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Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil e em Direito Notarial e Registral.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Cláusula de washout em contratos do agronegócio

Uma cláusula comum no mercado do agronegócio, inclusive no internacional, é a washout clause. Ela advém da experiência contratual de outros países1, mas é plenamente lícita no direito brasileiro. Em inglês, washout significa colapso, fracasso. Logo, em uma visão geral, a cláusula de washout é aquela que lida com o fracasso do contrato. De modo mais específico, a cláusula de washout (ou cláusula de wash-out2) consiste no dever imposto ao vendedor de, no caso de não entrega da coisa (ainda que por caso fortuito), pagar ao comprador um valor correspondente à diferença positiva entre o preço de mercado da coisa no momento do vencimento e o preço originariamente pactuado. A ideia é garantir ao comprador o dinheiro suficiente para, diante do não recebimento da coisa, adquirir a coisa no mercado. Em outras palavras, a cláusula transfere ao vendedor o risco pela não entrega da coisa, ainda que por caso fortuito. Suponha que eu venda 100 sacas de soja pelo preço de R$ 14.000,00 a serem entregues no próximo mês. Se, no vencimento, eu não entregar as sacas por qualquer motivo e se o valor de mercado daquelas sacas de soja tiver subido para R$ 16.000,00, eu terei de pagar ao comprador R$ 2.000,00 por força da cláusula de washout, além de ter de devolver o preço eventualmente recebido. Com isso, o comprador poderá adquirir, de outro fornecedor, essas sacas. Esse custo adicional que o comprador teria de suportar para adquirir o produto no mercado (no exemplo, o valor de R$ 2.000,00) é conhecido como valor de washout (washout value).3 Por vezes, na praxe contratual, usa-se o termo "washout" apenas para se referir a esse custo adicional (ex.: O vendedor tem de pagar o washout ao comprador).4 Trata-se de cláusula importantíssima pelo fato de ser comum o comprador ter o dever de entregar a soja a terceiros por força de outros contratos coligados celebrados. Se não fosse essa cláusula, o comprador poderia sofrer prejuízos por não conseguir cumprir obrigações que tenha assumido para repasse das sacas de soja. Essa cláusula é muito comum no mercado do agronegócio em venda de produtos agrícolas (especialmente de safra futura), pois há diversos contratos interligados entre si destinados a garantir, ao final, a venda do produto ao consumidor final. A não entrega do produto em um dos contratos poderia causar um "efeito dominó" nocivo nos demais contratos, causando prejuízo a todos os envolvidos na rede contratual. A natureza jurídica do valor pago pelo vendedor por força da cláusula de washout é indenizatória, fruto de uma prefixação contratual. Essa cláusula, portanto, tem a natureza jurídica de cláusula penal compensatória. No caso de a não entrega da coisa decorrer de caso fortuito, não há culpa do vendedor e, por isso, não se poderia falar em inadimplemento culposo. Todavia, mesmo aí, entendemos que a natureza jurídica da cláusula a mesma, prefixando uma indenização independentemente de culpa (responsabilidade contratual objetiva). Um efeito prático disso é que o valor pago não poderá ser considerado fato gerador do imposto de renda, pois é uma indenização. Ressaltamos, porém, que, com fortes argumentos, os talentosos civilistas Paulo Nalin e Vitor Ottoboni Pava defendem que, na hipótese de inadimplemento fortuito, o valor devido por força da cláusula de washout deixa de ser considerada uma indenização e passa a ser uma prestação oriunda de uma obrigação de garantia.5 Independentemente da natureza jurídica, os grandes civilistas destacam, com razão, que o juiz deverá ser extremamente cauteloso para não se precipitar em revisar a cláusula de washout, seja por conta da regra de os contratos costumarem ser simétricos e paritários, seja porque o intervencionismo judicial poderá abalar a o equilíbrio econômico-financeiro da complexa cadeia contratual de que depende o mercado do agronegócio.6 _________ 1 Grain Trade Australia, disponível aqui. 2 Também se popularizou a grafia "wash-out" para essa cláusula, embora a grafia registrada nos dicionários ingleses seja washout (substantivo) ou wash out (verbo). 3 Grain Trade Australia, disponível aqui. 4 Grain Trade Australia, disponível aqui. 5 NALIN, Paulo; PAVAN, Vitor Ottoboni. A cláusula Wash-out nos contratos de compra e venda de safra futura: natureza jurídica e efeitos para o inadimplemento. In: Civilista.com, a. 13, n. 13, 2024. 6 Ainda sobre a cláusula washout, ver: SOUZA, Pedro Guilherme Gonçalves de. A Cláusula de Wash-out no Comércio de Grãos e a não Incidência do PIS e da Cofins - Uma Análise Jurisprudencial. Revista Direito Tributário Atual nº 52. ano 40. p. 283-302. São Paulo: IBDT, 3º quadrimestre 2022; MARQUES, Isabela Mendes e JOVIALIANO, Pedro Duarte. Análise da cláusula de washout nos contratos de compra e venda futura de safra. Disponível aqui. Publicado em 02/03/2024; SAMPAIO, Gisela. A qualificação da cláusula de wash-out no Direito brasileiro. Disponível aqui. Publicado em 26/02/2024.
Damos continuidade ao assunto tratado na coluna anterior. Havíamos cuidado da adaptação de direito real estrangeiro no âmbito do Direito das Sucessões na União Europeia. E havíamos indicado que o tema é disciplinado pelo art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento EU 650/12), in verbis: Artigo 31.º Adaptacão dos direitos reais No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplicável à sucessão e a legislação do Estado-Membro em que o direito é invocado não reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necesário e na medida do possível, ser adaptado ao direito real equivalente mais próximo que esteja previsto na legislação desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questão e os efeitos que lhe estão associados. Passamos a detalhar questões mais práticas. Os problemas em pauta são uma realidade. Apesar de não haver grandes divergências entre os países quanto ao reconhecimento do direito real de propriedade, não se dá o mesmo em relação aos direitos reais menores1. Essa heterogeneidade normativa é um potencial para causar conflitos que possam exigir a adaptação de direitos reais estrangeiros. Há vários exemplos2. Lex successionis francesa atribui ao viúvo o usufruto sobre metade da herança composta de bens situados na Alemanha. Todavia, a Alemanha não admite usufruto sobre um patrimônio, mas só sobre coisa determinada. O que fazer? Lex successionis espanhola atribui derecho de usufruto a favor del conyuge supérstite sobre um imóvel situado na Inglaterra3. Acontece que o direito inglês desconhece esse direito real. O que fazer? Falecido era português, mas era domiciliado em Estocolmo (Suécia) e deixou imóvel nessa cidade sueca. Vivia em união de fato ao tempo da morte. Suponha que o falecido tenha eleito a lei portuguesa para reger a sucessão mortis causa. A lei lusitana assegura direito real de habitação para a viúva sobre o imóvel situado na Suécia. Indaga-se: se a lei sueca não conhecer o direito real de habitação, o que se fará? Finlandês, residente em Portugal, faz testamento deixando um direito real de usufruto sobre um apartamento situado em Helsinque. Acontece que a lei portuguesa é a lei sucessória por se aplicar a lei do país de residência habitual do falecido. Que ocorrerá se o direito finlandês não conhecer o direito real de usufruto (que é admitido em Portugal)? No mesmo caso acima, suponha que o finlandês falecido tenha, no testamento, estabelecido uma substituição fideicomissária sobre o imóvel situado em Londres. O direito português admite a substituição fideicomissária, com a criação de um direito de propriedade resolúvel do fiduciário. Indaga-se: que ocorrerá se o direito inglês não conhecer o direito de propriedade resolúvel criado com a substituição fideicomissária? Testador, em caso em que a lei inglesa regule a sucessão mortis causa, atribui trust sobre imóvel situado em Portugal. Indaga-se: que se fará, tendo em vista que o trust não é conhecido pela legislação portuguesa? "Quando o direito brasileiro não conhecia o divórcio e o direito japonês só conhecia essa forma de dissolução da sociedade conjugal, concedia-se aos nipo-brasileiros o desquite, raciocinando-se no sentido de que se o direito japonês autoriza o divórcio, plus, com maior razão deveria admitir o desquite, minus."4 Cogitamos ainda outro exemplo, fora do sistema europeu: testamento celebrado no Brasil determinando a instituição de um condomínio em multiproprietário sobre um imóvel, com posterior outorga das unidades autônomas periódicas a diferentes herdeiros. Que se fará se, no país da situação do bem, o condomínio multiproprietário não for conhecido da legislação? Diante de casos como esses decorrentes do conflito entre o estatuto real e o estatuto sucessório, há três alternativas: simples recusa ao reconhecimento do direito real estrangeiro, frustrando totalmente a efetiva transmissão mortis causa; introdução de uma figura autônoma de direito real, elastecendo o rol taxativo de direitos reais da lex rei sitae (opção essa aplicável apenas se a lex situs adotar uma tipologia de numerus clausus ou de semi-clausus de direitos reais); adaptação do direito real estrangeiro para uma outra figura real próxima reconhecida pela lex rei sitae; A primeira opção seria uma negação total à realidade internacional privada. Esvaziaria completamente a atribuição patrimonial feita pela lex successionis. Inibiria cabalmente que os indivíduos desenvolvem relações privadas internacionais. Ignora que, na prática, os direitos reais entre os países nunca serão idênticos, ainda que possuam a mesma etiqueta (nomen iuris): o direito real de propriedade, ainda que admitido com essa rotulagem em grande parte dos países, possui regime jurídico diverso e, portanto, raramente será idêntico entre os países. Por exemplo, na Holanda, é vedada a propriedade fiduciária que não tenha objetivo de efetivamente transferir a propriedade: a figura da alienação fiduciária em garantia, portanto, é vedada na Holanda, ao contrário do que se dá no Brasil. A primeira opção, a rigor, haveria de impedir qualquer tipo de atribuição patrimonial pela lex successionis: o direito real de propriedade da lex successionis não poderia ser "adaptado" no direito real de propriedade da lex situs. A segunda opção é uma agressão à sistemática de numerus clausus ou de numerus semi-clausus do país da lex situs. Viola o interesse público de um Estado soberano em definir o modo de organização dos direitos reais. Contraria também a tradição pacífica e consolidada do direito internacional privado em eleger a lex situs para disciplinar o estatuto real, tradição essa que, inclusive, é ponto comum entre as famílias do civil law e do common law5. A terceira alternativa (a adaptação) é a mais adequada em um ambiente de globalização e de prestígio ao direito fundamental dos indivíduos em exercer situações privadas transnacionais. Enfim, a solução mais adequada para todos os casos acima é a adaptação de direitos reais estrangeiros na forma do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões. Trata-se da via mais propícia à integração do bloco europeu. A necessidade de valer-se da técnica adaptação envolvendo os direitos reais não ocorrem apenas em questões sucessórias. Antonio Marques dos Santos (1989, pp. 542 e 571-572) dá exemplo envolvendo a aplicação da técnica da adaptação diante de resultados inadmissíveis provocados pelo "jogo de normas conflituais" envolvendo o estatuto contratual e o estatuto real. Suponha um contrato de compra e venda celebrado em Portugal envolvendo um imóvel situado na Alemanha. Pelas normas tradicionais de conflito de normas, a lex contractus será a lei portuguesa (lei do lugar da celebração do contrato). Por esse contrato, o imóvel já é transferido ao comprador6, enquanto o comprador tem de pagar o preço. O registro público é apenas declarativo. A propriedade transfere-se com o contrato. Acontece que o modo de transferência do direito real de propriedade é tratado de modo diverso pela lei alemã (lex rei sitae). Na Alemanha, a transferência da propriedade não se dá com o mero contrato, e sim por um ato real (Übereignung). Há, pois, aí uma contradição lógica: a lei portuguesa admite a transmissão da propriedade com o mero contrato de compra e venda, ao passo que a lei alemã exige um ato adicional (o ato real - Übereignung). Essa contradição lógica precisa ser resolvida pelo instituto da adaptação stricto sensu. E, pela adaptação stricto sensu, deve-se alterar o conteúdo da lei portuguesa para estabelecer que, nesse caso, o contrato de compra e venda não haverá de transferir a propriedade de imóvel, mas dependerá de um ato real a ser praticado na forma da lei alemã. Assim, a lei portuguesa, nesse caso, é adaptada para estabelecer que o vendedor passa a ter uma obrigação de transferir a coisa (e não mais que o próprio contrato já implica a transferência da propriedade). Por fim, destacamos que, no Brasil, apesar de inexistir dispositivo expresso, temos que a adaptação de direito estrangeiro tem de ser admitida exatamente nos mesmos termos da União Europeia. Isso, por conta do princípio da harmonização internacional dos direitos reais, que, a nosso sentir, integra o Direito Brasileiro, conforme já tivemos a oportunidade de defender.7 [1] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 128. [2] Afonso Patrão cita alguns exemplos próprios e de outros autores (Paul Lagarde, Dierter Martiny e Isabel Rodríguez-Uría Suárez) (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 128-129). Valerio de Oliveira Mazzuoli (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 101) também indica exemplos. [3] Usamos esse exemplo por motivos didáticos, apesar de sabermos que a Inglaterra já não mais integra a União Europeia e, portanto, não se sujeita mais ao supracitado Regulamento Europeu [4] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 101. [5] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 132. [6] Veja o art. 879º, "a", do Código Civil português: SECCÃO IIEfeitos da compra e venda Artigo 879.º (Efeitos essenciais) A compra e venda tem como efeitos essenciais:a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa;c) A obrigacão de pagar o preço. [7] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Harmonização Internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Disponível em: http://icts.unb.br/jspui/bitstream/10482/44703/1/2022_carloseduardoeliasdeoliveira.pdf.
Trataremos da experiência da União Europeia no manejo da adaptação de direitos reais estrangeiro em casos envolvendo Sucessão mortis causa. Pense, por exemplo, no problema transnacional que acontece se um francês, por testamento, deixa, sobre um imóvel, um direito real sobre um imóvel situado na Áustria, sem que este país reconheça esse tipo de direito real. Sobre a adaptação de direitos estrangeiros, reportamos o leitor a anterior artigo nosso publicado nesta coluna, publicado em seis partes. Embora estejamos focando os direitos reais, as reflexões estendem-se à posse. É que tanto os direitos reais quanto a posse dizem respeito ao estatuto real e são sujeitas a regras similares de direito internacional privado, a exemplo da adoção, na maior parte dos países, da lex rei sitae como elemento de conexão1. No âmbito do direito comunitário europeu, a principal norma que lida com o tema é o art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento EU nº 650/2012), que admite a adaptação de direitos reais estrangeiros no caso de sucessão mortis causa transnacional2. Confira o preceito: Artigo 31.º Adaptação dos direitos reais  No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica´vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e´ invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa´rio e na medida do possi´vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro´ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados.  O referido dispositivo comunitário cuida de hipóteses em que a lex successionis (o ordenamento do país de origem) outorga a um sucessor um direito real desconhecido pela lex rei sitae (o ordenamento do país de destino). Em outras palavras, lida com conflitos entre o estatuto sucessório e o estatuto real3. O sistema da sucessão unitária (aquele assentado no princípio da unidade da lei sucessória e que representa um modelo monista de lei sucessória4) pode gerar esses conflitos entre o estatuto sucessório e o estatuto real: basta que a lei sucessória outorgue um direito real desconhecido da lei do país do local do bem5. No caso do sistema do fracionamento da sucessão, esse risco seria menor: o direito da situação do bem disciplinará tanto os direitos reais quanto a sucessão mortis causa dos bens. Se, por exemplo, o falecido deixou bens em cinco países, haverá cinco leis disciplinando a sucessão mortis: uma de cada país, relativamente aos bens nele situados. Como o Regulamento Europeu das Sucessões adotou o sistema da sucessão unitária, ele disponibilizou uma ferramenta para enfrentar esses problemas de conflito entre o estatuto real e o estatuto sucessório: a adaptação de direitos reais estrangeiros. Trata-se de uma forma de coordenar sistemas jurídicas de diferentes países diante do conflito entre o estatuto sucessório e o estatuto real6. À luz do art. 31.º do supracitado normativo europeu das sucessões, o direito real do país de origem deve ser adaptado a um direito real equivalente mais próximo previsto na lex rei sitae, observados os interesses das partes. Esse dispositivo é fundamental para conciliar conflitos potenciais entre o estatuto real e o estatuto sucessório. É essencial para a internacionalização. A relevância da figura para a harmonização internacional do direito certamente justifica o fato de que o supracitado dispositivo foi fruto de sugestão de um dos institutos mais importantes do mundo em internacionalização do direito: o Max Planck Institute. Não havia similar dispositivo no projeto inicial que gerou o Regulamento Europeu das Sucessões7. O preceito comunitário acima foca duas espécies de adaptação lato sensu: a substituição e a transposição. Não versa, propriamente, sobre a adaptação stricto sensu8. Já tratamos dessas espécies de adaptação de direito estrangeiro em anterior artigo publicado nesta coluna. Seja como for, neste artigo, trataremos do tema como uma adaptação lato sensu, pois foi essa a acepção adotada pelo dispositivo em pauta. Na próxima Coluna, a daqui 15 dias, prosseguiremos cuidando do tema, expondo problemas práticos. __________ 1 LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 538. 2 Sucessão mortis causa transnacional dá-se quando há elementos de direito internacional privado na sucessão mortis causa para lidar com problemas envolvendo os atos notariais (PASQUALIS, Paolo. The movement of notarial instruments in the European legal area. Ano da publicação: 2010 (Disponível aqui). 3 Esse conflito dá-se quando a lei aplicável ao estatuto sucessório diverge da lei que recai sobre o estatuto real. Quanto ao estatuto sucessório, o elemento de conexão costuma oscilar entre a lei da residência habitual (lex domicilii) ou a lei da nacionalidade (lex patriae), conforme se vê no Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012)[3]. Já em relação ao estatuto real, o elemento de conexão sói ser o local do bem (lex rei sitae). Portanto, no caso de sucessões envolvendo bens fora do domicílio ou do país da nacionalidade, o conflito supracitado é potencial. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 136. 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 126. 6 SUÁREZ, Isabel Rodríguez-Uría. La ley aplicable a las sucesiones mortis causa en el Reglamento (EU) 650/2012. In: Revista para el análisis del derecho - InDret,  Barcelona, nº 2, abril 2013, p. 47. 7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 134. 8 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 153s.
terça-feira, 27 de agosto de 2024

Direito Civil Soviético - Parte II

Damos prosseguimento ao que expusemos na coluna passada sobre o Direito civil soviético. O desenvolvimento científico do direito na Rússia foi historicamente refratário1, comparativamente com a Inglaterra e a França. Só na segunda metade do século XIX é que surge uma literatura jurídica russa. A primeira universidade russa - a de Moscou - só nasceu em 1755. A universidade de Petesburgo é de 1802. A criação de tribunais profissionais, separados de funções administrativas, só ganhou corpo com a reforma judiciária de 1864: Até então, imperava uma promiscuidade entre polícia, justiça e administração. A unidade do povo russo não repousa no direito. Historicamente, os juristas russos não buscavam os fundamentos do direito, ao contrário do que se dava nos demais países europeus. Atuavam como mero servidores operacionais do Estado ou do czar, formalizando juridicamente a vontade arbitrária do autocrata, tudo dentro da máximo romana do princeps legibus solutus est2 (Tierney, 1963, pp. 378-4003). O direito privado russo era essencialmente urbano, voltada aos comerciantes e à burguesia. Os camponeses seguiam os costumes. Para eles existe, por exemplo, apenas (David, 2014, p. 1874): ...uma propriedade familiar (dvor) ou comunal (mir), com exclusão da propriedade individual que está norteada por critérios de equidade, tal como a administra o tribunal do volost', composto por juízes eleitos, que não são juristas; o tribunal volost' depende do Ministério do Interior, e não do Ministério da Justiça. No campo do Direito Civil, a tônica dos sistemas jurídicos socialistas não é a proteção da propriedade individual, e sim da propriedade coletiva. Perde sentido a própria divisão entre direito público e direito privado (a summa divisio das famílias romano-germânicas, originada do direito romano). São clássicas estas palavras de Lênin em uma carta a Kourski5: "No que se refere à economia, deixou de existir direito privado, tudo se tornou direito público" (David, 2014, p. 3306). Os juristas soviéticos reportavam-se a elas frequentemente. Essa fórmula leninista precisa ser interpretada adequadamente. Ela refere-se primordialmente ao âmbito econômico. E também externa a visão soviética de que o direito não é uma decorrência de soluções de justiça ou de moral, e sim um instrumento de imposição forçada da vontade estatal. O direito é uma ferramenta da política; direito é política. É nesse sentido que se deve interpretar a frase de Lênin. Não se deve, portanto, extrair dela a ideia de que, do ponto de vista científico, o direito público teria absorvido o direito privado (René David, 2014, p. 3307). Daí decorrem algumas consequências, ligadas a um caráter imperativo do direito civil. Reprimem-se severamente ilícitos de natureza civil. Um exemplo é a imposição de sanções penais por descumprimento de contratos nos setores coletivizados da economia soviética, por trabalho inferior ao mínimo exigido para o camponês integrante do kolkhoz8, por simulação na criação de empresa privada disfarçada de cooperativa ou por compras de bens para revenda.9 Apesar do modelo socialista, a União Soviética não rejeitou as ferramentas jurídicas desenvolvidas pelos países progressistas ocidentais, conforme alerta V. M. Thckhikvadzé (1968, pp. 20-2110). Lênin estimava importante valer-se dessas ferramentas na construção do sistema jurídico soviético. Rejeitava, apenas, uma imitação servil do direito burguês. Em carta a Kourski sobre a ideia de elaboração de um Código Civil, Lênin aconselha: "Utilize tudo o que existe na literatura e na experiência dos países da Europa Ocidental para a proteção dos trabalhadores" (Thckhikvadzé, p. 21).11 O conceito civil de propriedade das famílias de direitos socialistas distancia-se do construído nas famílias romano-germânica. Distinção entre bens móveis e imóveis é de pouca relevância, por exemplo. Importa mais distinguir os bens entre os de produção e os de consumo.12 No lugar de uma visão aparentemente unitária de propriedade - própria da família romano-germânica -, o regime soviético contemplava três regimes de propriedades: O da propriedade pessoal, o da propriedade cooperativa e o da propriedade estatal. A propriedade pessoal é a utilizada para a satisfação pessoais do titular, e não para a obtenção de rendas ou de lucros com especulação. Substitui o conceito de propriedade privada, vigente nas famílias romano-germânica e do comoon law. Veda-se o emprego da propriedade para fins lucrativos. Por essa razão, os objetos sucetíveis de propriedade pessoal são aqueles necessários ao uso para fins pessoais do seu titular.13 A propriedade cooperativa e a propriedade estatal eram expressões da propriedade socialista na União Soviética, fruto de uma nacionalização dos bens. A propriedade cooperativa era chamada também de colcoz (kolkhoz). Os camponeses (colcozes ou kolkozes) não são proprietários, mas meros usufrutuários perpétuos. O usufruto aí não coincide com os dos países das família romano-germânicas. Não pode ser compreendido como um desmembramento da propriedade nem como um direito real. Tampouco pode ser comparado com a noção de propriedade das famílias romano-germânicas nem com a ideia de estate da família do comoon law. O usufruto soviético dos colcozes atraía deveres a estes e era perpétuo. Eles eram obrigados a explorar o solo nos moldes impostos pelo Estado, à luz das regras do direito kolkoziano.14 A propriedade estatal, por fim, pode recair sobre capital fixo (solo, edifícios, instalações e máquinas) ou sobre capital circulante (matérias-primas e produtos). Reporta-se a bens no domínio da agricultura (como as fazendas do Estado, chamadas de sovkozes) e no domínio da indústria (como os trusts, empresas do Estado incumbidas da produção industrial). A titularidade aí é do povo, do qual o Estado é um representante provisório. O conceito de titularidade não deve ser pensado sob a ótica das famílias romano-germânica. Na família socialista, a noção de propriedade é diferente. O mais importante no conceito de titularidade soviética não é saber quem é dono, e sim quem e como são explorados os bens.15 Outra marca do Direito Civil soviético é a rejeição da noção de direito real por ser inconcebível vincular uma pessoa a uma coisa. "Nada mais capitalista há do que essa ideia", diriam os juristas soviéticos. O direito endereça-se a regular relações jurídicas entre os indivíduos, e não entre a pessoa e a coisa. Em matéria de contratos, a diferença da família de direitos socialistas em relação ao da família romano-germânica está mais na sua destinação do que na conceituação. Em princípio, o conceito de contratos é igual. A distinção é que, no regime socialista, o contrato é empregado sem o apelo burguês de enriquecimento individual. Essa particularidade não está evidenciada nos contratos corriqueiros do quotidiano dos indivíduos, os quais não oferecem grandes questionamentos. Está, sim, descortinada nos contratos relativos ao setor planificado da economia. Alguns juristas chegam a tentar enquadrar esses contratos como administrativos, e não como contratos civis, o que não é tecnicamente suficiente. Os contratos empregados no setor planificado da economia assumem um perfil próprio, indicativo da originalidade do direito soviético.16 ___________ 1 A tradição jurídica de outros países que foram envolvidos pelo socialismo antes da queda do Muro de Berlim é diferente. René David (2014, pp. 188-190) destaca os países europeus incorporados ao socialismo nessa época. Lembra que, ao contrário da Rússia, a tradição jurídica era diferente nesses países. De um lado, há os países socialistas de tradição ocidental: Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Croácia e Eslovênia. O desenvolvimento do direito neles seguiu as pegadas do direito na Alemanha, na Áustria e na França. A tradição jurídica era forte, o direito era uma das bases da sociedade e o corpo de juristas era numeroso e respeitado. De outro lado, há os países socialistas dos Bálcãs: Albânia, Bulgária, Romênia e Sérvia. Neles havia certa semelhança com a história jurídica russa por conta da influência do direito bizantino e da estagnação jurídica ocorrida nas épocas de expansionismo mongol e turco-otomano. A diferença, porém, é que esses países europeus balcânicos só se libertaram da dominação com a ajuda externa, o que os conduziu a submeter-se à influência cultural das nações da Europa Ocidental e da Europa Central. A Rússia, a seu turno, livrou-se do domínio sem ajuda externa, fato que colaborou para a manutenção de sua autonomia jurídico-identitária. Nesse contexto, com a superveniência do domínio soviético nos países europeus de tradição ocidental e nos países balcânicos, houve certa resistência a abandonar a tradição jurídica romano-germânica e a incorporar instituições jurídicas que faziam mais sentido na Rússia (país de fraca tradição jurídica e de falta de um corpo de juristas).   2 "O princípio está livro da lei" (tradução livre). 3 TIERNEY, Brian. "The Prince is Not Bound by the Laws". Accursius and the Origins of the Modern State. In: Comparative Studies in Society and History, Cambridge University Press, vol. 5, nº 4, jul., 1963. 4 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 5 Dimitri Ivanovitch Kourski era o comissário de justiça (Douroux, 2017). 6 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 8 O colcoz (?????? ou kolkhoz) (plural: colcozes, kolkhozy) era a unidade de produção coletiva soviética. Era uma espécie de propriedade rural coletiva, que era explorada em forma de cooperativa de produção agrícola. O Estado fornecia os meios de produção (Vucinich, 1949). 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 331. 10 THCKHIKVADZÉ, V.M. L'évolution de la science juridique soviétique. IN; Revue Internationale de droit compare. Anné 1968, pp. 19-34 (Disponível aqui). 11 Tradução livre deste excerto: "Prendre absolument tout ce qui existe dans la littérature et l'expérience des pays d'Europe occidentale pour la protection des travailleurs" THCKHIKVADZÉ, V.M. L'évolution de la science juridique soviétique. IN; Revue Internationale de droit compare. Anné 1968, pp. 19-34 (Disponível aqui). 12 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 337-341. 13 René David destaca (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 338): .... O art. 13 da Constituição soviética de 1977 estabelece que: "Podem ser de propriedade pessoal os objetos de uso e de comodidade pessoais, os bens da economia doméstica auxiliar, uma residência e as economias provenientes do trabalho ...". Em alguns países socialistas, como a Iugoslávia, as pequenas empresas artesanais (com até cinco empregados), que fazem parte da "pequena economia", podem ser objeto da propriedade pessoal. 14 René David realça que "um novo estatuto dos kolkozes foi adotado em 1969 pelo Congresso Nacional Kolkoziano e aprovado pelo Comitê Central do Partido Comunista e pelo Conselho dos Ministros da União Soviética" (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 339). 15 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 339, pp. 339-341. 16 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 341-349.
terça-feira, 13 de agosto de 2024

Direito Civil Soviético - Parte I

Na análise de Direito Comparado, é importante ter noção da família dos direitos socialistas, que aqui chamaremos também de Direito Civil Soviético por forcarmos a linha desenvolvida na antiga União Soviética. A família dos direitos socialistas teve seu marco com a Revolução Russa. Existiu notadamente até a queda do Muro de Berlim. Concentra-se essencialmente na estrutura jurídica da antiga União Soviética. Abrange outros países que adotaram o sistema socialista, mas é preciso fazer sérias ressalvas. As particularidades dessas outras nações são tão robustas que é tentador questionar se realmente elas integram a mesma família. René David, apesar de enquadrá-las nas famílias socialistas, prefere concentrar-se no modelo da antiga União Soviética e deixar o estudo do Direito dos demais países que se intitularam como socialistas para outro momento (David, 2014, pp. 176-177).1 Para René David (2014, pp. 173-177 e 192)2, o foco das famílias dos direitos socialistas é preparar o terreno para um estágio de solidariedade social e de coletivização dos bens de produção. Essa preparação do terreno, todavia, passou a ser realizada mediante a onipotência do partido comunista e a imposição de pesadas formas de opressão e imposição estatais. Não se conseguiu, porém, alcançar o ponto de chegada. O que se viu na União Soviética foi uma intensa regulamentação das relações sociais, com um agigantamento do intervencionismo estatal e com a eliminação daqueles que eram considerados inimigos da humanidade por rejeitarem os ideários marxistas. A figura do Estado, no modelo utópico do comunismo, deveria desaparecer diante da entrega efetiva dos bens de produção ao povo. O modelo soviético, porém, rumou em sentido contrário. O Estado agigantou-se e tomou o comando da produção e das relações sociais. Nas palavras de René David (2014, p. 230)3, "o sistema socialista que se pretendia criar foi substituído, na União Soviética, por um simples sistema de capitalismo de Estado". O ideário comunista nunca se concretizou efetivamente.4 Por isso, o direito soviético seguiu com forte conexão com os sistemas romanistas. Valia-se da taxonomia jurídica e da estrutura destes. Não havia, portanto, uma plena originalidade na família dos direitos socialistas. Essa era a tese de René David. A divergência a essa visão provinha de juristas dos países socialistas, que reivindicava uma autonomia. Seja como for, ao menos para o período anterior à queda do Muro de Berlim, é de admitir-se a existência de uma família de direitos socialistas. Os conceitos jurídicos nessa família - ainda que guardem pontos em comum com os sistemas romanistas - assumem sentidos práticos diferentes em razão do modelo político-econômico socialista.5 O estudo comparatista sobre a família de direito socialista precisa ser visto com esses olhos. Apesar da estrutura peculiar do modelo soviético, juristas da família romano-germânica devem manter estudos comparatistas sobre o modelo soviético em busca de soluções jurídicas que podem ser vantajosas socialmente e que podem inspirar reflexões críticas, sem necessidade de conversão ao ideário marxista. É a recomendação de René David (2014, p 175).6 Historicamente, a ligação do direito russo com o modelo romano-germânico é inafastável, conforme René David (2014, pp. 182-190).7 Ao longo da história russa, inexistiu uma tradição jurídica originalmente russa. O modelo jurídico adotado seguiu o direito bizantino (direito romano, portanto). Concebe-se o direito como regras de conduta formuladas pelo legislador e pela doutrina, e não propriamente da jurisprudência (ao contrário da família do common law). Prosseguiremos na próxima coluna, a daqui 15 dias. ________ 1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 2 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 4 Houve certo impasse com a Iugoslávia em 1948. Nesta, buscava-se efetivamente entregar os meios de produção ao povo, com o consequente esvanecimento do Estado. Retardar esse processo, como se fosse necessária uma fase transitória de hipertrofia estatal, seria uma traição ao povo. A Iugoslávia, após a experiência de uma Constituição centralizadora de poderes na figura do Estado (Constituição de 1946), caminhou para uma postura descentralizadora nas Constituições posteriores de 1953, 1963 e 1974 (René David, 2014, pp. 229-233). 5 Na década de 1960, René David (2014) afirmava: (...) Atualmente, transpondo a fronteira de um país do bloco socialista, imediatamente nos surgem um mundo novo, em que os problemas se colocam de um modo diferente que nos países não socialistas e em que até mesmo as palavras adquirem, por vezes, um outro sentido. As palavras democracia, eleições, parlamento, federalismo, sindicatos, convenções coletivas têm um sentido bem diferente, devido, por exemplo, ao fato da existência de um partido comunista onipotente; as palavras propriedade, arbitragem contrato referem-se a realidades diversas, devido à planificação global e à coletivização dos bens de produção. Por essas razões, deve-se classificar o direito soviético numa família diversa da família romano-germânica. 6 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
1. Introdução Este artigo discute o teto indenizatório no caso de responsabilidade civil por transporte aéreo internacional. Trata-se de tema relevante por ter sido fruto de harmonização jurídica entre os países signatários da Convenção de Montreal. O tema agitou intensamente a jurisprudência. Mas já podemos enxergar uma orientação estabilizada pelo STF, a qual apontaremos neste artigo. Desde logo, cabe um alerta: Não trataremos de transporte aéreo nacional, e sim de internacional. O transporte aéreo nacional está fora do âmbito normativo da Convenção de Montreal. Logo, o teto indenizatório abaixo abordado apenas se aplica a transporte aéreo internacional. Passamos a aprofundar o tema. 2. Indenização em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga Em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga, a indenização a ser paga pelo transportador sujeita-se ao teto previsto no art. 22 da Convenção de Montreal (decreto 5.910/06), que sucedeu a Convenção de Varsóvia (decreto 20.704/31). Segundo o art. 22, itens "2" e "3", dessa Convenção, esse teto pode ser flexibilizado no caso de o dano ter recaído sobre a bagagem do passageiro ou sobre a carga transportada, desde que, no momento da entrega da coisa, tenha sido declarado expressamente o seu valor e tenha sido pago o acréscimo de preço eventualmente cobrado. A ideia é, em voos internacionais, dar previsibilidade financeira ao transportador diante de um risco inerente à sua atividade, permitindo-lhe contratar seguro e repassar o gasto com o pagamento do prêmio desse seguro ao preço final cobrado do transportado. Se o cliente quiser uma indenização superior, cabe-lhe fazer a declaração do valor da coisa transportada e pagar eventual acréscimo de preço exigido pelo transportador. Esse acréscimo, na prática, será o repasse do custo adicional com a contratação de seguro. Trata-se de regra adotada por diversos países signatários da Convenção de Montreal. Trata-se de convenção importante para saúde financeira das empresas de transporte aéreo, ao permitir o adequado planejamento financeiro mediante a contratação de seguros e a correlata formação do preço final do serviço. Sem essa previsibilidade, as empresas de transporte aéreo ficariam sujeitas a uma situação de imprevisibilidade financeira diante dos diversos valores indenizatórios que poderiam ser arbitrados pelo Poder Judiciário de diferentes países, o que acabaria por inviabilizar a atividade econômico ou por estimular um aumento excessivo do preço do serviço de transporte. Alertamos que o entendimento acima também vale para transporte internacional aéreo de cargas, e não apenas de pessoas (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, rel. min. Carmén Lúcia, rel. para acórdão min. Gilmar Mendes, DJe 13/6/24). Assim, se uma empresa que contrata o transporte aéreo internacional de carga sem informar o valor dos bens transportados e consequentemente sem pagar eventual acréscimo de preço por conta do seguro não terá direito a indenização por dano material em importe superior ao teto da Convenção de Montreal. O art. 22, itens "2" e "3", dessa convenção só flexibilização o teto indenizatório para a hipótese de haver essa declaração especial de valor dos bens e eventual pagamento do preço adicional do serviço.1 O STF somente afasta o teto indenizatório supracitado em uma hipótese: Indenização por dano moral. Isso, porque o art. 22 da Convenção de Montreal não faz qualquer menção aos danos morais. No caso de dano moral, aplicam-se as leis nacionais, inclusive o CDC (STF, Tema 210; RE 1.394.401/SP, Pleno e RE 636.331/RJ, rel. min. Gilmar Mendes, j. 25/5/17). O texto constitucional dispõe expressamente sobre o tema (art. 178, caput, CF). Nesse sentido, o STF admitiu a condenação da empresa aérea Lufthansa ao pagamento de R$ 12.000,00 a título de indenização por dano moral causado pelo atraso de voo e extravio de bagagem em transporte aéreo internacional. Não aplicou o limite de valores das convenções internacionais supracitadas (STF, RE 1.394.401/SP, Pleno). O STJ segue a mesma linha (STJ, REsp 1842066/RS, 3ª Turma, rel. ministro Moura Ribeiro, DJe 15/6/20). Embora o julgado acima lide com transporte de pessoas, entendemos que ele também abrange transporte aéreo internacional de cargas. Trata-se de hipótese pouco usual, pois o mais comum é que se fale em dano moral em transporte áereo internacional de pessoas, em hipóteses de transtornos causados ao passageiro por danos a si ou à sua bagagem. Seja como for, teoricamente, seria possível discutir indenização por dano moral no caso de transporte internacional apenas de carga. Pense, por exemplo, no extravio de uma carga que consista no cadáver de um familiar. Entendemos que, mesmo no caso de transporte internacional de carga, o teto indenizatório da Convenção de Montreal não será aplicável para o dano moral pelos mesmos motivos já citados acima. Afinal, o dano moral não está no âmbito normativo dessa convenção, que só trata de dano material, conforme textualmente afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no seu voto no julgamento do supracitado RE 636.331. Nada impede, porém, que, em relações não consumeristas, as partes, por pacto expresso, imponham um limite de indenização por dano moral no caso de transporte de carga. Afinal de contas, não há motivos para considerar abusiva essa cláusula em transportes feitos por empresas, que, com a cláusula, alocarão os seus riscos. O art. 421-A do CC prestigia a alocação de riscos definida pelas partes. Todavia, em relações de consumo, cláusula que limite a indenização por dano moral deve ser considerada abusiva à luz do art. 51 do CDC, ainda mais por estarmos a tratar de direitos da personalidade. O risco de, por conta de um acidente aéreo, causar a morte ou a incapacidade física de uma pessoa não pode ser limitado por uma cláusula contratual imposta à parte mais vulnerável contratualmente, o consumidor. Cabe um alerta: Tudo o que foi exposto acima estende-se contra a seguradora que se sub-rogou nos direitos do segurado que sofreu o dano. Afinal de contas, trata-se de sub-rogação: O direito é o mesmo, mas sob nova titularidade. Suponha que uma empresa contrate o transporte de uma carga. Por cautela, essa empresa, pessoalmente, contrata um seguro para receber o valor integral no caso de extravio. Acontecendo o sinistro, a seguradora pagará à empresa a cobertura contratada e, assim, sub-rogar-se-á nos direitos indenizatórios dessa empresa contra o transportador. Com essa sub-rogação, a seguradora poderá exercer direito de regresso contra o transportador, pleiteando a indenização que seria devida ao segurado. Ora, nesse caso, o teto indenizatório da Convenção de Montreal será aplicado contra a seguradora nesse pleito regressivo. Nesse sentido, em um caso de transporte internacional aéreo de carga, o STF restringiu ao teto indenizatório da Convenção de Montreal o valor a ser pago por uma importante transportadora aérea2 a uma seguradora3 que havia se sub-rogado nos direitos do dono da mercadoria avariada. Na ação de regresso proposta contra a transportadora, a seguradora pleiteava o reembolso do valor de R$ 248.916,22, que ela havia pagado ao dono da mercadoria a título de cobertura securitária. Todavia, o STF endossou o entendimento do TJ/SP nesse caso e limitou esse reembolso ao teto indenizatório do art. 22, item "3", da Convenção de Montreal (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, rel. min. Carmén Lúcia, rel. para acórdão min. Gilmar Mendes, DJe 13/6/24; TJ/SP, apelação 1103637-14.2018.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Privado, rel. des. Nelson Jorge Júnior, DJe 13/2/20). 3. Conclusão A pacificação, pelo STF, do tema acerca do limite indenizatória da indenização em transporte aéreo internacional é salutar para dar previsibilidade a esse importante mercado. Na prática, as empresas de transporte aéreo internacional apenas terão de estar preparadas para situações mais excepcionais de indenização por dano moral, já que inexiste teto indenizatório para esse caso. Trata-se, porém, de um risco que já é internalizado pelas empresas. _________ 1 Art. 22, item "2", da Convenção de Montreal: "2.  No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino." 2 O nome da transportadora era Cargolux Airlines Internacional S.A. 3 O nome da seguradora era Seguros Sura S/A.
Daremos seguimento à coluna anterior. A influência do direito romano sobre o direito inglês ficou mais notável com o surgimento, ao lado do direito comum (common law), do outro sistema jurídico inglês: O da equity. O sistema do common law exibiu sinais de insuficiência para lidar com as transformações sociais e com o surgimento de questões novas e complexas. Seu sistema era representado por três principais cortes (King's Bench, Common Pleas e Exchequer), acessíveis por uma malha processual bem rigorosa e extremamente formal de ações e remédios. Seu forte apego aos precedentes petrificaram o sistema diante de situações mais complexas. Como uma espécie de válvula de escape, passou-se a admitir o direito de petição diretamente ao rei para resolver questões não abrangidas pelo common law. Não havia nenhum procedimento a ser seguido. O rei e os seus conselheiros, então, passaram a julgar as petições por equidade. Essa tarefa passou a ser desincumbida pelo Lord Chancellor, que, até o reinado de Henrique VII (em meados do século XVI), sempre era um clérigo. Enquanto clérigo, suas decisões por equidade e a criação de procedimentos foram manifestamente influenciadas pelo direito canônico.1 Os sistemas do common law e da equity coexistiram até sua unificação nos anos de 1873 e 1875, com o Judicature Acts. A influência do direito romano foi evidente até essa unificação, especialmente no sistema da equity.2 Enfim, a influência do direito romano sobre o inglês existiu inequivocamente, ainda em intensidade e forma diferentes do que sucedeu no âmbito da civil law. A influência do direito romano foi mais limitada, como realça René David3 na sua obra "O Direito Inglês", escrita na década de 1960. Charles P. Sherman4 critica a postura de juristas ingleses que, apesar de valerem-se de institutos do direito romano com muita frequência, negam a origem, como se se tratasse de criação genuinamente inglesa. Critica o apego ao mito da insularidade do direito inglês. A romanização do direito inglês foi ampla. Inúmeros princípios básicos do direito inglês em matéria de, por exemplo, Sucessões, Obrigações, Contratos, Direitos Reais, Provas, Posse, Responsabilidade Civil e outras advêm do direito romano. Até o famoso princípio de que "a casa de cada homem é seu castelo" ("every man's house is his castle") foi importado pelo direito inglês dos romanos: Não tem origem anglo-saxã.5 Sob essa ótica, o direito inglês e o direito da europa continental não são, na sua essência, tão distintos assim. Ambos encontram pontos em comum por serem herdeiros (ainda que em diferentes intensidades) do direito romano. Não é, portanto, adequado o mito desenvolvido pelos próprios juristas ingleses de que o seu direito é totalmente apartado e que foi fruto de uma conquista nacional derivada do isolamento dos britânicos em relação ao direito da Europa continental.6 A influência do direito romano sobre o direito inglês é inegável, ainda que se tenha de reconhecer as particularidades decorrentes do modo pelo qual o direito inglês se desenvolveu. Além da interação cultural com os romanos durante o tempo de domínio romano sobre a ilha da Grã-Bretanha7, o domínio normando do século XI tornou inevitável a interface do direito inglês com a cultura jurídica romana. Aliás, no século XI, também houve interrelações do direito inglês com o romano por conta do reinado que o nórdico Canuto II exerceu sobre a Inglaterra, a Dinamarca e a Noruega concomitantemente.8 O próprio modo de pensar dos juristas ingleses (os common lawyers) não era tão diferente dos juristas continentais do medievo. O direito inglês aproximava-se do ius commune da Europa medieval e do direito romano clássico (direito europeu continental anterior à era das codificações). Em ambos os casos, os juristas raciocinavam mediante a análise de cada caso concreto a partir de um juízo prudencial, o que gerava um desenvolvimento gradual e casuístico do direito.9 Como lembra António Manual Hespanha, o direito inglês assumiu uma estrutura bem próxima ao agere per formulas do ius pretorium romano (Hespanha, 2012, p. 252). Ao contrário do que se pensa, a edição de leis também ocorreu na Ilha. Aliás, os reis ingleses dos séculos XII e XIII foram os únicos soberanos europeus que legislaram com abundância em direito privado, com concessão de numerosos writs e com normas. Não se tratava de normas gerais e abstratas, mas, ao conceder writs, positivam o direito, à semelhança do que faziam os editos dos pretores romanos.10 Os precedentes jurisprudenciais na Inglaterra só passaram a ter efeitos formalmente vinculantes na segunda metade do século XIX. Essa noção de efeito vinculante já existia na Europa continental medieval para as decisões das cortes superiores (stylus curiae). As Ordenações Afonsinas, por exemplo, davam efeito vinculante às decisões da Casa de Suplicação. Como se vê, apesar de o common law ser associado ao prestígio aos precedentes jurisprudenciais, a europa continental europeia foi pioneira em valer-se de eficácia vinculante. Isso é mais um indicativo da proximidade do direito inglês ao direito europeu continental anterior à fase das codificações.11 É claro que a influência romana é recepcionada de diferentes formas entre os países. Nem mesmo os países da Europa continental receberam o direito romano da mesma maneira, do que dá prova haver manuais de direito comparado separando as famílias jurídicas romanas (nas quais se inclui o direito francês) das famílias jurídicas germânicas (nas quais se incluem o direito alemão). É o que sublinha Reinhard Zimmermann.12 Por exemplo, há diversas questões que são resolvidas de modo diferente entre os países a família do civil law. Comparando, por exemplo, o direito alemão com o francês, Zimmermann13 aponta algumas diferenças entre o Código Civil Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch) e o Código Civil francês (Code Civil): "Segundo o BGB, o vendedor responde pela transmissão da propriedade do objeto vendido, enquanto que, no Code Civil, sua responsabilidade articula-se pela evicção"14 (Zimmermann, 2017, p. 19). O direito alemão especifica diversas modalidades de descumprimento da obrigação; o direito francês trata esse tema sob o conceito amplo de inexecução; A transmissão da propriedade do bem dá-se por meio do contrato no direito francês e por meio de um ato separado e abstrato no direito alemão; O direito francês não disciplina, de modo específico, a mora creditoris, ao contrário do direito alemão; A compensação ocorre ipso iure no direito francês e mediante declaração expressa no direito alemão. Essas diferenças, porém, não eclipsam a existência de pontos em comum no modo de estruturação desses direitos, o que justifica o enquadramento dos direitos francês e alemão na família romano-germânica. Além da influência do antigo direito romano pelas razões históricas supracitadas, o direito inglês manteve interação com as produções jurídicas da europa continental de cada época. O moderno direito contratual inglês, por exemplo, foi delineado mediante robustos empréstimos de autores como Robert Joseph Pothier (1699-1772) e Jean Domat (1625-1696), o jurista holande^s Hugo Grocio (1583-1645), o jurista sui'c¸o Jean-Jacques Burlamqui (1694-1748) e os juristas alema~es Samuel Pufendorf (1632-1964) e Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840). Reinhard Zimmermann15 lembra, entre outros exemplos, que a doutrina inglesa da frustração do fim do contrato deriva da cláusula rebus sic standibus, conceito romano desenvolvido na Europa continental. A doutrina reconhece que, ao longo do tempo, a família do common law e a do civil law têm-se aproximado, com incorporação recíproca de características uma das outras. Há uma progressiva e gradual confluência das duas famílias, seja no âmbito do direito substantivo, seja sob a perspectiva metodológica e institucional.16 No direito inglês, por exemplo, identificam-se uma profusão de edição de leis (acts) e a postura dos juristas ingleses em apreciar conceitos da ciência jurídica, metodologia própria do civil law. É o caso, por exemplo, do Children and Families Act 2014, do Law of Property Act 1925, do Eviction Act 1977. Embora não haja códigos, esses acts acabam retratando uma aproximação à concepção do civil law. Em sua obra de 1952 - "História do Direito Privado Moderno" (Privatrechtsgeschichte der Neuzeit) -, Franz Wieacker17 já indigitava essa mudança de estilo jurídico tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Apontava para uma aproximação ao estilo abstrato e racional dos sistemas jurídicos do civil law, com uma "progressiva tendência para codificações parciais (consolidations) ou para as súmulas da jurisprudência em restatements oficiosos (USA)" e com "uma certa limitação do controle judiciário das funções públicas".18 No direito dos países do civil law, verifica-se uma valorização dos precedentes jurisprudenciais e da regulação jurídica a partir dos casos concretos, metodologia afeta ao common law.19 Tanto na Inglaterra quando na Europa continental, o direito é delineado pelo legislador, pelos juízes e pela doutrina, ainda que o peso de cada um na produção jurídica possa oscilar entre cada nação.20 Esse raciocínio estende-se também ao Brasil, que, apesar de ser enquadrado na família do civil law, vem desenvolvendo fortemente concepções e metodologias próprias da família do common law, como a sobrevalorização dos precedentes jurisprudenciais e o casuísmo na produção jurídica.21 A própria dicotomia civil law e common law perdeu, ao menos em parte, o sentido prático. Ela permite apenas uma visão geral, como a de quem vê o mapa-múndi em uma escala cartográfica pequena ("pouco zoom"). Mais cirúrgico, nos estudos comparatista, é cotejar os sistemas jurídicos de cada país. Além da supracitada aproximação entre as duas famílias, há muitas oscilações entre os países integrantes de cada uma das famílias. Entre os países do civil law, há países com tradição romanísticas, outros com tradição germânica e outras com tradição nórdica. Entre os países do common law, também há distinções estruturais, como entre o direito inglês e o direito norte-americano.22 No direito inglês, há institutos jurídicos de direito privado desenvolvidos de modo mais específico, a exemplo do trust, dos deveres fiduciários e da doutrina da consideration. Há também um maior peso à liberdade contratual diante de princípios intervencionistas, como o da função social. A ideia de codificação não granjeou muitos adeptos diante da crença de que, na verdade, regras abstratas não poderiam ser aptas a regular todo o direito de modo mais eficaz do que a análise dos casos concretos.23 ____________ 1 CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 104-106. 2 CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 105-106. 3 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 2-15. 4 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 328-329. 5 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 324. 6 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18-23. 7 VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica - Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em    26 de março de 2022). 8 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 319-320. 9 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022). 10 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).. 11 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).. 12 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 19. 13 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 19-20 14 Tradução livre. 15 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 21. 16 Zimmermann lembra que "Basil Markesinis fala de uma 'convergência gradual', James Gordley de uma 'diferença esvanescente' entre common law e civil law" (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017). 17 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 573-574 18 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 574. 19 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 22; Ataíde Jr., 2019. 20 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 23; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022). 21 Pasqualotto, 2019. 22 DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto; FORTES, Pedro. O Direito Privado na Common Law. Publicado em 10 de agosto de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2020). 23 DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto; FORTES, Pedro. O Direito Privado na Common Law. Publicado em 10 de agosto de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2020).
Apesar da tradicional distinção da família do common law com a do civil law, essa diferença é cada vez menos nítida. Essa dicotomia não é, de todo, adequada. Ao contrário do mito da insularidade do direito inglês (segundo a qual o direito inglês teria-se desenvolvido em postura de isolacionismo cultural em relação ao direito da Europa continental), a Inglaterra, desde a conquista normanda1, manteve-se em interação com a cultura jurídica da Europa continental. Foi, pois, influenciada pelo direito romano.2 Houve, ainda, influência do direito romano ao tempo do domínio da Ilha pelos romanos nos anos 43 a 410 d.C.: A Ilha correspondia à província romana de Britânia (Britannia). Charles Phineas Sherman3 destacou que, nos séculos II e III, o direito romano avançou rapidamente pela Grã-Bretanha, fato atestado pelos juristas romanos Javolenus e Ulpiano. Registra que a Grã-Bretanha contou, ao longo de três anos, com altos tribunais romanos compostos por jurisconsultos ilustres, como Ulpiano, Paulus e Papiniano. Sobre esse episódio, Sherman faz esta metáfora: "Era como se a Suprema Corte dos EUA fizesse sessões no Alasca". 4 A influência do direito romano na Grã-Bretanha também ocorreu no final do século VI com a reintrodução do cristianismo, com a conversão dos anglo-saxões.5 Juristas ingleses mantiveram essa conexão, com produções jurídicas marcantes na recepção e na adaptação da cultura jurídica da Europa continental. São os casos, por exemplo, de juristas ingleses, como Henry of Bacton (1210-1268), além de vários juízes.6 A fundação da Universidade de Oxford em 1090 também foi um marco no diálogo com o direito romano. Nos seus quadros de docentes, esteve o jurista italiano Vacarius (1120-1200), que lecionou direito justianeu. Esse estudo do direito romano nas universidades, porém, desempenhou uma influência mais restrita no direito inglês. É que, na prática, as jurisdições aplicavam mais os costumes. Na Inglaterra dessa época, juízes e advogados não precisavam de título universitário para atuar, o que colaborou para reduzir a intensidade da influência do direito romano.7 Isso, porém, não significa que não tenha havido essa influência romana no direito inglês. No século XIII, Henry Bracton, em 1258, em latim, escreveu um dos principais tratados de direito inglês reconhecendo as influências do direito romano e expondo que o direito inglês era assentado no respeito a precedentes jurisprudenciais.8 O tratado foi conhecido como De Legibus et Consuetudinibus Angliae (Of The Laws and Customs os England). Por conta desse tratado, Bracton é considerado um dos pais do common law inglês por ter sistematizado mais de 450 precedentes e por ter desenhado teoricamente o direito inglês. E, para tanto, Bracton valeu-se insistentemente do direito romano, pois tinha domínio da matéria: Bracton foi formado na Escola dos Glosadores. Isso, porém, não significa que Bracton tenha reconhecido o direito romano como um direito positivo na Inglaterra, mas apenas que havia pontes de conexão entre o direito inglês e o romano.9 Os estudos de Bracton marcaram profundamente o common law. Três séculos depois, mesmo Sir Edwart Coke - que era um defensor da tese mítica de isolacionismo cultural do common law em relação ao direito europeu continental - contraditoriamente teve de valer-se dos trabalhos de Bracton.10 Continuaremos na próxima coluna. ___________ 1 No século XI, o exército normando liderado pelo duque Guilherme II da Normandia (Guilherme, o Conquistador) atravesso o Canal da Mancha e invadiu a ilha da Grã-Bretanha. Guilherme II reivindicava o trono por conta de seu parentesco com o falecido rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor. Ainda que, à época da conquista, houvesse a defesa de que a conquista normanda tivesse resultado de um consenso com os saxões, a realidade é que se tratou de uma conquista armada, à base da força, por parte dos normandos, conforme se passou a reconhecer mais tarde (LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 54). 2 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18-23; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica - Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 318-329. 3 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. Chales P. Sherman (1874-1962) foi professor de direito romano e de direito canônico em diversas universidades, inclusive na Yale Law School. 4 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. A assimilação da cultura romana, com inclusão do direito, pelos habitantes da Bretanha ao tempo do domínio romano não foi tão intensa. As próprias origens das instituições inglesas são mais conectadas à influência germânica do que à romana. Entre as justificativas históricas, estão as invasões dos povos germânicos (especialmente dos Anglo-Saxões) à Bretanha, com o surgimento de sete reinos medievais: East Anglia, Essex, Kent, Mercia, Northumbria, Sussex e Wessex. Os senhores territoriais mantiveram-se com forte influência mesmo após a invasão normanda em 1066. O rei normando colaborou para uma maior centralização jurídica, com o surgimento de um direito comum britânico (o common law), que convivia com o direitoaplicada em cada unidade senhorial. Esse common law britânico não foi, porém, fruto de normas produzidas pelo rei, mas principalmente como resultado do sistema judicial, marcado pela eficácia territorial ampla das decisões das Cortes de common law. Por conta da importância dos precedentes jurisprudenciais, estes passaram a ser sistematizados e organizados nos chamados Year Books e nos Laws Reports, espécies de repositórios jurisprudenciais (CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 98-106). 5 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. 6 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18 e 20. 7 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 3. 8 O outro principal tratado foi de Ranulf de Glanville (falecido em 1190), intitulado Tractatus de legibus et consuetudinibus regni Angliae (Treatise on the Laws and Customs of the Kingdom of England). Esse foi o primeiro grande tratado do direito inglês (Cabral, 2019, pp. 102-103). 9 Gustavo César Machado Cabral lembra que, na obra de Bracton, "a influência do Direito Romano foi patente a ponto de Maitland afirmar que a obra de Bracton era romanesca na forma e inglesa no conteúdo, o que implicava que o autor reconhecia o valor do método dos juristas formados no ius civile, mas pretendia construir um livro dedicado ao direito real da Inglaterra, meta que foi alcançada" (Cabral, 2019, p. 103). 10 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 326; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica - Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).
Damos seguimento ao que tratamos na coluna anterior. No exemplo da companhia ferroviária, o fato de as partes etiquetarem o contrato como lease não é suficiente para que o pacto feito seja considerado um direito in rem. É preciso que o conteúdo do contrato condiga com o lease. Por exemplo, se o arrendatário (o leasee) não tiver o controle exclusivo do imóvel, não se trata de lease, ainda que o instrumento contratual tenha sido batizado como tal. Nesse ponto, Stevens cita esta famosa sentença do Lord Templeman no julgamento, pela Câmara dos Lordes do Reino Unido (United Kingdom House of Lords), do caso Street v. Mountford, em 19851: A fabricação de um instrumento de cinco pontas para escavação manual é um garfo, mesmo se o fabricante, não familiarizado com a língua inglesa, insista em que pretendia fazer, e fez, uma pá. O julgado Street v. Mountford é emblemático para distinguir o lease da licence e foi julgado pela Câmara dos Lordes do Reino Unido. Este órgão legislativo - que corresponde à câmara alta do parlamento britânico - exercia um papel jurisdicional para determinadas questões até o ano de 20092, quando, então, a Supremo Tribunal do Reino Unido3 (Supreme Court of the United Kingdom) absorveu-lhe a competência. No caso4, a Roger Theodore Crispin Street concede licence a Wendy Mountford para ocupação de 2 quartos mediante pagamento de aluguéis mensais. Street poderia resilir o contrato mediante aviso prévio de 14 dias. O instrumento contratual foi intitulado como Licence Agreement e continha expressa declaração de que não se tratava de arrendamento (lease ou tenancy). A Câmara dos Lordes, porém, entendeu que, apesar do rótulo do instrumento contratual, havia um lease (ou tenancy): O importante é o conteúdo do contrato e a realidade fática da relação contratual, e não a sua etiqueta. No Reino Unido, o lease (ou tenancy) é disciplinado pelo Landlord and Tenant Act 19545 e caracteriza-se pela concessão do uso exclusivo da coisa em troca de aluguel a ser pago pelo um inquilino (chamado, em inglês, de tentant, se aluga um imóvel inteiro, ou de lodger, se aluga um quarto de um imóvel).6 Pode ser por prazo determinado ou indeterminado (neste último caso, o locador - landlord ou owner - pode denunciar o contrato mediante aviso prévio). Não se trata de uma mera licença, ainda que o instrumento contatual o tenha assim rotulado (Street v. Mountford [1985] AC 809). O lease não é um direito in personam, e sim um direito in rem. É um estate in land. Por isso, subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. Pode ser comprado ou vendido. No caso de locação comercial, se observados os requisitos da Part II of the Landlord and Tenant Act 1954, o inquilino (tenant) tem direito de permanecer no imóvel mesmo após o fim do prazo, salvo justas causas legais específicas. A resilição do lease pelo arrendante (landlord) é mais difícil diante das proteções legais previstas no Landlord and Tenant Act 1954. Além da exigência de aviso prévio - que, a depender do tipo de lease, tem de ser de 6 meses -, o arrendante pode ter de provar judicialmente um dos permissivos legais e pode vir a ser obrigado a pagar compensações financeiras ao arrendatário (tenant). O lease britânico distingue-se substancialmente do license. O licence (a licença) é um contrato de natureza pessoal por meio do qual alguém (o licensor) autoriza outrem (o licensee) a fazer algo, como ocupar um imóvel. Não confere direito in rem. Não subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. O beneficiário (licensee) tem posição jurídica precária. Como o lease atrai diversas proteções legais em favor do inquilino, há proprietários que tentam rotular o instrumento contatual como licence como forma de burla a esse regime protetivo. Todavia, a Câmara dos Lordes, no julgado supracitado (Street v. Mountford, de 1985), censurou esse teatro textual. Outras tentativas de burla ao regime protetivo do lease já foram reprimidas no Reino Unido, a exemplo do caso London College of Business v. Tareem, de 20087, julgado pela EWHC - England and Wales High ourt of Justice. O London College of Business ocupou por muitos anos um imóvel ao abrigo de sucessivos acordos intitulados como licence e com previsão expressa de que não se poderia considerar existente aí um lease no sentido do Landlord and Tenant Act 1954. Apesar de o acordo conter o direito de o proprietário poder acessar o imóvel em qualquer momento razoável, tal nunca ocorreu. Além disso, o London College of Business equipou o imóvel para o seu negócio, que foi efetivamente implementado. O acordo continha uma cláusula de rescisão por violação em tudo semelhante às cláusulas presentes em caso de lease. O Londo College of Business também tinha de pagar um valor a título de "taxa de serviço" (service charge). Surgiu, então, uma controvérsia sobre o valor devido a título de taxa de serviço. O proprietário, então, tentou despejar o colégio por não ter pagado esse valor. A Alta Corte Inglesa (England and Wales High ourt of Justice), todavia, à vista da realidade dos fatos e da maior vulnerabilidade do colégio (que não teve assessoramento jurídico), decidiu que havia um lease, apesar de os sucessivos acordos terem sido etiquetados como licence. Em consequência, o tribunal rejeitou a demanda do proprietário, especialmente pelo fato de este não ter utilizado o procedimento legal devido para despejo por justa causa (acaso efetivamente houvesse uma justa causa no caso concreto). A exposição dos casos acima sobre a diferença do lease e do licence ilustram que, mesmo no Reino Unido, a ideia de numerus clausus para os direitos reais está presente, ainda que sob a ótica da análise de distinção entre direitos in personam e direitos in rem. É equivocado pensar que o princípio do numerus clausus em direitos reais é restrito aos sistemas jurídicos do civil law. Ele também está presente nos países do common law. Embora poucos Códigos tratem textualmente do princípio do numerus clausus, ele é reconhecido principalmente na doutrina e na jurisprudência de vários países, como na Alemanha, na França, na Itália, na Holanda, na Argentina, na Colombia, no Chile, no Peru8, no Brasil9, no Japão, na Finlândia, na Áustria, em Portugal, na Suíça, na Suécia.10 Há, porém, particularidades a depender de cada país. Na França, a legislação não foi pensada para o numerus clausus. O tema é controverso. Há juristas franceses que sustentam a prevalência da autonomia da vontade em matéria de direito real. E invocam o clássico caso Caquelard, de 1834.11 Luis Díez-Picazo averba que prevaleceria, na França, a tipologia de numerus apertus.12 A jurisprudência francesa, no entanto, inclina-se a prestigiar o numerus clausus, acatando os direitos reais previstos no Código Civil ou em outras leis. Há pouquíssimos casos em que se poderia discutir se houve ou não a criação de um novo direito real. Na França, na área dos direitos reais de garantia, há forte presença de legislação especial. É, por exemplo, o caso da lei dubanchet (loi dubanchet), de 198013, que garante um direito de retenção da coisa em face de outros credores do adquirente.14 Na Itália, a doutrina majoritária defende que, após o Código de 1942, adotou-se o sistema de numerus clausus.15 São poucos os Códigos Civis que são expressos acerca do numerus clausus dos direitos reais. Um exemplo é a Argentina, conforme o art. 1884 do seu Codigo Civil y Comercial de la Nacion, que assim dispõe: Artículo 1884. Estructura La regulación de los derechos reales en cuanto a sus elementos, contenido, adquisición, constitución, modificación, transmisión, duración y extinción es establecida sólo por la ley. Es nula la configuración de un derecho real no previsto en la ley, o la modificación de su estructura. A maior parte dos Código Civis lista direitos reais, mas não externa se o rol é ou não taxativo. Cabe à doutrina e à jurisprudência essa tarefa. __________ 1 Tradução livre do inglês (Robert Stevens). 2 O julgamento na Câmara dos Lordes era conduzido pelos Law Lords (os Lordes da Lei), que eram 12 juízes nomeados pelos membros da Câmara dos Lordes. 3 O Supremo Tribunal do Reino Unido foi criado em 2005, mas iniciou suas atividades judiciais em 2009. Atualmente é a última instância recursal em questões civis para todo o Reino Unido e, em questões penais, é a última instância apenas para casos procedentes da Inglaterra, País de Gales e Irlando do Norte. Para compreensão da história e do papel do Supremo Tribunal do Reino Unido. Disponível aqui. 4 [1985] 2 WLR 877, [1985] UKHL 4, [1985] AC 809 (United Kindgom House of Lords Decisions, 1985). 5 O inteiro teor do diploma inglês. Disponível aqui. 6 O procedimento de despejo é diferente: no caso de tenant, há necessidade um processo de eviction; no caso de lodger, basta chamar a polícia após notificação prévia (Coble, 2015). 7 London College of Business Ltd v Tareem Ltd & Anor [2018] EWHC 437 (Ch) (07 March 2018). 8 Fernando Gamarra-Alayza trata do tema levando em conta o direito alemão, francês, argentino, chileno, colombiano, mexicano e peruano. Realça que, no México, a disciplina cabe a cada entidade federativa e que, no Distrito Federal, o entendimento majoritário é que se adotou o sistema de numerus clausus. 9 Apesar de haver controvérsia, prevalece o entendimento de que se adotou, no Brasil, o numerus clausus. 10 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133. 11 Rafael Vanzella trata disso. 12 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, pp. 133-134. 13 Loi n°80-335 du 12 mai 1980. 14 Robert Stevens trata disso. 15 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133.
Em continuação à coluna anterior, seguimos a tratar dos numerus clausus. De modo mais recente, é certo que, a partir da década de 1990, a expressão numerus clausus ou sistema fechado de direitos reais assumiram títulos e conteúdos de inúmeros trabalhos acadêmicos. O princípio do numerus clausus está associado ao modelo jurídico-real de cada país. Por exemplo, para Antonio Huerta Trólez, Alemanha, Áustria e Suíça adotam o princípio do numerus clausus por conta seu modelo de aquisição e transmissão de direitos reais. Nesse modelo, o negócio jurídico causal não transfere o direito real, mas apenas o negócio jurídico real. A autoridade registral não qualifica o negócio jurídico causal, mas sim o negócio jurídico real, dada a autonomia deste em relação àquele1. A base das discussões acerca do numerus clausus está na distinção entre ius in rem e ius in personam. Historicamente, direitos in rem distinguem-se dos direitos in personam, segundo tradição romana. Os primeiros referem-se a uma relação jurídica com uma coisa física e oponível contra terceiros. Já os direitos in personam envolvem relação jurídica entre as pessoas e é oponível inter partes. Essa distinção é a base dos debates sobre direitos de propriedade nos sistemas jurídicos em geral, com inclusão do inglês2. José Luiz Lacruz Berdejo3 destaca que o conceito de direitos reais é fruto de uma generalização feita pelos juristas. Estes observaram que, ao longo da história, foram surgindo formas de dominação do homem sobre a coisa, como a propriedade, o usufruto, a hipoteca e outras figuras. Identificou traços comuns entre elas, aptos a aglutiná-las sob um mesmo conceito: o de direitos reais. Em Roma, já havia variações dessas generalizações. O foco, porém, não eram os direitos subjetivos, e sim as ações. Os romanos do período clássico contrapunham a actio in rem à actio in personam, mas não desenvolveram teoricamente a ideia de direitos reais. Não é viável listar direitos reais em Roma4. Se, porém, associarmos os direitos reais aos que, em Roma, eram respaldados pelas ações in rem ou pela vindicatio, seria viável apontar, como "direitos reais" romanos, os seguintes itens: direito de propriedade, direito de superfície (como uma forma especial de propriedade), servidão e, por acréscimo da tradição justiniana, o usufruto5. Eduardo C. Silveira Marchi defende, ainda, a existência de propriedade horizontal no direito romano desde o período clássico6. Enfim, sob essa ótica, em Roma, ao lado da propriedade, havia poucos direitos reais7. Foi só na Idade Média que os juristas do direito comum (ius commune) começaram a focar os direitos subjetivos, e não as ações. E, por isso, desenvolveram os conceitos de ius in personam e ius in rem e, em consequência, desenharam as primeiras linhas fronteiriças entre os direitos pessoais (obrigacionais) e os direitos das coisas. Robert Stevens (2011, pp. 83-84) dá exemplo com base no direito inglês, envolvendo responsabilidade civil. Na Inglaterra, quando se trata de direitos in rem, o titular tem direito oponível a terceiros, inclusive o direito à indenização (responsabilidade civil). No caso de ius in personam, o direito só é oponível contra a parte, e não contra terceiros. Suponha que uma companhia ferroviária adquira o direito de utilizar uma ponte para travessia de vagões mediante um lease. Trata-se de um direito in rem à luz do direito inglês. Suponha que um terceiro negligente, com seu caminhão, cause um dano à ponte e, assim, inviabilize o seu uso pela companhia ferroviária. Nesse caso, o direito de arrendatária (leaseholder) foi violado por um terceiro. Como o referido direito é oponível erga omnes, o terceiro terá o dever de indenizar a companhia ferroviária: esta, pois, pode pleitear indenização diretamente contra o caminhoneiro negligente. Situação diferente seria se a companhia ferroviária tivesse adquirido o direito de usar a ponte por meio de uma licença (contractual licence) negociada com o proprietário. A contractual licence não é direito in rem na Inglaterra, e sim direito in personam. O direito da companhia (licensee) só seria oponível contra o dono da ponte. Se, pois, o caminhoneiro negligente causar dano à ponte, a companhia férrea não poderá pleitear indenização contra ele por falta de direito oponível a ele. Nesse exemplo, a companhia só poderia pleitear indenização do dono da ponte. Este, a seu turno, por ser o titular da propriedade (que é um direito in rem), poderá reivindicar indenização contra o caminhoneiro relapso, mas essa indenização ater-se-á aos danos sofridos com a ponte e, portanto, não abrangerá os direitos da companhia ferroviária ou de outros licenciados (licensees). Enfatize-se que esse regime de responsabilidade civil vigora na Inglaterra, porque o direito inglês não adota a concepção germânica de transferred loss. Alerte-se que, no Brasil, a solução seria diferente, pois o dever de indenizar não seria vinculado propriamente à natureza jurídica do vínculo da vítima com a coisa. Quem causa dano a outrem tem de indenizar. O motorista relapso causou dano à companhia. Em último caso, poder-se-ia invocar a doutrina do terceiro cúmplice para fortalecer o dever de indenizar contra o motorista negligente. Igualmente o dono da ponte poderia pedir indenização contra o caminhoneiro pelos prejuízos sofridos com a ruptura dos contratos de "licença". Retornando ao exemplo acima sob a perspectiva do direito inglês. No common law lease, o arrendatário (leasee) tem o exclusivo controle de coisa arrendada. Há um direito in rem, oponível erga omnes. É diferente do licence, por meio do qual o dono da coisa apenas concede ao licenciado (licensee) um simples privilégio em relação ao próprio dono para usar a coisa. Cuida-se de um ius in personam. Como se vê, nos sistemas jurídicos - com inclusão do inglês -, é preciso definir as categorias de direitos que se configuram como ius in rem no sentido romano e os que constituem ius personam também no sentido romano. No caso do ius in rem, como ele vincula terceiros, há necessidade de lei. Deixar as partes criarem livremente direitos in rem geraria insegurança jurídica a terceiros. Estes poderiam ser incapazes de descobrir o conteúdo do direito, como os seus deveres e seus direitos em relação à coisa. A criação de direitos in rem livremente pelas partes poderia criar restrições excessivos ou até mesmo incompreensíveis nos bens, afastando-os do tráfego jurídico pelo receio de terceiros em adquiri-lo. Basta imaginar o impacto bruto e deletério na economia se todos os imóveis do país estivessem onerados por direitos in rem de difícil compreensão ou de excessivas restrições. Além disso, à luz do princípio da legalidade, terceiros só podem ser obrigados a algo por lei ou por pacto expresso do qual eles sejam partes. Enfim, os sistemas jurídicos, com inclusão do inglês, possuem, ainda que em diferentes intensidades, um regime de numerus clausus de direitos in rem no sentido puro romano8. E, para definir se um direito é in rem ou in personam, é irrelevante o nomen iuris. O que importa é o conteúdo. Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. __________ 1 TRÓLEZ, Antonio Huerta. El Derecho Real. El Derecho de Propiedad. Adquisición: el título y el modo. Pérdida de Dominio. In: PÉREZ, Manuel Ángel Rueda (coord.). Instituciones de Derecho Privado. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2017, p. 88. 2 Robert Stevens trata disso. 3 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, p. 1. 4 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, pp. 1 e 159. 5 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 111. 6 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. A propriedade horizontal no Direito Romano. São Paulo/Brasil: Quartier Latin, 2002, p. 113. 7 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 135. 8 Robert Stevens trata disso.
Um tema importantíssimo é saber se podemos ou não criar direitos reais? Isso tem várias repercussões práticas. Uma delas é, por exemplo, saber se podemos inventar algum direito real sobre imóvel e promover o seu registro no cartório de imóveis. Buscaremos aqui expor fundamentos históricos e fazer reflexões de direito comparado sobre o tema, a fim de respaldar os debates. Segundo o princípio do numerus clausus1 (também chamado de sistema fechado de direito real, como na Holanda2), os direitos reais (property rights) são taxativos na lei: As partes não podem criar novos direitos reais nem modificar os já previstos direitos reais catalogados taxativamente em lei. É um marcante dogma, especialmente nos sistemas jurídicos da família do civil law.3 Em 1953, Vera Bolgar escreveu artigo intitulado "Why no Trust in the Civil Law?" e criticou a pouca abertura prática do sistema do numerus clausus4: O princípio do numerus clausus, que não aparenta ter valor prático, poderia muito bem ser deixado para o museu da Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz).5 O sistema do numerus clausus é um dos obstáculos ao ingresso da figura do trust em vários países da família do civil law.6 Há uma visão tradicional de que o princípio do numerus clausus é característica apenas dessa família e de que ele seria desconhecido do common law. Mas essa afirmação não é precisa. Bram Akkermans, em um dos estudos mais aprofundados já realizados sobre o princípio do numerus clausus na Europa7, defende a existência desse sistema fechado na Inglaterra.8 Convém investigar o alcance, a origem e a justificação do princípio do numerus clausus. Não há clareza quanto à origem da expressão numerus clausus. Costuma-se associar à Alemanha, especificamente aos pandectistas no século XIX. Para grande parte dos doutrinadores, o princípio do numerus clausus estava enraizado no pensamento jurídico alemão do século XIX.9 A limitação à autonomia privada em direitos reais integrou o modelo do direito de propriedade desenvolvido por Savigny e seus seguidores.10 Além da restrição à autonomia da vontade, esse modelo desenvolve um novo conceito abstrato, absoluto e total de propriedade. Exclui daí os bens incorpóreos. Promove a separação das regras de direito das coisas (law of property) em relação aos direitos obrigacionais bem como a proteção de terceiros adquirentes de boa-fé diante de vícios do título de transferência.11 O princípio do numerus clausus foi incorporado em 1900 ao projeto do BGB - Código Civil Alemão. Na exposição de motivos ao projeto do Código Civil alemão de 1888, já se fazia referência à expressão "número fechado" de direitos reais (die geschlossene Zahl). A primeira vez que provavelmente mencionou-se a expressão numerus clausus foi em 1930 com Philipp Heck. Depois, em 1938, também se tem notícia do uso do termo por Franz Wieacker.12 A expressão reapareceu em várias publicações posteriores, como na Itália (no manual de direito privado de A. Torrente em 1952), nos EUA (como no art. de 1953 de Vera Bolgár e no título de resposta de Merryman13 ao referido art. de Bolgár).14 Na Holanda, a primeira referência à expressão "sistema fechado" de direitos reais deu-se em 1961 em uma notícia sobre as deliberações legislativas sobre a elaboração do Código Civil Holandês (Burgelijk Wetboek de 1992 - BW). Apesar disso, há fontes holandesas que apontam que o princípio do numerus clausus já estava presente na Holanda no início do século XIX, especificamente em rascunhos do Código Civil Holandês elaborados peor Joan Melchior Kemper em 1816. Nesse esboço, havia a previsão textual de que só seriam considerados direitos in rem os assim indicados no código. Os demais direitos seriam pessoais. Esses rascunhos, porém, foram substituídos por códigos modelados com base no Código Civil Francês. O Código Civil holandês (BW15), nascido em 183816, continha um catálogo não exaustivo de direitos reais (real rights). Por esse motivo, as cortes holandesas no século XIX consentiam com a maior liberdade das partes para criar tipos de direitos reais. A doutrina holandesa do século XIX era mais receptiva ao princípio do numerus clausus do que as cortes. Dão exemplo disso os escritos de dois grandes juristas holandeses do século XIX: Diephuis e Opzoomer. Eles defendiam uma interpretação restritiva do BW em matéria de direitos reais. Faziam referência aos escritos do jurista francês Demolombe, que criticava a postura dos tribunais franceses em, no século XIX, favorecer demasiadamente a autonomia privada em matéria de direitos reais e que defendia a observância dos tipos jurídico-reais previstos pelo legislador. Na Holanda, a linha perfilhada por Diephuis e Opzoomer no sentido da adoção do numurus clausus para os direitos reais enraizou-se no pensamento jurídico holandês até que a Suprema Corte Holandesa (Hoge Haad), em 1905, consagrou essa tendência no caso Blaauboer v. Berlips, sobre o qual deitaramos holofotes mais à frente. Assim, a doutrina holandesa incorporou a maior restrição à autonomia privada nos moldes dos estudos dos pandectistas bem como seus conceitos de coisa, de liberdade de disposição da coisa e de proteção a terceiros adquirentes de boa-fé. Em suma, o princípio do numerus clausus já estava presente no pensamento jurídico neerdelandês desde o início do século XIX. Todavia, foram os trabalhos de Savigny e dos pandectistas alemães no final desse século que deram corpo a esse princípio. Continuaremos o tema na próxima coluna. __________ 1 No direito alemão, refere-se a Typengbundenheit com dois significados: um é de limitação ao dos números dos direitos reais (o que é conhecido como Typenzwang) e outro é com o de limitação do conteúdo do direito real (o que é chamado de Typenfixierung), conforme registra Bram Akkermans (AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 6-7). 2 No Direito Holandês, é mais comum referir-se a sistema fechado de direitos reais (het gesloten system van het goederenrecht). 3 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 59. 4 Tradução livre (apud STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 1999). 5 A lembrança da Jurisprudência dos Conceitos deve-se à acusação que esse movimento sofreu de distanciamento em relação à realidade, por conta da sua busca por uma orientação matemática do Direito. Para a Jurisprudência dos Conceitos, o direito não teria lacunas e poderia ser reduzido a sistemas conceituais lógicos (pyramid of concepts). A nova lei poderia deduzida logicamente de conceitos jurídicos superordenados, os quais podem ser identificados por meio de um raciocínio indutivo (método de inversão). A Jurisprudência dos Conceitos é acusada de ingenuidade epistemológica e lógica, de afastamento da realidade, de ofuscação de valores, de desconsideração do direito supradispositivo e de superestimação do método puramente dogmático (HAFERKAMP, Hans-Peter. Begriffsjurisprudenz/Jurisprudence of Concepts. Publicado em 6 de abrol de 2011 (Disponível aqui). 6 Sobre a difusão do trust pelo mundo, Kenneth G. C. Reid faz interessante abordagem em artigo integrante de obra sobre os caminhos a um Código Civil chinês, obra essa anterior ao mais recente Código Civil chinês (REID, Kenneth G. C. Conceptualizing the Chinese Trust: Some Thoughts from Europe. In: CHEN, Lei; VAN RHEE, C.H. Towards a Chinese Civil Code: Comparative and Historical Perspective. Leiden/The Netherlands; Boston/EUA: Publishers and Martinus Nijhoff Publishers, 2012, pp. 209-234). Ainda sobre o trust, ver: KOESSLER, James. Is there room for the trust in a civil law system? The French and Italian perspective. Publicado em março de 2012 (Disponível aqui). 7 Outro estudo de aprofundado sobre o numerus clausus, embora com foco nos direitos reais mobiliários, é de Bénédict Foëx (FOËX, Bénédict. Le numerus clausus des droit réels em matiére mobilière. Lausanne: Payot, 1987). 8 AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 387-396. 9 Robert Stevens trata disso. 10 O Pandectismo, também chamado de Jurisprudência dos Conceitos, recebeu esse nome pelo fato de os manuais dos autores integrantes da Escola Histórica do Direito intitularem-se pandectas como referência às Pandectas de Justiniano. A Escola Histórica entendia que o direito nasce do espírito do povo (Volksgeist, em alemão), ou seja, nas palavras de Savigny, das "forças silenciosas, e não do arbítrio do legislador" (Morais, 2021, p. 19; Cury e Marçal, 2009). A Escola Histórica foi precursora do positivismo normativista que surgiu com a Jurisprudências dos Conceitos. Opunha-se ao jusnaturalismo. Ihering criticou a Jurisprudência dos Conceitos por sua abstração e formalismo e desenvolveu, em oposição, a Jurisprudência dos Conceitos. 11 Robert Stevens trata do tema. 12 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, pp. 59-60. 13 MERRYMAN, John Henry. Policy, autonomy, and the numerus clausus in Italian and American property law. In: The American Journal of Comparative Law, vol. 12, nº 2, Spring 1963, pp. 224-231. 14 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 60. 15 Burgerlijk Wetboek, em holandês. 16 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicadas progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês, como lembra Liane Schmiedel.
O cartório de imóveis deve ou não exigir o registro de pacto antenupcial (ou de instrumento estrangeiro equivalente) no livro 3 no caso de casamentos realizados no exterior, com adoção de regime de bens em consonância com a lei brasileira? Esse registro é previsto para casamentos brasileiros, conforme art. 1.657 do Código Civil1 e nos arts. 178, V, e 244 da lei 6.015/73 - lei de registros públicos2. A pergunta é: Devemos ou não estender essa exigência para casamentos com elementos de transnacionalidade? Trataremos dessa questão envolvendo direito internacional privado no presente artigo. A pergunta envolve questão quotidiana nos cartórios de imóveis. Em conversa com o talentoso registrador de imóveis e professor Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, tomamos ciência de um caso interessante. Uma brasileira, casada com um belga na Bélgica, adotou o régime de la séparation de biens pure et simple3, ou seja, um regime de bens previsto na legislação belga que mantém a regra da incomunicabilidade dos bens. Na constância do casamento, ela comprou um imóvel no Brasil. Ao apresentar a escritura de compra e venda para registro no cartório de imóveis no Brasil, indaga-se: O registrador deveria ou não devolver o título, exigindo previamente o registro do pacto antenupcial ou do instrumento equivalente no livro 3 do cartório de imóveis? Entendemos a resposta é negativa. Isso, porque entendemos que a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de Imóveis do domicílio do casal é apenas para caso de regimes de bens regidos pela legislação brasileira. Não se aplica para regime de bens regidos pela lei estrangeira. De fato, no caso de casamento em situações transnacionais, o regime de bens será regido pela lei do primeiro domicílio do casal (se os nubentes tiverem domicílios diversos), conforme art. 7º, § 4º, da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/1942).4 No exemplo em pauta - em que uma brasileira domiciliada no Brasil se casou com um belga -, o primeiro domicílio do casal foi a Bélgica. Logo, o regime de bens a orquestrar esse casamento será o da legislação belga. Daí se se segue que não se pode aplicar a ele regras formais extensíveis apenas a regimes de bens da legislação brasileira, como a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do casal. Cabem alguns aprofundamentos. Em primeiro lugar, em matéria de Direito Internacional Privado, o ordenamento jurídico brasileiro precisa ser o mais hospitaleiro possível aos particulares, evitando interpretações legais extensivas que criem obstáculos burocráticos à formalização das relações jurídico-privadas transnacionais. Trata-se de uma inferência do princípio da harmonização internacional de direitos, tema que tratamos em outra oportunidade5. Sob essa ótica, adotar uma interpretação extensiva para exigir registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis diante de regimes de bens estrangeiros seria burocratizar indevidamente a formalização de relações jurídico-privadas transnacionais. Em segundo lugar, ao nos depararmos com regimes de bens regidos pela lei estrangeira, é preciso atentar para o fato de que eles não necessariamente guardarão correspondência com os regimes de bens da legislação brasileira. Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação de direitos estrangeiros, tema já tratado anteriormente.6 Em regra, o oficial de registro ou de notas não deve promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro. Deve, no lugar disso, buscar sempre referir-se ao regime de bens estrangeiro na sua forma pura com sua expressa indicação dos elementos de transnacionalidade. No exemplo citado no início deste artigo, o registrador de imóveis deverá remeter-se ao regime de bens pelo nome estrangeiro (ainda que acompanhado de eventual tradução) com indicação expressa do domicílio dos nubentes ao tempo do casamento bem como do primeiro domicílio conjugal, tudo a fim de permitir que o leitor identifique qual legislação será aplicável à luz do art. 7º, § 4º da LINDB. Não necessariamente o régime de la séparation de biens pure et simple previsto na legislação belga é idêntico ao regime da separação convencional de bens do Brasil. O próprio CNJ já acenou nesse sentido, em situação análoga, ao tratar de registro de união estável com elementos de transnacionalidade. O art. 539, III, do CNN-CNJ - Código Nacional de Normas do CNJ (provimento 149/23 - CNJ) estabelece que o registrador civil das pessoas naturais deve ater-se a indicar os dados essenciais para identificação desses elementos de transnacionalidade, sem promover qualquer tipo de adaptação de direito estrangeiro.7 Esse dispositivo esclarece o § 2º do art. 94-A da LRP.8 Sob essa ótica, não há motivos para se exigir o registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis para regimes de bens estrangeiros, especialmente porque sequer se deve, no âmbito extrajudicial, promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro (ao menos, em regra). Em último lugar, a própria exigência de registro da escritura pública de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis de domicílio do casal já não guarda mais aderência à realidade social atual. De fato, no Brasil, o pacto antenupcial é exigido para a escolha de regime de bens diverso do da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC9). O objetivo da exigência do registro do pacto antenupcial no cartório de imóveis do domicílio do casal é permitir que terceiros consigam, com mais facilidade, acessar o seu conteúdo. Credores, por exemplo, podem ter interesse em saber o regime de bens adotado pelo devedor, a fim de saber se poderão ou não pleitear a penhora de bens em nome da esposa dele. A regra fazia muito sentido no Brasil analógico da década de 1970, quando os serviços eletrônicos dos cartórios eram ainda meras ficções. Basta pensar em um casal cujo casamento ocorreu em Porto Alegre/RS, com escolha de um regime de bens atípico mediante escritura pública lavrada em um tabelionato de notas gaúcho. Imagine que esse casal se mude para Rio Branco/AC, mais de 4 mil quilômetros de distância. É fácil perceber o imenso transtorno que um terceiro interessado teria para viajar até Porto Alegre/RS a fim de obter uma certidão da escritura pública de pacto antenupcial. Por isso, a legislação exige o registro do pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do domicílio do casal. No exemplo, o casal gaúcho teria de registrar a escritura pública de pacto antenupcial no registro de imóveis de Rio Branco/AC, de modo a facilitar as buscas do terceiro. É intuitivo que, no Brasil digital da atualidade, marcado pela digitalização dos serviços notariais e registrais, já não há mais grandes dificuldades para terceiros obterem uma certidão da escritura do pacto antenupcial. Aliás, é nesse sentido que o próprio anteprojeto de reforma do Código Civil, elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal (ATS 11/13)10, propõe a supressão do registro auxiliar do pacto antenupcial. Seja como for, atualmente, ainda é obrigatório esse registro auxiliar no Brasil. Devemos, porém, interpretar isso apenas para regimes de bens brasileiros, sem adotar interpretações extensivas que venham a prejudicar casos de transnacionalidade. ___________ 1 Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges. 2 Art. 178 - Registrar-se-ão no Livro nº 3 - Registro Auxiliar: (...) V - as convenções antenupciais; (...) Art. 244 - As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros.   3 É preciso tomar cuidado, pois os regimes de bens da legislação belga possuem particularidades. Disponível aqui. 4 Art. 7o  A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. (....) § 4o  O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal. (...) 5 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Publicado em 2022. Disponível aqui. 6 Confira-se: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte I (noções gerais). Disponível aqui. 7 Art. 539. O registro dos títulos de declaração de reconhecimento ou de dissolução da união estável será feito no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar, no mínimo: (...) III - caso se trate da hipótese do § 2.º do art. 94-A da Lei n. 6.015, de 1973: a) a indicação do país em que foi lavrado o título estrangeiro envolvendo união estável com, ao menos, um brasileiro; e b) a indicação do país em que os companheiros tinham domicílio ao tempo do início da união estável e, no caso de serem diferentes, a indicação do primeiro domicílio convivencial. 8 Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) (...) § 2º As sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, nos quais ao menos um dos companheiros seja brasileiro, poderão ser levados a registro no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) § 3º Para fins de registro, as sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados de tradução juramentada. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) 9 Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. 10 Disponível aqui.
1. Introdução Cuidaremos de como o Código Civil Argentino (CC/Ar)1 trata das situações de incapacidade, com foco na situação das crianças e adolescentes. Para esclarecimentos de alguns pontos, tivemos a oportunidade de conversar com a professora Aida Kemelmajer de Carlucci, que foi uma das integrantes da Comissão de Juristas para Elaboração do Código Civil argentino/15 e que é umas das civilistas mais importantes da Argentina. Ao final, realizaremos comparações com o direito civil brasileiro. Antecipamos que a conclusão é no sentido de que a legislação brasileira não precisa ser explícita sobre a autonomia progressiva da criança e adolescente, pois essa afirmação genérica não representaria nenhuma inovação legislativa efetiva, tudo conforme sugestão da Comissão de Juristas para atualização do Código Civil brasileiro. O caminho é a doutrina e a jurisprudência ir amadurecendo os casos concretos que forem surgindo, no que a experiência argentina poderá ser útil para enriquecer as reflexões. A positivação deverá acontecer de modo mais específico, a partir dos consensos que vierem a ser formados a partir de casos concretos. 2. Argentina O CC/Ar admite a categoria de capacidade de exercício (capacidad de ejercicio) e estabelece que toda pessoa é apta para exercer, por si só, os seus direitos, observada as limitações previstas em lei e em sentença. É o art. 23 do CC/Ar: ART. 23.- Capacidad de ejercicio. Toda persona humana puede ejercer por sí misma sus derechos, excepto las limitaciones expresamente previstas en este Código y en una sentencia judicial. Sob essa ótica, o art. 24 e 25 do CC/Ar indica que são incapazes de exercício: as pessoas a nascer, ou seja, o nascituro; as pessoas com idade inferior a 18 anos (pessoas menores de idade); as pessoas declaradas incapazes por sentença judicial na extensão dela.  Veja os referidos dispositivos: ART. 24.- Personas incapaces de ejercicio. Son incapaces de ejercicio: la persona por nacer; la persona que no cuenta con la edad y grado de madurez suficiente, con el alcance dispuesto en la Sección 2ª de este Capítulo; la persona declarada incapaz por sentencia judicial, en la extensión dispuesta en esa decisión. Seccion 2ª Persona menor de edad ART. 25.- Menor de edad y adolescente. Menor de edad es la persona que no ha cumplido dieciocho años. Este Código denomina adolescente a la persona menor de edad que cumplió trece años. No caso das crianças e dos adolescentes2, a regra é a de elas exerçam seus direitos por meio de seus representantes legais. Todavia, o art. 26 do CC/Ar reconhece que, mesmo para quem idade inferior a 18 anos, é preciso reconhecer-lhes autonomia para a prática de alguns atos jurídicos sem representação. Para essas hipóteses, o referido dispositivo refere-se a mirins com idade e grau de maturidade suficiente ("edad y grado de madurez suficiente"). A vontade da criança e do adolescente é, ao máximo, respeitada pelo CC/Ar, respeitado o seu grau de maturidade. Nesse sentido, o art. 26 do CC/Ar estatui que essas pessoas menores de 18 anos, no caso de conflito de interesse com os representantes legais (como os pais), podem "intervir com assistência letrada", ou seja, podem buscar um advogado para acessar a Justiça contra seus pais3. A propósito, em conversa pessoal, a professora argentina Aida Kemelmajer esclareceu que, na Argentina, após muitas dificuldades operacionais, quase todas as províncias possuem uma estrutura que permite as crianças e adolescentes obterem assistência judiciária para acessarem a Justiça. A propósito, transcrevemos excerto de suas considerações lançadas por conversa eletrônica com este autor: El articulo 26, al igual que otros muchos artículos del código argentino (por ej., art. 677 ART. 677.- Representación. Los progenitores pueden estar en juicio por su hijo como actores o demandados. Se presume que el hijo adolescente cuenta con suficiente autonomía para intervenir en un proceso conjuntamente con los progenitores, o de manera autónoma con asistencia letrada.) recoge la figura del abogado del niño, aceptada por la Convención Internacional de los derechos del niño. El abogado del niño ha sido objeto de muchos estudios con diversas opiniones (le envio copia de la parte pertinente de un trabajo mio sobre autonomia progresiva, que quizás pueda servirle). (...) En los hechos, ese adolescente conoce al abogado a través del propio sistema judicial, o la asistencia de los colegios de abogados que tienen un departamento etc... O sea, costó mucho organizar ese servicio pero hoy está en casi todas las provincia.s. La figura va unida a la de la AUTONOMIA PROGRESIVA de los niños, niñas y adolescentes. Al principio se criticaba la figura porque se decía que contratar a un abogado es un contrato y hay que tener capacidad contractual que el niño no tiene; después de analizó con mayor profundidad; no se trata solo de contratar sino de tener ACCESO A LA JUSTICIA; no hay verdadero acceso sin asistencia de un letrado; si es así, basta la autonomia progresiva y no la mayoría de edad. Também se assegura à pessoa menor de idade o direito de ser ouvida em qualquer processo judicial que lhe diga respeito. Também tem o direito de participar das decisões que digam respeito à sua pessoa. No caso de tratamentos médicos, o art. 26 do CC/Ar é mais detalhado a depender da idade do mirim. Se ele tem mais de 16 anos, ele é considerado adulto para tomar as decisões em relação ao seu próprio corpo. Se, porém, sua idade é de 13 a 16 anos, o adolescente poderá decidir sozinho apenas se o tratamento médico não for grave (ou melhor, invasivo ou arriscado à vida ou à integridade física). Caso o tratamento seja grave, o adolescente terá de decidir com assistência dos seus pais. Veja o art. 26 do CC/Ar: ART. 26.- Ejercicio de los derechos por la persona menor de edad. La persona menor de edad ejerce sus derechos a través de sus representantes legales. No obstante, la que cuenta con edad y grado de madurez suficiente puede ejercer por sí los actos que le son permitidos por el ordenamiento jurídico. En situaciones de conflicto de intereses com sus representantes legales, puede intervenir con asistencia letrada. La persona menor de edad tiene derecho a ser oída en todo proceso judicial que le concierne así como a participar en las decisiones sobre su persona. Se presume que el adolescente entre trece y dieciséis años tiene aptitud para decidir por sí respecto de aquellos tratamientos que no resultan invasivos, ni comprometen su estado de salud o provocan un riesgo grave en su vida o integridad física. Si se trata de tratamientos invasivos que comprometen su estado de salud o está en riesgo la integridad o la vida, el adolescente debe prestar su consentimiento con la asistencia de sus progenitores; el conflicto entre ambos se resuelve teniendo en cuenta su interés superior, sobre la base de la opinión médica respecto a las consecuencias de la realización o no del acto médico. A partir de los dieciséis años el adolescente es considerado como un adulto para las decisiones atinentes al cuidado de su propio cuerpo. 3. Comparação com o Brasil No Brasil, o texto legal não é detalhado. Mas, doutrinariamente, a tendência é o respeito da vontade da criança e do adolescente a depender de sua idade e de seu grau de maturidade. Reconhece-se, na prática, a autonomia progressiva da pessoa menor de idade. A regra geral é a de que, até os 16 anos, o mirim é absolutamente incapaz e, por isso, precisa ser representado por seus pais ou, se for o caso, outro representante legal na prática de atos jurídicos. Em palavra mais populares, só o representante legal assina os contratos ou manifesta a vontade em nome do mirim. Este sequer é ouvido. Se a pessoa menor de 16 anos praticar o negócio jurídico solitariamente, haverá nulidade absoluta. A partir dos 16 anos, a pessoa é relativamente incapaz e, nessa condição, tem de manifestar pessoalmente a vontade para a prática de atos jurídicos. Seus pais ou, se for o caso, outro amparador4 precisam consentir também: atuam como assistentes do adolescente de mais de 16 anos. Sem a assistência do amparador, o negócio jurídico praticado pela adolescente de mais de 16 anos será anulável. Esse é o figurino legal textual, conforme arts. 3º, 4º, 166, I, 171, 1.634, VII, e 1.747, I, do CC5. Entretanto, o art. 185 do CC - em uma regra extremamente elogiável - deixa uma abertura para o juiz analisar cada caso concreto quando se tratar de ato jurídico stricto sensu, e não de negócio jurídico. Isso, porque as regras de invalidade dos atos praticados pela pessoa menor de 18 anos são endereçadas a negócios jurídicos. A diferença é que o ato jurídico stricto sensu tem seus efeitos predeterminados pela lei, ao passo que os efeitos jurídicos dos negócios jurídicos são desenhados pela vontade da própria pessoa. Isso significa que os negócios jurídicos exigem uma vontade incrementada da pessoa, para garantir que ela tenha pleno discernimento acerca dos deveres e direitos que está a assumir. Já o ato jurídico stricto sensu pode satisfazer-se com uma vontade menos incrementada do indivíduo, pois os efeitos jurídicos procederão da lei (efeito ope legis). Ao lado desse quadro geral, há alguns pontos em que a legislação brasileira é mais específica. Por exemplo, ela: condiciona a adoção ao consentimento do adolescente, definido no Brasil para quem tem mais de 12 anos6, conforme art. 45, § 2º, do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90)7; permite o trabalho a partir de 16 anos e, no caso de aprendiz, a partir de 14 anos, conforme inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal8; autoriza o testamento por adolescente de mais de 16 anos (art. 1.860, parágrafo único, CC9); credencia testemunhas com idade a partir de 16 anos (art. 228, I, CC10). Em outros pontos, a legislação é silente, abrindo espaço para debates doutrinários. A doutrina majoritária é no sentido de reconhecer a relevância da vontade da pessoa incapaz para situações existenciais, respeitado o seu grau de discernimento. Veja o enunciado 138 das JDC - Jornadas de Direito Civil: Enunciado 138/JDC: A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto. A doutrina também é pacífica em admitir atos-fatos jurídicos praticados apenas por crianças e adolescentes, especialmente em questões de pequeno valor e toleráveis socialmente. Por exemplo, é válido o contrato de compra de um sorvete por uma criança ou um adolescente, mesmo sem a participação de seus pais. O problema, porém, é discutir casos concretos, tarefa da qual a doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm se desincumbido paulatinamente. De qualquer forma, entendemos que a solução do CC/Ar merece atenção nas reflexões a serem feitas diante dos casos concretos que forem surgindo. Pense, por exemplo, no caso de um adolescente, de 17 anos, que precisa realizar uma cirurgia de amputação da perna para tentar salvar-se de um sério problema de saúde. Seria necessário consentimento de seus pais para tanto? Ou bastaria a vontade do adolescente? O médico teria de aguardar o consentimento dos pais para realizar a cirurgia? Entendemos que, se a vida do adolescente está em flagrante perigo, não há por que aguardar consentimento dos pais, especialmente se o próprio adolescente manifestou sua vontade favorável ao procedimento. Afinal, além da recomendação médica, a vontade do adolescente de 17 anos é juridicamente relevante. Há vários casos concretos sensíveis ainda a serem enfrentados, como a autonomia da criança ou do adolescente para fazer cirurgias meramente estéticas sem o consentimento dos pais. Trata-se de assuntos ainda não amadurecidos na comunidade jurídica. Nesse contexto, consideramos que a legislação brasileira não precisa ser textual acerca da autonomia progressiva da criança e do adolescente. Isso, porque essa autonomia progressiva já é um lugar comum na doutrina e na jurisprudência. Afirmar isso textualmente não importaria em nenhuma novidade legislativa. O que realmente importa é definir casos concretos, o que, em um primeiro momento, deve ficar a cargo da doutrina e da jurisprudência. Futuramente, com amadurecimento da doutrina e da jurisprudência, convirá a positivação dessas regras específicas e pontuais. Aliás, essa foi a posição da Comissão de Juristas para Atualização do Código Civil do Senado Federal, da qual tivemos a honra de ser membro11. O anteprojeto entregue ao Presidente do Senado não positivou a autonomia progressiva da criança e do adolescente por mera desnecessidade legislativa. Durante os debates da comissão, o tema foi levantado para debates, com o surgimento de um texto muito bem escrito nesse sentido12. Todavia, a Comissão preferiu manter o silêncio no texto legal, o que nos pareceu adequado. __________ 1 Referimo-nos ao Codigo Civil y Comercial de La Nacion (Ley 26.994), que entrou em vigor no ano de 2015. Disponível aqui. 2 O CC/Ar não emprega os termos criança e adolescente. Ele apenas se refere a pessoas menores de idade para se referir a todos que têm menos de 18 anos, além de se referir a adolescente para se reportar a quem tem mais de 13 anos (art. 26 do CC/Ar). 3 Deixaremos para tratar do tema em outra ocasião. 4 Chamamos de amparador aqueles que recebem o munus de algum instituto de amparo (como a tutela, a curatela e a guarda do Estatuto da Criança e Adolescente). 5 Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.  (...) Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:  I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; (...) Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; (...) Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; (...) Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (...)  VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; (...) Art. 1.747. Compete mais ao tutor: I - representar o menor, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte; 6 Art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990): Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 7 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando. (...) § 2º. Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento. 8 Art. 7º, XXXIII, CF: "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos". 9 Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento. Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos. 10 Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas: I - os menores de dezesseis anos; 11 Sobre os trabalhos da Comissão, ver aqui. 12 O texto é este, fruto de sugestão da Relatoria-Geral da Comissão de Juristas (a Relatoria-Geral foi composta pelos geniais Professores Flávio Tartuce e Rosa Nery): Art. 4o-A. E' reconhecida a autonomia progressiva da criança e do adolescente, devendo ser considerada a sua vontade em todos os assuntos a eles relacionados, de acordo com sua idade e maturidade.
1. Introdução Quando há conflito entre leis de diferentes países para regular situações privadas transnacionais, a solução geralmente é encontrada nos tradicionais elementos de conexão. Um deles é o lex rei sitae, segundo o qual se deve aplicar a lei do lugar do bem para disciplinar questões relativas à titularidade dele, como os direitos reais (estatuto real). Se, por exemplo, compro um imóvel em Paris (França), o meu direito de propriedade sobre esse bem será disciplinado pela lei francesa, pois é a lei do lugar do bem. Não será a lei brasileira, ainda que eu tenha nacionalidade brasileira. Isso, porque vigora o lex rei sitae como elemento de conexão na maior parte dos ordenamentos jurídicos. Uma figura interessantíssima que vem sendo admitida em alguns ordenamentos para flexibilizar esses elementos de conexão à vista das particularidades do caso concreto é a chamada escape clause. Antecipamos que, apesar da falta de previsão expressa na legislação brasileira, entendemos como aplicável a escape clause. Deixaremos, porém, para outra oportunidade os fundamentos. 2. Escape clause Convém aprofundar a cláusula de exceção, também chamada de cláusula de salvaguarda, de cláusula de escape ou, em inglês, de the escape clause ou exception clause. Embora a doutrina portuguesa costume valer-se da expressão "cláusula de exceção", preferimos "cláusula de escape" como mais adequada tradução para evitar confusão com o uso que a doutrina brasileira faz do verbete "exceção" para diversas outras situações1. Nomenclaturas devem ser selecionadas de modo a evitar confusões prima facie do pesquisador. Ela foi introduzida pelo Direito Alemão em 19992, especificamente no art. 46 da Lei de Introdução ao Código Civil Alemão (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Como o referido dispositivo do EGBGB remete-se aos arts. 43 e 45, transcrevem-se todos eles3: Art. 43. Direitos in rem (1) Os direitos reais são regidos pela lei do Estado em que a coisa estiver situada. (2) Se a coisa à qual se vinculam os direitos reais chegar a outro Estado, esses direitos não podem ser exercidos em contradição com a ordem jurídica desse Estado. (3) Se um direito real em um item que ingressa no País sem ter sido adquirido previamente, os fatos ocorridos no Estado de origem quanto à aquisição do item consideram-se feitas neste País. Art. 45. Meios de transporte (1) Direitos reais sobre veículos de transporte aéreo, aquático e ferroviário são regidos pela lei do Estado de origem. Isto é:                 1. quanto às aeronaves, o Estado de sua nacionalidade;                 2. quanto às embarcações, o Estado onde estão registradas ou, se inexistir registro, o Estado do porto de origem ou do local de origem.                 3. quanto aos veículos ferroviários, o Estado de seu registro. (2) A constituição de garantias reais sobre esses veículos sujeita-se à lei aplicável ao crédito garantido. A classificação entre as várias garantias reais segue o art. 43(1). Art. 46. Conexão substancialmente próxima Se houver uma conexão substancialmente mais estreita com a lei de um Estado diferente daquele em que se aplicaria à luz dos arts. 43 e 45, então essa lei será aplicável. A cláusula de exceção foi introduzida na Alemanha com o objetivo de socorrer as situações em que a lex situs se revelasse insuficiente diante de certas figuras jurídico-reais e com o intento de prevenir problemas gerados pela circulação de bens móveis4. Esse dispositivo permite afastar a lex situs em favor da lei de outro Estado com a qual as particularidades do caso concreto guardem maior conexão. A introdução da cláusula de exceção pelos alemães não se ateve ao estatuto real. Alcançou também matérias de obrigações e de responsabilidade civil, conforme art. 41 do EGBGB. Veja o seu teor5: Art. 41. Conexão substancialmente próxima (1) Se houver uma conexão substancialmente mais estreita com a lei de um Estado diferente da aplicável nos termos dos arts. 38 a 40(2), aplicar-se-á a lei desse outro Estado. (2) Uma conexão substancialmente mais próxima pode ser baseada:                 1. em uma relação jurídica ou de fato entre pessoas envolvidas na obrigação;                 2. nos casos do art. 38, parágrafos 3 e 3, e do art. 39, sobre o fato de as pessoas envolvidas terem sua residência habitual no mesmo Estado no momento dos fatos relevantes. O art. 40, parágrafo 2º, 2ª parte, aplica-se mutatis mutandi. O supracitado art. 41 do EGBGB prevê a cláusula de escape para flexibilizar os elementos de conexão adotados como regra geral para o enriquecimento sem causa (art. 38, EGBGB), gestão de negócios (art. 39, EGBGB) e responsabilidade civil (art. 40, EGBGB). O art. 46 do EGBGB pode ser complementado pelo art. 41 do EGBGB, pois ambos versam sobre a cláusula de escape, embora para domínios diferentes (o art. 46 para o estatuto real, e o art. 41 para os estatutos obrigacional e de responsabilidade civil). Por exemplo, a ideia de avaliar eventual conexão mais próxima a partir da análise da proximidade dos sujeitos envolvidos - tal qual previsto no art. 41(2) - pode ser transposto para a aplicação da cláusula de escape para o estatuto real. Chama a atenção a preocupação com terceiros de boa-fé no art. 41(2) do EGBG. O preceito reconhece o direito real de garantia como acessório em relação a um veículo e, por isso, determina aplicação da lei que rege o crédito para a constituição do direito real de garantia. Todavia, preocupado com terceiros de boa-fé, o dispositivo estabelece que, para determinar o grau de prioridedade entre os ônus reais incidentes sobre o veículo (como na hipótese de pluralidade de direitos reais de garantia sobre o mesmo bem), aplica-se a lex rei sitae. Com isso, outros titulares de direitos reais de garantia não serão prejudicados no caso de concorrência na excussão da coisa: a ordem de prioridade será da lex rei sitae, e não uma aleatória que poderia ser escolhida a depender do crédito garantido. Não haverá insegurança jurídica quanto à lei regente da ordem de prioridade creditória. O art. 41(2) do EGBGB, em suma, prestigia o professio iuris (a autonomia conflitual) para afastar a lex rei sitae, salvo no que for prejudicial a terceiros de boa-fé6. Parece-nos que o art. 23 do EGBG também prevê uma cláusula de escape, apesar de não fazer referência expressamente à ideia de conexão. O critério aí seria o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ("o interesse superior da criança") para afastar a regra geral do elemento de conexão. Transcreve-se o referido dispositivo7: Art. 23. Consentimento A necessidade e a outorga de consentimento da criança e da pessoa a ela relacionada à luz do direito de família como requisito de atribuição de um nome ou de adoção são adicionalmente regidas pela lei da nacionalidade da criança. Quando o interesse superior da criança assim o exigir, será aplicada a lei alemã. A cláusula de escape também está presente na legislação da Suíça e da União Europeia. Na Suíça, a referência é aos arts. 15 e 48 do Código Suíço de Direito Internacional Privado (Switzerland's Federal Code on Private International Law - CPLI)8: Art. 15. Cláusula de exceção 1. A lei designada por este Código não será aplicada nas situações excepcionais em que, à luz das circunstâncias, seja manifesto que o caso tem apenas uma muito limitada conexão com aquela lei e possui uma conexão muito mais forte com outra lei. 2. Este artigo não se aplica no caso de escolha da lei pelas partes. Art. 48. Lei aplicável 1. Os efeitos do casamento serão regidos pela lei do Estado de domicílio dos nubentes. 2. No caso de os nubentes terem domicílios diversos, os efeitos do casamento serão governados pela lei do Estado do domicílio com o qual o caso concreto tenha uma conexão mais próxima. (...) O supracitado art. 15 do CPLI aplica-se a todos os elementos de conexão, inclusive ao lex rei sitae, enquanto o retrocitado art. 48 foca o estatuto matrimonial. No âmbito do direito comunitário europeu, a cláusula de escape está no Regulamento (UE) Roma I (Regulamento UE nº 593/2008) e no Regulamento (UE) Roma II (Regulamento UE nº 864/2007). Nesses casos, a cláusula de escape aplica-se para o estatuto obrigacional (obrigações contratuais e extracontratuais). Confira os itens 20 e 21 do considerando e o art. 4º(3) do Regulamento (UE) Roma I9: (20)  Se o contrato apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 4.º, uma cla´usula de salvaguarda devera´ estabelecer que e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s. Para determinar qual e´ esse pai´s, devera´ ser tido em conta, nomeadamente, se o contrato em questa~o esta´ estreitamente ligado a outro contrato ou a uma se´rie de contratos.  (21) Na falta de escolha, se a lei aplicável não puder ser determinada com base no fato de o contrato poder ser classificado num dos tipos especificados ou como sendo a lei do país de residência habitual do contratante que deverá efetuar a prestação característica do contrato, o contrato deverá ser regulado pela lei do país com o qual apresenta conexão mais estreita. Para determinar qual é esse país, deverá ter-se em conta, nomeadamente, se o contrato em questão está estreitamente ligado a outro contrato ou a uma série de contratos. (...) Artigo 4.º Lei aplicável na falta de escolha 1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.o e sem prejui´zo dos artigos 5.o a 8.o, a lei aplica´vel aos contratos e´ determinada do seguinte modo:  a)  O contrato de compra e venda de mercadorias e´ regulado pela lei do pai´s em que o vendedor tem a sua reside^ncia habitual;  b)  O contrato de prestac¸a~o de servic¸os e´ regulado pela lei do pai´s em que o prestador de servic¸os tem a sua reside^ncia habitual;  c) O contrato que tem por objecto um direito real sobre um bem imo´vel ou o arrendamento de um bem imo´vel e´ regulado pela lei do pai´s onde o imo´vel se situa;  d)  Sem prejui´zo da ali´nea c), o arrendamento de um bem imo´vel cele¬ brado para uso pessoal tempora´rio por um peri´odo ma´ximo de seis meses consecutivos e´ regulado pela lei do pai´s em que o proprieta´rio tem a sua reside^ncia habitual, desde que o locata´rio seja uma pessoa singular e tenha a sua reside^ncia habitual nesse mesmo pai´s;  e)  O contrato de franquia e´ regulado pela lei do pai´s em que o fran¬ queado tem a sua reside^ncia habitual;  f)  O contrato de distribuic¸a~o e´ regulado pela lei do pai´s em que o distribuidor tem a sua reside^ncia habitual;  g)  O contrato de compra e venda de mercadorias em hasta pu´blica e´ regulado pela lei do pai´s em que se realiza a compra e venda em hasta pu´blica, caso seja possi´vel determinar essa localizac¸a~o;  h)  Um contrato celebrado no a^mbito de um sistema multilateral que permita ou facilite o encontro de mu´ltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos financeiros, na acepc¸a~o do ponto 17) do n.º 1 do artigo 4.º da Directiva 2004/39/CE, de acordo com regras na~o discriciona´rias e regulado por uma u´nica lei, e´ regulado por essa lei.  2. Caso os contratos na~o sejam abrangidos pelo n.o 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das ali´neas a) a h) do n.o 1, esses contratos sa~o regulados pela lei do pai´s em que o contraente que deve efectuar a prestac¸a~o caracteri´stica do contrato tem a sua reside^ncia habitual.  3. Caso resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que o contrato apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  4. Caso a lei aplica´vel na~o possa ser determinada nem em aplicac¸a~o do n.º 1 nem do n.º 2, o contrato e´ regulado pela lei do pai´s com o qual apresenta uma conexa~o mais estreita.  Confira, ainda, os itens 14, 18, 19 e 20 dos Considerandos bem como o art. 4º(3), o art. 10º(4), o art. 11º(4) e o art. 12º(2)(c) do Regulamento Roma II10: (14) A exige^ncia de certeza juri´dica e a necessidade de administrar a justic¸a nos casos individuais sa~o elementos essenciais de um espac¸o de justic¸a. O presente regulamento estabelece os factores de conexa~o mais apropriados para a consecuc¸a~o desses objectivos. Consequentemente, o presente regulamento estabelece uma regra geral, mas tambe´m regras especi´ficas e, em certas disposic¸o~es, uma «cla´usula de salvaguarda» que permite na~o aplicar essas regras se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com outro pai´s. Assim, este conjunto de regras cria um quadro flexi´vel de regras de conflitos. Ale´m disso, permite ao tribunal em que a acc¸a~o e´ proposta tra- tar os casos individuais da forma adequada.  (...) (18)  A regra geral consagrada no presente regulamento devera´ ser a lex loci damni, prevista no n.º 1 do artigo 4.º. O nº 2 do artigo 4.º devera´ ser visto como uma excepc¸a~o a este princi´pio geral, criando uma conexa~o especial caso as par- tes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s. O n.º 3 do artigo 4.º devera´ ser entendido como uma «cla´usula de salvaguarda» relativamente aos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco apresenta uma conexa~o manifestamente mais estreita com outro pai´s.    (19) Deverão ser previstas regras específicas para os casos especiais de responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco em relação aos quais a regra geral não permite obter um equilíbrio razoável entre os interesses em presença.  (20) A regra de conflito de leis em mate´ria de responsabilidade por produtos defeituosos devera´ responder aos objectivos que consistem na justa repartic¸a~o dos riscos inerentes a uma sociedade moderna de alta tecnologia, na protecc¸a~o da sau´de dos consumidores, na promoc¸a~o da inovac¸a~o, na garantia de uma concorre^ncia na~o falseada e na facilitac¸a~o das trocas comerciais. A criac¸a~o de um sistema em cascata de factores de conexa~o, acompanhada de uma cla´usula de previsibilidade, constitui uma soluc¸a~o equilibrada em relac¸a~o a estes objectivos. O primeiro aspecto a ter em conta e´ a lei do pai´s onde o lesado tenha a sua reside^ncia habitual, no momento em que tenha ocorrido o dano, se o produto tiver sido comercializado nesse pai´s. Os outros elementos da cascata sa~o desencadeados se o produto na~o tiver sido comercializado nesse pai´s, sem prejui´zo do n.º 2 do artigo 4.º e da possibilidade de uma conexa~o manifes- tamente mais estreita com outro pai´s.  (...) Artigo 4.º Regra geral 1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel a`s obrigac¸o~es extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco e´ a lei do pai´s onde ocorre o dano, independentemente do pai´s onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do pai´s ou pai´ses onde ocorram as conseque^ncias indirectas desse facto.  2. Todavia, sempre que a pessoa cuja responsabilidade e´ invocada e o lesado tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o dano, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias que a responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.ºs 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s. Uma conexa~o manifestamente mais estreita com um outro pai´s podera´ ter por base, nomeadamente, uma relac¸a~o preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligac¸a~o estreita com a responsabilidade fundada no acto li´cito, ili´cito ou no risco em causa.  Artigo 10.º Enriquecimento sem causa 1. Se uma obrigac¸a~o extracontratual que decorra de enriquecimento sem causa, incluindo o pagamento de montantes indevidamente recebidos, estiver associada a uma relac¸a~o existente entre as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em res- ponsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco que apresente uma conexa~o estreita com esse enriquecimento sem causa, e´ aplica´vel a lei que rege essa relac¸a~o.  2. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base no n.º 1 e as partes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao enriquecimento sem causa, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base nos n.º 1 ou 2, e´ aplica´vel a lei do pai´s onde tenha ocorrido o enriquecimento sem causa.  4. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso, que a obrigac¸a~o extracontratual que decorra de enriquecimento sem causa tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.os 1, 2 e 3, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  Artigo 11.º Negotiorum gestio 1. Se uma obrigac¸a~o extracontratual que decorra da pra´tica de um acto relativamente a nego´cios alheios sem a devida autorizac¸a~o estiver associada a uma relac¸a~o previamente existente entre as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em responsabilidade fundada em acto li´cito, ili´cito ou no risco que apre- sente uma conexa~o estreita com essa obrigac¸a~o extracontratual, a lei aplica´vel e´ a lei que rege essa relac¸a~o.  2. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base no n.º 1 e as partes tenham a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao dano, e´ aplica´vel a lei desse pai´s.  3. Sempre que a lei aplica´vel na~o possa ser determinada com base nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei do país onde tenha sido praticado o ato. 4. Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a obrigac¸a~o extracontratual que decorra da pra´tica de um acto relativamente a nego´cios alheios sem a devida autorizac¸a~o tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nos n.os 1, 2 e 3, e´ aplica´vel a lei desse outro pai´s.  Artigo 12.º Culpa in contrahendo 1. A lei aplica´vel a uma obrigac¸a~o extracontratual decorrente de negociac¸o~es realizadas antes da celebrac¸a~o de um contrato, independentemente de este ser efectivamente celebrado, e´ a lei aplica´vel ao contrato ou que lhe seria aplica´vel se tivesse sido celebrado.  2. Caso na~o possa ser determinada com base no n.o 1, a lei aplica´vel e´:  a)  A lei do pai´s onde ocorre o dano, independentemente do pai´s em que tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e do pai´s ou pai´ses em que ocorram as conseque^ncias indi- rectas desse facto; ou,  b)  Quando as partes tiverem a sua reside^ncia habitual no mesmo pai´s no momento em que ocorre o facto que da´ origem ao dano, a lei desse pai´s; ou,  c)  Se resultar claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que a obrigac¸a~o extracontratual, decorrente de negociac¸o~es realizadas antes da celebrac¸a~o de um contrato, tem uma conexa~o manifestamente mais estreita com um pai´s diferente do indicado nas ali´neas a) e b), a lei desse outro pai´s.  __________ 1 Aludimos, exemplificamente, às figuras da exceção de contato não cumprido, da exceção de inseguridade, da exceção como meio de defesa diante de uma pretensão etc. 2 DEUTSCHER BUNDESTAG. Entwurf eines Gesetzes zum Internationalen Privatrecht für außervertragliche Schuldverhältnisse und für Sachen. Publicado em 1999 (Disponível aqui). 3 Tradução livre (FEDERAL MINISTRY OF JUSTICE. Introductory Act to the Civil Code (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Disponível aqui). 4 PATRÃO, Afonso. Autonomia conflitual na hipoteca e reforço da cooperação internacional: Removendo obstáculos ao mercado europeu de garantias imobiliárias. Lisboa/Portugal: Livros Horizonte, 2017, p. 481. 5 Tradução livre (FEDERAL MINISTRY OF JUSTICE. Introductory Act to the Civil Code (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). Disponível aqui). 6 VAN DER WEIDE, Jeoroen. Party Autonomy in Dutch International Property Law. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 112. 7 Tradução livre (Federal Ministry of Justice, 2022). 8 Tradução livre (FEDLEX. Federal Act on Private International Law. Data 18 de December 1987 (Disponível aqui). 9 Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (Roma I). Data: 17 de junho de 2008 (Disponível aqui). 10 Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho (Roma II). Data: 11 de julho de 2007 (Disponível aqui).
Situações transnacionais podem gerar conflitos de leis. Se, por exemplo, uma pessoa faz um testamento em um país envolvendo imóvel situado em outro, poderá haver conflitos das leis. Cuidaremos aqui de um interessante caso ocorrido na União Europeia sobre esse tema, com o objetivo de deixar espaço para reflexões a casos que possam vir a ocorrer envolvendo problemas transnacionais no Brasil. O caso envolveu a necessidade de utilização da técnica de adaptação de direito real estrangeiro, já tratado nesta coluna. De fato, a adaptação de direitos reais estrangeiros em decorrência de transferência por sucessão mortis causa nos termos do Regulamento Europeu das Sucessões1 foi tratada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) poucas vezes. O principal acórdão sobre a matéria é o Acórdão Kubicka (processo nº C-218/2016)2, o qual merece relato para ilustração casuística da figura. O acórdão envolve conflito entre a lei alemã e a lei polonesa. A cidadã polonesa Aleksandra Kubicka morava na cidadã alemã de Francoforte do O'der. Dirigiu-se à cidade polonesa de Slubice para lavrar um testamento público3 perante uma notária polonesa. No testamento, a Sra. Kubicka deixou a seu marido, a título de legado vindicatório (per vindicationem), a fração ideal que titularizava sobre um imóvel situado na Alemanha. A lei polonesa acolhe dois tipos de legado: o vindicatório e o obrigacional (arts. 968º e 981º, nº 1, do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny)4. Em relação ao legado vindicatório, é exigido testamento por escritura pública. Esse tipo de legado é caracterizado por acarretar a transmissão imediata da propriedade ao legatário quando da morte do testador (art. 981, n. 1, do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny). Nesse caso, o legatário passa a ser titular do direito real de propriedade sobre o legado no momento da morte do testador. Já o legado obrigacional (per damnationem) pode ser formalizado por qualquer tipo de testamento e é caracterizado pelo fato de o herdeiro receber o dever de transferir o legado ao legatário (art. 968 do Código Civil Polonês - Kodeks Cywilny). No legado obrigacional, a transmissão da propriedade não ocorre com a morte, e sim com um ato postetrior dos herdeiros: estes recebem a propriedade quando da morte e, posteriormente, "pagam" os legatários, transferindo-lhes o legado. Nesse caso, o legatário, quando da morte, é titular de um direito pessoal (obrigacional) em exigir dos herdeiros a entrega da coisa legada5. O problema é que o imóvel objeto do legado vindicatório está situado na Alemanha e, nesse país, o legado vindicatório não é admitido. O § 2174 do Código Civil Alemão (BGB) só permite o legado obrigacional (per dammanationem). Considerando que, para direitos reais, deve-se aplicar a lei do lugar da coisa (lex rei sitae), surge a discussão: deve ou não ser admitido o legado vindicatório previsto na lei polonesa em relação a imóvel situado na Alemanha? O fato é que a Sra. Kubicka, objetivando evitar discussões jurídicas, escolheu a lei polonesa para reger a sucessão mortis causa. O notário polonês, todavia, recusou-se a lavrar o testamento. Entendeu que a lei alemã necessariamente teria de ser aplicada ao caso por se tratar de questão envolvendo direito real sobre imóvel, tudo à luz do elemento de conexão da lex rei sitae. Irresignada, a Sra. Kubicka, após recusa do notário polonês em reconsiderar sua decisão, recorreu ao Tribunal Regional de Gorzów Wielkopolski6. Essa Corte polonesa deflagrou um processo de reenvio prejudicial perante o Tribunal de TJUE para obter uma interpretação adequada do Regulamento Europeu das Sucessões. O TJUE entendeu que, na espécie, não se estava tratando de regra de direito real, e sim de direito sucessório. A qualificação dada ao fato não foi de direito real, e sim de direito sucessório. A Corte europeia esclarece que, em termos de direitos reais, o que está em discussão é o direito real de propriedade, o qual é conhecido tanto no direito polaco quanto no direito alemão. Entendeu que a divergência entre o direito polaco e o direito alemão dá-se não em relação ao direito real de propriedade, e sim quanto ao momento da transmissão do legado (o tempo da abertura da sucessão ou ato posterior do herdeiro). Isso é uma questão de direito sucessório, e não de direito real. Por consequência, o TJUE entendeu que não havia um problema de adaptação de direito real estrangeiro, o que afastava a discussão acerca da aplicação do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões. O TJUE reforçou esse entendimento com a lembrança de que, caso se entendesse diversamente, a sucessão mortis causa seria fragmentada em dois grupos: um regido pela lei alemã (bens situados na Alemanha) e outro pela lei polonesa (demais bens). Tal solução contraria o princípio da unidade da lei sucessória, adotada pelo Regulamento Europeu das Sucessões. __________ 1 Regulamento Europeu das Sucessões: Regulamento UE nº 650/2012. 2 Disponível aqui. 3 Testamento público é o formalizado por escritura pública lavrada por tabelião de notas. 4 A versão atualizada do Código Civil Polonês é disponível neste site oficial. Uma versão traduzida para o inglês está neste site. Sobre o assunto, transcreva-se este excerto do acórdão em pauta. O artigo 981, n.º 1, do Kodeks Cywilny (Código Civil) dispõe: "O testador pode determinar, por testamento lavrado sob a forma de instrumento notarial, que o bem objeto de um legado seja transmitido a determinada pessoa no momento da abertura da sucessa~o (legado vindicatório)." Segundo o n.º 2, ponto 2, deste artigo 981, o objeto de tal legado poderá consistir, nomeadamente, numa quota-parte da propriedade sobre um bem imóvel, que constitua um direito de propriedade transmissível. O artigo 968.º do Código Civil refere-se ao "legado obrigacional» no qual o testador pode escolher qualquer forma testamentária admissível, incluindo o testamento hológrafo. Neste tipo de legados, o herdeiro está obrigado a transmitir o direito sobre o bem ao legatário, podendo este último exigir também ao herdeiro a execução do legado.   5 Com base no direito romano, há 4 espécies de legados: a) Legado per vindicationem: a transferência do legado ao legatário dá-se de modo direto com a morte do autor da herança. O legatário passa a ter direito a uma ação reivindicatória. Conforme já expusemos, a Polônia admite essa espécie de legado, desde que seja contemplada em testamento por escritura pública. Também adotou esse tipo de legado o Brasil (art. 1.923 do Código Civil brasileiro), a Espanha (art. 882 do Código Civil espanhol), a Itália (art. 649 do Código Civil italiano), a França (art. 1.014 do Código Civil francês) e a Catalunha (art. 2713 do Código Civil catalão). b) Legado per praeceptionem: legatário recebe o objeto antes da partilha. É uma subespécie do legado per vindicationem. c) Legado sinendi modo: herdeiro não pode impedir legatário de escolher o objeto entre os integrantes do acervo hereditário. d) Legado per dammnationem ou obrigacional: cria ao herdeiro o dever de transmitir o bem ao legatário. Este, com a morte, passa a ter um direito pessoal contra os herdeiros. Trata-se da espécie de legado adotada na Alemanha (§ 2174 do Código Civil alemão), na Áustria (§ 6491 do Código Civil austríaco), na Holanda (art. 117, Livro 4, do Código Civil holandês). A Polônia também admite esse tipo de legado, ao lado do legado per vindicationem. 6 Os arts. 81 e 83º, nº 2, do Código do Notariado Polonês (Prawo o notariacie, em polonês) impõem ao notário o dever de recusar-se a prática atos ilícitos, assegurado ao interessado recorrer ao próprio notário para reconsideração ou para remessa da queixa ao tribunal competente. Trata-se de um procedimento similar, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973).
Há diversos exemplos envolvendo o emprego da adaptação stricto sensu envolvendo o estatuto real (geralmente correspondente à lex situs), tema que já tratamos em artigos anteriores nesta coluna, especialmente este . Há um exemplo que merece ser citado neste artigo por envolver um caso decorrente de conflito de qualificação: o caso da herança vaga de um inglês envolvendo imóvel em Portugal1. Suponha que um inglês, sem herdeiros, residente na Inglaterra, tenha falecido. Deixa imóveis em Portugal. Trata-se, pois, de um caso de herança vaga (bona vacantia). De um lado, o direito inglês trata o tema do destino da herança vaga como estatuto real, e não como estatuto sucessório. As normas sucessórias inglesas nada versam sobre o assunto. São suas normas de direito das coisas que estabelecem o right to escheat (o direito de confisco), de origem feudal, que foi mantido pelo Administration of Estates Act, de 1925, para imóveis. Segundo essa regra, a herança vaga reverte-se em favor da Coroa como uma espécie de expropriação. De outro lado, o direito português cuida da herança vaga como regra de estatuto sucessório, e não como estatuto real. As regras de Direito das Coisas em Portugal não oferecem solução. São suas regras sucessórias que estabelecem a reversão da herança vaga ao Estado2. Trata-se de um vácuo de normas materiais aplicáveis (Normenmangel, no direito alemão) ou de um conflito negativo de qualificação. Pelas regras tradicionais de conflito de normas, não haveria lei alguma a ser aplicada. Haveria um vácuo normativo. A lex successionis é a lei inglesa, a qual - nas suas regras sucessórias - é silente quanto ao destino da herança vaga por qualificar esse assunto como estatuto real. A lei rei sitae (que é a lei de Portugal) guarda também silêncio, pois Portugal qualifica o tema do destino da herança vaga como estatuto sucessório. Sob essa ótica, no caso acima, os imóveis situados em Portugal tornar-se-iam res nullius, o que é um resultado inadmissível por contrariar o espírito de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. Por essa razão, o caso atrai a técnica da adaptação stricto sensu para afastar esse resultado inadmissível. A doutrina aponta dois caminhos para essa adaptação stricto sensu3, todos desaguando no mesmo resultado: a apropriação da herança vaga pelo Estado português. O primeiro é fazer a adaptação recair sobre o elemento de conexão, alterando-o. A ideia seria aplicar a lex rei sitae para a questão sucessória da herança vaga. Assim, a lei portuguesa (lex rei sitae) seria aplicada para reverter os imóveis vagos para o Estado português. Essa solução parece-nos mais adequada por força do que chamamos de subsidiariedade na intervenção no conteúdo material das normas. O segundo é adaptar as normas materiais, criando, na lex rei sitae, a regra de que o Estado português apropria-se das heranças vagas. Promove-se, assim, uma integração do direito lusitano. Alerte-se que, no âmbito da União Europeia, esse conflito negativo de qualificação em relação à herança vaga não mais existe: o art. 33º do Regulamento Europeu das Sucessões4 disciplinou o tema, outorgando ao Estado membro do lugar do imóvel o direito à apropriação5. Expostos esses exemplos, indaga-se: quais são os parâmetros para a adaptação stricto sensu? A doutrina não nos parece ter clareza. Reporta-se, na prática, ao juízo equitativo do juiz no caso concreto, adaptando as regras conflituais e o próprio conteúdo das normas materiais6. Adota, como diretriz, a busca por uma situação jurídica justa no caso concreto. Por essa razão, o tema costuma ser abordado pela doutrina mediante exemplos empíricos com respostas a cada caso concreto. Em resumo, a adaptação stricto sensu é técnica que corrigirá um resultado inadmissível ou impossível causado pelas regras conflituais tradicionais de direito internacional privado e operará mediante alteração, no caso concreto, dessas regras conflituais ou do conteúdo das próprias normas em conflito. Exemplos como o tratado neste artigo podem ser úteis para iluminar problemas sucessórias transnacionais envolvendo imóveis situados no Brasil. __________ 1 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, p. 145; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 556. 2 É o art. 2152º do Código Civil português: Artigo 2152.º (Chamamento do Estado) Na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis, é chamado à herança o Estado. 3 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 557-559. 4 Art. 33º do Regulamento (UE) nº 650/2012: Artigo 33.º Herança vaga Na medida em que, nos termos da lei aplica´vel a` sucessa~o por forc¸a do presente regulamento, na~o houver herdeiros nem legata´rios de quaisquer bens ao abrigo de uma disposic¸a~o por morte, nem qualquer pessoa singular que possa ser considerada herdeiro por via legal, a aplicac¸a~o da lei assim determinada na~o impede que um Estado-Membro ou uma entidade designada para o efeito por esse Estado-Membro possa apropriar-se, nos termos da sua pro´pria lei, dos bens da heranc¸a situados no seu territo´rio, desde que os credores tenham o direito de obter a satisfac¸a~o dos seus cre´ditos a partir da totalidade dos bens da heranc¸a. 5 Afonso Patrão defende que, no caso supracitado, ainda que não se aplicasse (e realmente não será aplicável pelo fato de o Reino Unido ter saído da União Europeia no ano de 2020), o caso seria resolvido pelo reenvio (doctrine of renvoi): o direito inglês devolveria a regra sucessória para Portugal em razão da adoção da foreign court theory. Por essa foreing court theory, há de aplicar-se a lei que seria aplicada pelos tribunais da lex rei sitae. O direito inglês admite o sistema do fracionamento da sucessão (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 145). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, p. 143.
Em colunas anteriores, tratamos de adaptação de direito estrangeiro. Hoje, cuidaremos de um caso clássico de adaptação stricto sensu: o caso Chemouni. Ele foi apreciado pelo Judiciário francês nos idos das décadas de 1950 e 19601. O caso desperta discussão sobre a flexibilização da ordem pública para a recepção de situações jurídicas transnacionais. Também enseja debates sobre conflito móvel, o qual, embora geralmente gere problemas de transposição (uma outra espécie de adaptação lato sensu), pode também atrair a aplicação da adaptação stricto sensu. O "conflito móvel" é o conflito de normas no Direito Internacional Privado em razão da mudança, no tempo ou no espaço, do elemento de conexão relativamente a uma situação jurídica.  Essa mudança pode ocorrer em razão da superveniência de mudança legislativa (as regras de conexão mudam por mudança legislativa) ou de mudança fática (ex.: mudança de domicílio para outro país, transporte da coisa para outro país, mudança de nacionalidade etc.). Assim, uma situação jurídica transnacional ficará potencialmente sujeita a dois ordenamentos jurídicos no tempo, gerando ao jurista o conflito em definir se se deve aplicar o direito antigo (de um país) ou direito novo (do outro país)2. O caso Chemouni é um exemplo de conflito móvel por envolver situação de mudança do elemento de conexão em razão da mudança de domicílio e de nacionalidade. Chemouni era um tunisiano israelita. Era polígamo e veio a adquirir a nacionalidade francesa por ter-se estabelecido na França. Casara-se com duas esposas concomitantemente na Tunísia. Após chegar à França, separou-se de sua segunda esposa, a qual recorreu a Cour de Cassation em busca da condenação do marido a lhe pagar alimentos. Sua esposa também era tunisiana israelita. Nesse caso, contrapõe-se, de um lado, a lei francesa (que proíbe a poligamia) e, de outro lado, a lei da Tunísia (que admite a poligamia). À luz das normas de conflito tradicionais - fornecidas pela lex fori (direito francês) -, deveria ser aplicada a lei francesa por ser a lei nacional comum dos cônjuges. Por consequência, o segundo casamento seria nulo. A corte francesa, porém, para evitar esse resultado inadmissível, valeu-se da técnica de adaptação stricto sensu para aplicar a lei ao tempo da celebração do casamento, ou seja, a lei tunisiana. Esse caso merece destaque por se tratar de hipótese em que a técnica da adequação stricto sensu para alterar as regras de conflitos de lei no espaço no lugar de alterar o próprio conteúdo da norma. A adaptação stricto sensu, portanto, corrigiu o resultado inadmissível criando uma nova regra conflitual, sem intervir no conteúdo das leis em conflitos. Ainda em relação ao caso Chemouni, há outros autores que fazem leitura diversa da fundamentação do julgado francês. Há quem sustente que, na verdade, não houve adaptação, mas apenas delimitação espaciotemporal das normas: a lei tunisiana aplica-se à validade do casamento por este ter ocorrido antes da naturalização francesa de Chemouni, ao passo que a lei francesa aplica-se aos efeitos do casamento (como o dever de alimentos) após a naturalização3. Foi com base nessa concepção hospitaleira de ordem pública que o Tribunal de Versalhes entendeu que proteger a segunda esposa de Chemouni com o direito aos alimentos não violaria a ordem pública francesa. Esta rejeita casamento polígamos celebrados na França. Não rejeita, porém, casamentos polígamos celebrados legitimamente à luz da lei doméstica da época nem deixa desprotegidos os cônjuges cujo estatuto pessoal mude para o francês. Essa situação de mudança de estatuto pessoal (uma hipótese de conflito móvel de normas), do tunisiano para o francês, deve ser feita sem prejudicar as legítimas expectativas dos envolvidos. Há ainda quem tenha enfrentado esse caso sob a ótica da ordem pública internacional. Sabe-se que normas estrangeiras não podem ser admitidas em um país em contrariedade à ordem pública doméstica. O conceito de ordem pública, porém, precisa ser visto com maior flexibilidade, sob uma ótica internacionalista, destinada a não contrariar legítimas expectativas de sujeitos envolvidos em situações jurídicas transnacionais. No caso Chemouni, o Tribunal de Versalhes (que apreciou o caso antes da Cours de cassation) sublinhou essa noção mais universalista, aberta e tolerante de ordem pública para evitar que resultados agressivos contra a justiça e a equidade. Antonio Marques dos Santos manifesta-se favoravelmente a essa ideia, rotulando-a como um efeito atenuado da ordem pública internacional4. Com base nas palavras do Procurador da República adjunto Flamant que atuou perante o Tribunal de Versalhes, deve-se defender "uma ordem pública que une as nações em vez de opô-las", "que não varia de uma fronteira para outra"5. O conceito de ordem pública precisa ser mais tolerante com situações jurídicas que nasceram legitimamente no exterior e que, por razões de transnacionalidade, reivindicam agora efeitos com base na lei doméstica. No caso acima, o casamento polígamo nasceu legitimamente, mas, por conta da mudança de estatuto pessoal, a segunda esposa reivindica, com base na lei francesa, um efeito do casamento: o dever de pagar alimentos. O conceito de ordem pública não pode ser empregado contra essa situação. Diferente seria a solução se o casamento polígamo tivesse nascido ilegitimamente, como se tivesse sido celebrado na França, cuja lei o censura. Nesse caso, o conceito de ordem pública poderia ser um obstáculo aos efeitos desse casamento nulo. Portanto, o conceito de ordem pública é mais flexível e universal quando lida com situações transnacionais nascidas legitimamente no exterior relativamente ao conceito de ordem pública para situações jurídicas nascidas contrariando a legislação aplicável. __________ 1 Ut  FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, p. 31. MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 561-570. O caso percorreu diferentes instâncias da justiça francesa 1955 e 1963.   2 Felipe Rocha dos Santos lembra que, nesses casos de conflitos móveis, a doutrina divide-se em três posições: (1) a aplicação da teoria dos direitos adquiridos; (2) a aplicação da teoria do direito transitório; e (3) a aplicação contextual e valorativa da norma do Direito Internacional Privado com olhos na sua principiologia e nos seus objetivos (SANTOS, Felipe Rocha dos Santos. A problemática do conflito móvel no Direito Internacional Privado. Publicado em 2008 (Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/34129. Acesso em 4 de abril de 2022). 3 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 567.   4 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 562. 5 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 563.
Em colunas anteriores, explicamos a adaptação stricto sensu e a substituição. Passamos, agora, à transposição. Transposição Assim como a substituição, a transposição também envolve discussão de equivalência ou não entre dois institutos de direito material de leis distintas. A diferença está na causa. Na substituição, a causa é uma relação de prejudicialidade. Já, na transposição, a causa é a própria dinâmica da relação jurídica. A transposição é mais um problema de direito comparado do que propriamente de direito de conflitos. É, grosso modo, buscar traduzir juridicamente um direito estrangeiro. A transposição (recognition, em inglês) é a transformação de um direito em outro que deveria ter o mesmo efeito, conforme Bram Akkermans e Eveline Ramekers1. Na transposição, responde-se à seguinte pergunta: o instituto jurídico da lei de um país pode ou não traduzir-se no instituto da lei chamada a regular certa situação jurídica transnacional? O instituto da lei estrangeira pode ou não ser transposto para o instituto da lei escolhida para regular a situação plurilocalizada? Exemplos envolvendo deslocamento, para outro país, de coisas móveis oneradas por direitos reais costumam atrair debates de transposição. Cuida-se de hipóteses de conflitos móveis, as quais são férteis em discussões sobre transposição2. Essas questões são mais comuns em direitos reais menores (os direitos reais sobre coisa alheia), especialmente os de garantia3. A doutrina costuma acenar que não é tão comum esses problemas envolvendo o direito real de propriedade, por se tratar de um direito admitido em quase todos os países do mundo4. Já manifestamos nossa ressalva pessoal quanto a essa afirmação, calçado no argumento de que, se o regime jurídico do direito de propriedade difere de um país para o outro, há necessidade de adaptação lato sensu (na modalidade da transposição), ainda que essa operação possa ser mais simplificada (ut item 2.3.2.5.). Suponha um penhor de uma valiosa pintura situada na França, sem que haja a entrega da coisa. A lei francesa (que é a lei aplicável ao caso por força do elemento de conexão lex rei sitae) admite essa espécie de penhor. Se essa pintura for levada a Portugal - cuja lei não admite penhor desacompanhada da entrega da coisa -, indaga-se: a garantia real será ou não extinta? A pergunta surge pelo fato de que a lei que regula os direitos sobre a coisa é a da sua localização (lex rei sitae ou lex situs). Com o deslocamento da coisa para Portugal, a lei portuguesa passa a ser a competente para a regular os direitos reais. E essa lei não admite penhor sem entrega da coisa (tradição) nem admite a criação de direitos reais por vontade das partes (numerus clausus). A resposta à pergunta depende do manuseio da técnica da transposição, por meio da qual será investigado se o penhor sem tradição pode ou não ser "traduzido" (transposto) em outro direito real previsto na lei portuguesa, de modo a conservar, em favor do credor pignoratício, uma garantia real sobre a coisa. A transposição é a espécie de adaptação lato sensu destinada a viabilizar essa operação de Direito Internacional Privado. Um outro caso de transposição merece averbação. A referência é o Colorado case, fruto de acórdão da Court of Appeal of England and Wales Colorado, de 12 de fevereiro de 19235. Trata-se de hipótese que se valeu da figura da transposição antes mesmo da publicação da principal e pioneira obra doutrinária sobre o tema da adaptação: a obra Règles Générales des Conflits de Lois, de Hans Lewald (1939). O caso versava sobre definir uma hipoteca marítima (hypothèque maritime) constituída sob a égide da lei francesa. Pela lei francesa, o credor hipotecário - que era o banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique - tinha prioridade em relação a outros credores na excussão da coisa. O navio foi penhorado e vendido em hasta pública na Inglaterra por conta de ação judicial de cobrança dívidas da empresa proprietária da embarcação. A lei inglesa não previa essa hipoteca marítima. Surgiu discussão acerca da prioridade creditória entre o credor hipotecário e outros credores (que haviam feito reparos no navio e não haviam sido pagos). A Corte inglesa entendeu que, em relação à prioridade creditória, deveria ser aplicada a lei inglesa em respeito à lex rei sitae e à lex fori. E, para tanto, é preciso traduzir (transpor) a hipoteca marítima francesa para uma figura próxima do direito inglês. É preciso, pois, realizar uma transposição. E, ao realizar essa transposição, a hipoteca marítima francesa deve ser considerar como um direito de garantia com prioridade creditória em relação a outros credores. Deve ser considerada como uma figura com prioridade creditória similar a um penhor marítimo (maritime lien) ou uma hipoteca inglesa (English mortgage). Portanto, feita a transposição da hipoteca marítima francesa para uma figura similar do direito inglês, é de reconhecer-se a prioridade creditória do banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique na excussão da coisa. Outros exemplos de aplicação da transposição merecem averbação. Um deles é o Acórdão do Tribunal da Justiça Federal da Alemanha (Bundesgerichtbof - BGH) de 20 de março de 1963. Nesse caso, a Corte alemã transpôs um penhor de direito instituído à luz da lei francesa para uma propriedade fiduciária regida pelo direito alemão6. Outro exemplo é o caso do Banco da Tanzânia, que já tratamos em outro artigo publicado nesta coluna. __________ 1 AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022), p. 4. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 129. 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; CASE BOOKS. Court of Appeal, 12 February 1923: The Colorado. Data: 12 February 1923 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.
Na Coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos tratar agora da substituição, outra espécie de adaptação lato sensu. 6. SUBSTITUIÇÃO A substituição lida com problemas de equivalência de institutos jurídico-materiais dentro de uma relação de prejudicialidade1. Cuida de definir se o instituto da lei de um país pode ou não servir de condição prejudicial (ex.: filiação) para um efeito produzido por uma questão principal (ex.: sucessão mortis causa) da ordem jurídica de um outro país pressupondo figuras distintas. A substituição destina-se a definir se o instituto de uma lei pode ser considerado equivalente ao instituto que, à luz da lei de outro país, é questão prejudicial à resolução de uma questão principal. A substituição visa a responder a esta pergunta: o instituto da lei de um país é ou não equivalente à condição jurídica referida pela lei de outro país2? Há quem defenda que a substituição só se aplica quando se trata de uma questão prejudicial para a lex fori3. Afonso Patrão, com razão, discorda dessa necessidade de se envolver a lex fori4. Basta que haja uma relação de prejudicialidade entre questões de leis diferentes, sem que necessariamente uma dessas leis seja o do foro. Ex.: sucessão mortis causa (questão principal) disciplinada por uma lei e filiação (questão prejudicial) disciplinada por outra lei. Não necessariamente essas leis envolvidas são as do foro. A substituição exigirá do jurista enfrentar um problema de interpretação das regras materiais envolvidas. Citamos um exemplo: o caso da sucessão mortis causa de um brasileiro residente no Brasil com dois filhos adotivos: um adotado de acordo com a lei brasileira e que mora no Brasil; e outro adotado à luz da lei da Arábia Saudita e que mora nessa nação do Golfo Pérsico. A lex successionis é a lei brasileira. Ela disciplinará a questão principal: a sucessão mortis causa. A lei brasileira reconhece os filhos adotivos como herdeiros. O problema é que, para resolver a questão principal, é necessário resolver uma questão prejudicial: o que é filho adotivo? A rigor, a lei brasileira (lex successionis), ao estabelecer que filho adotivo é herdeiro, parte da premissa de que o instituto da adoção é igual ou semelhante ao da lei brasileira. Em relação ao filho adotivo brasileiro, não há complicações: ele é herdeiro. O instituto da adoção é dado pela própria lei brasileira. No tocante, porém, ao filho saudita, teremos um problema: não há propriamente um conceito de adoção na lei árabe. Há, sim, uma figura parecida: a kafâla, a qual gera consequências jurídicas diferentes do instituto de adoção conhecido dos países ocidentais em geral5. Daí surge a pergunta: é ou não viável considerar a kafâla da lei saudita equivalente à adoção da lei brasileira para efeito sucessório? A resposta a essa pergunta é decisiva para definir se o filho adotivo saudita é ou não herdeiro. Adoção e kafâla são figuras diferentes. É preciso definir se elas são ou não equivalentes para efeito de definir quem é herdeiro. Em outras palavras, é fundamental estabelecer se ambas as figuras são substituíveis para efeito da questão principal: a sucessão mortis causa. A substituição é técnica do direito internacional privado destinada a avaliar essa equivalência entre institutos de leis de países diferentes tidos como questão prejudiciais para a aplicação de uma lei. Para definir se os institutos são ou não equivalentes, há necessidade de averiguar a função de cada um deles, segundo Hans Lewald6. Tal exigirá um aprofundamento do jurista no estudo de cada figura7. Não se pode confundir o problema da substituição com o da questão prévia em Direito Internacional Privado, apesar de haver quem confunda os termos8. Substituição consiste em averiguar a equivalência entre institutos jurídico-materiais como uma questão prejudicial. Já a questão prévia consiste em escolher a lei competente para regular uma questão prejudicial (ex.: a filiação). Nesse ponto, um julgado que merece citação é este, da Cour de Cassation (França, de 1931): o caso Ponnoucannamalle vs Nadimoutoupolle9. É mais adequado defender que, nesse caso, cuidou-se de uma questão prévia (definição qual lei regularia a validade de uma adoção), e não de uma substituição. Em suma, nesse precedente, discutiu-se se a adoção validamente feita à luz do direito hindu deveria ou não ser admitida diante do direito francês (que invalidaria essa adoção). Essa questão era prejudicial para o desate da questão principal: a definição dos herdeiros na sucessão mortis causa. De modo mais específico, o falecido tinha vários filhos legítimos e, mesmo assim, adotou outro, indiano, de acordo com o direito indiano. A lei francesa, que era aplicável à sucessão mortis causa dos imóveis deixados pelo falecido10, proibia a adoção quando o adotante já possuísse filhos legítimos. Foi o caso concreto. Assim, à luz da lei francesa, a adoção do filho indiano foi inválida e, por consequência, esse filho não poderia ser herdeiro. Já a lei indiana - sob a qual foi feita a adoção - não continha essa restrição. A adoção era válida à luz dessa lei. Como se vê, para definir a questão principal (sucessão mortis causa), é necessário definir uma questão prévia: qual a lei regerá a validade da adoção11, a francesa ou a indiana. A Cour de Cassation entendeu que deve prevalecer a lei francesa para a questão prévia: a adoção é nula e, por consequência, não há direito sucessório12. Esse julgado representa um problema de questão prévia no Direito Internacional Privado, e não propriamente de substituição. Não se discutiu, propriamente, a equivalência jurídico-material de institutos para efeito de definir uma questão prejudicial. Na próxima coluna, cuidaremos da transposição, outra espécie de adaptação lato sensu. _____________ 1 JAYME, Erik. La substitution et le principe d'e'quivalence en droit international prive'. In: Annuaire de l'Institut de droit international - Session de Santiago du Chili, volume 72, p. 2007; PAREDES PÉREZ, José Ignacio. Alcance y contenido de la noción de equivalência em el derecho internacional privado. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 91-126; ROZAS, José Carlos Fernández; LORENZO, Sixto Sánchez. Derecho Internacional Privado. Navarra/Espanha: Editorial Arannzadi, 2018; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148. 3 GODERCHOT-PATRIS, Sara. Retour sur la notion d'équivalence au service de la coordination des systems. In: Revue critique de droit international privé, nº 2, 2010, pp. 271-312. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 5 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição. Sobre essa espécie, deitaremos holofotes mais à frente. Para um aprofundamento sobre a kafâla, ver: CORDEIRO ÁLVAREZ, Clara Isabel. Adopción en Europa y Efectos de la Kafâla em el marco del convenio europeo de derechos humanos. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 455-489. 6 LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 132. 7 Jorge Alberto Silva faz interessante análise sobre o reconhecimento, no México, de casamento religioso celebrado no exterior. Considera que, à luz da lei mexicana, o casamento religioso não gera efeitos civis: no máximo, indica um concubinato "o un simple amasiato". Pondera, porém, que a jurisprudência mexicana reconhece casamentos religiosos celebrados no exterior por questões de direito internacional privado (ALBERTO SILVA, Jorge. Reconocimiento del matrimonio religioso contraído en el extranjero (perspectiva mexicana). In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XLVII, núm. 141, septiembre-diciembre de 2014). Assim, seria possível, pela técnica da substituição, considerar o casamento religioso celebrado em um país que o admite como equivalente ao casamento civil mexicano, se essa questão for prejudicial. 8 FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 231. 9 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148; FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 235; ALBERTO SILVA, Jorge. Aplicación de Normas Conflictuales: La Aportación del Juez. México: Editora Fontamara, 2010. 10 Os imóveis situavam-se na Cochinchina (região sul do atual Vietname), que foi uma colônia francesa até 1948. 11 Há quem trate esse julgado como não sendo um tema de questão prévia propriamente dito. 12 No caso concreto, o neto do autor da herança (o filho indiano adotivo do autor da herança) pleiteava o direito hereditário por direito de representação. É que o filho indiano adotivo era premorto ao tempo da abertura da sucessão. O neto - que foi representado por sua mãe (a Sra. Ponnoucannamalle) - pleitou sua participação da herança como herdeiro necessário (que tem direito à legítima) diante do fato de que o autor da herança havia feito um testamento excluindo-o totalmente da herança. Antes de morrer, o autor da herança havia feito um testamento excluindo totalmente esse neto da herança. O neto, a seu turno, pleitou a nulidade do testamento por este ter violado a legítima, que é assegurada aos herdeiros necessários.
Na coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos expor mais exemplos práticos, além dos já mencionados. João Baptista Machado (1960, pp. 331-332) dá outro exemplo convidativo da adaptação. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19601. Suponha um casal alemão que tenha obtido a nacionalidade sueca. Suponha que o marido faleça. Indaga-se: o outro terá direito à meação dos bens comuns? E terá também direito sucessório? A rigor, pelos elementos de conexão indicados por João Baptista Machado na década de 1960, a viúva nada herdaria (direito sucessório) nem nada mearia (direito de família). É que o direito sueco haveria de disciplinar a sucessão mortis causa e, à luz dele, a viúva nada herdaria. E nada herdaria por um motivo: a lei sueca parte da premissa de que a viúva já terá sido beneficiada com a meação por regras de direito de família. O direito alemão daria as regras de direito de família e, sob sua ótica, a viúva não teria direito algum a meação. E não teria direito à meação, porque, sob a lógica da lei alemã, a viúva seria herdeira. Tanto na lei alemã quanto na lei sueca, a regra de meação (direito de família) está umbilicalmente conectada à regra da herança (direito sucessório) na lei alemã. Fragmentá-las no caso concreto geraria um resultado inadmissível no exemplo acima. Não é admissível que, por regras tradicionais de conflito de normas, a viúva não tenha qualquer direito patrimonial. Trata-se de uma situação que, a nosso sentir, envolve tanto uma contradição teleológica (a finalidade das leis se contradize no caso concreto) quanto de incompatibilidade material (o conteúdo das normas não é compatível). Cabe ao jurista corrigir esse resultado inadmissível por meio da adaptação stricto sensu. João Baptista Machado2 fornece outro exemplo similar. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19603. Dois ingleses, domiciliados na Inglaterra, casam-se sem uma convenção antenupcial. Posteriomente, mudam-se para a França. Morre o marido. Indaga-se: a viúva terá direito à meação (direito de família) ou direito à herança (direito sucessório)? À luz das regras tradicionais de conflito de normas em direito internacional privado, nada tocaria à viúva. É que a lei inglesa seria aplicada para o direito de família. Segundo ela, o regime de bens de quem casa sem pacto antenupcial é o da separação de bens. Essa regra de direito de família inglesa justifica-se pelo fato de que, futuramente, o viúvo terá direito hereditário. A opção legislativa de direito de família está umbilicalmente conectada à opção sucessória no direito inglês. Assim, no exemplo acima, a viúva não teria qualquer meação, portanto. Acontece que a sucessão mortis causa não será disciplinada pela lei inglesa na hipótese acima, segundo as regras tradicionais de conflito de normas. Aplicar-se-á aí o direito de francês, em virtude do qual, no exemplo acima, a viúva não terá nenhum direito na sucessão mobiliária. Essa opção legislativa sucessória francesa conecta-se intrinsecamente com a regra francesa de direito de família em assegurar o direito à meação sobre os bens adquiridos ao longo do casamento. Ao aplicar a lei inglesa apenas quanto à meação (direito de família) e a lei francesa em relação à herança (direito sucessória), chegaremos a um resultado inadmissível: a viúva, no exemplo acima, não terá direito a qualquer proveito patrimonial4. É mister corrigir esse contrassenso lógico e essa incompatibilidade material das normas oriundas da aplicação distributiva das duas ordens jurídicas. A ferramenta adequada para tanto é adaptação stricto sensu. Conflitos entre o estatuto real também podem atrair a adaptação stricto sensu. A lei que rege a constituição, a modificação e extinção dos direitos reais (geralmente, a lex situs) nem sempre é a mesma lei que rege o título gerador desse direito (ex.: lex sucessionis, lex contractus etc.). Ao aplicar as regras conflituais tradicionais, um resultado inadmissível ou impossível pode ser obtido, o que convocará a incidência da técnica da adaptação strcito sensu. João Baptista Machado (1960, p. 334) cita um julgado de 1986, do tribunal de Dresden, capital do Estado5 alemão da Saxônia.  A esposa herdou um imóvel situado na Saxônia. O regime de bens era regido pela lei de outro local, da antiga região de Westfália6. Por esse regime de bens, haveria comunicação do imóvel em razão do regime de bens em favor do marido. Acontece que a lei da Saxônica, que regrava o estatuto real, estabelecia que a transmissão do bem por força de regime de bens não pode ser automática; não é ex vi legis. O "simples jogo de normas de conflito" desaguou em um resultado inadmissível ou impossível: o marido tem direito ao imóvel pela comunicação decorrente do regime de bens à luz da lei de Westfália, mas a efetivação desse direito (a transmissão imobiliária) encontra obstáculo na lex situs. Para corrigir esse contrassenso teleológico e essa incompatibilidade material, o Tribunal de Dresden valeu-se de uma adequação stricto sensu: obrigou a esposa a criar uma situação jurídica próxima à do estatuto matrimonial, conferindo ao marido um direito de disposição sobre o imóvel. Na próxima coluna, trataremos das outras espécies de adaptação lato sensu. __________ 1 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 2 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 333-334. 3 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 4 João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 332-333) lembra exemplo absolutamente similar nos EUA, levando em conta o quadro normativo da década de 1960. A lei do Massachussets adota o regime da separação de bens como regra, mas, em compensação, garante direito sucessório ao viúvo. Já a lei da Califórnia elege o regime da comunhão de bens como regra e, como contrapartida, nega direito hereditário ao viúvo. 5 Bundesland. 6 Integrante atualmente do Estado alemão de Renânia do Norte-Vestfália.
Na coluna anterior, estávamos a tratar da adaptação stricto sensu, a qual é utilizada para resolver acidentes técnicos de conflitos de leis em situações transnacionais. Esses acidentes técnicos podem consistir em contradições (lógicas ou teleológicas) ou em incompatibilidades materiais. Já tratamos das contradições. Agora, passamos a cuidar das incompatibilidades materiais No tocante às incompatibilidades materiais, elas consistem em hipóteses em que as normas convocadas a disciplinar uma situação transnacional geram, na prática, um resultado que denota uma incompatibilidade do conteúdo de ambas e a insuficiência dos critérios tradicionais de conflitos de normas. A adaptação stricto sensu é a via para afastar essa incompatibilidade material entre as normas. O exemplo clássico é da comoriência1. Suponha um pai português residente em Portugal, com um filho inglês residente na Inglaterra. Suponha que ambos morram em uma mesma ocasião, sem que se possa saber quem morreu em primeiro lugar (comoriência)2. Para disciplinar a extinção da personalidade jurídica (momento da morte) e a sucessão mortis causa, deve-se aplicar a lei do domicílio do falecido, conforme elemento de conexão preponderante no caso. Assim, aplica-se a lei portuguesa para a extinção da personalidade e para a sucessão mortis causa do pai português. E aplica-se a lei inglesa para a extinção da personalidade e a sucessão mortis causa do filho inglês. Acontece que esse critério tradicional de conflito de normas (a de elementos de conexão) acabará gerando uma incompatibilidade material entre as leis lusitana e inglesa. É que, à luz da lei portuguesa, a comoriência faz presumir que a morte foi simultânea (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, nenhum dos comorientes herdaria nada do outro (sucessão mortis causa). No exemplo acima, o pai português presumidamente teria morrido no mesmo momento do filho e, portanto, nenhum seria herdeiro do outro. Todavia, a lei inglesa tem solução diferente para a extinção da personalidade jurídica no caso de comoriência. Ela faz presumir que o comoriente mais velho morreu em primeiro lugar3 (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, o filho inglês teria morrido em segundo lugar. E é aí que surge uma incompatibilidade material entre a lei portuguesa e a lei inglesa. Pela lei inglesa, a presunção de precedência da morte do comoriente mais velho está umbilicalmente ligada à sua regra sucessória de que o comoriente mais novo poderá ser herdeiro daquele. Já pela lei portuguesa, a presunção de morte simultânea dos comorientes está intrinsecamente conectada à sua regra sucessória de que nenhum dos comorientes será herdeiro um do outro. As leis não são compatíveis no seu conteúdo quando são fracionadas para disciplinar aspectos diferentes de uma mesma situação jurídica transnacional. Essa incompatibilidade material entre as duas normas exigiria que o jurista se valesse da adaptação stricto sensu para encontrar um resultado admissível e que sincronize as regras. Problemas como esse ocorrem, porque cada ordenamento jurídico possui uma coerência lógica e sistemática interna. É um todo unitário dentro de si mesmo. Uma norma encontra justificativa em outra do mesmo ordenamento por serem frutos de um jogo de compensações de justiça do legislador. Praticamente nenhuma norma pode ser "isolada da 'sintaxe' desse todo sem perder a significação jurídico-material que lhe é própria"4. Por isso, ao se deparar com problemas como esses, o direito internacional privado precisa dar uma solução por meio da técnica da adaptação stricto sensu. O objetivo do direito internacional privado é estender o "sentido de justiça material da legislação competente"5. Esclarecemos que, no caso da União Europeia, o exemplo acima não seria aplicável, porque o art. 32º do Regulamento nº 650/2012[6] evitou, na raiz, essa incompatibilidade material. O referido dispositivo comunitário estabelece a presunção de morte simultânea no caso de comoriência e, portanto, os comorientes não serão herdeiros uns dos outros. Considerando, porém, que o Reino Unido não é mais Estado membro da União Europeia em razão do Brexit, o exemplo acima voltou a ser atual. A realidade é que nem sempre é nítido definir quando há um caso de contradições (lógicas ou teleológicas) ou um de incompatibilidade material. Há hipóteses que misturam as duas situações. E nem nos parece tão relevante uma obsessão por categorização diante da proximidade entre as hipóteses. O que importa mesmo é identificar se o "simples jogo das normas de conflito" (as regras tradicionais de conflitos de normas) gera ou não um resultado impossível ou inadmissível. Se gerar, o caso é de o jurista valer-se da técnica de adaptação para corrigir esse resultado, interferindo no conteúdo material das regras. Prosseguiremos tratando de exemplos de problemas práticos de adaptação stricto sensu na próxima coluna. __________ 1 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 142. 2 A propósito, o art. 21º, item 1, do Regulamento (UE) nº 650/2012 indica a lei do local da residência habitual do falecido como a competente para regular a sucessão mortis causa. 3 Sec. 184 do Land Property Act, de 1925. 4  MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 5 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 6 Confira-se (Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012; disponível aqui): Artigo 32.º Comorientes Sempre que duas ou mais pessoas cujas sucessões são regidas por leis diferentes morram em circunstâncias em que haja in­ certeza quanto à ordem em que os óbitos ocorreram e que essas leis regulem esta situação de forma diferente ou não a regulem, nenhuma destas pessoas tem direito à sucessão da outra ou das outras.
Damos continuidade ao tema tratado na coluna anterior. 4. Espécies de adaptação lato sensu Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino1). Até o presente momento, empregamos a expressão "adaptação" em seu sentido amplo: a adaptação lato sensu. Há, porém, espécies desse tipo de adaptação, a saber: a) adaptação stricto sensu2; b) substituição; e c) transposição. Doutrina minoritária inclui a transposição dentro da substituição. Não é essa a melhor corrente Mais adequado é separar as figuras, apesar de haver certa proximidade entre elas3. A adaptação4, em qualquer uma das suas espécies, é caracterizada por implicar uma aplicação parcial de uma lei estrangeira a uma situação plurilocalizada. Esse é o ponto em comum entre elas5. A diferença está nos tipos de problemas a serem enfrentados. A adaptação lato sensu é empregada em situações de insuficiência das regras tradicionais de conflitos de normas em direito internacional privado. Estas não logram resolver todos os problemas conflituais. A adaptação é "o expoente paradigmático de algumas insuficiências do método conflitual"6. É uma amostra da necessidade de haver certa flexibilidade nas técnicas de soluções conflituais em direito internacional privado para obter resultados adequados. 5. Adaptação stricto sensu A adaptação stricto sensu dá-se quando há um "acidente técnico", na expressão de João Baptista Santos (1960, p. 328). O acidente técnico ocorre quando, para uma situação transnacional, duas leis de países diferentes são consideradas competentes para regulá-la e entram em conflito a ponto de gerar resultados impossíveis ou inadmissíveis7. A adaptação stricto sensu é a técnica do direito internacional privado para conciliar essas duas normas que foram convocadas para regular a questão privada internacional e que, por si sós, acarretariam contradições (lógicas ou teleológicas) ou incompatibilidades materiais. O objetivo da adaptação stricto sensu é encontrar uma congruência lógica ou teleológica diante da insuficiência dos métodos tradicionais de conflitos de normas, como os elementos de conexão. É corrigir o resultado inadmissível ou impossível que o "jogo de normas de conflito"8 acarreta em um caso concreto. As contradições (lógicas ou teleológicas) e as incompatibilidades materiais são resultados impossíveis ou inadmissíveis que a adaptação stricto sensu busca desmanchar. Cabe ao jurista tal tarefa em respeito à necessidade de preservar o vínculo natural que há entre os diversos ordenamentos jurídicos, dentro de uma ideia de unidade do sistema jurídico mesmo no plano internacional9. O fato de inexistir uma regra de conflito para essa situação específica é irrelevante: cabe ao jurista preencher essa lacuna, adotando, por vezes, uma postura de legislador para ajustar o conteúdo material das normas estrangeiras envolvidas. O jurista, porém, precisa ter cautela para não subverter as normas envolvidas. Tem de ser minimalista e cauteloso no manuseio da técnica da adaptação stricto sensu no caso concreto, com a acuidade própria de um neurocirurgião na fase mais sensível de uma operação no cérebro. João Baptista Machado10 destaca, in verbis: Ao juiz não será lícito aceitar de braços cruzados um tal resultado: terá de o corrigir, ao decidir a hipótese litigiosa, procurando guardar respeito, na medida do possível, àquela interconexão de sentido que solidariza e argamassa as normas no ordenamento respectivo. Tem de preencher as lacunas que apareçam - tal como se lhe impõe para hipóteses internas -, tem de eliminar os contrassentidos e ajeitar a coatuação das diferentes leis, por forma a obter um "mosaico ilacunar" (Wengler) e harmônico. Por isso se reconhece hoje em geral a necessidade de recorrer, em certos casos, a um procedimento de adaptação das normas materiais aplicáveis. Na expressão de Wengler, o juiz terá de proceder como se se tratasse de construir um automóvel com peças de marcas diferentes: passando além da simples função "constatadora" de normas de conduta dadas, o juiz avançará no sentido de uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão, no uso de uma faculdade quase-legislativa. É caso para dizer-se que ele atua não só secundum legem mas também de legibus. Essa atividade requer, por parte do juiz, um bom conhecimento do direito estrangeiro a adaptar, e o interesse da segurança jurídica pede que se limite ao mínimo a alteração introduzida no conteúdo da lei estrangeira. Tratemos das contradições e das incompatibilidades. A rigor, contradição lógica e contradição teológica são diferentes, nas palavras de Antônio Marques dos Santos11, que se apoia em G. Kegel. Contradição lógica dizem respeito a casos "assim não pode ser". Contradição teleológica já aludem a casos "assim não deve ser". Apesar de ser didático pensar assim, temos por mais didático tratá-las em globo dentro do termo "contradições", pois o resultado de ambas é o mesmo: a utilização da técnica da adaptação stricto sensu. Quanto às contradições lógicas ou teleológicas (também chamadas de contrassentidos lógicos ou teleológicos), elas ocorrem quando a aplicação das duas leis competentes para disciplinar o caso gera um resultado incompatível com a finalidade de ambas as leis. Dá-se quando a aplicação pura das regras tradicionais de conflito internacional de normas cria uma contradição teleológica: colide com a ratio de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. O exemplo clássico da doutrina é do pai biológico português em conflito com o pai adotivo marroquino12. Suponha que A (português residente em Portugal) tenha um filho biológico C. Suponha que C tenha sido adotado por B (marroquino residente em Marrocos) à luz da lei marroquina. A adoção em países muçulmanos não corresponde propriamente à adoção comum nos países ocidentais. É chamada de kafâla e acarreta consequências jurídicas diferentes13. C, portanto, é filho biológico do português e filho adotivo de B. A lei portuguesa exclui o filho biológico que foi adotado por outrem da herança do pai biológico. Pressupõe que o filho biológico, ao ser adotado por terceiro, participará da herança deste último. No caso acima, à luz da lei lusitana, se o pai português (A) morresse, o seu filho biológico (C) não seria seu herdeiro, pois já foi adotado por outrem. Acontece que a lei marroquina parte de lógica diferente. Ela exclui o filho adotivo da herança do pai adotivo. Escora-se na premissa de que o filho adotivo se beneficiará da herança do pai biológico. Na hipótese em pauta, à luz da lei marroquina, se o pai marroquino (B) morrer, o seu filho adotivo (C) não lhe será herdeiro. Pelas regras tradicionais de solução de conflito (especificamente a de elementos de conexão), a lei portuguesa disciplinará a sucessão mortis causa do pai português, e a lei marroquina, a do pai marroquino. É que, nesses casos, o elemento de conexão é a lex domicilli: aplica-se a lei do domicílio do falecido para disciplinar sua sucessão mortis causa. Dado esse cenário, suponha que ambos os pais faleçam. Nessa hipótese, se aplicarmos isoladamente cada uma das leis em tela, C não receberá herança alguma: nem do pai português, nem do pai marroquino. Trata-se de uma contradição teleológica: a finalidade de cada uma das leis em conflito está sendo frustrada. Cada uma das leis colimava que o filho recebesse uma herança. Mas, na espécie, C não receberá herança alguma se aplicarmos as duas leis isoladamente. No exemplo acima, percebe-se que a aplicação dos métodos tradicionais de solução de conflitos de normas estrangeiras desaguará em um resultado inadmissível diante da contradição teleológica. A adaptação stricto sensu é a técnica de direito internacional privado destinada a dissolver essa contradição lógica. Deixaremos para a próxima coluna o tratamento das hipóteses de incompatibilidades materiais. __________ 1 Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. 2 Há autores, como Luis de Lima Pinheiro, que adotam nomenclatura diferente: no lugar de "adaptação lato sensu" e "adaptação stricto sensu", emprega respectivamente os termos "adaptação-problema" e "adaptação-solução" (Lima Pinheiro, 2019, pp. 540-545; Patrão, 2016, p. 139). No mais, admitem os termos substituição e transposição. Preferimos, porém, as expressões mais tradicionais para evitar dispersões taxonômicas que mais confundem do que esclarecem. Melhor, portanto, é referir-se à adaptação stricto sensu. Embora não se encontre na doutrina a expressão adaptação lato sensu, utilizamo-la aqui por entendermos estar implícita na escolha da doutrina em empregar o termo "adaptação" como um grande gênero dentro do qual a "adaptação stricto sensu" é uma espécie (Monaco, 2019, p. 153). Há, ainda, autores, como Giorgio Cansacchi, que deram sentido muito mais amplo ao conceito de adaptação, mas é adequadamente criticado por misturar o tema com problemas diferentes de direito internacional privado, como qualificação e reenvio (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140). 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 126 e 146. 4 Quando utilizarmos o termo "adaptação", a referência é ao sentido amplo (lato sensu). 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. 6 ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, p. 11. 7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 140-142. 8 Expressão de João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338). 9 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. 10 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 330-331. 11 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, P. 570. 12 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 141. 13 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição.
1. Esclarecimentos iniciais Em artigo anterior, tratamos de um exemplo de adaptação lato sensu de direito estrangeiro (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/393052/julgado-da-suprema-corte-da-holanda). Naquele caso, a Suprema Corte Holandesa adaptou a garantia flutuante instituída segundo a legislação da Tanzânia para o penhor silencioso da legislação holandesa. Expusemos que esse caso poderia ser estendido ao Brasil, com eventual adaptação lato sensu da garantia flutuante para a propriedade fiduciária em garantia. No presente artigo, passaremos a tratar um pouco mais desse que é um dos principais institutos de Direito Internacional Privado: a adaptação lato sensu. E, nesse ponto, registramos nossos elogiosos à produção de um dos principais internacionalistas brasileiros atuais que se dedicam ao tema: o Professor Gustavo Ferraz de Campos Mônaco. Em um primeiro momento, exporemos o tema de modo mais superficial para facilitar a compreensão de leitores de primeira viagem nesse tema. Em artigos futuros, aprofundaremos o instituto. 2. Noções gerais Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino[1]). Por desconhecimento total, designamos a situação de o ordenamento do país de destino não admitir o direito do país de origem. Por desconhecimento parcial, batizamos a situação em que o ordenamento do país de destino admite o direito do país de origem com ressalvas. Essas ressalvas referem-se a diferenças de regime jurídico ou a diferenças de nomen iuris. Em sucessões mortis causa envolvendo bens situados em diferentes países, é potencial o problema de a lei do lugar do bem (lex rei sitae ou lex situs) não conhecer total ou parcialmente o direito real que a lei sucessória outorgue a um herdeiro. Lembramos que, na maioria dos países, a lex situs é o elemento de conexão adotado para disciplinar direitos reais sobre bens, especialmente no caso de imóveis. Se, por exemplo, uma lei sucessória ou um testamento defere um direito real de habitação a um herdeiro, indaga-se: o que se fará se a lex rei sitae não conhecer total ou parcialmente esse direito real dentro de sua legislação? Seria viável onerar o bem com um direito real totalmente desconhecido pela lex rei sitae (desconhecimento total)? E como ficaria essa questão na hipótese de o direito real ser apenas parcialmente conhecido pela lex rei sitae, como na situação em que o direito real é sujeito a um regime jurídico diferente (com, por exemplo regras de transmissão e de extinção diversas)? Para situações como essa, discute-se se seria ou não cabível a adaptação lato sensu do direito estrangeiro para sua admissão no país de destino. 3. Conceituação geral O tema da adaptação de direitos estrangeiros é tratado pela doutrina do direito internacional privado. Hans Lewald é tido como um dos pais desse instituto por ter implantado a discussão sobre essa figura no seu artigo Règles générales des conflits de lois, na Recueil des cours de 1939 (Lewald, 1939). Outros juristas cuidaram do assunto a partir dessas reflexões de Hans Lewald[2].  No presente artigo, tratamos da adaptação lato sensu, assim entendido gênero do qual são espécies a adaptação stricto sensu, a transposição e a substituição. Deixaremos para aprofundar cada uma dessas espécies em outro artigo posteriormente. Assim, quando nos referirmos ao termo "adaptação", estaremos fazendo alusão à adaptação lato sensu. A doutrina costuma seguir essa convenção taxonômica. De um modo simples, mas bem impressivo, a adaptação de direito estrangeiro pode ser vista como uma tradução, nas palavras de Gustavo Ferraz de Campos Monaco[3]. Nas palavras de Afonso Patrão, é o "conjunto de mecanismos aptos a solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis"[4]. É um expediente técnico para que o julgador possa resolver esses problemas. Esses problemas ocorrem quando estamos diante de situações jurídicas plurilocalizadas, ou seja, de situações jurídicas transnacionais. Nesses casos, a adaptação é a técnica do direito internacional privado destinada a lidar com questões claramente sujeitas a distintas leis e a distintas normas de conflito[5]. A necessidade de resolver esses problemas por meio da técnica da adaptação decorre da ideia de unidade do sistema jurídico. No plano internacional privado, há um vínculo natural entre as diversas regras jurídicas. Por vezes, esse vínculo natural pode ser abalado "no jogo das normas em conflito"[6]. Para dissolver esse abalo ao vínculo internacional das normas, pode ser necessário ajustar a própria solução material das leis em conflito[7]. A doutrina majoritária do direito internacional privado admite a figura, embora ainda esteja tateando na sua aplicação nos casos concretos. Não há muitas normas chancelando expressamente a figura. As principais são em caso de adaptação de direitos reais. É o caso, por exemplo, do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões[8] e também do art. 15 da Convenção de Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao Trust e ao seu reconhecimento[9]. Este último estabelece a necessidade de o trust ser adaptado em outro direito admitido pelo ordenamento local com efeitos similares[10]. Mesmo sem previsão normativa expressa, entendemos que a adaptação pode ser admitida no Brasil com base nos princípios gerais de Direito Internacional Privado. Em artigo posterior, aprofundaremos as espécies de adaptação lato sensu.   [1] Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. [2] Entre outros, citamos: ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, pp. 9-44; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016; PATRÃO, Afonso. Reflexões sobre o reconhecimento de Trusts voluntários sobre imóveis situados em Portugal. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  87, 2011; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 521-606; MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 327-351; MACHADO, João Baptista. Contributo da escola de Coimbra para a teoria do direito internacional privado. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 61, pp. 159-176, 1985; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-160; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; ANCEL, Bertrand. Regards critiques sur l'érosion du paradigme conflictual. Disponível em: https://www.ehu.eus/documents/10067636/10730148/2005-bertrand-ancel.pdf. Acesso em 2 de fevereiro de 2022. Destaca-se também o jurista francês Henri Batiffol (1905-1989), que dominou a doutrina francesa de direito internacional privado e que é multicitado pelos demais internacionalistas privados também em matéria de adaptação de direitos estrangeiros (SOCIÉTÉ FRANÇAISE POUR LE DROIT INTERNATIONAL. Henri Batiffol. Disponível em: https://www.sfdi.org/internationalistes/batiffol/. Acesso em 4 de abril de 2022). Entre as diversas contribuições dele, destaca-se artigo sobre as contribuições das regras norte-americanas de soluções de conflitos para o direito francês (LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, pp. 48-74). [3] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-159. [4] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. [5] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 139-140. [6] MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. [7] LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 541. [8] Regulamento (UE) nº 650/2012 (Eur-lex, 2012-A). Confira-se o teor do dispositivo:   Artigo 31.º Adaptac¸a~o dos direitos reais   No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica'vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e' invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa'rio e na medida do possi'vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro'ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados. [9] HCCH, 30: Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. Data: 1 de julho de 1985 (Disponível: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59#:~:text=para%20os%20prop%c3%b3sitos%20desta%20conven%c3%a7%c3%a3o,ou%20para%20alguma%20finalidade%20espec%c3%adfica. Acesso em 3 de fevereiro de 2022). [10] Confira-se o dispositivo o art. 15 da Convenção de Haia de 1985:   Artigo 15 A Convenção não prevê a aplicação de disposições de direito designadas pelas regras de conflitos do foro, na medida que estas disposições não possam ser derrogadas por ato voluntário, relacionado em particular às matérias que seguem:   a) a proteção de menores e partes incapazes; b) os efeitos pessoais e de propriedade do casamento; c) direitos de sucessão, testamentária e não testamentária, especialmente a reserva a cônjuges e parentes; d) a transferência do título de propriedade e garantias reais; e) a proteção dos credores em questões de insolvência; f) a proteção de terceiros de boa-fé.   Caso o reconhecimento do trust seja impossível pela aplicação do parágrafo precedente, a corte buscará dar efeitos aos objetivos do trust por outros meios jurídicos.
Trataremos de interessante julgado da Suprema Corte da Holanda, cujo raciocínio poderia ser estendido ao sistema brasileiro, por conta da similaridade. A Holanda, assim como o Brasil, não prevê a garantia flutuante (floating charge) como direito real na sua lei. Isso acarreta problemas práticos no caso de execução dessa garantia flutuante pactuada em contrato celebrado no exterior, quando a garantia vier a recair sobre bem situado no país. Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação lato sensu de direito estrangeiro, mais especificamente um problema de transposição. Deixaremos para outra oportunidade o aprofundamento desses conceitos. Passamos, porém, a expor julgado holandês que enfrentou o problema acima e deu uma solução que poderia ser adotada pelas Cortes brasileiras, mutatis mutandi: entendemos que a transposição da garantia flutuante poderia ser feita para uma propriedade fiduciária em garantia por conta de sua maior força executiva do que o penhor, à luz da legislação brasileira. Trata-se do que chamaremos de Caso do Banco da Tanzânia, formalmente conhecido como NBC Holding Corporation (Tanzania National Bank of Commerce) v. Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A., julgado pela Suprema Corte da Holanda (Hoge Raad der Nederlanden) em 23 de abril de 19991. Nesse caso, a Suprema Corte holandesa (Hoge Raad) transpôs uma garantia flutuante (floating charge) instituída à luz da lei da Tanzânia em um penhor sem apossamento da lei holandesa2. Esse caso convida aprofundamento por sua riqueza fática e pela sua utilidade para outros casos concretos envolvendo conflitos móveis envolvendo a técnica do Direito Internacional Privado de transposição (recognition, no direito norte-americano)3. Os fatos podem ser resumidos da seguinte maneira. Uma empresa chamada Codage tinha uma dívida de 2 milhões de dólares perante o banco da Tanzânia (NBC Holding Corporation4). E, em garantia dessa dívida, a Codage ofereceu um floating charge (uma garantia flutuante) sobre o patrimônio da sua atividade empresarial (como as mercadorias). O floating charge não recai sobre um bem específico, mas sobre o patrimônio em si (a universalidade de bens), abrangendo bens presentes e futuros dessa universalidade. Desse modo, a empresa devedora tem liberdade para dispor dos seus bens na sua atividade empresarial, como mercadorias, recebíveis (créditos perante clientes) etc. Quando o credor tiver de executar a garantia por conta de uma inadimplência, ele, então, especializará a garantia, fazendo-a incidir sobre um bem específico entre os que, naquele momento, estiver sob a titularidade do devedor. Cabe-lhe nomear um receptor por meio de um procedimento executivo previsto na lei da Tanzânia. Nesse momento, o floating charge transformar-se em um fixed charge (garantia fixa). Em outras palavras, a floating charge é um ônus que fica flutuante dentro de uma universalidade de bens até, quando da execução, possa fixar em um bem específico. De modo metafórico, é um espírito que fica pairando em cima do patrimônio presente e futuro do devedor à espera de, no caso de inadimplência, encarnar-se em um bem específico. Acontece que a empresa Codage tinha, na Holanda, um bem avaliado em 2,35 milhões de dólares5. A rigor, esse bem, por integrar o patrimônio da empresa, estava também onerado pela garantia flutuante da lei da Tanzânia. A empresa Codage passou a desonrar suas dívidas não apenas perante o banco da Tanzânia, mas também perante um outro credor (a sociedade Sisal6). A Codage não pagou a dívida de 1,95 milhões de dólares que detinha perante a sociedade Sisal7. Essa credora, então, ajuizou ação na Holanda e obteve a penhora do supracitado bem que a Codage tinha na Holanda. O problema é que esse bem, a rigor, era objeto de uma garantia flutuante (floating charge) anteriormente instituída em favor do banco tanzaniano. O banco da Tanzânia reagiu e, diante da inadimplência da Codage, executou o floating charge e especializou a garantia sobre esse mesmo bem situado na Holanda. Por consequência, o banco tanzaniano buscou onerar esse bem situado na Holanda com um fixed charge, fruto da execução sumária do floating charge. O conflito entre esses dois credores (Sisal e banco tanzaniano) foi instalado. Quem teria prioridade na excussão da coisa: o banco tanzaniano por força de seu fixed charge ou a Codage por força de sua penhora? O banco tanzaniano interveio no processo para reivindicar a prioridade na excussão da coisa com base no seu floating charge instituído à luz da lei da Tanzânia. A Codage, porém, contra-atacou. Afirmou que, para reger direitos reais sobre a coisa, há de aplicar-se a lei da sua localização (lex rei sitae), que, no caso, é a lei holandesa. E, à luz da lei holandesa, que adota a tipologia de numerus clausus de direitos reais, o floating charge não é admitido. Logo, o banco tanziano não teria nenhuma prioridade creditória. O Judiciário holandês, então, teve de decidir quem teria direito. E, para tanto, imergiu em debates de transposição: o floating charge tanzaniano, com seu alto enforcement garantido por um rito de execução sumária, poderia ou não ser transposto para algum direito real similar admitido na Holanda? Esse foi o cerne dos debates no supracitado acórdão. A discussão é se a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana poderia ou não ser objeto de transposição para o direito real holandês mais próximo: o penhor silencioso (stil pandrecht, em holandês), também chamado de penhor não possessório (bezitloos pandrecht) ou penhor sem punho (vuistloos pandrecht)8. O penhor silencioso holandês é um penhor sem tradição: o devedor pignoratício não entrega a coisa9. Recai sobre um bem presente e específico. A Sisal defendeu que não cabia a transposição, entre outros motivos, pelo fato de o penhor silencioso neerlandês recair sobre um bem presente e específico, ao contrário da garantia flutuante tanzaniana (que recai sobre uma universalidade de bens). Invoca, também, outro motivo processual: o de que o penhor silencioso neerlandês enseja um procedimento de execução sumário, o qual não existiria para a garantia flutuante tanzaniana. O grau de enforcement dos direitos cotejados seria diferente. O Hoge Raad (Supremo Tribunal da Holanda) rejeitou esses argumentos da Sisal. Admitiu, pois, a transposição da garantia flutuante (floating charge) tanzaniana para o penhor silencioso holandês. O fato de a garantia flutuante recair sobre uma coisa futura não seria obstáculo para a transposição. O que importa é a proximidade das figuras e o fato de que, no caso concreto, o banco tanzaniano pleiteia a especialização da garantia flutuante sobre um bem específico. São esclarecedoras estas palavras do acórdão do Tribunal de Recurso de Amsterdã - que foi secundado pelo Hoge Haad nesse ponto: 4.20. a avaliação da possibilidade de assimilação não se trata de identificar pontos de divergência, mas de saber se a lei estrangeira em questão apresenta tal grau de concordância com a lei holandesa que se pode concluir que a lei estrangeira persegue o mesmo objetivo. Se a lei holandesa e em circunstâncias comparáveis ??levarem ao mesmo resultado. A avaliação disso deve ocorrer no momento em que a lei relevante se manifesta no sistema jurídico holandês.10   Além disso, para efeito da transposição, o rito executivo do floating charge tanzaniano, consistente na nomeação de um receptor, é equivalente à execução sumária do penhor silencioso holandês. Os meios executivos são similares. Os graus de enforcement são parecidos. A doutrina também acena para a equivalência do floating charge para o penhor, inclusive o penhor silencioso holandês (stil pandrecht). O Procurador-Geral oficiante perante o Hoge Haad no caso concreto sublinhou11: 12. Na literatura, o floating charge é considerado equiparável ao penhor (silencioso holandês). Veja, por exemplo, R.J. Botter, Nn 1992, pp. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, pp. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2ª ed. (1998), pp. 511-524 (ver em particular pp. 517 e 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, pp. 417-436. Tanto a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana quanto o penhor silecioso holandês (stil pandrecht) possuem o mesmo objetivo: servir de uma garantia real que não inviabilize as atividades do devedor pelo fato de deixar este com a posse direta sobre o bem onerado. Ambas as garantias não subtraem a posse da coisa pelo devedor. A principal diferença entre esses dois direitos reais de garantia é que, no penhor silencioso holandês (stil pandrecht), só os bens expressamente listados podem ser onerados. Não recai, portanto, sobre bens futuros e eventuais, como futuros créditos, ao contrário do floating charge. No penhor silencioso holandês (stil pandrecht), a lista de bens oneradas tem de ser levada a registro no competente órgão registral. A lista pode ser periodicamente atualizada por um mero procedimento eletrônico simplificado. O próprio registro segue um procedimento bem simplificado. Diante das fortes semelhanças entre o penhor silencioso holandês (stil pandrecht) com a garantia flutuante (floating charge) tanziano, as pequenas diferenças são irrisórias e não substanciais. Na essência, as figuras equivalem-se. __________ 1 DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011. (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022) 2 Ulrich Drobnig problematiza várias outras situações decorrentes de direitos reais de garantias sobre imóveis (DROBNIG, Ulrich. Security Rights in Movables. Data: 15 de janeiro de 2010 (Disponível aqui. Acesso em 30 de janeiro de 2022). _____________. Unified Rules on Proprietary Security - in the World and in Europe. In: BFD, n. 85, 2009, pp. 667-678). 3 Bram Akkermans e Eveline Ramaerkers tratam do tema com olhos nos conflitos móveis entre os Estados norte-americanos (AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011). 4 O NBC Holding Corporation é um dos bancos mais antigos da Tanzânia (site oficial). 5 O bem eram recebíveis que estavam sob a custódia de um banco holandês por terem sido integrados a uma carta de crédito. Os recebíveis eram créditos de 2,35 milhões de dólares que a empresa Codage tinha perante clientes canandenses. 6 Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A. 7 A empresa Sisal havia reivindicado 2,5 milhões de dólares como crédito, mas os tribunais holandeses só reconheceram 1,95 milhões de dólares 8 Está previsto no livro 3, art. 239 do Código Civil holandês (3:329 BW).O Código Civil holandês (Burgerlijk Wetboek em holandês e abreviado como BW) está disponível neste site. 9 O penhor com tradição é chamado de penhor de punho (vuistpand vestigen, em holandês) e está no livro 3, art. 236 do Código Civil holandês (3:226 BW). 10 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 4.20 Het gaat bij beoordeling van de mogelijkheid van assimilatie immers niet om het signaleren van verschilpunten, maar om de vraag of het desbetreffende buitenlandse recht een zodanige mate van overeenstemming vertoont met een Nederlands recht, dat geconcludeerd kan worden dat het buitenlandse recht hetzelfde doel nastreeft als het Nederlandse recht en in vergelijkbare omstandigheden tot hetzelfde resultaat leidt. De beoordeling van een en ander dient te geschieden op het tijdstip dat het desbetreffende recht zich in het Nederlandse rechtssysteem manifesteert. 11 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 12. In de literatuur wordt de floating charge vergelijkbaar geacht met het (Nederlandse stille) pandrecht. Zie bijv. R.J. Botter, Bb 1992, blz. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, blz. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2d ed. (1998), blz. 511-524 (zie met name blz. 517 en 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, blz. 417-436.
terça-feira, 29 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte III

Na coluna anterior, começamos a tratar da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. Continuemos. Na Ásia, a família do civil law deitou raízes, ainda que, em alguns casos, em mescla com outras famílias. Foi o caso, por exemplo, da Turquia, que, embora tenha mantido elementos do direito muçulmano, incorporou do civil law uma forma de modernização do seu direito, tudo a partir de 18391. A dinâmica plural do Império Otamano concorreu para essa configuração. No século XIX, o Império Otomano introduziu elementos laicos no seu sistema jurídico, que, até então, era preponderamente muçulmano. A pluralidade de povos sob o domínio otomano colaborou para esse cenário. A ideia de um direito turco mais racional e justo ganhou força. Houve uma seculização do direito turco. É desse contexto que decorrem, por exemplo, o Código Comercial otomano (1850), o Código Marítimo otomano (1863) e as Regras de Processo Civil (1879). No século XIX, a ideia de um Código Civil em si sofreu resistência e, em seu lugar, houve publicação de partes da Sharia em 16 livros, os quais ficaram conhecidos como Mecelle (Mecelle-i ahkami adliye, em turco), também traduzida em outros países como Mejelle, Majalla, Megelle, Medjélié. O Mecelle, de qualquer forma, pode ser considerada uma espécie de Código Civil do Império Otomano2. No século XX, especialmente entre 1926 e 1929, a Turquia - fundada em 1923 após o desmantelamento do Império Otomano - passou por mudanças estruturais rumo a formação de uma república parlamentar ocidentalizada, marcada por um maior secularismo e pela adoção de um modelo de Estado de Direito.  Nesse contexto, o primeiro Código Civil turco nasceu em 1926 como fruto dessa conexão, com fortíssima inspiração do ZQB3 (Código Civil suíço). A escolha do ZQB como referência explica-se por vários motivos, como: (1) o fato de alguns juristas turcos terem estudado na Suíça francesa; (2) a maior familiaridade desses juristas com idioma francês; (3) o fato de o ZQB ser um dos mais recentes; (4) a extensão do ZQB ser consideravelmente inferior ao BGB4; (5) o uso de muitas cláusulas gerais colaborou para a recepção das regras do ZQB pela Turquia5. O antigo Código Civil turco foi substituído pelo atual, de 20026. Os Estados árabes do Oriente Médio, a seu turno, não foram tão receptivos ao civil law. Mantiveram-se fiéis ao direito muçulmano, ao menos em relação aos cidadãos muçulmanos. A influência do civil law foi pequena na pensínsula da Arábia7. Israel sofreu maior influência do common law por conta dos britânicos. Iraque e Jordânia também seguiram esse caminho em um primeiro momento, mas, posteriormente, regressaram à tradição romano-germânica8. O civil law exerceu influência em alguns outros países asiáticos, como na China, no Vietnã, no Japão, na Coréia do Sul, na Coréia do Norte, na Tailândia, em Camboja, no Laos, Filipinas, Sri Lanka, Idonésia. Vários deles, porém, seguem um modelo misto por ter elementos de outras famílias9. Mesmo dentro da família do civil law, há variações, como: (1) os direitos franceses (civil law francês); (2) os dos direitos germânicos (civil law germânico); (3) o dos direitos escandinavos (civil law escandinavo); e (4) os dos direitos da América Latina10. O civil law francês é marcado não apenas pela estrutura do Código Civil napoleônico, mas também por uma valorização da cultura jurídica judicial. O Código foi uma sistematização e positivação dos costumes e da jurisprudência, além, obviamente, das teorizações do direito romano. Os profissionais do Direito, como advogados e, em alguns países - como na Espanha -, os notários, possuem notável relevância nesse sistema11. O civil law francês espalhou-se na América Latina (com certas ressalvas em alguns países, como no Brasil e no Peru), na América do Norte (estado norte-americano de Luisiana e províncias canandeses de Quebec), nos países do Oriente Médio com forte influência francesa (Egito, Síria e Líbano) e nas antigas colônias francesas na África e na Ásia. Na Europa, a presença do civil law francês expressa-se nos Estados do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e em parte dos Bálcãs (especialmente Romênia), além de inegável influência em praticamente todas as demais nações europeias12. Já o civil law germânico refere-se especialmente às codificações das nações de língua germânica, como o Código Prussiano de 1794 (Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten - ALR)13 e o Código Civil Austríaco de 1811 (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch - ABGB). Reporta-se também ao Código Civil Alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB) e à segunda maior codificação pandectista: o Código Civil Suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB)14. Apesar da proximidade, o BGB e o ZGB possuem diferenças estruturais. O ZGB, por exemplo, não é tão favorável a cláusulas gerais nem possui uma Parte Geral por conta de sua maior perspectiva próxima da realidade, ao contrário do BGB15. A preocupação com uma redação legislativa mais clara, expressiva e acessível é mais intensa no ZGB, que, por vezes, vale-se de expressões que, embora não sejam técnicas juridicamente, são mais bem compreendidas (a exemplo da frase "o casamento emancipa"). O ZGB é marcado por uma maior participação do próprio cidadão, o que foi obtido pela menor intensidade na cientificação da consciência jurídica popular16. O civil law germânico foi marcado pela influência da versão científica da pandectística, pela influência dos costumes germânicos. Destacam-se, como característica do civil law germânico, uma sistemática rigorosa e uma preocupação perfeccionista com conceitos jurídicos17. Na Alemanha, a classe jurídica é mais técnica e menos política, tudo sob uma busca por neutralidade científica oriunda do positivismo científico e legalista. Profissionais do Direito, como advogados e juízes, raramente alçam-se a posições e a posturas políticas. Difere, nesse ponto, das demais famílias jurídicas18. O civil law germânico, além de estar presente nos países europeus de língua germânica, alcançou outras nações. Embora haja certa indeterminação para definir o alcance fora da Europa, é certo que o BGB influenciou fortemente o Japão e, em certa medida, a Tailândia. O ZGB, a se turno, influi intensamente na Turquia de Mustafá Kemal Ataturk19 (1927), além de ter inspirado a Hungria (especialmente até a segunda guerra mundial), a Iugoslávia, a Polônia (especialmente o Código de Direito das Obrigações de 1933) e a Grécia. A influência do civil law germânico (ora por conta do BGB, ora em razão do ZGB, ora graças a ambos) teve influência (importante, mas menos intensa) em outras nações, como nos Estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), na América Latina (notadamente Brasil - 1916 -; México - 1928 -; e Peru - 1936), no Líbano (1933), no Código Civil da União Soviética de 192320, na Albânia, na Bulgária, China pré-comunista e na Tailândia.  O civil law escandinavo reporta-se aos cinco países nórdicos: Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia e Finlândia. Foi influenciado pelo civil law francês e pelo civil law germânico, mas mantém particularidades que permitem uma categorização apartada. Sua principal marca decorre da menor intensidade da influência de uma concepção científica e fria do direito. A consciência escandinava do direito é forte, o que torna o sistema jurídico mais maleável para adaptar-se a novos problemas sociais e morais. O direito é mais hospitaleiro a soluções jurídicas de índole progressiva e social21. __________ 1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 79-80. 2 Atamer, 2012. 3 Sigla de Zivilgesetzbuch, em alemão. 4 O BGB continha 2.385 artigos. O Código Civil Suíço (ZGB) e o Código das Obrigações Suíço (Obligationenrecht - OR) continham, juntos, 1.528 artigos. O Código das Obrigações suíço (OR) é a quinta parte do Código Civil Suíço (ZGB), apesar de contar com uma numeração própria (Siehr, 2012). 5 ATAMER, Yesim M. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2009 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 6 TUSEV. Turkish Civil Code. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022; MAX-EUP. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2012 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80. 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 80-81. 10 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-589. 11 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 12 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 13 Os mais de 1.900 artigos do ALR abrangiam regras não apenas de Direito Civil, mas também de Direito Penal, de Direito Constitucional, de Direito Canônico etc. (Ricken, 2022). 14 Sobre as particularidades históricas da Suíça, as quais lhes outorgam traços que o distinguem da Alemanha, reportamo-nos a Franz Wieacker (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-570). O ZGB foi fruto do trabalho de sistematização de Eugen Huger, que atentou para as particularidades jurídicas de cada cantão (alguns dos quais já tinham códigos de direito privado, a exemplo do Código de Direito Privado de Zurique - Zürcher Privatrechtliches Gesetzbuch). 15 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 564. 16 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 565-566. 17 Franz Wieacker  aponta que essas características do civil law alemão, notadamente sob a influência do BGB, pode, por vezes, descambar para perfeccionismos vazios e limitados. E há aspectos positivos e negativos nessas características, as quais realçadas no direito hipotecário e no sistema cadastral (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578). 18 (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 579. 19 A Turquia de 1927 era mais europeizada e laicizada (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578, p. 568). 20 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 578 e 568-569. 21 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 581 e 568-569.
terça-feira, 15 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte II

Na coluna anterior, expusemos os países do mundo que se incluem na família do civil law. Hoje, passaremos a tratar do movimento de disseminação de Códigos Civis pelo mundo. II. Códigos Civis no mundo A família do civil law decorre de desenvolvimento dos estudos de direito romano realizados ao longo da história (com inclusão dos estudos dos glosadores e comentadores na Idade Média) até a deflagração dos movimentos de codificação. Embora os costumes tenham importância, o civil law marcou-se por uma busca de um sistema jurídico mais racional, assentado em normas escritas, fruto dos fortes estudos acadêmicos do direito romano realizado desde a Baixa Idade Média1. As codificações a partir do século XIX consolidaram esse modo mais racional de pensar, fundado em um direito escrito. A influência do direito romano subsistiu mesmo após as codificações, pois os fundamentos do civil law estão umbilicalmente ligados a ele2. A expansão da codificação, iniciada com o Código Civil francês de 1804, ajudou para espalhar a família do civil law para dentro e fora da Europa3. Na Europa, destacam-se, após o Código Civil napoleônico (1804), o Código Civil holandês em 1838 (Burgerlijk Wetboek - BW), o Código Civil português de 1867 (Código de Seabra4), o Código Civil espanhol de 1889 (Real Decreto de 24 de julio de 1889), o Código Civil alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB), o Código Civil suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB). Na América, o movimento da codificação disseminou-se5. Na América do Norte, o estado norte-americano de Luisiana editou seu Código Civil em 1808. Na América Central e do Sul, destacam-se os Códigos Civis do Haiti (1825), do estado mexicano de Oaxaca (1827-1829)6, da Bolívia (1830), da Costa Rica (1841), da República Dominicana (1845), do Peru (1852), do Chile (1855)7, do Estado Soberano de Magdalena (1857)8, do Equador (1856-1860), do Estado Soberano de Santander (1858)9, de El Salvador (1859), do Estado Soberano de Cauca (1859)10, do Estado Soberano de Cundinamarca (1859)11, do Estado Soberano do Panamá (1860), do Estado Soberano de Tolima (1861)12, do estado mexicano de Veracruz (1861), da Venezuela (1861, posteriormente substituído em 1873)13, do Estado Soberano de Bolívar (1862), do Estado Soberano de Boyacá (1863) e do Estado Soberano de Antioquia (1864), do Império Mexicano (1866), da Nicarágua (1867, posteriormente substituído em 1904) e do Uruguai (1868). Em seguida a esses Códigos, sobrevieram os Códigos Civis da Argentina (1869)14, da Colômbia (1887), de Honduras (1898, posteriormente substituído em 1906) e do Brasil (1916)15. Apesar de o primeiro Código Civil brasileiro só ter nascido em 1916, houve, ao longo do século XIX, diversos movimentos de codificação com a apresentação de projetos de códigos por diferentes juristas. A primeira tentativa de codificação foi por meio do Esboço de Código Civil, de Teixeira de Freitas, publicado em três partes entre os anos de 1860 e 1865 (1983-A e 1983-B). Teixeira de Freitas já havia entregado a Consolidação das Leis Civis em 1858, organizando sistematicamente o caótico sistema jurídico privado da época. José de Alencar16 fez, publicamente, análise crítica do projeto de Teixeira de Freitas com esta afirmação: "'o que uma vez se entregou à publicidade pertence-lhe, entra no seu domínio soberano: é julgado' (CORREIO MERCANTIL, 1860)" (Paranhos, 2012).  O Esboço de Teixeira de Freitas, todavia, não avançou por questões políticas. Em 1872, o ministro da Justiça Duarte de Azevendo contratou José Tomás Nabuco de Araujo17 para a elaboração de um novo projeto de Código Civil. Nabuco de Araujo esforçou-se por manter o que fosse possível do Esboço e Teixeira de Freitas, mas não conseguiu concluir o trabalho por conta de sua morte em 187818. O pai do Código Civil português, Visconde de Seabra, chegou a oferecer-se para elaborar um projeto de Código Civil para o Brasil. Após as duas tentativas (a de Teixeira de Freitas e a de Nabuco Araujo), Joaquim Felício dos Santos19, após obter a permissão do Conselheiro Lafayette (então Ministro da Justiça) em 1872, elaborou um projeto de Código Civil em 1882 (Felício dos Santos, 1891). Também foi o caso do Projeto de Código Civil de Antônio Coelho Rodrigues após ter sido contratado em 1890 para tal tarefa pelo Ministério da Justiça (Quintela, 2017; Coelho Rodrigues, 1893; Costa Filho, 2014). Os projetos de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues não vingaram por questões políticas e por conta da rivalidade existente entre os juristas da época "por escrever o próprio nome na história do Direito Brasileiro" (Tomasevicius Filho, 2016, p. 88). Foi Clóvis Beviláqua, jurista ligado à Escola de Recife (liderada por Tobias Barreto), que se sagrou vitorioso sob essa ótica. Foi do seu anteprojeto que, com ajustes ocorridos ao longo da tramitação legislativa, gerou o Código Civil de 1916. Inspirou-se na experiência alemã, além dos trabalhos dos juristas brasileiros anteriores20. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. __________ 1 Com enfoque no direito francês, ver: DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 1-2. 2 A ênfase do direito romano era no direito privado. E desse desenvolvimento privatista dos romanos que descende a essência da família do civil law. O direito público romano, apesar de sua importância, foi um espelhamento do desenvolvimento do desenvolvimento do direito privado. René David (O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 2) destaca, in verbis: ... Nossa concepção do direito permanece bastante marcada pela ciência dos romanistas. O direito por excelência continua a ser, para nós, o direito privado, que rege as relações entre os particulares; o direito público, pelo qual os juristas romanos não se interessam, só se afirma com certa dificuldade quando modelado à imagem do direito privado. Nossos conceitos e nossas categorias jurídicas permanecem essencialmente os conceitos ensinados nas Universidades, tendo por base o direito romano. 3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 67. 4 O epíteto é uma homenagem a António Luís de Seabra e Sousa, o 1º Visconde de Seabra, considerado pai do primeiro Código Civil português. Esse Código foi revogado com o advento do novo Código Civil português de 1966. 5 Guzmán Brito, 1999-2000. 6 Ut GUZMÁN, BRITO, Alejandro. La influencia del Código Civil de Vélez Sarsfield em las codificaciones de iberoamérica hasta princípios del siglo XX. In: Revista Chilena de Historia del Derecho, n. 18, 1999-2000, pp. 263-273; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificación Civil em México: aspectos generales. Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificacion Civil em Mexico. In: Iurisdictio, n. 1, 2020, pp. 92-123. 7 Andrés Bello é tido como pai do Código Civil chileno. 8 O Estado Soberano da Magdalena foi um dos estados da atual Colômbia. Ut Mayorga Garcia, 1991. 9 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 10 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 11 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 12 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 13 GALITO, Einstein Alejandro Morales. Evolución Histórica del Código Civil Venezolano. Publicado em 24 de março de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 31 de março de 2022). 14 Dalmacio Vélez Sarsfield é considerado o pai do Código Civil argentino. Foi influenciado pelos trabalhos de Teixeira de Freitas: o Esboço de Código Civil e a Consolidação das Leis Civis (FERREIRA, Waldermar. Teixeira de Freitas e o Código Civil argentino. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 25, 1929, pp. 181-186; NOCCHI, Carolina Penna. A influência de Augusto Teixeira de Freitas na elaboração do Código Civil argentino. In: Revista do CAAP, número especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, jul./dez., 2010, pp. 37-48; LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022); CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 63-96). A influência dos trabalhos de Teixeira de Freitas alcançou também o Uruguai, o Paraguai, a Venezuela, o Chile e a Nicarágua. Sobre a notável reputação jurídica de Teixeira de Freitas no Brasil, Joseane Suzart Lopes da Silva averba: Reconheceu Clóvis Beviláqua que Teixeira de Freitas sedimentou "um edifício de grandes proporções e de extraordinária solidez". Rui Barbosa referiu-se a ele como "o maior civilista morto" e segundo Orlando Gomes, "pagou pela audácia de ter sido original e autêntico ao passar à frente do seu tempo, e, por isso, não foi esquecido. Nem será" (LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022) 15 Ut Costa, 2004. Venceslau Tavares Costa Filho desenvolveu tese de doutorado problematizando o processo histórico da codificação civil no Brasil (COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código "social" e "impopular": uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife. Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Junior. 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de novembro de 2021). Eduardo Tomasevicius Filho destaca o legado que o Código Civil de 1916 deixou para o direito brasileiro, abordando, entre outros aspectos, o histórico de sua formação (TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, pp. 85-100). 16 José de Alencar, além de grande romancista brasileiro, foi juristas e Ministro dos Negócios da Justiça (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, p. 69). 17 Nabuco de Araújo fora quem, na condição de Ministro dos Negócios da Justiça, havia convidado seu ex-colega de graduação e seu amigo Augusto Teixeira de Freitas para elaborar a Consolidação das Leis Civis e o projeto de Código Civil (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019). 18 Havia, porém, quem sustentasse que os trabalhos haviam sido concluídos (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 70-71). Sobre a morte de Nabuco Araujo, o Jornal do Commercio publicou: "se não bastassem os regulamentos dos tribunais de comércio, o regimento de custas, a lei hipotecária e o seu regulamento, o projeto de lei de locação de serviços, e tantas outras provas do seu alto mérito, lega ele à família e ao país, para eternizar o seu nome, o projeto de Código Civil, que felizmente completara e que, na opinião dos entendidos e insuspeitos, será um monumento para a jurisprudência pátria" (MIGALHAS. Há 200 anos nascia José Tomás Nabuco de Araújo. Disponível aqui. Publicado em 14 de agosto de 2013 (Acesso em 31 de março de 2013). 19 Joaquim Felício dos Santos era senador. 20 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, p. 89.
terça-feira, 1 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte I

I. Visão panorâmica dos países da família do civil law A família do civil law disseminou-se por diversos países do mundo. O mapa abaixo indica, de vermelho, os locais em que prevalece essa família, além de indicar as regiões de influência das outras famílias jurídicas1:   Na Europa, os países da Europa continental encaixam-se no modelo do civil law, ainda que haja particularidades entre eles. No continente americano, na América do Norte, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico2 e a Província canadense de Quebec adotam o civil law, conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law. Na América Central e do Sul, a maioria dos Estados adotaram o modelo do civil law, especialmente por conta das colonizações portuguesa e espanhola. A exceção corre à conta da Guiana (que adota um sistema misto), de Belize e de alguns outros países da América Central (especialmente do Caribe), conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law em outro artigo publicado nesta Coluna3. Na Ásia, entre outros países que adotam a família do civil law, estão o Japão4 e a Rússia. Há países asiáticos que adotam um regime misto de civil law e common law, como as Filipinas5. Há outros em que o regime misto é do civil law com o direito consuetudinário ou com o direito islâmico. É o que, por exemplo, da Indonésia, em que há um regime misto de civil law (de tradição holandesa), de direito costumeiro (o sistema hukum adat) e de direito islâmico6. A China tem um regime predominantemente vinculado ao civil law, mas há particularidades ao longo do território. Na China continental, as leis foram influenciadas pelos direitos soviético, alemão e japonês. Em Hong Kong, vigora um regime do common law. Em Taiwan, vige um modelo de civil law influenciado pelos direitos alemão e japonês7. Na África, há alguns países que adotaram a família do civil law, como Moçambique8. Na próxima Coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de Códigos Civis pelo mundo. __________ 1 Ut INTERNATIONAL BUSINESS LAW. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. Publicado em outubro de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022). 2 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 3 Disponível aqui. 4 Ut TAYLOR, Veronica; BRITT, Robert R.; ISHIDA, Kyoko; CHAFFEE, John. Introduction: Nature os the Japanese legal system. In: Business Law in Japan, vol. 1; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 55). Publicado em 15 de fevereiro de 2017. Acesso em 25 de março de 2022). 5 Ut CONCIL OF ASEAN CHIEF JUSTICES. Philippines. Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022. 6 Ut BLACK, E. Ann; BELL, Gary F. Law and Legal Institutions of Asia: Traditions, Adaptations and Innovations. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. 7 Ut ROU, Tong. The General Principles of Civil Law of The PRC: Its birth, characteristics, and role. In: Law and Contemporary Problems, vol. 52, nº 2, 1989, pp. 151-175 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).; CHINA JUSTICE OBSERVER. Does China Have Common Law? - China Law in One Minute. Publicado em 9 de novembro de 2020 (Disponível aqui. Acesso de 30 de março de 2022). 8 Ut RAINHA, Paula. UPDATE: Republic of Mozambique - Legal System and Research. Publicado em abril de 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).
É importante ter uma visão panorâmica dos países do mundo que foram influenciados pelo civil law e pelo common law, especialmente com olhos no Direito Privado. A compreensão de regras de direito comparado exige uma necessária contextualização com o sistema jurídico de cada país. Hoje, exporemos os principais países ligados à família do common law. A família do common law tem sua gênese na Inglaterra com os trabalhos dos juristas e dos Tribunais Reais de Justiça após a conquista normanda no século XI. Essa família jurídica espalhou-se para outros países que sofreram a influência da Inglaterra, especialmente pelo expansionismo do Império Britânico e pela colonização de povoamento desenvolvida após o Mayflower atracar, em 1620, no território do atual EUA. Com algumas exceções, países de língua inglesa e membros da Commonwealth1 perfilham-se à família do common law. Ainda que esses países tenham particularidades jurídicas vinculadas às suas idiossincrasias, é inegável que a influência britânica no pensamento jurídico local e na estruturação institucional foi marcante2. Por exemplo, apesar de o sistema jurídico dos EUA (rectius, da maioria dos Estados norte-americanos) e da Inglaterra poderem ser enquadrados na família do common law, há diferenças marcantes. Na década de 1960, Franz Wieacker creditou essa distinção, entre outras causas, à diferença de ideologias jurídicas. Na ideologia, os norte-americanos assentam-se mais em uma ideia de otimismo revolucionário, em um controle pela Constituição e em uma atuação mais intensa dos juízes. Já os ingleses estavam mais impulsionados por confrontos entre grupos políticos de uma sociedade tradicional sob a mediação da coroa, fato que vem sendo modificado diante da perda de influência das oligarquias sobre a política3. Vejamos, por continente, os principais países integrantes da família do comoon law. No continente europeu, três países integrantes do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte) encaixam-se na família do common law. A Escócia, apesar de integrar o Reino Unido, posta-se em uma linha intermediária entre a família romano-germânica e a família do common law4. Historicamente, a particularidade jurídica escocesa resulta da precoce autonomia conquistada e da relação próxima da Igreja presbiterial escocesa e o calvinismo da Europa ocidental. Por conta dessa proximidade, por cerca de um século, a formação de juristas escoceses ocorreu na França e, posteriormente, na Holanda, o que colaborou para a influência romanística no sistema jurídico escocês5. No continente americano, o ambiente é sortido. Na América do Norte, os EUA e o Canadá integram a família do common law, ressalvados, porém, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico6 e a Província canadense de Quebec. Na América Central, integram a família do common law Barbados7, Belize8, Bahamas9, República de Trindade e Tobago10 e outros países do Caribe (como as Ilhas Cayman11 e Antígua e Barbuda12). Na América do Sul, a Guiana adota um sistema misto, com elementos do common law e do civil law13. No caso dos EUA, por influência da colonização francesa e espanhola, o Estado de Luisiana e Porto Rico14 alinham-se à família do civil law. No Estado de Luisiana, seu código Civil (Lousiana Civil Code) remonta a 1808, lavrado pelo trabalho do jurista Louis Casimir Moreau-Lislet. Foi revisado em 1825 e sofreu algumas alterações, como as ocorridas em 1870, 1960 e 1992. Segue sendo o Código Civil atualmente em vigor15. A inspiração desse Código foi o Código Civil francês de 1804 (Código Napoleônico). Razões históricas justificam essa singularidade: o território correspondente ao atual Estado norte-americano de Luisiana pertenceu à França desde o final do Século XVII até 1803. O próprio nome de batismo dessa região (que alcançava uma extensão territorial maior do que a atual16) foi uma homenagem ao rei francês Luís XIV. Napoleão, premido por necessidade financeira e desinteressado em manter colônias em outro continente, vendeu o território para os EUA em 1803 em uma transação conhecida como Louisiana Purchase. A tradição jurídica francesa manteve-se forte especialmente na região sul do grande território adquirido, ou seja, na região atualmente correspondente ao Estado norte-americano de Luisiana. Isso justifica a vinculação do Estado norte-americano de Luisiana à família jurídica do civil law17. Em Porto Rico, foi editado um novo Código Civil em 2020 (Ley núm. 55 de 1 junio de 2020), o qual revogou o anterior (que remontava a 1930). Ambos mantêm inspiração no Código Civil espanhol conforme exposição de motivos do novo Código Civil de Porto Rico18. Antes do antigo Código Civil (o de 1930), vigorava o Código Civil de 1902, que se inspirara tanto no Código Civil francês de 1804 (O Código Civil napoleônico) quanto no Código Civil do Estado norte-americano de Luisiana. Em momento anterior, vigorava o Código Civil Espanhol por força da Real Orden de 31 de julio de 188919, código esse que - como se sabe - espelhou-se no Código Civil francês de 1804 (O Código Napoleônico). Apesar da tradição de Porto Rico ser a do civil law, houve influências do common law, especialmente após Porto Rico ter sido adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. No caso do Canadá, a Província de Quebec segue o sistema do civil law por influência francesa, ao menos no direito privado. De fato, Quebec é a única província canadense que possui um Código Civil, o qual é baseado no Código Civil francês20. O primeiro Código Civil na província de Quebec é de 1866 e era conhecido como o Código Civil do Baixo Canadá21 (Code civil du Bas-Canada), que costuma ser abreviado como CCBC. Ele foi revogado pelo atual Código Civil de Quebec, que é de 1994 e cuja sigla é CCQ. Esse novo Código manteve-se vinculado à tradição do civil law, com forte influência do direito francês. Razões históricas justificam esse alinhamento da Província canadense de Quebec à família romano-germânica. O Canadá foi originariamente colonizado pela França, com o envio das primeiras expedições em 1534 a mando do rei francês Francisco I. Quebec - então batizada de Nouvelle France - foi uma das primeiras colônias. Juridicamente, desde o século XVII, as colônias, além das ordenações régias (ordonnances), seguiam o Coutume de Paris22 e, no que este fosse omisso, o Direito Romano (na sistematização dos juristas franceses) e o Direito Canônico (nas disciplinas em que fosse cabível, como em família e sucessões)23. Apesar do posterior avanço britânico em detrimento da França no século XVIII, os colonos franceses conseguiram, por meio do The Quebec Act, de 1774, manter o direito de continuar regidos pelas leis francesas, salvo as penais (que seriam britânicas). O Coutume de Paris, portanto, seguiu a reger o direito privado em Quebec até 1866, ano em que foi promulgado o Código Civil do Baixo Canadá, inspirado tanto no Código francês de 1804 quanto no Código Civil de Luisiana24. Na Oceania, a Austrália25 e a Nova Zelândia vinculam-se à família do common law. Na Ásia, como nações vinculados à família do common law, citam-se Hong Kong26, Índia27, Paquistão28 e Bangladesh. No continente africano, citam-se, como nações vinculadas ao common law, Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Nigéria, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Gana, Libéria, Serra Leoa e Gâmbia. Em relação aos demais países sul-americanos, há os que seguem a família do civil law (sob a tradição napoleônica), outros que mesclam as famílias do civil law com a do common law e outros que perfilham um regime misto do civil law com o direito muçulmano. Seja como for, o fato é que os países africanos possuem modelos jurídicos que partem de três famílias: a do civil law, a do common law e a do direito muçulmano. Camile Astier (2012) disponibiliza este didático desenho mapeando os sistemas jurídicas africanos: Cabe uma ressalva acerca da África do Sul e de outros países africanos que se espelharam na África do Sul, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia, ou que sofreram múltiplas colonizações, como as Ilhas Maurício. Prevalece o entendimento de que, lá, vigora um regime misto de common law com civil law. De um lado, houve a influência do common law pelos britânicos. De outro lado, houve a influência do civil law pelos holandeses, sob uma versão holandesa conhecida como direito romano-holandês (Roman-Dutch law). O direito holandês, que é uma variante da família romano-germânica, vigorou na região da África do Sul, notadamente na atual localidade da Cidade do Cabo, tudo durante o período de colonização holandesa (séculos XVII e XVIII). Após a invasão dos Países Baixos pela França de Napoleão Bonaparte, o direito holandês deixou de ser um direito não codificado para seguir a tendência inaugurada pelo Código Civil francês de 1804: o Código Civil Holandês (Burgerlijk Wetboek ou BW) nasceu de 183829, com forte inspiração no Código Civil napoleônico. Além disso, o direito holandês absorveu tanto experiências do direito romano quanto do pensamento do common law inglês. Isso colaborou para que, na África do Sul, fosse formado um sistema jurídico que mescla a família do civil law com a do common law. A colonização britânica - ocorrida após de 1795 durante a quarta guerra Anglo-Holandesa (1780 a 1785) - também contribuiu para esse cenário. Sob domínio britânico, houve a interiorização territorial da África do Sul, com uma consequente difusão do regime jurídico misto30. O regime misto sul-africano espalhou-se para outros países africanos, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia31. As Ilhas Maurício, a seu turno, adotaram um regime jurídico que mescla o common law (fruto da colonização britânica) com o civil law das versões francesas (resultante da colonização francesa) e holandesa (derivada da colonização holandesa). _______________ 1 A Commonwealth é uma organização intergovernamental que reúne 54 países independentes (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). Com exceção de alguns países (como Moçambique e Ruanda), todos já integraram o Império Britânico. O site da Commonwealth é este: https://thecommonwealth.org/. 2 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 351-352. 3 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 572. 4 Há juristas que enquadram a Escócia na família romano-germânica (Guido Fernando Silva Soares, 1997), ou como um regime híbrido (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). 5 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 573. 6 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 7 Para uma visão do sistema jurídico de Barbados, recomendamos acesso a estes dois sites: https://www.barbadoslawcourts.gov.bb/ e https://guides.law.fsu.edu/caribbean/barbados. 8 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 9 LEX BAHAMAS. Overview of the Bahamian Legal System. Publicado em 28 de janeiro de 2009 (Disponível em: http://www.lexbahamas.com/overview_of_the_bahamian_legal_s.htm#:~:text=The%20Bahamian%20legal%20system%20is,are%20enshrined%20in%20the%20Constitution. Acesso em 30 de março de 2022). 10 FITZWILLIAMSTONE. Trinidad and Tobago Government, Legal System and Economy. Disponível em: http://fitzwilliamstone.com/legal-insight/trinidad-and-tobago-government-legal-system-and-economy/#:~:text=The%20law%20of%20Trinidad%20and,Commonwealth%20States%20mainly%20Canada)%20statutes. Acesso em 24 de março de 2022. 11 CAYMAN ISLANDS JUDICIAL ADMINISTRATION. Laws of the Cayman Islands. Disponível: https://www.judicial.ky/laws#:~:text=The%20Cayman%20Islands'%20legal%20system,assented%20to%20by%20the%20Governor. Acesso em 30 de março de 2022. 12 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 13 ADAMS, Errol A. Guyana Law and Legal Research. Publicado em maio/junho de 2020 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Guyana.html. Acesso em 24 de março de 2022). 14 Porto Rico é um Estado Livre Associado vinculado aos EUA. Não é um país independente. Historicamente, Porto Rico foi adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. Em 1952, Porto Rico tornou-se "Estado Livre Associado" aos EUA, um status jurídico que não frui das mesmas prerrogativas dos 50 Estados norte-americanos. É que o estabelece o preâmbulo da Constituição de Porto Rico, de 1952 (Porto Rico, Constitucion del Estado Libre Asociado de Puerto Rico. Disponível em: https://www2.pr.gov/sobrepuertorico/documents/elaconstitucion.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021). 15 O governo local disponibiliza o texto do Lousiana Civil Code neste site: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent (LOUSIANA. Civil Code. Disponível em: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent. Acesso em 24 de março de 2022). 16 A colônia francesa de Luisiana, à época, ocupava uma área que abrange não apenas o atual Estado norte-americano de Luisiana, mas também outros 14 Estados norte-americanos bem como 2 Províncias canadenses (Facchini Neto, 2013, p. 81). 17 Ut FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp 81-82. 18 PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 19 Esse ato normativo espanhol havia estendido a vigência do Código Civil espanhol para Porto Rico, Cuba e Filipinas (PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 20 Government of Canada, 2022. Além disso, o governo canadense disponibiliza informações jurídicas gratuitamente neste site: https://www.justice.gc.ca/eng/csj-sjc/just/03.html. O atual Código Civil de Quebec está disponível neste site: https://www.legisquebec.gouv.qc.ca/fr/document/lc/ccq-1991. 21 Baixo Canadá ou Canadá Inferior era o antigo nome de Quebec 22 ZOLTVANY, Yves F. Esquisse de la Coutume de Paris. In: Revue d'histoire de l'Amérique française, volume 25, numéro 3, décembre 1971, pp. 365-384; FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 82. 23 FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp. 82-83. 24 A inspiração no Código Napoleônico e no Código Civil de Lusiana foi determinada expressamente pela lei de 1857 que determinou a elaboração de um Código Civil destinado a substituir o Coutume de Paris na Província de Quebec (FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 83). 25 A título de curiosidade, o Estado Australiano da Tasmânia disponibiliza informações jurídicas gratuitas neste site oficial: https://www.hobartlegal.org.au/handbook/the-justice-system/the-law/. 26 Hong Kong é, na verdade, um território autônomo da China. Adota um sistema jurídico baseado na common law, embora seja complementado por leis (como, de resto, tem ocorrido nos diversos países da família do common law). Apesar de integrar a China, mantém um sistema jurídico diferente, tudo dentro do princípio "um país, dois sistemas" (one country, two systems) (HONG KONG. Hong Kong: the facts legal system. Disponível em: https://www.gov.hk/en/about/abouthk/factsheets/docs/legal_system.pdf. Acesso em 24 de março de 2022). O governo de Hong Kong disponibiliza acesso à legislação e a informações jurídicas neste site: https://www.elegislation.gov.hk/. 27 Ut NAGAR, Raghav. What is common law? Does it apply in India? Disponível em: https://blog.ipleaders.in/common-law-apply-india/. Acesso em 24 de março de 2022 (Publicado em 23 de abril de 2015).   28 O sistema jurídico paquistanês integra a família do common law, fruto da inspiração da Índia britânica. O Paquistão é uma República Islâmica, conforme sua Constituição de 1973, razão por que não se pode ignorar a influência do direito muçulmano (LAU, Martin. Introduction to the Pakistani Legal System, with special reference to the Law of Contract. In: Yearbook of Islamic and Middle Eastern Law, vol. 1, 1994, pp. 3-28). 29 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicados progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês. 30 Ut Zimmermann, Reinhard. Direito Romano e cultura europeia (Tradução e Notas: Otávio Luiz Rodrigues Junior e Marcela Paes de Andrade Lopes de Oliveira). In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, ano 3, vol. 7, abr./jun. 2016, pp. 243-278; ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); Rodrigues Junior, Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos. Publicado em 9 de abril de 2014 (Disponível em:https://www.conjur.com.br/2014-abr-16/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022); Rodrigues Junior, Otávio Luiz. Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos II. Publicado em 16 de      abril de 2014 (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-09/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-reino-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022; 31 ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); LAC. Common Law (Law in Namibia, Factsheet Series, nº 4 of 6). Disponível em: https://www.lac.org.na/projects/grap/Pdf/Law_4-Common_Law.pdf. Acesso em 24 de março de 2022; DUBE, Brian. Roman-Dutch and English common law: the indespansable law in Zimbabwe. In: Afro Asian Journal of Social Sciences, volume V, nº 4, Quarter IV, 2014 (Disponível em: http://www.onlineresearchjournals.com/aajoss/art/164.pdf. Acesso em 25 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo. The Law and Legal Research in Lesotho. Publicado em fevereiro de 2008 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Lesotho.html. Acesso em 24 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo; MAGAGULA, Alfred. The Law and Legal Research in Swaziland. Publicado em outubro de 2007 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Swaziland.html#:~:text=Swaziland%20also%20applies%20the%20common,but%20excludes%20Swazi%20customary%20law. Acesso em 24 de março de 2022).
Para pesquisas de Direito Comparado Privado, é importante ter noções gerais sobre as principais famílias jurídicas. Trataremos hoje do direito islâmico para facilitar investigações de direito comparado, especialmente no âmbito do direito privado. Na mesma linha do que sucede com direitos de origem religiosa (divina), a família do direito muçulmano é marcada por uma maior valorização do conteúdo das regras do que por um foco no procedimento. Não que o procedimento seja desprezado. O que sucede é que o direito muçulmano parte da lógica de que o direito já é dado pela divindade e, portanto, não precisa ser definido por meio de procedimentos. O direito religioso dá forte atenção para a substância (o conteúdo normativo), e não para o procedimento. Há uma sacralidade no conteúdo normativo. O direito religioso é um direito mais substantivo e menos procedimental, ao contrário da concepção de direito dos países ocidentais (em que o mais importante é que as normas tenham sido fruto de um procedimento previamente estabelecido). Nessa linha, o legislador por excelência, além de Deus, são os sábios religiosos, e não uma instituição legisladora que cria o direito por meio de procedimentos democráticos (como um Parlamento)1. Uma das consequências é que o direito religioso é mais difícil de mudar: não é fácil justificar a mudança de uma regra estabelecida por Deus. Similar raciocínio vale para outros direitos religiosos, como o direito talmúdico, o direito hindu2 e o direito canônico3. Potencialmente, o direito muçulmano não tem limitação geográfica. Não é o direito de um país. Ele pretende ser aplicável em todo lugar onde houver uma sociedade muçulmana. Daí decorre que cada Estado tem uma postura diante do direito islâmico. Em Estados muçulmanos4, o direito islâmico pode ser adotado como oficial. Isso ocorre de modo diverso entre as nações que atualmente admitem a aplicação da Lei Sharia. Em alguns, o direito islâmico é uma entre outras fontes estatais. Em outros - de modo mais raro (como a Arábia Saudita5) -, todo o direito é islâmico: não haveria, em princípio, legislação, pois o direito islâmico é aplicado diretamente para todas as questões. Nos Estados não muçulmanos, o Poder Público poderá ter de lidar com problemas decorrentes de um ordenamento jurídico paralelo vigente de fato, cultivado por minorias muçulmanas em seu território6. Também pode haver, em contratos ou em arbitragem, a escolha do direito islâmico para disciplinar a relação jurídica. De um modo geral, o direito islâmico possui maior incidência sobre o estatuto pessoal, ou seja, sobre regras que disciplinam pessoas, direito de família e direito das sucessões. Em matéria contratual e em de direito das coisas7, apesar de se poder falar em aplicação do direito muçulmano, há uma tendência de ocidentalização jurídica, com incorporação de regras próprias das famílias do civil law ou do common law. Tal justifica-se especialmente em razão do fato de o comércio internacional pressupor certo grau de harmonização jurídica. Além disso, o direito muçulmano preocupa-se, sobretudo, com a pessoa em si, ou seja, com o modo de viver de cada indivíduo8. Além disso, em alguns países muçulmanos, há uma tendência de codificação do direito islâmico. Como vantagem desses trabalhos de codificação, a compreensão das regras jurídicas torna-se mais fácil. O aplicador do direito terá ganhos de sistematicidade. Reduzir-se-á o caos assistemático causado pela profusão de obras e textos (por vezes, confusos), escritos em idioma árabe (que nem sempre é o idioma do Estado). Há, porém, resistência a esses trabalhos de codificação ou de consolidação, pois a racionalização própria desses trabalhos entra em conflito com os tradicionalistas muçulmanos por lhes subtrair o seu poder normativo. Nesse contexto, houve trabalhos de codificação que permaneceram privados, apesar de seu reconhecido valor jurídico, a exemplo dos códigos de estatuto pessoal elaborados no Egito por Mohammed Pacha, na Tunísia por D. Santillana e na Argélia por M. Morand9. Na Arábia Saudita, em 2010, o governo anunciou a pretensão de codificar a Sharia. Em 2018, o Estado publicou um manual de princípios e preceitos legais10. O direito muçulmano corresponde à aplicação da Sharia11 (Châr'ia, Charia ou Xaria12), a qual pode ser vista como o conjunto de leis islâmicas. Não se trata de um código ou de uma lei, e sim do conjunto de normas. Essencialmente, o direito muçulmano (a lei Sharia) consiste essencialmente na aplicação do Alcorão (Corão, al-Qur-ãn ou Qorân) e nas fontes jurídicas dele decorrentes. Em suma, estas são as fontes do direito muçulmano: o Alcorão, a Suna (ou Sunna), o Idjmâ' (ou Ijmâ') e o Qiyâs13. O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. Contém as revelações de Alá a Maomé, o último e o principal dos profetas para os muçulamanos. É a primeira e a mais importante fonte do direito muçulmano. Como o Alcorão não dispõe sobre todas as questões sociais, ele é insuficiente enquanto fonte jurídico, razão por que o direito muçulmano socorre-se de outras fontes. A Suna é a segunda fonte do direito muçulmano. Corresponde ao modo como Maomé vivia. Contém os atos, os comportamentos e os pensamentos de Maomé, ou seja, o h'adith. Diante da insuficiência de o Alcorão e a Suna fornecerem respostas jurídicas a todas as relações sociais, o direito muçulmano vale-se de uma terceira fonte: o Idjmâ'. Trata-se de um acordo unânime entre os doutos sábios religiosos. Trata-se de um dogma acerca da infalibilidade das deliberações unânimes dos sábios integrantes da comunidade muçulmana. Não se trata de costume nem de uma busca da unamidade popular. Cuida-se, sim, de uma unanimidade apenas entre aqueles os jurisconsultos do islã (fuqahâ), os quais são considerados como os herdeiros dos profetas. Nesse ponto, há, porém, divergências no meio jurídico muçulmano: há diferentes vias (madh'hab), as quais são também chamadas de "ritos" ou de escolas. Essas escolas são as responsáveis por formar a jurisprudência islâmica (fiqh). Há quatro principais escolas (madh'hab, ritos ou correntes): (1) a escola Hanafi ou o hanafismo; (2) a escola chafeíta ou o chafeísmo (ou xafeísmo); (3) a escola malequita ou o maliquismo; (4) a escola hanbalita ou hanbali14. Os nomes dessas escolas vinculam-se a um jurista muçulmano que deu origem à linha interpretativa15. Assim, quando um país adota a Lei Sharia (o direito muçulmano), é preciso indicar a escola (madh'hab) que será aplicada. A escola Hanafi é a mais antiga e a mais difundida, especialmente por ter sido espalhada ao longo dos vastos territórios do Império Otomano, do Império Mongol e do Califado Abássida. É a que mais adeptos têm no mundo, da ala dos muçulmanos sunitas. É mais liberal do que as demais. A escola malequita prepondera na África subsaariana e na África Ocidental. A escola chafeíta vige na Malásia, na Indonésia e na costa oriental da África. A escola hanbalita hospeda-se na Arábia. A quarta fonte do direito muçulmano é o Qiyâs, que é fruto de um raciocínio por analogia. É uma fonte útil para oferecer respostas jurídicas a situações novas que não foram contempladas nas demais fontes. Como o jurista muçulmano parte da lógica de respeito à autoridade, não lhe é própria a ideia de criar novas regras, ao contrário do que se dá com o jurista do civil law ou do common law. O jurista muçulmano apenas extrai regras que estariam implícitas nas fontes do direito islâmico. O Qiyâs é resultado dessa lógica do jurista muçulmano em prestigiar a autoridade divina. __________ 1 É o que destaca Salem Nasser em didática palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 2 David, 2014, pp. 545-582. 3 Sobre o direito talmúdico (direito hebráico), ver: Campos Neto, Antonio Augusto Machado de. O Judaísmo. O direito talmúdico. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, jan./dez. 2008, pp. 27-67 (Disponível aqui); NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 4 ABC Internacional, 2021. 5 Embora haja quem sustente que o Irã se encaixaria nesse perfil, Salem Nasser dissente (NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 6 Sobre esse assunto, tivemos a oportunidade de trarar de um problema enfrentado por um tribunal inglês diante de um casamento islâmico (nikah) ocorrido dentro da Inglaterra. Na ocasião, o tribunal inglês considerou que o nikah era nulo por não observar a legislação britânica sobre casamento; todavia, apesar disso, foram reconhecidos efeitos patrimoniais em favor do casal (Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. Casamento religioso no Brasil: rápido comparativo com experiência da Inglaterra com os casamentos islâmicos ("nikah"). Disponível aqui. Data da publicação: 2018). 7 A propósito, Richard A. Debs esmiuça o regime de direito de propriedade no Egito, sob a perspectiva do direito muçulmano (DEBS, Richard A. Islamic law and Civil Code: the law of property in Egypt. New York/USA: Columbia Univeristy Press, 2010). 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 534-538; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350. 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 536-537. 10 NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 11 "Etimologicamente, "charia" é uma palavra árabe que significa "avenida", "abertura" ou "caminho". O professor Wael Hallaq da Universidade Colúmbia explica que a charia "era tanto uma forma de viver e ver o mundo quanto um corpo de crenças" (Unesco, 2017). 12 LOURO, A. Tavares; COSTA, José Mário. Sharia. Publicado em 23 de julho 2004 (Disponível aqui. Acesso em 5 de abril de 2022). 13 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp 524; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350; GÓMEZ, Rebeca Vázquez. Aproximación al derecho islâmico y su regulación del velo. In: Ius Canonicum, XLVII, nº 94, 2007, pp. 591-615; ASCANIO, Lorenzo; CASTELLARI, Massimiliano. El jurista colombiano y el derecho islámico y de los países musulmanes. Nuevas fronteras de la comparación jurídica. In: Revista Misió Jurídica, vol. 4, n. 4, Diciembre de 2011, pp. 85-105; LAGE, Leonardo Almeida. Transconstitucionalismo, direito islâmico e liberdade religiosa. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Professor Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves. Data: agosto de 2016 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022); CARMONA GONZÁLEZ, Alfonso. Ley islâmica y Derecho positivo. In: Anales de Historia Contemporanea, nº 13, 1997, pp. 25-32. 14 Sobre o direito islâmico, ver: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014; LIPOVETSKY SILVA, Nathália. Breve estudo sobre o sistema jurídico islâmico. In: Revistado CAAP, Belo Horizonte, jul-dez-2009, pp. 49-73 (Disponível aqui). 15 Por exemplo, a escola Hanafi reporta-se ao jurista iraquiano Abu Hanifa Na-nu'man Ibn Thabit, do século VII. A escola Hanbali refere-se ao jurista Amade Ibne Maomé Ibne Hambal, do século IX.
Em coluna anterior, em relação ao Direito Espanhol, apontamos a importância dos precedentes da antiga DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN), atualmente designada Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Hoje trataremos de caso interessante envolvendo a obrigatoriedade de consentimento de cônjuge para negócios envolvendo direitos reais à luz do direito espanhol.   Antes, lembramos que, no Brasil, essa exigência é feita para a hipótese de o cônjuge "alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis", salvo regime da separação convencional de bens ou regime da participação final nos aquestos com previsão no pacto (arts. 1.647 e 1.656, Código Civil brasileiro). Vamos, porém, ao direito espanhol. A pauta é o seguinte julgado: Resolución de 13 de junio de 2018, de la Dirección General de los Registros y del Notariado (DGRN)1. Nele, discute-se se é ou não necessário consentimento do cônjuge para a constituição de uma servidão de passagem permanente sobre um terraço de um imóvel. O oficial de registro de imóveis (registrador de la propriedade) da cidade espanhola de San Cristóbal de la Laguna qualificou negativamente o título. O título era uma escritura pública lavrada pelo notário dessa cidade espanhola, constituindo uma servidão de passagem permanente (servidumbre de paso permanente) sobre um terraço de um imóvel. Irresignado, o notário da cidade de San Cristóbal de la Laguna interpôs recurso administrativo para a DGRN. A discussão foi em torno do artigo 1320 do Código Civil espanhol, que exige a autorização conjugal para a alienação da moradia habitual e dos móveis de uso ordinário da família. Confira-se o referido preceito: Artículo 1320 Para disponer de los derechos sobre la vivienda habitual y los muebles de uso ordinario de la familia, aunque tales derechos pertenezcan a uno solo de los cónyuges, se requerirá el consentimiento de ambos o, en su caso, autorización judicial. La manifestación errónea o falsa del disponente sobre el carácter de la vivienda no perjudicará al adquirente de buena fe. A DGRN entendeu que esse dispositivo refere-se apenas aos casos de alienação envolvendo o lar comum (vivienda familiar habitual) do casal, à vista do artigo 70 e do artigo 1406.4º do Código Civil espanhol, os quais referem-se ao domicílio conjugal que é fixado pelo casal. Veja os retrocitados dispositivos: Artículo 70 Los cónyuges fijarán de común acuerdo el domicilio conyugal y, en caso de discrepancia, resolverá el Juez, teniendo en cuenta el interés de la familia. Artículo 1406 Cada cónyuge tendrá derecho a que se incluyan con preferencia en su haber, hasta donde éste alcance: 1.° Los bienes de uso personal no incluidos en el número 7 del artículo 1.346. 2.° La explotación económica que gestione efectivamente. 3.° El local donde hubiese venido ejerciendo su profesión. 4.° En caso de muerte del otro cónyuge, la vivienda donde tuviese la residencia habitual. Segundo a DGRN, o casal costuma fixar um lar comum, fruto de comunhão de vida (comunidad de vida) associada a uma comunhão de lar (comunidad de lar). É a regra geral. Trata-se do local de residência familiar. É o local onde se vive a maior parte do ano. E, ainda que haja mais de um imóvel com esse requisito, não se considera, para tal efeito, a segunda residência da família utilizada para recreio ou férias. Se houver, porém, justo motivo (ex.: razões profissionais), cada consorte pode ter lar diferente (comunidad de vida sem comunidad de vivenda). A lei protege o lar comum (vivenda familiar habitual). Uma das proteções é o artigo 1.320 do Código Civil espanhol, que exige o consentimento do cônjuge para a disposição do imóvel que serve ao lar comum ou dos móveis de uso ordinário da família, ainda que esses bens sejam de propriedade exclusiva de apenas um dos consortes. Essa exigência de outorga conjugal é apenas se o casal tem um lar comum, fruto de uma coabitação (comunidad de vivienda). A razão de ser da norma é conceder mecanismos de controle para evitar arbitrariedades individuais do outro cônjuge, conforme realçou o Tribunal Supremo de España2. Para a DGRN, não se aplica a exigência de anuência conjugal se cada cônjuge tiver um lar próprio, fruto de uma hipótese em que o casal mantém uma comunhão de vida sem uma coabitação (comunidad de vida sem comunidade de vivenda), o que pode ocorrer de modo excepcional. O objetivo do art. 1.320 do Código Civil espanhol é proteger o lar comum (vivienda familiar habitual). Cabe a cada disponente declarar ao terceiro se o lar é ou não comum para tal efeito. Mentiras dele não prejudicará terceiros de boa-fé, conforme previsão expressa do art. 1.320 do Código Civil espanhol. É irrelevante se os filhos se opuserem: a exigência legal é de anuência conjugal, e não filial. Não importa sequer o regime de bens (regímen económico matrimonial de bienes): em qualquer deles, aplica-se o art. 1.320 do Código Civil espanhol. A regra do art. 1.320 do Código Civil espanhol é reproduzida, com algumas variações, nos direitos civis forais de algumas comunidades autônomas da Espanha, como no art. 231-9 do Código Civil da Cataluña e no art. 190 do Código del Derecho Foral de Aragón. Não se trata, portanto, de uma regra específica do direito civil comum espanhol. Cabe um aparte para esclarecimento sobre a situação do direito civil espanhol. Não há uma legislação civil única para toda a Espanha. Há, de um lado, o chamado derecho civil común, que é representado pelo Código Civil espanhol e pela legislação extravagante. E há, de outro lado, o derecho civil foral de algumas comunidades autônomas espanholas (regiões político-administrativa que reúnem diversas cidades), especificamente de Aragón, Cataluña, Baleares, Galicia, Navarra e País Vasco. Também se pode falar, ainda que parcialmente, em direito foral na Comunidad Valenciana apenas para regime de bens do casamento (régimen económico del matrimonio) para casamentos em determinado período3. Há ainda direito foral no chamado Fuero de Baylión, que é uma região dentro da comunidade autônoma de Extremadura e que abrange alguns povos limítrofes com Portugal. Neste mapa abaixo, pode-se ver, em cor verde, os locais em que vigora o direito foral da respectiva comunidade autônoma, e não o direito comum espanhol. Em verde claro, estão as comunidades em que esse direito foral é parcial (Comunidad Valenciana e Extremadura)4: A exigência de outorga conjugal prevista no artigo 1.320 do Código Civil espanhol precisa ser fiscalizada pelo registrador na sua qualificação registral, conforme art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. A obrigatoriedade da autorização conjugal no Código Civil espanhol abrange não apenas atos de natureza real, mas também pessoal. Por exemplo, para renunciar a locação (arrendamento) ou a sua renovação em relação à moradia (vivienda familiar), é necessário também o consentimento do outro consorte. Trata-se de um ato de "disposição" para efeito do art. 1.320 do Código Civil espanhol e do art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. Sob essa ótica, o art. 1.320 do Código Civil espanhol abrange também constituição de um direito real de servidão de passagem, como é o caso em pauta. No caso concreto, porém, a servidão recai sobre uma área externa à moradia familiar: o terraço, ao qual o aceso dá-se de forma independente, a partir da rua. Não atinge, pois, a morada familiar por se tratar de área externa. Além disso, não haverá uso exclusivo do terraço: os proprietários do prédio serviente também poderão utilizá-lo. Por esse motivo, não há necessidade de consentimento conjugal para a instituição de direito real de servidão de passagem sobre o terraço nesse caso concreto, tendo em vista uma interpretação teleológica do art. 1.320 do Código Civil espanhol. Esse dispositivo só se refere a atos de disposição relacionados à moradia familiar (vivenda familiar habitual). __________ 1 Disponível aqui. 2 Sentencia del Tribunal Supremo de 8 de octubre de 2010: SSTS de 3 de enero de 1990 y 31 de diciembre de 1994, citado no julgamento em pauta da DGRN. 3 Na Comunidad Valenciana (ou País Valenciano), foi editada lei específica para disciplinar regime de bens. Ela, porém, foi declarada inconstitucional pela Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha (STC) de 28 de abril de 2016. Em consequência, casamentos celebrados entre 30 de junho de 2007 e 21 de dezembro de 2007 bem como entre 1º de julho de 2008 e 31 de maio de 2016, terão o regime da separação de bens (régimen econômico matrimonial de separación de bienes) como o regime subsidiário (régimen econômico matrimonial supletório). 4 Disponível aqui.