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Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer, Rafaella Nogaroli e Igor Mascarenhas
Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias cuja única permanência é a mudança. Está ocorrendo - e a pandemia acelerou isso - uma passagem, em múltiplos setores, do universo físico-tradicional para o universo digital. Cremos que essas tendências se acentuarão de modo ainda mais rápido, numa velocidade e descentralização sem precedentes. Os avanços científicos dos próximos anos - e das próximas décadas - nos surpreenderão de modo constante. O perfil do mundo que conhecemos se alterou, e está constantemente se alterando. Se já achávamos que tudo mudava rápido, talvez nos espantemos ainda mais com o caráter e o perfil das próximas mudanças. Medicina, transportes, comunicações, viagens espaciais (e novos conhecimentos astronômicos), tudo isso ganhará cores revolucionárias e abalará velhas estruturas. Em termos comportamentais, a sociedade busca estruturas menos assimétricas e desiguais. Na dimensão jurídica, o conceito de vulnerabilidade ganha extrema importância no direito privado do século XXI. Situações de assimetria e desvantagem - seja econômica, etária, informacional, de gênero, racial, tecnológica - são levadas em conta na solução dos conflitos. Sobretudo no campo da Medicina, nota-se o frequente debate sobre vulnerabilidade, além da profunda modificação da relação médico-paciente com o grande arsenal tecnológico: atendimentos médicos à distância (telemedicina), robôs cuidadores, cirurgias robóticas, algoritmos de Inteligência Artificial no diagnóstico e propostas de tratamento, cuidados do paciente pela representação digital (medical digital twins), predições do quadro clínico com base em dados genéticos, Internet das Coisas (IoT) e wearable devices (tecnologias "vestíveis") na avaliação e monitoramento médicos constantes, análises clínicas e treinamento médico nas realidades virtual e aumentada etc. Com a inédita disrupção tecnológica, o desafio - em termos normativos - é tentar regular todas essas inovações, observando os perfis dos direitos fundamentais. Podemos dizer, sem exagero, que as possibilidades das tecnologias digitais emergentes são infinitas e espantosas - e já fazem parte do nosso dia a dia. Luís Roberto Barroso ressalta que a "conjugação da tecnologia da informação, da Inteligência Artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões".1 É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. O direito deve espelhar o nível evolutivo da sociedade em que se insere. Se essa sociedade muda profundamente, o direito deve acompanhar as mudanças - de modo criativo e responsável -, se quiser continuar a ter relevância. George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - cunhou frase célebre na década de 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". É preciso ter aquele senso, já dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo. Nestas breves reflexões, a intenção é clara: trazer somente uma palavra inicial, de contextualização, sobre esses temas. Apenas para que a leitora e o leitor percebam o sentido - e a relevância - das mudanças que estão ocorrendo. Não é preciso muito esforço de argumentação para evidenciar que são mudanças que têm profundo impacto no direito privado (e não só nele). Vale destacar que, o presente texto faz parte de uma edição especial de abertura desta coluna, em 2023, e será dividido em Partes I e II. Propõe-se, nas linhas que seguem, uma visão panorâmica dos impactos das tecnologias digitais emergentes sobre o direito civil e médico, a partir das seguintes perspectivas: 1) Presença digital também é presença; 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico. 1) Presença digital também é presença Há, no mundo, quase 200 países e uma única internet. É inegável que a questão dos limites e distâncias físicas perdem muito de sua importância, pois essa rede de conexões - veloz e descentralizada - torna possível que estejamos presentes, diante dos outros, mesmo que fisicamente não estejamos. A partir daí ocorre uma infinidade de relações existenciais e patrimoniais, e o mundo interage de uma forma inédita. O direito de acesso à internet a todos (Marco Civil Internet, art. 4º, I) é essencial à construção de um Brasil menos desigual. A palavra de ordem, hoje, é inclusão digital. Alguém sem internet, atualmente, é alguém condenado ao isolamento comunicacional - e, em certo sentido, até social. Nossas práticas cotidianas são indissociáveis da Internet. Somos hoje seres progressivamente digitais, e isso se tornou algo tão cotidiano que sequer nos damos conta. Só nos daríamos se perdêssemos de forma abrupta essa conexão digital, esse mundo em rede. Virou rotina para quase todos nós a interação digital ao vivo em reuniões, aulas e audiências judiciais etc. Inúmeras plataformas hoje oferecem esses serviços - que com a pandemia adquiriu ares de essencialidade, sobretudo para eventos profissionais (não por acaso as ações do Zoom dispararam na Bolsa americana).        Todo esse fenômeno tem evidente repercussão jurídica, alterando o conceito de presença. Hoje podemos estar diante dos outros, ainda que não estejamos fisicamente diante deles. O "estar diante" assume outros significados e outras formas em nossos dias. A presença não precisa mais ser física, no sentido tradicional. A presença digital também é presença em termos jurídicos - e cada vez mais o será. Aliás, nas relações de família, a doutrina tem enfatizado a importância dessas tecnologias (literalmente na palma da mão) para permitir o contato, por som e imagem, a qualquer distância, pelo tempo que desejarmos, sem muitos custos. Assim, por exemplo, o direito fundamental à convivência entre filhos e pais pode ser exercido mesmo que um deles habite fisicamente em outro lugar. Além disso, na pós-modernidade, o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade tem ganhado uma especial tônica. Há uma nova realidade social, ancorada na informação massificada na internet. Um dos danos colaterais da modernidade líquida, afirmada por Zygmunt Bauman,2 diz respeito a atual configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado, ou seja, entre a informação e a privacidade. O deslocamento para o ambiente público de atos que eram eminentemente privados é hoje muito evidente e resulta do desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação, as quais possibilitam uma rede de dados ilimitada e de acesso público. Em ambiente digital, assumem grande importância as discussões sobre os eventuais danos sofridos pelos usuários da internet, bem como o direito de retirada de uma informação ofensiva, a sua retificação ou, conforme o caso, a retratação por parte do responsável. Além disso, Guilherme Martins afirma que o atual desenvolvimento tecnológico tem alterado radicalmente o equilíbrio entre lembrança e esquecimento, pois "a regra, hoje, é a recordação dos fatos ocorridos, enquanto esquecer se tornou a exceção. (...) os usuários da Internet, cujos passos são sempre reconstruídos pelas técnicas de rastreamento, acabam frequentemente privados da escolha quanto à técnica de obtenção de dados e quanto às informações que serão colhidas a seu respeito".3 Em 2021, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.010.606 (caso Aida Curi), fixou entendimento de que o direito ao esquecimento é incompatível com sistema constitucional brasileiro, mas excessos e abusos no exercício da liberdade de expressão e da informação devem ser vistos caso a caso. A privacidade (como fundamento do direito ao esquecimento) pode ceder a outros direitos e interesses, tais como o direito à manifestação do pensamento, à livre circulação da informação e à liberdade de imprensa. É necessária, como afirmam Maria de Fátima F. de Sá e Bruno Torquato, "uma avaliação casuística, tendo em vista o tipo de informação, o quanto ela atinge a vida privada do indivíduo e o interesse do público na informação".4 Outra questão a ser ponderada é a de que a evolução das tecnologias de informação e comunicação tem aberto novas oportunidades para a interação entre fornecedores e consumidores. A relação entre as marcas e seus públicos foi se adaptando ao surgimento de plataformas digitais e redes sociais, enquanto novos canais de mídia e produção de conteúdo. E, nesse cenário, algumas pessoas que se destacam em ambiente digital pela influência que exercem em determinados nichos - conhecidas como "influenciadores digitais" - começaram a utilizar suas redes sociais para divulgar marcas e produtos. São frequentes os episódios nos quais a atuação de influenciadores se configura como publicidade ilícita (artigo 37, §2º, do CDC), na espécie "abusiva". Isso porque, como ressalta Michael César Silva, essas pessoas induzem o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, violando o princípio do consumo com responsabilidade social, o qual determina que a publicidade não deve induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável.5 A Era Digital também trouxe dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidades para profissionais da saúde se conectarem com seus potenciais clientes. Os novos padrões da publicidade, especialmente em mídias sociais, têm gerado um grande desafio de adequação das técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais. Nesse cenário, verifica-se que o direito à imagem é disponível (art. 20, do Código Civil), mas para os profissionais da Medicina há limitação na esfera deontológica (art. 75, do Código de Ética Médica), de modo que, mesmo diante de eventual autorização (licitude da conduta), o médico pode, em tese, ser responsabilizado eticamente. Além disso, tem-se evidenciado o frequente debate sobre os resultados postados pelos profissionais poderem ser interpretados como promessa de resultado, com a consequente transformação da obrigação de meios em resultado.6 Ainda no campo do direito médico, observa-se que a Telemedicina tem despontado como via de amplo acesso à saúde e, ao mesmo tempo, denota-se um novo significado do "estar presente", com profundo impacto na relação médico-paciente. Antes de ser realizada uma teleconsulta, por exemplo, o paciente precisa receber - e compreender - algumas informações importantes, tais como: benefícios, riscos, indicação da plataforma utilizada e, ainda, comparação do atendimento médico presencial em relação ao oferecido à distância. Ademais, o consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido) adquire certas peculiaridades, pois há necessidade de um "duplo consentimento" do paciente, tendo em vista que, além do consentimento referente ao tratamento e intervenção médica, o direito à informação adequada engloba a ideia de consentir para o uso das novas tecnologias, a partir do conhecimento de seu funcionamento, objetivos, suas vantagens, custos, riscos e alternativas.7 Ressalta-se que há também alteração no processo do médico para obtenção do diagnóstico nas teleconsultas, pois no exame físico, o profissional deixa de ser o agente ativo e repassa ao paciente (ou representante legal) esse papel, por meio de orientações para que o doente mesmo assista o médico na realização do exame e resolva algumas questões solicitadas pelo profissional. Dada a complexidade de um atendimento médico à distância, tem-se ressaltado a importância de o profissional da saúde ter uma visão proativa, no sentido de pensar em como levar ao paciente as informações necessárias e que ele realmente as compreenda, realizando remotamente seu próprio exame físico a partir das orientações médicas passadas durante a teleconsulta. Eric Topol vislumbra um futuro breve em que as inovações tecnológicas mudarão definitivamente a experiência hospitalar, tendo em vista a disseminação dos chamados smart hospitals (hospitais inteligentes) e virtual hospitals (hospitais virtuais) ao redor do mundo.   Embora sejam necessárias as UTIs, salas de cirurgia e de emergência, o quarto normal de hospital é altamente suscetível à substituição em algumas situações, pelo conforto e praticidade do local de residência do paciente, especialmente idosos e pessoas com doenças crônicas, que necessitam de constante monitoramento médico, abrindo-se, assim, espaço para o surgimento dos virtual hospitals. O atendimento e monitoramento médico é feito por Telemedicina e com apoio de algoritmos de Inteligência Artificial, big data e as mais diversas tecnologias digitais emergentes.8 O "estar presente" na Medicina tem assumido, portanto, novas formas com os atendimentos e monitoramento médicos à distância. Inevitavelmente, as repercussões jurídicas são inúmeras. Merece especial atenção a questão da garantia de sigilo da informação e privacidade do paciente pela ampliação da circulação, conexão e tratamento de dados pessoais sensíveis, o que potencializa os riscos de vazamento ou tratamento/compartilhamento irregular. Além disso, como visto, há de se considerar um novo modelo de consentimento do paciente e a maior complexidade na aferição da responsabilidade civil. 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico Virou lugar-comum dizer que vivemos, hoje, na Sociedade da Informação - mas talvez seja necessário ir além e afirmar que estamos diante da Sociedade da Hiperinformação. Tamanho é o volume de informações disponível, tamanha é a velocidade de sua transmissão. Trata-se de algo realmente sem paralelo na história humana. A sociedade global vive um período no qual grandes players econômicos e plataformas digitais têm amplamente utilizado dados pessoais para controlar e decodificar comportamentos, no intuito de auferirem maior lucro, conforme explica Shoshana Zuboff, no livro "A Era do Capitalismo da Vigilância". Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e da virtualização da vida no ambiente da Internet - com o fluxo incessante de dados que seus titulares a todo tempo acabam por transmiti-los nas tecnologias digitais emergentes sem sequer perceber -, vislumbra-se um cenário da informação em direção à vigilância, que é amplificada em uma "sociedade em rede". Informações e dados pessoais - compreendidos como preferências, situações e opções da vida - são utilizados indevidamente por empresas. Nesse contexto, a prática denominada profiling ("perfilamento") reflete uma faceta da utilização de algoritmos em grandes acervos de dados (big data), que propicia o delineamento do perfil comportamental do indivíduo, o qual passa a ser analisado e objetificado a partir dessas projeções. A velocidade com que tecnologias disruptivas têm sido lançadas e a capacidade de armazenamento e processamento de dados evidenciam os riscos da hiperconectividade e propiciam lesões ao chamado corpo eletrônico ou digital. Há também um cenário que propicia publicidades virtuais que utilizam de maneira indevida os dados pessoais dos consumidores, promovendo ofertas direcionadas e importunadoras, além de práticas comerciais como geopricing e geoblocking, as quais empregam o uso de dados pessoais e dados de conexão dos consumidores para o direcionamento da oferta de produtos e serviços no mercado de consumo. Conceitos como o de Stefano Rodotà (corpo elettronico) ou de Roger Clarke (digital persona) repercutem diretamente na aferição dos impactos jurídicos das tecnologias digitais emergentes. Inovações tecnológicas geram mudanças culturais. Uma delas - intensamente presente, mas nem sempre notada - é a superdocumentação que existe em nossas vidas. Todos andamos com câmeras e máquinas fotográficas potentes na palma da mão (smartphones), lidamos cada vez mais com tecnologias de rede, como a geolocalização, por exemplo. Aliás, parece claro que algoritmos e códigos-fonte têm, no século XXI, função cada vez maior de regular comportamentos. Nesse contexto, algo parece certo: os cidadãos não conseguem controlar, de modo efetivo, o fluxo de dados pessoais atualmente (nestas primeiras décadas do século XXI). O fluxo de dados é incessante e não conhece limitação geográfica. Os titulares de dados, nesse sentido, são vulneráveis, ou talvez até hipervulneráveis. Em uma sociedade na qual as informações se tornam a riqueza mais importante, assevera Stefano Rodotà que a tutela da privacidade contribui de forma decisiva para o equilíbrio dos poderes. Isso porque o fim da privacidade não representa apenas um risco para as liberdades individuais, mas pode também conduzir ao fim da democracia. A privacidade constitui um elemento fundamental da cidadania dos novos tempos, da "cidadania eletrônica". Ademais, diante da possibilidade dos dados pessoais do morto serem coletados por empresas, a partir de redes sociais, textos, e-mails, mensagens, imagens etc., permitindo-se reconstrução digital póstuma da voz e da imagem  - a exemplo da publicidade ocorrida por meio da reconstrução digital de imagem e da voz do falecido pai do jogador Zico - , doutrinadores como Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Filipe Medon, Fernanda Schaefer e Frederico Glitz têm ressaltado a necessidade de se discutir a autodeterminação corporal após a morte e direitos relacionados à herança digital, dando-se, ainda, um passo além, para refletir sobre a tutela da identidade pessoal e valores existenciais do morto.9 Essa discussão enquadra-se no contexto dos bens da personalidade como bens digitais existenciais, conforme defende Bruno Zampier, em trabalho pioneiro no Brasil,10 ao apresentar a ideia de um testamento digital (digital will) formulado a partir de serviços disponibilizados por sites específicos na Internet, ou mesmo por um testamento particular regido pelo Código Civil. O autor defende a possibilidade de haver uma diretiva antecipada da vontade para este fim. No setor da saúde, desenvolveram-se, nos últimos anos, diversas soluções de big data e Inteligência Artificial em aplicativos de smartphones e wearable devices (tecnologias "vestíveis") - para gerenciamento de medicamentos e monitoramento frequente da condição física e mental, dieta e exercícios físicos -, que coletam inúmeras dados pessoais e analisam sinais vitais, batimentos cardíacos, temperatura, humor, cognição, atividade física etc. Por isso, um dos maiores receios com o implemento de novas tecnologias na Medicina, segundo afirmam Nicholson Price e Roger Allan Ford,11 refere-se à privacidade e proteção de dados pessoais sensíveis, pois uma quantidade imensa de informações sensíveis é coletada e, ainda, pode ser eventualmente compartilhada ou tratada de forma irregular, o que aumenta o potencial de vazamentos de dados e de danos mediatos e imediatos aos seus titulares. Frank Pasquale relata evento ocorrido em 2008, nos Estados Unidos, em que os dados de prescrição médica estavam sendo utilizados no mercado de seguros individuais, pois as farmácias repassavam a relação de compras de remédios às seguradoras.12 Com a coleta de milhões de informações de pedidos, as empresas readequavam suas políticas, a fim de excluir da cobertura algumas doenças e impor cobranças mais altas do prêmio a determinadas pessoas. Ainda, pode-se cogitar a possibilidade de empresas atribuírem determinadas condições médicas quando a pessoa faz algumas pesquisas on-line sobre uma doença, preenche algum formulário e acaba associado a essa doença em bancos de dados comerciais. Surgem cada vez mais criativas formas de coleta e tratamento de dados pessoais, o que renova, ininterruptamente, a necessidade de mecanismos para assegurar o direito à autodeterminação informativa como instrumento de promoção da pessoa. Inclusive, visando compatibilizar o assédio irrefreável das empresas que atuam com dados para realizar práticas abusivas de mercado, há quem defenda que a responsabilidade civil pela perturbação do sossego na Internet é um caminho viável. Por meio de uma nova garantia fundamental chamada "habeas mente", concretizar-se-ia, segundo Arthur Basan, os direitos à autodeterminação informativa e à privacidade.13 O marco da discussão sobre a proteção dos dados pessoais como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro é o julgamento pelo STF, em 2020, no âmbito de cinco ações diretas de inconstitucionalidade - ADI 6.387, ADI 6.388, ADI 6.389, ADI 6.390 e ADI 6393 -, que suspendeu a eficácia da MP 954/2020, a qual autorizava a transferência (para o IBGE) de toda a base de dados dos usuários de telefonia fixa e móvel do Brasil. O Supremo, na oportunidade, reconheceu o direito fundamental à proteção de dados (assinale-se que a decisão do STF foi anterior à vigência da Lei n. 13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados). Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou a PEC incluindo a proteção de dados pessoais no rol do art. 5º da Constituição Federal, reconhecendo de modo explícito sua qualidade de direito fundamental. Assim, o art. 5º, inc. LXXIX, passou a dispor que "é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Frise-se, contudo, que a comunidade jurídica já vinha anteriormente reconhecendo o direito à proteção de dados como um princípio implícito no ordenamento brasileiro. Por fim, vale um destaque: a polifuncionalidade da responsabilidade tem merecido especial destaque na doutrina brasileira, especialmente por Nelson Rosenvald, no contexto de tecnologias digitais emergentes e na atividade de tratamento de dados pessoais, tendo em vista a tendência de irreparabilidade de danos à privacidade, identidade pessoal, liberdade e igualdade, além de existir notável potencial de uma imensa quantidade de pessoas ser atingida.14 O art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Contudo, esse é apenas um dos sentidos da responsabilidade, e os demais encontram-se ocultos no texto legal. Defende-se uma nova concepção da responsabilidade civil proativa no tratamento de dados pessoais. É preciso ser superada a visão do ordenamento positivo como mero impositor de sanções negativas, a partir de normas com funções protetoras ou repressivas, adotando-se, assim, um espectro voltado a sanções positivas, isto é, trazer incentivos para que o possível ofensor aja de forma a evitar ou mitigar o dano, a partir do cumprimento das diretrizes estabelecidas na lei. Essas mudanças também ilustram a evolução das legislações sobre proteção de dados em direção a um regime de proteção de privacidade mais preventivo e proativo.15 Em que pese os parâmetros de conduta dos agentes de tratamento de dados pessoais elencados no art. 50 e 51 da LGPD não possuírem previsão de natureza cogente, há parcela da doutrina brasileira que entende o seguinte: caso esses parâmetros sejam adequadamente seguidos, deverão ser considerados para os fins de mitigação de eventual responsabilização administrativa ou civil.16 Isso porque é tempo de "alargarmos os horizontes e investirmos em uma função promocional da responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais" - isto é, para além de compensar, punir e prever danos, a responsabilidade civil deve "criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de pessoas naturais e jurídicas".17 No direito médico, com a recente publicação no Brasil da lei 14.510/2022, reforçou-se a importância da governança de dados de saúde e, no âmbito da Telemática em Saúde (subdividida, a partir da sua finalidade, em Telessaúde e Telemedicina), serem implementadas práticas e estratégias voltadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz. O princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio informador da Telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90), direciona-se, segundo Fernanda Schaefer, "ao que se entende por accountability, parte importante da governança de dados (plano ex ante no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos".18 O objetivo é ampliar o espectro da responsabilidade, por meio da inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post. Nesse sentido, Romualdo Baptista dos Santos é categórico: "a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação."19 O princípio da accountability, ao estabelecer possíveis caminhos para conciliar a desejável inovação com a necessária segurança jurídica, demonstra como as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil orientam o desenvolvimento tecnológico no setor da saúde, neste primeiro quartel do séc. XXI. Inclusive, José Faleiros Jr. e Nelson Rosenvald explicam que a vertente ex post da accountability atua como um guia para o juiz, norteando a identificação e quantificação das responsabilidades, estabelecendo os remédios mais adequados e sua gradação/dosagem para cada tipo de tecnologia e situação concreta, a partir do reconhecimento da polissemia da responsabilidade civil. Nesse sentido, os doutrinadores ponderaram que, se o causador do dano investe com efetividade em compliance, pode-se cogitar a mitigação (redução equitativa) da indenização, numa espécie de sanção premial por seguir determinados standards de conduta (parágrafo único do art. 944 do CC).20 Ainda, nesse contexto, destaca-se a importante proposição de Hans Jonas, de uma ética da responsabilidade (princípio da responsabilidade). Trata-se de uma tarefa prognóstica e profilática em vista das consequências. A responsabilidade tem um princípio interno, portanto, porque está ligado à capacidade de previsão da consequência. Diante dos novos riscos e desafios tecnológicos, a responsabilidade é, sobretudo, uma forma de evitar que o próprio dano se concretize. Em outras palavras, não se trata de uma responsabilidade por uma ação já cometida, mas um compromisso por fazer ou deixar de fazer algo. A responsabilidade se liga à ideia de precaução em relação aos futuros efeitos ambivalentes da ação presente. De fato, a função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de direitos fundamentais no contexto das tecnologias digitais emergentes. Diante dessas breves reflexões, observa-se que todas essas são realidades fantásticas, mas de certa forma, assustadoras. Não se pode negar que existem perigos para as relações humanas. Razão, ciência, humanismo e progresso: ideais do Iluminismo que são notadamente atemporais, conforme aponta Steven Pinker na obra "O Novo Iluminismo: em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo". Um olhar crítico pondera: as inovações tecnológicas laçam luzes sobre a condição humana, o que evidencia a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo da descoberta e melhoria do conhecimento, bem como o aperfeiçoamento gradual e/ou ressignificação dos institutos e normas. Isso tende a se tornar mais acentuado no futuro. Gostemos ou não, novos paradigmas se aproximam e é essencial tentar entendê-los. Em breve, traremos a continuação do presente texto, com análise dos impactos de novas tecnologias no direito civil e médico a partir de uma terceira e quarta perspectivas: 3) O Admirável Mundo Novo da Inteligência Artificial e o ChatGPT; 4) Metaverso e os Gêmeos Digitais (digital twins). __________ 1 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78. 2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Direito ao esquecimento na era da memória e da tecnologia. Revista dos Tribunais, v. 1019, p. 109-153, set. 2020. 4 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. O direito ao esquecimento e a decisão do Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral n. 786. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, v. 28, p. 193-206, abr./jun. 2021. 5 Sobre o tema, destacam-se os seguintes trabalhos de Michael C. Silva: BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César.; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2019.  SILVA, Michael César.; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Migalhas de Responsabilidade Civil, 10/06/2020. 6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 24/05/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/366566/publicidade-medica-em-redes-sociais-como-responsabilidade-civil. Acesso em 17 jun. 2022. 7 DANTAS, Eduardo. NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 8 KFOURI NETO, M; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; CÉSAR SILVA, Michael; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e Inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107. 9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 19/08/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. SCHAEFER, Fernanda; FREDERICO, Glitz. A existência da responsabilidade contratual post mortem: Breves notas a partir da série Upload. Migalhas de Responsabilidade Civil, 21/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. 10 ZAMPIER. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, passim. 11 FORD, Roger Allan; PRICE, W. Nicholson. Privacy and accountability in black-box medicine, Michigan Telecommunications & Technology Law Review, v. 23, p. 1-43, 2016. 12 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 26-30. 13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais. O direito ao sossego. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 185-201. 14 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 15 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 16 ROSENVALD, Nelson. O compliance e a redução equitativa da indenização na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 9/03/2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 17 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 4. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 210-216. 18 SCHAEFER, Fernanda. Telessaúde e responsabilidade digital na lei 14.510/22. Migalhas de Responsabilidade Civil, 14/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023. 19 SANTOS, Romualdo Baptista dos Santos. A responsabilidade digital na lei da telessaúde. O que é isso?. Migalhas de Responsabilidade Civil, 7/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023. 20 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas.  Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 771-807.
Em maio de 2022, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e a Academia Brasileira de Neurologia (ABN) posicionaram-se favoravelmente pela não implementação ou retirada da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo crônico respeitada a sua vontade previamente manifestada. Alguns meses depois, em agosto de 2022, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) aprovou a Resolução 355 que estabeleceu diretrizes éticas para auxiliar o médico na tomada de decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que enfrentam a fase final da vida, incluindo a retirada do suporte artificial de nutrição, por meio de dieta enteral ou parenteral, e hidratação. A partir desses posicionamentos éticos e técnicos na área dos cuidados paliativos, torna-se relevante discutir, na perspectiva epistemológica do direito, os aspectos jurídicos da aplicação prática de tal medida no Brasil.  Para isso, este ensaio revisitará os fundamentos jurídicos de algumas decisões judiciais internacionais paradigmáticas sobre o tema e, em seguida, analisará as normas éticas e jurídicas vigentes nacionalmente, propondo um diálogo das fontes. Fundamentos jurídicos do direito de recusar tratamento Em 1969, um dos mais proeminentes advogados de direitos humanos do século XX, Luis Kutner, discutiu no artigo intitulado Due process of eutanásia: the living will, a proposal (1969) os problemas jurídicos decorrentes do não reconhecimento formal pela Constituição dos Estados Unidos do direito de paciente enfermo morrer se ela assim desejar. Dentre eles, destacou que tal lacuna poderia suscitar a interpretação de que uma pessoa com uma doença incurável ou terminal poderia ser obrigada a viver com dor e desespero, em razão do sofrimento causado por tal enfermidade. Evidentemente, Kutner (1969) demonstrou que tal lacuna jurídica era incompatível com o Estado de Direito em face da violação ao direito constitucional à privacidade, entendido aqui como a capacidade da pessoa, fundada no direito à liberdade, de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada, sem a interferência do Estado. De acordo com esse direito, entre as decisões fundamentais que o indivíduo teria capacidade para se autodeterminar, citam-se aquelas relacionadas, exemplificadamente, à orientação sexual, ao planejamento familiar e ao processo de morrer (LANGE, 2009). Inconformado com esse cenário, Kutner (1969) propôs a elaboração prévia de um documento - o testamento vital - com base no consentimento informado, no qual o paciente permitiria a morte em virtude da inação médica caso se encontrasse em uma situação incurável e irreversível, de modo a evitar o prolongamento do seu sofrimento. De acordo com o jurista, esse documento permite ao paciente recusar tratamento médico, podendo, inclusive, ser utilizado por pacientes Testemunhas de Jeová para a recusa de transfusão de sangue (KUTNER, 1969). As diretivas antecipadas de vontade, gênero do qual o testamento vital constitui uma de suas espécies (WILLMOTT et.al., 2006), é usado, portanto, para estender a autonomia do paciente para além da sua capacidade (EMANUEL, 1991), sendo um instrumento jurídico válido para o exercício da recusa de tratamento médico quando o paciente se tornar incapaz de exercer a sua autodeterminação. Casos judiciais paradigmáticos de direito de recusar tratamento A tese jurídica proposta por Kutner passou então a ser utilizada em diversos julgamentos paradigmáticos nos Estados Unidos, como nos casos Quinlan e Cruzan. Karen Ann Quinlan tinha 21 anos de idade quando foi internada, primeiramente, no Newton Memorial Hospital, Estado americano de New Jersey. Ela misturou bebida alcóolica com remédios para emagrecer e foi encontrada desacordada com parada cardiorrespiratória. Após alguns meses em estado vegetativo persistente, os pais de Quinlan solicitaram a retirada do tubo de ventilação artificial. Para isso, tiveram que ingressar na justiça, pois Quinlan não tinha feito as suas diretivas antecipadas. (PESSINI, 2004, p. 110). A decisão judicial do processo In the matter of Karen Quinlan, proferida pelo Tribunal de New Jersey em 1976, ratificou que: i) o direito constitucional à privacidade autoriza a todo enfermo o direito de recusar tratamento médico; ii) a retirada do ventilador artificial - meio extraordinário de manutenção da vida - não configura crime; e iii) diante da inexistência de diretiva antecipada de vontade de paciente incompetente, poderá haver a sub-rogação da tomada de decisão terapêutica de suspensão ou não de meio extraordinário e artificial de manutenção da vida. Essa decisão foi tão relevante que, de acordo com Lim (2005), marcou o nascimento do movimento "right to die". Meisel e Cerminara (2004) esclarecem que o termo "direito de morrer" passou a ser amplamente utilizado pelos Tribunais, podendo ser combinado com as expressões "morte natural" ou "morte com dignidade", e, eventualmente, podendo ser equiparado à eutanásia ou crime de misericórdia. Todavia, os autores rejeitam tal equiparação quando se referir a ação de ceifar a vida, reivindicando o conteúdo do right to die como direito de recusar tratamento médico. Outro julgamento paradigmático a ser destacado é o caso Cruzan. Em 1983, quando tinha 25 anos de idade, Nancy Cruzan teve danos cerebrais significativos devido à falta de oxigenação no cérebro após sofrer um acidente de carro, permanecendo em estado vegetativo persistente. Passados cinco anos nessa condição, ante a situação de irreversibilidade, seus pais solicitaram judicialmente a suspensão do suporte de alimentação e hidratação artificiais para permitir a morte da filha, que também não tinha diretivas antecipadas. (LARSON, 2005). Em 1990, em decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA) reconheceu que: i) a suspensão da hidratação e alimentação artificiais em pacientes em estado vegetativo persistente inclui-se no direito de recusar tratamento médico e que esse, por sua vez, encontra-se fundado no direito constitucional à privacidade; ii) para o exercício daquele direito, os indivíduos adultos e capazes devem manifestar a sua vontade mediante a elaboração de diretivas antecipadas; e iii) para os incapazes de exercer a sua autonomia acerca da decisão de retirada da nutrição artificial, tornar-se necessária a apresentação de provas claras e convincentes do desejo do paciente (LO; STEINBROOK, 1991). (Des)necessidade de comprovação do desejo de recusa do suporte artificial Um dado relevante de ser retomado no caso Nancy Cruzan foi a exigência de apresentação de provas claras e convincentes do desejo da paciente para a retirada do suporte artificial de alimentação e hidratação. Diferentemente do caso Quinlan, em que a liberdade de escolha para a tomada da decisão terapêutica foi sub-rogada aos representantes legais, no caso Cruzan, a comprovação inequívoca da vontade da paciente foi necessária para a recusa do tratamento. Isso ocorreu em razão da exigência de tal comprovação pela Lei do Testamento Vital do Estado do Missouri, local onde ocorreu o caso Cruzan e tramitou o processo judicial. A Suprema Corte dos Estados Unidos foi então suscitada a decidir a constitucionalidade ou não de tal exigência. Vale esclarecer acerca do caso Quinlan que a Suprema Corte dos Estados Unidos (COURT US, 1990) endossou a interpretação do Tribunal de New Jersey de que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente, que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital, seria sub-rogando o consentimento da retirada do suporte vital aos representantes legais. Nesse sentido, a Suprema Corte afirmou: Observando que o interesse do Estado [de preservação da vida do paciente] "se enfraquece e o direito do indivíduo à privacidade cresce à medida que o grau de invasão corporal aumenta e o prognóstico diminui", o tribunal concluiu que os interesses do Estado tiveram que ceder nesse caso [...] O tribunal também concluiu que a "única maneira prática" de evitar a perda do direito à privacidade de Karen devido à sua incompetência era permitir que seu tutor e família decidissem "se ela o exerceria nessas circunstâncias" (COURT US, 1990). Apesar de ter concordado com a sub-rogação aos representantes legais da retirada do suporte vital, em relação ao caso Cruzan, a Suprema Corte dos Estados Unidos ratificou a decisão do Tribunal do Missouri, que decidiu que ninguém pode ordenar um tratamento que sustente o fim da vida de um paciente incompetente na ausência de um testamento vital válido ou de evidências claras e convincentes dos desejos do paciente (COURT US, 1990). Assim, enquanto no caso Quinlan, o Tribunal reconheceu que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital seria sub-rogando o consentimento aos representantes legais, no caso Cruzan, a Suprema Corte afirmou que uma pessoa incompetente não tem o mesmo direito constitucionalmente protegido que uma competente de recusar o tratamento que sustenta a vida. Logo, decidiu que, nesses casos, seria constitucional a exigência do Estado do Missouri de limitar o exercício desse direito, não sub-rogando à família a decisão pela retirada do suporte vital diante da ausência de diretivas antecipadas e exigindo provas claras e convincentes do desejo do paciente. Verifica-se, portanto, que o direito de retirada de suporte vital, incluindo suspensão da nutrição e hidratação, poderá ser exercido por paciente incompetente que não fez as suas diretivas antecipadas se foram cumpridas as exigências da lei regulamentadora, tal como a comprovação inequívoca do desejo do enfermo. Por outro lado, diante da ausência de requisitos específicos da lei regulamentadora das diretivas antecipadas, o direito de recusar tratamento médico do paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital poderá ser sub-rogado aos representantes legais. Diretrizes da ANCP e CREMESP sobre a retirada da nutrição artificial O posicionamento da ANCP e da ABN defendeu a legitimidade ética e jurídica da não implementação ou retirada de dieta em paciente em estado vegetativo crônico desde que: i) confirmada a irreversibilidade da condição vegetativa do paciente por equipe multiprofissional experiente (item 11); ii) evidenciado o desejo antecipado do paciente de não ser continuada a alimentação artificial por diretivas antecipadas de vontade ou por relatos de familiares e entes queridos do paciente (item 1); e iii) consentimento esclarecido do representante legal do paciente (item 22). A partir das premissas internacionais expostas, verifica-se que as diretrizes do item 1 do posicionamento da ANCP e da ABN encontram amparo na tese jurídica proposta por Kutner e no caso judicial de Cruzan de recusa de alimentação e hidratação artificiais. No entanto, o item 2 pode gerar equívocos de interpretação, ao vincular a retirada da dieta artificial do paciente em estado vegetativo à obrigatoriedade do consentimento do representante legal, tornando-se necessário tecer alguns apontamentos. Em primeiro lugar, importa esclarecer que a participação dos familiares no processo deliberativo de não implementação ou retirada do suporte artificial de hidratação e nutrição - ainda que esteja condizente com o atual modelo de tomada de decisão compartilhada, que inclui a participação dos familiares do paciente no processo de deliberação terapêutica - não é suficiente, por si só, para a autorizar a limitação do suporte vital do paciente que não tenha deixado registrado a sua diretiva antecipada de vontade nesse sentido. Como explicitado anteriormente, o interesse do Estado de preservar a vida do paciente diminui e o direito individual à privacidade do paciente cresce à medida que o grau de invasão corporal do suporte artificial aumenta e o prognóstico diminui. Logo, juntamente com o consentimento do representante legal (item 2), faz-se necessária a apresentação de diretivas antecipadas válidas ou provas claras e convincentes do desejo do paciente pela suspensão da alimentação e hidratação artificiais (item 1). Em segundo lugar, a decisão do representante legal acerca da limitação do suporte de dieta artificial pode entrar em conflito com a diretiva antecipada do paciente ou mesmo com a decisão técnica da equipe multidisciplinar de cuidados paliativos em relação às medidas de conforto do paciente. Se os conflitos entre a decisão dos familiares do paciente acerca da retirada do suporte vital e a decisão da equipe multiprofissional norteada pela boa prática clínica que repudia a obstinação terapêutica não forem conduzidos por uma comunicação efetiva, esses casos podem repercutir não somente na mídia como no judiciário. À título exemplificativo, cita-se o caso do bebê inglês Charles Gard que, além de ter demandado várias decisões judiciais nacionais e até do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, provocou o pronunciamento do Vaticano e do então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Assim, Dadalto e Affonseca (2018) recomendam o aprimoramento das técnicas de comunicação entre equipe e os familiares, além de uma atuação mais empática da equipe de saúde, de modo que tais conflitos possam ser resolvidos sem a intervenção do Poder Judiciário. Ainda sobre o conflito no processo deliberativo, importante apontar a possibilidade de divergência entre a recusa do suporte vital feita validamente no testamento vital pelo paciente e a decisão do representante legal. Nesses casos, a Resolução CFM 1.995/2012 determina a prevalência das diretivas antecipadas sobre o parecer de não médicos. Como fica então o item 2 do posicionamento da ANCP e da ABN? Deve simplesmente ser ignorado e descumprido? Embora o consentimento dos familiares não seja o requisito obrigatório quando existir testamento vital nos termos da Resolução CFM 1.995/2012, a busca do consenso com o representante legal deve ser perseguida pela equipe de saúde para evitar a judicialização do caso, conforme solução apontada por Dadalto e Affonseca (2018). Em relação à Resolução CREMESP 355/22 acerca da retirada do suporte artificial de nutrição e hidratação, foram elencados cinco requisitos para que a recusa seja considerada ética: Art. 3º Para que a retirada de suporte artificial de vida (SAV) seja considerada eticamente aceitável em situações de futilidade terapêutica ou de tratamento potencialmente inapropriado, cinco pré-requisitos devem ser atendidos, a saber: I. O paciente em questão deve estar em fase terminal de enfermidade grave e incurável, identificada pelo seu médico responsável. Estas condições devem também ser diagnosticadas por outros dois médicos, sendo um destes médicos necessariamente especialista na área que causou a doença terminal e o segundo, médico atuante em área de cuidados paliativos. II. O objetivo da retirada do SAV é permitir a evolução da doença de maneira natural e com menor sofrimento até o momento do óbito. III. A retirada do SAV é considerada tecnicamente adequada por dois médicos, além do médico responsável pelo paciente, o qual indicou os cuidados paliativos. IV. A retirada do SAV está de acordo com a vontade do paciente, ou na sua impossibilidade, de seu representante legal. V. Todos os cuidados paliativos apropriados serão mantidos ou intensificados, visando o conforto do paciente e de sua família. (CREMESP, 2022). Além disso, a Resolução CREMESP 355/22 rechaça a realização de tratamento fúteis (aquele "que, de acordo com melhor evidência científica disponível, mostre-se incapaz de atingir o objetivo biológico almejado" - art. 1º) ou tratamento potencialmente inapropriados (aquele "que, embora potencialmente capazes de atingir os objetivos fisiológicos, [...] são altamente improváveis de resultar em sobrevivência digna, de acordo com os valores de vida e preferências de cuidado do paciente" - art. 2º), exigindo o consenso entre os envolvidos ou o envolvimento de equipes especialistas em cuidado paliativo e/ou comitês de ética/bioética (art. 2º). Com base nas premissas internacionais explicitadas anteriormente, a Resolução CREMESP parece encontrar amparo na tese jurídica proposta por Kutner no caso de o paciente estar competente para a tomada de decisão, expressando a sua vontade pela recusa de tratamento. Entretanto, no caso de paciente incapaz de decidir que não tenha deixado diretiva antecipada, resta questionar: a vontade do representante legal é juridicamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan, sem a necessidade de apresentar provas claras e convincente do desejo do paciente, tal como exigido no caso Cruzan? Para responder tal questionamento, necessário percorrer as normas brasileiras sobre o tema no próximo subtítulo. Normas éticas e jurídicas nacionais sobre o direito de recusar tratamento médico Em uma perspectiva nacional, torna-se relevante fazer uma interpretação sistemática das normas éticas e jurídicas vigentes no país sobre o direito de recusar tratamento médico, em especial a não implementação ou retirada de dieta artificial em paciente em estado vegetativo crônico, partir do diálogo de tais fontes. Do ponto de vista da deontologia médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) possui diversas resoluções que legitimam eticamente o direito de recusar tratamentos obstinados ou fúteis. A Resolução CFM 1.805/06 permitiu aos médicos a limitação e a suspensão de tratamentos que "prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal". Já a Resolução CFM 1.995/12 regulamentou as diretivas antecipadas de vontade em prontuários médicos como instrumento para rejeição de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente sem trazer benefícios. Recentemente, a Resolução CFM 2.232/19 definiu expressamente a recusa terapêutica como direito do "paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente" (art. 2º). A interpretação sistemática dessas resoluções demonstra que tem legitimidade ética para fazer as suas diretivas antecipadas o paciente competente para a tomada de decisão terapêutica, incluindo a recusa de suporte artificial de alimentação e hidratação, quer expressando os seus desejos de cuidados e tratamentos, quer indicando um representante para a substituição do seu consentimento. Ademais, verifica-se também que, diante da ausência de diretivas antecipadas de paciente que se tornou incapaz de tomar as suas decisões terapêuticas, a Resolução CFM 1805/06 permitiu a retirada de tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade de seu representante legal. Portanto, na perspectiva da deontologia médica, vontade do representante legal é eticamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan. Do ponto de vista jurídico, diante da ausência de uma lei federal regulamentadora específica dos direitos dos pacientes ou das diretivas antecipadas de vontade do paciente, resta fazer o diálogo de diversas fontes do direito para a elucidação do questionamento anteriormente formulado. A Lei Orgânica da Saúde, lei 8.080/90, determina que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Únicos de Saúde (SUS) devem obedecer ao princípio, entre outros, da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral (art. 7º, III). Já a Lei do Estado de São Paulo 10.241, de 17 de março de 1999, considerada um marco legislativo aos direitos dos pacientes, estabelece como direitos dos usuários dos serviços de saúde (art. 2º): VII - consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; [...] XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Ainda no âmbito do sistema de saúde brasileiro, a Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Usuária da Saúde, disposta na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 533, de 09 de agosto de 2017, estipula: Terceira diretriz: [...] §11. E' direito da pessoa, na rede de servic¸os de sau'de, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminac¸a~o, restric¸a~o ou negac¸a~o em virtude de idade, rac¸a, cor, etnia, religia~o, orientac¸a~o sexual, identidade de ge^nero, condic¸o~es econo^micas ou sociais, estado de sau'de, de anomalia, patologia ou deficie^ncia, garantindo-lhe: [...] VI - a informac¸a~o a respeito de diferentes possibilidades terape^uticas de acordo com sua condic¸a~o cli'nica, baseado em evide^ncias e a relac¸a~o custo-benefi'cio da escolha de tratamentos, com direito a` recusa, atestado pelo usua'rio ou acompanhante; [...] VIII - o direito a` escolha de tratamento, quando houver, inclusive as pra'ticas integrativas e complementares de sau'de, e a` considerac¸a~o da recusa de tratamento proposto; De acordo com a interpretação doutrinária do direito civil brasileiro, existem alguns enunciados normativos sobre o tema elaborados no bojo das Jornadas de Direito Civil, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF). São eles: Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil (2012) Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: E' válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado "testamento vital", em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de sau'de, ou na~o tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade. Enunciado 533 da VI Jornada de Direito Civil (2013) O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que na~o possam ser interrompidos. Art.: 15 do Código Civil. Por fim, no âmbito judicial, importante citar as duas decisões judiciais com validade em todo o território nacional que ratificaram a constitucionalidade e legitimidade jurídica das Resoluções CFM 1805/06 e 1995/12, com base nos princípios e regras constitucionais e legais hodiernamente vigentes, em especial o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a vedação constitucional de tratamento desumano e degradante (respectivamente, art. 1º, III, e art. 5º, III, da Constituição Federal de 1988 - CF/88). Além destes dispositivos constitucionais citados nas decisões judiciais, aponta-se ainda o princípio da legalidade (art. 5º, II - "II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei") cumulado com o princípio da privacidade (art. 5º, X - "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas"). Como o princípio da legalidade está intrinsecamente ligado ao direito à liberdade, sendo a lei uma garantia da liberdade do particular, que pode fazer tudo aquilo que a lei não proibir, depreende-se, à luz da tese jurídica de Kutner já explicitada, que a liberdade do paciente de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada - incluindo aquelas decisões relacionadas à recusa de suporte vital, como a alimentação e hidratação artificiais, em que não legislação proibitiva - encontra amparo no direito constitucional brasileiro. Do diálogo entre as fontes da dogmática jurídica brasileira e da deontologia médica nacional, conclui-se que o direito de suspensão da nutrição e hidratação artificiais poderá ser exercido de forma compartilhada com a equipe de saúde: i) por paciente com capacidade civil plena por meio exercício da sua autonomia; ii) por paciente incompetente que exprimiu antecipadamente a sua vontade em suas diretivas de vontade; iii) pelo representante quando expressamente indicado nas diretivas antecipadas de paciente; iv) pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas. Em relação ao último item supracitado, a decisão de limitação de suporte vital pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas justifica-se com base na ausência de lei federal regulamentadora e, consequentemente, pela ausência de proibição legal da suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação. Sobre isso, vale esclarecer que, não obstante a eutanásia e o suicídio medicamente assistido sejam considerados crime de homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1º, Código Penal) e crime de auxílio ao suicídio (art. 122 do Código Penal), respectivamente, a suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação não é tecnicamente enquadrada nesses tipos penais. Ao contrário, como já explicitado nas decisões judiciais dos casos Quinlan e Cruzan, é considerada recusa de tratamento médico amparada pelo direito constitucional à privacidade. Nesse sentido, importante citar trecho do julgamento do caso Cruzan: [...] as técnicas usadas ou não para passar alimentos e água para o trato alimentar do paciente são chamadas de "tratamento médico", porque todas elas envolvem algum grau de intrusão e contenção. Alimentar um paciente por meio de um tubo nasogástrico requer que um médico passe um tubo longo e flexível pelo nariz, garganta e esôfago do paciente e no estômago. Por causa do desconforto que tal tubo causa, "todos os pacientes precisam ser contidos à força e suas mãos colocadas em luvas grandes para evitar que eles removam o tubo" [...] Um tubo de gastrostomia (como foi usado para fornecer comida e água a Nancy Cruzan [...] ou tubo de jejunostomia que tem ser implantado cirurgicamente no estômago ou intestino delgado [...] Exigir que um adulto competente se submeta a tais procedimentos contra sua vontade sobrecarrega a liberdade, a dignidade e a liberdade da paciente para determinar o curso de seu próprio tratamento. Assim, a liberdade garantida pela Cláusula do Devido Processo deve proteger, se proteger alguma coisa, a decisão profundamente pessoal de um indivíduo de rejeitar o tratamento médico, incluindo a entrega artificial de alimentos e água. (COURT US, 1990). Portanto, tal como no caso Cruzan, se houvesse uma exigência legal a restringir o direito de recusa terapêutica, que no ordenamento jurídico brasileiro se encontra ancorado dos princípios da privacidade cumulado com o da legalidade, é provável que a decisão, por si só, do representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas não fosse juridicamente suficiente. Entretanto, tal como no caso Quinlan, diante da ausência de lei regulamentadora das diretivas antecipadas, as fontes acima elencadas mostram-se ética e juridicamente suficientes para fundamentar o direito de suspensão da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital. ---------- 1 Posicionamento da ANCP e ABN (2022): "1. É ético e legal a renúncia à dieta artificial (não instalação ou retirada), diante de situação de estado vegetativo crônico onde haja clareza, após o devido processo de avaliação diagnóstica e prognóstica por equipe interdisciplinar experiente no manejo de pacientes com distúrbios prolongados de consciência, de que as possibilidades de recuperação da consciência e/ou da funcionalidade são mínimos e haja evidências obtidas através de diretivas antecipadas de vontade ou de relatos de familiares e entes queridos do paciente de que, para o mesmo, em função de seus valores pessoais, ser mantido indefinidamente em tais condições representaria algo pior do que a própria morte. Nestes casos, a retirada/não introdução da nutrição e hidratação por via artificial não correspondem nem a eutanásia nem ao suicídio.". 2 Posicionamento da ANCP e ABN (2022): "2. A suspensão/não introdução de nutrição e hidratação por via artificial somente pode ser realizada mediante o consentimento esclarecido do representante legal do paciente.".
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. Quais são os seus possíveis impactos para o Direito Médico? O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Os avanços da Inteligência Artificial no campo da Saúde têm sido amplamente difundidos, assim como os seus riscos. Algoritmos inteligentes atuam na prevenção de doenças, no diagnóstico e, até mesmo, na escolha das terapêuticas mais adequadas. A IA aplicada à robótica já é capaz de performar atos cirúrgicos que demandam intensa precisão1, sem mencionar a assistência à saúde em sentido amplo, que abrange, por exemplo, os tão difundidos robôs cuidadores. Nos exames, veja-se o caso do "Dio.io", criado pela sociedade empresária Healthy.io em parceria com a Siemens Healthineers, que "permite que pacientes possam fazer seu exame de urina no conforto de suas casas. Aprovado recentemente pela agência norte-americana de fármacos FDA, o produto é um é um kit que coleta e analisa amostras com ajuda de machine learning e visão computacional."2 No entanto, apesar dos inúmeros e inequívocos avanços proporcionados pela Inteligência Artificial na área, não há como escapar dos eventuais danos aos pacientes, nem mesmo de dilemáticas questões éticas, que desafiam a cada dia mais a relação médico-paciente. Apesar de não contar com regulação específica sobre as aplicações da Inteligência Artificial na Saúde, o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas prevê a adoção de algumas normas com significativa repercussão. Em primeiro lugar, destaca-se que o anteprojeto se estrutura numa abordagem de regulação da Inteligência Artificial a partir dos riscos. Em seus artigos 14 a 16, disciplina o chamado "risco excessivo", que, no fundo, abrange aquilo que na dogmática europeia tem sido referido por vezes como "risco inaceitável". Trata-se, em última análise, de aplicações vedadas pela legislação, já que o ordenamento jurídico pátrio não as toleraria. Como exemplos, pode-se citar os sistemas de IA3: "que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei" (art. 14, inciso I); "que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei" (art. 14, inciso II) e que sejam utilizadas "pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional (art. 14, inciso III)". Além do risco excessivo, o anteprojeto disciplina, em seus artigos 17 e 18 os chamados sistemas de IA de "alto risco", descritos taxativamente em hipóteses atualizáveis pela autoridade competente4 - a ser designada por lei - por meio da observância de critérios descritos no artigo 18. E é precisamente no "alto risco" que o anteprojeto enquadra os sistemas de IA utilizados para as finalidades de "aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos" (artigo 17, inciso IX). São grandes os impactos da previsão deste inciso (de natureza exemplificativa, haja vista o emprego do vocábulo "inclusive") no rol dos sistemas de IA de alto risco, tanto para a governança, como também para a Responsabilidade Civil. Um primeiro impacto mais imediato reside na exigência de que a "documentação técnica de um sistema de IA de alto risco deve ser elaborada antes da disponibilização no mercado ou de seu uso para prestação de serviço e deve ser mantida atualizada durante sua utilização." (artigo 19, §2º). Além disso, prevê o artigo 20 uma série de outras medidas de governança, a exemplo de testagem, medidas de gestão de dados para mitigar e prevenir vieses discriminatórios, bem como a supervisão humana efetiva (effective human oversight), que abrange até mesmo o dever de considerar o chamado automation bias ou viés de automação, que consistiria na "ciência da possível tendência para confiar automaticamente ou confiar excessivamente no resultado produzido pelo sistema de IA" (artigo 20, § único, inciso II). Ainda em termos de governança, o artigo 7º prevê que as "[p]essoas afetadas por sistemas de inteligência artificial têm o direito de receber, previamente à contratação ou utilização do serviço de IA, informações claras e adequadas quanto" às "as medidas de segurança, não-discriminação e confiabilidade adotadas, incluindo acurácia, precisão e cobertura" (inciso VI). Digna de nota também é a regra relativa à chamada "avaliação de impacto algorítmico de sistema de IA", que, segundo disposto no artigo 22, será obrigatória aos agentes de IA "sempre que o sistema for considerado como de alto risco pela avaliação preliminar." Além disso, conforme previsão do parágrafo único do dispositivo, "[a] autoridade competente deverá ser notificada sobre o sistema de alto risco, mediante o compartilhamento da avaliação preliminar e de impacto algorítmico." Por derradeiro, o artigo 43 prevê que "[c]abe à autoridade competente a criação e manutenção de uma base de dados de IA de alto risco, acessível ao público, que contenha os documentos públicos das avaliações de impacto, respeitados os segredos comercial e industrial, nos termos do regulamento." Em relação ao regime de responsabilidade civil,5 o anteprojeto acabou por realizar um duplo recorte: objetivo e subjetivo. Assim, objetivamente, confere-se resposta distinta a depender do grau de risco da IA e, subjetivamente, o regime legal aplica-se apenas aos fornecedores e operadores de IA, descritos pela lei como "agentes de IA".6 Com efeito, para danos causados por agentes de IA que operem sistemas de alto risco ou risco excessivo, o regime de responsabilidade civil será de natureza objetiva. Para os demais níveis de risco, o regime terá natureza subjetiva com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima do dano. Os agentes de IA, segundo o artigo 28, somente não serão responsabilizados quando: "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA; II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Nada obstante, segundo previsão expressa do artigo 29, "As hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Ademais, os usuários de IA que não se enquadrem nos conceitos de fornecedor e operador continuarão regidos pela legislação pertinente, a exemplo do que ocorrerá com o Estado, que tem seu regime de responsabilizado fixado pelo parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição da República. Como consequência, danos causados por hospitais e médicos em relação aos pacientes, em princípio, continuarão regidos pelas normas consumeristas. Vislumbra-se aplicação do regime do anteprojeto, por exemplo, em casos de litigância entre agentes empresariais, como entre hospitais que forneçam tecnologias uns para os outros, havendo sempre que se verificar a existência de vulnerabilidade apta a atrair a incidência da legislação consumerista. Outros destaques ainda podem ser feitos para o Direito Médico. Em especial, ganham relevo a centralidade do ser humano e os direitos associados à informação, além dos seguintes princípios elencados ao longo do rol do artigo 3º: autodeterminação e liberdade de decisão e escolha; participação humana no ciclo da inteligência artificial e supervisão humana efetiva; não discriminação; transparência, explicabilidade, inteligibilidade e auditabilidade; prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos; prevenção, precaução e mitigação de riscos sistêmicos derivados de usos intencionais ou não intencionais e efeitos não previstos de sistemas de inteligência artificial; não maleficência e proporcionalidade entre os métodos empregados e as finalidades determinadas e legítimas dos sistemas de inteligência artificial. O princípio da não maleficência, colhido da bioética, tem relevante aplicação para o Direito Médico, assim como a necessidade de inteligibilidade. Esta última se projeta, por exemplo, no consentimento livre, esclarecido e informado dos pacientes que devem ser amplamente advertidos quando o tratamento envolver alguma ferramenta de Inteligência Artificial. Tal princípio ainda se projeta e se aprofunda ao longo da lei por meio de disposições como a do artigo 7º, §3º, segundo a qual: "Os sistemas de IA que se destinem a grupos vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, devem ser desenvolvidos de tal modo que essas pessoas consigam entender o seu funcionamento e seus direitos em face dos agentes de IA." No fundo, não basta que um idoso saiba que está sendo operado por um robô que utilize IA: é preciso que inequivocamente compreenda o que isso significa, bem como os seus direitos. Outrossim, merece atenção o artigo 11, segundo o qual: "[e]m cenários nos quais as decisões, previsões ou recomendações geradas por sistemas de IA tenham um impacto irreversível ou de difícil reversão ou envolvam decisões que podem gerar riscos à vida ou à integridade física de indivíduos, deve haver envolvimento humano significativo no processo decisório e determinação humana final." Sobre este artigo deverá se debruçar a doutrina do Direito Médico e a jurisprudência, a fim de interpretar como conciliar a norma com a eventual realização de cirurgias robóticas. Deve-se, assim, construir padrões de governança e boas práticas que tenham em primeiro plano sempre os princípios éticos que governam a relação médico-paciente. Como se pode notar nas tímidas considerações deste brevíssimo artigo, o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas inaugura importante debate na seara legislativa, que agora tende a ser aprofundado com a tramitação no Congresso Nacional. Não há dúvidas de que o texto avança em pontos sensíveis, buscando concretizar direitos e garantias mínimas para o desenvolvimento tecnológico seguro e que tenha a pessoa humana em seu centro. Resta aguardar os próximos passos. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados Unidos, União Europeia e Brasil). In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 2 ALVEZ, Rafael. 5 aplicações da Inteligência Artificial na Medicina. Portal Telemedicina. 30 nov. 2018. Disponível aqui. Acesso em 12 out. 2022. 3 "Art. 4º. Para as finalidades desta Lei, adotam-se as seguintes definições: I - sistema de inteligência artificial (IA): sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real. (...)" 4 "Art. 4º. Para as finalidades desta Lei, adotam-se as seguintes definições: (...) V - autoridade competente: órgão ou entidade da Administração Pública Federal responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento desta Lei em todo o território nacional; (...)" 5 Em visão mais aprofundada sobre os impactos para a Responsabilidade Civil, consinta-se remeter a MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed. (3ª edição a ser publicada no primeiro semestre de 2023). 6 "Artigo 4º: (...) II - fornecedor de sistema de IA: pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito; III - operador de sistema de IA: pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional. IV - agentes de IA: o fornecedor de sistema de IA e o operador de sistema de IA."
1 Introdução O Direito Penal vem sendo, já há muito, tensionado em virtude do surgimento de "novos" problemas inerentes a âmbitos específicos da vida social - ou até mesmo da imperiosa revisitação, nesses contextos, de tradicionais questões penais, notadamente da parte especial. Apesar de se tratar de área muito explorada em outros países, o estudo do Direito Penal da Medicina é ainda incipiente no Brasil, mas extremamente necessário sobretudo em razão das crescentes complexidades das interrelações entre a Medicina e o Direito. Com efeito, o médico lida em seu cotidiano com bens jurídicos dos pacientes da mais alta importância, v.g. a vida, a integridade física, a privacidade, podendo sua atuação se amoldar a tipos penais como homicídio, aborto, lesão corporal, constrangimento ilegal, violação de segredo profissional etc. Contudo, não é novidade que a dogmática penal tradicional, com viés evidentemente paternalista1, ainda está presa a interpretações ultrapassadas do início do século passado2, cuja constitucionalidade é, no mínimo, duvidosa, além de não dialogar ou sequer compreender as atuais especificidades do Direito da Medicina. Por exemplo, a leitura fria e descontextualizada da dogmática tradicional paternalista permitiria, em tese, a punição de atos evidentemente legítimos de ortotanásia a título de homicídio por omissão imprópria (art. 121 c/c art. 13, par. 2º, CP) ou de omissão de socorro (art. 135, CP). Além disso, coloca deliberadamente nas mãos dos médicos - e não dos pacientes - a determinação da legitimidade das intervenções corporais, como se estes não tivessem qualquer voz sobre o destino de suas vidas e de seus próprios corpos, o que possui reflexos na definição do âmbito típico dos crimes de lesão corporal (art. 129, CP) e de constrangimento ilegal (art. 146, CP). Essa perspectiva tradicional ultrapassada acaba influenciando até hoje a prática judicial, que, além de incorporar sem muita reflexão o modelo paternalista, confina equivocadamente a responsabilidade penal do médico a hipóteses de erro médico, vinculando uma condenação quase que exclusivamente à violação de deveres de cuidado na realização das intervenções. Mais recentemente, um caso de violência obstétrica que teve como vítima a influenciadora Shantal Verdelho ganhou repercussão midiática e envolve, entre outras questões, a delimitação do âmbito típico do crime de lesão corporal em casos de intervenções médicas não consentidas, especificamente no contexto da assistência ao parto. Este caso servirá, aqui, como pretexto para explicitar, uma vez mais, a urgência de se abandonar por completo a dogmática penal paternalista e abrir caminhos para um Direito Penal da Medicina fundado no respeito à autonomia dos pacientes. 2 O caso Shantal O Ministério Público do estado de São Paulo ofereceu denúncia em face do médico obstetra Renato Kalil pela prática, em tese, dos crimes de lesão corporal praticada contra mulher (art. 129, par. 13º, CP) e violência psicológica contra a mulher (art. 147-B, CP), em concurso material (art. 69, CP). Narra a denúncia, em síntese, que o médico havia sido contratado pela então gestante Shantal Verdelho para acompanhar o nascimento da sua filha. Shantal expressou ao longo do pré-natal os seus desejos de ter um parto normal e de não ser submetida a determinados procedimentos, como a episiotomia (um corte cirúrgico feito na vagina e na vulva3 para ampliar o canal de parto). Depois de entrar em trabalho de parto, Shantal foi internada na noite do dia 12 de setembro de 2021 com contrações ativas. Sem entrar no mérito das demais condutas praticadas pelo médico, segundo consta na denúncia o crime de lesão corporal estaria caracterizado, in casu, porquanto o médico (i) determinou que membros da equipe realizassem a chamada manobra de Kristeller, pressionando o útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê, a qual é proscrita pela Organização Mundial de Saúde e não havia sido consentida pela parturiente; e (ii) alargou manualmente o canal vaginal sem o consentimento da parturiente, para "facilitar a visualização e a passagem do feto pelo canal do parto", por ela ter recusado a episiotomia. Segundo consta, após o parto a vítima teve laceração perineal de segundo grau e, como consequência, sofreu com dores e incontinência anal. No entanto, o juiz da 25ª Vara Criminal de São Paulo rejeitou a denúncia ofertada pelo MPSP4. No que se refere à lesão corporal, argumenta-se que não haveria justa causa para a ação penal por não ter ficado demonstrado "o erro médico de procedimento por parte do investigado" (fl. 866) e o nexo causal entre a lesão (laceração do períneo) e as condutas realizadas pelo médico. Ou seja, para o juiz a caracterização do crime de lesão corporal dependeria, necessariamente, de um "erro médico" e da demonstração de que os procedimentos realizados pelo médico de fato provocaram uma piora da condição de saúde da parturiente (no caso, a laceração perineal), independentemente de haver ou não consentimento. É definitivamente louvável a preocupação esboçada na decisão com o respeito às garantias processuais penais. Contudo, o julgado pode já de saída ser criticado não apenas em razão do seu descompasso em relação à realidade das violências sofridas cotidianamente pelas gestantes em nosso país e a todo o conhecimento desenvolvido no contexto do movimento pela humanização da assistência ao parto5, mas também pela utilização de argumentos evidentemente paternalistas, conforme demonstrarei na sequência. São muitos os trechos da decisão que eu poderia ressaltar aqui. Eu gostaria, contudo, de chamar a atenção para apenas dois deles, que me dão o ensejo para questionar o âmbito típico do artigo 129 do Código Penal. No primeiro deles, ao dizer, com base na perícia, que não houve "erro médico ou procedimento inadequado" para caracterizar lesão corporal, porquanto o alargamento do canal vaginal realizado com as mãos era, diante da recusa da episiotomia, medicamente indicado para visualizar o feto e facilitar sua saída, o juiz ressalta o fato de que "a vítima, pessoa que não é médica obstetra, estabeleceu que o parto da sua filha seria natural e sem cortes (episiotomia)" (fl. 869). Para ele, portanto, o fato de a vítima ser medicamente leiga e recusar uma intervenção corporal (a episiotomia) seria relevante para a legitimidade do alargamento manual do seu canal vaginal, ainda que sem o seu consentimento. Já no segundo trecho, argumenta-se basicamente que o respeito à vontade da vítima não seria relevante para a determinação da responsabilidade penal do médico: "a adequação ou não do médico ter se submetido a` vontade da vítima e a tudo que ela determinou, o tempo todo, e' matéria do campo ético da medicina" (p. 871). Diante disso, eu gostaria, à luz do caso concreto, de colocar os seguintes questionamentos: possui a vontade do paciente alguma relevância para a determinação do âmbito típico do crime de lesão corporal? Será mesmo que os pacientes devem ter um altíssimo conhecimento técnico (basicamente, cursar Medicina) para poder recusar alguma intervenção em sua esfera corporal? A mera indicação médica de uma intervenção no corpo de um paciente a torna legítima? 3 Intervenções corporais não consentidas como lesões corporais A realização de uma intervenção médica no corpo de alguém promove uma afetação da sua substância corporal, independentemente do resultado a que se chega ou da vontade do médico de promover o bem-estar do paciente. Tanto a incisão feita com um bisturi ou o furo na pele realizado com uma seringa quanto a alteração do organismo provocada por uma transfusão de sangue interferem, inegavelmente, no corpo do paciente. Ainda que o paciente seja voluntariamente submetido a uma intervenção com o objetivo de promover uma possível melhora da sua condição de saúde, o eventual resultado positivo, no entanto, não afasta a afetação corporal antecedente6. Assim, ao menos em tese, toda interferência no corpo do paciente pode constituir um fato típico de lesão corporal (art. 129, CP). Isso não significa, definitivamente, que toda intervenção corporal é punível, mas nos faz questionar qual é o fundamento dogmático que legitima a prática desta conduta, afastando a tipicidade ou a antijuridicidade da lesão corporal. Conforme já tive a oportunidade de ressaltar,7 em um modelo de respeito à autonomia do paciente, a vontade do sujeito passivo da intervenção passa a assumir o papel central na análise da legitimidade das intervenções médicas.8 O fundamento para a adoção desse modelo pode ser extraído dos direitos à autonomia, à dignidade humana e à liberdade, assim como à integridade física e à privacidade, reconhecidos tanto a nível constitucional quanto sob a perspectiva dos Direitos Humanos. A autonomia, derivada da dignidade humana (art. 1º, III, CF) e da liberdade (art. 5º, caput, CF), constitui o cerne da personalidade do indivíduo, garantindo a ele o "direito de viver segundo a própria concepção de uma vida boa".9 Respeitá-la significa reconhecer, na "esfera nuclear da vida privada, limites dentro dos quais somente o próprio indivíduo poderá tomar decisões, sem a interferência de terceiros".10 É a autonomia que concede ao paciente o domínio soberano sobre o território do próprio corpo, atribuindo a ele o direito de tomar suas próprias decisões médicas11: "o corpo é o templo do indivíduo, isto é, é o âmbito inviolável que apenas ele próprio pode controlar".12 O respeito à autonomia é deliberadamente desconsiderado na concepção paternalista13, em que o médico (ou o juiz), na certeza de que sabe mais sobre o bem-estar da paciente do que ela própria, poderia se sobrepor à vontade dela ou deixar de informá-la acerca da intervenção, contanto que orientado por um propósito "beneficente". Essa concepção, ao relegar os pacientes a uma posição de passividade, acaba tratando-os como meros objetos de intervenção. Num modelo que leva a sério o respeito à autonomia do paciente capaz para consentir14, apenas este poderá autorizar interferências em seu domínio corporal. Como consequência dogmática desse raciocínio, somente o consentimento (ou, diante da impossibilidade de obtê-lo, o consentimento presumido) poderá legitimar essas intervenções e afastar o injusto do crime de lesão corporal, o que, por sua vez, torna prima facie ilegítimas as intervenções realizadas sem o consentimento ou contra a vontade do paciente. A lesão corporal (art. 129, CP) caracteriza-se pela ofensa "à integridade corporal ou à saúde" do paciente. Mas, em que consiste a integridade física? Com base em uma compreensão liberal dos bens jurídicos individuais, fundada no respeito à autonomia15, a integridade física adquire contornos bidimensionais16, abrangendo tanto o corpo enquanto substância, na sua dimensão biológica, quanto o direito do indivíduo de autodeterminar o que pode ou não ser feito com ele. O corpo, na verdade, é apenas o componente objetivo da integridade física - o objeto sobre o qual recai a conduta. Além dele, no entanto, também um segundo componente, referente à liberdade de disposição do seu titular, é objeto de tutela do crime de lesão corporal.17 Nesse sentido, como corretamente esclarece Roxin, "o corpo é objeto de proteção não como um conjunto de carne e ossos, mas apenas em conexão com a mente, que nele habita e o controla"18. A caracterização do crime previsto no art. 129 do CP, portanto, não pressupõe uma piora geral do estado de saúde, mas "a alteração, anatômica ou funcional, interna ou externa, do corpo humano"19. Se a afetação da substância corporal do titular do bem jurídico for realizada sem o seu consentimento válido, haverá uma invasão indevida da esfera corporal da vítima, suficiente para a consecução do tipo.20 Isso ocorre, por exemplo, nas hipóteses em que o médico realiza uma episiotomia ou administra ocitocina sintética para intensificar as contrações sem o consentimento da gestante, independentemente de haver ou não indicação. Afinal, a simples indicação não dá ao médico um direito irrestrito e irrevogável de interferir nos corpos dos pacientes sem o seu consentimento. No caso da manobra de Kristeller, apesar de não haver sempre uma invasão da substância do corpo, como ocorre nos casos em que a execução da manobra resulta em lesões internas, o simples emprego de força física não consentida contra o corpo da gestante nesses casos já é suficiente para caracterizar a lesão corporal. O mesmo ocorre quando alguém desfere um tapa ou um soco contra o rosto de outra pessoa sem provocar lesões internas - isso não deixa de ser uma lesão corporal pelo fato de a conduta violenta não adentrar o corpo da vítima. Importante frisar que a manobra de Kristeller sequer é medicamente indicada21, ou seja, nem mesmo sob a perspectiva paternalista é possível afastar o injusto da lesão corporal neste caso. Com ainda mais razão, o alargamento manual do canal vaginal também pode caracterizar lesão corporal quando realizado sem o consentimento da mulher. Ainda que não seja cabalmente comprovado que o "procedimento" contribuiu para a laceração perineal, ao pressionar com os dedos o introito da vagina da parturiente, forçando o tecido para abri-lo mais do que o normal, está-se provocando, mais uma vez, uma alteração da substância corporal, ainda que posteriormente a vagina tenha a mesma aparência. Não sendo o procedimento consentido ou devidamente esclarecido, não há dúvidas de que se trata de uma lesão corporal. A parturiente, in casu, tinha todo o direito de recusar a realização da episiotomia. Para autorizar ou recusar intervenções, exercendo sua autonomia, não é necessário que a paciente seja médica ou possua conhecimentos técnicos. Na verdade, o conhecimento necessário para tomar decisões sobre o destino do próprio corpo deve ser fornecido pelo médico, ao cumprir o seu dever de informar sobre todos os aspectos referentes principalmente, ao diagnóstico, à execução e aos riscos da intervenção, bem como eventuais alternativas. No final das contas, quem terá que viver com as consequências da decisão é a própria paciente e cabe a ela ponderar os riscos e benefícios de realizar ou não a intervenção. Frise-se, contudo, que no caso da episiotomia, ainda que a Organização Mundial de Saúde indique a sua realização em alguns poucos casos22, não havia indicação no caso concreto. E a recusa da paciente certamente não atribui ao médico um direito de alargar o seu canal vaginal sem o seu consentimento. De qualquer forma, a indicação médica da intervenção não constitui um requisito de validade, tampouco isenta o médico de colher o consentimento. A indicação, na verdade, afeta apenas a intensidade do dever de esclarecimento, já que quanto menos indicada for a intervenção, mais intensa será a obrigação do médico de informar e esclarecer todas as contraindicações e possíveis efeitos lesivos, para que a paciente realmente a conheça e decida livremente submeter-se a ela. Devo ressaltar, por fim, que os comportamentos de violência no parto que caracterizam lesão corporal não se confundem com a negligência médica (ou "erro médico"), pois não se trata de crimes culposos nos quais o médico deixa de observar deveres de cuidado inerentes à lex artis na execução desses procedimentos, mas sim de ações ou omissões dolosas de desrespeito à autonomia da mulher e invasão indevida da sua esfera corporal. 4 Conclusão O respeito à vontade da paciente pode, sim, possuir relevância para a determinação do âmbito típico do crime de lesão corporal e, portanto, não se trata de uma questão exclusivamente vinculada à ética médica. Considerando que qualquer intervenção médica que afeta o corpo do paciente constitui uma interferência em sua substância corporal e que apenas o seu consentimento livre e esclarecido pode legitimá-la, a realização de intervenções médicas não consentidas caracteriza prima facie o crime de lesão corporal (art. 129, CP). Afinal, a integridade física é um bem jurídico individual e a ninguém é dado o poder de intervir no corpo de uma pessoa sem a sua anuência, de sorte que corpo e vontade devem ser analisados, aqui, como um todo harmônico e indissociável. _____________ 1 A respeito, cf. SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019. "O paternalista é aquele que, na certeza de que sabe mais sobre o bem-estar de um terceiro do que ele próprio, impõe-lhe, de alguma forma, um padrão de conduta baseado em certos valores, de modo a "promover o seu bem" mesmo que contra a sua vontade. Ou seja, age como se fosse um pai atuando no melhor interesse de uma criança" (p. 47). Assim, "uma intervenção paternalista (rígida) é aquela que, visando à promoção do bem-estar subjetivo do sujeito afetado e ignorando a sua vontade livre e informada, impõe-lhe coercitivamente um padrão de conduta, limitando a sua liberdade" (p. 83). 2 Considerando, inclusive, que a parte especial do Código Penal brasileiro é de 1940. 3 DINIZ, Simone Grilo; DUARTE, Ana Cristina. Parto normal ou cesárea? São Paulo: UNESP, 2004, p. 47. 4 Cf. https://www.migalhas.com.br/quentes/376409/juiz-rejeita-denuncia-contra-medico-renato-kalil-por-parto-de-shantal 5 A respeito da humanização da assistência ao parto, cf. DINIZ, Carmem Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento, Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 627-637, 2005, p. 635. 6 PUPPE, Ingeborg, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit des Arztes bei mangelnder Aufklärung über eine Behandlungsalternative: Zugleich Besprechung von BGH, Urteile vom 3.3.1994 und 29.6.1995, GA, 2003, p. 764. 7 SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 169 e segs. 8 Por mais que boa parte da doutrina brasileira ainda defenda, com base nos escritos do início do século XX, que o exercício regular do direito de profissão do médico (art. 23, III, CP) afastaria o injusto das intervenções médicas realizadas nos corpos dos pacientes (Cf., por todos, BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 11.), essa postura tradicional parte de premissas e chega a conclusões essencialmente paternalistas, porquanto acaba atribuindo ao médico, em última instância, a competência para tomar decisões acerca da saúde e da vida do paciente. 9 GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. Studia Juridica, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade (Vol 1), v. 108, p. 643-669, 2017, p. 649. 10 SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 71. 11 SIQUEIRA, Flávia. Gesundheitsschädigende Patientenaufklärung: Grund und Grenzen einer Entbehrlichkeit der Aufklärungen vor Heileingriffen. Medstra, v. 3, p. 153-159, 2018, p. 154. 12 SIQUEIRA, Flávia; SOARES, Hugo. Vacinação compulsória? Sobre os limites da atuação do Estado no combate à COVID-19. Revista de Estudos Criminais, v. 81, 2021, p. 40. Importante frisar que o direito ao próprio corpo é um direito inato, decorrente da própria humanidade da pessoa, ou seja, é um direito pré-positivo e anterior ao Estado. Cf. GRECO, Luís. Strafprozesstheorie und materielle Rechtskraft. Berlin: Duncker & Humblot, 2015, p. 653 ss. 13 Especificamente no contexto obstétrico, o modelo hospitalar hegemônico, chancelado pela decisão no caso em comento, permite intervenções paternalistas e, em termos gerais, a apropriação do corpo da pessoa gestante "para o seu próprio bem". 14 Parte-se do pressuposto que o paciente, para exercer legitimamente sua autonomia, possui capacidade para consentir, isto é, capacidade de entendimento e decisão consubstanciada pela real compreensão do significado e da extensão da intervenção, bem como pela competência para escolher, com base nas informações depreendidas, se deseja ou não a ela se submeter. Não se trata da capacidade negocial, vinculada à capacidade civil. 15 Nesse sentido, cf. ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Strafrecht Allgemeiner Teil. vol. 1. 5. ed. München: C. H. Beck, 2020, §13, Nm. 12 ss.; SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 191 ss. 16 RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, Virgilio. El delito de tratamiento médico arbitrario: una propuesta de lege ferenda. RECPC, v. 19-03, 2017, p. 29. 17 Cf. SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 191 e segs. 18 ROXIN; GRECO, Strafrecht Allgemeiner Teil, § 13, Nm. 14. 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 213-214. 20 Para uma análise pormenorizada dos fundamentos dessa concepção do crime de lesões corporais, cf. SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 348 e segs. 21 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Recomendaciones de la OMS: cuidados durante el parto para una experiencia de parto positiva. Washington, D.C.: Organizacio'n Panamericana de la Salud; 2019, P. 155. 22 Apesar de questionada por muitos especialistas, a Organização Mundial de Saúde indica a realização da episiotomia em cerca de 10% dos casos. A respeito, cf. CARVALHO, Cynthia Coelho Medeiros de; SOUZA, Alex Sandro Rolland; MORAES FILHO, Oli'mpio Barbosa. Episiotomia seletiva: avanc¸os baseados em evide^ncias. Femina, v. 38, n. 5, mai 2010. _____________ *Flávia Siqueira é doutora em Direito Penal pela UFMG, com período sanduíche na Universität Augsburg e estâncias de pesquisa na Humboldt-Universität zu Berlin. Pós-doutorado pela UFMG, com pesquisa financiada pelo programa CAPES PrInt e estâncias na Humboldt-Universität zu Berlin. Professora de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP.
1. Introdução Ao analisarmos os processos por "erro médico"1 é possível observar uma crescente no número de demandas sem que, com isso, tenha ocorrido, de fato, um aumento de "erros" propriamente ditos. Ou seja, hoje em dia, ajuíza-se mais ações tendo o suposto erro médico como causa, mas não necessariamente, significa dizer que temos mais erros profissionais. De acordo com dados disponibilizados pela TV Justiça e CNJ, no ano de 2021 tivemos 35 mil novos processos por "erro médico".2 O aumento  do número de processo está relacionado com o elevado grau de solvência dos profissionais médicos, clínicas e hospitais, de modo que processar se torna um "bom negócio".3 Esse bom negócio relacionado à judicialização gera condenações ou absolvições que, em 26% dos casos, é antagônica à legis artis, ou seja, temos más decisões que absolvem casos de violação à legis artis e casos de condenação sem descumprimento à legis artis.4 Nesse sentido, alguns autores apontam que as demandas médicas são verdadeiras loterias judiciais, decorrente da estrutura judicial.5 O problema, todavia, começa a surgir no cenário atual em que o Poder Judiciário, para além de permitir a estrutura de judicialização, ainda apresenta elementos favoráveis à judicialização como a gratuidade judiciária quase irrestrita e a não penalização do autor pela ignorância ao método bifásico. Dentro de um contexto de excessiva litigiosidade, o que se observa é que algumas especialidades estão sendo esvaziadas, na medida em que os profissionais buscam mitigar o risco de processo e passam a atuar em especialidades menos sujeitas ao risco. Paralelamente, alguns profissionais têm encontrado, na medicina defensiva, uma forma de se proteger dos processos, desconsiderando que o e o exercício da medicina defensiva, per si, já é ilícito e pode gerar condenações desnecessárias.6 Frise-se que o presente texto não pretende ignorar a existência de possíveis erros e abusos por parte dos profissionais de saúde, porém, parte da realidade: o cenário é bem menos catastrófico do que aquele apresentado nos frios números da judicialização, para debater  uma responsabilização responsável, seja por parte dos autores, seja por parte dos réus. 2. A gratuidade judiciária como elemento de fomento à judicialização da medicina A mens legem da gratuidade judiciária, parte do pressuposto de que nada adiantaria garantir o direito de ação se não houvesse a possibilidade de um cidadão pobre acionar o Poder Judiciário. Nesse sentido dispõe o texto constitucional: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; Já o Código de Processo Civil dispõe que seu art. 98 que a gratuidade judiciária compreende inúmeras isenções como o dever de não pagar despesas como custas/preparo, honorários periciais e os honorários advocatícios em caso de sucumbência, ressalvada, em relação a estes, a suspensão da exigibilidade pelo prazo de 05 anos. Em um primeiro momento, a concepção da gratuidade judiciária é razoável e lógica, pois os direitos fundamentais, per si, são insuficientes, devendo haver mecanismos de implementação de tais direitos através de garantias fundamentais. O direito de ação dissociado da gratuidade judiciária poderia gerar um Poder Judiciário elitizado, de forma que sua implementação é fundamental. Todavia, observa-se que o objetivo da gratuidade judiciária foi deturpado e o instituto passou a fomentar verdadeiras aventuras jurídicas. Sob o pretexto de legitimar o acesso ao Poder Judiciário, a gratuidade tem sido utilizada como instrumento de aventuras jurídicas. É comum que o autor de uma ação de erro médico ignore, por completo, a viabilidade fática/jurídica do pedido e ajuíze sua demanda amparado apenas na existência do resultado adverso. Nesse sentido, Genival Veloso destaca que  que é preciso desarmar a população de que todo e qualquer resultado sejam de responsabilidade médica.7 Todo erro erro médico é um resultado adverso, porém nem todo resultado adverso é um erro profissional. Ao se ingressar, sob o manto da gratuidade com ações judiciais por resultado adverso e tratar tais resultados como erros os autores sobrecarregam o próprio Judiciário, gerando um efeito sistêmico de hiperlitigiosidade. A existência de litigantes frívolos e ambulance chasers gera uma redução da expectativa dos benefícios dos litigantes legítimos e um consequente prejuízo coletivo.  A maior quantidade de fases processuais e o consequente alongamento do litígio apenas estimula um comportamento oportunista. 8 Nesse sentido Luciano Timm destaca que: Assim, considerando-se o conjunto dessas variáveis e ainda diversas outras que fazem parte do sistema processual civil brasileiro, é possível constatar que tais circunstâncias servem de estímulo tanto para o excessivo ajuizamento de demandas judiciais, muitas delas inegavelmente temerárias ou frívolas (por exemplo, com baixíssima expectativa ou probabilidade de êxito, em decorrência da inadequação ou insuficiência de fundamentos fáticos e jurídicos), quanto para a interposição de expedientes recursais à exaustão, tendo em conta os baixos ônus e riscos de utilização desse sistema. (...) Oportuno ressaltar que embora não seja exigido o pagamento por parte dos beneficiários da AJG, isso não significa que esses custos deixem de existir e tampouco que ninguém irá suportá-los, de acordo com a célebre frase popularizada por Milton Friedman: "Não existe almoço grátis". Muito pelo contrário, certamente alguém terá que fazê-lo (precisamente, o contribuinte que subsidia o Poder Judiciário).9 Ademais, é preciso lembrar que o acesso à direitos/garantias sociais impacta no orçamento, de modo que se deve exigir um comportamento responsável dos litigantes, evitando-se um exercício do direito de ação patológico e que é lesivo para a sociedade como um todo. Nesse contexto, a gratuidade judiciária deve representar uma garantia de ordem extraordinária e não ordinária, visto que, conforme será abordado no tópico seguinte, os honorários sucumbenciais servem como um obstáculo à litigância banalizada. 3. A condenação em honorários sucumbenciais em caso de não acolhimento integral do pedido de condenações por danos extrapatrimoniais Sob a égide do antigo CPC, o STJ editou, no ano de 2006, a súmula 326 que dispõe que: "na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca." Considerando que no antigo CPC não era necessário indicar expressamente o montante pretendido a título de indenização, por vezes, o valor da causa e o pedido estimado não guardavam similitude. Ocorre que, a partir do Novo CPC, nos termos do art. 292, V, o valor da causa deve corresponder ao valor pretendido. Como advogado atuante na defesa médica, não raras vezes sou surpreendido com pedidos de indenização por dano moral que oscilam entre R$30.000,00 e R$1.000.000,00 para supostos erros idênticos. Diante disso, criou-se uma interpretação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a súmula 326 do STJ não seria mais válida, na medida em que, ao fixar a pretensão financeira pretendida, o autor restringiria o seu pedido e, na eventualidade de não acatamento integral do pretendido, ter-se-ia uma sucumbência recíproca. Ocorre que a 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.837.386 - SP, julgado em 16/8/22, compreendeu unanimemente que a súmula continuava válida, pois a atuação do autor teria natureza meramente estimativa, ao passo que caberia ao Poder Judiciário definir, com competência exclusiva, o valor da pretensão reparatória e está ocorre com elevada carga de subjetividade. É importante considerar que, a despeito do entendimento apontado pela 4ª turma, o próprio STJ desde o início dos anos 2000 tem adotado o método bifásico10 de forma implícita e, a partir de 2011, passou a incorporar, expressamente, a previsão do uso do método bifásico para eliminar a elevada carga de subjetividade nas condenações por danos extrapatrimoniais.11 O método bifásico é caracterizado pelo estabelecimento de uma "pena" base a partir da análise dos casos análogos em determinada corte e a posterior majoração ou redução da pena em razão das agravantes e atenuantes próprias do caso concreto. Logo, a fase primária do método bifásico é objetiva, enquanto a segunda fase buscaria promover a justiça à luz das particularidades do caso concreto. Desta forma, o argumento posto de que há uma elevada carga de subjetividade não encontraria respaldo a partir do próprio entendimento do STJ.12 Paralelamente, aponta-se para a criação do "paradoxo do vencedor".13 Sobre o tema, Alexandre Gomes afirma que permitir a condenação por sucumbência recíproca poderia gerar, procedências de demanda em que o montante indenizatório fosse inferior ao dever de custear honorários sucumbenciais.14 Em sentido contrário, alguns autores apontam para a possibilidade de condenação aos honorários sucumbenciais quando o valor pretendido não for integralmente acolhido a partir de uma leitura do art. 292, V do CPC.15 Em posição intermediária Fernando Andreoni Vasconcellos defende a impossibilidade de não condenação aos honorários sucumbenciais nos casos em que, ainda que não acolhido in totum a pretensão, estes encontram-se devidamente motivados e em consonância com a jurisprudência majoritária ou quando não houver jurisprudência pacificada e estável sobre a matéria.16 A verdade é que os valores trazidos no atual Código de Processo exigem a colaboração de todos os envolvidos com a proposta de uma pacificação do conflito. A funcionalização do processo exige que as partes busquem pretensões reparatórias verossímeis e dialógicas com os precedentes judiciais e particularidades do caso; ou seja, situações que divirjam dos precedentes e do uso do método bifásico devem ser compreendidas como exercício abusivo do direito de ação. Desta forma, a manutenção da súmula representa uma desconsideração com o trabalho desenvolvido pelo advogado da parte adversa, na medida em que o trabalho - questionável até - desempenhado pelo advogado do autor seria remunerado através de honorários sucumbenciais, ao passo que o êxito do advogado do réu em providenciar argumentos jurídicos para reduzir, significativamente, as pretensões do autor seria reduzido a nada.17 Imaginemos um autor que ingressa com uma ação indenizatória por suposto erro médico e pedido de dano moral no montante de R$2.000.000,00 (dois milhões de reais) e a condenação seja de "apenas" R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Das duas uma: ou o advogado da parte autora não possui base técnica nenhuma para aplicar o método bifásico ou o advogado do réu desenvolveu uma argumentação espetacular para afastar quase que a integralidade da pretensão autoral.  Apesar da condenação ter sido apenas 2,5% do valor pretendido, apenas o advogado aventureiro terá direito aos honorários sucumbenciais. Como pontifica Timm: Em um país notoriamente assolado pelo problema da litigância excessiva, o instituto dos honorários sucumbenciais cria baliza fundamental à operacionalização de princípios como o direito à duração razoável do processo e da isonomia, ao exigir responsabilidade e ponderação dos que buscam a prestação jurisdicional - algo mais facilmente visível a partir do ferramental teórico da Análise Econômica do Direito;18 Logo, mostra-se imperiosa a superação da súmula 326 do STJ, por expressa previsão legal e também por uma necessidade de redução da litigiosidade abusiva, sob pena de se violar um dos preceitos basilares de não se remunerar a própria torpeza. 4. Conclusão O ajuizamento de ações objetivando a condenação de profissional de saúde por suposto erro exige responsabilidade. . Não podemos compactuar com o exercício abusivo do direito de ação em demandas que debatam responsabilidade extrapatrimonial ou com a deturpação de instrumentos processuais para legitimar finalidades indevidas. A responsabilidade civil e o processo civil precisam ser funcionalizados para coibir aventuras jurídicas e, ao mesmo tempo, garantir previsibilidade das decisões. A gratuidade judiciária não pode ser utilizada como subterfúgio para o exercício do direito de ação dissociado na realidade fática e jurídica. Ao se tornar a regra de acesso ao Judiciário, a gratuidade judiciária reduz os ônus do litigante aventureiro e lança o prejuízo para o réu e para a sociedade. No tocante à súmula 326 do STJ, mantido o entendimento de que os valores pretendidos a título de dano moral são meramente indicativos, o pedido de condenação por danos extrapatrimoniais pode ser utilizado como meio de pressão abusiva, na medida em que haverá uma inflação dos pedidos com consequente repercussão em custas recursais e honorários periciais sem que haja qualquer responsabilização do autor pela demanda. Se há uma crítica à litigiosidade excessiva, uma parcela significativa dessa responsabilidade é do próprio Poder Judiciário que não é apenas um figurante, mas verdadeiro coprotagonista - com os autores - de demandas infundadas, com valores astronômicos e sob o pálio da justiça gratuita e/ou Súmula 326 do STJ. ---------- 1 Nomenclatura que será adotada por ser o padrão fixado pelo CNJ para fins de elaboração do relatório do Justiça em Números, porém, por vezes, o suposto erro médico não se trata de um erro do profissional de medicina, mas de um outro profissional de saúde ou mesmo de um problema multifatorial que não é de responsabilidade do médico. 2 BRASIL. CNJ registra quase 35 mil novos processos por erro médico no país. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2022. 3 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022. 4 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direito dos pacientes e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 21 5 COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 60 6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022. 7 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. P. 58 8 PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise económica da responsabilidade civil médica. Lisboa: AAFDL Editora, 2017. 9 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019. 10 Para fins de melhor compreensão do processo de quantificação do dano extrapatrimonial, sugerimos a leitura de MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 11 REsp 959.780/ES, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 26/4/11, DJe de 6/5/11 12 Apesar da solução apontada, é importante registrar que o próprio STJ é oscilante em relação a uma possível harmonização dos valores, conforme aponta Luciana Berlini - BERLINI, Luciana Fernandes. O quantum indenizatório nas relações médico-pacientes. In: In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade Civil e Medicina. 2 ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p.50. 13 Em consonância com o argumento de que a sucumbência está adstrita ao pedido e não ao valor pretendido, vide FREDIANI, Yone. Honorários advocatícios e periciais - sucumbência, custas e justiça gratuita e a lei 13.467/17. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 209, p.21-28, jul/2019. 14 GOMES, Alexandre G. Pedido genérico e sucumbência recíproca nas ações indenizatórias por danos morais. Revista de Processo, São Paulo, v. 317, p. 17-31, jul/2021. 15 Nesse sentido: CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022; 16 VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. A Súmula 326 do STJ e os seus necessários temperamentos à luz do CPC/15. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v. 20, p. 217-234, nov/2020. 17 CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022. 18 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019.
Hígia se formara há pouco mais de 2 anos na faculdade de medicina e, enquanto se preparava para disputar uma vaga de residência em um dos hospitais mais prestigiados na sua área de pesquisa, a medicina de emergência, foi contratada como socorrista por uma empresa que administrava a concessão de uma das rodovias mais perigosas do país. Naquela tarde de sábado tudo parecia correr bem, sem qualquer acionamento para atender traumas mais graves. Ela havia feito alguns curativos em motoristas alcoolizados e também atendeu a uma senhora que, às margens da rodovia, fora atacada por uma vaca que perambulava solta, mas, em geral, nada demais. Até que uma ligação a retirou dos seus pensamentos. Havia ocorrido um capotamento no km 60 e, ao que indicava a ligação de um motorista que havia passado pelo local, um corpo fora projetado para fora do veículo. Hígia não tardou em acionar a sua equipe e, juntos, saíram em disparada até o local do evento. Lá chegando, constataram que realmente o veículo não logrou fazer uma curva, em função aparentemente da alta velocidade, capotara algumas vezes e uma pessoa fora projetada pelo para-brisas, encontrando-se desacordada com o corpo ao solo. Enquanto saía rapidamente da ambulância, chegou a refletir sobre o capotamento, que ocorrera em um local de curva suave, não havendo marcas de freadas na pista; chegou, ainda, a pensar que o corpo somente poderia ter sido projetado pelo para-brisas em razão da não utilização do cinto de segurança. Tudo era muito estranho, mas não havia tempo a perder. Ao se aproximar da pessoa, uma mulher, notou que ainda respirava com bastante dificuldade, mas havia um fio de vida em que se apegava. Sem tardar, começou a imobilizá-la e a realizar os primeiros socorros quando, de repente, notou estar evoluindo para uma parada cardiorrespiratória. O coração da vítima havia começado a falhar, até que parou. A médica gritou a alguém da sua equipe para que trouxesse o desfibrilador e começou a despir a mulher, da cintura para cima, para poder alocar o aparelho. Foi então que reparou, tatuada no tórax, a seguinte frase: "Se o meu coração parar, não quero ser reanimada". Ela se desesperou, porque se recordou da aula sobre testamento vital que tivera na faculdade e que, em que pese sem previsão em lei formal, a opção da paciente estava protegida pela Resolução n°. 1.955/2012 do CFM que, segundo os seus professores, havia até mesmo sido declarada válida ao ser questionada judicialmente1. A Resolução, de acordo com o que se recordava, define diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1°). Seria o caso de respeitar a vontade da paciente naquele momento e não tentar com que o seu coração voltasse a bater? Não! Não, ela não podia fazer isso, porque havia treinado a ajudar as pessoas e não podia deixar que uma tatuagem feita como testamento vital superasse o seu juramento de Hipócrates2. Ademais, a tatuagem podia ter sido feita em alguma situação prévia, em que a mulher não estivesse raciocinando com clareza e diante de circunstâncias não atuais da sua vida. E, além disso, também se lembrava que o artigo 2° da mencionada Resolução conferia base normativa à sua atuação, na medida em que previa que nas decisões sobre "cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade." Circunstâncias. Sim, as circunstâncias. Se obtivesse alguma prova de que aquela tatuagem fosse dúbia, poderia tentar salvar a vida da mulher. Então, enquanto posicionava o desfibrilador, pediu à enfermeira que buscasse algo entre os objetos da mulher que indicasse que queria continuar a viver. A enfermeira encontrou uma carteira atirada ao asfalto, com fotos recentes da mulher e de duas crianças pequenas, de cerca de 3 a 4 anos de idade, que pareciam ser filhas da paciente; ao lado das fotos, estava um bilhete, com uma assinatura compatível com a da identidade da acidentada, que assim dizia: "Se você tem dúvidas se deve tentar me ressuscitar se o meu coração parar, reafirmo: não quero ser ressuscitada." Hígia entrou em pânico. Já não sabia o que fazer. O bilhete, a tatuagem, a ausência de marcas de freios na pista em curva suave, em que o capotamento não deveria ter ocorrido, e a projeção do corpo indicando a ausência de cinto de segurança pareciam elementos indiciários a comprovar, ainda que sumariamente, que realmente a conduta da mulher havia sido pensada, refletida, e que efetivamente não queria ser salva. Em instantes, enquanto já se preparava para administrar o choque, a médica se recordou das aulas na disciplina de noções jurídicas que havia tido e, entre elas, a chamada corrente libertária, sustentando, de acordo com o professor, o direito à posse de si mesmo, ou seja, que o Estado deve garantir, minimamente: (a) a ausência de paternalismo, isto é, que não pode irrogar para si a tomada de decisões afetas à individualidade do ser humano; e (b) a ausência de atos de conteúdo moral, significando que os atos estatais não devem atuar em terreno moral e, por mais incompreensível que seja a decisão do ser humano, deve ser respeitada3. "Tudo isso é importante, mas a vida é um bem maior a ser protegido" - foi o que pensou enquanto aplicava o primeiro choque. Nada. Nenhuma resposta. O coração continuava parado. Enquanto se preparava para dar o segundo choque, recordou-se, igualmente, da corrente positivista, sustentando a importância da obediência ao texto normativo, considerando que a sociedade define o que é importante para ela própria e que o legislador racional havia de materializá-lo em um documento normativo genérico e abstrato que estabelecesse, antecipadamente, padrões de condutas capazes de gerar estabilidade: ou seja, todos deveriam saber o que esperar uns dos outros, porque existem leis regulando comportamentos4. Deveria, então, observar o contido na resolução n°. 1.955/2012 do CFM, porque era um texto normativo? Mais um choque. Mais um questionamento: bem, mas se fosse assim, o testamento vital não deveria ter sido objeto de lei formal votada no Parlamento? Não deveria a sociedade decidir a viabilidade da negativa de tratamento ao paciente que não quer recebê-lo? Poderia o CFM fazê-lo por si só? Além disso, a expressão "diretivas antecipadas de vontade", prevista no artigo 2° do ato normativo, que deveria ser observada pelo médico se apresentava um tanto vaga, algo que dependia da interpretação moral a ser realizada no momento do atendimento. A vagueza parecia indicar a necessidade do preenchimento moral da cláusula jurídica, o que poderia lhe dar base para entender que, a despeito das aparentes provas de que não queria ser salva, tais não passavam de indícios não concludentes e que não poderiam sequer ser considerados quando em face ao direito à vida, de estatura muito mais ampla5. Essas discussões outrora travadas em sala de aula nada importavam naquele momento, a não ser salvar a paciente. Mais um choque e agora um sinal. Parecia estar retornando o coração. Hígia prendeu a respiração, mas o coração parecia não estar disposto a voltar. Mais uma parada. Percebendo algo de desesperança na atuação da médica, a enfermeira quis animá-la e fortalecê-la, dizendo: - Vamos Doutora, os filhos dessa mulher contam com a senhora. A senhora é vocacionada, tem coragem, é virtuosa e tem caráter. Não deixe essa mulher morrer! O que será dos filhos dela? Viverão à margem da sociedade, sem amparo; irão para as drogas sem mãe. Ajude eles!6 Imbuída desse pensamento, renovou as forças e, já tendo tomado uma decisão quanto ao dilema pelo qual passara, estava resolvida a fazer aquele coração voltar a bater, de qualquer jeito. Ela, então, administrou mais algumas medicações e novamente aplicou choques, esperando por uma resposta, talvez até divina, naquele momento. Se existia uma lei eterna e imutável a ser obedecida, era a de que a vida deveria ser respeitada e que os atos de bondade devem gerar respostas positivas. Deus haveria de prover a renovação da vida àquela mulher; se não por ela, ao menos pelos filhos7. E, por outro lado, ela era virtuosa em sua profissão. Dedicara-se com afinco para não perder qualquer paciente que por ela passou. As virtudes que cultivava desde o berço a impediam de pensar ou agir de outra maneira senão a de tentar, com todas as forças, salvar aquela mulher e era isso o que faria, sem medir esforços8. Entre os pensamentos e a ação, percebeu um leve sinal de retorno do batimento cardíaco. Mais medicamentos e o coração pareceu responder. A equipe inteira não acreditava e, para não perder aquela ponta de esperança, agiram rapidamente, imobilizando a mulher, administrando mais medicamentos e chamando auxílio imediato por helicóptero. O trabalho estava feito, a equipe médica e a vida haviam sido vitoriosas. A paciente foi estabilizada, levada à ambulância e em seguida ao hospital mais próximo, onde se recuperou totalmente, o que saberia depois a médica, em função do recebimento de uma citação em uma ação indenizatória proposta pela mulher, em que pedia reparação por não ter o seu direito de escolha previsto na Resolução do CFM respeitado9. __________ *O presente artigo trabalhará o instituto do testamento vital, previsto na Resolução n°. 1.955/2012 do CFM, que, de acordo com a epigrafe, "dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes." O objetivo do ato é, consoante artigo 1°: "Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no   momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.". O ato normativo revela, como não se pode deixar de perceber, potencial para discussões jurídicas diversas, variando desde a sua constitucionalidade, já analisada e adiante descrita no artigo, até os limites da sua aplicação em casos limites, em que o médico deverá avaliar a vontade do paciente em contraposição aos seus deveres éticos e legais. O texto contará, precisamente, a história de uma médica que lida com essa questão em uma situação de emergência, tendo que tomar uma decisão crucial para o salvamento ou não da paciente. 1 Aqui estamos diante da corrente positivista, que será adiante delineada quanto aos seus princípios. A sua primeira manifestação na história advém da existência de um texto normativo, a Resolução CFM n°. 1.955/2012, regulando o chamado "Testamento vital". A resolução de fato foi questionada judicialmente, sendo julgado improcedente o pedido. As informações podem ser obtidas aqui. Acesso em 07 set. de 2022. 2 Aqui se verifica um conflito bem marcante entre o positivismo e a existência de pautas valorativas. Não há previsão legal para o Juramento de Hipócrates (a não ser em seus princípios fundamentais inseridos no Código de Ética Médica, lei em sentido material), mas a axiologia que deve provém parece indicar que as leis podem, eventualmente, ceder passo a valores tidos como superiores e universais. Essa postulação vem a ser a base para a teoria pós-positivista, que, ao sustentar a tese da correção, reclama a existência de princípios fundantes do próprio Estado, que sequer se justifica enquanto formação legítima se inobservados. Vide, a propósito: ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011. RADBRUCH, Gustav. Tres estudios de Filosofía del Derecho y una arenga para los jóvenes juristas. Traducción de José Luis Guzmán Dalbora. Montevideo/Buenos Aires: Júlio César Faira Editor, 2013. 3 Inexiste uma corrente libertária, mas, em realidade, correntes com pensamento libertário, cuja formatação varia desde a anarquia radical até a proximidade com as teorias liberal-igualitárias. Em geral, afora parte aqueles princípios já mencionados ao decorrer do texto, as características essenciais são: (a) negação da autoridade exercida por órgãos especializados, que podem impor sanções físicas, reconhecendo apenas as sanções moral e econômica, esta última como decorrência do não cumprimento das obrigações; (b) ordem jurídica se baseia na reciprocidade; ou seja, o interesse que cada um tem em cumprir as suas obrigações pelas vantagens que obtém das obrigações correspondentes. Não há hierarquia entre os direitos; (c) negação, na vertente anarquista, da autoridade organizada, atribuída a órgãos especiais, com poderes com força repressiva; (d) preconizam uma sociedade livre, organizada pelo mútuo acordo entre os indivíduos. Estado garantiria apenas a propriedade privada, o cumprimento de contratos e seria responsável pela segurança; (e) a posse (ou propriedade) de si mesmo. Vide, entre outros autores: MAZILLI, Marcelo. ESTADO? NÃO, OBRIGADO! O manual Libertário, ou o ABC do antiestatismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. OTSUKA, Michael. Libertarianism without inequality. New York: Oxford University Press, 2003. STIRNER, Max. O único e sua propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa: Editores Refractários, 2004. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 4 O positivismo jurídico, fortemente influenciado pela lei científica da causa e efeito, propugna por estabilidade nos comportamentos. Por isso para essa corrente é tão importante a formatação legal, uma vez que, inserindo o ser e o dever-se na regra (Se F, então deve-ser P, em que F representa o fato bruto e deve-ser P o instituto jurídico gerado pela conversão do fato ao direito), logra-se obter a previsão de comportamentos sociais, seja para quem cumpre, seja para quem descumpre a linguagem prescritora do ordenamento jurídico. Os princípios fundamentais do positivismo metodológico são os seguintes: (a) tese das fontes sociais, desmembrada em (a.1) princípio do legislador racional - a sociedade cria o direito para ela própria e de acordo com a qualificação jurídica que entende apropriada para as circunstâncias fáticas; e o faz por intermédio do legislador, representante da sociedade, que visualiza os fatos sob diversos pontos de vista (econômico, político, social etc) e, despido de interesses próprios, factuais, ou de quaisquer ordens, cria normas que regerão comportamentos; (a.2) as cláusulas de fechamento, aplicáveis quando não existirem regras prevendo determinados comportamentos, o que evita considerar que o positivismo jurídico não seria um sistema completo e fechado; (b) a separação conceitual entre Direito e Moral. Acerca dessa corrente: SCARPELLI, Uberto. ¿Qué es el positivismo jurídico? Traducción de Jean Hennequin. México: editorial Cajica, 2001, p. 81-99. SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y Positivismo. México: Distribuciones Fontamara S.a., 1999. 5 A textura aberta identificada pela personagem principal nos remete à variação do positivismo denominada includente, ou inclusiva, de matriz Hartiana, em que o Direito deve ser aplicado, mas a moral invocada sempre e quando forem encontradas expressões jurídicas sem significado apriorístico, ou seja, que demandem a análise do caso concreto para serem compreendidas. Ex.: justa causa, boa-fé etc. HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. Excelente obra acerca das variações inclusivas e exclusivas: ETCHEVERRY, Juan Bautista. El debate sobre el positivismo jurídico incluyente. Un estado de la cuestión. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006. 6 A exortação da enfermeira, invocando virtudes cívicas e as comparando com a função desempenhada pela médica no Estado (lato sensu, independentemente da natureza do seu empregador), remonta à teoria Republicana, que tem como traços centrais justamente (a) a atuação virtuosa e calcada no bem-comum; (b) a substituição do eu atomista, pela ideia de cidadão; (c) a importância da República no atuar do cidadão, que poderá até mesmo ceder seus direitos individuais em prol do bem-comum; (d) a possibilidade de intromissão do Estado no ambiente particular se e quando necessário à preservação dos fins virtuosos da República. A esse respeito: BOBBIO, Norberto; VIROLI, Maurizio. The Idea of the Republic. Translated by Allan Cameron. Cambridge: Polity Press, 2003. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 187-195. 7 Aqui se verifica, no pensamento da personagem principal, a assimilação de algumas ideias jusnaturalistas, a partir das quais existe uma lei eterna e imutável e que deve ser seguida e obedecida simplesmente pela sua origem, em geral Divina (com variações, nesse ponto). Suas características gerais (com variações, a depender da origem teórica) são: (a) existência do Direito independentemente da vontade humana e anterior ao próprio homem; (b) leis divinas, eternas e imutáveis com validade superior ao próprio homem; (c) O Direito é algo natural e tem como pressupostos os valores do ser humano e a busca por Justiça. FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. São Leopoldo: Editora da Universidade Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, 2007. 8 Nesse ponto encontramos a teoria das virtudes, de matriz Aristotélica, cujas características fundamentais são: (a) a ação moralmente boa e virtuosa; (b) a virtude enquanto meio-termo das condutas adotadas; (c) a virtude da Justiça enquanto comportamento ético na vida social. HOBUSS, João (org). Ética das Virtudes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 9 Ao final do texto é apresentada, com a ação indenizatória proposta pela paciente, a possível consequência civil para a inobservância do instituto conhecido como "wrongful prolongation of life", que se insere no contexto da autonomia do paciente para recusar tratamentos médicos como, por exemplo (em numerus apertus), manutenção da vida, suporte ventilatório, a ressuscitação cardiopulmonar (RCP) e a nutrição e hidratação artificiais. Acerca do tema: DADALTO, Luciana; GONSALVES, Nathalia Recchiuti. Wrongful prolongation of life: um novo dano para um novo paradigma de proteção da autonomia. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO CIVIL - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 25, p. 271-282, jul./set. 2020. A solução da contenda passaria necessariamente pela leitura do Direito vigente, em contraste com a teoria da Justiça adotada, de modo que a só existência da Resolução mencionada ao decorrer do texto não será suficiente e poderá variar conforme a leitura do material jurídico que o magistrado realize por oportunidade do exame do caso.
Para início da análise, é importante trazer alguns esclarecimentos sobre a violência obstétrica e as suas nuances. Dentre as várias conceituações de violência obstétrica na doutrina e na legislação - nacional e estrangeira -, merece destaque a definição da lei venezuelana, considerando ter sido o primeiro diploma a definir o instituto como uma das 19 formas elencadas de violência contra a mulher. A conduta passa a ser definida pela Ley Organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, no ano de 2007, como sendo a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde, que se expressa por meio de tratamento desumanizador, de abuso de medicalização e da patologização dos processos naturais. Isso acaba por resultar em perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. Apesar de hoje ser muito claro que a violência pode ser perpetrada por outros agentes que não os médicos ginecologistas e obstetras, a polêmica acerca do uso do termo "violência obstétrica" permanece atual, sendo considerada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Febrasgo como inadequada. Em meados de 2022, a Febrasgo considerou a expressão preconceituosa, seguindo a linha do Parecer 32 do CFM que entendeu se tratar de expressão "[...] impregnada de uma agressividade que beira a histeria". Emblemática é a acusação de que as mulheres são histéricas ao acusar um sistema que, como em diversos outros momentos históricos e por diferentes meios, controla os corpos femininos. Ao término de um século de freudismo, a histeria continua intimamente ligada à feminilidade, e as diversas tentativas de controle dessa corporeidade, conceitual ou não, por meio de acusações, muitas vezes, de suposto desequilíbrio e de falta de capacidade para tomar decisões1. Justamente nesse ponto, reside uma grande premissa dos estudos acerca da violência obstétrica: a autonomia. A histeria foi uma forma de manifestação da submissão à qual o sexo feminino estava exposto e foi desaparecendo a partir da emancipação das mulheres e a constante busca por autonomia2, seja no âmbito social, econômico, intelectual ou, como é o caso do presente estudo, no tocante à capacidade de decidir sobre o próprio corpo. Seguindo a linha de Bourdieu, no que se referente à violência simbólica, a visão androcêntrica - centrada no masculino - impôs-se como neutra, ratificando a dominação masculina sobre a qual se alicerça o patriarcado3. Assim, em diversos seguimentos, a figura masculina atua como dominante, seja em termos numéricos, seja em termos de acesso aos instrumentos de controle e poder. Por isso, faz-se importante uma construção baseada nos estudos da chamada "medicina da mulher" provada por meio de dados estatísticos e de fundamentação teórica o fardo do corpo sobre as existências femininas4. Isso transita em diversos campos, dentre os quais, destacam-se questões de saúde mental, de saúde pública, dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo os direitos de gestar e de parir de forma digna. Dito isso, resta traçar um paralelo desse panorama com os estudos da Bioética Principialista5. Necessário compreender que a proposta principialista como uma teoria Bioética não apenas remonta às origens da própria disciplina como exerce grande influência nos códigos de ética das diferentes profissões na área da saúde até hoje. Apesar de ser alvo de críticas, é inegável que a proposta de Beauchamp e Childress de uma teoria ética, baseada em princípios morais, representa um grande passo para o estudo da bioética6. Outras correntes baseadas nesses princípios surgiram posteriormente em decorrência de críticas à vertente principialista clássica. Com o passar do tempo, outros princípios se somaram aos clássicos princípios da Bioética de Beauchamp e Childress, merecendo destaque (e leitura posterior)  a abrangência dos valores contidos na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pela UNESCO7, a qual amplia o rol dos quatro princípios que guiam a Bioética Principialista clássica, quais sejam: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Apesar das diversas significações de autonomia, pode-se estabelecer um ponto em comum entre praticamente todas elas, elo esse que se refere às duas condições essenciais para pensar em autonomia, quais sejam: a liberdade - independência de influências controladoras -; e a qualidade de agente - capacidade de agir intencionalmente. Mais uma vez, faz-se necessário considerar a diversidade de valores incorporados ao termo autonomia, o qual denota diversos outros significados, que não convêm serem aqui explicitados de forma mais acentuada, tendo em vista o recorte adotado. Segundo a obra de Beauchamp e Childress, o termo autonomia adquire sentidos diversos, tais como: autogoverno, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade da vontade, seleção do próprio comportamento e pertencimento a si mesmo8. Pertencer a si própria no âmbito do gestar e do parir exige necessariamente dois fatores importantes: um deles seria a informação, necessariamente atrelada a uma decisão autônoma, na medida em que decidir exige instrução e compreensão acerca das causas e das consequências de um ato; e o segundo elemento seria a medicina baseada em evidências. Faz-se aqui um paralelo entre a medicina baseada em evidências e o princípio da beneficência; este refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros, configurando-se como uma obrigação de ajudar outras pessoas, promovendo seus interesses legítimos e importantes9, o qual deve ser assegurado em consonância com o princípio da autonomia, sob pena de configurar-se uma situação paternalista. Essa, por sua vez, incide diretamente sobre os corpos femininos, ocultando informação e desrespeitando a autonomia da paciente em prol de uma suposta beneficência não lastreada em evidências, que, por vezes, configura-se como maleficência, a qual será analisada à luz da não-maleficência. O princípio da não-maleficência se traduz na máxima de não causar o mal ao outro intencionalmente, assemelhando-se, dessa maneira, ao princípio da beneficência, que impõe prestações positivas no sentido de assegurar que o indivíduo não venha a sofrer danos. "[...] Determina o não infringir qualquer mal intencionalmente dele decorre a regra de fidelidade, entendida como a obrigatoriedade de manter as promessas e, o limite [...] de procurar sempre o bem da pessoa"10. Nesse sentido, importante é a análise do que Daniel Serrão chama de Aconselhamento Ético, o qual corresponde à orientação para a maximização do acerto nas decisões do outro, protegendo-os dos possíveis riscos e perigos ou erros e maximizando a sua capacidade11. É recomendado, pois, no âmbito da obstetrícia, que o profissional de saúde exerça o aconselhamento de forma muito habilidosa sob pena de converter-se em uma imposição, transformando-se, de um conselho elaborado, a propostas que devem ser acatadas, o que, por vezes, incide nas vias de parto ou na tolerância de medidas que se caracterizam violentas. Importa esclarecer que a violência obstétrica, nitidamente associada à não-maleficência, pode ser ilustrada, por exemplo, pelos protocolos e doutrinas atualizadas no âmbito médico, os quais desaconselham de forma expressa uma série de medidas populares no âmbito obstétrico. Nesse sentido, em 1996, a OMS desenvolveu uma classificação das práticas comuns na condução do parto normal, orientando para o que deve e o que não deve ser feito nesse procedimento, elencando algumas práticas claramente prejudiciais ou ineficazes. Aconselhou a OMS que determinadas condutas, embora habituais, fossem eliminadas, tais como: infusão intravenosa de rotina no trabalho de parto: posição de litotomia (mulher deitada) corriqueiramente adotada; esforço de puxo prolongado e dirigido; esforço de puxo prolongado e dirigido; e exames vaginais repetidos ou frequentes. Assim, em sede de compreensão do cenário coletivo no qual se insere a violência obstétrica, marcado por cirurgias cesarianas eletivas que chegam a 88% dos nascimentos, enquanto, na rede pública nacional, esse índice representa 46%, ambos os cenários com índices superiores ao recomendado pela OMS12. Trata-se, pois, de um cenário marcado por intervenções médicas, medicamentosas, não esclarecidas e, por vezes, não conscientes dos riscos atrelados à decisão, mesmo nas hipóteses nas quais a mulher pode exercê-la no tocante ao parto. A informação é elemento necessário para assegurar uma experiência digna e percebida como positiva, podendo decidir de maneira esclarecida e consciente, o que, por vezes, não lhes é assegurado no Brasil, seja pela ausência de recursos técnicos e hospitalares, seja pela inacessibilidade de informações acerca de direitos reprodutivos e das diretrizes brasileiras acerca do parto seguro para além do conhecimento técnico da doutrina mais recente e baseada em evidências, analisada a partir da aplicação do princípio da justiça. A Justiça se traduz na obra de Beauchamp e Childress como um princípio relacionado à erradicação de formas de exclusão social, negando qualquer forma de discriminação baseadas em características dos sujeitos, exemplificando na própria obra uma possível distinção de gênero como sendo uma violação ao dito princípio. Conduz a obra para a sugestão de políticas públicas que levem em consideração raça e gênero em prol de uma assistência digna, justa e igualitária. Para além da desigualdade estruturada pelo patriarcado e os julgamentos e responsabilidades atribuídas à mulher no que se refere à condução da sua gestação e parto, muitas vezes, estão as gestantes e as parturientes desassistidas e desamparadas em diversos aspectos. Algumas mulheres abandonadas por parceiro íntimo, por equipe técnica e sem acesso à informação atualizada e baseada em evidências que possa fazê-la compreender e subsidiar a sua decisão acerca da condução da gestação sem relegá-la ao médico ou ao profissional de saúde que a "acompanha" (ainda que de forma pontual). Isso porque não se pode falar de violência obstétrica, de princípios bioéticos, ou de diversos outros temas existenciais relacionados ao Biodireito, sem mencionar as questões de gênero, de raça e de todas as adversidades que delas decorrem. São muitas as mulheres atravessadas pelas mais diferentes desigualdades, vulnerabilidades e irregular acesso a instrumentos de poder e de informação, mas todas elas estão imersas em um cenário sistêmico de institucionalização do parto que coloca esse momento como um campo de legitimação de intervenções que "desnaturalizam" o ato de gerar uma vida. Gestar e parir são processos naturais, por vezes, cercados de mitos, mistérios e desatualizações que interferem diretamente nos valores de autonomia e beneficência, muitas vezes, autorizando uma conduta que conduz a uma prática maledicente. A não-maleficência caracteriza-se por condutas desaconselhadas e sem evidências científicas, as quais geram (ou estão propensas a gerar) danos e agravos em saúde física e/ou mental. Já, no tocante à Justiça, é preocupante (continuar a) observar um cenário de preponderância de uma cultura médica intervencionista em detrimento da observância de aspectos físicos, emocionais, econômicos e sociais que atuam como fatores impeditivos ao estabelecimento de um processo que considere a autonomia e a dignidade das mulheres13. ---------- 1 MICHELS, A. Histeria e feminilidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 4, n. 1 pp. 33-51, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982001000100003. 2 MURIBECA, M. M. M. Da problemática sedução da histeria à enigmática sedução do feminino em Freud. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte, n. 39, p. 67-79, jul. 2013. Disponível aqui. Acesso em:  28 jul.  2022. 3 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helene Kühner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. 4 MARTINS, A. P. V. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. 5 BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Princípios de Ética Médica. São Paulo: Loyola, 2002. 6 5 DEJEANNE, S. Os fundamentos da bioética e a teoria principialista. Thaumazein - Revista on-line de filosofia, Santa Maria, RS, v. 4, n. 7, p. 32-45, jul. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2014. p. 34 7 Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução para o português: Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, 2005. 8 BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002. op cit. 9 DANTAS, I. Constituição e bioética (breves e curtas notas). In: SARLET, I. W; LEITE, G. S. (orgs.). Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. 10 NEVES, Maria do Céu Patrão; OSSWALD, Walter. Bioética Simples. Lisboa: Verbo, 2008, p. 85/86. 11 SERRÃO, Daniel. Aconselhamento Ético. In: ASCENÇÃO, José de Oliveira (org.). Estudos de Direito da Bioética, v. III. Coimbra: Almedina, 2009. 12 Leal, Maria do Carmo e Gama, Silvana Granado Nogueira daNascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2014, v. 30, n. Suppl 1 [Acessado 28 Agosto 2022] , pp. S5. Disponível aqui. 13 GRIBOSKI, R. A.; GUILHEM, D. Mulheres e profissionais de saúde: o imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 15, n. 1, mar. 2006. Disponível aqui. Acesso em: 27 nov. 2009.
No exercício do planejamento familiar e do projeto parental, as pessoas ou casais podem utilizar-se das técnicas de reprodução assistida (RA) e, nesse contexto, valer-se do aconselhamento genético em alguma de suas fases (pré-conceptivo, pré-implantatório, pré-natal, pós-natal). Falhas, omissões, erros nesse processo podem gerar responsabilidade civil dos profissionais e instituições envolvidas. Daí surgem as wrongful actions, as ações que buscam a responsabilidade civil médica em razão dos danos materiais e existenciais causados pelas falhas no aconselhamento genético junto à RA. Diante disso, objetiva-se apresentar suscintamente as nuances do aconselhamento genético e das wrongful actions para, ao final, demonstrar sua possibilidade de aplicação e sua aplicabilidade de fato no Brasil junto às demandas de responsabilidade civil médica. Reprodução Assistida  Não há norma jurídica que regulamente a RA no Brasil, cabendo ao Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio de normas deontológicas, a regulamentação, o que, atualmente, é feito pela Resolução CFM n.º 2.294/20211-2. São vários os métodos e técnicas de RA3, incluindo o uso de métodos contraceptivos (pílulas, ligadura de trompas e vasectomia, por exemplo) e, a mais falada e conhecida, a FIV - fertilização in vitro, onde ocorre a promoção do encontro do espermatozoide com o óvulo em laboratório. Logo, a RA não é um processo apenas ativo que busca a promoção da procriação. Na perspectiva dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, seu intuito, é, se for o desejo junto ao projeto parental no exercício do planejamento familiar, evitá-la. É nesse contexto que se pode buscar o aconselhamento genético.                Aconselhamento genético O aconselhamento genético é um processo4 de atos médicos, junto à medicina preditiva e preventiva, por meio do qual é possível averiguar doenças ou deficiências genéticas, possibilitando a advertência acerca de suas consequências, da probabilidade de o embrião ou do feto (nascituro) apresentá-las, bem como dos meios para evitá-las, melhorá-las ou minorá-las. A avaliação das questões genéticas (doença ou deficiência), em qualquer caso, deve levar em conta que seu resultado prático depende da combinação de fatores genéticos e socioambientais, em especial quando se tratar de deficiência, considerando o conceito biopsicossocial e de avaliação multidisciplinar previsto no art. 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, como é conhecida a lei 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão). Na prática da RA, o/a paciente deve ser informado/a da existência e da possibilidade de realização do aconselhamento genético, cabendo a ele/ela/s a manifestação livre e esclarecida realizá-lo ou não. Como um processo, o aconselhamento genético é composto de várias etapas ou fases que podem ser assim compiladas, conforme os ensinamentos de Carlos María Romeo Casabona5 e de Aitziber Emaldi-Cirión6: 1) o/a médico/a, junto à relação médico/a-paciente e ao seu direito/dever de informar, explica ao/à paciente sobre a possibilidade de se realizar exames preditivos, cabendo a este, de forma livre e esclarecida, consentir ou não com a realização dos exames; 2) o/a paciente é submetido aos exames genéticos pertinentes, após seu prévio consentimento livre e esclarecido; 3) ocorre o aconselhamento genético propriamente dito, eis que o/a médico/a poderá realizar o diagnóstico genético do/a paciente por meio da interpretação e valoração das provas realizadas, com a detecção de possíveis doenças, deficiências, suas causas, possibilidade de transmissão à descendência etc., concluindo acerca do procedimento indicado ao/à paciente para evitar a transmissão à descendência; e tratar, melhorar ou minorar eventual questão genética; 4) devidamente esclarecido/a sobre o resultado do diagnóstico e dos procedimentos existentes, o/a paciente consentirá de forma livre e esclarecida acerca de qual/quais procedimento/s médico/s será/ão adotado/s, podendo, inclusive, optar pela não realização de nenhum deles; e 5) execução do ato médico (terapia ou edição gênica7). A depender do momento em que o processo de aconselhamento genético ocorre fala-se em suas espécies: pré-conceptivo, pré-implantatório, pré-natal e pós-natal. Dos três primeiros é que se originam as wrongful actions. O aconselhamento genético pré-conceptivo realiza-se antes da concepção (da união dos gametas masculino e feminino - espermatozoide e óvulo), in vitro ou in vivo. É realizado com o objetivo de verificar possível transmissão de enfermidades ou deficiências genéticas, hereditárias ou cromossômicas8 à descendência. O diagnóstico médico no aconselhamento genético pré-conceptivo pode oferecer ao/à paciente as seguintes alternativas9: 1) se não for identificada qualquer questão genética: a concepção e, portanto, a gravidez; 2) se for identificada alguma questão genética e a possibilidade de sua transmissão à descendência: a) que seja utilizada a FIV na RA e o exame e seleção terapêutica de embriões, b) que seja realizada a esterilização ou o uso de métodos contraceptivos para se evitar a gravidez ou c) dentro do exercício da autonomia junto ao planejamento familiar, a continuação dos métodos para concepção e gravidez, devidamente cientificados os/as pacientes de que a descendência poderá carregar as doenças e deficiências genéticas identificadas. O aconselhamento genético pré-implantatório é realizado junto ao embrião in vitro decorrente da FIV, antes de sua da transferência ao útero da mulher. Identificadas questões genéticas, é possível a realização da seleção terapêutica de embriões, o que é permitido no item VI.110 da Resolução CFM 2.294/2021; a realização de terapias gênicas; não implantar o embrião; a implantação do embrião e, gerando a gravidez, a realização de aconselhamento genético pré-natal; e/ou a seleção de sexo do embrião por questões terapêuticas. Se não for identificada qualquer questão genética, a indicação médica será pela implantação e consequente gravidez. O aconselhamento genético pré-natal é realizado junto ao nascituro ou feto, decorrente de gravidez oriunda ou não das técnicas da FIV. As provas são realizadas por meio de "técnicas não invasivas (ecografia) e/ou técnicas invasivas (amniocentese, biópsia dos velos coriais ou velocentese, fetos-copia, funiculocentese, remoção de uma ou mais células do blastocito etc.)."11 Diante do diagnóstico no aconselhamento genético pré-natal, o/a médico/a poderá indicar ao/à paciente as seguintes alternativas: se não for identificada qualquer questão genética, doença ou deficiência: continuidade da gravidez; se for identificada alguma questão genética, doença ou deficiência: interrupção terapêutica da gravidez, caso o ordenamento jurídico assim permita; ou proceder a uma terapia gênica fetal. As eventuais falhas (erros) ocorridas nas espécies de aconselhamento genético junto à RA é que são fundamento para o nascedouro das wrongful actions que têm consequências na responsabilidade civil. Wrongful actions As wrongful actions12são demandas judiciais com pedido de responsabilização civil de médicos/as, de hospitais, de clínicas e dos/as genitores/as pela concepção, pela gravidez, pelo nascimento e pela vida indevidos. A ação por wrongful conception decorre de um aconselhamento genético pré-conceptivo ou pré-implantatório com falha ou omissão nas provas e/ou em um resultado falso negativo, ensejando um diagnóstico também falho e, assim, uma concepção e gravidez indesejada. Por isso também é denominada de wrongful pregnancy. Pode ser fundamentada, também, na falha decorrente da indicação ou da aplicação dos métodos contraceptivos. O pedido é de indenização material decorrente das despesas com o nascimento e a criação do filho/a e a compensação aos danos existenciais dos/as pacientes. A ação por wrongful birth fundamenta-se nas falhas ou omissões no aconselhamento genético pré-natal, que não proporcionaram aos/às genitores uma série de provas e o diagnóstico; e/ou as provas geraram resultados falsos negativos; e/ou não foi detectado ou não comunicado a eles/as sobre a questão genética presente no nascituro a tempo de que se pudesse buscar a interrupção terapêutica da gravidez13, nos termos da lei, ferindo a autonomia dos genitores. O pedido é de indenização pelos danos materiais decorrentes dos custos de criação de um/a filho/a e pelos danos existenciais oriundo da gravidez e do nascimento, que é indesejado. A ação por wrongful life é proposta pelo/a próprio/a filho/a nascido com questões genéticas (doença ou deficiência), baseada em erro junto ao aconselhamento genético pré-natal, com fundamento na falha das provas e/ou no diagnóstico, que retira dos/as genitores o direito de optar pela interrupção terapêutica da gravidez, nos termos legais; ou a possibilidade de realização de terapias gênicas fetais. O pedido engloba é de indenização por danos materiais decorrentes do custo extraordinário de uma vida com doença ou deficiência (tais como gastos com tratamentos médicos, habilitação e reabilitação); e por danos existenciais. Aqui reside uma controvérsia importante, eis que os danos existenciais residiriam na fundamentação de que seria melhor não ter nascido do que ter nascido com doenças ou deficiências. Logo, o que se argumenta é o direito de não nascer e o direito de nascer com o corpo e mente sãos.14                Wrongful actions no Brasil A ação por wrongful conception pode ser proposta no Brasil quando, no aconselhamento pré-conceptivo, ocorrem erros (por ação ou omissão) que geram violações à autonomia junto ao planejamento familiar, à realização de terapias gênicas (quando existentes e permitidas), à seleção terapêutica de embriões e/ou à utilização de métodos anticonceptivos no aconselhamento. A ação por wrongful birth poderia ser proposta no Brasil diante de falhas no aconselhamento genético pré-natal, decorrendo violação à autonomia em relação à opção pela interrupção da gravidez, apenas nas hipóteses do artigo 128 do Código Penal, quais sejam, o aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro; bem como no caso de gestação de fetos (mero)anencéfalos, conforme permitido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54 em 2012. Nas demais hipóteses de interrupção terapêutica da gravidez, como o aborto não é permitido no país, não haverá fundamento adequados. Outro fundamento possível para a ação no Brasil é aquele baseado na falha de provas ou de diagnóstico que retira o direito à terapia gênica fetal, se disponível e possível eticamente. A ação por wrongful life, no âmbito do aconselhamento genético pré-natal, não encontra fundamento no Brasil quanto ao direito de não nascer, pois a possibilidade de exercer sua autonomia e escolher entre viver ou não viver15 não é de competência do nascituro. Entretanto, Graziela Trindade Clemente e Nelson Rosenvald16 entendem que a fundamentação possível juridicamente para a demanda por wrongful life seria aquela vinculada aos "custos acrescidos que uma situação peculiar de vida (com deficiência) impõe." Nesse caso, a fundamentação seria possível no Brasil. Foi realizada pesquisa17, utilizando-se a expressão "wrongful", junto ao mecanismo de busca de jurisprudência dos sites de todos18 os Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros e do Distrito Federal. Somente foram encontradas duas decisões no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS com fundamentos vinculados à wrongful conception ou pregnancy. Na primeira, de 2014, a autora buscou a responsabilidade civil médica diante de ausência de informação de que ligadura tubária solicitada e autorizada por ela não havia sido realizada, culminando em nova gravidez.19 Na segunda, de 2017, a autora buscou responsabilização civil por falha no uso de anticoncepcional injetável que culminou no nascimento de uma criança.20 Apesar de não utilizar a terminologia wrongful conception/pregnancy, são encontradas nos tribunais brasileiros demandas que tem como fundamento esterilizações falhas.21 Logo, apesar de existirem fundamentos jurídicos para tanto e hipóteses possíveis, em especial quando vinculadas à violação da autonomia junto ao livre planejamento familiar, os Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros e do Distrito Federal não aplicam a teoria da responsabilidade civil médica por wrongful conception/pregnancy, birth ou life, pelo menos com a nomenclatura estudada, ainda que as práticas de aconselhamento genético e RA sejam realizadas no país. __________ 1 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n.º 2.294/2021. Publicada no D.O.U. de 15 jun. 2021, SeçãoI, p.60. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/br/2021/2294. Acesso em: 23 ago. 2022. 2 "Um dos pontos fundamentais da regulamentação deontológica tem sido a medida de preservação das autonomias do paciente (e, mesmo, do médico) diante dos comandos normativos atuais." SÁ, Maria de Fátima Freire de; MEIRELLES, Ana Thereza; SOUZA, Iara Antunes de. Doação anônima de gametas à luz da resolução CFM 2.294/21 e (im)possibilidade de responsabilidade civil. Migalhas, Coluna Migalhas de RC, 15 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 3 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 5ª ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p.102. 4 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. Lección 11. El consejo genético en el ámbito de la reproducción humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDRA, Sergio Romeo. Manual de Bioderecho. Madrid, Editorial Dykinson: 2022. p.281. 5 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.193. 6 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. Lección 11. El consejo genético en el ámbito de la reproducción humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDRA, Sergio Romeo. Manual de Bioderecho. Madrid, Editorial Dykinson: 2022. p.281-284. 7 Aqui fala-se no uso da técnica CRISPR/Cas9 na edição gênica, como um editor de texto genético, capaz de promover a correção ou a exclusão de genes com mutações relacionadas a doenças e deficiências, de forma a desfazer ou a silenciar seus efeitos. CLEMENTE, Graziela Trindade; ROSENVALD, Nelson. Edição gênica e os limites da responsabilidade civil. In.: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p.238. 8 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. A responsabilidade dos profissionais sanitários no marco do assessoramento genético. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.64. 9 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.193. 10 "VI - DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTACIONAL DE EMBRIÕES 1. As técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão do(s) paciente(s), devidamente documentada com consentimento informado livre e esclarecido específico. No laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias de cromossomos sexuais." 11 LEONE, Salvino; PRIVITERA, Salvatore; CUNHA, Jorge Teixeira da. Dicionário de bioética. Aparecida (SP): Editora Santuário, 2001. p. 267. 12 Paulo Mota Pinto ensina que as wrongful actions iniciaram-se nos Estados Unidos em 1970. PINTO, Paulo Mota. Indenização em caso de "Nascimento Indevido" e de "Vida Indevida" (Wrongful Birth e Wrongful Life). Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, v.3, n.3, p. 75-99, abr-mai, 2008. p.78. 13 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.215. 14 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. A responsabilidade dos profissionais sanitários no marco do assessoramento genético. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.97. 15 SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento Genético e Responsabilidade Civil: As Ações por Concepção Indevida (Wrongful Conception), Nascimento Indevido (Wrongful Birth) e Vida Indevida (Wrongful Life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. p.131. 16 CLEMENTE, Graziela Trindade; ROSENVALD, Nelson. Edição gênica e os limites da responsabilidade civil. In.: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p.258. 17 SÁ, Maria de Fátima Freire; SOUZA, Iara Antunes de. Responsabilidade Civil e Reprodução Humana Assistida: a (in)aplicabilidade das ações de wrongful conception ou pregnancy e birth nos tribunais brasileiros. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (Org.). Responsabilidade Civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 394-395. 18 Fora pesquisado o termo "wrongful" no sistema de pesquisa de jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais brasileiros e do Distrito Federal:  TJAC, TJAL, TJAP, TJAM, TJBA, TJCE, TJDF, TJES, TJGO, TJMA, TJMT, TJMS, TJMG, TJPR, TJPB, TJPA, TJPE, TJPI, TJRN, TJRS, TJRJ, TJRO, TJRR, TJSC, TJSE, TJSP, TJTO. 19 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível Nº 70058338039. Nona Câmara Cível. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em: 26 mar. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 20 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível Nº 70075425744. Nona Câmara Cível. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em: 13 Dez. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 21 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível n. 0566326.87.2006.8.13.0016.  Relator Desembargador Marcelo Rodrigues. Órgão Julgador: 11ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 12 Set. 2007. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022.
Embora se trate de um termo que abrange mais de 100 diferentes tipos de doenças, com melhor e pior prognóstico, existe uma espécie de compartilhamento social da ideia de que ouvir que se tem câncer é pior do que tomar conhecimento de outras doenças até potencialmente mais graves a depender do caso. Foi por isso que eu resisti a aceitar que uma grande parte - talvez a maioria - dos pacientes com cânceres avançados não entende que não existe prognóstico de cura, e não apenas isso, que não existe prognóstico de vida longa. Até hoje, quando publico ou falo sobre isso, mesmo depois de tantos anos dizendo a mesma coisa, pergunto-me se não vai aparecer alguém para demonstrar que estou errada. Obviamente, eu queria que aparecesse. Quando entrei no doutorado para pesquisar as expectativas equivocadas dos pacientes com câncer avançado e a contraposição entre direito à saúde e o que chamei de direito à esperança, um dos professores da banca de admissão me perguntou se eu tinha certeza do que estava fazendo. Eu já estava aprovada, a questão não era essa. Era se eu estava realmente disposta a enfrentar um assunto para o qual a população brasileira não está preparada; um assunto para o qual a maior parte das pessoas, especialmente no ocidente, não está preparada. Quatro anos depois, na banca de qualificação, outro professor disse que minha tese tinha que vir com uma capa informando tema sensível. "Não é fácil ler o que está escrito aqui". Não é fácil saber o que está escrito ali. Em 2003, Gordon e Daugherty publicaram um artigo chamado "Hitting you over the head", na revista Bioethics, uma das mais importantes publicações de bioética. Os autores afirmavam que as opções de tratamento disponíveis para pacientes com câncer avançado - cânceres metastáticos em geral - são limitadas e têm, na melhor das hipóteses, o potencial de benefícios terapêuticos apenas marginais1. Em 2016, Peter Wise revisou a literatura sobre as drogas oncológicas para pacientes com câncer metastático e publicou o artigo "Cancer drugs, survival, and ethics", no BMJ, uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo. Nele, Wise demonstrava a baixíssima efetividade das drogas no tratamento dos cânceres avançados (sobrevida global de até três meses), incluindo os tumores mais prevalentes no mundo e as drogas aprovadas pelas principais agências até 20142. A editora-chefe à época, Fiona Godlee, recomendou que todos os oncologistas lessem seu artigo. No ano seguinte, Wise escrevia ao BMJ:  Eu revisei recentemente os resultados frequentemente ruins dos tratamentos com medicamentos oncológicos e a falta de empoderamento e falta de informações dos pacientes. Até que drogas melhores estejam disponíveis, nós precisamos de uma discussão de tratamento multidisciplinar mais informada e equilibrada, o que deve resultar em [i] uma prática com maior ética, [ii] mais pacientes com cânceres pouco responsivos submetidos exclusivamente a cuidados suportivos melhores, e [iii] uma consequente redução de custos nas drogas para doença metastática.3  Embora haja estudos com resultados promissores para pacientes com alguns tipos de câncer avançado, é possível dizer que o cenário não sofreu grandes alterações nesses últimos cinco anos. Como demonstra Siddharta Mukherjee na obra mais completa já escrita sobre a evolução do câncer, O Imperador de todos os males4, há pelo menos um século temos visto resultados promissores serem seguidamente derrotados para a maior parte dos casos. Infelizmente, a forma mais honesta de resumir o cenário é reconhecer que a maior parte dos pacientes com câncer metastático não tem prognóstico de cura ou sobrevida longa. E isso acontece com ou sem tratamento. Em outras palavras, é dizer que a maior parte dos pacientes irá morrer de seus cânceres em um tempo relativamente curto, cuja variabilidade dependerá muito pouco da quimioterapia a que se submetam. Como explicar, então, a quantidade de ações judiciais em que pessoas com câncer metastático afirmam que precisam de acesso a determinado medicamento, pois correm o risco de morrer sem ele? Durante quase dez anos, eu acompanhei uma grande parte das ações judiciais desses pacientes, ajuizadas contra a União e outros entes públicos, em que se alegava que o medicamento era essencial para a manutenção da vida do paciente. Na maior parte dos relatórios médicos que instruem essas ações, há poucas explicações: "o medicamento é necessário" e ponto. Nos mais elaborados, há alguma explicação técnica cuja compreensão é inacessível à maior parte dos operadores do direito e mesmo a profissionais de saúde. Em geral, eles dizem que "foi demonstrado aumento da sobrevida livre de progressão". Na obra Mallignant5, publicada em 2020, o oncologista e hematologista Vinay Prasad explica detalhadamente diversos estudos que demonstram que, de modo geral, não tem havido relação entre aumento da sobrevida livre de progressão e aumento de sobrevida global. Em outras palavras, dizer que um medicamento é necessário com base nesse desfecho é uma falácia. O paciente não vai viver mais por causa disso. É difícil saber se o médico realmente acredita que ele vai. Isso envolve uma série de questões, desde a influência da indústria farmacêutica até a falta de atualização da maior parte dos oncologistas. Mas acreditando ou não, ele afirma a necessidade de um tratamento, que é compreendida pelo paciente - e depois, pelo advogado e pelo juiz - como uma chance de se curar ou, pelo menos, de viver muito mais. O paciente não procura um advogado para ajuizar uma ação, esperar por uma decisão judicial e, depois, pelo seu cumprimento, por mais um a três meses de vida. Ele faz isso, porque acredita que pode se curar ou viver muito. Estudos importantes e de largo alcance demonstraram que a maior parte dos pacientes com cânceres metastáticos não compreendem que não podem ser curados6. Eles não entendem o propósito do tratamento ao qual se submetem. Em pesquisa para o doutorado que realizei em hospitais do Brasil e da Alemanha em 2018, percebi que isso pode ser bem pior: mesmo os pacientes que entendem que seus cânceres são incuráveis podem acreditar que suas doenças não os matarão, desde que se mantenham em tratamento: uma ideia que chamei de enquanto há quimioterapia, há vida7. A falta de entendimento sobre seu prognóstico é determinante para as decisões que serão tomadas pelas pesssoas. Há estudos que demonstram que "pacientes com câncer avançado aceitariam tratamentos tóxicos por até mesmo 1% de chance de cura, mas não aceitariam o mesmo tratamento por um aumento substancial na expectativa de vida sem a cura"8. Não apenas muitos doentes se submetem a tratamentos invasivos, com alta toxicidade e diminuição do tempo de vida com qualidade, porque acreditam que estão abrindo mão de um presente melhor por um futuro provável, como grande parte deles vai usar parte esse tempo para encarar uma batalha judicial que nunca é incólume. Eles acreditam estar buscando a tutela de seu direito à saúde. Mas o que está em jogo, na verdade, seria um direito à esperança. Como costumo dizer, milagres podem até acontecer e nós temos todo o direito de esperar por eles. Mas não existe o direito de colocar a sua ocorrência na conta da ciência. Se de um tratamento que tem a probabilide de me oferecer, no caso de eu responder a ele, uma média de até três meses de sobrevida (global), eu espero me curar ou viver mais cinquenta anos, então não é de saúde que estamos falando. É de esperança. E a ela não existe um direito reconhecido por nenhum ordenamento jurídico de que se tenha notícia, mesmo porque se trata de elemento subjetivo e de conteúdo não universalizável. No Brasil, a nossa legislação diz que o direito à saúde é o direito à saúde baseada em evidências, por meio da qual se exige que a tomada de decisões médicas seja norteada pela busca explícita e honesta das melhores evidências científicas da literatura médica. Nesse sentido, é necessário reconhecer que grande parte das decisões judiciais que defere o acesso a tecnologias em saúde com base em expectativas irreais a seu respeito não têm fundamentação jurídica, por conferirem a relatórios médicos poder de definição que eles não poderiam ter. Direito à saúde nos termos do artigo 196 da Constituição e das diretrizes da Lei n. 8.080/90 e do Decreto n. 7.508/2011 não significa - e nem poderia - conteúdo de receituário médico. Enquanto nos esforçamos para fornecer quase toda e qualquer tecnologia prescrita para esses pacientes, eles seguem com suas expectativas irreais até muito perto do fim de suas vidas, quando o próprio corpo cumpre o papel não desempenhado pela equipe médica de informar que a morte está próxima. Investimos na cultura do tratar, abandonamos a cultura do cuidar. Um dos mais importantes direitos do paciente, independentemente da crença na existência de tratamentos curativos ou prolongadores da vida, é o direito à expectativa de continuidade razoável de cuidado, especialmente em relação ao alívio de sintomas e da dor. É papel da Medicina tornar a vida mais tolerável e, segundo Modell, drogas para o alívio de sintomas afiguram-se, originalmente, como o único objetivo realístico da medicina.9 Os chamados cuidados paliativos têm o objetivo precípuo de garantir ao paciente a melhor qualidade de vida possível com a máxima autonomia, a partir de uma perspectiva multidisciplinar de manejo da dor física e psíquica, com comunicação adequada com o doente e seus familiares, que também são destinatários dos cuidados, dure o tempo de vida do doente dez meses ou dez anos. No entanto, a priorização do cuidado de pessoas, acima da ideia de tratar doenças a qualquer custo, ainda é uma realidade distante. A forma pela qual os sistemas de saúde são financiados incentiva a obstinação terapêutica: o ressarcimento de serviços de saúde se dá, em geral, pelo que se oferece ao paciente em termos de tratamento "ativo" - cirurgia, quimioterapia - e não para evitar ou impedir a sua dor.10 Em relação ao câncer, sabe-se que os cuidados paliativos vêm sendo fornecidos tarde no curso da doença metastática e que esse referenciamento tardio é inadequado para alterar a qualidade do cuidado fornecido.11 Eu sei que a maior parte das pessoas acredita que cuidados paliativos são o que sobra "quando não há mais nada a fazer". Essa é a visão preponderante não apenas das pessoas leigas que ouvem falar do assunto, mas dos próprios médicos. E ela está completamente equivocada. Murray et al12 citam estudos que demonstram que cuidados especializados integrados à oncologia, comparados a cuidados-padrão, aumentaram a qualidade de vida e, para algumas pessoas, a longevidade. Em outras palavras, os cuidados paliativos interferem diretamente na vida que se terá no curso da doença, seja qual for o seu desfecho. Além disso, há estudos que demonstram que o início precoce do manejo de cuidados paliativos melhora de forma significativa a compreensão do paciente sobre seu prognóstico ao longo do tempo, o que impacta as decisões, inclusive sobre tratamento, no fim da vida13. Os cuidados paliativos iniciados logo quando do diagnóstico da doença, ao mesmo tempo em que fazem com que os pacientes tenham a melhor vida possível até que a morte sobrevenha, não impedem que se iniciem ou se mantenham os chamados tratamentos ativos, tal como a quimioterapia. Mas porque os pacientes terão uma melhor compreensão do seu prognóstico e, muitas vezes, porque poderão considerar melhor suas prioridades - ir ao hospital fazer um novo ciclo de quimioterapia ou ter o melhor manejo de sintomas possível para aproveitar o seu tempo de outra maneira -, frequentemente interromperão essas terapias mais cedo. Gosto de citar uma passagem do médico e bioeticista americano Sherwin Nuland, que escreveu um dos melhores livros que já li - para a minha pesquisa e para a minha vida: How We Die: Reflections on Life's Final Chapter. Nele, Nuland conta sobre o câncer do irmão, Harvey, e de como o influenciou a tentar um tratamento: Harvey pagou um alto preço pela promessa de esperança não realizada. Eu havia oferecido a ele a oportunidade de tentar o impossível, apesar de saber que a tentativa seria a custo de grande sofrimento. No que dizia respeito a meu irmão, eu havia esquecido, ou ao menos abandonado, as lições aprendidas em décadas de experiência. Trinta anos antes, quando não havia quimioterapia, Harvey teria morrido provavelmente no mesmo tempo em que ele eventualmente morreu, da mesma caquexia, insuficiência do fígado e desequilíbrio químico crônico, mas sua morte teria sido sem a devastação adicional de tratamentos fúteis e do conceito desviado de "esperança" que eu havia relutado em negar a ele e sua família, tal como a mim mesmo. Quando eu expliquei a alta frequência de toxicidade perigosa de certas formas desesperadas de tratamento cuja probabilidade de sucesso é remota, alguns de meus pacientes com câncer avançado escolheram sabiamente não fazer nada, e encontraram sua esperança de outras maneiras.14 Abdicar do tempo restante apostando no impossível pode até ser visto como a única opção para algumas pessoas. Mas, com certeza, não será para muitas. Provavelmente para a maioria, terminar o fim da sua vida vivendo, e não tentando (sobre)viver, é a melhor chance. Como costumo dizer, para muitos de nós, o fim da vida será a sua parte mais importante, até porque é tão vida quanto seu início e seu meio. Naturalmente, só dá para pensar em opções, em especial as de tratar ou não tratar e quanto tratar, quando se sabe que o fim da vida está próximo - ainda que, eventualmente e sem que a ciência possa explicar o porquê, algumas pessoas vivam muito além de seus prognósticos. Você poderia terminar este texto pensando que ele não é para você. Seja porque não está doente, porque não conhece alguém que está doente; ou porque, se ou quando adoecer, confiará no que o seu médico disser ou terá discernimento suficiente para entender as suas opções. Acho pouco provável que algum de nós passe por esta vida sem ser acometido por um câncer em estágio avançado ou com mau prognóstico - nosso ou em algumas pessoas que são importantes para nós. Mas é a improbabilidade da segunda parte que me move mais. Não é curioso que todos tenhamos tanto medo de ter câncer, de morrer de câncer e, ao mesmo tempo, a maior parte de nós, quando tem um câncer incurável, acredite que será curado? A maioria dos médicos não diz para o paciente você está morrendo ou você tem seis meses de vida, como muitas vezes vemos nos filmes. Eles dizem termos técnicos sobre terapias e resultados. Eles falam "vamos iniciar esse tratamento", "você está respondendo ao tratamento", "seu tumor diminuiu". Com sorte (?), eles dizem que "um estudo demonstrou uma melhora de sobrevida livre de progressão em tantos por cento". E eu estou dizendo: isso não significa que você está melhorando, muito menos que será curado. Não é fácil ler isso. Não é fácil saber disso. Mas, por mais que o exercício de projetar o fim da própria existência seja estranho a princípio, tentar evitar o assunto morte é um desperdício de energia. Ela vai continuar acontecendo. E, paradoxalmente, mas nem tão paradoxalmente assim, a reflexão sobre a nossa finitude pode ser justamente o que nos impulsiona para uma vida melhor. Dure ela quanto tempo durar. É claro que ninguém está verdadeiramente preparado para a ausência. A gente se prepara para se preparar, não para não sentir. O sofrimento é como o DNA, cada um tem o seu, único, intransferível. Mas saber que a vida acaba - para nós e para os outros - pode nos trazer de volta para o presente, especialmente quando estamos muito absorvidos pela ideia de futuro. O futuro é sempre uma ideia, para quem está doente e para quem está saudável: em um mês ou um ano, pessoas dos dois grupos não terão chegado a ele. Não posso terminar este texto sem registrar que penso sempre na ideia de que viver o agora não é realidade para muita gente - textos e eventos sobre o fim da vida são, em sua maioria, elitizados. Ter medo de morrer de câncer ainda é privilégio de quem não tem medo de não ter o que comer na próxima refeição. Mas sei que as melhoras que pudermos proporcionar na distribuição dos cuidados, especialmente a democratização do acesso aos cuidados paliativos precoces, pode afetar as vidas das pessoas mais vulneráveis. E assim, quem sabe, conseguiremos conferir o mínimo de dignidade a pessoas que a tiveram negada suas vidas inteiras, ainda que, por enquanto, apenas no fim delas. ___________ 1 GORDON, Elisa J.; DAUGHERTY, Christopher K. 'Hitting You Over the Head': Oncologists' Disclosure of Prognosis to Advanced Cancer Patients. Bioethics, v. 17, n. 2, p. 142-168, 2003. 2 WISE, Peter H. Cancer drugs, survival, and ethics. BMJ; v. 355, p. 1-4, 9 nov. 2016 3 WISE, Peter H. Palliative care doctors should be included in treatment discussions. BMJ, v. 356, n. 1551, 29 mar. 2017, tradução livre. 4 MUKHERJEE, Siddhartha. O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer. Traduzido por Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 5 PRASAD, Vinay. Malignant: How Bad Policy and Bad Evidence Harm People with Cancer. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2020. 6 TEMEL, Jennifer S. et al. Longitudinal Perceptions of Prognosis and Goals of Therapy in Patients With Metastatic Non-Small-Cell Lung Cancer: Results of a Randomized Study of Early Palliative Care. Journal of Clinical Oncology, v. 29, n. 17, p. 2319-2326, 10 jun. 2011; WEEKS, Jane C. et al. Patient's Expectations about Effects of Chemotherapy for Advanced Cancer. The New England Journal of Medicine, v. 367, p. 1616-1625, 25 out. 2012, tradução livre. 7 ARAÚJO, Cynthia Pereira de. Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 8 WEEKS, op. cit. 9 MODELL apud MCKEOWN, Thomas. The Role of Medicine: Dream, Mirage, or Nemesis. New Jersey: Princeton University Press, 1979, p. 191. 10 A BETTER way to care for the dying. The Economist, 29 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2018. 11 TEMEL, op. cit. 12 MURRAY, Scott et al. Palliative care from diagnosis to death. BMJ, v. 356, n. 878, 27 fev. 2017. 13 TEMEL, op. cit. 14 NULAND, Sherwin B. How We Die: Reflections of Life's Final Chapter. New York: Vintage, 1994, p. 231, tradução livre.
O Mundo da informação e as relações de saúde O mundo da informação se consolida cada dia mais, no entanto, com esse avanço informativo, tem-se mais desafios éticos jurídicos a enfrentar, o que, por vezes, passam invisibilizados, ou mesmo, mitigados, mas que acarretam consequências sérias. O consentimento é um desses parâmetros. O consentimento informado é um instituto jurídico que tomou força nos últimos anos do século XX.1 Isto ocorreu devido à mudança do paradigma na relação médico-paciente: do abandono da medicina paternalista para o exercício da medicina em favor da autonomia do paciente.2 O paciente passou a ser reconhecido pela prática médica como pessoa, dotada de valores inerentes a ela, a qual deve ser respeitada a vontade de autodeterminação. Esclarecido porque pressupõe, para sua validade, o entendimento pelo paciente das questões relativas à sua condição de saúde e do tratamento ao qual poderá se submeter. Livre porque, a partir da compreensão destes aspectos, o paciente irá decidir, de acordo com suas concepções, se aceita ou não se submeter à intervenção médica. Em tempos em que as divulgações, principalmente por médicos, sobre temas relacionado à saúde têm amplo espectro nas redes sociais, como, por exemplo, Instagram e/ou WhatsApp, sob manto de informar e educar, distribuem-se informações sobre doenças e tratamentos com uma maior "liberdade". Esse movimento impacta diretamente no exercício do consentimento livre e esclarecido, posto que, traduz para uma sociedade leiga uma série de condutas a serem adotadas no caso de prevenção e tratamento de doenças que estejam a ser discutidas, mas sem as devidas advertências que os temas impõem. A força e rapidez com que essa informação chega à sociedade é descomunal, médicos, na medida em que passam a ter seguidores e suas intervenções, sejam elas em qualquer plataforma de mídia, podem virar rapidamente uma "consulta" virtual sem que os parâmetros legais dela sejam devidamente respeitados. Nessa seara que a conduta adotada pelo profissional da saúde, especialmente o médico, impacta na tomada de decisão esclarecida, na busca de tratamento médico adequado ou na escolha consciente da aceitação ou recusa da conduta médica a ser adotada para real proteção do exercício direito à saúde. A divulgação de fake News e os impactos no exercício das condutas na sociedade. A voz humana, assim, tem um alcance maior que vai para além de consultório físico e palestras em congressos, chegando a qualquer um que tenha acesso a uma plataforma digital, tendo-se em mente que o acesso digital é um direito fundamental nos dias atuais. Ocorre que esse alto poder de divulgar carrega consigo limites no que se refere ao conteúdo do que será divulgado, sendo vedado, no ordenamento jurídico, a propagação de notícias falsas, as chamadas Fake News, entendidas estas, para o presente artigo, como toda aquela que não é calcada em base científica comprovada (evidência) e/ou que seja construída sob a base metodológica inadequada para atestar da sua eficácia. Qualquer forma de divulgação de tratamento, procedimento e/ou medicamento para tratar e/ou evitar sintomas de doenças deve ocorrer dentro do consultório médico, seja ele físico ou virtual, e, estar calcado na conduta médica adequada de individualização do caso (humanização do paciente), sendo feito os esclarecimento dos eventos adverso e a base científica da conduta adotada para que possa a pessoa exercer licitamente o seu direito ao consentimento livre e esclarecido, respeitando, assim, devidamente a natureza jurídica do instituto que é possibilitar o entendimento da conduta médica a ser adotada. Com utilização dos meios de divulgação de conteúdo médico (doença, tratamento, medicamento, entre outros) de maneira mais fácil na sociedade, seja pelas redes sociais de médicos, entidades médicas, seja por aplicativos de conversas, onde é fomentado pelo produtor do conteúdo que aquela mensagem que contém conteúdo da prática médica seja divulgada para o maior número de pessoas possíveis, entramos em uma seara bastante arenosa da conduta médica e seus impacto jurídicos. O impacto no consentimento do paciente está entre tais consequências. Primeiro ponto de impacto, é que muitas vezes, o paciente já chega ao consultório munido de "esclarecimento" sobre a temática da sua doença e/ou tratamento, o que foi introduzido pela rede social que acompanhava e com a chancela do médico que a propagou. O segundo impacto está que, nesses casos, o médico quando da leitura do termo ou do prognóstico já conduz a conversa no sentido que o esclarecimento foi feito nos mesmos termos da referida postagem, chegando ao ponto de, em alguns casos, ser fomentado que em caso de dúvida posterior envie um direct ou uma mensagem, ou mesmo que seja desnecessário o consentimento, visto que o paciente já chegou até o profissional por causa da postagem. Mas, o ponto mais relevante, é a consequência que essa propagação de informação, que, aparentemente, foi construída e divulgada sob manto de educar a sociedade, é consolidada com base nas chamadas Fake News. A construção do consentimento livre esclarecido diante da relação de hipossuficiência que há entre o conhecimento do médico que divulga  e do "público" que absorve tais informações gera ruídos, na medida em que irão calcar seu processo de decisão baseados em informações genéricas, muitas vezes não adequadas ao seu caso individual, mas que o profissional/influencer médico, nem sequer faz distinção quando propala o prognóstico, podendo acarretar em uma mácula no consentimento que poderá esvaziá-lo no sentido jurídico. Outro ponto relevante nessa discussão é o fato de nesses ambiente virtuais haja uma maior facilidade de propagação de fakenews com a consequente distribuição de informações que conflitam com o que lecionado pela ciência a qual está submetida, utilizando, por vezes, o embasamento em estudos que nem sequer existem, ou mesmo, que não tem o reconhecimento metodológico científico de sua eficácia para o fim que está sendo exposto. Nesse ambiente virtual é mais fácil fazer a citação de estudos que não existem ou mesmo que, se existirem, a sua metodologia não é adequada para comprovação da eficácia para que se propõe a intervenção médica propalada, visto a dificuldade que a população tem de buscar e entender os estudos que tem cunho científico, sem falar do suposto argumento de "autoridade" que o médico  impõe em sua fala, deixando ainda mais vulnerável o paciente na tomada de decisão esclarecida, já que está sendo informado de forma equivocada sobre a conduta. Os impacto da divulgação de Fake News e o consentimento esclarecido. O código de ética médica- CEM em seu artigo 112, veda ao médico divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico, no entanto, nos últimos dois anos não nos faltaram exemplos de lives e entrevistas que tinham o propósito de divulgar informações inverídicas indo de encontro direto com as bases científicas amplamente existente, bem como, propalando procedimentos médico sem base cientifica comprovada. Tal prática acarretou um impacto enorme a tomada de decisão livre e esclarecida da população em geral. Como fazer a melhor tomada de decisão se havia, principalmente dentro do ambiente virtual, um médico, dizendo que tal conduta deveria ou não ser adotada, ou mesmo, propagando a utilização de certo medicamento sem que houve consulta prévia desse paciente, com a devida anamnese? No entanto muitos se sentiram examinados e adotaram as condutas propaladas, muitas vezes de forma sensacionalista, o que é vedado. A utilização desse mecanismo de divulgação gera impacto gigantesco no exercício das liberdades individuas, nomeadamente, no consentimento, seja porque, em muitos casos, deixou-se de buscar o tratamento adequado, seja porque, foi introduzido uma prática médica, que aparentemente é consentida, mas era marcada por uma ausência de discussão com o paciente da ausência real de base científica para o caso, eventos adversos entre outras consequências. A relação de consentimento já não consegue atingir o fim jurídico pretendido, posto que, não é repassado ao paciente todas as nuances que a conduta médica acarreta. O paciente vê, principalmente nas redes socias, a divulgação de medicamentos e tratamentos sem o menor controle sob como isso pode impactar na construção da tomada de decisão que o mesmo terá sobre a prática que irá se submeter. Considerações finais A atuação médica de propalar tratamento, medicamentos, procedimentos sem o cuidado ético necessários, bem como, aqueles que são alicerceados em  Fake News tem um repercussão direta na matriz do instituto do consentimento, macula a dimensão do conhecimento individual de cada pessoa na consequência da sua tomada de decisão da utilização ou autorização no tratamento que se propõe. É vedado ao médico divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente, consoante o art. 113, CEM. Necessário observar que é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente (CEM), desde que ocorra em consulta médica. Ainda, tal prerrogativa é acompanhada da necessidade de que seja dirigida apenas ao seu paciente respeitando o binômio, cientificamente comprovado, com os parâmetros devidamente explicado ao paciente e, que tal pratica tenha o reconhecimento legal. Na ausência de qualquer um deles, deve o médico, no âmbito da sua conduta, quer nas falas sociais direcionadas ao público para, supostamente, educar, quer em  consulta esclarecer e alertar da inexistência de comprovação cientifica baseada nos parâmetros a legais existentes, sob pena de poder responder pela conduta para além do procedimento ético, mas também na seara cível. A divulgação das chamadas Fake News no âmbito da saúde coloca a população geral em risco, que já são munidas de uma hipossuficiência prévia para questões cientificas médica, deixando-a mais vulneráveis ainda a tratamentos e utilização de medicações desnecessários, visto que, a propulsão se alicerça ao argumento de autoridade do profissional médico colocando em xeque a possibilidade da verdadeira natureza jurídica do esclarecimentos, bem como, da decisão livre calcada no poder de autodeterminação consciente da população. Os prejuízos nas condutas de saúde, principalmente, as preventivas ficam abaladas como a divulgação de Fake News por parte do corpo médico, a informação chega distorcida à população que tem, como dito antes, mitigado seu poder de esclarecimento, aumentado o abismo da hipossuficiência do paciente, retirando do mesmo o discernimento necessário para a tomada de decisão consciente, livre e realmente esclarecida. Diante de um bombardeio de informações, principalmente quando estamos a falar de Fake News, o esclarecimento ou é comprometido ou passa a ser inexistente, pois, sob a falsa promessa de resultados médicos inatingíveis, aumenta-se o risco para a população em geral nas suas escolhas no diárias individuais no que tange a sua saúde, bem como, impacta no exercício do direito coletivo à saúde. A pratica abusiva dessa conduta da propagação de Fake News deve ser coibida em todos os segmentos da sociedade, mais ainda, pelo conselho Federal de medicina, para que haja a proteção do direito à saúde. Essa fiscalização deve ser cada dia  mais premente, visto que, a utilização desse mecanismo, sob o manto do livre exercício da escolha da conduta médica a ser adotada, esta não pode ser balizada por ignorar os parâmetros científicos metodológicos adequados, bem como, em burlar a realização eficaz do esclarecimento adequado e livre à população, sob pena de responsabilização ética, civil e penal. __________ 1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Estudo em Direito Civil, Coimbra Editora: 2004. p. 57. 2 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento... op. cit. p. 349.
"O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito."Nise da Silveir 1. Panorama geral No livro O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte é um médico que cuida dos doentes da Casa Verde, uma instituição para pessoas "desequilibradas" na cidade de Itaguaí. Em um dado momento da narrativa, o referido alienista envia um ofício à Câmara da cidade ordenando que todas as pessoas do hospital (80% da população) fossem devolvidas ao convívio social. No ofício, explica "que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e, como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto"1. A despeito da ironia do nosso escritor, as doenças psiquiátricas atingem boa parte da população. Cerca de 970 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais no mundo. São 166 milhões de adolescentes. Os números aumentaram ainda mais com a pandemia da covid-19. Estima-se que a prevalência de ansiedade e de depressão cresceu mais de 25% somente no seu primeiro ano2. No Brasil, um dos países mais atingidos pela depressão, existem 7.2 milhões de pessoas acometidas por ela3. O presente texto visa analisar a assistência farmacêutica no SUS, que é um dos pilares da política de promoção da saúde mental. Ainda que outras estratégias assistenciais sejam fundamentais, a prescrição de medicamentos também é essencial para o tratamento de diversos quadros de doença mental4. 2. Relações nacional, estaduais e municipais de medicamentos ofertados pelo SUS 2.1 Lista nacional (RENAME) Para que um medicamento seja ofertado pelo SUS em todo o território nacional, ele precisa ser analisado por um órgão de composição plural criado pela lei 12.401/11, chamado Conitec - comissão nacional de incorporação de tecnologias no SUS. Antes da sua criação, as tecnologias eram analisadas pela CITEC - comissão para Incorporação de tecnologias do ministério da saúde5. O processo de incorporação é disciplinado pela lei antes referida e pelo decreto 7.646/11. Nele, é feita a análise das evidências científicas acerca da tecnologia. Também são abordadas questões de farmacoeconomia, para verificar custo-efetividade e o impacto orçamentário causado por sua eventual incorporação (§2º, do art. 19-Q, da lei 8.080/90, acrescentado pela lei 12.401/11). Após a elaboração do relatório pela Conitec, que poderá recomendar ou não a inclusão do tratamento no SUS, o processo é encaminhado para o secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 20, do decreto 7.646/11). É ele quem dá a última palavra no processo de incorporação (art. 23). Uma vez aprovada a incorporação de um medicamento, ele deverá estar disponível no SUS 180 dias após a publicação da portaria que o incorporou (art. 25, do decreto) e passará a constar da RENAME - Relação Nacional de Medicamentos, em que são arrolados todos os medicamentos oferecidos nacionalmente pelo SUS. Significa dizer que ela deverá ser entregue em todo o território nacional no prazo previsto. 2.2 Listas estaduais e municipais Paralelamente à relação nacional, estados, DF e municípios podem ter suas próprias listas de medicamentos, com distribuição limitada aos seus territórios, em relações estaduais e municipais, estas últimas denominadas REMUME. Esses entes federados podem identificar doenças de maior prevalência e adotar as medidas que entenderem necessárias para combatê-las. Ocorre que, a despeito de deixar margem para a ampliação do elenco de medicamentos, as relações estaduais e municipais podem gerar desigualdades quando se considera o território nacional. Isso se torna especialmente relevante quando as doenças atingem uma parcela importante da população, como é o caso dos transtornos mentais. Por isso, é relevante que a RENAME possua um elenco satisfatório não só para o tratamento de doenças psiquiátricas, mas para outros agravos à saúde. Com isso, a igualdade prevista constitucionalmente no SUS será obedecida (art. 196, CF/88). Confira a íntegra do artigo. 
"Não é pelo facto de alguém se ter tornado agora incapaz que se tem autoridade para desrespeitar a narrativa pessoal que transporta consigo e que lhe possibilitou ter uma vida biográfica e não meramente biológica." Laura Ferreira dos Santos  Considerações iniciais João é um filósofo de 50 anos de idade, saudável, no pleno gozo de suas faculdades mentais. Ao longo de sua carreira, dedicou-se aos estudos da morte e do morrer. Ciente de sua própria finitude e dos problemas éticos e jurídicos que envolvem a tomada de decisão em fim de vida, João dirige-se à um Tabelionato de Notas e lavra, em 13.01.2014, uma procuração para cuidados de saúde nomeando seu melhor amigo, Pedro, como seu procurador, dando a ele amplos e irrestritos poderes para tomar decisões acerca dos cuidados de saúde quando e se João ficar gravemente doente e impossibilitado de se autodeterminar. No dia 20.10.2020, João sofre um grave acidente de carro e fica em estado vegetativo, impossibilitado de manifestar-se sobre seus cuidados de saúde. Pedro, então, apresenta no hospital a procuração para cuidados de saúde lavrada e, 45 dias depois, toma ciência de que o documento fora declarado ineficaz por um magistrado, nos autos da ação judicial de curatela de João, ajuizada por Maria, esposa do paciente. A decisão judicial foi motivada da seguinte forma: "segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a procuração perde efeito com a incapacidade do mandante e, portanto, Pedro não tem direito de tomar nenhuma decisão sobre os cuidados de saúde de João." Esse é um caso que eu inventei, inspirada em um caso real que tem sido veiculado pela imprensa brasileira. Quero, com essa ficção, analisar a validade e a eficácia da procuração para cuidados de saúde no ordenamento jurídico brasileiro. Breves notas sobre os documentos de Diretivas Antecipadas  A ideia de que o indivíduo tem o direito de decidir, prospectivamente, sobre quais os cuidados de saúde ele gostaria de receber quando e se, no futuro, estiver impossibilitado de manifestar vontade surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento dos direitos à vida e à liberdade pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em paralelo a esse reconhecimento, a relação médico-paciente sofreu profundas alterações, de modo que o modelo hipocrático paternalista de tomada de decisão foi, gradativamente, dando lugar ao modelo autonomista e, mais recentemente, ao modelo solidário/compartilhado. O modelo autonomista pretendeu dar ao paciente o protagonismo na tomada de decisões de saúde e embasou o surgimento do consentimento informado e também dos documentos de diretivas antecipadas. Enquanto o consentimento informado cuida da manifestação de vontade para um procedimento/tratamento/cuidados de saúde que o paciente necessita no momento presente; os documentos de diretivas antecipadas, surgidos dos EUA na década de 1960, tratam de manifestações sobre situações futuras e eventuais, as quais o outorgante vislumbra por meio de sua imaginação, com o objetivo de autodeterminar-se prospectivamente. Atualmente, reconhece-se haver sete espécies de documentos de diretivas antecipadas: testamento vital, procuração para cuidados de saúde1 (também conhecida como mandato duradouro), ordens de não reanimação, diretivas para saúde mental, diretivas para demência, documentos de recusa terapêutica e plano de parto2. O direito à manifestação prévia de vontade para cuidados de saúde tem sido reconhecido nas últimas duas décadas no Ocidente. Países como Espanha3, Portugal4, Alemanha5, Reino Unido6, França7, Itália8, Argentina9, Uruguai10 e Colômbia11 aprovaram leis que conferem validade e eficácia a documentos de manifestação antecipada de vontade em matéria de saúde, conferindo inclusive a eles força cogente diante da oposição de terceiros. Todavia, apesar de crescente nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, o reconhecimento da autonomia prospectiva e, consequentemente, da validade e eficácia dos documentos de diretivas antecipadas, como um dos reflexos do direito à autodeterminação, ainda é incipiente no Brasil. Procuração para cuidados de saúde x representação legal x contrato de mandato A procuração para cuidados de saúde é "um documento que permite a um adulto competente designar uma pessoa - um procurador - que será autoridade a dar ou retirar consentimento para cuidados de saúde quando o outorgante perder a competência mental"12. Paula Távora Vítor afirma que o procurador de cuidados de saúde é um representante voluntário "e que, portanto, decide no interesse deste [representado], tendo em conta, na medida do possível, os seus desejos reconhecíveis". Percebe-se, assim, que a pessoa que faz uma procuração para cuidados de saúde está, em verdade: (i) dizendo para o ordenamento jurídico vigente que ela não concorda em ser representada, nos seus cuidados de saúde, pelas pessoas escolhidas pela lei (representação legal); (ii) reconhecendo que, desde o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o curador (representante legal) deixou de ter poderes decisórios sobre situações existenciais; (iii) assumindo que deseja ter o controle de seus cuidados médicos, nas situações em que não puder mais se autodeterminar, situações estas em que será substituída pelo procurador para cuidados de saúde, pessoa da sua escolha e confiança. Neste contexto, não deve prosperar eventual aplicação análoga das normas do contrato de mandato à procuração para cuidados de saúde, na medida em que a função dos institutos é completamente distinta. A lógica legislativa do referido contrato alicerça-se na função patrimonial do mesmo e, sob esta, faz total sentido que a procuração - instrumento do contrato de mandato - perca efeito em caso de incapacidade do mandante. Em contrapartida, a procuração para cuidados de saúde alicerça-se na possibilidade de se "avançar paulatinamente no reconhecimento dessa faceta da personalidade humana", entendida como "a autodeterminação preventiva e a delegação do exercício dos direitos de personalidade"13. Trata-se de instituto cuja função é exatamente a representação voluntária da tomada de decisão de saúde, a ser efetivada exatamente nos momentos em que o outorgante estiver privado de sua capacidade decisória. Aspectos jurídicos da procuração para cuidados de saúde A procuração para cuidados de saúde deve ser compreendida como um negócio jurídico unilateral de caráter existencial - uma vez que regula situação jurídica subjetiva pessoal - cuja função é a representação voluntária diante da incapacidade decisória do outorgante. Estas situações configuram o que Stefano Rodotá chama de indecidibile per il legislatore14, ou seja, um espaço determinado pelo constituinte em que as escolhas acerca dos direitos de personalidade são próprias do sujeito, não podendo sofrer limitações externas. Maria Celina Bodin de Moraes15 ensina que a dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral de tutela da personalidade humana e que, portanto, deve permear todas as relações públicas e privadas. A partir dos ensinamentos de Moraes, Rose Melo Venceslau Menezes defende que, para a concretização dessa cláusula, deve ser "garantida pelo ordenamento a promoção da sua própria personalidade através da prática de atos de autodeterminação que podem assumir a forma de qualquer situação subjetiva"16.        A teoria tradicional dos negócios jurídicos aponta como pressupostos de validade do negócio jurídico a capacidade do agente, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei17. E como fatores de eficácia tudo aquilo que não o integra mas contribui para a obtenção de resultado visado18, como, por exemplo, a condição, o modo/encargo e o termo. Significa dizer que apenas negócios jurídicos existenciais que violem um dos aludidos requisitos podem ser invalidados pelo Poder Judiciário. No mesmo sentido, apenas negócios jurídicos nos quais inexistam ou pendam os fatores de eficácia podem ter seus efeitos mitigados por esse poder. Segundo Paula Távora Vítor19, a verificação de validade e eficácia da procuração para cuidados de saúde deve partir da análise da situação do outorgante no momento da feitura do documento. Deve-se avaliar se o mesmo era civilmente capaz e se possuía capacidade para consentir, pois é exatamente a perda dessa capacidade que deverá ser aferida no futuro para determinar o início e, eventualmente, o fim da eficácia do documento. É este, portanto, o enquadramento jurídico da procuração para cuidados de saúde no Brasil: um instituto cuja função é a representação voluntária para a tomada de decisões nas situações em que o outorgante perdeu a capacidade decisória, configurando-se assim, exercício de autolimitação dos direitos de personalidade, exercício este que deve ser admitido "pela ordem jurídica quando atenda genuinamente ao propósito de realização da personalidade do seu titular."20 Considerações finais Percebe-se, por todo o exposto, que o documento feito por João adquiriu validade no dia em que foi feito, posto que preenche os requisitos legais de validade do negócio jurídico; e eficácia no momento em que os profissionais de saúde constataram que João estava impossibilitado de se autodeterminar. Como o direito de ajuizar uma ação no Poder Judiciário é um direito constitucional, uma pessoa que não concorde com o documento conseguirá questioná-lo em juízo. Todavia, tanto o questionamento quanto eventual decisão contrária ao documento - sem que haja razão objetiva para se duvidar da veracidade da escolha - configura-se, na verdade, desrespeito à existência do João. Não se está desrespeitando um papel, está se desrespeitando a essência de um ser humano. E, neste sentido, não importa se quem está desrespeitando essa essência é o médico, o curador, a instituição de saúde ou o Poder Judiciário: o ultraje é o mesmo e igualmente absurdo.  __________ *O presente artigo é um desdobramento de um post que eu fiz no instagram em 4/7/2022. O post pode ser acessado aqui.  1 O termo em inglês é: durable power of attorney for health care. Na década de 2000, a tradução mais usada era "mandato duradouro", mas a tradução literal foi incorporada na lei portuguesa 25/2012 e, eu, particularmente, tenho há alguns anos preferido usá-la em detrimento de mandato duradouro. 2 Sobre o tema: DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 6 ed. Indaiatuba: Foco, 2022. 3 ESPANHA. Govierno. LEY 41/2002, de 14 de noviembre. Básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. Boletín Oficial del Estado, Madrid, 15 nov. 2002. 4 PORTUGAL. Lei 25/2012. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 5 ALEMANHA. Die ge­setz­li­chen Grund­la­gen der Pat­Verfü im Bür­ger­li­chen Ge­setz­buch (BGB). Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 6 REINO UNIDO. Mental Capacity Act (2005). Disponível aqui. Acesso em 07.07.2022. 7 FRANÇA. Loi n. 2016-87, créant de nouveaux droits en faveur des malades et des personnes en fin de vie. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 8 ITÁLIA. Legge 2801. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 9 ARGENTINA. Ley n. 26.529 de 19 de noviembre de 2009.  Disponível aqui. Acesso em 07 ju. 2022. 10 URUGUAI. Ley 18.473. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022. 11 COLÔMBIA. Ley 1733 de 2014. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022. 12 "It allows a competent adult to designate a person-a proxy decision maker-who will have the authority to give or withhold informed consent for medical procedures should the designator lose mental competence." GOLDSTEIN, Mary Kane et. al.Durable Power of Attorney for Health Care: Are We Ready for It?. In: The western journal of medicine. September 1991, v. 155, n. 3, p. 263. 13 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico paciente. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.250-251. 14 RODOTÁ, Stefano. Politici, liberateci dalla vostra coscienza. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 15 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 16 MENEZES, Rose Melo de Venceslau. Autonomia privada e dignidade humana. Renovar: 2009, p. 58. 17 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.  18 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 17 ed. Slavador: Editora JusPodivm, 2019, p.713. 19 VÍTOR, Paula Távora. O apelo de Ulisses: o novo regime do procurador de cuidados de saúde. In: Julgar. Edição da Associação Sindical dos Juízes portugueses e da Associación Profesional de la Magistratura. Número Especial. 2014. 20 SCHREIBER, Anderson. Direitos de Personalidade. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 27.  
David Goodall, cientista australiano, não sofria de nenhuma doença ameaçadora da vida, mas alegava que a idade avançada, aliada ao processo de envelhecimento, lhe confinaram à uma existência que representava um aniquilamento de sua dignidade. Em entrevista ao canal australiano ABC, admitiu publicamente seu desejo de morrer, reafirmando que sua infelicidade advinha da impossibilidade de concretizar seu desejo de uma morte digna.1 À época a Austrália não admitia o suicídio assistido,2 o que obrigou o professor a viajar para Suíça, país que permite a prática em estrangeiros, e por meio de uma organização civil, pôde concretizar seu desejo. Hélène Wuillemin, francesa de 100 anos, parece vivenciar o mesmo dilema: com limitações físicas inerentes à senectude avançada que lhe restringem a autonomia, também buscou a morte digna por meio de organizações de suicídio assistido na Suíça, mas foi recusada diante da ausência de diagnóstico de enfermidade que caracterize a terminalidade de vida.3 David e Hélène não são os únicos a vivenciarem dilemas entre vida e morte na senitude. Recentemente foi bastante noticiado o caso do artista Alain Delon, 86 anos, também em busca do seu ideal de morte digna.4 Na verdade, alguns fatores ocorridos no século XX e XXI, como a tecnologia aplicada à medicina, modificação do perfil epidemiológico das doenças crônicas e o aumento significativo da expectativa de vida, impactaram de forma determinante as decisões de fim de vida. A Organização Mundial da Saúde estima que o número de pessoas com idade superior a 60 anos chegaria a 2 bilhões em 2050.5 Em outro estudo, a OMS revela que 60% da população mundial morrerá em decorrência de doenças crônicas, o que aponta para uma fatia considerável da população que passará muito tempo doente e terá que lidar com o sofrimento e a deterioração da qualidade de vida.6 Dados do IBGE relativos à expectativa de vida do povo brasileiro informam que, em 2019, alcançou a idade de 79,9 anos para mulheres, e de 72,8 anos para homens,7 confirmando a real possibilidade de se viver mais tempo que o desejado, como os casos de Goodall e Wuillemin. Todo esse panorama mundial demanda um novo olhar sob a autonomia para decidir sobre a duração da vida associada ao ideal da dignidade humana: questões existenciais reivindicam sua prevalência diante dos valores morais e religiosos da sociedade. Afinal, diante de um processo de envelhecimento que atente contra a dignidade humana teria o Estado legitimidade para obrigar alguém a viver as intempéries de uma velhice limitadora e humilhante? Quando há uma tensão entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, qual caminho seguir? Antes de adentrarmos nos embates jurídicos que cercam o tema, é necessário conceituar o que é o suicídio assistido e o cansaço existencial chamado de completed life. Segundo Barroso e Martel,8 o suicídio assistido é a retirada da própria vida com auxílio ou assistência de terceiros. O ato causador da morte é de autoria daquele que põe termo à própria vida e o terceiro, médico ou não, colabora com o ato. Quando prestado por um médico, chama-se suicídio medicamente assistido, e a assistência consiste, geralmente, em prescrição de dose letal de medicamento. Já o termo completed life surgiu na Holanda, no projeto de lei denominado Completed Life Bill (PL 35.534), proposto pela parlamentar Pia Dijkstra, em 17/7/20. O projeto enfrenta a questão do suicídio assistido com base na ideia de completed life e visa atender ao anseio de uma parcela crescente de idosos holandeses que desejam ter mais autonomia em seu fim de vida. O tema já é discutido na Holanda há bastante tempo. Um de seus marcos históricos foi o ensaio do professor e juiz emérito Huib Drion, intitulado "O fim desejado pelos idosos", publicado no NRC Handelsblad em 1991,9 no qual Drion defendeu a provisão de um meio pelo qual os idosos pudessem encerrar suas vidas em momento que lhes parecesse apropriado. Huib foi o primeiro acadêmico holandês a afirmar a obrigação do Estado de fornecer medicamento letal a cidadãos maiores de 70 anos, para que pudessem decidir, de forma autônoma, quando encerrar suas vidas.10 Assim, o termo completed life diz respeito ao sentimento vivenciado por pessoas de idade avançada, relativo à sensações de perda da dignidade pessoal, deterioração da saúde, dependência crescente e declínio, de modo que suas vidas lhes parece longa demais e alegam estarem "fartos de viver".11 Esta sensação está geralmente ligada à limitações próprias da velhice avançada, mas não se resume a estes fatores. O cansaço existencial atinge também aspectos sociais e psicológicos profundos, numa complexa interação de fatores, tornando os dias do idoso insuportáveis. A desorganização física, social ou emocional pode se tornar significativa ao ponto de fazer nascer o desejo consciente e livre de morrer. O fenômeno da vida concluída é uma soma de incapacidades, limitações e ausência de vontade de se conectar com a vida, configurando uma postura de desapego e alienação. O idoso não possui mais nenhum desejo de viver porque nada mais há para esperar da vida.12 Frise-se que a experiência é sempre pessoal, de modo que não há como desenvolver uma definição objetiva do completed life. A análise acerca da existência do quadro é sempre subjetiva, uma vez que apenas o próprio indivíduo pode dizer de que forma as circunstâncias da vida são sentidas. Se o idoso conclui que deseja encerrar sua existência, aceitar esse desejo e ajudar também pode ser uma forma de respeito e cuidado. Se por um lado, as condições econômicas, sociais e psíquicas de uma pessoa podem ter-lhe conduzido à um processo de envelhecimento condizente com seus critérios de dignidade, por outro, muitas enfrentam limitações de diversas ordens que as empurram para perda gradativa da autonomia.  Nesse contexto, o idoso pode antever dias indignos e abdicar desta vivência dissociada de seu projeto de vida. Embora não seja o caso de todos, nessa fase da vida é comum a perda da qualidade de vida e o aumento significativo da possibilidade de conviver com uma ou mais doenças crônicas. Também é corriqueiro o enfrentamento de deficiências em várias funções orgânicas, ampliando a possibilidade de ocorrência da temida dependência de familiares e o confinamento a uma vida mais biológica que biográfica. Recentemente, em 20/5/22, a divisão especial do Conselho de Estado holandês, em análise ao PL 35.534, acima mencionado, emitiu parecer sugerindo a substituição do termo completed life para suffering from life. O Conselho argumentou que o termo completed life possui conotação positiva e pode levar à impressão de que se trata de pessoas que completaram sua vida de forma satisfatória, quando na verdade refere-se à um grupo para o qual a vida se tornou um sofrimento insuportável. O departamento, então, optou por usar o termo suffering from life, ou, em português, sofrendo da vida.13 Diante das premissas que configuram o suffering from life, passamos ao seu cotejo com a CF/88 brasileira e os direitos da personalidade. A CF/88 funda seu Estado Democrático de Direito posicionando a dignidade da pessoa humana como objeto e razão de ser de todo ordenamento jurídico. O conteúdo desta dignidade humana, no campo da autonomia existencial, está inexoravelmente atrelada à ideia de liberdade para viver segundo suas escolhas pessoais. A ligação estreita entre dignidade e liberdade reflete a viabilidade de um projeto de vida digna para cada um. Dizer que ninguém pode determinar a vida alheia é o mesmo que dizer que só a pessoa tem o poder de se autodeterminar no que se refere à sua vida privada. Os direitos da personalidade, por sua vez, asseguram este ambiente decisório pessoal e íntimo que envolve as diversas fases do viver e parece abarcar também o exercício da autonomia para morrer, já que a morte compõe a vida, ainda que como sua derradeira etapa. E se assim o é, optar pelo suicídio assistido diante do cansaço existencial parece ser um direito protegido pelo nosso ordenamento jurídico. Aqui vale citar a relevante distinção entre ser humano e ser pessoa, duas perspectivas diferentes e pertinentes nesta análise, já que em casos ligados à morte digna e fim de vida, a dignidade a ser preservada não é aquela geral ligada à qualidade de ser humano, mas a outra, aquela específica dignidade atrelada ao ser pessoa, que é encontrada considerando o desenvolvimento pessoal da personalidade e as peculiaridades que tornam aquele indivíduo ele mesmo. Nesse contexto, a mesma situação, por exemplo, o suicídio assistido por suffering from life, pode vir a integrar o projeto de pessoalidade de alguém, e deverá ser tutelado porque, neste caso, a dignidade será protegida no respeito à escolha subjetiva assumida pela pessoa.14 Da mesma forma, para alguém que não contempla o suicídio assistido em seu ideal de "vida boa", a opção representará uma afronta à sua dignidade. Aqui vale o ditado popular: o que para uns é remédio, para outros é veneno. Rodotà, tratando de dignidade nas questões pessoais, as identifica como o núcleo da existência do homem e defende que o Estado, ao permitir este exercício da autodeterminação, não está fazendo uso de autolimitação de seu poder, mas operando verdadeira transferência de soberania ao indivíduo.15 O professor italiano refere-se à este espaço decisório próprio do indivíduo de spazio indecibile per il legislatore, ou seja, um ambiente delimitado pelo constituinte para o exercício da autonomia privada do indivíduo.16 É frequente a identificação da dignidade com a capacidade humana de autodeterminação, habilidade individual de fazer escolhas autônomas que devem ser respeitadas por representarem a autonomia moral do indivíduo. Numa sociedade pluralista e democrática, coexistem diversos projetos de vida divergentes que reclamam convivência harmoniosa. Como bem ensina Maria Celina Bodin de Moraes, o indivíduo, se não agride a ordem jurídica nem atenta contra direito de terceiros, tem poder sobre sua própria vida e morte, de modo que a intervenção do Estado à revelia da pessoa parece atentar contra a sua dignidade.17 O exercício da dignidade para à livre escolha quanto à morte remete inevitavelmente ao tão defendido direito à vida, que a despeito de ser de fato especial e representar um consenso nas sociedades ocidentais, não é absoluto. Tradicionalmente concebido como um direito irrenunciável e indisponível,18 surge a necessidade de revisitar tais características quando se trata das decisões de fim de vida. Por muito tempo prevaleceu a ideia da irrenunciabilidade/indisponibilidade desse bem jurídico, não havendo espaço para sua livre disponibilidade, nem para manifestação da vontade do ofendido. Este entendimento se encontra superado.19 Na verdade, a própria doutrina não obteve êxito na definição e determinação de que bens são ou não disponíveis, isto porque encontrar um critério diferenciador, num estado plural, fatalmente representará uma imposição do que seja ou não disponível conforme a moral dominante.20 Rose Melo Vencelau Meireles identifica que poder de disposição e autonomia privada se confundem, porque ambos representam o poder de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas, de modo que o caráter existencial das situações jurídicas não impede a existência de um poder de disposição do seu titular. Muito ao contrário.21 A escolha pela morte, se inserida dentro de um projeto de pessoalidade, integra o exercício do direito à vida, porque exprime sua realização ainda que seja para o seu fim. Nas palavras de Meireles (p. 159):22A afirmação de que as situações jurídicas existenciais são indisponíveis é demais simplória e desconsidera que a autonomia privada em termos exclusivamente patrimonialista é incompatível com a centralidade que a pessoa humana ocupa no ordenamento jurídico.  Em questão de vida e morte, ao se relativizar a dignidade para dar prevalência à vida, como defendem as concepções tradicionais, surgem situações dramáticas que desafiam o Direito, como o caso de Goodall e Wuillemin. Ainda que se reconheça hierarquia normativa entre os dispositivos do texto maior, certamente não estará a vida acima da dignidade humana, que como fundamento da República, detém superioridade axiológica frente a outros interesses reconhecidos.23 Szatjn24 afirma que a inviolabilidade da vida, defendida a ferro e fogo por tantos, vale contra terceiros, mas não pode se voltar contra o indivíduo, lhe suprimindo a capacidade decisória sobre a duração de sua vida. A vida inviolável, pois, é aquela que se amolda à autonomia individual do sujeito de direitos, em respeito à suas escolhas diante de seu projeto pessoal de vida. O ordenamento jurídico deve dirigir sua proteção à vida qualificada com os predicados escolhidos por cada ser humano e respeitada segundo os parâmetros por ele mesmo ditados. Viver de maneira precária, independentemente de critérios de qualidade, pode representar uma opção válida para muitos e até, em certos casos, uma dádiva. Mas não para todos. O suicídio assistido por suffering from life, como ato de autonomia existencial, merece tutela do ordenamento jurídico, porque conduz ao conteúdo jurídico da dignidade humana. A opção consciente e válida acerca da interrupção do envelhecimento se liga à realização do ideal de morte digna e se sobrepõe aos demais princípios constitucionais, porque prestigia o princípio-fonte do qual decorrem todos os outros. Ao Direito cabe exigir de alguém um comportamento que fira sua própria dignidade humana? Muito ao contrário: a ele cabe apresentar opções legítimas para o desenvolvimento pleno da personalidade, que se dará segundo as concepções de cada um, inseridas aí as decisões relativas à morte e o morrer.  _____ 1 DAVID Goodall: 104-year-old scientist to end own life in Switzerland. 2018. The Guardian [site], 2018. Disponível aqui.  2 Em 2017, o estado de Victoria, na Austrália, aprovou a Lei de Morte Assistida Voluntária. Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. Acesso: 07 jun. 2022 5 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Mundo terá 2 bilhões de idosos em 2050; OMS diz que "envelhecer bem deve ser prioridade global". Naçõesunidas.org [site], Brasil. Disponível aqui.  6 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Número de pessoas idosas com necessidade de cuidados prolongados triplicará nas Américas até 2050. Nacoesunidas.org [site], Brasil, 02 out. 2019. Disponível aqui.  7 IBGE notícias [site]. Disponível aqui.  8 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Panópitica, v. 5, n. 2, p. 69-104, 2010. 9 DRION, Huib. The self-chosen death of elderly people. NRC Handelsblad, 1991. 10 SERBETO, Enrique. Holanda aprobará uma pastilla letal para los mayores de 70 cansados de vivir. ABC sociedad [site]. Disponível aqui.  11 Esta descrição tem por base a exposição de motivos de E. Sutorius, J. Peters e S. Daniels pertencentes à Proeve van Wet que emergiu da iniciativa de cidadania «Vida concluída». 12 WIJNGAARDEN, E. Van. Ready To Give Up on Life. [s.l.] University of Humanistic Studies, Department of Care Ethics, 2016. 13 Disponível aqui.  14 SÁ, Maria de Fátima; MOUREIRA, Diogo. Autonomia para morrer. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 15 RODOTÀ, Stefano. Autodeterminação e laicidade. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, p. 139-152, 2018. 16 RODOTÀ, Stefano; MARTINI, Eleonora; FERRARA, Giuliano. Cultural a que asistimos y la libertad de conciencia. Entrevista, p. 1-3, 2008. 17 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, v. 1, p. 121-148, 2010. 18 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil constitucional positivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 19 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019. 20 MARINHO, Renato Silvestre. Princípio da autorresponsabilidade no direito penal. São Paulo: LiberArs, 2018. 21 MEIRELES, Rose Melo. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 22 Idem.  23 SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 24 SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista, 2018.
50 mil dólares por ano de vida salvo (AVS), ou então três vezes o PIB - Produto Interno Bruto per capita por anos de vida ajustados para qualidade (QALY, do inglês quality-adjusted life years) ou anos de vida ajustados para incapacidade (DALY, do inglês disability-adjusted life years). Esse é o montante internacionalmente aceito para fins de incorporação de uma determinada tecnologia (medicamentos, próteses, órteses e outros insumos) junto à um sistema público de saúde, conforme consta na justificativa no PL do Senado 415/15, do então senador Cássio Cunha Lima, que torna obrigatória a definição em regulamento e a divulgação do parâmetro de custo-efetividade utilizado na análise das solicitações de incorporação de tecnologias no âmbito do SUS1. O projeto de lei do Senado 415/15, foi convertido recentemente na lei 14.313/222. Inseriu-se o seguinte dispositivo no art. 19-Q, § 3º, da lei 8.080/90 (lei orgânica da Saúde): "As metodologias empregadas na avaliação econômica a que se refere o inciso II do § 2º deste artigo serão dispostas em regulamento e amplamente divulgadas, inclusive em relação aos indicadores e parâmetros de custo-efetividade utilizados em combinação com outros critérios". Publicação recente da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia, órgão federal vinculado ao Ministério da Saúde, aponta que a avaliação econômica e os parâmetros de custo-efetividade deverão ser pautados preferencialmente no desfecho de anos de vida ajustados pela qualidade (QALY)3. Doutrina especializada aponta que apesar dos méritos de tal indicador, ele não é capaz de atender toda a sociedade, como por exemplo no caso da população idosa e das pessoas com deficiência (14). Recursos de saúde, como tratamentos ou intervenções, medicamentos, equipamentos médicos e outros serviços, são finitos e naturalmente escassos. Isso ocorre como consequência da macro alocação de recursos nos governos - consequência das decisões políticas sobre o quanto gastar em saúde ao invés de educação, segurança e infraestrutura, por exemplo. A partir da falha do Estado em assegurar o atendimento às necessidades de saúde da população, influenciado, sobretudo pelo subfinanciamento do SUS,4 em conjunto a má gestão dos recursos públicos5, tem-se um movimento junto ao Poder Judiciário para aquisição de medicamentos, tratamentos e insumos, para fins de concretização de direitos constitucionais no tocante a saúde. No caso do Brasil, que é um dos cerca de cem países que reconhecem o direito constitucional à saúde6, incluindo a assistência farmacêutica integral, diversos desafios se apresentam no propósito de melhorar a qualidade dos medicamentos oferecidos no SUS, e torná-los acessíveis para toda a população. O aumento da expectativa de vida, a demanda de pacientes pela incorporação de tratamentos, a oferta de so?sticadas intervenções sanitárias e o envelhecimento da população contribuem para um processo de "medicamentação" ou "medicalização"7, ou ainda, de "farmaceuticalização"6, ou seja, utilizam-se medicamentos em situações que não podem ser consideradas como doenças, ou superestima os poderes dos medicamentos - tanto para a saúde quanto para a doença. Claramente vinculado ao modelo econômico-social vigente, o uso de medicamentos na sociedade está, portanto, distanciado dos critérios médico-sanitários científicos, ou do uso "racional"8. Em parte, por isso, tem crescido o recurso ao Poder Judiciário para a obtenção desses medicamentos. Dados disponibilizados pelo CNJ desvelam que o fornecimento de medicamentos é a principal causa de litígios em face do SUS, indicando que o tema exige a atuação coordenada de todos os atores do sistema de saúde e do sistema de Justiça9. Esse fenômeno, conhecido como "judicialização da saúde", já se institucionalizou no país, fazendo parte do SUS como mais uma porta de acesso. É inegável, no entanto, que esse ingresso muitas vezes viola o direito à igualdade de uma coletividade, que adentra o SUS pela porta da frente10. É fato que esse cenário fica ainda mais complexo com advento de novas tecnologias. A medicina regenerativa já permite a introdução de células modificadas para resgatar a função de órgãos afetados. Imunomoduladores e imunossupressores, de última geração, atuam no sistema imunológico conferindo aumento da resposta orgânica contra determinados microrganismos, promovem a divisão celular e têm propriedades anti-inflamatórias. As ferramentas de edição gênica, cada vez mais aprimoradas, podem modificar o DNA de células retiradas do próprio paciente, promovendo melhor resposta imunológica11. Tais tecnologias, em regra, estão em regime de monopólio patentário, e têm seus preços definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). No entanto, a despeito da regulação, o fato é que tais tratamentos muitas vezes não são acessíveis justamente por não serem custo-efetivos. Vide o exemplo do medicamento Zolgensma - usado para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), e conhecido como sendo o medicamento mais caro do mundo. Após chegar a custar cerca de 14 milhões de reais, com as variações do dólar, estabeleceu-se a quantia de R$ 6,5 milhões como parâmetro de venda do referido fármaco12. E a justificativa dos altos preços, segundo argumentação geralmente alinhavada pela indústria farmacêutica, por conta dos custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), não merece prosperar. Estudos apontam que os medicamentos contra o câncer, por meio de seus preços elevados, geraram retornos financeiros substanciais para as empresas que os originaram. Retornos excessivos sobre o investimento podem distorcer o papel central da P&D. Os preços altos restringem o acesso dos pacientes e comprometeram a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde. Para se ter uma ideia, dados apontam que para cada $1,00 (um dólar americano) investido em P&D para desenvolvimento do trastuzumabe, gerou um retorno financeiro para o laboratório detentor da patente de $31,20 (trinta e um dólares americanos e vinte centavos)13. O fato é que a CMED precisa ser fortalecida e ter à disposição ferramentas regulatórias que permitam aferir de maneira mais justa e precisa o valor dos novos produtos que chegam ao mercado brasileiro. Destaca-se, nesse sentido, o PL 5.591/20, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que busca estabelecer critérios mais precisos para a definição de preços de entrada dos medicamentos. A adoção de uma fórmula matemática, através de um determinado limiar de custo-efetividade, encontra seus limites como equação de justiça, considerando até mesmo os princípios de uma ética utilitarista. Ou seja, ainda que a previsibilidade e a transparência sejam necessárias para fins de incorporação de uma determinada tecnologia junto ao SUS, não pode ser considerada de forma isolada ou taxativa, sob pena de incorrer em implicações ilegítimas e espúrias. Como explicar para uma mãe, cujo filho foi diagnosticado com atrofia muscular espinhal, que o medicamento prescrito pelo médico assistente não poderá ser fornecido pelo estado, pois não é "custo-efetivo"? Verifica-se, porquanto, que apesar da importância estratégica para fins de transparência e alocação de recursos disponíveis para a saúde, um limiar de custo-efetividade e o QALY não podem se constituir em barreiras a outros critérios relevantes para a tomada de decisão sobre a incorporação de tecnologias no SUS. Há que se ter cuidado com a adoção explícita de limiares de custo-efetividade, especialmente pelos países em desenvolvimento. Tais índices não conseguem capturar todos os valores importantes para a sociedade, em particular implicações éticas, justiça distributiva e outras preferências sociais. Não se pode simplesmente transpor experiências internacionais. A definição desse valor é contexto-específica, depende da riqueza local, das características do sistema de saúde, da disponibilidade e capacidade de pagar, bem como das preferências sociais. Tais questões devem ser observadas quando da edição dos regulamentos previstos no art. 19-Q, § 3º, da lei 8.080/90. A efetiva proteção dos direitos sociais é tema suscetível de interpretações variadas, conforme convicções ideológicas e o savoir-faire do intérprete. A judicialização da saúde, nesse contexto, deve ser analisada como consequência de um fenômeno hermético, que envolve a necessidade do diálogo interinstitucional e a ação integrada, seja no enfrentamento ao atual sistema internacional de propriedade intelectual, seja na discussão de políticas de pesquisa, desenvolvimento e inovação, seja na regulação dos preços e do mercado farmacêutico ou da própria avaliação de tecnologias em saúde para fins de incorporação nas listagens oficiais. Um dos postulados de ética kantiana preconiza o seguinte: "No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade". Sabemos que a medicina tem um custo. Mas a saúde não tem preço, ela compreende uma dignidade. Que esse seja o norte dos operadores do direito e dos gestores públicos na consecução do direito social, fundamental e humano à saúde. _____ 1 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 415/ 2015. Disponível aqui.  2 BRASIL. Lei nº 14.313, de 21 março de 2022. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), para dispor sobre os processos de incorporação de tecnologias ao Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a utilização, pelo SUS, de medicamentos cuja indicação de uso seja distinta daquela aprovada no registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Disponível aqui. 3 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde. O uso de limiares de custo-efetividade nas decisões em saúde: proposta para as incorporações de tecnologias no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2021. 4 Santos AO, Delduque MC, Alves SMC. Os três poderes do Estado e o financiamento do SUS: o ano de 2015. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro. 2016; 32(1):e00194815. 5 Amaral TC. Direito à saúde: Dilemas do fenômeno da judicialização da saúde. Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit. Brasília. 2019; 8(2):123-32. 6 BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. Tratamentos jurídicos: os mercados terapêuticos e a judicialização do direito à saúde. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.1, jan.-mar. 2016, p.173-192. 7 BONFIM, J.R.A. Doenças crônicas, "medicalização" e iatrogenia. In: Nogueira R.P. et al (Org.) Observatório Internacional de Capacidades Humanas, Desenvolvimento e Políticas Públicas: estudos e análises 2. - Brasília, DF: UnB/ObservaRH/Nesp - Fiocruz/Nethis. 2015. 8 LEITE, S.N; VASCONCELLOS, M. da P.. Os diversos sentidos presentes no medicamento: elementos para uma reflexão em torno de sua utilização. Arquivos Catarinenses de Medicina, vol. 39, n. 3, p. 18-23, 2010. 9 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade. Brasília: CNJ, 2021. 10 TANAKA, O. A Judicialização da Prescrição Medicamentosa no SUS ou o Desafio de Garantir o Direito Constitucional de Acesso à Assistência Farmacêutica. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 1 p. 137-143 Mar./Jun. 2008. Disponível aqui.  11 UZIEL, Daniela. A avaliação de tecnologias em saúde e sua incorporação ao sistema único. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 23/07/2020. Disponível aqui. 12 VARGAS, Mateus; TOMAZALLI, Idiana. Governo Bolsonaro autoriza compra de remédio mais caro do mundo por até R$ 6,5 mi. Folha de São Paulo. Disponível aqui.  13 TAY-TEO, Kiu; ILBAWI, Andre; HILL, Suzanne R.. Comparison of Sales Income and Research and Development Costs for FDA-Approved Cancer Drugs Sold by Originator Drug Companies. JAMA Network Open. 2019;2(1):e186875. Disponível aqui. 14 Minayo, Maria Cecília de Souza, Hartz, Zulmira Maria de Araújo e Buss, Paulo MarchioriQualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2000, v. 5, n. 1 [Acessado 23 Maio 2022] , pp. 7-18. Disponível aqui. Epub 19 Jul 2007. ISSN 1678-4561. Disponível aqui. 15 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.
As relações privadas muitas vezes materializam-se na forma de negócios jurídicos, que são confeccionados com base na autonomia privada dos indivíduos. Assim, um negócio jurídico é "um ato de autonomia privada" (MIRANDA, 2009, p. 34) que visa "criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações, ou exceções" (MIRANDA, 2012, p. 55). Com os avanços das biotecnologias, têm surgido novos negócios que são denominados por Rose Melo Vencelau Meireles de negócios biojurídicos: A biotecnologia está no cerne dessa questão, na medida em que possibilita a escolha sobre aspectos do próprio corpo que podem promover efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos. Nesses casos, conforme antes mencionado, a autonomia ganha a forma de negócio jurídico. Como têm por referencial objetivo aspectos da saúde e do corpo do declarante, foram aqui chamados de biojurídicos (MEIRELES, 2016, p. 115) Esses negócios têm como objeto o próprio ser humano e afetam diretamente a sua vida. Alguns exemplos são: disposição de material genético, diretiva antecipada de vontade e contrato de reprodução humana assistida. Ademais, deve-se destacar que uma terminologia específica para tais negócios se revela pertinente em razão da complexidade dos assuntos abrangidos por tais documentos, além de que se percebe que a Teoria Clássica do Negócio Jurídico nem sempre se enquadra na sua interpretação (PAVÃO; ESPOLADOR, 2018). Entretanto, tais negócios sempre terão como pilar a autonomia privada, conduzindo, no campo da saúde, à busca da autodeterminação dos pacientes. Neste contexto, é oportuno citar as palavras de Juliano Ralo Monteiro sobre a diferença entre autonomia privada e autodeterminação: Decompondo a palavra autodeterminação tem-se auto (próprio) + determinatio (limites, divisas), que significa "estabelecimento dos próprios limites". Já a autonomia deriva autos ("próprio") + nomos ("regra", "governo", "lei"), ou seja, "fixação das próprias regras". Com efeito, aqui está a se falar de tema muito mais amplo que a autonomia. Não se trata apenas de uma liberdade jurídica, como quer a autonomia, mas sim, significa dizer que o indivíduo há de ser senhor de seu corpo, mente e espírito que além de direito natural, recebe a tutela máxima existencial do ordenamento jurídico, independentemente de qualquer fator externo de sujeição do indivíduo (MONTEIRO, 2021, s/p). Assim, quando o paciente expressa a sua vontade sobre o seu corpo e como ele deve ser tratado, aquela vontade deve ser respeitada pelos profissionais de saúde e familiares, porquanto o paciente revela-se, em regra, dotado de discernimento. Tal previsão é reflexo do princípio bioético da autonomia, que defende que "respeitar um agente autônomo é, no mínimo, reconhecer o direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em valores e crenças pessoais" (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 142). Obviamente, faz-se necessário que o indivíduo apresente discernimento para que a sua vontade seja considerada válida; isso significa que ele deve estar em plenos poderes das suas capacidades mentais. Em caso de negativa, a decisão é transferida para um representante que deve atuar seguindo o melhor interesse do paciente ou na forma da recente "tomada de decisão substituta". No âmbito da saúde, para que o paciente possa exercer a sua autonomia, é fundamental que seja devidamente informado acerca dos riscos e benefícios do procedimento/tratamento pertinente à sua condição, assim como as consequências em caso de recusa. Tal exigência consubstancia-se tanto no referencial bioético da beneficência quanto nas previsões normativo-jurídicas constitucionais e civilistas, como sabido. Para formalizar tal decisão, o paciente deve subscrever o denominado "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" (TCLE), com o escopo de permitir que terceiro possa atuar sobre a sua esfera jurídica no tocante aos direitos inerentes de sua exclusiva titularidade (SOARES, 2021). A Resolução CFM 1/2016 traz diversos requisitos a serem verificados quando da elaboração do TCLE, tais como: riscos, benefícios, imprescindibilidade de esclarecimento e de manifestação livre de vontade. É extremamente importante que o termo seja formalizado de forma completa e adequada, uma vez que sua incompletude ou eventual omissão podem ensejar responsabilidade civil médica, como no caso do REsp nº 1.540.580 do Superior Tribunal de Justiça. Neste julgamento, a Corte condenou um hospital ao pagamento de indenização pela violação do dever de informar, tendo em vista que a informação prestada ao paciente, antes do procedimento, foi incompleta. 5. Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado. 6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por lhe ter sido retirada a oportunidade de ponderar os riscos e vantagens de determinado tratamento, que, ao final, lhe causou danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente1 (BRASIL, 2018). Além do termo, outro documento importante para apresentar a vontade do indivíduo é a Diretiva Antecipada (DA). A DA é um documento no qual a pessoa expressa sua vontade sobre seu corpo e sobre tratamentos que aceita ou não se submeter, devendo ter efeitos quando o indivíduo estiver incapacitado de manifestar a sua vontade (ESPOLADOR; PAVÃO, 2021). Um dos principais objetivos da declaração prévia de vontade é garantir ao paciente que seus desejos serão atendidos no momento de terminalidade da vida e proporcionar ao médico um respaldo legal para a tomada de decisões em situações conflitivas (DADALTO, 2013). Apesar das normas deontológicas e jurídicas que direcionam a perfectibilização de tais instrumentos de manifestação de vontade, alguns classificados como ato jurídico "sui generis", outros como efetivos negócios jurídicos existenciais, podem surgir conflitos sobre os limites e possibilidade de atendimento e respeito à vontade da pessoa. Neste âmbito, surgem algumas demandas judiciais, principalmente no tocante as diretivas antecipadas, tendo como escopo o respeito aos desejos do indivíduo, em suma. Um dos possíveis conflitos traduz-se na forma como a manifestação de vontade está sendo apresentada; se é válida ou não. Nesse sentido, houve um caso no ano de 2021 que chegou ao STJ, o REsp 1.918.421-SP. Um casal havia criopreservado embriões, com material genético de ambos, em um hospital. O homem já tinha dois filhos de um relacionamento anterior, que apenas foram informados da existência dos embriões com material genético do pai após o falecimento deste. Quando souberam que a madrasta desejava implantar dois embriões, os filhos do falecido ingressaram com uma ação judicial para impedir o procedimento (MEIRELES, 2021). O caso envolve a discussão sobre a reprodução humana assistida post mortem, enfrentando mais profundamente a questão se havia ou não autorização do falecido para realizar esse procedimento. O falecido havia assinado os seguintes documentos "Orientação e Esclarecimentos sobre o Procedimento de Reprodução Humana" e "Declaração de Opção de encaminhamento de material criopreservado em caso de doença incapacitante, morte, separação ou não utilização no prazo de 3 anos ou 5 anos". Conforme os documentos assinados, em caso de falecimento do marido, a mulher ficaria com a custódia dos embriões criopreservados (MEIRELES, 2021). Um ponto interessante do caso é que o falecido havia deixado testamento contemplando a viúva e os dois filhos, sem tratar especificamente dos embriões e nem de futuro filho que pudesse ser gerado. Frente a esse testamento, resultou a dúvida se ele havia consentido ou não a implantação post mortem dos embriões. O voto vencido, do ministro Marco Buzzi, foi favorável a decisão da instância inferior, que permitia a implantação, uma vez que o consentimento do falecido estava previsto na transferência de custódia dos embriões para sua esposa, em caso de falecimento; assim, deduziu-se que ela poderia utilizá-los. Contudo, o voto vencedor, do ministro Luis Felipe Salomão, foi contrário a decisão da instância inferior, afirmando que não havia consentimento expresso, específico e formal para o ato. Os dispositivos que fundamentaram o voto foram: resolução do CFM 2.294/21 (prevê a necessidade de o indivíduo manifestar a sua vontade, de forma escrita, quanto ao destino dos embriões criopreservados, no momento da criopreservação) e  o provimento 63/17 do CNJ (determina que para o registro civil de criança gerada por meio de reprodução assistida póstuma, além dos documentos da RHA, deve também apresentar o "termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida"). Por oportuno, deve ser observado o seguinte trecho da ementa da decisão do STJ: 12. A decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia (BRASIL, 2021). A respeito desse caso, Rose Melo Vencelau Meireles comenta: Nesse sentido, a exigência de forma atende à função do negócio jurídico celebrado. O vínculo paterno-filial, ainda que post mortem, implica em um conjunto de situações patrimoniais e existenciais dele decorrentes. A forma assegura o efetivo consentimento do declarante. Nos negócios existenciais (ou dúplices, por envolverem situações dupla natureza, patrimoniais e existenciais), o princípio do consentimento qualificado reforça a necessidade de se obter a vontade expressa, espontânea, pessoal, atual e esclarecida do declarante, exatamente pelos efeitos pessoais e, na maioria das vezes, irreversíveis que promovem. O engano ou presunção quanto à autorização da reprodução humana post mortem, por exemplo, não poderia desfazer a gestação se comprovado posteriormente inexistir o consentimento. Dessa feita, o cuidado preventivo a partir da interpretação criteriosa da vontade mostra-se o caminho mais acertado. (MEIRELES, 2021, p. 14) As ponderações da professora supracitada são extremamente válidas, deve-se ter muito cautela quando se trata da reprodução humana assistida, uma vez que não é possível desfazer o ato sem configurar ilícito penal. Entretanto, devem-se considerar alguns pontos do caso narrado. 1. As normas aplicadas não são dispositivos propriamente jurídicos, mas sim regulamentações de natureza diversa. 2. O CC/02 não apresenta previsão de forma específica de manifestação de vontade na reprodução póstuma a ser exigida pela Corte, podendo-se, salvo melhor juízo, aduzir que qualquer manifestação livre e inequívoca de vontade deve ser aceita. 3. A Corte fixou que a manifestação de vontade deve ser expressa por meio de testamento ou instrumento que valha em formalidades e garantias. Diante disso, percebe-se que a Corte criou uma exigência de formalidade negocial que não está prevista em lei. Ademais, outros pontos importantes que devem ser considerados: 4. A existência dos documentos assinados pelos falecidos pode indicar a sua manifestação de vontade; 5. O falecido poderia ter revogado os documentos assinados a qualquer momento; 6. A criopreservação dos embriões indica o planejamento familiar do casal; 7. A custódia dos embriões à esposa parece indicar a vontade do falecido sobre o direito de sua esposa em relação ao manejo dos embriões. Frise- se que todos estes são indícios que podem ser analisados a partir das informações extraídas do caso concreto. A instrumentalização de uma manifestação expressa do falecido sanaria qualquer dúvida, mas deve-se entender que não há uma formalidade específica em lei. Nesse caso, o mais adequado é analisar as circunstâncias que envolvem os fatos, com o intuito de provar se o homem desejava ou não ter filhos com a esposa, mesmo se este estivesse falecido. Tal análise já foi realizada no Tribunal de Justiça do Paraná, em um caso de 2011, no qual o tribunal concedeu à viúva autorização para utilizar o sêmem do marido falecido que estava criopreservado (SÁ; NAVES, 2021). Nesse caso, o marido criopreservou o seu material genético quando foi diagnosticado com câncer, porque desejava ter filhos com a esposa. Entretanto, ele faleceu sem manifestar a sua vontade sobre a destinação dos embriões nessa situação. Como não tinha manifestação expressa, houve a reconstrução da vontade por meio do Poder Judiciário, que considerou que mesmo não havendo manifestação de vontade escrita, era possível compreender que a vontade do falecido era a implantação (SÁ; NAVES, 2021). Apesar das ressalvas apresentadas acima, tendo em vista as regulamentações do CNJ e do CFM e a atual decisão do STJ, é extremamente importante que as clínicas e hospitais que realizam técnicas de criopreservação de embriões adequem suas documentações. Por ser o posicionamento mais atual sobre o tema, é importante reforçar que quem deseja ter sua vontade respeitada deve seguir a formalidade exigida pelo STJ, logo, apresentar um dos documentos especificados na decisão, caso opte por autorizar a reprodução humana assistida post mortem. Esta breve análise ressalta que há uma carência de regulamentação jurídica sobre reprodução humana assistida no Brasil, o que gera insegurança. Nas questões que envolvem o Biodireito e as novas tecnologias, sabe-se que as diretrizes interpretativas provêm de fontes normativas diversas e todas elas devem ser consideradas, sejam os referenciais bioéticos presentes em diversas resoluções na seara da saúde e salvaguarda dos direitos do paciente, seja nas demais fontes jurídicas que se amoldam a situações existenciais que demandam um olhar diferenciado e peculiar. Assim, o tema deve ser cada vez mais debatido e necessita de uma regulamentação pelo Poder Legislativo. Trata-se de reivindicação que tem sido há anos sustentada pela doutrina nacional. Casos como o narrado nesta coluna sinalizam a importância do Direito em questões biojurídicas, que demandam soluções determinantes em prol do atendimento dos interesses da pessoa humana em sua integralidade, seja prevendo documentos e formalidades jurídicas adequadas ou permitindo a forma livre, para que os indivíduos tenham segurança no que se refere a validade de seus atos e negócios. _____ 1 Para mais informações, acesse aqui. 2 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípio de ética biomédica. Tradução: Luciana Pudenzi. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013. 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.918.421-SP. Recorrentes: LZN, FZ, SBDES-HSL. Recorrido: TDACRZ. Relato: Ministro Marco Buzzi. Julgamento: 08 jun 2021. Publicado em 26/08/2021. 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1540580/DF. Recorrentes: Dimas Pereira e Abrahao e outros. Recorridos: Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio Libanês. Relator: ministro Lázaro Guimarães. Julgamento 2 ago 2018. Publicação 04/09/2018. 5 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Revista de bioética y derecho, n. 28, p. 61-71, 2013. 6 ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa; PAVÃO, Juliana Carvalho. O Biodireito na atualidade: diretiva antecipada de vontade e bebê-medicamento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, MG, v. 49, n. 1, pp.233-247, jan/jul 2021. 6 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Comentários ao Recurso Especial nº 1.918.421-SP: desafios da reprodução humana assistida post mortem. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021. Disponível aqui. 7 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016. 8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo III. Bookseller: Campinas, 2012.  9 MONTEIRO, Juliano Ralo. A autodeterminação nos cuidados da saúde. Contraditor. Publicado em: 03/09/2021. Disponível aqui.  10 PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018. 11 SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Reprodução Humana Assistida Post Mortem: Planejamento Familiar, Reconstrução da Vontade e Responsabilidade Civil à Luz do Caso da Escocesa Ellie. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ROSENVALD, Nelson; MULLEDO, Renata Vilela (Coords). Responsabilidade Civil e Direito de Família: O Direito de Danos na Parentalidade e Conjugalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. E-pub. 12 SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.
o mês de abril do ano corrente, um casal de médicos compareceu a um hospital em uma posição diferente da de costume. A médica compareceu na qualidade de esposa e acompanhante do seu marido, que apresentava quadro de dor abdominal intensa. Uma vez recebido pela equipe de plantão, foi examinado e medicado. Dentre os exames solicitados, estava uma tomografia do abdômen total que revelou um cálculo no aparelho urinário, localizado no ureter. Após a confirmação do diagnóstico, a plantonista se dirigiu ao casal informando que havia entrado em contato com a equipe de urologia do hospital e que houve a indicação de internamento para retirada do cálculo através de intervenção cirúrgica - endoscopia, e que ela já estava providenciando o internamento. Ela se retirou e o paciente, em diálogo com sua esposa, manifestou o desejo de não ser internado, pois preferia um tratamento conservador. Diante disso, a acompanhante e esposa do paciente se dirigiu à médica plantonista solicitando que não fizesse o pedido de internamento, pois naquele momento o paciente não desejava ser internado. Em resposta, a profissional de plantão respondeu: "Então ele prefere perder o rim?" A médica e acompanhante referiu que não, que o seu desejo era dialogar com médico urologista para discutir quais medidas seriam possíveis para que pudesse decidir. Como o paciente já se encontrava sob acompanhamento de um urologista, tendo realizado consultas de rotina previamente, foi feito contato com esse profissional, o qual se dirigiu ao hospital, analisou os exames, conversou com o paciente abordando as vantagens e desvantagens do procedimento cirúrgico. Também esclareceu que havia a possibilidade de aguardar a eliminação do cálculo espontaneamente, podendo ser medicado e ter alta. Após as informações compartilhadas, o paciente decidiu pela alta. Em menos de uma semana, sem necessidade de internamento ou cirurgia, o cálculo foi expelido e o médico em questão encontra-se bem. Observe-se que, em nenhum momento, a equipe de urologia do referido hospital esteve, presencialmente, examinando o paciente ou orientando-o sobre as possibilidades existentes. O internamento foi decidido de forma unilateral, a partir de um exame de imagem. O paciente e sua esposa são pessoas próximas e, apesar da distância, acompanhei remotamente o atendimento e observei a angústia vivenciada na interação com a equipe hospitalar. Esse episódio evidencia a importância da atividade realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no dia 04 de maio de 2022, a saber, um webinar sobre o tema "Nenhum homem é uma ilha: alteridade na relação médico-paciente" (disponível no YouTube). Minha proposta, aqui, é travar um diálogo com o que foi exposto durante o webinar referido, a partir da minha experiência como cidadã, advogada e pesquisadora em Direito Médico e Bioética. Desenvolvo estudos sobre alteridade há quase dez anos, os quais culminaram na publicação do livro "Revisão das bases da Bioética Global: direitos humanos, alteridade e relação entre estranhos morais" (disponível na Amazon e na Editora Mente Aberta). Para a devida compreensão do assunto e deste escrito, é preciso esclarecer: o que é alteridade? É muito comum conceituá-la como o exercício de se transferir ou de se colocar no lugar do outro, de sentir a experiência do outro. A partir do referencial teórico que venho adotando - a obra do autor francês Emmanuel Levinas, a alteridade apresenta conteúdo diverso. Trata-se de um modo especial de agiri que desloca a tendência humana ao individualismo. No marco da alteridade, a relação entre Eu e Outro se dá em um ambiente em que o Outro não estará sujeito a categorizações ou ao domínio do Eu. Em outras palavras, é viabilizar que o Outro - em sua diversidade, revele-se sem que tenha sua existência apagada ou pasteurizada por uma cultura dominante, tornando-se o protagonista da significação de si. O Outro coloca em xeque as premissas morais sobre as quais o Eu edificou sua identidadeii. Estabelecida uma relação nesses termos, a alteridade se revela como a heterogeneidade radical do Outro, despertando no Eu o desejo de se orientar em direção ao diverso, não para dominá-lo, mas sim para conhecê-lo. Levinas chega a atribuir a essa relação ética entre diferentes um caráter docente, sendo a diferença o locus do aprendizadoiii. Essa revelação autêntica, livre de categorizações, permite a aproximação entre o Eu e o Outro. Do quanto visto até aqui, percebe-se que o Eu não poderia efetivamente se colocar no lugar do Outro, mas sim permitir que o Outro se revele sem prévias categorizações, ouvir atentamente sua súplica e, diante daquilo que os tornam interdependentes, assumir e exercer sua responsabilidade em face do Outro. Essa postura de abertura e acolhimento é designada de justiça por Levinas, único caminho para se alcançar a igualdade materialiv. A interdependência mencionada se revela na vulnerabilidade substantiva, aquela que atravessa a existência de todo ser humano. O Eu, diante do Outro que suplica por justiça, é instado a agir e assumir sua responsabilidade na dinâmica socialv. Em quê tudo isso se relaciona com a relação médico-paciente? No webinar que motivou a escrita desta coluna, foi suscitada uma reflexão de máxima importância: "É o Outro que dá sentido à arte médica". A diversidade é marco da vida em sociedade. A despeito de ser possível identificar uma tábua de valores hegemônica em dado local e tempo, é certo que diversas comunidades coexistem, alimentando premissas morais distintas e que, muitas vezes, orientam a adoção de condutas distintas. Daí emergem possíveis situações conflituosas, agravadas por uma prática médica que reduz o paciente à sua esfera biológica, de corpo orgânico em funcionamento. Como bem salientado durante a atividade do CFM, é preciso conhecer o paciente por completo, em seus aspectos biológico, psicológico, social e espiritual. É preciso adentrar sua biografia, suas dores, seus anseios. Do contrário, pode-se chegar a situações de nulidade do consentimento conferido para a realização de dado tratamento, por deficiências ou ausência de diálogo suficiente para viabilizar, de fato, um consentimento livre e esclarecido. Certa vez, durante a aula de um curso de pós-graduação em Direito Médico, em que se discutia o que seriam boas práticas diante da recusa de transfusão de sangue por pacientes Testemunhas de Jeová, um participante assim se colocou: "eu diria ao paciente que não faria o procedimento, mas, se necessário fosse, o faria, envolvendo a bolsa de sangue para que a realização da transfusão permanecesse oculta". Esse posicionamento importaria no aniquilamento do Outro (paciente), cuja manifestação de vontade seria ignorada em detrimento da percepção do Eu (médico) a respeito do que seria melhor para si. Como se vê, a recusa de tratamento médico é situação especialmente desafiadora. A grande questão reside em saber quem determina o que é "fazer o bem": o médico, conforme seus valores pessoais, ou o paciente, conforme sua percepção de vida digna. Para melhor apresentar o pluralismo moral próprio da contemporaneidade, Engelhardt Jr. cunhou o termo "estranhos morais" como referência às interações entre pessoas que não compartilham premissas morais suficientes para resolver controvérsias por meio de uma argumentação racional, ou ainda que não apresentam um compromisso comum com os indivíduos ou instituições dotadas de autoridade para resolvê-lasvi. Os "amigos morais", a contrario sensu, seriam aqueles que compartilham as mesmas premissas morais ou que atribuem a autoridade específica competência para resolver eventual conflito. Durante a atividade desenvolvida pelo CFM, foi dito que a judicialização da medicina fez com que o médico, antes amigo moral dos seus pacientes, passou a se ver como estranho moral. Sustentou-se, ainda, que o médico deve ter, em seu paciente, um amigo moral. Ocorre que, a rigor, ter no paciente um amigo ou estranho moral não passa pela vontade ou atitude do médico. Considerando a diversidade como traço inevitável da sociedade contemporânea, é natural, e até mesmo esperado que, por vezes, médico e paciente sejam estranhos morais. Voltemos a falar sobre a recusa de transfusão de sangue por paciente Testemunha de Jeová. Se médico e paciente não compartilharem das mesmas crenças, a discordância irá se instalar. Para os fins desse breve texto, menos importa a conduta a ser efetivamente adotada - transfundir ou não transfundir, estando o foco no desenrolar dessa relação entre duas pessoas. Se o médico não pode garantir que o paciente que chega e se revela estará assentado nas mesmas premissas morais a partir das quais orienta seu agir, poderá orientar seu diálogo e acolhimento no marco da alteridade, promovendo saúde para além do aspecto biológico. No caso inicialmente compartilhado, temos duas práticas profissionais distintas. De um lado, o exame e diálogo presenciais, com os esclarecimentos sobre as alternativas disponíveis. De outro, a transmissão de decisão unilateral de um colega de sobreaviso e a irritação diante da recusa, provocando uma angústia desnecessária. Não há maior indício da tendência ao egoísmo e dominação do Outro do que o incômodo com a Outridade. _____________ i NEVES, Maria do Céu Patrão. Alteridade e direitos fundamentais: uma abordagem ética. Revista Direitos Fundamentais e Alteridade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 69-86, jul.-dez. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 maio 2022. p. 70-72. ii LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (Coord.) Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004. p. 195-201. iii Id. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino S. Pivalto (Coord.) Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. p. 21-23. iv Id. Totalidade e infinito. Tradução: José Pinto Ribeiro. 3. ed. Coimbra: Edições 70, 2014. p. 60-61. v Ibid. p. 59. vi ENGELHARDT JR., H. Tristam. Fundamentos da bioética. Tradução: José A. Ceschin. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 32.
Tendo em vista a norma constitucional brasileira, sabe-se que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"1. Ou seja, preenchidos os requisitos processuais, ainda que apenas se trate de circunstância posteriormente verificada como não apta a comprovar descumprimento de obrigação profissional médica, é dever do órgão judicial a apreciação da questão, de maneira a elucidar os fatos e analisar fundamentos jurídicos postulados. Conforme este raciocínio, o autor de uma demanda judicial, no presente caso, o paciente, ampara-se no Poder Judiciário, em busca da restauração de direitos considerados maculados, e suscita acusações tendo por base certezas ou dúvidas que poderiam compor um processo de esclarecimento e provável consensualidade por via diversa aos caminhos da judicialização. Atualmente, neste sentido, observa-se um contexto de judicialização excessiva na relação médico-paciente, em que se dá um persistente aumento de demandas judiciais propostas por pacientes contra médicos, evitáveis por meio distinto ao processo judicializador. Este contexto excessivo, contudo, é capaz de implicar no esgotamento da proposta constitucional de apreciação de lesão ou ameaça de direito, tendo em vista a consequente incapacidade do judiciário de absorver, com a devida celeridade, o crescente volume de pleitos2. A morosidade percebida, assim, passou a contrariar fundamentos também consagrados no processo civil brasileiro, como os princípios da "brevidade" e da "utilidade", que traziam a perspectiva de desenvolvimento do processo em menor tempo possível, com o cumprimento dos prazos, adequadamente, tanto pelas partes quanto pelos julgadores3. Em contrapartida, as atuais normativas processuais civis4 pretenderam reforçar a possibilidade de modificação deste perfil e buscar enaltecer a capacidade dos sujeitos em resolver conflitos por suas próprias razões e decisões. Este perfil normativo coaduna com a perspectiva da Bioética de Intervenção, que trabalha com o conceito de empoderamento dos sujeitos em prol de suas participações nos processos de tomadas de decisão a respeito de suas questões individuais e coletivas5. O CNJ já vem traçando esforços neste sentido, concernentes aos processos já apresentados à esfera judicial. Trata-se de uma proposta de modificação de perfil de enfrentamento dos litígios no Brasil, tanto extrajudicial quanto judicial, que se aproxima, ainda, ao movimento ADR - Alternative Dispute Resolution, iniciado nos EUA na década de 1970, surgido tendo em vista os custos crescentes e os atrasos cada vez mais inerentes aos processos judiciais6. Segundo o CNJ, esta proposta brasileira tem buscado refletir "um movimento de consensualização do Poder Judiciário uma vez que passa a estabelecer a autocomposição como solução prioritária para os conflitos de interesse"7. E ainda constata: "Isso significa que o legislador crê que a maior parte dos conflitos pode ser resolvida por meios consensuais"8. Assim, é possível pensar-se na resolutividade de conflitos entre médicos e pacientes tanto no início de processos judiciais já instaurados, quanto em momentos imediatamente anteriores, tal como se dão as propostas extrajudiciais de consenso, em que eventual decisão ainda é efetivamente regida pela vontade e discurso dos sujeitos. É importante notar que, mesmo com os esforços institucionais e normativos, incitar a possibilidade de composição de conflitos por meio da própria autonomia das partes apresenta-se como um desafio, tendo em vista a presença das estruturas de poder havidas das relações e vulnerabilidades, conforme ressaltado por estudos da bioética de intervenção. É o que Warat9 traz em sua explanação sobre as diferenças nas relações sociais, que devem ser compreendidas, embora, sem resignação: Claro que, para existir autonomia e um recíproco reconhecimento das diferenças, é imprescindível renunciar ao mito de uma sociedade perfeita, na qual as relações sociais são pacíficas e transparentes, os conflitos e desigualdades sociais totalmente eliminados e os homens todos bons, fraternos e solidários. Para que existam autonomia e reconhecimento das diferenças, teremos que aceitar o caráter inacabado e indeterminável das relações sociais, dado que elas, em cada instante, se refazem de um modo imprevisível. Temos que nos aceitar como integrantes de uma sociedade produtora de discursos ambíguos, indeterminados, de uma sociedade que precisa assumir sua radical criatividade e o caráter indeterminado de sua história. Temos que nos aceitar formando parte de uma sociedade que deve deixar de lado seus medos frente às suas divisões e seus conflitos constituintes10. Neste sentido, uma noção do real contexto social torna-se fundamental à conseguinte proposta de tentativa de sua modificação. Esta perspectiva real, se acredita, é enfrentada pelos estudos da mencionada teoria bioética, que examina as relações intersubjetivas de poder sob o ponto de vista da opressão social, acredita que a ausência de concretização de direitos promove um distanciamento do que vem a ser a liberdade e o empoderamento do cidadão, e nota o quão ainda é uma pretensão futura o encontro do estágio de um sujeito emancipado socialmente11. O que se pretende, neste contexto, é pensar em uma possível contribuição das perspectivas trabalhadas pela bioética de Intervenção em um significativo esforço a ser aplicado na atual conjuntura normativa judicial, propensa a possibilitar o abandono da ideia de substituição do poder popular pelo poder decisório dos juízes, a partir do enaltecimento da capacidade das partes de solucionarem, entre si, os seus próprios conflitos, em autocomposição. Segundo depreende-se da apresentação desta teoria por seus autores Volnei Garrafa e Dora Porto, é que analisa problemas morais concretos em uma perspectiva contra hegemônica, em especial diante da realidade latino-americana, de insuficiente estruturação de direitos individuais e coletivos, contexto que se pode observar no âmbito da saúde e, inclusive, no decurso da relação médico-paciente. Assim, ao trazer as noções de libertação, empoderamento e emancipação moral como potencialmente modificadores de contextos, têm-se a teoria como capazes de auxiliar na modificação do cenário judicializador na relação médico-paciente. Correlato ao tema, sob o ponto de vista da autocomposição e a perspectiva social democrática, Didier afirma: Compreende-se que a solução negocial não é apenas um meio eficaz e econômico de resolução de litígios: trata-se de importante instrumento de desenvolvimento da cidadania, em que os interessados passam a ser protagonistas da construção da decisão jurídica que regula as suas relações. Neste sentido, o estímulo à autocomposição pode ser entendido como um reforço da participação popular no exercício do poder - no caso, o poder de solução dos litígios. Tem, também por isso, forte caráter democrático12. Em contrariedade, mantendo-se a substituição deste poder pelo judiciário, a percepção é oposta e, portanto, tem-se a heterocomposição13, que é o modelo tradicional de composição dos conflitos até então instalado no Brasil, e que se caracteriza pela prática de solução determinada pelo juiz14. Sobre estes modelos da autocomposição e heterocomposição, importante destacar uma distinção abordada pelo CNJ15 a respeito dessas duas formas de resolução de litígio, que observa uma perspectiva de humanização na autocomposição: Na autocomposição, parte-se da premissa de que o centro do processo são as pessoas que o compõem. Desta forma se faz necessário atentar às necessidades materiais e processuais que os interessados têm ao se conduzir uma mediação ou uma conciliação. Na heterocomposição, por sua vez, há preocupação com a transparência do processo de forma que deve prevalecer a regra procedimental que tiver sido normatizada16. Observe-se que, ao abordar as necessidades materiais ou processuais das partes, a proposta aproxima-se da valorização da atenção às vulnerabilidades dos sujeitos, em quaisquer dos sentidos anteriormente estudados. Em especial, pode-se destacar uma aproximação à vulnerabilidade social, bastante valorizada pelos estudos da bioética de intervenção, sobretudo quando dificuldades relativas à instrução educacional ou socioeconômicas fazem parte da realidade de um dos sujeitos participantes da relação. O estudo de conflitos intersubjetivos entre médicos e pacientes na assistência em saúde e a possibilidade de enaltecimento da capacidade decisional de sujeitos no âmbito do judiciário remetem o pesquisador, por condução lógico-dedutiva, ao estudo dos fundamentos da própria perspectiva legislativa de estímulo à autocomposição. Esses fundamentos, considerados pelos textos das normas enquanto princípios, são a base sobre a qual serão construídas, no âmbito prático, as regras de atuação conseguintes a serem exercidas pelos atores judiciais. Para esta análise, é possível eleger-se alguns deles por aproximação temática com a Bioética de Intervenção, em consonância com as apreciações sobre relação de poder, simetralização, autonomia e vulnerabilidade. São eles, os princípios da "autonomia da vontade", da "oralidade", da "informalidade" e da "decisão informada"17. Inobstante já ser conhecida a definição de autonomia, importante salientar a sua motivação enquanto fundamento da proposta mediadora. É que, pressupondo um exercício de liberdade, compreende-se tanto a possibilidade de ingerência das partes, paciente e médico, em definir suas próprias soluções para o conflito, quanto a proibição de exercício de qualquer constrangimento à autocomposição pelo sujeito mediador18, que deve funcionar apenas como orientador, conforme definido pelas normas a seguir dispostas. Ao abordar a oralidade e a informalidade, a legislação propõe a realização dos atos sem cerimônia, em uma tentativa de propiciar leveza, fluidez e familiaridade. Oportuniza, de tal modo, a manutenção dos comportamentos comuns aos sujeitos, o que conforma uma estrutura diversa dos rituais e simbologias estigmatizados nas atuações jurisdicionais19, capazes de produzir o que Foucault denominou de "ritual da circunstância", como uma limitação ou interdição imposta socialmente, a alguns sujeitos, em determinados ambientes de discursos20. Necessária, logo, a utilização de linguagem simples, com vocabulário próprio aos sujeitos, o que coaduna com a ideia desenvolvida na reflexão sobre o consentimento informado e esclarecido na assistência à saúde, e redução dos impactos das relações de poder pelo saber, trabalhadas na perspectiva da Bioética de Intervenção. Esta noção é trazida pelo princípio da decisão informada, que torna imprescindível a ocorrência de consenso apenas após a compreensão da questão, dos termos do acordo e de suas consequências, por médicos e pacientes durante a autocomposição. Segundo Didier, a "informação garante uma participação dos interessados substancialmente qualificada. A qualificação da informação qualifica, obviamente, o diálogo"21. A respeito da percepção de isonomia entre os sujeitos participantes do processo de tentativa de mediação, no caso da relação entre médicos e pacientes este princípio pode ser compreendido como busca pelo estabelecimento de "simetria". Trata-se de uma simetria almejada, tendo em vista as relações de poder que se fazem presentes, em especial diante de vulnerabilidades como a social, que se soma aos contextos específicos de cada âmbito que se está a discutir. Na relação assistencial estão presentes peculiaridades, dentre elas as questões de saúde/doença - que, por si só, já são capazes de vulnerabilizar o indivíduo -, e a pouca efetivação de políticas públicas favoráveis à concretização dos direitos humanos, o que já enseja a dificuldade no diálogo simétrico entre os sujeitos. Por mais que as normas processuais civis brasileiras tenham atentado para a perspectiva de empoderar os sujeitos no decurso da pretensão mediatória, o descortinamento das relações de poder-saber presentes originalmente carece de apresentação, visto que se mantém. No presente caso estudado, trata-se de uma relação entre médicos e pacientes originalmente assimétrica que, ao ser mediada, trará consigo o histórico vivenciado entre estes, além do histórico concernente à medicina em suas relações intersubjetivas. Conforme visto, as estruturas que permeiam o diálogo entre médicos e pacientes vão além das normas jurídicas, sendo enriquecidas por expectativas sociais de êxito, incompreensão sobre fenômenos iatrogênicos, dificuldades no estabelecimento de comunicações simétricas, dentre outras questões que, caso sejam negligenciadas, podem ser capazes de promover, de início, uma continuidade da mesma estrutura hegemônica previamente vivenciada. Portanto, para que se esteja efetivamente discutindo conflitos advindos de uma relação assistencial, é necessário, aos atores, iniciando-se pelo mediador, que irá conduzir a proposta autocompositiva, compreender o contexto em que se insere esta relação e o âmago do problema. Importante ressaltar, a partir dos estudos anteriores da bioética de intervenção a respeito do empoderamento, que os processos de conquistas de direitos, sobretudo quando conformados em normas que as consignam22, favorecem os exercícios de liberdade nas tomadas de decisões e estabelecimentos de ações. Entretanto, é necessária a garantia do exercício destes direitos, o que se deve pretender em um processo dialógico que busca pelo exercício livre de tomada de decisões, inclusive no judiciário. Por meio do diálogo, é necessário o estímulo à autonomia do paciente e do médico, agora atores processuais, para que, exercendo as suas capacidades concretas de conhecer e decidir, possam tanto consensuar, compreendendo que participam de uma conjuntura de judicialização excessiva, quanto, também por suas próprias decisões, manterem a demanda processual. _____ 1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília, DF, 1988. Disponível aqui.  2 MALDONADO DE CARVALHO, José Carlos. Mediação: aplicação no Brasil. Revista Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 17, p. 58-59, abr./jun. 2002. 3 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1999. 4 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Publicada em D.O.U. de 17 de março de 2015 [Internet]. Brasília, 16 de março de 2015; 194º da Independência e 127º da República. Disponível aqui.  5 PORTO, Dora. Bioética de intervenção: retrospectiva de uma utopia. In: PORTO, Dora et al. Bioéticas, poderes e injustiças: 10 anos depois. Brasília: Conselho Federal de Medicina/Cátedra Unesco de Bioética/SBB; 2012. 6 FREY, Martin A. Alternative Methods of Dispute Resolution. New York: Delmar Learning, 2003.  7 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça [Internet]. Manual de Mediação Judicial. Brasília-DF, 2016. Disponível aqui.  8 Ibidem. 9 WARAT, Luis Alberto. A fantasia jurídica da igualdade: democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. Revista Sequência, Florianópolis, n. 24 set., p. 36-54, 1992. 10 Idem, p. 36-54. 11 GARRAFA, Volnei; PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: Poder e Injustiça. Sociedade Brasileira de Bioética-Centro Universitário São Camilo, São Paulo: Edições Loyola, 2003. 12 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento, 18a ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 271. 13 Heterocomposição. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [Internet], 2008-2013. Disponível aqui.  14 Ainda que se possa recorrer da sentença exarada pelo juiz, o âmbito decisional permanecerá sob a posse do poder judiciário, passando às figuras dos desembargadores dos Tribunais de Justiça ou dos ministros dos Tribunais Superiores - STJ ou STF. 15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. [Internet]. Manual de Mediação Judicial. p. 32. Disponível aqui.  16 Ibidem. 17 Ibidem. 18 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18a ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 276. 19 Ibidem. 20 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 10. 21 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18a  ed. Salvador:Jus PODIVM, 2016, p. 277. 22 Tal como os direitos humanos estão consignados na Constituição Federal brasileira.
Sabe-se que a população mundial vem envelhecendo mais e mais, praticamente a uma taxa de 13% ao ano.1 De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, será aproximadamente de dois bilhões o número de idosos em 20502. Este número é bastante significativo, inclusive, se for pensado em termos de Brasil, considerado até há pouco, um país jovem. Só para se ter uma ideia, no ano de 2021, de 210 milhões de brasileiros, constatou-se que 37,7 deles são idosos3. Estima-se que em 2030, o número de idosos ultrapassará o de crianças e adolescentes no país.4 Mas quem é o idoso? Exceção feita ao parágrafo 2º., do art. 230, da Constituição da República, que menciona a idade de 65 anos, para que a pessoa tenha gratuidade no transporte coletivo urbano, a velhice começa, para os países em desenvolvimento, entre os quais se inclui o Brasil, aos 60 anos. O Estatuto do Idoso, lei 10.741/2003, em seu art. 1º., bem como a lei 8.842/1994, em seu art. 2º., seguiram essa orientação, que tem por base a Organização Mundial da Saúde.      Como se percebe a partir desses dados bem pontuais, deve-se ter uma atenção para essa população, que, até o momento, tem sofrido bastante com a discriminação existente na sociedade em relação aos mais velhos, pois o valorizado é o ser jovem. Daí decorre também os mais variados tipos de violência - financeira, sexual, psicológica, física, doméstica. A falta de solidariedade, empatia, alteridade, em especial da própria família, que deveria ser a principal rede de apoio ao idoso, acaba por ofender gritantemente sua dignidade. A partir dessas informações, importante agora esclarecer que o idoso, pessoa que tão invisível na nossa sociedade, tem sido constantemente confrontado com sua capacidade - ou incapacidade - para reger sua vida, seja em relação às decisões que ele tem de tomar acerca de sua pessoa, seja no que concerne ao seu patrimônio. Não é a idade que faz com que a pessoa não possa exercer sua autonomia, mas sim, algum problema de cognição, que a torne incapaz de exercer plenamente sua autonomia e autodeterminação. Neste sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/2015, estabeleceu novos limites, uma vez que esta lei alterou o art. 3º. do Código Civil. Assim, só pode ser considerado absolutamente incapaz, perante o ordenamento jurídico brasileiro, o menor abaixo de 16 anos. Todas as demais pessoas, sejam elas maiores da citada faixa etária, ou sujeitas à curatela, no caso do maior de 18 anos, se não forem capazes plenamente, poderão, quando muito, ser considerados relativamente capazes. E isto vale para o idoso. Senilidade, portanto, não é motivo para impedir a pessoa de exercer sua autonomia privada - relativa ao patrimônio -, ou existencial - em relação à sua pessoa. Assim é que se chega ao ponto desta exposição: teria o idoso condições de autodeterminar-se, recusando-se, pois, a submeter-se a um tratamento médico? Estaria ele apto a exercer sua autonomia existencial5 na relação médico-paciente? De acordo com o art. 15 do Código Civil, não se pode constranger ninguém "a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica." A grande questão aqui é: se for sem risco de vida, pode? A esta indagação respondeu, logo em seguida à entrada em vigor da lei civil, em janeiro de 2003, João Baptista Villela, professor emérito da UFMG, falecido em outubro de 2021, que essa norma tiraria toda a autonomia da pessoa, inclusive para morrer em prol de um ideal.6 Fato é que a pessoa pode, e deve, autodeterminar-se, sempre que estiver em condições, acerca das questões que envolvem o seu corpo. E é nesse sentido que o Enunciado n. 532 da VI Jornada de Direito Civil, realizada em 2013, dispõe: O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos, cirúrgicos que não possam ser interrompidos. Além dessa interpretação, tem-se desde 2019 a Resolução n. 2.232/2019, do Conselho Federal de Medicina - CFM -, que estabelece não só as normas éticas sobre a recusa ao tratamento médico por pacientes, como também, as de objeção de consciência na relação médico-paciente. Assim é que o art. 1º. da resolução disciplina que a recusa terapêutica é, "nos termos da legislação vigente e na forma dessa Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão".7 E, continuou o Conselho Federal de Medicina, no caput do art. 2º do texto citado, afirmando ser "assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente." Para acrescentar no parágrafo único que, "o médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível."8 O próprio Conselho Federal de Medicina, aliás, na resolução n. 1 do ano de 2016, portanto, anterior ao Código,  e que cuida do consentimento informado, já determinava que, havendo a recusa do paciente ao tratamento, o médico deverá registrar tal recusa por escrito. E nessa mesma Resolução, admite-se que a recusa tenha a ver com a falta de confiança no profissional. "Nesse caso, a sugestão de o paciente ouvir uma segunda opinião poderá significar nova oportunidade de obtenção do consentimento, viabilizando o tratamento proposto." (n. 8.2).9 Acrescente-se ao já exposto, que no estado de São Paulo, com a entrada em vigor da lei 10.241/2001, mais conhecida por Lei Mário Covas, que acata a possibilidade de o tratamento ser feito por meio dos Cuidados Paliativos (Ortotanásia)10, a pessoa já pode optar por não se tratar, mas tão-somente para amenizar seu sofrimento no caso de doença terminal. Assim, constata-se que toda e qualquer pessoa maior de idade poderá recusar-se a ser tratada, independente do fato de ela não querer submeter-se ao tratamento, por considerá-lo prolongamento fútil da vida, ou por entender mesmo que não quer ser tratada. Enfim, que prefere deixar a vida seguir seu rumo natural, sem intervenções clínicas, mesmo que isso possa causar seu óbito. Sim, porque a falta de tratamento médico poderá, efetivamente, levar o paciente à morte. Neste caso ele estaria fazendo a opção de morrer, sem que isso possa ser encarado como atitude antijurídica. Este ponto é importante, porque o ordenamento jurídico brasileiro garante o direito à vida, constitucionalmente. Não é à toa que o pedido do paciente terminal, isto é, aquele que não tem mais condições de cura, para que seja praticada a eutanásia ou para que lhe sejam providenciados os meios para a prática do suicídio assistido, serão interpretados como homicídio pela lei penal. Basta ler o art. 121 do Código Penal. Não há lacuna que possa permitir tal conduta. Como afirmado acima, em conformidade com a resolução n. 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina, a opção pelo não-tratamento tem de ser feita por pessoa capaz, lúcida, entre outros adjetivos, podendo, por consequência, o idoso, que estiver em situação de autodeterminar-se, escolher a morte à vida. Note-se que o próprio Código Civil inseriu essa possibilidade no art. 15, retro mencionado, propiciando à pessoa, a possibilidade de escolha. Cuida-se de um direito de personalidade que merece ser respeitado, desde que a pessoa que a emita tenha condições de autodeterminar-se nesse sentido. Mas, o que acontecerá se a pessoa idosa já não tiver condições de exercer sua autonomia existencial, isto é, autodeterminar-se acerca de sua pessoa, de sua saúde? O inciso 4º. do art. 10 do Estatuto do Idoso, que disciplina sobre o direito à saúde estabelece que as pessoas idosas portadoras "de deficiência ou com limitação incapacitante terão atendimento especializado nos termos da lei". Pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, já mencionado aqui, deficiente é, consoante o que dispõe seu art. 2º., a pessoa que "tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas." Desse modo, se o idoso apresentar uma deficiência que o impeça de autodeterminar-se de forma autônoma, ele não poderá recusar-se ao tratamento médico. No entanto, ele pode ter feito, antes de encontrar-se nessa situação, suas diretivas antecipadas de vontade, previstas, inclusive, na Resolução n. 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina. Se não as tiver feito, nem tiver nomeado procurador que possa responder por ele nesse momento, caberá ao médico questionar seus familiares. Tudo isto, conforme previsto no parágrafo único do art. 17 do Estatuto do Idoso, como segue: Art. 17. (...) Parágrafo único: Não estando o idoso em condições de proceder à opção, está será feita: "I- pelo curador, quando o idoso for interditado"; "II- pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contactado em tempo hábil"; "III- pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para a consulta a curador ou familiar"; "IV- pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público". O dispositivo acima referido, menciona a hipótese de a vontade do idoso ser substituída pela de seu curador. Saliente-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seus arts. 84 e 85, deixa inequívoca a mantença da autonomia existencial da pessoa colocada sob curatela que, como visto no início deste artigo, sempre será por incapacidade relativa. Isto significa, de acordo com a Lei n. 13.146/2015, que os poderes do curador recaem única e exclusivamente sobre a esfera patrimonial do curatelado (art. 85), deixando-o livre para cuidar de sua pessoa de forma autônoma. No entanto, para salvaguardar melhor os seus interesses, na hipótese de ele não ter como autodeterminar-se, o ideal é que o curador decida por ele quanto à recusa ou não de submissão a um tratamento médico. Neste sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme exemplificativamente ocorreu no julgamento da Apelação Cível n. 1008623-63.2018.8.26.0565.11 A partir de todo o exposto, verifica-se que o paciente idoso terá garantido, por lei, o exercício de sua autonomia existencial, sempre e todas as vezes que se fizer necessário, ainda que tenha sido colocado sob curatela. O mero fator "idade" não é capaz de retirar a capacidade da pessoa idosa para autodeterminar-se. Afinal, de conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro é-lhe garantido o exercício de sua autonomia existencial, conforme previsão constante do Estatuto da Pessoa com Deficiência. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 8 abr. 2022. 2 Disponível aqui. Acesso em: 8 abr. 2022. 3 Disponível aqui. Acesso em: 1 abr. 2022. 4 Disponível aqui. Acesso em: 1 abr. 2022.  5 Maurício Requião descreve de forma clara o que se deve entender por esta expressão: "A autonomia existencial, embora aqui entendida como um conceito pertinente ao direito se aproxima em seu objeto do princípio da autonomia na bioética, como apresentado por Beauchamp e Childress na sua teoria do principialismo. Este se vincula com a ideia de fornecer ao indivíduo o conhecimento e a liberdade necessários para tomar uma decisão de modo consciente e independente. Sua aplicabilidade, entretanto, é mais restrita à área médica, vinculando-se a questões como consentimento informado, decisão substituta e testamento vital. Não que esses aspectos não se enquadrem no rol de decisões relacionadas com a autonomia pessoal, mas esta tem sua aplicabilidade para além dos problemas relacionados a questões médicas, como já salientado. Autonomias e suas limitações. Acesso em: 22 Dez. 2019. 6 Leia-se, aqui, trecho de sua crítica ao art. 15 do Código Civil: "(...) o Código faz da vida matéria de dever. Um dever a que nenhum ser humano pode subtrair-se e que estaria acima de qualquer potestade criada. Terá nisso razão?" Para responder: "Suponha-se alguém de cujo trabalho dependa o sustento e a sobrevivência de outras pessoas. Um pai, por exemplo, relativamente a seus filhos menores ou inválidos. Parece não haver dúvida de que, neste caso, está-se diante de um dever moral de viver. Ou - como isso não depende apenas da pessoa em causa, senão também de outras circunstâncias - haverá aí um dever de empenhar-se por se manter vivo. Só que esse dever é estritamente moral. Com ele se haverá cada qual no foro de sua consciência. Nesse tribunal de silêncio e sem teatro, não será impossível nem absurdo que, confrontada com outros deveres ou direitos, a vida como opção não seja o melhor caminho. Drama e liberdade de cada qual. E em cuja intimidade nem o Estado nem o estamento médico têm o direito de intervir". VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico, in: Atti del Congresso Internazionale "Il nuovo Codice Civile del Brasile e il sistema giuridico latinoamericano". Modena: Mucchi, 2003, p. 61. 7 Disponível aqui. Acesso em: 5 Set. 2021. 8 Disponível aqui. Acesso em: 5 set. 2021. 9 Disponível aqui. Acesso em: 8 abr. 2022 10 Sobre os cuidados paliativos ver a página da Associação Nacional de Cuidados Paliativos. 11 Apelação Cíviel 1008623-63.2018.8.26.0565, de relatoria da Desembargadora Mary Grün, 7ª. Câmara de Direito Privado, publicada no dia 02/02/2021, que tem a seguinte ementa: INTERDIÇÃO. Autor que pretende a interdição de sua mãe e sua nomeação como curador. Sentença de procedência. Declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 114 da Lei 13.146/2015, no que tange as alterações feitas nos arts. 3º e 4º do Código Civil, decretação de incapacidade absoluta da requerida e nomeação de curador para todos os atos da vida civil. Ausência de inconstitucionalidade do artigo 114 da Lei n. 13.146/2015. Apelo do Ministério Público. Laudo pericial que evidencia a total incapacidade da ré para gerir os atos da vida civil, não se limitando apenas àqueles de natureza patrimonial ou negocial, mas sim a sua própria sobrevivência. Medida protetiva extraordinária que se encontra satisfatoriamente justificada diante das necessidades da requerida (art. 84, § 3º, da lei 13.146/15 e arts. 1767 e ss do CC) as quais ultrapassam os limites do art. 85 da Lei da Inclusão. Sentença alterada. Recurso parcialmente provido.  (Grifos Nossos).  
O estágio atual da evolução tecnológica não demanda uma reflexão mais acurada para que se constate a imersão de tecnologia em meio aos mais diversos aparatos e atividades com os quais lidamos no cotidiano. O modo como nos tornamos dependentes da internet revela, por si só, ser impensável projetar um futuro em que a tecnologia não se apresente em todos os momentos de nossas vidas. Muito embora a revolução tecnológica venha provocando intensos impactos sociais, talvez a maior ruptura tecnológica esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,1 no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo empregar toda a tecnologia possível para permitir que seres humanos transcendam suas capacidades naturais, o que, em princípio, propiciará o surgimento de uma nova categoria de entes artificialmente aperfeiçoados em relação às limitações que naturalmente demarcam a condição humana. Vivemos um período de possível - e talvez definitiva - ruptura humanitária, baseada na premissa de que a aceleração da evolução tecnológica se opõe ao "atraso" da evolução orgânica; daí decorre a ideia de que as máquinas têm mais chances de impor seu modelo evolutivo que os organismos vivos, particularmente humanos. Tal como proposta, a revolução transhumanista desafiará a adoção de uma nova escalada terminológica: o Homo sapiens, espécie à qual pertencemos, será alçado à condição de Homo Deus,2 em que o ser humano (ou pós-humano) assume o papel de criador e gestor de seu próprio universo. Cumpre colher de Nick Bostrom,3 um dos mais destacados adeptos do movimento transhumanista, uma compreensão mais aprofundada do que se deva entender por transhumanismo, que, segundo ele, é uma forma de pensar sobre o futuro baseada na premissa de que a espécie humana, em sua forma corrente, não representa o fim de nossa evolução, mas um estágio inicial. Eis como o autor propõe a definição de transhumanismo: (1)  O movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de melhorar fundamentalmente a condição humana por meio da aplicação da razão, especialmente pelo desenvolvimento e ampla disponibilização de tecnologias que eliminem o envelhecimento e aperfeiçoem enormemente as capacidades humanas intelectuais, físicas e psicológicas.(2)  O estudo das ramificações, promessas e potenciais perigos das tecnologias que nos permitirão superar limitações humanas fundamentais, e o estudo relacionado das questões éticas envolvidas no desenvolvimento e uso de tais tecnologias. É precisamente na esteira deste pensamento evolucionista, em que o ser humano rompe com sua própria biologia e passa a assumir as rédeas de seus estágios evolutivos vindouros, que emergem movimentos como o transhumanismo: afinal, terminologicamente, o prefixo "trans" significa, em sua etimologia latina, "além" ou "através de"; trata-se de expressar a ideia de uma travessia, de mutação de uma condição a outra.4 Já o termo "humanismo" deve ser aqui compreendido como o que define o cotidiano dos seres humanos, seus atos, seus dilemas, sua vida, enfim. A conjunção semântica exprime, então, o que pode ser qualificado como "além do humano".5 É possível, aliás, identificar duas vias distintas para o transhumanismo, tomada a expressão lato sensu: uma, de viés mais moderado, que propõe o emprego de tecnologias avançadas que visem ao aprimoramento das capacidades humanas; a outra, de caráter mais radical, sugere não apenas a superação de determinadas habilidades humanas, mas a superação da própria natureza humana. No primeiro caso, fala-se em um transhumanismo stricto sensu, que preserva a essência das características humanas, por meio de biomelhoramentos que permitam ampliá-las e aprimorá-las. Na derradeira hipótese, manifesta-se a perspectiva pós-humanista, que propõem um radical e definitivo abandono da condição humana, o que poderia se dar das seguintes formas, entre outras: mediante a fusão do corpo humano com as máquinas, criando-se um ciborgue, isto é, um híbrido composto de partes ora orgânicas, ora cibernéticas; ou por meio da transferência da consciência humana para máquinas ou para ambientes virtuais que independam de suportes físicos, o que significaria, essencialmente, realizar uma ou várias "cópias" da mente humana e transferi-las para um aparato distinto do corpo humano, como um robô, ou mesmo para um aparato integralmente virtual. Ambos os modelos apresentados encontram correspondência com a proposta transhumanista. A perspectiva transhumanista em sentido estrito e o movimento pós-humanista partem das mesmas bases - a ideia de que os humanos são seres in fieri, que podem e devem ser aprimorados - e compartilham os mesmos meios, nomeadamente a proposta de valer-se da biotecnologia para transgredir as limitações que naturalmente demarcam a condição humana. Estas perspectivas divergem essencialmente quanto aos fins: enquanto o transhumanismo propõe o aperfeiçoamento dos seres humanos, em uma perspectiva (ainda) antropocêntrica, que não descaracteriza ou desnatura a essência das pessoas, o pós-humanismo tem por meta a desconstrução dos seres humanos como os conhecemos, rumo a uma verdadeira constituição de novos seres pós-humanos. Neste sentido, a filosofia pós-humanista pode ser considerada como "pós-antropocêntrica". Com o fito de atingir concepções mais precisas neste domínio, Nick Bostrom6 aponta que um ser pós-humano é aquele que ostenta ao menos uma capacidade pós-humana, entendida esta enquanto "uma capacidade central geral que excede enormemente o máximo atingível por qualquer ser humano atual que não empregue recursos a novos meios tecnológicos". Esta "capacidade central geral" a que alude o autor pode ser entendida em três vertentes: i) extensão da saúde, isto é, a capacidade de permanecer totalmente saudável, ativo e produtivo tanto mental quanto fisicamente; ii) cognição, entendida como as capacidades intelectuais em geral, tais como a memória, o raciocínio e a atenção, assim como as faculdades especiais como a capacidade de entender e apreciar música, humor, erotismo e espiritualidade, entre outras, iii) emoção, considerada como a capacidade de aproveitar a vida e retribuir de forma afetivamente apropriada às outras pessoas e às situações da vida. O movimento transhumanista, enfim, parte da premissa de que a essência dos seres humanos não seria pré-determinada e imutável, mas antes maleável e, por isso, manipulável pela criatividade humana. Por isso mesmo, as revoluções propostas pelo movimento transhumanista implicam transformações drásticas em relação a muito daquilo que reconhecemos como sendo intrinsecamente humano: nossos corpos, nossos limites e capacidades, nossa finitude. Este é o momento de indagar que destino vislumbramos para a humanidade. Devemos permitir que a ciência e a tecnologia nos conduzam para além do que até aqui permitiram nossa biografia e nossa biologia? Não se estaria a correr o risco de afetarmos a própria essência dos seres humanos? E o que, afinal, nos torna humanos? Em sendo admitida a existência de uma natureza intrínseca e unicamente atribuída aos seres humanos, caberia então indagar se as intervenções biotecnológicas pretendidas pelos transhumanistas poderiam desnaturar a condição humana ou, dito de outra forma, desumanizar os seres humanos. Se a resposta for positiva, coloca-se como impeditivo o próprio princípio da dignidade da pessoa humana. De fato, algumas das propostas pós-humanistas rumam na direção de negar e superar a condição humana, mas o movimento transhumanista não pode ser reduzido a tais fins mais extremistas; afinal, conforme apontado, as vias transhumanistas mais brandas propõem apenas e tão-somente o emprego da tecnologia para superar algumas deficiências e vulnerabilidades e, eventualmente, promover o aprimoramento de determinadas capacidades humanas, sem que tal implique um abandono de nossa natural condição humana. Assim, em vez de adotar uma posição de categórico rechaço - em nome de uma visão bioconservadora da humanidade - ou de plena e integral aceitação das propostas transhumanistas - a revelar uma perspectiva bioprogressista quanto ao futuro da humanidade -, cabe refletir acerca delas e, de forma ponderada, apontar quais seriam as propostas transhumanistas conformes à dignidade humana e quais podem contribuir para estabelecer uma condição desumana em relação às pessoas. a)  Em primeiro lugar, cabe defender a plena legitimidade das intervenções biotecnológicas de cunho estritamente terapêutico, cujo propósito reside, afinal, em eliminar doenças e propiciar boas condições de saúde aos indivíduos. Muito embora persistam inarredáveis e graves controvérsias a respeito, cumpre advogar inclusive a legalidade das alterações no genoma que também observem fins terapêuticos, sejam em caráter reativo ou curativo - quando se verificarem patologias que podem ser curadas por meio de intervenções genéticas - ou mesmo preventivo, com o fito de evitar a ocorrência de futuras enfermidades. Neste caso, entende-se que a alteração genética não caracteriza uma violação à dignidade da pessoa humana, sendo antes um modo de promovê-la, não apenas porque o emprego desta técnica corresponderá (presumivelmente) à vontade do paciente ou de seus representantes legais, como também porque o que poderia atentar contra a dignidade - e mesmo à vida - do indivíduo seria não utilizar esta tecnologia, desde que se possa garantir a segurança no seu manuseio.7 Cabe ingressar, neste particular domínio, nos domínios da eugenia, que admite duas espécies, a negativa e a positiva. Enquanto a negativa propõe a erradicação de enfermidades de ordem genética, inclusive e nomeadamente em nascituros, a positiva propõe apenas a possibilidade de uma caprichosa escolha sobre certas características humanas supostamente desejáveis. Por corresponder aos objetivos terapêuticos próprios da medicina, defende-se que a eugenia negativa possa ser levada a efeito, o que, naturalmente, haveria de ser objeto de adequada regulação e fiscalização por comitês de ética e outros órgãos encarregados de assegurar a legitimidade e a higidez de tal prática. A eugenia positiva, lado outro, deve ser veementemente rechaçada, não apenas por não corresponder a quaisquer fins curativos, mas sobretudo por propor a odiosa ideia de que certas qualidades humanas são mais "adequadas" que outras, o que caracteriza, enfim, uma posição de puro e indesejável preconceito. b)  Quanto às intervenções de caráter melhorador, somente seriam admissíveis se não vierem a propiciar posições de vantagem ao indivíduo que viesse a empregá-las em seu proveito, em detrimento de uma potencial desvantagem de terceiros. O que se objetiva, a partir desta premissa, é evitar que as pessoas que não tenham acesso às intervenções melhoradoras, e mesmo aquelas que prefiram não se submeter a elas, se vejam em situação de desvantagem em relação aos indivíduos aprimorados. Não se vislumbra, ao menos à partida, como dotar uma pessoa de uma capacidade de visão aperfeiçoada possa colocar outras pessoas em condições desvantajosas (ainda que não se descarte a análise de determinadas circunstâncias em concreto); do mesmo modo, a introjeção de um chip subcutâneo que permita a uma pessoa realizar tarefas simples como abrir portas ou acionar aparelhos eletrodomésticos à distância não implicará, em princípio, a potencialidade de danos ou de uma situação de inferioridade concreta por parte de terceiros. Outra é a perspectiva quando um desportista se vale de técnicas melhoradoras com o propósito de superar seus adversários, ou quando uma pessoa aperfeiçoa suas capacidades intelectuais e se sujeita a um certame para o provimento de cargos, sejam de natureza privada ou pública. A competição, em qualquer destes casos, seria marcantemente desigual, e tal desigualdade não resultaria do mérito, do esforço ou de um dom natural dos contendores aperfeiçoados sobre seus rivais, mas antes das intervenções que artificialmente lhes permitiram superar os demais. Naturalmente, a análise sobre quais intervenções podem ou não ser de algum modo lesivas à sociedade há de ser ponderada mediante as vicissitudes de cada caso em concreto, mas este pode ser um critério importante para segregar as intervenções transhumanistas que podem ou não ser admitidas. c)  No que toca às posições pós-humanistas, particularmente a hibridização de seres humanos rumo à constituição de ciborgues e a transposição da consciência para suportes extracorpóreos, cabe rejeitá-las de plano, por serem condutas que violam gravemente o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que comprometem a própria preservação da espécie e da natureza humanas. A humanidade encontra-se em um momento crucial de sua evolução, em que cumprirá decidir até que ponto se pretende que a tecnologia possa conduzir os caminhos que serão doravante trilhados. À medida em que as propostas transhumanistas vão assumindo contornos mais reais, reclama-se do jurista - e eventualmente também do legislador - que seja capaz de oferecer respostas aos problemas que se avizinham. O chamado do presente exige que se deva determinar, agora e em definitivo, o que se espera do futuro dos seres humanos. _____ 1 VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362. 2 Expressão cunhada por HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã (trad. Paulo Geiger). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 3 BOSTROM, Nick. The transhumanist FAQ: a general introduction. World Transhumanist Association, 2003. 4 CAMPIONE, Roger. A vueltas con el Transhumanismo: cuestiones de futuro imperfecto. CEFD: Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho, n. 40, 2019, p. 46. 5 GÓMEZ, Jairo Andrés Villalba. Human transformations through technology: a contribution to a historical study on transhumanism. Revista Logos Ciencia & Tecnología, v. 11, n. 1, jan- mar. 2019, p. 139. 6 BOSTROM, Nick. Why I want to be a transhumanist when I grow up. Medical Enhancement and Posthumanity, eds. Bert Gordijn and Ruth Chadwick (Springer, 2008), p. 1-2. 7 DIÉGUEZ, Antonio. La función ideológica del transhumanismo y algunos de sus presupuestos. ISEGORÍA. Revista de Filosofía Moral y Política n. 63, jul.-dez., 2020, p. 371.
segunda-feira, 21 de março de 2022

Transplante de órgãos e vacinação

O tema do presente artigo tem um substrato fático: recentemente, foi noticiado que o hospital Brigham and Women's Hospital, situado em Boston, nos Estados Unidos, retirou da lista de potenciais receptores de coração um paciente que não se vacinou contra a COVID-191.  O que foi divulgado pela instituição de saúde é de que ele estaria seguindo sua política de transplantes de órgãos, a qual tem, como um dos critérios para selecionar o receptor do órgão, que haja sua maior sobrevida após o procedimento. A prática do transplante de órgãos afeta o sistema imunológico2, representando um risco à vida do receptor; assim, a vacinação se torna uma variável com grande influência no momento de escolha do receptor, ou seja, ela ressoa na probabilidade de sobrevida. A notícia é de outro país, mas no Brasil pode ser abordado sob a mesma perspectiva. Esclareça-se que no Brasil3 é escassa quantidade de órgãos, se comparada ao crescente número de pacientes que concorrem para o transplante. Agrava-se a situação à medida que a pandemia de COVID-19 interferiu de maneira a diminuir o número de transplantes realizados e também dos potenciais doadores. Acrescente-se, ainda, maior mortalidade nos pacientes já transplantados4. Assim, a preocupação com aquele que está vacinado significa que possa desfrutar sua vida com mais qualidade após o transplante realizado, aliado ao tempo de vida que se estenderá. Nesse contexto, é importante a adoção de critérios de seleção de potenciais receptores, sobretudo com vistas à distribuição equânime e justa, de modo a se buscar o equilíbrio entre interesses dos potenciais receptores e o baixo número de órgãos disponíveis para transplante. De acordo com Valter Duro Garcia et. al.5, em regra, a decisão que nega a transplantação a um paciente que esteja na fila de espera para receber um órgão, deve ser fundamentada em critérios médicos, e não em argumentos alinhavados ao utilitarismo social, exceto se esses argumentos influírem diretamente no resultado do transplante, ocasião na qual poderão ser invocados6. O utilitarismo, segundo Beauchamp e Childress, tem raiz no princípio da beneficência (pelo qual se busca a realização de condutas positivas que tenham por fito trazer benefício a outra pessoa), e se refere à ponderação entre os riscos, benefícios e custos resultantes das ações, permitindo-se, a partir dele, que interesses da sociedade prevaleçam sobre os individuais, embora sua utilização não deva ser irrestrita7. Dessa forma, na prática dos transplantes de órgãos, tendo em vista que os órgãos são recursos escassos, mostra-se de grande importância a análise das variáveis risco-benefício-custo, especialmente, as condições do potencial receptor, dentre as quais emerge a questão de sua vacinação, sobretudo porque o foco é a melhora da qualidade de vida do transplantado. Nessa rota, desponta o assunto acerca da vacinação em pacientes candidatos ao recebimento de órgãos. Ressalte-se que não é tema que se desponta apenas em virtude de exigibilidade de vacina da COVID-198-9. Na verdade, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) possui manual nessa temática, o qual, em linhas gerais, orienta que o ciclo de vacinação do potencial receptor para diversas moléstias (como influenza, sarampo, rubéola, entre outras) seja iniciado, tão logo, de sua inclusão no cadastro de receptores e reiniciado após o transplante, quando o nível de imunossupressão tiver sido reduzido ao mínimo possível, o que, geralmente, ocorre em até seis meses da realização do procedimento10. De acordo com referido manual, as vacinas contraindicadas nessa situação são aquelas cuja plataforma se embasa em microrganismos vivos, por representarem riscos às pessoas imunossuprimidas, devendo, assim, enquanto ser imunocompetente o potencial receptor11. Igualmente, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), em seu Calendário de Vacinação de Pacientes Especiais, como àqueles submetidos ao transplante de órgãos ou aguardando, apresenta o tipo de vacina recomendada e o tempo ideal a ser administrada, contraindicando vacinas do tipo vivas atenuadas no pós-transplante, salvo se o paciente estiver imunocompetente, e contraindicando, sem exceções, a vacina pólio oral12. Especificamente sobre a vacina contra a COVID-19, verifica-se que as atualmente disponíveis são seguras para receptores e potenciais receptores de órgãos, uma vez que seus mecanismos não são o de vírus atenuado, assim, não representam risco à essa população13. Embora, até o momento, tenha-se verificado que a vacinação tenha refletido em menor resposta imune às pessoas transplantadas do que na população em geral14, fazendo-se necessários mais estudos15, a aplicação de dose de reforço contribuiu para a melhora da resposta imunológica16. Ademais, a aplicação da vacina antes da realização do transplante também evidenciou que há melhor resposta imune nesse momento de imunização, quando comparada à aplicação pós-transplante17. Tanto é que a ABTO, por meio de sua Comissão de Infecção em Transplantes (COINT), posicionou-se no sentido de assegurar que as vacinas atualmente disponíveis são indicadas para receptores de órgãos e tecidos, devendo-se completar o esquema vacinal, preferencialmente, antes da realização do transplante18-19. Essa posição também foi adotada pelo Ministério da Saúde, no plano atual de vacinação contra a COVID-19, haja vista que é improvável que as vacinas, atualmente disponíveis, aumentem as chances de algum evento adverso pós-vacinação (EAPV), ante o atual estágio do conhecimento científico20. Dessa forma, a possibilidade de se exigir a vacinação para o potencial receptor de órgãos mostra-se viável à luz da interpretação teleológica do procedimento de transplante de órgãos, afinal, procura assegurar maior possibilidade de sobrevida à pessoa, além da vacina não lhe oferece riscos do ponto de vista médico como regra geral. No Brasil, a Portaria nº 2.600 do Ministério da Saúde, de 21 de outubro de 2009, posteriormente consolidada pela Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde, de 28 de setembro de 2017, trazem em seu bojo os requisitos para que uma pessoa seja eleita à condição de receptora de órgãos. Os requisitos para escolha do receptor do órgão são disciplinados pela Portaria do Ministério da Saúde nº 2.600, posteriormente consolidada pela Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde, e ditos requisitos não são os mesmos para todos os tipos de transplantes. Há pressupostos comuns a todas as modalidades, como a necessidade de compatibilidade entre doador e receptor quanto aos sistemas ABO (tipagem sanguínea) e HLA (pelo qual se verifica a existência de anticorpos anti-doador), em vistas de se diminuir as chances de rejeição do órgão transplantado21, mas, há, também, requisitos específicos a cada tipo de procedimento. Em continuidade, dentre os pressupostos exigidos para se manter na lista de espera por um órgão, há exames comuns para qualquer tipo de transplante, como alguns destinados à verificação de infecção por vírus, exemplificativamente, o de sorologia para HIV e imunofluorescência para citomegalovírus IgG e IgM (cf. art. 42, §10, Portaria de Consolidação do Ministério da Saúde nº4), haja vista diretamente influírem nas chances de sucesso do procedimento. Além disso, o §6º do artigo 39 da supramencionada norma infralegal também permite aos Estados exigirem critérios adicionais aos potenciais receptores, desde que não contrariem os princípios norteadores da distribuição dos órgãos. Isso significa que o rol de critérios para ser elegível à condição de receptor de órgãos não é taxativo e, como a questão da vacinação da COVID-19 está diretamente relacionada à garantia de maiores chances de sobrevida do receptor, não contraria os princípios básicos da matéria, permitindo-se, então, que seja adotado. Por fim, há de se rememorar o viés de saúde pública da vacinação, classificada até mesmo como um dos melhores investimentos na área da saúde, em razão de seu custo-benefício22-23, e ainda, como estratégia preventiva para redução de morbimortalidade de doenças imunopreveníveis, tanto daquela pessoa que recebeu o imunizante, quanto das pessoas não vacinadas, ao reduzir a taxa de transmissão de doenças24-25. Soma-se a isso o fato de que os órgãos retirados dos doadores para fins de transplante têm natureza coletiva, isso porque são fornecidos pela sociedade, assim, os órgãos de doadores falecidos a ela pertencem26. É também interesse da coletividade que aquele órgão doado seja transplantado com sucesso, o que é potencializado por um receptor que foi vacinado. Logo, a possibilidade de se exigir vacinação nesse aspecto é o elemento que traz também harmonia sob aspecto de saúde coletiva, dado o interesse da sociedade. Portanto, o melhor cenário é o critério de exigência de vacinação, correspondendo com o teor da previsão da Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde; além de estar em sintonia com o interesse da sociedade que é justamente o sucesso na transplantação do órgão; afinal, a finalidade última dos transplantes visa salvar vidas e/ou melhoria de qualidade de vida. Referências BALLALAI, I.; BRAVO, F. (orgs.). Imunização: tudo o que você sempre quis saber. 4 ed. Rio de Janeiro: RMCOM, 2016. BALLALAI, I.; MICHELIN, L.; LEVI, M.; STUCCHI, R.S.B. (orgs.). Guia de imunização SBIm/ABTO: transplante de órgãos 2019-2020. Disponível em: https://sbim.org.br/images/guias/guia-transplante-orgaos-sbim-abto-2019-2020.pdf. Acesso em: 22 fev. 2022.  BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Trad. por Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2013. COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES (COINT-ABTO). Vacinação pré e pós-transplantes de órgãos adulto. 2018. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/Populacao/ABTO2018_recomendacoes-vacinacao.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022. COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES (COINT-ABTO). Vacinas contra COVID-19 e transplantes de órgãos sólidos. Recomendação COINT-ABTO de 22 de fevereiro de 2021. 2021a. Disponível em: https://site.abto.org.br/blog/noticias/transplante-para-orgaos-solidos-e-vacina-para-covid-19/. Acesso em: 28 jan. 2022. 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Acesso em: 22 fev. 2022.  p. 5. 3 FREGONESI, A.F. et. al. O processo doação-transplante. In: PEREIRA, W.A. (coordenação geral); FERNANDES, R.C.; SOLER, W.V. (coordenação executiva). Diretrizes básicas para captação e retirada de múltiplos órgãos e tecidos da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. São Paulo: ABTO - Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, 2009. p. 17. 4 GARCIA, V.D.; PÊGO- FERNANDES, P.M. O transplante de órgãos e a COVID-19. Revista Diagnóstico e Tratamento, v. 26, n. 3, 2021. passim 93-96. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2021/09/1291192/rdt_v26n3_93-96.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022. 5 GARCIA, V.D. et. al. Critérios de distribuição de órgãos. In: GARCIA, C.D. (org.). Manual de doação e transplantes: informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017. p. 107.   6 Acerca da utilização desse tipo de argumentação de viés utilitarista-social, os autores apresentam o exemplo da recusa à transplantação a potencial receptor alcoólatra em se tratando do transplante hepático. Cf. GARCIA et. al., op. cit., p. 107. 7 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Trad. por Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 281-283. 8 A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu em 11 de março de 2020 que a contaminação causada pelo Sars-CoV-2 atingiu o nível de pandemia. Cf. ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde declara pandemia do novo Coronavírus: mudança de classificação obriga países a tomarem atitudes preventivas. UNA-SUS, 11 de março de 2020. Geral. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus. Acesso em: 28 jan. 2022. 9 Ainda no período pré-pandêmico, especificamente ao biênio 2019-2020, a Sociedade Brasileira de Imunizações e a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, em conjunto, elaboraram manual contendo o esquema vacinal ideal aos candidatos a transplante ou transplantados de órgãos sólidos. Cf. BALLALAI, I.; MICHELIN, L.; LEVI, M.; STUCCHI, R. S. B (orgs.), op. cit, p. 26. 10 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinação pré e pós-transplantes de órgãos adulto. 2018. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/Populacao/ABTO2018_recomendacoes-vacinacao.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022. 11 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES, 2018, op. cit., p. 1. 12 SOCIEDADE BRASILEIRA DE IMUNIZAÇÕES. Calendário de vacinação: pacientes especiais. 2021-2022, p. 28-29. Disponível em: https://sbim.org.br/publicacoes/guias. Acesso em: 22 fev. 2022. 13 GIANELLA, M. et al. SARS-CoV-2 vaccination in solid-organ transplant recipientes: what the clinician needs to know. Transplant International, 2021, 34: 1776-1788. DOI: https://doi.org/10.1111/tri.14029. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/tri.14029. Acesso em: 25 fev. 2022. p. 1777. 14 GIANELLA et al, op. cit., p. 1778- 15 DULY, K et al. COVID-19 vaccine use in immunocompromised patients: a commentary on evidence and recommendations. American journal of health-system pharmacy, vol. 79, n. 2 15 de janeiro de 2022: 63-71. doi:10.1093/ajhp/zxab344. Acesso em 25 fev. 2022, p. 69. 16 GIANELLA et al, op. cit., p. 1778, 1781. HALL, V.G. et al. Randomized trial of a third dose of mRNA-1273 Vaccine in transplant recipientes. The New England Journal of Medicine, 23 de setembro de 2021. DOI: 10.1056/NEJMc2111462. Acesso em 25 fev. 2022. 17 GIANELLA et al, op cit, p. 1781; GRUPPER, A. et al. Kidney transplant recipients vaccinated before transplantation maintain superior humoral response to SARS-CoV-2 vaccine. Clinical Transplantation, v. 35, n. 12. DOI: https://doi.org/10.1111/ctr.14478. Acesso em 25 fev. 2022, p. 5-7. 18 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinas contra a COVID-19 e transplante de órgãos sólidos. Recomendação COINT-ABTO de 22 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://site.abto.org.br/blog/noticias/transplante-para-orgaos-solidos-e-vacina-para-covid-19/. Acesso em: 28 jan. 2022. p. 1. 19 COMISSÃO DE INFECÇÃO EM TRANSPLANTES. Vacinação contra COVID-19. Recomendação COINT-ABTO de 10 de maio de 2021. Disponível em: https://site.abto.org.br/blog/noticias/transplante-de-orgaos-solidos-e-vacinas-para-o-covid/. Acesso em: 22 jan. 2022. p.1. 20 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Pacientes oncológicos, transplantados e demais pacientes imunossuprimidos. In: _____. Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a COVID-19. 12 ed. Brasília. p. 57-58. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/plano-nacional-de-operacionalizacao-da-vacinacao-contra-covid-19.pdf/. Acesso em: 22 fev. 2022. 21 NEUMANN, J. et. al. Avaliação imunológica pré-transplante. In: GARCIA, C.D. (org.). Manual de doação e transplantes: informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017, p. 116-117. 22 A Organização Mundial da Saúde (OMS), fazendo um balanço dos resultados do Plano de Ação Global de Vacinas do período de 2011 a 2020, concluiu que a vacinação no período de 2000 a 2018 no mundo foi responsável por reduzir à metade o número de mortes causadas por doenças imunopreveníveis, mostrando-se as vacinas alternativas seguras, eficazes e economicamente acessíveis. Cf. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The global vaccine action plan 2011-2020: review and lessons learned: strategic advisory group of experts on immunization. World Health Organization, 2019. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/329097. Acesso em: 22 fev. 2022, p. 35. 23 PROGRAMA Nacional de Imunizações - Vacinação. 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A responsabilidade civil, fonte do direito das obrigações, foi inserida no Código Civil de 2002 como locus preferencial das disfuncionalidades na atividade econômica e nas relações humanas. No sistema do direito privado a interferência do ordenamento no exercício de atos e atividades se dará a posteriori, no momento patológico do dano - função reparatória - apta a corrigir o desequilíbrio econômico subsequente à lesão. De fato, o art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Dessa forma, sanciona-se o efeito da conduta, e não a conduta em si.  A pretensão é neutralizar os efeitos da violação por força da compensação dos danos. Justifica-se, assim, a tendência ao deslocamento do eixo da responsabilidade civil para o fato jurídico lesivo, gerando o sintoma da "proliferação de danos". Porém, considerando o contexto da segunda década do século XXI, há que se questionar se a monofuncionalidade da responsabilidade civil ainda corresponderia ao conceito de "direito de danos". No cenário atual, pretende-se uma responsabilidade civil para muito além dos danos. Não se trata tão somente de um mecanismo de contenção de danos, mas também de contenção de comportamentos. Diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil. A trajetória do modelo jurídico da responsabilidade civil, no século XXI, deixa de ser linear e estática tornando-se sensível e adaptável à nova realidade em evolução1. Em julgado paradigmático de 2017, das Seções Unidas da Corte de Cassação Italiana,2 considerou-se que "deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são a preventiva e a punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica". No que tange a atual conjuntura do direito brasileiro, evidenciam-se três funções para a responsabilidade civil: (1) Função reparatória: função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado como forma de reequilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: com objetivo de inibir atividades potencialmente danosas. A função preventiva, por sua vez, é considerada um princípio do direito de danos e não, propriamente, uma quarta função. Destaca-se, portanto, como consequência necessária da incidência das demais funções, o que não impede sua manifestação autônoma, ou seja, objetivo essencial da responsabilidade civil contemporânea. De fato, o sentido do termo "responsabilidade" tal qual inserido no Código Civil, é ainda definido em seu sentido clássico como o exato fator de atribuição e qualificação da obrigação de indenizar. Entretanto, esse seria apenas um dos sentidos da responsabilidade, os demais encontram-se ocultos. Ao lado da função compensatória da responsabilidade civil (liability) destacam-se também, nas jurisdições do common law, três outros sentidos: "responsibility", "accountability" e "answerability".  Os três diferem do sentido monopolístico que as jurisdições da civil law conferem a liability, e apresentam em comum, o fato de transcenderem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas dimensões à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e velocidade dos arranjos sociais.3 Assim, a liability seria apenas uma das "camadas" da responsabilidade civil, que se destaca na tutela das situações existenciais, uma vez que a definição de regramentos próprios decorre de uma expectativa deontológica (dever-ser) da interação entre inovação e regulação em um ecossistema no qual o risco é inerente às atividades exploradas.4 Por outro lado, os termos responsibility, accountability e answerability, representam o repensar da responsabilidade civil a partir da compreensão das exigências econômicas e sociais de um determinado ambiente. Executam exemplarmente as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil, eventualmente complementadas pela função compensatória (liability)5. Enquanto a liability se situa no passado - sempre atrelada ao princípio da reparação integral dos danos - a responsibility é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro e, sobretudo, assumindo um viés preventivo que atua em caráter ex ante. É um conceito prospectivo de responsabilidade, um instrumento para autogoverno e modelação da vida, sem regras oficiais, trata-se de uma decisão diária posta a cada pessoa em seu dever de não interferir indevidamente na esfera alheia. A accountability, por seu turno, amplia o espectro da responsabilidade civil mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança. No plano ex ante, atua mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos (métodos regulatórios de governança).  Além disso, impõe o compliance como forma de planificação para os riscos de maior impacto negativo.  Já na vertente ex post, a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para delimitar os remédios mais adequados. Estabelecem-se padrões e garantias instrumentais que atuam como parâmetros objetivos para a mensuração do risco em comparação com outras atividades. Enquanto liability, responsibility e accountability centram a atenção no agente que conduz uma atividade potencialmente danosa, a answerability se dirige ao outro lado da relação: aos destinatários de responsabilidade. Assim, a responsabilidade como answerability - "explicabilidade" - oferece uma justificativa adicional para a tutela da pessoa humana, destacando-se como mais uma camada da função preventiva da responsabilidade. Trata-se de procedimento recíproco de justificação de escolhas que extrapola o direito à informação, facultando-se a compreensão do processo em sua integralidade. A decisão deve ser explicada de uma forma que o sujeito possa compreender o resultado, e assim se situar em relação ao que deve ser modificado. O desafio está na identificação/compreensão de quem deve responder, por quê e a quem as respostas se destinam. Desse modo, alcança-se a "supervisão" cuja pretensão é a complementação dos métodos regulatórios de governança (accountability). A supervisão permitiria a verificação e controle em um processo, sendo possível separar os comportamentos aceitáveis dos inaceitáveis. Aliás, mesmo quando existem regras, o supervisor pode verificar se o processo agiu de forma consistente dentro delas, sopesando as considerações nas circunstâncias específicas do cenário. A partir da multifuncionalidade da responsabilidade civil permite-se um olhar singular - mais compreensivo e contemporâneo - em relação aos novos paradigmas decorrentes do exponencial progresso tecnológico. Os avanços científicos na área biomédica geram impactos inegáveis na vida dos seres humanos o que, muitas vezes, implica na inserção de novos riscos sociais que potencializam a ocorrência de novos danos. É nesse contexto que a responsabilidade civil experimenta novas funções, e mostra-se vocacionada a lidar com os desafios que as contínuas mudanças impõem. Afinal, a tecnologia não configura uma força externa sobre a qual não há nenhum controle, como bem reflete Klaus Schwab - autor da expressão "4. Revolução industrial" - não estamos limitados por uma escolha binária entre "aceitar e viver com ela" ou "rejeitar e viver sem ela".6 Tecnologias genéticas que possibilitam a manipulação de sequências do DNA humano, como exemplo, a técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9, rompem com paradigmas e inovam de forma revolucionária, criando desafios inéditos que suscitam adequações do sistema jurídico aos novos anseios. Caracterizada por sua alta eficiência, facilidade de uso e baixo custo, a técnica tem sido definida como ferramenta promissora no mapeamento de doenças graves de caráter hereditário, na maioria das vezes incuráveis. Essas intervenções genéticas, com o propósito de evitar enfermidades, têm gerado expectativa positiva no que se refere às medidas de prevenção e de criação de novas alternativas terapêuticas em humanos. Entretanto, mesmo considerando seus benefícios terapêuticos preventivos, devido ao seu ineditismo, potencialidade danosa e possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, essa tecnologia tem suscitado intensos debates, particularmente na seara da responsabilidade civil. Decerto, no campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Pondera-se não apenas a sua legitimidade, como também suas eventuais repercussões jurídicas. Torna-se essencial a discussão ampliada do tema o que implica em conceber outras estratégias de enfrentamento dos desafios da responsabilidade civil frente aos "novos riscos"7,8. Essas estratégias incluem a visão multifuncional da responsabilidade civil. Em resposta à complexidade imposta pelos desafios da edição genética, apenas uma das funções da responsabilidade civil (liability - função compensatória) parece-nos insuficiente. Diante dos "novos riscos", potencialmente relacionados à técnica, vislumbra-se para além da função compensatória (liability), os demais sentidos da responsabilidade civil: "responsibility", "accountability" e "answerability".  A "responsibility", como já exposto, relaciona-se ao sentido moral de responsabilidade e assume um viés preventivo (ex ante ao princípio de neminem laedere). No caso da edição genética, além do efeito preventivo da "responsibility" se dirigir ao interventor -significando a inserção de ética no exercício de sua atividade -, percebe-se também sua atuação ex post: garantindo informação ao interventor/ofensor de como deverá se comportar após a ocorrência do dano. Em outro sentido, a "responsibility" assumiria grande relevância, visto que, em função de seu caráter perene, atuaria não somente perante o indivíduo que se submeteu à técnica, mas se perpetuaria pelas gerações futuras e por toda a humanidade.  Afinal, estamos diante de riscos imprevisíveis de potencial lesivo transgeracional. De modo complementar, a "accountability" não se restringe a mera ferramenta de resguardo. Nesse caso, a responsabilidade civil, visivelmente, assume funções de promoção e difusão de direitos fundamentais. No enfrentamento dos desafios que a técnica CRISPR/Cas9 representa, destaca-se, como de extrema relevância, o princípio da precaução. A compreensão de que o risco é o fundamento essencial para que sejam estabelecidos critérios próprios de imputação advindos do desvio dos parâmetros de segurança já é uma constatação. O gerenciamento do estado de incerteza quanto ao risco corresponde a medida proativa no sentido de anteceder o dano. Torna-se inegável a aplicabilidade da função "accountability" no contexto da edição genética. A garantia de maior segurança da técnica fica evidente mediante inclusão de parâmetros regulatórios preventivos eficientes (governança), aliada à evidenciação dos riscos de maior impacto negativo (compliance). Além disso, em caráter ex post, o efeito da "accountability" se manifesta atuando como guia para identificação e quantificação de responsabilidades baseado em parâmetros objetivos - demanda visível das tecnologias genéticas. Por fim, depreende-se evidente aplicabilidade da "answerability" no cenário das tecnologias genéticas. O conceito de supervisão, alcançado a partir da relação de "explicabilidade" complementa os métodos regulatórios de segurança. Assim, viabiliza-se a análise dos comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, sopesando as considerações nas circunstâncias específicas do cenário. E o mais relevante, em relação à edição genética - a supervisão permite as verificações e controles em um processo, mesmo quando o comportamento desejável não pudesse ser especificado com antecedência, como uma regra. Ao ensejo do vigésimo aniversário do Código Civil, relembramos o culturalismo de Reale, na sua concepção acerca dos modelos jurídicos e da experiência humana concreta de cada sociedade em sua historicidade, no que chama, de "normativismo concreto".9 E é justamente a operabilidade da função preventiva que se alcança ao de forma prospectiva recepcionarmos camadas diversas de responsabilidade com origem no common law, contudo perfeitamente adaptáveis ao estágio atual de relações sociais onde a função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de direitos fundamentais diante de novas tecnologias. Graziella Trindade Clemente é pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae/Universidade de Coimbra. Doutora em Biologia Celular e Mestre em Ciências Morfológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico/Universidade de Coimbra. Professora Titular do Centro Universitário Newton Paiva. Professora dos cursos de Pós-graduação em Direito Médico e Bioética - PUCMinas; Direito Médico, da Saúde e Bioética - Faculdade Baiana de Direito. Vice-Coordenadora do COEP - Centro Universitário Newton Paiva. Membro Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogada e Odontóloga. Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Professor permanente do PPGD (Doutorado e Mestrado) do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic, Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. 4 Conceitos de Responsabilidade Civil para a 4ª Revolução Industrial e o Capitalismo de Vigilância. In: Ehrhardt, M.J. (Org.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.175-203.  2 Cassazione Civile, Sezioni Unite., Sentenza 05/07/2017 n° 16601. 3 KROLL. Joshua. A. Accountability in Computer Systems- Oxford Handbook of the Ethics of Artificial Intelligence. Chapter 9, p. 11. 4 GELLERT, Raphaël. Understanding data protection as risk regulation. Journal of Internet Law, Alphen aan den Rijn, v. 18, n. 1, p. 3-15, mai. 2015, p. 6-7. 5 ROSENVALD, Nelson. 4 Conceitos de Responsabilidade Civil para a 4ª Revolução Industrial e o Capitalismo de Vigilância. In: Ehrhardt, M.J. (Org.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.175-203. 6 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial, São Paulo, Edipro, p, 14, 2016.  7 CLEMENTE, G. T. Responsabilidade Civil, Edição Gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, N.; DRESCH, R. F. V.; WESENDONCK, T. (Org.). Responsabilidade Civil - Novos Riscos. Indaiatuba, SP: Foco, 2019, p. 301-317. 8 CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.  9 A norma jurídica não éconcebida como simples estrutura lógico-formal, antes consiste em um "modelo ético-funcional que, intrínseca e necessariamente, prevê e envolve o momento futuro de uma ação vetorial e prospectiva concreta". (REALE, Miguel, O Direito como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 191).