitiria hipoteca sujeita a condição suspensiva. Em razão da impugnação pelo interessado contra essa negativa do registrador, o caso chegou à DGRN por meio do recurso administrativo6 do art. 19 bis da Lei Hipotecária espanhola7. No relevante, a DGRN contrariou o registrador e admitiu a hipoteca sob condição suspensiva no caso concreto. Apesar de se tratar de discussão acerca de um direito real típico (a hipoteca), o precedente em pauta discute até que ponto a vontade pode modelar esse direito mediante condição suspensiva. No caso, a DGRN realçou que o regime de numerus apertus foi adotado na Espanha, mas ressalvou que a mera vontade não é suficiente à criação de novos direitos reais. É preciso observar outros requisitos. Confira-se este excerto da Resolución em pauta8: Indubitavelmente, no nosso ordenamento, o proprietário pode dispor de seus bens e, assim, constituir gravares sobre eles, sem mais restrições que não as estabelecidas em lei (artigo 348 do Código Civil espanhol). Não somente se permite a constituição de novas figuras de direitos reais não especificamente previstas pelo legislador (cfr. artigos 2.2º da Ley Hipotecaria e 7º do Reglamento HIpotecario), mas também se permitem a a alteração do conteúdo típico dos diretos reais legalmente previstos e, em concreto (cfr. Artigos 647 do Código Civil espanhol e 11, 23 e 37 da Ley Hipotecaria), a sujeição desses direitos a condição, termo e encargo. Porém, é certo também que essa liberalidade tem de ajustar-se a determinados limites e respeitar as normas estruturas (imperativas) do estatuto jurídico dos bens, dado seu significado econômico-político e a transcendência erga omnes dos direitos reais, de modo que a autonomia da vontade deve ser temperada com a satisfação de determinadas exigências, tais como a existência de uma justificativa suficiente, a determinação precisa dos contornos do direito real, a inviolabilidade do princípio da liberdade de tráfego etc. (cfr. Resoluciones de 5 de junio; 23 e 26 de octubre; 4 de marzo de 1993). Esses limites alcançam especial significado em relação à hipoteca, pois são impostos em defesa do credor e para facilitar o tráfego jurídico imobiliário, o crédito imobiliário e, em última instância, a ordem pública econômica. Como se vê, no julgado acima, a DGRN invocou a tipologia de numerus apertus da Espanha para justificar a imposição de uma condição suspensiva para o direito real típico de hipoteca. Breves reflexões ao Brasil No Brasil, indaga-se: a sujeição da hipoteca a uma condição suspensiva na forma acima seria admitida? Entendemos que sim. Isso, porque nada impede que a hipoteca seja instituída indicando o valor máximo da dívida garantida, conforme art. 1.424, I, do Código Civil brasileiro. Não há necessidade de recorrer a discussões de tipicidade de direitos reais, pois o ordenamento jurídico brasileiro é textual em admitir hipoteca para garantir dívidas futuras até um valor máximo. Aliás, a plasticidade dos direitos reais já é suficiente para acomodar diversas situações concretas, sem necessidade de se pensar em criação de novos direitos reais. Logo, no Brasil, em que prevalece o entendimento de que os direitos reais são sujeitos a numerus clausus, a situação concreta analisada na Espanha seria perfeitamente admitida. __________ 1 Por curiosidade, na Colômbia, atribuição similar cabe à Superintendencia de Notariado & Registro - SNR, cujo site oficial é este. Um exemplo de decisão desse órgão colombiano é Resolución número 021 (marzo 09 de 2022), da SNR. 2 Lei 6.015/1973. 3 El notário, 2012, disponível aqui. 4 Iberley, 2005, disponível aqui. 5 E a outras empresas do mesmo grupo econômico da La Granada. 6 Esse recurso administrativo aproxima-se, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei 6.015/1973. 7 Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria (BOE, 1946). 8 Tradução livre de excerto da Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado (Iberley, 2005).
Na coluna anterior, tratamos de experiências de harmonização da União Europeia, ilustrando com o direito sucessória. Trataremos agora do ambiente normativo de direito processual e de direito material da União Europeia. 1. Interrelação dos sistemas judiciais dos Estados membros A União Europeia focou bastante um aspecto procedimental essencial para a operacionalização: as medidas necessárias à cooperação judiciária e à execução de decisões judiciais estrangeiras. Pouco proveito haveria em uma harmonização de direito material se, na prática, os cidadãos não conseguissem concretizar seus direitos por obstáculos à eficácia extraterritorial das decisões judiciais. Nesse sentido, a União Europeia, no Conselho de Tampere (reunião do Conselho Europeu ocorrida na cidade finlandesa de Tampere em 15 e 16 de outubro de 1999), aprovou o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais. Esse princípio estabelece que os Estados membros devem eliminar, ao máximo, exigências adicionais à eficácia, em seus territórios, de decisões judiciais uns dos outros. Devem-se abolir os procedimentos intermédios para o reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras. Os Estados membros devem reconhecer as decisões judiciais uns dos outros. Trata-se de uma pedra angular para a efetiva criação de um espaço de justiça dentro da União Europeia. O Conselho de Tampere, ainda, recomenda a adoção de regras processuais comuns em processos transfonteiriços (aqueles que envolvem a jurisdição de mais de um Estado membro). São esclarecedores estes excertos das conclusões do Conselho de Tampere1: 5. A liberdade apenas pode ser disfrutada num verdadeiro espac¸o de justic¸a, onde as pessoas possam recorrer aos tribunais e a`s autoridades de qualquer Estado- Membro ta~o facilmente como o fariam no seu pro'prio pai's. Os criminosos na~o devem ter a possibilidade de tirar partido das diferenc¸as entre os sistemas judicia'rios dos Estados-Membros. As sentenc¸as e deciso~es devem ser respeitadas e aplicadas em toda a Unia~o, salvaguardando simultaneamente a seguranc¸a juri'dica de base tanto dos indivi'duos como dos operadores econo'micos. E' necessa'rio alcanc¸ar um grau mais elevado de compatibilidade e de converge^ncia entre os sistemas juri'dicos dos Estados-Membros.  (...) B. UM VERDADEIRO ESPAC¸O EUROPEU DE JUSTIC¸A  28. Num verdadeiro espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os e as empresas na~o devera~o ser impedidos ou desencorajados de exercerem os seus direitos por razo~es de incompatibilidade ou complexidade dos sistemas juri'dicos e administrativos dos Estados-Membros.  (...) VI. Reconhecimento mu'tuo das deciso~es judiciais  33. Um maior reconhecimento mu'tuo das sentenc¸as e deciso~es judiciais e a necessa'ria aproximac¸a~o da legislac¸a~o facilitariam a cooperac¸a~o entre as autoridades e a protecc¸a~o judicial dos direitos individuais. Por conseguinte, o Conselho Europeu subscreve o princi'pio do reconhecimento mu'tuo que, na sua opinia~o, se deve tornar a pedra angular da cooperac¸a~o judicia'ria na Unia~o, tanto em mate'ria civil como penal. Este princi'pio devera' aplicar-se a`s sentenc¸as e outras deciso~es das autoridades judiciais.  34. Em mate'ria civil, o Conselho Europeu exorta a Comissa~o a apresentar uma proposta tendo em vista uma maior reduc¸a~o dos tra^mites intermedia'rios que ainda sa~o necessa'rios para o reconhecimento e execuc¸a~o de uma decisa~o ou sentenc¸a no Estado requerido. Como primeiro passo, estes procedimentos interme'dios devera~o ser abolidos no caso das pequenas acc¸o~es do foro comercial ou de consumidores e para certas sentenc¸as no domi'nio do direito da fami'lia (p. ex., em mate'ria de penso~es de alimentos e direitos de visita). Essas deciso~es seriam automaticamente reconhecidas em toda a Unia~o sem quaisquer procedimentos intermedia'rios ou motivos de recusa de execuc¸a~o. Tal passo poderia ser acompanhado da fixac¸a~o de normas mi'nimas sobre aspectos especi'ficos do processo civil.  Em decorrência dessa diretriz de Tampere, a União Europeia avançou na edição de normas para facilitar a cooperação judiciária e viabilizar a execução de decisões judiciais estrangeiras. São os casos, por exemplo, destes Regulamentos: a) Regulamento Europeu nº 1348/2000: lida com citações e intimações2. b) Regulamento Europeu nº 4/2009: versa sobre alimentos. c) Regulamento Europeu nº 2201/20033: trata de decisões em matéria de Direito de Família (divórcio, guarda, tutela, curatela etc.) e guarda sintonia com a Convenção de Haia de 25 de outubro de 19804. d) Regulamento Europeu nº 1215/2012: cuida de decisões em matéria civil e comercial5. e) Regulamento Europeu nº 650/2012 (Regulamento das Sucessões): trata, entre outras questões6, de decisões judiciais estrangeiras em matéria de direito sucessório7. f) Regulamento Europeu nº 606/2013: versa sobre o reconhecimento mútuo de medidas protetivas em matéria civil, assim entendidas as decisões destinadas à proteção de pessoas sob ameaça de dano à sua integridade física ou psicológica8. 2. Normas de direito material para harmonização na União Europeia Os movimentos de uniformização do direito privado europeu sempre envolveram a ideia de criação de um Código Civil Comum a toda a Europa. Símbolo dessa tendência são as manifestações do Parlamento Europeu em 19899 e em 199410. Elas recomendavam a criação de um código europeu comum de direito privado com oitiva dos Estados membros. Elas também estimavam os esforços para promover "a harmonização e a unificação no plano mundial ou europeu", com interação com organizações como a Unidroit, a Unicitral e o Conselho da Europa. Ilustra essa mesma linha a manifestação do Comitê Econômico e Social Europeu (CESE) em 201011. Esta defende que o mercado interno europeu reclama um direito europeu dos contratos. Apoia também os estudos para a criação de um Quadro Comum de Referências (QCR), ferramenta útil a facilitar o cotejo dos direitos de cada Estado membro. Igualmente, o CESE ratifica a importância de um Código Europeu Comum de Direito Privado12. Trata-se de desdobramento de diretrizes de harmonização já traçadas anteriormente no âmbito comunitário, a exemplo do Conselho Europeu de Tampere de 1999 (que solicitou à Comissão um estudo para a aproximação das legislações dos Estados membros)13. Também se cuida de fruto do convite feito pelo Programa Estocolmo para 2010-2015 para a Comissão apresentar uma proposta de Quadro Comum de Referência no domínio europeu dos contratos. Esse quadro seria um instrumento não vinculante com princípios fundamentais, definições e regras-padrão a inspirarem os legisladores comunitários e domésticos14. Em outras palavras, a ideia do Quadro Comum de Referência é ser um instrumento de soft law. Esses esforços de harmonização são mais adequados para o mercado. A estratégia "Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo" é nesse sentido. Reconhece ser mais fácil e menos oneroso para as empresas e os consumidores a conclusão de contratos com parceiros de outros países da União Europeia dentro de um ambiente de direito europeu dos contratos de natureza facultativa15. Em 2005, a Comissão Europeia financiou uma rede universitária europeia em pesquisas para a elaboração de um projeto de Quadro Comum de Referência (projeto de QRC ou, inglês, Draft of Common Frame of Reference - DCFR), com foco em consumidores e contratos. Participaram desse trabalho a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française bem como a Société de législation Comparée16, além de outras entidades (como o Study Group on European Civil Code e o Research Gourp on Existing EC Private Law - "Acquis Group"). Os trabalhos resultaram no projeto de Quadro Comum de Referência (mais conhecido por seu nome inglês Draft Comoon Frame of Reference - DCFR), de 200917. Trata-se de um vasto documento, de quase cinco mil páginas, que, na prática, mais se assemelha a um Código Civil Europeu comentado em matéria de obrigações, contratos e responsabilidade civil18. Prevê não apenas modelos de regras, mas também princípios e definições. O DCFR - que é um "rascunho" - servirá de suporte para os trabalhos do grupo de peritos criado em 2010 pela Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia19, com o objetivo de elaborar o Comoon Frame of Reference - CFR, intento ainda em marcha. O DCFR vai muito além de um documento para respaldar uma futura norma europeia. Ele é um documento acadêmico de valor inestimável, como uma das maiores empreitadas comparatistas em obrigações e contratos. É, portanto, útil a pesquisas acadêmicas20, à jurisprudência doméstica (que encontrará seguras referências de direito comparado) e a legisladores de países não europeus. Aliás, pode até ser considerado um instrumento de soft law e, entre outras finalidades, poderia ser escolhido como regra aplicável em contratos ou em julgamentos arbitrais21. Outra iniciativa igualmente relevante para a harmonização são os três volumes do Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como "Lando Commission" em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200322. __________ 1 EUROPEAN PARLIAMENT. Conselho Europeu de Tampere 15 e 16 de outubro de 1999: conclusões da presidência. Data: 15 e 16 de outubro de 1999 (Disponível aqui). 2 Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho. Data: 29 de maio de 2000 (Disponível aqui). 3 Revogou o Regulamento CE nº 1347/2000. 4 Eur-lex, Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho. Data: 27 de novembro de 2003 (Disponível aqui). Para aprofundamento na legislação europeia sobre direitos da criança, ver Manual de Legislação Europeia sobre Legislação Europeia sobre os Direitos da Criança (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS, EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS E CONCIL OF EUROPE. Manual de legislação europeia sobre os Direitos da Criança. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2016. Disponível aqui). 5 Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de dezembro de 2012-B (Disponível aqui). 6 Entre as outras várias questões, o Regulamento Europeu das Sucessões trata dos pactos sucessórios, assim entendido acordos dispondo de direitos sobre heranças futuras. O Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão C-277/20, definiu que se inclui no conceito de pacto sucessório o caso de um contrato de doação de um imóvel quando do falecimento do doador (Curia, Acórdão do Tribunal de Justiça 9 de setembro de 2021, processo C-277/20. Data: 9 de setembro de 2021 (Disponível aqui). 7 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012 (Disponível aqui). 8 Regulamento (UE) nº 606/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de junho de 2013 (Disponível aqui). 9 Resolução A2-157/89, JO nº C 158, de 26 de junho de 1989, p. 400 (Disponível aqui). 10 Resolução A3-0329/94, JO nº C 205, de 25 de julho de 1994, p. 158 (Disponível aqui). 11 A publicação, porém, deu-se em 2011 (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011. Disponível aqui). 12 Convém leitura destes excertos do Parecer do CESE (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011 (Disponível aqui): 1.1 O CESE partilha do ponto de vista da Comissa~o segundo o qual o mercado interno europeu deve ser realizado tambe'm na o'ptica do direito europeu dos contratos e reconhece a importa^ncia dos estudos dos investigadores acade'micos sobre o Quadro Comum de Refere^ncia (QCR), de que se poderia tirar partido ao ni'vel pra'tico.  (...) 1.4 O CESE e' de opinia~o que os instrumentos propostos pelo Quadro Comum de Refere^ncia podera~o contribuir para assegurar a coere^ncia global do direito europeu dos contratos, reduzir os obsta'culos ao come'rcio e promover a concorre^ncia no mercado interno.  (...) 2.1.7 O Parlamento Europeu aprovou uma se'rie de resoluc¸o~es sobre uma possi'vel harmonizac¸a~o do direito privado substantivo. Em 1989 e 1994, apelou ao ini'cio de um trabalho sobre a possibilidade de elaborar um Co'digo Europeu Comum de Direito Privado.  2.1.8 O Parlamento declarou que a harmonizac¸a~o de determinados domi'nios do direito privado e' essencial para a realizac¸a~o do mercado interno e que a unificac¸a~o dos ramos mais importantes do direito privado, sob a forma de um Co'digo Civil Europeu, constituiria a forma mais eficaz de levar a cabo essa harmonizac¸a~o.  2.1.9 O CESE ja' havia indicado no seu parecer de 2002 que «a elaborac¸a~o de um direito europeu dos contratos uniforme e geral, por exemplo, sob a forma de um regulamento, soluc¸a~o que o Comite' prefere para evitar diverge^ncias, pode requerer tempo e estudos complementares, mas deveria apoiar-se nos trabalhos ja' efectuados pelas va'rias comisso~es e instituic¸o~es ja' mencionadas e nas regras e pra'ticas internacionais em vigor»  2.1.10 Noutro seu parecer de 2010, o CESE sublinhou que «A rede "Princi'pios Comuns de Direito Europeu dos Contratos" (rede CoPECL) deu por terminado ha' pouco o seu Projecto de Quadro Comum de Refere^ncia e apresentou-o a` Comissa~o Europeia. Essas regras da~o manifestamente ao legislador europeu um modelo que poderia ser utilizado para a adopc¸a~o de um instrumento opcional, como advogado pela comissa'ria Viviane Reding»  13 European Parliament, 1999. 14 Ver: (1) Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010, pp. 109-111 (Disponível aqui); (2) Eur-lex, Programa de Estocolmo - uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, JO C 155, de 4 de maio de 2010-B, pp. 1-38 (Disponível aqui. O programa Estocolmo foi o último programa plurianual da União Europeia e era respaldado pelo art. 68º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Antes dele, houve o programa de Haia (2004 a 2009) e o programa de Tampere (1999-2004). O objetivo era estabelecer orientações estratégicas no âmbito da União Europeia. 15 Eur-lex, EUROPA 2020 Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. Ano: 2020 (Disponível aqui). 16 A Société de législation Comparée duas obras importantes: Principes contractuels Communs: projet de cadre comum référence e Terminologie Contratuelle Commune: projet de cadre commun de référence. 17 Em 2008, houve a publicação de uma versão interina para consulta pública. Após absorção das sugestões da comunidade jurídica, foi publicada, em 2009, a versão final. 18 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida (disponível aqui. Ver: Law Kuleuven, Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui).   19 Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia, JO L105, de 27 de abril de 2010, p. 109 (Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010-A, pp. 109-111 (Disponível aqui). Ver: (1) MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23; (2) ALPA, Guido. The European Civil Code: "E Pluribus Unum". In: Tulane European & Civil Law Forum, vol. 14, 1999, pp. 1-14; e (3) AQUINO, Leonardo Gomes de. A uniformização do Direito Privado: Uma perspectiva do Direito Privado europeu. Publicado em setembro de 2004 (Disponível aqui). 20 Luiz Cláudio Cardona Pereira, por exemplo, pesquisou o enriquecimento sem causa sob a perspectiva do DCFR (PEREIRA, Luiz Cláudio Cardona. Harmonização e unificação internacional do regime do enriquecimento sem causa: uma perspectiva a partir do DCFR. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 29, jul./set. 2021, pp. 123-161. Disponível aqui). 21 Sobre o DCFR, ver: (1) GILIKER, Paula. The Draft Common Frame of Reference and European contract law: moving from the "academic" to the "political". Publicado em 2019 (Disponível aqui); (2) RUSE-KHAN, Henning Grosse. The European Draft Common Frame of Reference - a source os Comparative Law; a new option for choosing the applicable law; or a template for a European Civil Code?. In: International Seminar on Comparative Law, Conference Proceedings, Kuala Lumpur, November 2008 (Disponível aqui); (3) HOUSE OF LORDS. European Contract Law: the Draft Common Frame of Reference. 12th Report of Session de 2008-09. Published 10 June 2009 (Disponível aqui). 22 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui).
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no Direito Internacional europeu. 1. Lei do domicílio habitual como elemento de conexão para a lei sucessória na União Europeia Outro ponto importante no processo de harmonização do direito na União Europeia é a escolha de elementos de conexão compatíveis com essa finalidade. Elementos de conexão são regras de Direito Internacional Privado para resolver conflitos entre leis de diferentes países. São regras que definem se se aplicará a lei de um país ou a lei de outro. Os elementos de conexão precisam ser hospitaleiros a situações transnacionais. É o caso, por exemplo, do estatuto sucessório (ou seja, da definição da lei aplicável a regular a sucessão mortis causa): adotou-se, na União Europeia, como elemento de conexão, a lei de residência habitual do falecido1. Esse elemento de conexão favorece a circulação de riquezas, pois geralmente o centro da vida das pessoas e seu patrimônio costumam estar no seu domicílio2. Além disso, esse elemento de conexão coincide com o foro competente para lidar com a sucessão mortis causa3. É verdade que a residência habitual como elemento de conexão apresenta alguns pontos negativos. Um deles é a facilidade na sua alteração: basta o indivíduo mudar-se para outro local com ânimo definitivo. Esse caráter itinerante pode gerar um pouco de insegurança jurídica. Outro ponto negativo é que, em alguns casos concretos, é difícil determinar qual é a residência habitual. O próprio Regulamento Europeu das Sucessões reconhece esse ponto negativo; tanto que, para alguns casos, a norma comunitária permite que o juiz indique o local com o qual o falecido guardava conexão manifestamente mais estreita à luz do caso concreto4. É o que expõem os Considerandos nº 24 e 255: (24) Em certos casos, podera' ser complexo determinar a resi­ de^ncia habitual do falecido. Podera' ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razo~es profissionais ou econo'micas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de ai' trabalhar, por vezes por um longo peri'odo, mas tenha mantido uma relac¸a~o estreita e esta'vel com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido podera', em func¸a~o das circunsta^ncias, ser considerado como tendo ainda a sua reside^ncia habitual no Estado de origem, no qual se si­ tuavam o centro de interesses da sua fami'lia e a sua vida social. Outros casos complexos podera~o igualmente ocor­ rer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em va'rios Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciac¸a~o global de todas as circunsta^ncias factuais.  (25) No que diz respeito a` determinac¸a~o da lei aplica'vel a` sucessa~o, a autoridade que trata da sucessa~o pode, em casos excecionais - quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua reside^ncia habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as cir­cunsta^ncias do caso indiquem que tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com outro Estado - chegar a` conclusa~o de que a lei aplica'vel a` sucessa~o na~o devera' ser a do Estado da reside^ncia habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita. No entanto, a rela­c¸a~o manifestamente mais estreita na~o devera' tornar-se em fator de conexa~o subsidia'rio caso se revele complexa a determinac¸a~o da reside^ncia habitual do falecido no momento do o'bito.  Todavia, esses pontos negativos são robustamente desprezíveis se se levarem em conta as exuberantes vantagens desse elemento de conexão à criação de um espaço internacional hospitaleiro a situações jurídico-transnacionais6. Além do mais, o próprio Regulamento Europeu fornece algumas ferramentas que aliviam esses pontos negativos. É o caso, por exemplo, da supracitada autorização para o juiz afastar a lei da residência habitual do falecido em favor da lei do Estado com o qual o falecido guarde manifestamente mais estreita relação (art. 21º, nº 2, do Regulamento UE nº 650/2012). Consideramos que essa hipótese deve ser aplicada com extrema cautela, para não frustrar a legítima expectativa dos sujeitos e para não instigar empreitadas oportunistas de herdeiros que seriam beneficiados com o deslocamento da lex successionis do Estado da residência habitual para o Estado supostamente mais conexo. Outra ferramenta que alivia os pontos negativos da lex domicilii para o estatuto sucessório é o caso do professio iuris em favor da lei da nacionalidade (art. 22º, nº 1º, do Regulamento UE nº 650/2012). Há quem critique a lex patriae como elemento de conexão por implicar uma discriminação quanto à nacionalidade. Todavia, essa crítica não prospera no presente caso, pois a lex patriae só será aplicada se a parte mesmo a eleger. Nessa situação, a lex patriae não gera discriminação quanto à nacionalidade, mas sim promove a autonomia da vontade e aumenta a previsibilidade jurídica aos sujeitos. Prosseguiremos na próxima Coluna. Até lá! __________ 1 Art. 21 do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012).   2 O art. 34 do Regulamento Europeu das Sucessões admite o reenvio entre os Estados membros da União Europeia sem restrição. E acata o reenvio em favor de um Estado não membro que aplicaria a própria lei. 3 Art. 4º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). 4 Art. 21º, nº 2, do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012): Artigo 21.º Regra geral Salvo disposic¸a~o em contra'rio do presente regulamento, a lei aplica'vel ao conjunto da sucessa~o e' a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o'bito. 2. Caso, a ti'tulo excepcional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o'bito, o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica'vel nos termos do n.º 1, e' aplica'vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.   5 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012-A (Disponível aqui). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 135.
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no direito internacional europeu. 1. Sistema unitário das sucessões mortis causa na União Europeia O normativo europeu de sucessões (o Regulamento EU nº 650/2012) busca evitar que a sucessão mortis causa transnacional fique vulnerável a uma insegurança jurídica que ocorreria caso a lei de mais de um Estado membro fosse aplicável. Assim, se uma pessoa falecer deixando bens em vários Estados membros, o Regulamento Europeu das Sucessões definirá uma única lei que será aplicável para reger a transmissão mortis causa de todos os bens, independentemente da sua localização. A norma comunitária censura a fragmentação da sucessão para leis diferentes por adotar o princípio da unidade sucessória1. Esse princípio contrapõe-se ao princípio do fracionamento da lei sucessória, que é comum quando se prestigia a lex rei sitae para reger a sucessão mortis causa em detrimento da lex successionis. Aliás, o sistema da sucessão unitária (assentado no princípio da unidade da lei sucessória) é a tendência dos ordenamentos desde a segunda metade do século XX em virtude das dificuldades do sistema de fracionamento da sucessão. É o que vigora em Portugal, na Alemanha, na Áustria, na Checoslováquia, na Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estônia etc. Foi proposto por Savigny e Mancini2. O sistema da sucessão unitária substituiu, em vários países, o sistema do fracionamento da sucessão, de origem feudal. Este último (o sistema do fracionamento da sucessão) é o sistema tradicional nos países anglo-saxões, nos influenciados pelo Código Civil napoleônico (como França, Bélgica, Luxemburgo), na Bulgária, na Lituânia e na Romênia3. O Regulamento Europeu das Sucessões, todavia, rejeitou o sistema do fracionamento da sucessão pelo fato de que a insegurança jurídica desse modelo tem o potencial de inibir a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Em sintonia com essa necessidade de conciliar os diversos sistemas jurídicos dos Estados membros com a vontade dos sujeitos, o Regulamento Europeu das Sucessões prestigia a autonomia da vontade, ao admitir o professio iuris em matéria sucessória4. Trataremos da professio iuris no próximo capítulo. 2. Professio iuris: escolha da lei aplicável como um prestígio à autonomia da vontade Professio iuris é a escolha da lei aplicável. Esse conceito era utilizado na Idade Média. Referia-se às manifestações de vontade das partes de um negócio quanto à lei a ser aplicada. Era termo mais utilizado em escolhas feitas em testamento para reger a sucessão mortis causa. Na Suíça do final do século XIX, esse termo foi resgatado para a escolha da lei aplicável pelo testador. A Convenção de Haia de 1989 sobre a Lei Aplicável a Sucessões mortis causa reforçou a figura e serviu de modelo a diversas outras legislações. O Regulamento Europeu das Sucessões positiva o professio iuris em matéria sucessória em favor da lei da nacionalidade5. De fato, o Regulamento Europeu das Sucessões adota, por exemplo, como elemento de conexão no caso de conflito de leis, o ordenamento da residência habitual do falecido, admitida, porém, a escolha da lei da nacionalidade (lex patriae) pelo autor da herança em testamento (arts. 21 e 22). Essa exceção representa a admissão do professio iuris em favor da lei da lei nacionalidade. O professio iuris é uma excelente alternativa para conciliar, de um lado, a autonomia da vontade dos sujeitos e, de outro lado, a importância em harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos implicados no caldeirão jurídico da União Europeia. Permitir que as partes possam escolher o direito aplicável é lhes conceder previsibilidade jurídica e condições efetivas de planejar suas relações privadas. É nesse contexto o professio iuris6é empregado em vários domínios do direito privado europeu. Em matéria obrigacional (contratual e extracontratual), a escolha da lei aplicável é uma das colunas da normatização comunitária. É o que estatui o Regulamento Roma I7, que disciplina a lei aplicável em obrigações contratuais. A liberdade de as partes escolherem o direito aplicável é "uma das pedras angulares do sistema de normas de conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais"8. É a mesma linha do Regulamento Roma II9, que regula a lei aplicável em obrigações extracontratuais, como a proveniente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa, de culpa in contrahendo (responsabilidade civil pré-contratual) e de gestão de negócios. O professio iuris em matéria contratual e extracontratual, todavia, deve ser feita sem abuso de direito. E, por isso, os Regulamentos Roma I e Roma II estabelecem limites à escolha da lei para evitar lesões à ordem pública e prejuízos a partes vulneráveis. Por exemplo, em contratos celebrados com consumidor, a escolha da lei não pode ser feita de modo a afastar proteções de ordem pública que são garantidas ao consumidor pela lei da sua residência habitual (art. 6º, nº 2, do Regulamento Roma I10). Em resumo, quando envolver consumidor, prestigia-se a aplicação da lei mais favorável a ele por conta de sua vulnerabilidade11. No mesmo sentido, para obrigações extracontratuais, é esclarecedor o Considerando nº 31 do Regulamento Roma II, in verbis: (31) Para respeitar o princípio da autonomia das partes e reforçar a certeza jurídica, as partes deverão poder escolher a lei aplicável a uma obrigação extracontratual. Esta escolha deverá ser expressa ou demonstrada com um grau de certeza razoável pelas circunstâncias do caso. Ao determinar a existência de acordo, o tribunal deverá respeitar as intenções das partes. É necessário proteger as partes mais vulneráveis, impondo determinadas condições a esta escolha. Prosseguiremos na próxima coluna. __________ 1 Transcreva-se o Considerando 37 do Regulamento Europeu das Sucessões (Disponível aqui): (37) Para que os cidada~os possam beneficiar, com toda a seguranc¸a juri´dica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento devera´ permitir-lhes co¬nhecer antecipadamente qual sera´ a lei aplica´vel a` sua sucessa~o. Devera~o ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contradito´rios. A regra principal devera´ assegurar previsibilidade no que se refere a` lei aplica´vel com a qual a sucessa~o apresente uma conexa~o estreita. Por razo~es de seguranc¸a juri´dica e para evitar a fragmentac¸a~o da sucessa~o, essa lei devera´ regular a totalidade da sucessa~o, ou seja, todos os bens da heranc¸a, independentemente da natureza dos bens e in¬dependentemente de estes se encontrarem situados nou¬tro Estado-Membro ou num Estado terceiro.  No mesmo sentido, os arts. 20º, 21º, n. 1, 22º, n. 1, e 23, n. 1, do Regulamento Europeu das Sucessões são incisivos em deixar claro que a lex successionis escolhida nos seus termos disciplinará "toda a sucessão", ou seja, "o conjunto da sucessão", ainda que ela não seja a lei aplicável à luz do ordenamento de algum Estado membro. Confira-se (Disponível aqui): CAPI´TULO III LEI APLICA´VEL Artigo 20.º Aplicac¸a~o universal E´ aplica´vel a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que na~o seja a lei de um Estado-Membro.  Artigo 21.º Regra geral 1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel ao conjunto da sucessa~o e´ a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o´bito.  2. Caso, a ti´tulo excecional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o´bito, o fale cido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica´vel nos termos do nº 1, e´ aplica´vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.  Artigo 22.º Escolha da lei 1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessa~o a lei do Estado de que e´ nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do o´bito.  Uma pessoa com nacionalidade mu´ltipla pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que e´ nacional no momento em que faz a escolha.  2. A escolha deve ser feita expressamente numa declarac¸a~o que revista a forma de uma disposic¸a~o por morte ou resultar dos termos dessa disposic¸a~o.  3. A validade material do ato pelo qual foi feita a escolha da lei e´ regulada pela lei escolhida.  4. Qualquer alterac¸a~o ou a revogac¸a~o da escolha da lei deve preencher os requisitos formais aplica´veis a` alterac¸a~o ou a` re¬vogac¸a~o de uma disposic¸a~o por morte.  Artigo 23.º A^mbito da lei aplica´vel 1. A lei designada nos termos do artigo 21.º ou do ar¬tigo 22.º regula toda a sucessa~o.  2. Essa lei rege, nomeadamente:  a)  As causas, o momento e o lugar da abertura da sucessa~o;  b)  A determinac¸a~o dos beneficia´rios, das respetivas quotas-par¬tes e das obrigac¸o~es que lhes podem ser impostas pelo fale¬cido, bem como a determinac¸a~o dos outros direitos suces¬so´rios, incluindo os direitos sucesso´rios do co^njuge ou parceiro sobrevivo;  c)  A capacidade sucesso´ria;  d)  A deserdac¸a~o e a incapacidade por indignidade;  e)  A transmissa~o dos bens, direitos e obrigac¸o~es que compo~em a heranc¸a aos herdeiros e, consoante o caso, aos legata´rios, incluindo as condic¸o~es e os efeitos da aceitac¸a~o da sucessa~o ou do legado ou do seu repu´dio;  f)  Os poderes dos herdeiros, dos executores testamenta´rios e outros administradores da heranc¸a, nomeadamente no que respeita a` venda dos bens e ao pagamento dos credores, sem prejui´zo dos poderes a que se refere o artigo 29.o, n.os 2 e 3;  g)  Responsabilidade pelas di´vidas da sucessa~o;  h)  A quota disponi´vel da heranc¸a, a legi´tima e outras restric¸o~es a` disposic¸a~o por morte, bem como as pretenso~es que pes¬ soas pro´ximas do falecido possam deduzir contra a heranc¸a ou os herdeiros;  i)  A colac¸a~o e a reduc¸a~o das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinac¸a~o das quotas dos diferentes beneficia´rios;    j)  A partilha da heranc¸a. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 124. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 124-125. 4 Santiago Álvarez González (2009, pp. 17-49) tratou do tema antes da superveniência do Regulamento (UE) nº 650/2012 (GONZÁLEZ, Santiago Alvarez. La professio iuris y la sucesión internacional em uma futura reglamentación comunitária. In: Estudios Jurídicos em Memoria del Profesor José Manuel Lete del Rio. Civitas, Thomson Reuter e Cizur Menor, 2009, pp. 17-49) 5 Josep M. Fontanellas Morell (2010 e 2011) faz aprofundada análise dessa figura na sua obra La profesio iuris sucesoria e no artigo La Professio Iuris Sucesoria a las puertas de uma reglamentación comunitária. A expressão professio iuris é utilizada para eleição de leis em outras questões que não sucessórias, como em matéria de casamento (Baarsma, 2011, p. 68). Sobre o assunto, ver: (1) MORELL, Josep María Fontanellas. La professio iuris sucessória. Madrid/Espanha: Marcial Pons, 2010; (2) MORELL, Josep María Fontanellas. La Professio Iuris sucesoriaa las puertas de una reglamentación comunitária. In: Dereito, vol. 20, nº 2, 2011, pp. 83-129 (Disponível aqui); (3) CARRASCOSA GONZÁLEZ, Javier. El Reglamento Sucesorio Europeo 650/2012 de 4 de julio de 2002: análisis crítico. Granada: Comares, 2014; (4) CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo. Residência habitual e lei aplicável à sucessão causa mortis internacional. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PGGDir.UFGRS. Porto Alegre, volume XI, nº 2, 2016, pp. 4-45; (5) PALAO MORENO, Guillermo. La Importancia de la autonomia de la voluntad conflictual em del derecho internacional privado de la Unión Europea. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, volume 102, nº 125-130, jul./dez. 2017, pp. 77-102. 6 Embora tecnicamente o conceito de professio iuris seja empregada em matéria sucessória por conta de seu contexto histórico medieval, temos por conveniente estender seu conceito para qualquer situação de escolha de leis, como fazem alguns autores (a exemplo de: BAARSMA, N. A. The Europeanisation of International Family Law. Hague/Netherlands: Asser Press; Berlin/Germany: Springer-Verlag, 2011, p. 68). 7 Regulamento CE nº 493/2008, de 17 de junho de 2008. 8 Considerando 11 do Regulamento Roma I. 9 Regulamento CE nº 864/2007, de 11 de julho de 2007. 10 Confira-se o art. 6º do Regulamento Roma I: Artigo 6º Contratos celebrados por consumidores 1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais («o profissional»), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional: a) Exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas actividades. 2. Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o. Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1. 3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o. 4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes: a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual; b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma viagem organizada na acepção da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (15); c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE; d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;   e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alínea h) do n.o 1 do artigo 4º 11 Confira-se o Considerando 23 do Regulamento Roma I: (23) No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê-las através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.
Nas colunas anteriores, buscamos tratar didaticamente do cenário institucional e normativa da União Europeia a fim de preparar o terreno para o foco destas séries de publicações: expor o cenário de harmonização jurídica no âmbito do direito privado europeu. Voltamo-nos agora para essa meta. 1. Visão panorâmica da harmonização jurídica na União Europeia no direito privado A harmonização internacional de direitos não necessariamente depende de uma de integração regional. Esta é apenas um catalisador da harmonização, a exemplo do que se testemunha com a experiência da União Europeia. No caso da União Europeia, a harmonização jurídica no direito privado é fortemente estimulada pelos seus próprios fundamentos principiológicos, especialmente o da liberdade de circulação de pessoas, de capital e de trabalhadores1 bem como o da busca por criar um espaço de liberdade, segurança e justiça2. Para viabilizar essa liberdade, é essencial que haja uma harmonização jurídica entre os Estados membros, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos e ao mercado. Devem-se reduzir, ao máximo, obstáculos jurídicos que inviabilizem ou dificultem demasiadamente a referida livre circulação. Não se pretendem, com isso, eliminar as particularidades jurídicas de cada Estado membro. O TFUE é expresso em preconizar o respeito "dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros" (art. 67º, item 1). A harmonização jurídica da União Europeia caminha não apenas em aproximar as normas de direito material e processual em direito privado, mas também em uniformizar as regras de direito internacional privado (relativamente aos conflitos potenciais entre os ordenamentos diante de situações privadas transnacionais). A doutrina costuma reportar-se a esse fenômeno na União Europeia como "europeização do direito internacional privado"3. Na verdade, o fenômeno vai além do direito internacional privado. A europeização é de todo o direito privado. Não se trata apenas de resolver potenciais conflitos entre os ordenamentos diante de situações transnacionais ou de harmonizar situações processuais (competência jurisdicional, cooperação judiciária etc.). Busca-se, também, propiciar aos sujeitos um espaço jurídico que abrange nações com ordenamentos, ao máximo, próximos, para assegurar segurança jurídica nos processos de circulação de pessoas, capital e serviços4. Alcança os próprios direitos privados domésticos, com aproximação da regulamentação. No âmbito do direito privado, a harmonização jurídica da União Europeia focou mais o direito contratual do que propriamente os direitos reais5. Em um primeiro momento, os órgãos legislativos da União Europeia concentraram-se em direito do consumidor para resolver problemas mais pontuais. Houve várias diretivas nesse âmbito, como: a) Diretiva 85/577, de 20 de dezembro6: protege o consumidor em compras a distância; b) Diretiva 90/314, de 13 de junho7: trata de viagens combinadas. A livre circulação de pessoas, de capital e de serviços no âmbito da União Europeia intensificou as relações jurídico-privadas transfronteiriças. Por consequência, aumentou o esforço por alcançar uma maior definição das regras de direito internacional privado e das regras comunitárias para dar segurança jurídica aos sujeitos. Entre as várias questões jurídicas de direito internacional privado e de direito comunitário, estão as que tocam a harmonização internacional dos direitos reais, a qual esmiuçaremos mais à frente. A harmonização jurídica na União Europeia tem avançado de modo expressivo, especialmente pela abundância de edição de Regulamentos e Diretivas em diversas matérias de direito privado. A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros em matéria de direito privado é essencial para viabilizar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Sem previsibilidade e clareza do direito que será aplicado para reger as relações privadas, os sujeitos ficão acuados a praticar atos jurídicos transfonteiriços. 2. Regulamento Europeu das Sucessões mortis causa Foi nesse contexto que, por exemplo, a União Europeia editou o Regulamento Europeu das Sucessões: o Regulamento UE nº 650/2012. A referida norma comunitária buscou dar clareza e previsibilidade jurídicas às sucessões mortis causa transfronteiriça. Sem esse ambiente normativo previsível e seguro, os sujeitos seriam inibidos a exporem-se a relações jurídicas privadas internacionais. Se o sujeito não tem clareza sobre como será a sucessão mortis causa caso ele tenha bens em outros países ou caso ele se mude do seu país de origem, a tendência é que esse fato seja um entrave à circulação transnacional. É nesse sentido que o Regulamento Europeu das Sucessões nasceu, pois, conforme seu Considerando nº 7: (7) É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves a` livre circulac¸a~o de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no a^mbito de uma sucessa~o com incide^ncia transfronteiric¸a. No espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessa~o. E' necessa'rio garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legata'rios, das outras pessoas pro'ximas do falecido, bem como dos credores da sucessa~o.  Essa preocupação já estava presente desde quando o Regulamento Europeu das Sucessões era apenas um projeto. Em 2009, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão, foi realçada a elevada importância em haver uma harmonização das regras sucessórias no espaço europeu8. Segundo o referido documento, em 2009, o volume patrimonial envolvido em sucessões mortis causa na União Europeia chegava a 646 bilhões de euros por ano. Estima-se que cerca de 10% desse volume dizem respeito a sucessões transnacionais. Sem uma regra sucessória de harmonização, o volume de bens que poderiam ficar fora do mercado por transtornos jurídicos em matéria sucessória seria expressivo. Os indivíduos seriam desencorajados a realizar relações privadas transnacionais pela insegurança jurídica da partilha de seus bens situados em outros países. Ter regras sucessórias claras e harmonizadas para sucessões transnacionais é um fundamental para alcançar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. O Regulamento Europeu das Sucessões centra-se em definir apenas questões transnacionais estritamente de direito sucessório, como a definição de quem são os sucessores e o modo de repartição do acervo hereditário. Foca essas questões sob o aspecto de conciliar os diversos ordenamentos jurídicos da União Europeia. Em suma, ele trata de três questões básicas diante de situações jurídicas transfronteiriças: (1) competência jurisdicional internacional; (2) conflitos de leis no espaço; e (3) forma de reconhecimento e de execução de decisões estrangeiras9. Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema. __________ 1 Reportamo-nos especialmente ao Título II do TFUE, que trata da livre circulação de mercadorias (arts. 28º e 29º) e ao Título IV, que lida com a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 45º a 66º) do TFUE. 2 Remetemo-nos ao Título V do TFUE, que trata do fato de a União Europeia ser um espaço de liberdade, segurança e justiça. 3 Nesse sentido: (1) JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do Direito Internacional Privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012; (2) RIBEIRO, Geraldo Rocha. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: algumas notas sobre o problema da interpretação do âmbito objetivo dos regulamentos comunitários. In: Revista Julgar, nº 23, maio/agosto 2014, pp. 265-292 (Disponível aqui). 4 Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Rui Manuel Moura Ramos coordenaram uma obra destacando diversos aspectos da unificação europeia do direito internacional privado: "Aspectos da Unificação do direito internacional privado" (MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016). 5 MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23. 6 JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. 7 JO nº L23, número 158, de 23 de junho de 1990. 8 Eur-lex, Documento De Trabalho Dos Servic¸os da Comissa~o que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a` compete^ncia, a` lei aplica'vel, ao reconhecimento e execuc¸a~o das deciso~es e dos actos aute^nticos em mate'ria de sucesso~es e a` criac¸a~o de um certificado sucesso'rio europeu. Data: 14 de outubro de 2009 (Disponível aqui). 9 Essas três questões básicas de direito internacional privado em matéria de sucessão foram disciplinadas em um único regulamento: o Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). Não se deu o mesmo em matéria obrigacional. O legislador comunitário fragmentou a disciplina em três regulamentos. Um foi para disciplinar forma de reconhecimento e execução de atos estrangeiros: Regulamento UE nº 1.215/2012. Outros dois para disciplinar as questões de competência jurisdicional internacional e de conflitos de lei no espaço em matéria de obrigações contratuais (Regulamento Roma I, ou seja, Regulamento nº 593/2008) e de obrigações extracontratuais (Regulamento Roma II, ou seja, Regulamento UE nº 864/2007).
Na Coluna anterior, lidamos com a jurisprudência comunitária europeia e com o modo de pesquisa a atos e a precedentes da União Europeia. Prosseguiremos hoje expondo os princípios fundamentais da União Europeia, o que é fundamental para compreendermos o modo como a harmonização jurídica europeia ocorre no direito privado. 1. Principais princípios fundamentais da União Europeia O direito comunitário é assentado em alguns princípios fundamentais, muito dos quais foram expostos e consolidados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)1. Destacam-se, entre eles: (1) o princípio do efeito direito do direito comunitário; (2) o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno; e (3) o princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares. O princípio do efeito direto do direito comunitário estabelece que o direito comunitário tem de ser observado pelos Estados membros independentemente de qualquer ato de internalização. Daí decorre que os particulares podem invocar o direito comunitário perante as jurisdições domésticas, seja em demandas contra outros particulares (efeito direto horizontal), seja em demandas contra o próprio Estado membro (efeito direto vertical). Esse princípio foi introduzido pelo TJUE no acórdão Vand Gend & Loor (1963). Nesse caso concreto, os Países Baixos estavam desrespeitando um Tratado da Comunidade Econômica Europeia (CEE) que proíbe o aumento de cobrança de direitos aduaneiros. O TJUE censurou essa postura neerlandesa, assentando que o referido tratado do direito comunitário tem efeito direto nos Estados membros. Com isso, o TJUE livrou a empresa Van Gend & Loor da cobrança indevida2. A aplicação do princípio do efeito direito do direito comunitário depende do tipo de ato envolvido. Atos não vinculantes, como os pareceres e as recomendações, não possuem efeito direto. Regulamentos, por outro lado, possuem efeito direto, pois são vinculantes, conforme art. 288º do TFUE3. Diretivas, em algumas situações, possuem efeito direto contra o Estado membro (efeito direto vertical) que permaneceu inerte durante o prazo pertinente nas hipóteses em que as disposições da Diretiva eram incondicionais e suficientemente claras e precisas4. Decisões têm efeito direto nos Estados membros que forem expressamente designados5. Acordos internacionais, em alguns casos, também tem efeito direto em razão de sua força vinculante6.  O princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional consiste no fato de as normas domésticas não poderem suplantar as normas comunitárias. Cabe, assim, ao Poder Judiciário doméstico e a todas as demais instâncias domésticas observar plenamente o direito comunitário e deixar de aplicar as normas domésticas contrárias, inclusive as normas constitucionais7. Esse princípio foi introduzido pelo TJUE em 1964, no acórdão Costa. Nesse julgado, o TJUE analisou uma consulta do Poder Judiciário italiano e estabeleceu que uma lei italiana sobre nacionalização do setor de energia elétrica não poderia prevalecer sobre um tratado da Comunidade Econômica Europeia. Embora não haja nenhum dispositivo específico sobre o referido princípio nos Tratados da UE, trata-se de princípio fundamental reconhecido pelo TJUE. O princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares estatui que os particulares têm direito a serem indenizados contra o Estado membro por violação às normas comunitárias. Entre as hipóteses de violação, está a hipótese de omissão do Estado membro em adaptar a legislação interna a uma diretiva da União Europeia, especialmente quando o exercício do direito do particular dependa dessa prévia adaptação. Entendeu a Corte comunitária que, sem esse direito de indenização contra o Estado, a plena eficácia do direito da União seria enfraquecida Esse princípio foi implantado pelo TJUE em 1991 no acórdão Francovich. No caso concreto, a Itália havia se omitido em transpor, para o direito interno, uma diretiva que protegia trabalhadores no caso de insolvência patronal. Dois obreiros obtiveram, por conta disso, direito a indenização contra o Estado por terem sofrido prejuízos com a insolvência do seu patrão e com a morosidade na regulamentação doméstica da referida diretiva8. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. __________ 1 Ver: (1) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui; e (2) Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui.) 2 Para aprofundamento, com menção a outros dois acórdãos do TJUE (o acórdão Becker e o acórdão Kaefer e Procacci contra o Estado francês), ver: Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 3 Confira-se: Artigo 288.o (ex-artigo 249.o TCE) Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. A diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes. As recomendações e os pareceres não são vinculativos. 4 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível em aqui). 5 Para aprofundamento (com citação do acórdão Hansa Fleisch contra Landrat des Kreises Schleswig-Flensburg), ver: O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 6 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui) (em que se reporta ao acórdão Demirel contra Stadt Schwäbisch Gmünd). 7 Ver: (1) FARINHAS, Carla. O princípio do primado do direito da união sobre o direito nacional e as suas implicações para os órgãos jurisdicionais nacionais. In: Julgar, nº 35, 2018 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Ver: Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui.
Na coluna anterior, tratamos das Diretivas e dos Regulamentos como principais normas da União Europeia. Prosseguiremos hoje cuidando da jurisprudência produzida no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia e indicaremos como o leitor pode fazer pesquisas de atos e precedentes. 1. Tribunal de justiça da união europeia O Tribunal de Justiça da União Europeia1 (TJUE ou apenas Tribunal de Justiça) é composto por 27 juízes, com uma estrutura tripartida de órgãos fracionários de julgamento: (1) Tribunal Pleno; (2) Grande Seção; e (3) Seções2. Há ainda o Tribunal Geral da União Europeia, que está associado ao TJUE e que aprecia causas específicas, especialmente as de iniciativa de particulares3. O principal tipo de processo julgado pelo Tribunal de Justiça é processo de reenvio prejudicial. Os principais julgados em matéria de Direito Privado costumam decorrer desses processos. O reenvio processual consiste em consultas feitas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados membros sobre a interpretação adequado do direito comunitário4. Dá-se quando o Poder Judiciário local depara-se com uma fundada dúvida acerca de qual seria a mais adequada interpretação de um ato normativo comunitário. Nesse caso, para evitar divergência de interpretação das normas comunitárias entre os Estados membros, o Poder Judiciário sobresta o julgamento do caso concreto e consulta o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre essa questão jurídica prejudicial. Há outros processos examinados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, como: a) Ação por incumprimento: é precedido de um procedimento perante a Comissão, e a legitimidade ativa ad causam é da Comissão ou de um Estado membro. Essa ação volta-se a suspeitas de violações do direito comunitário por outros Estados membros. b) Recurso de anulação: veicula pretensão de anulação de atos de órgãos da própria União Europeia, como um regulamento ou uma diretiva. A legitimidade recursal é dos Estados membros ou de particulares5. c) Ação por omissão: volta-se contra persistência em postura omissiva por parte de órgãos da União Europeia após provocação6. d) Recursos de decisão do Tribunal de Geral: só para questões de direito e volta-se contra acórdãos ou despachos do Tribunal Geral. Em suma, o sistema de justiça da União Europeia é dividido em dois âmbitos: os sistemas nacionais (constituídos pelo Poder Judiciário de cada Estado membro) e o sistema da União Europeia (representado pelo TJUE). Os julgados do TJUE possuem uma importância crucial no sistema jurídico comunitário. Diversos julgados estão na raiz da estrutura jurídica da União Europeia, respaldando regras e valores comunitários estruturais. Por exemplo, a propósito do direito à livre circulação de mercadorias, o acórdão Cassis de Dijon (1979) é uma referência. Nesse julgado, o TJUE assegurou aos comerciantes o direito de importar de outros países produtos, salvo se estes forem ilegais ou contrários à proteção da saúde ou do meio ambiente7. Sobre o direito à livre circulação de pessoas, há diversos julgados emblemáticos. No acórdão Kraus (1993), o TJUE estabeleceu que a homologação de diplomas estrangeiros tem de limitar-se à conferência meramente formal, destinada a investigar a fidedignidade do documento. No acórdão Bosman (1995), no acórdão Deutscher Handballbund (2003) e no acórdão Simutenko (2005), foram consideradas descabidas regras domésticas que impediam a transferência de jogadores ou que limitasse o número de estrangeiros em clubes de futebol, inclusive em relação a outros países que, embora não integrem da União Europeia, mantenham acordos internacionais. Em relação ao direito à livre circulação de serviços, destacam-se três julgados. O acórdão Cowan (1989) consagra o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, admitindo a um cidadão britânico que foi espancado em um metrô na França o direito a ser indenizado como qualquer cidadão francês. O acórdão Kohll (1998) assegurou a um cidadão luxemburguês o direito a que uma caixa de assistência de saúde de Luxemburgo8 reembolse despesas médicas efetuadas em outros Estados membros9. Entendimento diverso seria um injusto entrave à livre circulação de serviços. O acórdão Decker (1998) segue a mesma linha. Censurou a recusa da supracitada caixa de assistência de saúde de Luxemburgo a reembolsar as despesas com a aquisição de óculos em outro Estado membro. No tocante à igualdade de tratamento e direitos sociais, reportamo-nos a três julgados. O acórdão Defrenne (1976) fixou o princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos pelo mesmo trabalho e, com isso, concedeu razão a uma obreira cuja remuneração era inferior por causa do seu gênero. O acórdão Brown (1998) reputou ilegal a despedida de trabalhadora por faltas resultantes da gravidez, pois tal representaria uma discriminação por gênero. O acórdão Bectu (2001) censurou a legislação britânica que afastava o direito a férias anuais pagas para contratos de trabalho de curta duração. Em direitos fundamentais, há também acórdãos do TJUE. É o caso do acórdão Johnston (1986), que, em nome do direito fundamental à igualdade, censurou ato estatal que proibia mulheres policiais de portarem armas. Em matéria de cidadania, o acórdão Zhu e Chen (2004) estabelece que o direito do cidadão da União em residir em qualquer Estado membro estende-se também a crianças, ainda que sua mãe seja nacional de um país alheio à União Europeia. 2. Nomenclatura (direito comunitário ou direito da união?) e Como fazer pesquisas por atos comunitários O Alguns esclarecimentos adicionais calham. O primeiro diz respeito a uma questão taxonômica. As expressões "direito da União" e "direito comunitário" devem ser consideradas sinônimas. A rigor, a última expressão era mais adequada antes da criação da União Europeia, quando havia uma Comunidade Econômica Europeia. Todavia, o uso das expressões como sinônimas mesmo após esse marco segue vigente na literatura jurídica. O segundo é para esclarecer o modo de busca de atos produzidos no seio do direito comunitário. Para encontrar os atos normativos, precedentes e outros atos oficiais da União Europeia, convém algumas explicações operacionais. Em suma, é viável realizar buscas por palavras-chave ou acessar diretamente o Jornal Oficial da União Europeia (JO), tudo no site oficial mantido pela própria União Europeia: o site EUR-lex. Tomemos como exemplo este ato: Diretiva 85/577, de 20 de dezembro, a qual foi publicada no JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. Na catalogação das diretivas, o primeiro número reporta-se ao ano e a parte final indica o dia e o mês. No caso acima, a Diretiva é de 20 de dezembro de 1985. O segundo número indica a numeração sequencial do ato. A supracitada Diretiva é a de nº 577. O seu interior teor pode ser obtido por consulta no supracitado site EUR-lex. Há duas formas de encontrar o ato nesse site. A primeira é, ao buscar os atos jurídicos, indicar as palavras-chave cabíveis. No caso acima, basta informar o ano e o número da Diretiva no campo próprio para obter o produto. A segunda forma de pesquisa é clicar, no supracitado site, no campo do Jornal Oficial da União Europeia (JO) e buscar o ato na edição pertinente do JO. O JO corresponde ao que, no Brasil, conhecemos como "Diário Oficial". Nele são publicados todos os atos oficiais dos órgãos da União Europeia, tanto os normativos (como as diretivas) quanto os jurisprudenciais (como as decisões do Tribunal de Justiça) ou outros de natureza divesa (como comunicações). Cada edição do JO recebe uma numeração. No caso acima, o número do JO em que foi publicado a supracitada Diretiva é 372. Dentro da edição do JO, o ato a ser publicado é identificado por uma letra e um número. As letras correspondem às séries do JO, que são principalmente duas: (1) "L", quando se tratar de legislação; (2) "C", quando se cuidar de comunicações e informações. O número corresponde à página. Assim, no exemplo acima, a supracitada diretiva é identificada como L 31, porque integra a série de "legislação" e está na página 31 da edição do JO. Em resumo, no exemplo acima, a Diretiva está na página 31 da série "Legislação" do JO nº 372, publicado em 31 de dezembro de 1985. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. Até lá! __________ 1 Site. Não se pode confundir com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), fruto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Este integra o Conselho da Europa, que é organismo diferente da União Europeia. 2 Na sistemática de julgamento, não há espaço para votos vencidos. O juiz relator faz um projeto de acórdão. Qualquer juiz pode propor alteração. E só esse acórdão final é publicado, com a assinatura dos juízes que estiveram presentes na deliberação oral. 3 A rigor, o Tribunal de Justiça da União Europeia é dividido em duas jurisdições: o Tribunal de Justiça strcito sensu e o Tribunal Geral. Em termos de nomenclatura, a expressão "Tribunal de Justiça" é utilizada ora em alusão ao TJUE, ora em referência ao que chamamos de Tribunal de Justiça stricto sensu. Até 2016, havia também o Tribunal da Função Pública, mas, com sua extinção, as suas atribuições reverteram-se para o Tribunal Geral. 4 Conforme realçaremos mais abaixo, utilizaremos a expressão "direito comunitário" como sinônima de "direito da União" em virtude de tal emprego seguir sendo utilizada por doutrinadores em geral. 5 A competência será do Tribunal Geral se o recurso for de um particular. 6 Em alguns casos, a competência é do Tribunal Geral. 7 Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Essa caixa de assistência de saúde é estatal. 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 28 de abril de 1998: Raymond Kohll vs Union des caisses de maladie. Data: 28 de abril de 1998 (Disponível aqui. Acesso em 8 de abril de 2022).