COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer, Rafaella Nogaroli e Igor Mascarenhas
segunda-feira, 8 de julho de 2024

Teoria da perda de uma chance em perspectiva

1. PRIMEIRO APONTAMENTO SOBRE A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE As primeiras manifestações a respeito da utilização da teoria da perda de uma chance surgiram na França, mas, ao contrário do que muitos defendem, no final do século XIX esse país ainda era totalmente avesso à indenização das chances perdidas, uma vez que optava pela aplicação das normas mais estritas de reparação decorrentes da responsabilidade civil, impondo, necessariamente, a prova da certeza do dano.1 Por meio de pesquisas realizadas em decisões judiciais pelos irmãos Mazeaud, constatou-se que o primeiro julgado a abordar o tema foi um de 1896, da Corte de Apelação de Limoges, que cuidava do pedido de reparação elaborado por um dono de cavalos em face de uma empresa de transportes, em razão de o animal não ter chegado em tempo para participar de uma corrida. Porém, o pedido foi indeferido por não ser possível garantir que o animal venceria a corrida.2 A teoria é utilizada naquelas situações em que o lesado foi impedido de fazer uso de uma oportunidade de conquistar certo benefício ou deixar de sofrer um prejuízo, por culpa de um terceiro, contra o qual poderá exigir a indenização correspondente, a qual, contudo, jamais equivalerá ao resultado final, que será calculado com fundamento na probabilidade.3 A teoria surgiu diante da dificuldade do lesado provar o nexo causal e a extensão do dano, notadamente quando o fato danoso estava cercado por condições diversas, a exemplo dos casos de responsabilidade médica. Portanto, originou-se atrelada ao nexo causal, apesar de, na atualidade, a maior parte da doutrina vinculá-la à questão do dano.4 Foi a Corte de Grenoble (comuna francesa), conforme aponta o eminente jurista Miguel Kfouri Neto, a precursora na utilização de forma clara desta teoria à responsabilidade médica, a partir do caso de uma paciente com dores no punho que se submeteu a um exame radiográfico.5 O médico que analisou a radiografia não observou nenhuma fratura ou qualquer outra patologia, porém, 7 anos depois, apareceram fortes dores e o paciente moveu demanda judicial quando, então, analisando-se aquele primeiro exame, constatou-se a existência de uma fratura que não havia sido observada pelo médico. Diante do fato, a Corte deferiu uma reparação com supedâneo na teoria da perda de uma chance, em razão da não utilização, na primeira oportunidade, da terapia adequada.6 A perda de uma chance não guarda relação com um resultado certo, pois não existe certeza de que o evento se concretizará. Deve-se admiti-la como a perda de uma possibilidade de atingir um resultado ou de se impedir um dano. Não se exige a certeza do dano, mas certeza da probabilidade. A tarefa de analisar cada caso a fim de verificar se as possibilidades são concretas é do magistrado.7 A teoria da perda de uma chance não se trata nem de uma hipótese de dano emergente e nem de lucros cessantes, uma vez que, para caracterização destes últimos, é indispensável a certeza da obtenção do resultado, enquanto que, para verificação da primeira, basta a probabilidade de conquista do resultado almejado.8 No Brasil, as primeiras afirmações a respeito da teoria ocorrem no Rio Grande do Sul, em acórdãos prolatados pelo desembargador Ruy Rosado de Aguiar Júnior, o qual se inspirou numa palestra ministrada pelo professor François Chabas, em 23/5/90, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, denominada "La perte d'une chance en droit français. Tal pioneirismo foi endossado pelo destacado jurista brasileiro Dr. Miguel Kfouri Neto." 9 O processo originou-se do caso de uma paciente que se submeteu a uma cirurgia refrativa, em 21/3/87, para correção de miopia em grau 4.00 no olho direito, com o fim de evitar o uso de lentes corretivas. A autora perdeu em primeira instância, mas conseguiu reformar a decisão perante a 4a Câmara Cível de Porto Alegre, sob relatoria do desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior, o qual, após análise do laudo pericial entendeu que o médico não tomou as cautelas necessárias e foi responsável pela perda da chance que a paciente tinha de corrigir sua visão.10 No Brasil, a teoria da perda de uma chance sempre foi e continua sendo utilizada com o fim de justificar uma eventual reparação a título de danos morais pela oportunidade perdida pelo paciente ou lesado. Com base nessa noção de perda de chance, eu busquei dar uma nova roupagem para a Teoria da Perda de Uma Chance, fazendo uso da mesma de forma preventiva, antes que o dano se verifique, especificamente para os casos de tratamentos de saúde. Por isso nominei de Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva, uma vez que o paciente pode estar diante de sua melhor chance de cura a ser perdida ou perante uma última chance de cura, caso não receba o tratamento adequado para sua patologia. 2. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE EM PERSPECTIVA Defendo a aplicação da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para os casos de pacientes que precisam com urgência iniciar tratamentos de saúde, mesmo que seja por meio de tratamentos experimentais ou com uso de medicamentos OFF LABEL. A finalidade é utilizar a teoria para fundamentar a concessão de medicamentos ou procedimentos médicos antes que a doença se agrave ou o paciente venha a óbito. Para lançar luzes ao tema imaginemos a seguinte situação: Determinada paciente, portadora de câncer de mama, já foi submetida às sessões de quimioterapia e radioterapia disponíveis no Sistema Único de Saúde Brasileiro, porém, sem alcançar remissão da doença. Então, sua médica oncologista toma ciência sobre uma nova medicação de alto custo, já reconhecida e aprovada em âmbito internacional, mas sem aprovação perante a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nessa hipótese, considerando o tempo que se leva para um medicamento ser aprovado e registrado perante ANVISA, bem como o risco de demora para a paciente, poderíamos fazer uso da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para fundamentar o direito da paciente de fazer uso dessa medicação mesmo sem registro e aprovação da ANVISA, uma vez que ela pode estar diante de sua última chance de cura, qual seja, submeter-se ao uso dessa medicação ainda não registrada na ANVISA. A Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva também pode ser aplicada nos casos de prescrição de medicamentos órfãos11 para pacientes com doenças raras. Para algumas doenças raras já existem medicamentos registrados perante a ANVISA, mas que ainda não foram incluídos na RENAME - Relação Nacional de Medicamentos Essenciais12, motivo pelo qual não são cobertos pela União ou pelo Estado. Igualmente, ainda não foram incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, relação que as operadoras de planos privados de assistência à saúde tomam como referência para oferecer cobertura aos seus beneficiários. Em relação aos medicamentos órfãos, tomemos como exemplo um dos medicamentos mais caros do mundo, chamado zolgensma (uma única doze pode custar mais de seis milhões de reais), indicado para AME - atrofia muscular espinhal tipo 1 com 2 cópias do gene SMN2, doença rara, degenerativa, passada de pais para filhos e que não tem cura. "O prognóstico para pacientes portadores de AME tipo 1 com 2 cópias do SMN2 é grave; esses pacientes mostram sinais da doença logo após o nascimento (6 meses de vida), nunca adquirem a capacidade de sentar-se e geralmente não sobrevivem aos últimos 2 anos sem suporte ventilatório e nutricional mecânico significativo. A maioria dos pacientes com AME de início infantil não sobrevive à primeira infância devido à insuficiência respiratória. AME é a causa monogênica mais comum de mortalidade infantil." 13 Esse medicamento é o que mais aumenta a chance de cura para AME. Apenas uma aplicação já surte efeito contra a doença, só que ela precisa ser feita até os dois primeiros anos de idade. Nesse caso, estamos diante de uma situação clara de última chance de cura ou da melhor chance. Se a criança com AME não tomar a medicação ela, certamente, virá a óbito, motivo pelo qual ela tem direito de fazer uso dessa que pode ser sua última ou única chance de cura. Nos casos de planos privados de assistência à saúde a teoria em discussão também pode ser aplicada, especialmente nos casos em que o tratamento prescrito ainda não foi incluído no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS. Se o paciente tiver que aguardar a inclusão de um determinado tratamento ou medicamento no ROL, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL (fora da bula), o que pode levar meses e até anos, ele poderá perder sua chance de cura ou melhora do quadro clínico, razão pela qual ele também poderia fundamentar seu pedido na teoria da perda de uma chance em perspectiva. Em todas estas hipóteses os pacientes estão, em perspectiva, diante de uma clara probabilidade de perder uma última ou única chance de cura ou ainda uma chance de melhora do quadro clínico com ganho de sobrevida. Diante desses apontamentos, penso que seria razoável fazermos o seguinte questionamento: Os pacientes que fazem uso do SUS ou dos planos privados de assistência à saúde tem direito de fazer uso de todas as alternativas de tratamentos de saúde disponíveis, inclusive aqueles que ainda não foram aprovados e registrados perante a ANVISA ou incluídos no Rol da ANS? Tratamentos ainda considerados experimentais, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL, mas que já possuam evidências de eficácia, os quais podem ser considerados como única ou última alternativa de cura, também devem ser cobertos pelo SUS e pelos planos de saúde? Penso que a resposta deveria ser positiva para essas duas perguntas, uma vez que estamos diante de direito fundamental albergado pela Constituição Federal Brasileira. Apesar disso, mesmo que você pense diferente, espero que esses apontamentos e questionamentos levem a uma profunda reflexão a respeito de um tema tão importante e que demanda urgência na criação de políticas públicas relacionadas, especialmente porque diretamente relacionado a pacientes com doenças raras e oncológicas. ____________ 1 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 15. 2 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, 15. 3 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 105. 4 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 106-107. 5 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246. 6 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246. 7 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 99. 8 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 5. ed. São Paulo: LTR, 2013, p. 464. 9 SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 194. 10 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44-45. 11 Um medicamento órfão é um medicamento desenvolvido para o tratamento de uma doença rara. Uma doença rara é definida como uma condição que afeta uma porcentagem muito pequena da população e é fatal ou gravemente debilitante. [...] o número de pacientes é tão pequeno que uma doença rara muitas vezes não é "adotada" pela indústria farmacêutica (daí a expressão medicamento órfão). Disponível aqui. 12 A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - Rename é um importante instrumento orientador do uso de medicamentos e insumos no SUS. A Rename 2022 apresenta os medicamentos oferecidos em todos os níveis de atenção e nas linhas de cuidado do SUS, proporcionando transparência nas informações sobre o acesso aos medicamentos da rede. Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 
Quando um paciente agenda uma consulta médica e vai ao encontro do profissional, ele espera um diagnóstico correto para iniciar o tratamento adequado para poder se recuperar da sua condição de saúde. A consulta na relação médico-paciente consiste na anamnese, no exame físico, hipótese ou conclusão diagnóstica, solicitação de exames complementares (laboratoriais ou de imagem) e a prescrição medicamentosa.1 Diagnosticar não é um ato simples, mas sim um processo complexo. Conforme Rizzardo (2013, p. 325), diagnosticar "constitui uma operação delicada, feita em vista dos sintomas apresentados, dos exames e verificações auscultadas em face de testes e de múltiplas reações". Complementando essa visão, Kfouri Neto (2018, p. 219) define "o diagnóstico como o conjunto de atos médicos com a finalidade de reconhecer, identificar e interpretar sinais característicos da doença, para estabelecer a terapêutica adequada e necessária à obtenção da cura." Muito além de correlacionar sintomas e doenças, o diagnóstico estabelece a conduta médica e o prognóstico. Um diagnóstico correto considera todos os sinais e sintomas do paciente, bem como a anamnese, sem influenciar a descrição da evolução da doença (SCHAEFER, 2012, p. 65-66). O erro de diagnóstico, por norma, não terá o condão indenizatório, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência (FRANÇA, 2014, p. 248). Porém, se um médico prudente não o cometesse, em iguais condições externas que o médico demandado, estaremos diante de um erro indenizável (KFOURI NETO, 2018, p.113). No mesmo sentido, Maldonado (2019, p. 46) afirma que "[...] o médico que, por erro grosseiro, venha causar dano ao paciente, tem o dever, como decorrência da responsabilidade civil, de indenizá-lo". Entretanto, se um erro de diagnóstico grosseiro não for identificado, qualquer demanda de indenização contra o médico não pode resultar em sua condenação. Como exemplo, tem-se o acórdão de apelação 0019735-58.2020.8.16.00142, proferido em 19/4/24, pela 10º Câmara Cível do TJ/PR, que se destaca por aplicar esta compreensão doutrinária, pois enfrentou diretamente a complexa questão do diagnóstico médico e decidiu pela ausência de responsabilidade civil do médico ao julgar ação de indenização por danos morais e patrimoniais em razão de suposta falha no atendimento médico e hospitalar dispensado ao filho da autora, que teve como diagnóstico primário adenite mesentérica, quando, na verdade, tratava-se de um quadro de apendicite aguda. Ao analisar e julgar a situação apresentada, o acórdão destacou que o médico utilizou todos os meios diagnósticos disponíveis (exames laboratoriais, físicos e de imagem), conforme o art. 323 do Código de Ética Médica, e que a conduta médica foi considerada adequada, pois os exames não indicaram claramente um quadro de apendicite aguda. Assim, não houve culpa dos médicos nem nexo de causalidade entre o atendimento e os danos alegados pelo paciente. Dada a avaliação técnica e a ausência de erro grosseiro, o acórdão foi categórico no sentido de que não há fundamento para responsabilizar os profissionais de saúde ou o hospital pelo diagnóstico e tratamento fornecidos. Partindo deste caso prático, evidencia-se que realizar um diagnóstico médico é um processo complexo que requer a integração de múltiplos dados clínicos e tecnológicos. A precisão depende da utilização adequada dos recursos diagnósticos e da análise minuciosa dos sintomas e exames. A atribuição de supostos erros de diagnóstico pode ocorrer devido à semelhança entre diferentes condições médicas e à evolução temporal dos sintomas. Inclusive, o acórdão destaca que, mesmo com alta competência técnica e diligência, o diagnóstico pode ser um desafio, sem que isso necessariamente implique culpa ou responsabilidade dos profissionais de saúde. Nesta linha de raciocínio, Kfouri Neto (2018, p. 220) enfatiza que: Existem sintomas inespecíficos, doenças assintomáticas, indícios claros de determinadas patologias que mascaram doenças mais graves, relatos inexatos dos próprios pacientes, males de evolução tão rápida - e, muitas vezes, letal - que torna impossível a efetivação de exames complementares, para auxiliar a fixação do correto diagnóstico. Diante dessa complexidade, é crucial que os médicos utilizem todas as ferramentas à sua disposição. Além da empatia, do zelo e do cuidado, o avanço tecnológico deve ser utilizado pelo médico como meio para corroborar para um diagnóstico ideal. Gonçalves (2013, p. 268) faz um importante alerta para casos nos quais os profissionais dispensam a utilização da tecnologia, vejamos: Diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar- se em exames de laboratório, ultrassom, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu- se a tratamento inócuo e teve a sua situação agravada, principalmente se verificar que deveriam e poderiam ter sido submetido ao seu cliente a esses exames e não o fizeram, optando por um diagnóstico precipitado e impreciso. Ademais, o erro de diagnóstico divide-se em duas categorias: Erro de diagnóstico evitável e erro de diagnóstico inevitável. Schaefer (2012, p. 66) explica que inevitáveis são aqueles decorrentes da própria limitação da ciência médica (como doenças ainda não catalogadas) e por isso não constituem faltas graves e consequentemente não são puníveis. Por outro lado, erros de diagnóstico evitáveis podem gerar a responsabilidade do médico. A autora esclarece que "são erros que teriam sido evitados se todas as precauções necessárias (como realização de exames clínicos, laboratoriais, físicos, etc.) tivessem sido tomadas". Dessa forma, é essencial que os médicos façam uso das novas tecnologias disponíveis para embasar seus diagnósticos e realizem anamnese completa antes de levantar hipóteses diagnósticas. Isso não só melhora a precisão, mas também reduz a probabilidade de erros evitáveis que poderiam resultar em responsabilidade civil. Sobre a responsabilidade civil médica, convém esclarecer que o médico responde com base na teoria subjetiva, que se fundamenta na aferição de culpa stricto sensu (negligência, imprudência e imperícia), conforme estabelecido nos artigos 186 e 951 do Código Civil, cabendo, então, à vítima comprovar o nexo de causalidade entre o dano e o ato médico culposo. Neste contexto, Kfouri Neto (2018, p. 224), assevera que, para a identificação da culpa na conduta do médico ao efetuar um diagnóstico, é necessário considerar fatores "como açodamento, pressa e precipitação (imprudência), falta de exames imprescindíveis (negligência) ou desconhecimento da ciência médica (imperícia)." Diante de todo o exposto, conclui-se, que a arte de diagnosticar exige precisão, empatia e o uso adequado das tecnologias disponíveis. Erros de diagnóstico, embora muitas vezes inevitáveis, podem ser minimizados com práticas diligentes e uma abordagem criteriosa. E a responsabilidade civil médica se torna uma realidade quando o erro poderia ter sido evitado com a devida cautela, destacando a importância do contínuo aprimoramento e rigor na prática médica. ___________ CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM nº 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 - Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.958/2010. Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024. FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 12. ed. rev., atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 4. KFOURI NETO, Migue. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. - 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 9 ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018. MALDONADO, José Carlos. Iatrogenia e erro médico: sob o enfoque da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. SCHAEFER, Fernanda. Responsabilidade civil do médico & erro de diagnóstico. 11. reimp. Curitiba: Juruá, 2012. SOUZA, Wendel Lopes Barbosa de. O erro médico nos tribunais. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. ___________ 1 RESOLUÇÃO CFM n.º 1.958/2010. Disponível aqui. Acesso em 22 maio 2024. 2 APELAÇÃO. "AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS POR FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS". ALEGAÇÃO DE ERRO MÉDICO. ERRO DE DIAGNÓSTICO. AUTOR QUE FOI ATENDIDO NO PRONTO ATENDIMENTO DO HOSPITAL REQUERIDO, PELOS MÉDICOS RÉUS. QUADRO DE FEBRE, DOR ABDOMINAL, VÔMITO, DIARREIA E AUSÊNCIA DE APETITE. EXAMES DE IMAGEM INCONCLUSIVOS. EXAME DE SANGUE QUE APONTOU INFECÇÃO. DIAGNÓSTICO DE ADENITE MESENTÉRICA. MENOR QUE FOI MEDICADO, COM ALTA POSTERIOR, SOB INDICAÇÃO DE RETORNO EM 24 HORAS NA PERSISTÊNCIA DOS SINTOMAS. RETORNO EM OUTRO NOSOCÔMIO, COM ATENDIMENTO DEPOIS DE MAIS DE 34 HORAS DA ALTA MÉDICA. FEITO EXAME DE TOMOGRAFIA, QUE APONTOU APENDICITE AGUDA COM SUPURAÇÃO. INTERVENÇÃO CIRÚRGICA E POSTERIOR RESTABELCIMENTO, SEM COMPLICAÇÕES. AUTORES QUE AFIRMAM QUE O ATRASO NO DIAGNÓSTICO CORRETO, CAUSOU A PERFURAÇÃO DO APÊNDICE, COLOCANDO A VIDA DO MENOR EM RISCO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL MÉDICO SUBJETIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14, §4º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL OBJETIVA, MEDIANTE CARACTERIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO MÉDICO. INSTRUÇÃO DO PROCESSO COM PERÍCIA, COMPLEMENTADA EM SEGUNDO GRAU. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS E, DE CONSEQUÊNCIA, DO HOSPITAL. INEXISTÊNCIA DE ERRO DE DIAGNÓSTICO GROSSEIRO. QUADRO DE ADENITE MESENTÉRICA QUE SE ASSEMELHA AO QUADRO DE APENDICITE. EXAME FÍSICO QUE NÃO APONTOU QUADRO DE DOR TRADICIONAL DA MOLÉSTIA. EXAMES DE IMAGEM QUE NÃO APONTARAM ALTERAÇÕES SUFICIENTES PARA O DIAGNÓSTICO DE APENDICITE AGUDA. EVOLUÇÃO NATURAL DO QUADRO. MÉDICOS QUE AGIRAM CONFORME PRÁXIS MÉDICA, SOLICITANDO EXAMES, MEDICANDO E INTERPRETANDO O ESTADO CLÍNICO CONFORME SE APRESENTOU NO MOMENTO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS REQUERIDOS. PEDIDO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (TJPR - 10ª Câmara Cível - 0019735-58.2020.8.16.0014 - Londrina -  Rel.: DESEMBARGADORA ANGELA KHURY -  J. 22.04.2024) 3 Art. 32. [É vedado ao médico:] Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Durante longa data, houve intensos debates no âmbito judicial em nosso país acerca do caráter exemplificativo ou taxativo do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS. Tal discussão foi encerrada com um backlash normativo com origem no Congresso brasileiro: em 21 de setembro de 2022, foi sancionada a Lei 14.454/2022, que previu que o rol da ANS constitui apenas referência básica e que procedimentos e eventos fora dele deverão ser cobertos pelos planos de saúde contanto que haja recomendação por órgão técnico, nacional ou estrangeiro, OU que haja comprovação da eficácia científica, "à luz das ciências da saúde". Caberá, então, ao magistrado, a partir da análise dos métodos utilizados pelo estudo científico apresentado para respaldar a prescrição do tratamento/medicamento, avaliar efetivamente a sua eficácia superior quando comparado com outro método consolidado ou mais tradicional. Isso porque, caso se esteja diante de pseudoestudos (junk science), a avaliação judicial deverá ser a de que não houve comprovação científica e, portanto, não foram cumpridos os requisitos legais para prescrição do tratamento/medicamento fora do rol da ANS. Essa avaliação tende a ser complexa, vez que o magistrado não possui conhecimento técnico suficiente para avaliar estudos clínicos. A definição a respeito do caráter do rol da ANS possui implicações profundas: se, por um lado, a medicina é uma ciência em constante e rápida evolução, e por óbvio o Poder Executivo, por meio da competência delegada à ANS, não tem a capacidade de manter o rol de procedimentos e eventos em saúde atualizado de acordo com os últimos avanços científicos, por outro, também parece salutar que se busque preservar o paciente de tratamentos experimentais. Portanto, inexistem razões para compelir os planos de saúde a custear alternativas sem eficácia científica comprovada. A lei 14.454/2022 foi aprovada pelo Congresso e, em, 21 de setembro de 2022, entrou em vigor com a sanção presidencial. A partir dela, não seria mais cabível negativa de cobertura de tratamento com base na ausência de previsão no rol da ANS. Foi alterada, assim, a Lei 9.656/1998, que passou a prever, em seu art. 10, §12, que "O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde (...)". A mesma Lei 9.656/1998, no parágrafo seguinte, prevê as condições para que a cobertura seja autorizada pela operadora de planos de saúde, sendo os requisitos alternativos, e não cumulativos. Assim, se o procedimento previsto pelo médico assistente não estiver previsto no rol da ANS, a cobertura DEVERÁ ser autorizada contanto que:  I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.  O inciso I, ao estipular a necessidade de que o medicamento/tratamento possua eficácia "baseada em evidências científicas", outorga ao juiz a necessidade de avaliação até mesmo dos métodos utilizados em estudo que suporte eventual prescrição médica cuja cobertura não esteja prevista no rol da ANS. O inciso II, por sua vez, não deixa margem para interpretação: se houver recomendação do Conitec ou de órgãos internacionais renomados - e, aqui, podemos mencionar a Food and Drug Administration (FDA), no âmbito dos Estados Unidos, ou a Agência Europeia de Medicamentos - o tratamento prescrito pelo médico deverá ser coberto. Diante disso, é necessário que a parte que judicializa uma negativa de tratamento que não se encontra previsto no rol da ANS traga ao menos algum estudo que demonstre a sua eficácia. O paciente deverá contar com o auxílio próximo do médico assistente, que deverá fornecer o embasamento teórico que levou à prescrição de um determinado tratamento/medicamento em detrimento de outro que porventura esteja expressamente previsto no rol da ANS, acompanhado de uma justificativa técnica indicando de maneira pormenorizada por que a prescrição seria imprescindível àquele paciente, enaltecendo os benefícios específicos e sua superioridade. Embora aplicável à prova pericial/técnica, faz-se necessária a análise de precedentes dos Estados Unidos, os quais já enfrentaram a discussão sobre a avaliação judicial do que se entenderia por junk science, estabelecendo critérios objetivos que podem auxiliar o julgador brasileiro a buscar elementos que evidenciem a pseudociência quando estiver em discussão a eficácia científica de procedimentos e eventos em saúde. Inicialmente, devemos abordar o contexto de tais precedentes: todos dizem respeito à avaliação sobre a fiabilidade da prova técnica, não necessariamente em matéria de saúde. Os padrões para aferição da confiabilidade da prova técnica foram estabelecidos primeiramente em casos criminais. Em 1923, o emblemático caso Frye v. United States estabeleceu que o depoimento pericial deve ser baseado em "métodos científicos que sejam suficientemente estabelecidos e aceitos"1, passando a ser conhecido como Frye standard enquanto teste de admissibilidade geral de provas científicas. Em resumo, James Alphonzo Frye foi condenado por homicídio. Durante a instrução, o advogado da defesa arrolou uma expert witness para corroborar os resultados de um detector de mentiras aplicado sobre o réu - sustentava-se que a pressão sanguínea sofre alterações a partir de mudanças no humor da testemunha, com a demonstração de que sentimentos como raiva e dor produzem um aumento na pressão sistólica, aplicando-se a mesma conclusão caso a testemunha minta ou oculte fatos, diante do receio de detecção, o que não ocorreria se o relato fosse o retrato da verdade. O réu foi submetido ao teste previamente ao julgamento, conduzido justamente pela testemunha técnica, que pretendia afirmar os resultados obtidos diante do júri. A acusação impugnou a prova, que foi acolhida pela instrução. A defesa, então, pleiteou de forma alternativa a submissão do réu ao detector de mentiras perante o júri, o que também foi negado. A Corte do Circuito do Distrito de Columbia2 decidiu pela manutenção do indeferimento, tendo em vista que a conclusão apresentada pelo depoimento científico, para que seja admissível, deve "estar suficientemente estabelecida a ponto de ter aceitação geral no campo particular a que pertence" - tal hipótese ainda não teria ocorrido com a apresentação das alterações da pressão sanguínea sistólica como prova de que uma afirmação seria verdadeira ou falsa, ao menos não a ponto de ser admitida como prova em juízo. Trata-se de um critério objetivo que não abre muita margem interpretativa: há aceitação geral na comunidade científica? Se a resposta for negativa, o depoimento técnico não será admitido. Quando a decisão foi proferida, em 1923, talvez a ciência não caminhasse a passos tão largos como ocorre atualmente. Assim, a aplicabilidade de tal critério poderia ser suficiente como critério epistêmico de fiabilidade naquela época. Em 1993, o emblemático precedente da Suprema Corte Estadunidense Daubert v. Merrell Dow Pharmac. Inc.3 instituiu relevantes parâmetros sobre a confiabilidade do depoimento técnico, ao reconhecer que as Federal Rules of Evidence (normas processuais e de admissibilidade que vigoram nas Cortes Federais) teriam substituído o standard Frye como padrão de admissibilidade da prova testemunhal técnica. Em resumo, a senhora Daubert fez uso de um medicamento para enjoo durante a gravidez chamado de Benedectin. Seu filho, Jason Daubert, nasceu com malformações (especificamente, a ausência de três dedos em sua mão direita, além de não ter um dos ossos no antebraço, sem contar outros problemas secundários), atribuídas, supostamente, ao uso do fármaco durante a gestação, o que motivou a família a ajuizar uma demanda indenizatória em face da indústria farmacêutica. A família Daubert deveria provar, portanto, que o medicamento que causava defeitos de nascença e, para tanto, contratou peritos científicos para testemunhar em seu favor. Todos os estudos científicos preliminares não haviam demonstrado que o Benedictin aumentava os riscos de malformação se ministrado durante a gravidez, então foram utilizados estudos laboratoriais, sobretudo com testes em animais e análises químicas. Na primeira instância, as testemunhas técnicas foram excluídas, tendo em vista a inexistência de consenso na comunidade científica quanto aos malefícios causados pelo fármaco em análise. O tribunal confirmou o julgamento. Finalmente, ao chegar na Suprema Corte, entendeu-se que as Federal Rules of Evidence, aplicáveis às cortes federais, preveem expressamente os parâmetros para admissibilidade do testemunho científico na Rule 702, superando (overruling) o entendimento de Frye. Segundo a Corte, o rígido parâmetro de "aceitação geral" estabelecido por Frye não encontraria suporte nas FRE, estando em descompasso com o espírito liberal das regras, já que impediria que o júri tivesse acesso a inovações científicas de grande credibilidade (good science4), mas que ainda não gozam de aceitação geral entre a comunidade científica. Foi determinado que o juiz deve atuar como um guardião (gatekeeper), impedindo que junk science seja utilizada como fundamento decisório pelo júri. Remetendo à Rule 702, a Corte afirma que é imprescindível que o depoimento do perito pertença "ao 'conhecimento científico', vez que o adjetivo 'científico' implica no embasamento em métodos e procedimentos da ciência, enquanto a palavra 'conhecimento' denota um corpo de fatos conhecidos [...] aceitos como verdade". Estabeleceu-se, portanto, cinco fatores (não necessariamente cumulativos e apenas exemplificativos) para aferir a fiabilidade da metodologia utilizada pelo perito:  1) A teoria ou técnica empregada pelo especialista é geralmente aceita na comunidade científica? 2) Foi submetida à publicação e revisão pelos pares? 3) Pode ser e foi testada? 4) A taxa de erro conhecida ou potencial é aceitável?; e 5) A pesquisa foi realizada independentemente do litígio específico ou na intenção de fornecer a conclusão apresentada?5 Na mesma década do julgamento de Daubert, a Suprema Corte decidiu em outros casos a possibilidade de que o juiz examine, de forma discricionária, a conclusão da prova pericial - segundo Rachel Herdy, migrou-se de um entendimento de deferência6 do juiz sobre a prova técnica produzida para um modelo de educação7. O mesmo raciocínio se aplicaria na avaliação sobre a existência de comprovação da eficácia, "à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico" de um determinado tratamento prescrito que não esteja previsto no rol da ANS. Posteriormente, em 1999, outro precedente relevante do ponto de vista epistemológico foi decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Em Kumho Tire Co. v. Carmichael8, Patrick Carmichael dirigia seu automóvel quando o pneu traseiro direito explodiu, levando um dos passageiros a óbito e causando ferimentos severos nos demais. Em vista disso, ajuizou demanda indenizatória em face do fabricante, Kumho Tire. O expert arrolado pelos autores da ação atribuiu a explosão do pneu a falhas do fabricante - o que concluiu a partir de uma "inspeção visual e tátil no pneu". A empresa, por evidente, discordou, questionando a (falta de) metodologia aplicada pelo perito, pleiteando sua exclusão com base na Rule 702. A Corte Distrital, invocando o precedente Daubert, decidiu que os métodos aplicados pelo perito não eram cientificamente válidos, determinando a sua exclusão. Ao apelar, o décimo primeiro circuito, cassou a decisão, aplicando a técnica de distinguishing para concluir que o precedente Daubert não seria aplicável, tendo em vista que o depoimento em Kumho Tire diria respeito não a um depoimento técnico-científico, mas a uma observação empírica baseada na experiência. Kumho Tire recorreu, então, à Suprema Corte, para que esta decidisse se o precedente Daubert seria aplicável apenas às provas científicas ou também àquelas baseadas em observação da realidade, a partir da experiência. A decisão foi convergente com a da Corte Distrital, ou seja, no sentido da exclusão da prova técnica por não resistir aos parâmetros de admissibilidade estabelecidos em Daubert, haja vista que a Rule 702 não aplica distinções entre o conhecimento científico ou técnico, com a ressalva de que não há uma fórmula para aplicação em todos os casos se a prova técnica é admissível ou não: a aplicabilidade dos critérios estabelecidos em Daubert dependeria das "circunstâncias particulares do caso particular em questão". Em suma, a decisão sobre a admissibilidade das provas técnicas é casuística: "a decisão de Kumho Tire por fim reconhece que o que realmente importa não é saber se o testemunho pericial possui base científica, e sim se é confiável - mas parece deixar todas as questões delicadas à discrição dos tribunais"9, o que se configura em "um importante avanço epistemológico"10. O relevante aqui é que houve uma ampliação dos casos em que, potencialmente, os critérios estabelecidos pelo precedente Daubert seriam aplicáveis, vez que não ficariam restritos às provas científicas, mas igualmente em técnicas ou "observações baseadas na experiência". Isso não significa que os fatores para avaliação metodológica em Daubert tenham perdido relevância, mas apenas que deve ser feita uma maior reflexão quanto à sua aplicabilidade ou não: "os tribunais podem usar qualquer um, todos ou nenhum dos fatores de Daubert, e/ou outros fatores mais apropriados à tarefa do momento - confirma que esse assunto delicado deve ser deixado ao arbítrio dos tribunais"11. O mesmo raciocínio se aplicará quando da avaliação de estudo utilizado para suportar pedido judicial de concessão de tratamento / medicamento. O próprio Código de Processo Civil brasileiro, no art. 479, dispõe que o juiz deve levar em consideração o método empregado pelo perito, quando da produção de prova pericial: "O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito ". Portanto, a exemplo dos precedentes estrangeiros, nossa legislação chancela a importância da análise do método em provas mais complexas, para além das conclusões finais do estudo, cuja avaliação é deveras difícil a qualquer pessoa que não pertença àquela esfera do conhecimento. Entretanto, como pode o juiz avaliar, sobretudo em sede de cognição sumária, um estudo científico utilizado para respaldar o pedido de fornecimento de tratamento/medicamento, se não possui formação médica? Nesta senda, critérios estabelecidos por precedentes americanos podem ser aplicados individualmente ou cumulados na avaliação: 1) A teoria ou técnica empregada pelo especialista é geralmente aceita na comunidade científica? Aqui, temos o critério Frye aplicado - caso haja consenso científico, ao menos relativo, há bons indícios acerca da cientificidade do tratamento/medicamento cuja concessão é pleiteada. 2) Foi submetida à publicação e revisão pelos pares? Responder a essa pergunta significa avaliar se o critério de submissão de um determinado artigo científico a um periódico ou revista passou, previamente, por uma revisão isenta e com rigor metodológico por parte do corpo editorial (pares do autor do estudo). 3) Pode ser e foi testada? Especificamente em casos médicos, o teste já deve ter sido realizado preferencialmente em seres humanos (o que, aliás, é imprescindível para aprovação de um novo medicamento). A experiência obtida do precedente Robert K. Joiner contra a Monsanto, General Electric e Westinghouse Electric indica que testes laboratoriais muitas vezes não resistem a indagações mais aprofundadas, já que, neste caso, ratos foram expostos a concentrações extraordinárias e concentradas de uma substância efetivamente capaz de causar câncer, o que não ocorreria na proporção experimentada pelo demandante no caso concreto. 4) A taxa de erro conhecida ou potencial é aceitável? Os estudos trazem em seu bojo margens de erro inerentes ao método científico, uma vez que analisam, em regra, apenas amostras do universo de pessoas que potencialmente pode ser exposto ao tratamento/medicamento - quanto maior a amostra, menor será a taxa de erro, o que aumentará a chance de que o tratamento / medicamento seja eficaz. 5) A pesquisa foi realizada independentemente do litígio específico ou na intenção de fornecer a conclusão apresentada? "Estudos" encomendados unicamente para demonstrar um ponto de vista são epistemicamente suspeitos, pois seus condutores atuam com um viés confirmatório (confirmation bias), havendo alguns indícios como o interesse econômico de um eventual financiador do estudo na confirmação da eficácia de seu medicamento ou técnica.12 O que pretendemos, no presente artigo, foi fornecer elementos mínimos para avaliação de estudos científicos apresentados para suportar tratamentos/medicamentos que não estejam previstos no rol da ANS. Como o dilema já foi enfrentado pela jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, achamos por bem buscar inspiração na case law estrangeira a fim de evitar ao máximo que junk science contamine o Judiciário com pedidos de custeio de tratamentos / medicamentos que careçam de qualquer elemento científico que demonstre a sua eficácia, quando então poderiam ser legitimamente negados.  Referências:  ABELLÁN, Marina Gascón. Conocimientos expertos y deferencia del juez (Apunte para la superación de un problema). Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 39, p. 347-365, 2016. CAPPELLINO, Anjelica. Daubert vs. Frye: Navigating the Standards of Admissibility for Expert Testimony. Expert Institute. September 7, 2021. Disponível aqui. DAMASKA, Mirjan. Epistemology and legal regulation of proof. Law, Probability and Risk, v. 2, p. 117-130, 2003. DUCE, Mauricio. Prueba pericial y su impacto en los errores del sistema de justicia penal: antecedentes comparados y locales para iniciar el debate. Revista lus et Praxis, a. 24, n. 2, p. 223-262, 2018. DUCE, Mauricio. Una aproximación empírica al uso y prácticas de la prueba pericial en el proceso penal chileno a la luz de su impacto en los errores del sistema. Polít. Crim., v. 13, n. 25, p. 42-103, jul. 2018. FONTELES, Samuel Sales. Direito e backlash. 2018. 172 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) - Programa de Mestrado da Escola de Direito de Brasília, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília (DF), 2018. FUNK, Christine. Daubert Versus Frye: A National Look at Expert Evidentiary Standars. Expert Institute. August 9, 2021. Disponível aqui. HAACK, Susan. Perspectivas Pragmatistas da Filosofia do Direito. Tradução de André de Godoy Vieira e Nélio Schneider. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. HERDY, Rachel. Ni educación, ni deferencia ciega. Hacia un modelo crítico para la valoración de la prueba pericial. Revista Discusiones, v. 24, n. 1, p. 87-112, 2020. JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R. The Law of Implicit Bias. California Law Review, v. 94, n. 4, p. 969-996, Jul. 2006. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. LAMEGO, Rosana M.; CLEMENTINO, Nelma C. D.; COSTA, Ângela L. B.; OLIVEIRA, Marçal J. M.; BITTENCOURT, Henrique. Transplante halogênico de células-tronco hematopoiéticas em leucemias agudas: a experiência de dez anos do Hospital das Clínicas da UFMG. In Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, 2010. P. 108-115. PÁEZ, La prueba testimonial y la epistemología del testimonio. Isonomía, n. 40, p. 95-118, abr. 2014. POPPER, Karl. The problem of demarcation. In: WARBURTON, Nigel (ed.). Philosophy. Basic Readings. London: Routledge, 1999. SILVA, Fernando Quadros da. O juiz e a análise da prova pericial. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 11-30, 2018. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016. TAVARES, Marcelo Leonardo. O backlash institucional e normativo no Brasil e sua ocorrência no Direito Previdenciário e Assistencial. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 59, n. 233, p. 11-33, jan./mar. 2022. THALER, Richard H., SUNSTEIN, Cass R. Nudge. Como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Tradução de Ângelo Lessa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. VÁZQUEZ, Carmen. De la prueba científica a la prueba pericial. Madrid: Marcial Pons, 2015. VÁZQUEZ, Carmen. La prueba pericial en la experiencia estadounidense. El caso Daubert. Jueces para la democracia, n. 86, p. 92-112, 2016. WARD, Tony. English Law's Epistemology of Expert Testimony. Journal of Law and Society, v. 33, n. 4, p. 572-595, Dec. 2006. __________ 1 UNITED STATES. Court of Appeals of the District of Columbia. Frye v. United States. 293 F. 1013 (D.C. Cir. 1923). Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 2 Algo similar a um Tribunal Regional Federal no Brasil. 3 UNITED STATES. US Supreme Court. Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc., 509 U.S. 579 (1993). Disponível aqui. Acesso em: 15 abr. 2023. 4 FUNK, op. cit. 5 SILVA, Fernando Quadros da. O juiz e a análise da prova pericial. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 11-30, 2018. p. 23. 6 Neste contexto específico, afirmar que o magistrado adota uma postura de deferência em relação à prova pericial produzida equivale a afirmar que o julgador se abstém de avaliar a conclusão da prova pericial, delegando a um terceiro (o perito) a decisão. 7 HERDY, Rachel. Ni educación, ni deferencia ciega. Hacia un modelo crítico para la valoración de la prueba pericial. Revista Discusiones, v. 24, n. 1, p. 87-112, 2020. 8 UNITED STATES. US Supreme Court. Kumho Tire Co. v. Carmichael, 526 U.S. 137 (1999). Disponível aqui. Acesso em: 15 abr. 2023. 9 HAACK, Susan. Perspectivas Pragmatistas da Filosofia do Direito. Tradução de André de Godoy Vieira e Nélio Schneider. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. p. 180 (grifo no original). 10 Ibidem, p. 214. 11 Ibidem, p. 242 (grifo no original). 12 SILVA, Fernando Quadros da. O juiz e a análise da prova pericial. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 11-30, 2018. p. 23.
A experiência na prática forense revela que muitas ações de indenização por patrimoniais ou extrapatrimoniais propostas em face de médicos e profissionais da saúde se devem não necessariamente a um erro médico (imprudência, negligência ou imperícia), mas pela inobservância de algumas cautelas necessárias no atendimento de saúde.1 No contexto da telemedicina, da telessaúde2 e da telemática em saúde3, o dever de informar ganha especial relevância. A sociedade se encontra em constante transformação, e para que o Direito possa cumprir seu papel e regular as novas situações decorrentes dessas mudanças, é necessário que ele também se atualize. Os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telemedicina são: Teleconsulta ou consulta em conexão direta; teleatendimento; telepatologia; telerradiologia (Resolução 2.107/14 do Conselho Federal de Medicina); telemonitoramento ou televigilância (homecare); telediagnóstico; teleconferência; telecirurgia; teleterapia; sistemas de apoio à decisão; aplicativos de atendimento para smartphones. Os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telessaúde são: teledidática; telefonia social; comunidades; bibliotecas virtuais e videoconferências; aplicativos didáticos para smartphones; e mais recente inteligência artificial (machine learning). Durante pandemia do COVID-19, houve um crescimento exponencial na utilização da telemedicina pela comunidade médica, possibilitando um atendimento imediato e seguro, evitando o deslocamento desnecessário do paciente até clínicas médicas e hospitais, reduzindo a sua exposição aos agentes nocivos causadores da infecção viral. Atento a esse cenário, o CFM - Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.314/22, com a finalidade de definir e regulamentar a telemedicina, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. Além disso, foi também promulgada a lei 14.510/22, que alterou a lei orgânica de saúde (lei 8.080/90) para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional. A implementação da telessaúde, por si só, se mostra como um grande desafio a ser superado. Conforme se verifica de estudo publicado no Journal of Medical Internet Research, as principais barreiras relatadas pelos pacientes são: Conexão lenta; Dificuldades de navegação ou instalação do sistema de consulta;  Distrações com o ambiente doméstico ou pela presença de membros da família, inclusive desencadeando preocupações com privacidade;  Dificuldades em se comunicar e se expressar.4 Em que pese o atendimento médico à distância proporcione agilidade e facilidade de acesso, as vulnerabilidades e individualidades do paciente merecem especial atenção. As relatadas dificuldades de se expressar se mostram preocupantes, na medida em que a comunicação transparente e eficaz entre médico e paciente é elemento indispensável, pois estabelece confiança no compartilhamento de informações, auxiliando sobremaneira a assertividade do diagnóstico.  Nas relações de consumo, um dos mais relevantes deveres impostos ao prestador de serviços é o dever de informação adequada e clara ao consumidor (CDC, art. 6º, III). Considerando a vulnerabilidade agravada5 do paciente diante da enfermidade que o acomete, manifestam-se também sentimentos de impaciência e ansiedade intensificados pela grande quantidade de informações inadequadas ou equivocadas compartilhadas na internet. A ausência de conhecimento técnico e o excesso de divulgação de informações imprecisas podem ocasionar ao paciente um entendimento desacertado sobre seu real estado clínico. Nesse contexto, cabe ao profissional a adoção de medidas que tornem possível a concretização efetiva do dever de informar, de modo que estejam claros os riscos naturais do procedimento e, adicionalmente, os riscos tecnológicos inerentes ao uso da telessaúde.6 O direito de ser ouvido exsurge com força nesse contexto7 e o emprego de técnicas telemáticas, se igualmente adequada ao caso concreto, deve ser comunicada, juntamente com seus riscos, custos e eventuais benefícios para o paciente. A informação é uma das técnicas de enfrentamento do desequilíbrio de conhecimento entre os contratantes, constituindo uma manifestação autônoma da obrigação de segurança8. A violação do direito à informação adequada e clara retira do consumidor a possibilidade de autodeterminação na sua decisão e consentimento. Com isso, se houver a exposição do paciente a um risco conhecido, mas do qual ele não foi previamente informado, tal omissão pode caracterizar um defeito do serviço.9 Isso porque o art. 14 do CDC expressamente atribui responsabilidade ao fornecedor de serviços "por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos." Assim, para prevenir litígios, é necessária uma especial atenção ao conteúdo dos termos de consentimento informado, para que descrevam, além de riscos inerentes ao procedimento ou tratamento ministrado, possíveis riscos resultantes do uso de ferramentas tecnológicas, de acordo com o caso concreto. As informações prestadas pelo fornecedor por qualquer meio, além de integrar o contrato (CDC, art. 30), geram uma legítima expectativa no consumidor que deverá ser atendida. Nesse cenário, propiciar uma relação, ainda que por intermédio de meios digitais, que seja acolhedora e transmita confiança ao paciente para estabelecer um diálogo aberto e franco, ainda é o melhor método para mitigar os riscos de litígios entre médicos e pacientes. _________ 1 DOTTI, René; BERGSTEIN, Lais. O direito de o paciente ser ouvido: a responsabilidade civil e criminal do médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 111,  p. 75-97, Maio/Jun., 2017. 2 BRASIL. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022, altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional, e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; e revoga a Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020. 3 RIVABEM, Fernanda Schaefer. Telemática em saúde e sigilo profissional: a busca pelo equilíbrio entre privacidade e interesse social. Tese (Doutorado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. 241f. 4 ALMATHAMI, H. K. Y., WIN, K. T., & VLAHU-GJORGIEVSKA, E. (2020). Barriers and Facilitators That Influence Telemedicine-Based, Real-Time, Online Consultation at Patients' Homes: Systematic Literature Review. Journal of medical Internet research, 22(2), e16407. 5 Expressão inicialmente adotada por Bruno Miragem (Curso de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016), para referir-se aos consumidores hipervulneráveis, que foi empregada na atualização do Código de Defesa do Consumidor pela Lei 14.181/2021. O art. 54-C, IV, do CDC confere uma proteção mais acentuada ao "consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada". Sobre o tema, veja: Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores. 6 Sobre o tema, veja: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. 2. ed. Indaiatuba/SP: Foco. 2024. Também: LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. As transformações da relação médico-paciente em razão da telemedicina. Revista dos Tribunais, v. 1033, p. 197-216, Nov. 2021, p. 197-216. 7 DOTTI, René; BERGSTEIN, Lais. O direito de o paciente ser ouvido: a responsabilidade civil e criminal do médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 111,  p. 75-97, Maio/Jun., 2017. 8 Sobre o direito e o dever à informação, veja: KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019. A autora diferencia a falha da informação sobre uso (vício de informação) da falha de informação sobre riscos (defeito de informação). p. 179-208. 9 Cavalieri Filho destaca que "embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos inerentes da atividade que exercem, podem eventualmente responder se deixarem de informar aos pacientes as consequências possíveis do tratamento a que serão submetidos. Só o consentimento informado pode afastar a responsabilidade médica pelos riscos inerentes à sua atividade. O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar caberá sempre ao médico ou hospital." (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 393.
A história do Cavalo de Troia e a questão dos neurodireitos em implantes cerebrais têm uma ligação fascinante que merece ser explorada mais profundamente, sobretudo à luz dos atuais avanços e promessas tecnológicas da IA aliada à neurociência, bem como das recentes notícias sobre eventos adversos ocorridos e potenciais riscos neste contexto. Na antiga cidade de Troia, um presente enigmático foi deixado às suas portas: Um enorme cavalo de madeira, oferecido pelos gregos como símbolo de rendição e paz. Os troianos, acreditando que era um presente divino, trouxeram o cavalo para dentro de suas muralhas, apenas para descobrir tarde demais que guerreiros estavam escondidos dentro dele, prontos para abrir os portões e permitir a invasão. Uma citação clássica que menciona o Cavalo de Troia é de Virgílio, o poeta romano, em sua obra 'Eneida': "Timeo Danaos et dona ferentes" (em tradução livre: "Temo os gregos, mesmo quando trazem presentes"). Esta frase é dita por Laocoonte, um sacerdote troiano, alertando sobre os gregos e seu presente enganoso, o Cavalo de Troia. A narrativa lendária, que faz parte da mitologia grega, é também mencionada na obra 'Odisseia' de Homero. Esses textos clássicos descrevem a engenhosidade dos gregos e a tragédia que se abateu sobre Troia, fornecendo uma rica narrativa que tem sido reinterpretada ao longo dos séculos em várias formas de arte e literatura. Contemporaneamente, há referência ao Cavalo de Troia em um cenário que envolve tecnologias computacionais, de autoria atribuída à Ken Thompson, um dos pioneiros da computação e criador da linguagem de programação B e do sistema operacional Unix. Em seu discurso de aceitação do Prêmio Turing em 1984, intitulado Reflections on Trusting Trust, ele afirmou: "nenhuma quantidade de verificação de fonte ou escrutínio irá proteger você de usar um código mal-intencionado. (...) Eu tenho pensado no instalador como uma espécie de Cavalo de Troia. (...) você não pode confiar em um código que você não criou inteiramente." i Thompson alertou sobre os riscos de confiar em softwares desenvolvidos por terceiros e levantou a possibilidade de que até mesmo os desenvolvedores dessas tecnologias podem ser pressionados por suas empresas a incluir portas traseiras (backdoors) ocultas no software. Em outras palavras, mesmo que o desenvolvedor não tenha previamente a intenção, ele acaba sendo compelido a incluir essas vulnerabilidades devido a exigências corporativas. Este discurso destaca a importância de uma reflexão crítica sobre o desenvolvimento tecnológico. Analogamente, na era digital da medicina, recebemos um presente tecnológico: Sistemas de IA. Assim como o Cavalo de Troia, a IA chega ao setor de saúde prometendo inovação, oferecendo cuidados mais eficientes, com diagnósticos antecipados e mais precisos, além de tratamentos personalizados revolucionários. Médicos e pacientes, fascinados pelas possibilidades, aceitam determinada tecnologia confiando que ela trará apenas benefícios. Contudo, dentro dessa maravilha tecnológica, podem estar ocultos desafios e riscos, bem como o verdadeiro objetivo por trás do seu desenvolvimento. Usos mal intencionados das tecnologias emergem como guerreiros escondidos que precisamos observar atentamente. No campo das decisões clínicas apoiadas em IA, há o risco significativo de os algoritmos não serem devidamente validados, resultando em incorretos diagnósticos e propostas de tratamento. Além disso, a IA pode perpetuar vieses existentes nos dados, resultando em disparidades de tratamento entre diferentes grupos de pacientes. Destaca-se, ainda, o risco de dependência excessiva na tecnologia, que pode levar à desvalorização do julgamento clínico humano, comprometendo a qualidade do atendimento ao paciente.ii Stephen Hawking fez uma importante declaração em entrevista ao jornal BBC News em dezembro de 2014, discutindo as implicações do desenvolvimento da IA e expressando suas preocupações sobre o potencial de alcançarmos a 'superinteligência artificial' - e isso representar um risco existencial para a humanidade: "O desenvolvimento da inteligência artificial poderia significar o fim da raça humana. (...) ela [IA] decolará sozinha e se redesenhará em um ritmo cada vez maior. Os humanos, que são limitados pela lenta evolução biológica, não poderiam competir e seriam suplantados." iii De modo similar, tecnologias neurológicas baseadas em IA (Brain-Computer Interface - BCI), que prometem conectar nossos cérebros diretamente a computadores ou a outro dispositivo fora do corpo humano, levantam preocupações significativas sobre invasão de privacidade e controle mental. Se não formos cuidadosos, o que parece ser uma dádiva pode se transformar em uma enorme ameaça. Recentemente, Elon Musk anunciou a implantação de um chip cerebral em uma pessoa, prometendo revolucionar a interface entre o cérebro e a tecnologia. O objetivo anunciado para neurotecnologias, como a mencionada, abrange diversos benefícios potenciais: Reabilitação de paralisias limitantes, danos cerebrais, distúrbios neurológicos e mentais, com comprometimento do sistema motor e/ou linguístico: As neurotecnologias ajudariam a restaurar a função motora em pessoas que sofreram lesões na coluna vertebral ou tiveram acidentes vasculares cerebrais. Esses implantes transmitiriam sinais do cérebro diretamente para dispositivos que auxiliam no movimento, permitindo aos indivíduos paralisados recuperarem a capacidade de andar ou usar as mãos. Além disso, poderiam ajudar na recuperação da fala em pacientes com distúrbios neurológicos que afetam a comunicação.iv Tratamento da dor e da epilepsia: Os implantes cerebrais seriam usados para controlar crises epilépticas em pacientes que não respondem a medicamentos tradicionais, monitorando e modulando a atividade elétrica no cérebro.v Além disso, funcionariam para o tratamento de dores crônicas, bloqueando os sinais de dor antes que cheguem ao cérebro.vi A capacidade de ajustar e otimizar a atividade cerebral levaria também a melhorias cognitivas, potencialmente ajudando em condições como Alzheimer e outras formas de demência. Restabelecimento da audição e visão: As neurotecnologias ofereceriam soluções inovadoras para pessoas com deficiências sensoriais. No caso da audição, implantes cocleares seriam conectados diretamente ao cérebro, melhorando a capacidade auditiva em pessoas surdas ou com perda auditiva severa. Para a visão, chips implantados na retina ou diretamente no córtex visual auxiliariam a restaurar a visão parcial ou completamente, em indivíduos com deficiências visuais, permitindo-lhes perceber luzes, formas e até mesmo cores.vii Além dos benefícios supracitados, estudos desenvolvidos nas últimas décadas revelam o potencial dos neurodispositivos expandirem as capacidades humanas, proporcionando novas formas de interação com aparelhos eletrônicos e possivelmente melhorando a qualidade de vida de muitas pessoas. Esse avanço na integração entre neurociência e tecnologia abre portas para inovações significativas, transformando não apenas a medicina, mas também a forma como nos comunicamos e nos divertimos. A aplicação de neurotecnologias pode revolucionar, inclusive, a indústria do entretenimento, oferecendo experiências imersivas e personalizadas em jogos, filmes e outras formas de mídia. Recentemente, noticiou-se o caso de Noland Arbaugh, atualmente com 30 anos, que é tetraplégico e perdeu o movimento abaixo do pescoço após um acidente, inscrevendo-se para participar em 2023 dos primeiros testes em humanos da Neuralink, que desenvolve implantes cerebrais. O paciente afirma que resolveu participar do experimento porque sente que Musk impulsiona o progresso dessa tecnologia e "tudo que ele toca se transforma em ouro". viii Neurotecnologias, como a desenvolvida pela startup supracitada, geralmente utilizam algoritmos de IA em várias etapas do seu funcionamento, a exemplo do processamento de sinais. Isto é, a IA pode ajudar a interpretar os sinais neurais captados pelos eletrodos implantados no cérebro. Esses sinais são extremamente complexos e variam de pessoa para pessoa, razão pela qual a IA pode aprender a decodificar os sinais para entender as intenções e comandos do usuário. Observe-se, portanto, que os algoritmos de IA podem ser utilizados para personalizar o funcionamento do dispositivo para cada indivíduo, ajustando-se automaticamente às mudanças nos padrões de sinal ao longo do tempo. No caso de Arbaugh, que se tornou a primeira pessoa a participar do ensaio clínico em humanos, testando o dispositivo da Neuralink, o seu progresso inicial foi recebido com bastante entusiasmo, sendo possível mover o cursor do mouse por meio de programas de computador traduzindo os disparos dos neurônios em seu cérebro. A ideia proposta foi a de que o cérebro formasse um tecido cicatricial ao redor dos fios na base do cérebro para segurá-lo. A tecnologia neural descrita envolve a utilização de interfaces cérebro-computador, permitindo a comunicação direta entre o cérebro da pessoa e um dispositivo externo, como um braço robótico ou computador, tal como no caso narrado. No entanto, passados quatro meses da implantação do chip, em maio de 2024, a startup de Musk enfrentou severas críticas após 85% dos fios dos implantes se soltarem do cérebro do paciente. A Neuralink ainda enfrenta obstáculos no desenvolvimento de um dispositivo durável. A falha já havia sido revelada no início de maio, mas foi detalhada pela startup no final do referido mês em reportagem no jornal The New York Times.ix Ademais, noticiou-se que foi corrigido o sistema do chip para o paciente em questão e a FDA - Food and Drug Administration autorizou a realização do teste da tecnologia neurológica com um segundo paciente.x Tais questões destacam a necessidade urgente de regulamentos de segurança e proteção dos direitos dos indivíduos em relação à sua atividade neural. Ademais, em qualquer contexto, é essencial avaliar criticamente questões relacionadas aos deveres de informação e vigilância dos profissionais utilizadores da tecnologia, ressignificados frente ao novo arcabouço tecnológico. Como qualquer implante médico, há o risco de rejeição pelo corpo ou infecção no local do implante, o que pode levar a complicações sérias de saúde. A longo prazo, os efeitos completos de implantes cerebrais ainda são desconhecidos. Pode haver riscos de efeitos adversos que não foram previstos ou detectados nos estudos científicos iniciais. Frise-se, ainda, que os dados neurais do paciente - memórias, pensamentos e emoções - formam a identidade humana e restam expostos pela tecnologia, o que revela a necessidade de proteção, dada sua natureza personalíssima. Por isso, esses dispositivos levantam várias questões relacionadas à proteção dos direitos das pessoas em relação ao seu cérebro e suas atividades neurais, os denominados neurodireitos. Vale consignar que, para alguns autores, os neurodireitos são uma nova categoria de direitos humanos que surgem em resposta aos avanços em neurociência e tecnologia, especialmente relacionados ao acesso e à manipulação do cérebro humano. Visam proteger a integridade mental e cognitiva dos indivíduos frente a essas inovações tecnológicas. Os principais neurodireitos incluem:xi Direito à privacidade mental: Proteger pessoas contra a leitura de pensamentos ou acesso não autorizado às suas atividades cerebrais; Direito à identidade pessoal: Assegurar que as intervenções neurotecnológicas não alterem a identidade pessoal de alguém sem consentimento; Direito ao livre arbítrio: Garantir que as tecnologias não interfiram na capacidade de tomar decisões de forma autônoma; Direito ao acesso equitativo às tecnologias de melhoria neurocognitiva: Promover a distribuição justa e acessível de tecnologias que melhoram as capacidades cognitivas; Direito à proteção contra viés e discriminação neurotecnológica: Evitar que as tecnologias neurocognitivas sejam usadas para discriminar indivíduos com base em suas capacidades mentais ou neuroperfis. O respeito aos neurodireitos é fundamental para assegurar que o progresso tecnológico não comprometa a dignidade, a autonomia e a privacidade dos indivíduos. Ademais, é essencial relembrarmos da narrativa sobre o Cavalo de Troia e, assim, ponderar se a promessa fascinante de uma neurotecnologia não vem acompanhada do risco oculto de atitudes ilícitas - como o desvirtuamento de finalidade do seu uso para exploração lucrativaxii - por parte dos desenvolvedores do dispositivo, especialmente levando-se em consideração os problemas regulatórios envolvidos, conforme ponderam Fernanda Schaefer e Gisele Machado Figueiredo:xiii "No caso específico das neurotecnologias ora analisadas, é possível inferir que os riscos ou o potencial de dano delas decorrentes, ainda não foram corretamente compreendidos pela sociedade e pelos entes reguladores, o que tem levado a uma classificação errônea, permitindo a sua venda sem restrições, quando eventualmente muitos deles deveriam ser classificados como dispositivos médicos e regulados pela agência sanitária. (...) De forma distinta, os produtos que não têm essencialmente finalidade médica, ainda que destinados ao uso em seres humanos, não se submetem à legislação sanitária, sendo isentos de registro prévio na Anvisa. Inseridos nessa condição encontram-se os equipamentos dotados de neurotecnologias, como EEG - eletroencefalograma, cujo intuito declarado é recreacional, a promoção da saúde e do bem-estar. Essa nova conjuntura merece maior atenção do legislador, uma vez que tais dispositivos "não médicos" acessam indiscriminadamente os dados neurais de seus usuários e os utilizam de forma ampla, desviando-se do propósito para o qual foram contratados. (...) identifica-se uma outra vulnerabilidade, relacionada ao acesso aos dados neurais de um indivíduo, com consequências ainda imprevisíveis. (...) Em um estudo feito pela Fundação Kamanau, verificou-se que as companhias neurotecnológicas apropriam-se dos dados neurais obtidos e que grande parte dos usuários autoriza a cessão dos dados a terceiros. (...) Resta evidente que dados neurais de pessoas naturais têm potencial para fomentar um banco de dados específico, promovendo o aprimoramento de um algoritmo de inteligência artificial e gerando valor ao dispositivo digital. Verifica-se, portanto, um alto risco de desvirtuamento de finalidade do seu uso, que pode repercutir em exploração lucrativa. (...) A atitude ilícita, no caso, decorre tanto do uso dos dados neurais para fins diversos do que pressupõe o seu titular, bem como da intenção em obter lucro com sua exploração sem o consentimento devido". Ao aceitarmos o advento da IA e neurotecnologias no setor da saúde, devemos fazê-lo com sabedoria e precaução, garantindo que estamos preparados para enfrentar qualquer desafio que possa estar oculto em avançadas tecnologias. É crucial que regulamentações éticas e legais sejam estabelecidas e que haja um debate público e político sobre aprovação e fiscalização, além dos limites e responsabilidades no uso de todo o novo arcabouço tecnológico. Só assim poderemos aproveitar os benefícios revolucionários sem cair nas armadilhas que podem estar à espreita. Yuval Noah Harari, um dos mais proeminentes pensadores contemporâneos, oferece reflexões que se alinham bem com essas preocupações. Sustenta a possibilidade de sermos uma das últimas gerações de Homo Sapiens, pois inovações tecnológicas levarão à evolução para super-humanos.xiv Explica que a "Inteligência Artificial e a Biotecnologia estão dando à humanidade o poder de reformulação e reengenharia da vida".xv Por consequência, pode-se mudar a natureza fundamental do que significa ser humano. Isto porque, nas próximas gerações, aprenderemos a remoldar corpos, cérebros e mentes. Em paralelo, Harari alerta que, à medida que a tecnologia avança, será cada vez mais fácil para os governos e corporações monitorarem cada um de nós o tempo todo: "Neste exato momento os algoritmos estão observando você. Estão observando aonde você vai, o que compra, com quem se encontra. Logo vão monitorar todos os seus passos, todas as suas respirações, todas as batidas de seu coração. Estão se baseando em Big Data e no aprendizado de máquina para conhecer você cada vez melhor. E, assim que esses algoritmos o conhecerem melhor do que você se conhece, serão capazes de controlar e manipular você, e não haverá muito que fazer. Você estará vivendo na Matrix, ou no Show de Truman. Afinal, é uma simples questão empírica: se os algoritmos realmente compreenderem melhor que você o que está acontecendo dentro de você, a autoridade passará para eles".xvi Abraçar a inovação é um passo essencial para o progresso, mas fazê-lo de maneira crítica e com sabedoria é vital para garantir que essa jornada tecnológica enriqueça nossas vidas sem sacrificar direitos e liberdades fundamentais. Precisamos navegar cuidadosamente entre as promessas do futuro e as lições do passado, garantindo que cada avanço brilhe como uma estrela guia, iluminando o caminho para um mundo melhor, sem que sombras de descuido obscureçam nossos direitos e valores mais preciosos. Assim como os troianos, que ao aceitarem o Cavalo de Troia permitiram a entrada de um inimigo disfarçado em seu refúgio, devemos ter cautela e discernimento ao integrar novas tecnologias no setor da Saúde, assegurando que, por trás de seus benefícios aparentes, não se escondam perigos que possam comprometer a integridade e a segurança de todos, a exemplo dos riscos de violação aos neurodireitos apresentados nestas breves reflexões. ___________ i THOMPSON, Ken. Communications of the ACM, v. 27, n.8, p. 761-763, ago. 1984. Disponível aqui. Acesso em 25 maio 2024. ii Para aprofundamento das reflexões sobre aspectos ético-jurídicos de inovações tecnológicas, tais como sistemas decisionais automatizados (IA), remeta-se a NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. iii CELLAN-JONES, Rory. Stephen Hawking warns artificial intelligence could end mankind. BBC News, 2 dez. 2014. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. iv DRAAISMA, Laurijn R., WESSEL, Maximilian J., FRIEDHELM, C. Hummel.  Neurotechnologies as tools for cognitive rehabilitation in stroke patients, Expert Review Of Neurotherapeutics, v. 20, n. 12, p. 1249-1261, dez. 2020. (Este artigo aborda os avanços recentes nas neurotecnologias voltadas para a reabilitação de paralisias e danos cerebrais, destacando o potencial para a reabilitação cognitiva em pacientes que sofreram sequelas de AVC). v COOK, Mark J. Prediction of seizure likelihood with a long-term, implanted seizure advisory system in patients with drug-resistant epilepsy: a first-in-man study. The Lancet Neurology, v. 12, n. 6, p. 563-571, jun. 2013. (Este estudo aborda o uso de implantes cerebrais para monitorar e controlar crises epilépticas em pacientes que não respondem a medicamentos tradicionais). vi TRACEY, Irene; MANTYH, Patrick W. The cerebral signature for pain perception and its modulation. Neuron, v. 55, n. 3, p. 377-391, ago. 2007. (Este artigo explora como as neurotecnologias podem modular a percepção da dor no cérebro, oferecendo novas abordagens para o tratamento de dores crônicas. A modulação da atividade cerebral é destacada como uma estratégia promissora para bloquear sinais de dor antes que eles atinjam a consciência.) vii ZRENNER, Eberhart. Fighting Blindness with Microelectronics. Science Translational Medicine, v. 5, n. 210, p.210-216, nov. 2013. (Este estudo apresenta o potencial de implantes de retina e outros dispositivos eletrônicos destinados a restaurar a visão em indivíduos com deficiência visual. Discute como chips implantados podem ajudar os pacientes a recuperar a percepção de luzes, formas e cores, além de abordar o potencial dos implantes cocleares para melhorar a audição em pessoas surdas.) viii JEWETT, Christina. Despite Setback, Neuralink's First Brain-Implant Patient Stays Upbeat. The New York Times, 22 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. ix JEWETT, Christina. Despite Setback, Neuralink's First Brain-Implant Patient Stays Upbeat. The New York Times, 22 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. x WINKLER, Rolfe. Elon Musk's Neuralink Gets FDA Green Light for Second Patient, as First Describes His Emotional Journey. Wall Street Journal, 20 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. xi IENCA, Marcello; ADORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, n.13, v. 5, p. 1-27, abr. 2017. xii A respeito do enriquecimento ilícito em ambiente digital, que pode assumir diversas formas, como a obtenção de dados pessoais e a exploração de ativos intangíveis, remeta-se a FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Enriquecimento sem causa e sua aplicação aos bens digitais. Indaiatuba: Foco, 2024. xiii FIGUEIREDO, Gisele Machado; SCHAEFER, Fernanda. Dados neurais: explorando os desafios da regulação dos neurodispositivos de saúde. [No Prelo] xiv HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. xv  HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. xvi HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é um dos gestos mais altruístas conhecidos, mas também o que enfrenta uma série de resistências motivadas por diferentes razões, que acabaram refletindo na lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Em 2001 o legislador alterou a norma para determinar que nos casos de retirada post mortem (após a morte) de tecidos, órgãos e partes do corpo humano não bastaria a declaração prévia do morto, seria também necessária a consulta à família que pode simplesmente desconsiderar a vontade declarada pelo falecido e negar a remoção. Trata-se de intervenção desarrazoada na autodeterminação sobre o corpo. Desde então, muito se avançou nas técnicas de transplantes e nas discussões sobre as doações. Parte significativa da população compreende a importância do ato e se declara doadora, embora não tenha por hábito registrar essa vontade. Poucas pessoas sabem, mas a declaração de doador tem forma livre. O que significa que o registro  pode ser feito por diversos meios: diretivas antecipadas de vontade; escritura pública; instrumento particular; gravação em vídeo; declaração à equipe médica e até por manifestações em redes sociais. Até pouco tempo, podia-se, inclusive, declarar a opção pela doação em documentos como a Carteira de Habilitação, opção que infelizmente já não existe mais. Paradoxalmente, na mesma medida que a aceitação do ato aumenta, crescem as propostas de burocratização das declarações. Em abril passado comemoramos o lançamento da Campanha Um Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém. Doe Órgãos, idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Colégio Notarial do Brasil e Ministério da Saúde. A iniciativa marcou a regulamentação do Sistema de Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos1 (AEDO - Provimento n. 164/2024, CNJ), que prevê a autorização eletrônica gratuita por meio da Central Nacional de Doadores de Órgãos. Segundo a campanha, para ser doador bastaria formalizar a vontade por meio de um formulário digital. Mas não é bem assim... A iniciativa que deveria facilitar o acesso à formalização da declaração, na verdade a dificulta: 1- porque adota o sistema e-notariado (Certificado Digital Notarizado ou Certificado ICP-Brasil), sistema que para liberar a assinatura digital exige que a pessoa compareça a um Cartório para coletar sua ficha de assinatura (se já não a tem); 2- após conseguir gerar a assinatura pelo e-notariado a pessoa ainda tem que agendar um horário com um Cartório para gravar a declaração em videoconferência, confirmando ser doadora de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Só após e com a assinatura digital de um notário, a AEDO ficaria disponível para consulta no Sistema Nacional de Transplantes. Não foram poucos os relatos recebidos. Os próprios autores que este texto subscrevem tiveram percepções distintas do sistema. Enquanto um facilmente conseguiu produzir o documento, por já ter assinatura (em cartão físico) em cartório, o outro desistiu do processo por todas as dificuldades antes narradas, optando por manter sua declaração (já existente) em diretivas antecipadas de vontade. Em resumo, o sistema não é intuitivo, exige conhecimentos informáticos que boa parte da população não tem; é restritivo; dificulta o acesso para pessoas que residem distantes de Cartórios; dificulta a finalização da declaração para pessoas que têm dificuldade com equipamentos eletrônicos; impede a declaração por quem não tem meios eletrônicos. Trata-se, portanto, de sistema que não voltou seus olhos à facilitação do acesso à declaração de doador, mas que a burocratiza em prol de uma desnecessária suposta segurança jurídica que, no final das contas, sequer servirá para dispensar a consulta à família para a remoção dos órgãos, de acordo com a legislação atual. Infelizmente, da maneira proposta, é um sistema que tende ao desuso e que não alcançará as finalidades almejadas. Por fim, apenas para registrar opções viáveis, se considerada necessária a assinatura digital, o banco de dados poderia usar a assinatura eletrônica fornecida pelo sistema gov.br, mais acessível (embora também possa restringir o acesso em razão das dificuldades de uso de sistemas eletrônicos e inexistência de tecnologia assistiva), tão segura quanto a utilizada pelo e-notariado, mas que não exige nenhum tipo deslocamento presencial. A gravação em vídeo poderia ser uma ação facultativa do declarante e não obrigatória. Se a família pretende questionar capacidade no momento da confecção da declaração, não é a existência de um vídeo que evitará a discussão, daí a importância de também de se pensar na (necessária) mudança da legislação, para retirar o protagonismo da família em uma decisão tão íntima, que por certo deve (ou deveria) ser unicamente do indivíduo em consulta à sua própria consciência. Em temas que apresentam dilemas complexos, burocratizar a manifestação de vontade é deslocar o foco da discussão para noções idealizadas de suposta segurança jurídica. Dificulta-se a declaração, em vez de se promover ampla adesão e a realização da autonomia decisória. __________ 1 Disponível aqui.
1. A colocação da questão para seu perfeito entendimento Iniciando a Parte III e final dos nossos estudos em Direito Penal Médico, tem vez aqui a seguinte questão: o médico se depara com o atendimento de uma paciente que precisa de cuidados com sua saúde e, em meio à consulta, o profissional passa a suspeitar que ela tentou praticar o aborto; por hipótese, imagine-se que o médico, ante essa suspeita de abortamento promovido pela paciente, comunica a autoridade policial acerca dos fatos. A pergunta que se põe é a seguinte: havia justa causa para que o médico promovesse essa comunicação da suspeita de aborto para a autoridade policial? Em outras palavras, a quebra do sigilo médico profissional nessa situação foi justificada pela suspeita da prática do aborto? Ou não, mesmo diante dessa suspeita abortiva por parte da paciente, o Médico ainda assim estaria obrigado a guardar o sigilo profissional? Importante frisar que a hipótese trata da suspeita de que a própria paciente realizou a tentativa de aborto por si mesma, e não que ela tenha sido vítima da prática de manobras abortivas pelas mãos de terceira pessoa - caso em que não se tem a menor dúvida de que, sim, o médico deve imediatamente acionar os órgãos diretivos da unidade de saúde para que o fato seja levado à autoridade policial. Mas, voltando à hipótese ora em análise: e se a própria paciente é suspeita da realização da manobra de abortamento, o médico teria ou não justa causa para quebrar o sigilo profissional e comunicar o fato à autoridade policial para os fins legais? Esta é a questão que aportou no Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos, em cada uma de suas duas Turmas de Direito Criminal da 3.ª Seção de Direito Penal (5.ª e 6.ª Turmas Julgadoras), formando-se duas posições absolutamente antagônicas dentro da Corte até hoje. Nesse cenário, como já visto, tentaremos responder às perguntas acima, ingressando-se agora na Parte III final da série de artigos tratando do Direito Penal Médico, recordando que o conteúdo abaixo foi extraído do capítulo "CRIMES MÉDICOS" do livro recém-lançado "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. 2. A disciplina normativa do sigilo médico Vamos aos artigos da legislação brasileira que disciplinam a questão, bem como ao disposto no Código de Ética Médica a teor do ponto controvertido. O Sigilo Médico no Código Penal é tratado sob a rubrica da "Violação do Segredo Profissional": Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. O Código de Processo Penal traz a seguinte hipótese de impedimento legal para que o profissional preste seu testemunho em juízo: Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. Já no Código de Ética Médica, o Sigilo Médico vem tratado no Capítulo IX, sob o título "Sigilo Profissional" - É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Pois bem, sendo essa a regulamentação da questão na lei e no CEM, vejamos como a questão se comporta no Poder Judiciário brasileiro, a seguir. 3. A questão no Superior Tribunal de Justiça 3.1 Decisão da 5ª Turma do ano de 2019 - não há quebra do sigilo médico O STJ, por orientação de sua 5.ª Turma em 2019, decidiu no sentido de que a suspeita de aborto nesse caso é justa causa suficiente para autorizar a quebra do sigilo médico: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. INADEQUAÇÃO. ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE. TRANCAMENTO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 124 DO CP. CONTROLE DIFUSO. MEIO INADEQUADO. TEMA OBJETO DE CONTROLE CONCENTRADO PERANTE O STF NA APDF 442/DF. ILICITUDE DAS PROVAS. QUEBRA DO DEVER DE SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO. NÃO ACOLHIMENTO DAS TESES DEFENSIVAS. INOCORRÊNCIA DE ILEGALIDADE. WRIT NÃO CONHECIDO. [...] 5. Sabe-se que o sigilo profissional é norma cogente e que, em verdade, impõe o dever legal de que certas pessoas, em razão de sua qualidade e de seu ofício, não prestem depoimento e/ou declarações, em nome de interesses maiores, também preservados pelo ordenamento jurídico, como o caso do direito à intimidade (art. 154 do Código Penal e art. 207 do Código de Processo Penal). A vedação, porém, não é absoluta, eis que não há que se conceber o sigilo profissional de prática criminosa. 6. A exemplo do sigilo profissional do advogado, já asseverou esta Quinta Turma que "o ordenamento jurídico tutela o sigilo profissional do advogado, que, como detentor de função essencial à Justiça, goza de prerrogativa para o adequado exercício profissional. Entretanto, referida prerrogativa não pode servir de esteio para impunidade de condutas ilícitas"(RHC 22.200/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJe 5/4/2010, grifou-se). 7. Na hipótese, a princípio, a conduta do médico em informar à autoridade policial acerca da prática de fato, que até o presente momento configura crime capitulado nos delitos contra a vida, não violou o sigilo profissional, pois amparado em causa excepcional de justa causa, motivo pela qual não se vislumbra, de pronto, ilicitude das provas presentes nos autos, como sustenta a defesa. 8. A situação posta no RE 91.218-5/SP, citado pela defesa, não se aplica ao caso em exame, na medida em que a controvérsia discutida nestes autos cinge-se na declaração ou não de ilicitude de todos os elementos de provas produzidos, oriundos da informação repassada pelo médico à autoridade policial acerca do cometimento em tese de um delito, que perpassa pelo óbito premeditado de um feto de 24 semanas, nascido com vida. 9. Writ não conhecido.2 (grifei) Essa decisão do STJ, reconhecendo a justa causa na quebra do sigilo médico nessa hipótese, levou a que alguns Tribunais Estaduais se conduzissem da mesma maneira, como nos casos de decisões dos Tribunais de Justiça de Santa Catarina3 e de São Paulo4, quando tudo caminhava nesse sentido. 3.2 Decisões da 6ª Turma do ano de 2023 - há quebra de sigilo médico Ocorre que, em duas reiteradas e recentes decisões do mesmo STJ, agora por sua 6.ª Turma em 2023, a questão ganhou novos contornos na jurisprudência brasileira, editando-se orientação em sentido oposto ao anteriormente decidido pela 5.ª Turma, dessa vez declarando-se que não há justa causa para a quebra do sigilo médico profissional no caso da suspeita de aborto por parte da paciente, sendo vedado ao médico a comunicação à autoridade policial. Quanto à primeira decisão nesse sentido no mês de abril de 2023, segue apenas a notícia oficial extraída do site do STJ, uma vez que o processo não tem seu número e informações divulgadas pelo segredo de justiça:                SEXTA TURMA TRANCA AÇÃO PENAL POR ABORTO AO VER QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL ENTRE MÉDICO E PACIENTE. A constatação de quebra do sigilo profissional entre médico e paciente levou a Sexta Turma do STJ a trancar, nesta terça-feira (14), uma ação pena que apurava o crime de aborto provocado pela própria gestante (artigo 124 do Código Penal - CP). Além de ter acionado a polícia por suspeitar da prática do delito, o médico foi arrolado como testemunha no processo - situações que, para o colegiado, violaram o artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) e geraram nulidade das provas reunidas nos autos. Ao trancar a ação penal, a Sexta Turma determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas que entenderem pertinentes. De acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar. Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação pena e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP. CPP proíbe médico de revelar segredo profissional obtido durante atendimento. O relator lembrou que, segundo o artigo 207 do CPP, são proibidas de depor as pessoas que, em razão de suas atividades profissionais, devam guardar segredo - salvo se, autorizadas pela parte interessada, queiram dar o seu testemunho.5 Já com relação à segunda decisão da mesma 6ª T. do STJ, que reiterou o mesmo posicionamento pela ausência de justa causa para a quebra do sigilo médico nessa hipótese, segue a íntegra da ementa do HC julgado no mês de outubro de 2023 nesse sentido: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 124 DO CÓDIGO PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO INCIDENTAL DA NÃO RECEPÇÃO DO INDIGITADO PRECEITO DE REGÊNCIA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DA VIA ELEITA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. NULIDADE. ILICITUDE DA PROVA ANTE A SUPOSTA QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL PELA MÉDICA QUE REALIZOU O ATENDIMENTO DA PACIENTE. OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa exige comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da ocorrência de causa de extinção da punibilidade, da ausência de lastro probatório mínimo de autoria ou de materialidade, o que se verifica na presente hipótese. 2. Inicialmente, quanto ao pedido defensivo de reconhecimento, incidenter tantum, no âmbito deste writ, da não recepção do art. 124 do Código Penal, esta Corte já teve a oportunidade, em diversas ocasiões, de sedimentar o entendimento de que se revela "[...] inviável a apreciação de matéria por esse Superior Tribunal de Justiça, em sede de controle difuso, diante de afetação do tema em sede de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal" (HC n. 514.617/SP, relator Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 10/9/2019, DJe 16/9/2019). 3. Como cediço, esta Sexta Turma, recentemente, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n. 783927/MG, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, reconheceu a ilicitude da prova e trancou ação penal também relativa a crime de autoaborto, supostamente cometido por paciente que se encontrava em situação similar a dos presentes autos, cuja investigação fora deflagrada a partir da provocação das autoridades competentes pelo próprio médico que realizara o atendimento da paciente. 4. Como bem consignado no parecer ministerial, "trata-se, tal garantia, de proteção jurídica ao direito à saúde, porquanto não deve o paciente se sentir tolhido ou ameaçado ao procurar ajuda médica; ao contrário, deve se sentir seguro e acolhido, para que sua saúde seja resguardada, ao contrário do que ocorreria se, por exemplo, as mulheres que optam pela prática do abortamento ilegal e, ato contínuo, enfrentam complicações que colocam em risco sua saúde e sua própria vida, não pudessem procurar socorro junto aos profissionais de saúde com receio de serem presas ou processadas criminalmente". 5. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida, para reconhecer a ilicitude da prova e trancar a ação penal em relação a ora paciente quanto ao crime previsto no art. 124 do CP (HC 448.260/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j. em 3/10/23, DJe de 6/10/23.) 4. A questão no STF: uma decisão muito antiga e uma recente inaplicável ao caso Colhe-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na questão por meio de uma decisão já bastante antiga, do início da década de 1980, que assim trata da matéria: SEGREDO PROFISSIONAL. A OBRIGATORIEDADE DO SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO. A MATÉRIA, PELA SUA DELICADEZA, RECLAMA DIVERSIDADE DE TRATAMENTO DIANTE DAS PARTICULARIDADES DE CADA CASO. A REVELAÇÃO DO SEGREDO MÉDICO EM CASO DE INVESTIGAÇÃO DE POSSÍVEL ABORTAMENTO CRIMINOSO FAZ-SE NECESSÁRIA EM TERMOS, COM RESSALVAS DO INTERESSE DO CLIENTE. Na espécie o hospital pôs a ficha clínica à disposição de perito médico, que "não estará preso ao segredo profissional, devendo, entretanto, guardar sigilo pericial" (art-87 do código de ética médica). Por que se exigir a requisição da ficha clínica? Nas circunstâncias do caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o segredo profissional. Outrossim, a concessão do "writ", anulando o ato da autoridade coatora, não impede o prosseguimento regular da apuração da responsabilidade criminal de quem se achar em culpa. Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência jurisprudencial, e provido. Decisão tomada por maioria de votos. (grifei) Veja-se que a decisão, além de ser antiga, s.m.j., não se posiciona de maneira franca sobre a questão, deixando a ideia de que a revelação "faz-se necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente", o que não permite uma conclusão certeira a meu ver. Há uma decisão mais recente no STF em que a questão também tratava da comunicação da suspeita de aborto, mas a "denunciante" nesse caso foi uma enfermeira. Nesse caso, a paciente, contra quem pesava a suspeita do aborto e consequentemente estava sendo processada criminalmente por isso, impetrou um habeas corpus arguindo a nulidade da prova dos autos em virtude da ilícita quebra do sigilo profissional por parte da enfermeira, HC que acabou sendo denegado por 3x2, mas sem que se adentrasse no âmago da questão sobre o reconhecimento da justa causa ou não para a quebra do sigilo médico nesse caso7. Nesse quadro, o que se tem no STF sobre a questão é o seguinte: 1) esta última decisão, muito embora trate da questão da comunicação sobre a suspeita de aborto da paciente, acabou não tenho o HC julgado no seu mérito e não se tratou de uma conduta de um Médico - portanto, não creio que pode ser usada como paradigma para a emissão de uma orientação segura para as futuras ações dos Médicos; 2) a outra decisão do STF, além de ser muito antiga, não é cabal em seus termos sobre se a situação é ou não considerada como quebra de sigilo médico profissional, também não podendo servir de base segura para uma orientação firme quanto à futura atuação dos Médicos, afastando-os de complicações jurídicas.  5. Nossa orientação final e cabal Há alguns pressupostos que foram contruidos ao longo dessa série de artigos no Direito Penal Médico para que possamos entregar qual a nossa orientação acerca da questão colocada e qual deve ser a postura do Médico ao se deparar com uma suspeita de aborto tentado pela própria paciente - se deve ou não promover a comunicação à autoriade policial da situação. Primeiro que não se está aqui discutindo acerca da criminalização ou não da prática do aborto, o que, como vimos, é objeto de disciplina legal expressa no Código Penal, cuja constitucionalidade encontra-se em pleno julgamento pelo STF, que tem a palavra final. Em outras palavras, o debate aqui cinge-se em definir se o Médico pode ou não comunicar o fato e se isso representa ou não quebra do sigilo médico, com as consequências penais a partir daí. Segundo, como vimos, ao menos segundo meu ponto de vista, as decisões proferidas pelo STF sobre a questão, no início da década de 80 e no ano passado, não são suficientes para a definição cabal da questão, seja porque uma delas é redigida em termos menos assertivos e é muito antiga, seja porque a outra não se refere especificamente ao Médico e não teve julgado o mérito da controversia em si, mas apenas aspectos formais foram considerados. Já a decisão da 5ª Turma do STJ, que não reconheceu quebra do sigilo médico, ainda que acompanhada pelos Tribunais de Santa Catarina e de São Paulo, já é do distante ano de 2019, contando com aproximados 5 anos de prolação, de maneira que o cenário pode ter se modificado naqueles Tribunais nesse longo período, o que é próprio da jurisprudência. De outro lado, o que se tem na 6ª Turma do STJ são duas decisões extremamente recentes e proferidas em dois momentos bem distintos do mesmo ano de 2023, o que conduz à convicção de que o pocionamento de abril certamente foi refletido e sedimentado no julgamento de outubro do ano passado, não só afirmando que houve quebra do sigilo médico por ausência de justa causa, como também foi determinada a instauração de procedimento criminal e ético-profissional contra o Médico. Trata-se essa última da orientação mais assertiva e recente da Justiça brasileira sobre a questão que se tem notícia até aqui e se coaduna com a excepcional doutrina do Mestre Genival Veloso de França, para quem: "Um dos casos mais comuns em nossa atividade é a constatação de prática criminosa de aborto, e, pelo visto, não se pode denunciar a paciente, pois ela está sujeita a procedimento processual"8. Tudo isso considerado e tomando-se em conta que a tarefa de fornecer orientação jurídica deve sempre ser a mais conservadora possível, visando que o seguimento dessa orientação jamais possa conduzir a uma situação de prejuízo ao Profissional de Medicina que aceita e confia no aconselhamento jurídico, minha firme posição, seguindo os passos do art. 73 do Código de Ética Médica, é no sentido de que o Médico não deve promover a comunicação da suspeita de tentativa de abortamento por parte da paciente se esta conduta partiu dela mesma, sob pena de, realizando a comunicação à autoridade policial, estar sujeito a um processo criminal, uma representação ético-profissional e ainda uma ação civil indenizatória por danos materiais e morais, tudo em seu prejuízo profissional e pessoal. É como me posiciono, respeitosamente! __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 514617/SP, Quinta Turma, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Votação Unanime, Julgamento: 10/09/2019. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, RSE: 50346546720208240038, Primeira Câmara Criminal, Relator Desembargador Paulo Roberto Sartorato, Julgamento: 03/03/2022. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo n.º 2188894-33.2017.8.26.0000, 3.ª Câmara de Direito Criminal, Relator Desembargador Airton Vieira, Julgamento: 24/10/2017. 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma tranca ação penal por aborto ao ver quebra de sigilo profissional entre médico e paciente. Brasília, 14.03.2023. Disponível aqui. Acesso em: 10/05/2023. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso extraordinário 91.218 SP, Relator Ministro Djaci Falcão, Julgamento: 10/11/1981. 7 MIGALHAS, Redação. STF mantém ação penal contra mulher acusada de aborto por enfermeira. São Paulo, 14.04.2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 jun. 2023. 8 VELOSO, Genival. Direito Médico. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 161.
1. Introdução aos delitos em espécie Como visto na Parte I, na esfera penal, a mesma conduta médica objeto de uma ação civil indenizatória será agora analisada à vista da legislação penal do país, para a verificação se a ação ou omissão adotada pelo profissional de saúde se enquadra em alguma das hipóteses criminais previstas como delito. Assim, a responsabilização será penal se a conduta médica for prevista como crime na lei penal brasileira, e a sanção será a imposição de uma pena criminal que pode ser desde uma multa até a reclusão do médico que atuou com culpa ou, excepcionalmente, na modalidade dolo eventual, tudo como já visto. Como já dito, não se cogita sobre a prática de um ato criminal na prestação de serviços médicos movido por dolo direto, que é a vontade livre e consciente de realização da ação delituosa com a lesão da vítima ou provocação de sua morte, uma vez que a Medicina tem como base a busca pela promoção/recuperação da saúde e preservação da vida das pessoas. As figuras penais passíveis de cometimento na prática da Medicina são, no mais das vezes, culposas (ausência do dever de cuidado na modalidade negligência, imprudência ou imperícia) e excepcionalmente dolosas, estas na modalidade dolo eventual (assunção do risco de produção do dano), como prevê o Código Penal brasileiro: Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; Crime culposo II - Culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.  Nesse cenário, como já visto, o Médico pode incidir em algum dos crimes abaixo estudados, ingressando-se agora na Parte II da série de artigos tratando do Direito Penal Médico, recordando que o conteúdo abaixo tem como fonte o capítulo "CRIMES MÉDICOS" do livro recém-lançado: "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. 2. Crimes contra a vida e a integridade física                                                                    2.1 Homicídio                                                                                                                         Vamos começar pela mais grave potencialidade dos crimes médicos - o homicídio doloso (com dolo eventual - do caput) e o culposo (§3º), segundo o Código Penal brasileiro: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Homicídio culposo § 3.º - Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos. Como prometido, de início temos dois casos de homicídio na área médica relatados pelo Eminente Desembargador Miguel Kfouri Neto do Tribunal de Justiça do Paraná: HOMICÍDIO COM DOLO EVENTUAL: ERRO MÉDICO. PRONÚNCIA DO ACUSADO MARCOS POR HOMICÍDIO SIMPLES, COM DOLO EVENTUAL (ART. 121, CAPUT, CP), FALSIDADE IDEOLÓGICA (ART. 299, CP) E USO DE DOCUMENTO FALSO (ART. 304, CP). E IMPRONÚNCIA DO CORRÉU MÁRCIO EM RELAÇÃO AO DELITO DE HOMICÍDIO SIMPLES, COM DOLO EVENTUAL (ART. 121, CAPUT, CP). APELAÇÃO AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELA DEFESA DE MARCOS. 1) almejada pronúncia de márcio, formulada pelo promotor de Justiça. Desacolhimento. Inexistência de indícios suficientes de que ele participou do 1.º fato descrito na denúncia (homicídio simples). Manutenção da decisão de impronúncia. 2) pretensão, formulada pela defesa de marcos, de despronúncia, bem como de desclassificação do delito de homicídio simples, com dolo eventual, para a modalidade culposa. Inviabilidade. Indícios suficientes de que o recorrente assumiu o risco de produzir a morte da ofendida. Realização de cirurgia de colocação de prótese de silicone nos seios, sem a presença de médico anestesiologista. Indicativos, ademais, de utilização de excessiva dose de anestésico local (lidocaína), que supostamente contribuiu para a morte da vítima. Hipótese de hipertermia maligna, em princípio, afastada. Indícios, também, de que marcos praticou os delitos conexos de falsidade ideológica (art. 299, CP) e de uso de documento falso (art. 304, CP) indicados na denúncia. Questão a ser dirimida pelo Tribunal do Júri, competente para o julgamento da causa. Recursos desprovidos.2 (grifei) HOMICÍDIO CULPOSO: ERRO MÉDICO. HOMICÍDIO CULPOSO (ART. 121, §§ 3.º E 4.º, CP). CONDENAÇÃO À PENA DE DOIS (2) ANOS DE DETENÇÃO, EM REGIME ABERTO. RECURSO DA DEFESA. 1) Pretensão de absolvição. Alegação de que o acusado estava impossibilitado de prestar atendimento à vítima, por ser o único médico plantonista no pronto-socorro do hospital santa casa de londrina e, ainda, por estar atendendo outros pacientes em estado grave. Desacolhimento. Paciente tabagista, com doença pulmonar obstrutiva crônica, e que, durante o internamento, apresentou esforço respiratório, com rebaixamento do nível de consciência. Comprovação de que o réu deixou de prestar atendimento à ofendida, mesmo tendo sido solicitado atendimento pela enfermeira em três ocasiões distintas ("às 21h30 do dia 22/05/2015, às 00h e às 03h do dia 23/05/2015"). Conduta omissiva que contribuiu para o óbito da paciente, diante da significativa piora de seu estado de saúde. Tese de inexigibilidade de conduta diversa. Rejeição. Comprovação de que os familiares da vítima que a acompanhavam no dia dos fatos somente ficaram exaltados após aguardarem por horas, sem sucesso, que ela recebesse atendimento médico, que deveria ser prestado pelo acusado. Piora do estado de saúde da vítima, que inclusive agonizava por falta de ar, que torna compreensível a apontada conduta dos familiares. Fato, ademais, que decorreu da própria omissão do acusado. Condenação mantida. 2) Dosimetria da pena. Redução. Parcial acolhimento. Circunstâncias do crime corretamente valoradas negativamente. Adequação, porém, do quantum de aumento da pena-base. Aplicação da fração de um oitavo (1/8) sobre o intervalo da pena. Precedentes desta câmara. Pretensão de exclusão da causa especial de aumento de pena prevista no art. 121, § 4.º, do código penal. Acolhimento. Imputação com base na mesma circunstância fática descrita para tipificar a negligência. Bis in idem configurado. Redução da pena definitiva para um (1) ano e três (3) meses de detenção, em regime aberto. 3) Pleito de substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária. Impossibilidade. Substituição da pena por duas restritivas de direitos corretamente operadas (art. 44, § 2.º, segunda parte, CP). Alegação de dificuldade no cumprimento das penas restritivas impostas, todavia, cuja análise compete ao juízo da execução. Apelo não conhecido nesta parte. Recurso parcialmente conhecido e, na parte conhecida, parcialmente provido.3 (grifei) 2.2 Aborto                                                                                                                              O aborto é outro dos crimes contra a vida, também sujeito a julgamento pelo Tribunal do Júri, seja provocado pela própria gestante ou com seu consentimento (art. 124 do CP), seja o provocado por terceiro (artigos 125 e 126 do CP). Obviamente que os limites desse trabalho não permitem adentrar de maneira aprofundada acerca de todas as questões em torno do aborto que estão em pleno debate no Brasil e em boa parte dos países do planeta há muito tempo e ainda presentes hodiernamente, de maneira que trataremos de sua atual conformação na lei brasileira e do recente voto da Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal proferido no julgamento que cuida da análise da constitucionalidade da criminalização do aborto. Iniciemos pela previsão dos delitos tais quais previstos no Código Penal4: Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. A seguir, as hipóteses legais de não punição do aborto: Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Na ADPF nº. 442 do STF, questiona-se a constitucionalidade da criminalização do aborto, distribuída à Min. Rosa Weber, que, antes de sua aposentadoria, votou pela descriminalização até o período de 12 semanas da gestação, conforme o dispositivo que segue: A questão da criminalização da decisão, portanto, da liberdade e da autonomia da mulher, em sua mais ampla expressão, pela interrupção da gravidez perdura por mais de setenta anos em nosso país. À época, enquanto titular da sujeição da incidência da tutela penal, a face coercitiva e interventiva mais extrema do Estado, nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna. A vida digna e aceita como correta, do ponto de vista da moralidade majoritária social da década de 1940, excluía as mulheres da condição de sujeito de direito, seja ele de perfil político-democrático, seja de perfil de autonomia cívica. A ausência de representação política, a condição normativa atribuída, a cidadania de segunda classe a qual estavam categorizadas, permitiram sua fala por meio de representação da família, estrutura hierárquica e fundada no pater família. A maternidade e os cuidados domésticos compunham o projeto de vida da mulher, qualquer escolha fora desse padrão era inaceitável e o estigma social, certeiro. Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito. Aí uma das razões pela qual convoquei a audiência pública. Oportunizar o procedimento democrático do debate público, com pluralidade de vozes, ante o caráter complexo e policêntrico do problema. A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal. 187. Ante as razões expostas, julgo procedente, em parte, o pedido, para declarar a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, em ordem a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas.5 O Ministro Luís Roberto Barroso fez pedido de destaque da questão e o julgamento será retomado em ocasião oportuna em sessão plenária física. 2.3 Lesão corporal                                                                                                                 O próximo delito passível de cometimento na prestação do serviço médico é a lesão corporal, que também pode ser dolosa (com dolo eventual) ou culposa, com a seguinte conformação legislativa: Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (dolosa): Pena - detenção, de três meses a um ano. Lesão corporal de natureza grave § 1.º Se resulta: I - Incapacidade p/ ocupações habituais p/ mais de 30 dias; II - Perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - Aceleração de parto: Pena - reclusão, de um a cinco anos. § 2.º Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - Enfermidade incurável; III perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - Deformidade permanente; V - Aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos. [...] Lesão corporal culposa § 6.º - Se a lesão é culposa: Pena - detenção, de dois meses a um ano. São inúmeros os casos de lesões corporais na seara médica, mas o espaço disponível neste momento permite apenas, daqui em diante, a indicação dos delitos e sua previsão legal. 3. Demais Crimes Médicos no Código Penal                                                                      3.1 Atestado falso                                                                                                                  Por vezes, sem nenhuma má intenção e apenas pensando em ajudar, o Médico, de maneira inocente, pode cometer esse ato e incidir na previsão de um crime do Código Penal: Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso: Pena - detenção, de um mês a um ano. 3.2 Falsa perícia        Aqui estamos tratando da responsabilidade criminal do Médico Perito, dentre outros:  Falsa Perícia Art. 342 do CP. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.  3.3 Omissão de socorro                                                                                                         Quando há o dever legal e a assistência médica não é prestada, incorre-se na denominada omissão de socorro: Art. 135 do CP. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. 3.4 Omissão de notificação de doenças compulsórias                                                        Aqui a omissão é quanto à obrigação de notificação de doença compulsória: Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa. Sendo assim, o Médico, no exercício da profissão, quando se deparar com paciente portador de quaisquer das doenças listadas para notificação compulsória, como, por exemplo, Coronavírus (COVID-19), tem o dever de notificar às Autoridades Sanitárias. 4. Crimes previstos na legislação penal médica especial                                                   Ainda, temos os crimes médicos previstos fora do Código Penal, em importantes leis que regulamentam relevantes aspectos do serviço de saúde do país, que também vamos apenas noticiar pela indicação da legislação vigente para conhecimento. 4.1 Lei de Esterilização Cirúrgica Ilícita (Lei n.º 9.263/96)                                              A esterilização cirúrgica é regida pelo art. 10 da Lei n. 9.263/96, alterada pela Lei n. 14.443/22. Já os crimes médicos previstos nos artigos 15 a 18 dessa mesma lei constituem-se exatamente quando o ato médico é realizado sem o atendimento aos requisitos legais para a execução da esterilização cirúrgica, iniciando-se a lista delituosa pelo artigo 15: Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei. Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada: I - Durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10 desta Lei. II - Com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente; III - através de histerectomia e ooforectomia; IV - Em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial; V - Através de cesárea indicada para fim exclusivo de esterilização.  4.2 Lei de Biossegurança: as células-tronco (Lei n.º 11.105/05) Aqui, da mesma forma, os crimes médicos são condutas que afrontam os próprios requisitos criados pela lei para o manejo do material genético humano, especialmente as células-tronco embrionárias, prevendo o art. 5.º da Lei de Biossegurança6 que: Art. 5.º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - Sejam embriões inviáveis; ou II - Sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1.º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. Já os crimes médicos previstos nessa mesma lei, nos seus artigos 24 a 29, também se caracterizam por alguma conduta dos profissionais de saúde que descumprem os requisitos legais para o manejo do material genético humano, iniciando-se pelo artigo 24: Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5.º desta Lei: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 4.3 Lei de Transplantes de Órgãos e de Tecidos (Lei n.º 9.434/97) Ainda e de igual maneira, os crimes médicos previstos nos artigos 14 a 20 da Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei n.º 9.434/97) são a exata descrição de condutas que infringem as normas legais vigentes para a realização dos transplantes, iniciando-se pelo 14: Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com esta Lei. Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. § 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa. § 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;  II - Perigo de vida;  III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;  IV - Aceleração de parto. Pena - reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa. § 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido: I - Incapacidade para o trabalho;  II - Enfermidade incurável; III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função;  IV - Deformidade permanente;  V - Aborto Pena - reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa. § 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte: Pena - reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa. 5. Exercício ilegal da Medicina                                                                                            Por fim, quanto aos delitos relacionados de alguma maneira à área médica, temos o exercício ilegal da Medicina: Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa. Essa é uma questão primordial sobretudo para os atuais Estudantes da Ciência Médica, a fim de evitar situações como a seguinte, em que o aluno foi desligado do curso universitário pelo exercício irregular da Medicina: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MEDICINA. PENA DE DESLIGAMENTO DO CURSO IMPOSTA APÓS PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. POSSIBILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA ISONOMIA. INOCORRÊNCIA. IMPROVIMENTO. [...] 6. Deve ser ressaltado que a aplicação de pena de desligamento do impetrante se mostra razoável, vez que a Instituição de Ensino possui autonomia para exigir dos seus alunos uma conduta de retidão moral, de forma a preservar a imagem da Instituição e de inibir ações desonestas pelos seus alunos, como o exercício irregular da Medicina. 7. Apelação improvida.7 Dessa forma, apresentados os crimes médicos em espécie, na Parte III dessa série de Direito Penal Médico veremos a questão central colocada para exame acerca do sigilo médico na hipótese de suspeita de aborto pela paciente e qual deve ser a postura do Médico, segundo minha visão frente à legislação, à jurisprudência e à doutrina nacionais mais atualizadas. __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. RSE 1525527-3/Curitiba, 1.ª Câm. Criminal, Rel. Juiz Benjamim A. de Moura e Costa, Rel. Designado p/ o acórdão Des. Miguel Kfouri Neto, por maioria de votos. j. 04.05.2017. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Criminal 0058533-59.2018.8.16.0014, Relator Desembargador Miguel Kfouri Neto, Julgamento 28/05/2022. 4 Consultar ainda a ADPF 54: permissão de aborto no caso de fetos anencéfalos. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 442/DF. Voto da Ministra Rosa Weber. Disponível aqui. Acesso em: 09 out. 2023. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510, Rel. Min. Ayres Brito. Improcedente por maioria (6x5). 7 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5.ª Região. Apelação cível 534143/PB, Relator Desembargador Federal Francisco Wildo. Julgamento 07/02/2012.
1. Introdução Na situação de suspeita de aborto praticado pela própria paciente, o Médico não deve promover a comunicação do fato à Autoridade Policial, sob pena de incidir na quebra do sigilo médico profissional e responder na esfera criminal e ético-profissional, de acordo com as mais recentes decisões do c. STJ do ano de 2023. Pois bem, essa é a ideia básica que pretendo deixar registrada ao final dessa tríade de textos de ingresso na Coluna Migalhas de Direito Médico e Bioética, agora na qualidade de um dos Coordenadores. Brevemente, portanto, registro meus cumprimentos e agradecimentos ao Migalhas, ao IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto, na pessoa do Mestre Kfouri e de sua Presidente Dra. Rafaella Nogaroli, aos Coordenadores Dra. Fernanda Schaefer e Dr. Igor Mascarenhas, aos Caros Amigos do Instituto MKN e aos prezados leitores desta valorosa coluna, razão última de nossos trabalhos por aqui. Importantíssimo, mas subestimado - essa a atual condição de estudo científico do Direito Penal Médico no Brasil. Realmente, não há necessidade de grandes incursões para se chegar a essa notória conclusão, bastando fazer uma verificação do número de livros, aulas, lives e seminários em geral tendo como objeto a Responsabilidade Civil Médica, comparando com os trabalhos acadêmicos desenvolvidos na temática da Responsabilidade Penal Médica. A impressão que tenho, sinceramente, é que a velha tripartição das esferas de Responsabilidade Médica (Responsabilidade Civil, Responsabilidade Penal e Responsabilidade Ética) está praticamente lacunosa, quase que esquecido um de seus pilares: o Direito Penal Médico. Nesse cenário, não custa reiterar que nós - os Juristas Especialistas no Direito Médico - não podemos descurar do Direito Penal Médico, já que o eventual cometimento do Erro Médico vai acarretar, em termos de responsabilidade jurídica, duas vertentes imediatas de responsabilização: a civil e a penal - ambas com intersecções muito próximas. Em outros termos de formulação, o Advogado que se proponha a atuar no consultivo e contencioso do Direito Médico na defesa dos direitos do Médico, para que possa assessorar o Profissional de Saúde de maneira integral sob o ponto de vista de sua proteção jurídica, deve conhecer, além da Responsabilidade Civil e Ética Médica, o próprio Direito Penal Médico. A modesta recomendação nesse sentido seria muito confortável de minha parte, se não fosse para fornecer na sequência um conteúdo que considero mínimo para introduzir o Jurista na temática com uma visão panorâmica do Direito Penal Médico, pinçando, a seguir, uma de suas questões mais polêmicas e de vanguarda que tem gerado graves consequências profissionais e jurídicas, inclusive penais, aos Médicos: a questão da quebra do sigilo médico na suspeita de aborto praticado pela própria paciente. Dessa forma, procurando fornecer um material de mero início de estudos no Direito Penal Médico, segue uma série de 3 artigos jurídicos com a seguinte cronologia: Parte I - Uma Breve Teoria Geral da Responsabilidade Penal Médica; Parte II - Crimes em Espécie Passíveis de Cometimento na Medicina; Parte III - A Questão do Sigilo Médico na Suspeita de Aborto pela Paciente. Os objetivos centrais que impulsionam essa série de artigos sobre o Direito Penal Médico são os seguintes: 1) demonstrar aos Profissionais de Medicina que a prática anterior de determinadas condutas acabou resultando na instauração de inquéritos policiais e mesmo processos criminais, alguns deles culminando na aplicação de sanções penais contra os Médicos; 2) que, portanto, tais condutas devem ser evitadas para que os Médicos não suportem futuramente as mesmas consequências legais e prejudiciais no exercício de sua profissão; 3) preparar o Advogado Especialista no Direito Médico a prestar escorreita consultoria preventiva ao Profissional de Medicina, para que não incida nas mesmas condutas potencialmente passíveis de tipificação criminal e defendê-lo criminalmente no caso de já ter sido instaurado o contencioso procedimento penal - seja o inquérito ou o processo criminal. Visando o alcance dos 3 objetivos acima e concluindo essa introdução, ressalto que essa percepção acerca da importância do fomento do estudo do Direito Penal Médico decorre da minha própria trajetória pela Jurisdição Criminal há mais de 20 anos, inclusive como Juiz Titular de Vara Criminal no Foro Central da Capital de São Paulo e hoje como Juiz Presidente do Tribunal do Júri, onde questões como a distinção entre dolo eventual e culpa consciente - com consequências tão importantes na seara dos delitos médicos, como veremos - sempre estão em evidência. Essa mesma trajetória de carreira profissional, quando transportada para os trabalhos no âmbito científico-acadêmico de pesquisa, sempre me impulsionou a incluir o Direito Penal Médico nos cursos sob minha coordenação, e agora o seu conteúdo vem devidamente sistematizado no capítulo denominado "CRIMES MÉDICOS" no livro recém-lançado: "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. O livro é fruto da tese de pós-doutorado pelo POSCOHR da Universidade de Coimbra, na linha de pesquisa "Direitos Humanos, Saúde e Justiça", contando com o prefácio de Sua Excelência o Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro do STJ, obra e capítulo dos quais retiramos as fontes para a construção desse breve panorama do Direito Penal Médico, que passo a oferecer com plena satisfação e vivo agradecimento pela sua leitura! 2. Afinal, o que é um crime na área médica? É importante notar, desde logo, que a diferenciação que se estabelece entre o erro médico e a iatrogenia, assim como suas consequências para a responsabilidade civil médica, tem a mesma importância para a responsabilidade penal do Médico. Com efeito, da mesma maneira, só poderá haver a responsabilização penal do Médico se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem nexo causal com uma conduta médica culposa por negligência, imprudência ou imperícia - ou, excepcionalmente, por dolo eventual, como veremos. De outro lado, se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem como causa um fator iatrogênico, isto é, não ligado ao erro médico, o profissional não deverá responder criminalmente pelo prejuízo suportado pelo paciente. Dessa forma, temos o seguinte quadro para que um Médico possa ser condenado criminalmente por uma conduta sua: o dano suportado pelo paciente deve guardar nexo causal com uma ação culposa ou dolosa (por dolo eventual) do Médico; e mais, diferentemente lá da responsabilidade civil, aqui na responsabilidade penal deve haver uma previsão expressa na lei penal de que esse fato - exatamente como ocorrido em todas as suas circunstâncias - configura um crime e possui uma pena previamente cominada no ordenamento jurídico. Na esfera da responsabilidade penal, portanto, a mesma conduta médica objeto de uma ação civil indenizatória poderá ser analisada à vista da legislação penal do país, para a verificação se a ação ou omissão praticada pelo profissional de saúde se enquadra em alguma das hipóteses legais previstas como delito. Terá vez a responsabilização penal se a conduta médica for prevista como crime na lei penal brasileira e a sanção será a imposição de uma pena criminal, que pode ser desde uma multa até a reclusão de quem atuou com culpa ou, excepcionalmente, impulsionado em sua conduta pelo denominado dolo eventual - que é o fato de assumir o risco de produzir um dano. Vale dizer que não se cogita, na prestação de serviços médicos, da prática de um ato criminal lastreado no dolo direto, que é a vontade livre e consciente da realização da ação delituosa voltada para a lesão da vítima ou provocação de sua morte - como, por exemplo, no totalmente excepcional e trágico Caso Pavesi - que nem prefiro tratar como um caso médico. 3. Crimes por ação e omissão do Médico   No mais das vezes, como estudamos na responsabilidade civil médica, a conduta do Médico causadora do dano se dá por meio de uma ação, isto é, de um fazer, de uma conduta positiva. Se essa ação for culposa e causar um dano previsto na lei penal como crime, teremos um crime médico por ação médica. Mas, o mesmo resultado danoso ao paciente previsto como crime pode decorrer de uma omissão médica, quando o profissional tinha o dever legal de agir e não o fez, concluindo-se, então, que houve crime médico por omissão médica. Veja-se como se dá a relação de causalidade na ação e na omissão nos crimes médicos de acordo com a previsão do Código Penal brasileiro: Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Relevância da omissão § 2.º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;  b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;  c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Como exemplo, temos abaixo a hipótese de uma verdadeira tragédia provocada por uma ação médica considerada como delituosa que ceifou a vida de vários pacientes: Apelação cível. Ação de indenização. Erro médico. Sentença de parcial procedência. Recurso da parte ré. Alegada ausência de nexo de causalidade entre a conduta do médico réu e o óbito da filha dos autores. Rejeição. Responsabilidade do profissional que já foi apreciada pelo juízo da vara criminal. Culpabilidade do réu que foi reconhecida em relação ao delito de homicídio culposo decorrente de erro médico. Impossibilidade de rediscussão. Parte que desrespeitou as orientações emitidas pela anvisa para exames semelhantes ao realizado pela filha dos autores (endoscopia). Uso da substância lidocaína na forma contraindicada pelas autoridades competentes. Conduta que levou a óbito a filha dos autores, além de outros pacientes que compareceram à clínica no dia dos fatos. Responsabilidade solidária dos apelantes configurada. Dever de indenizar inconteste. Dano moral. Pretendida a redução do quantum arbitrado. Impossibilidade. Perda prematura de um filho. Valor que não se mostra exorbitante quando ponderada a dor incomensurável dos autores. Manutenção que se impõe. Pensão mensal vitalícia. Dependência financeira presumida. Família de baixa renda. Parte ré que ainda objetiva limitar o encargo para a data em que a filha dos autores completaria 25 (vinte e cinco) anos. Não acolhimento. Teto de percepção da verba estipulado pelo juízo a quo em 60 (sessenta) anos de idade. Entendimento do superior tribunal de justiça no sentido de perpetuar a verba até o momento em que a de cujus faria 65 (sessenta e cinco) anos de idade. Reforma da sentença que, contudo, é inviável, ante a ausência de recurso dos autores no tópico. Fixação de honorários recursais. Recurso conhecido e desprovido.2 (grifei) De outro lado, segue uma outra hipótese de homicídio, essa agora por omissão médica: REVISÃO CRIMINAL. Homicídio culposo. Artigo 121, §§ 3.º e 4.º, do CP. Erro médico. Condenação por culpa decorrente de negligência e imperícia. Conduta omissiva imputada a cirurgião plantonista em hospital. Atendimento a vítima com quadro de "abdômen agudo cirúrgico". Inação por não analisar as imagens da tomografia solicitada pelo próprio peticionário no dia da entrada da paciente no pronto socorro e também por não ter passado o caso a outro colega para avaliação do quadro com a necessária celeridade. Contribuição da conduta do corréu para a ocorrência do resultado típico. Comprovação de avaliação tardia e incorreta dos exames efetuados pelo médico cirurgião que sucedeu o peticionário no atendimento da ofendida. Nexo causal entre a omissão e o resultado morte, advindo de quadro infeccioso generalizado oriundo de "apendicite aguda". Condutas sucessivas e concorrentes para agravamento do quadro clínico e consequente óbito. Pretendida rescisão do julgado com base em nova prova de inocência constituída por laudo pericial produzido na demanda indenizatória em trâmite no juízo cível. Pleito fundado no artigo 621, inciso III, do CPP. Elemento inapto à desconstituição do julgado. Condenação fundada em laudo do IMESC e nos elementos colhidos no procedimento ético profissional do CREMESP. Condenação mantida. PENA. Acréscimo de 2/3 fundado na gravidade da culpa. Consideração de aspectos que não extrapolam as elementares do próprio tipo culposo. Ausência de circunstância extraordinária a justificar maior reprovabilidade da conduta. Afastamento. Causa de aumento da inobservância de regra técnica de profissão (§ 4.º). Manutenção. Reprimenda concretizada em 1 ano e 4 meses de detenção no regime aberto. Substituição da privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. Pedido rescisório indeferido. Concessão, no entanto, de habeas corpus de ofício para efetuar a sobredita redução da pena.3 (grifei) 4. Excludentes de ilicitude médica - não há crime nessas hipóteses      Trata-se de situações nas quais, muito embora seja provocado um dano ao paciente, a conduta de quem causou o prejuízo está justificada e amparada pela legislação brasileira. As excludentes de ilicitude penal médica são as mesmas do art. 23 do Código Penal: Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - Em estado de necessidade; II - Em legítima defesa; III - Em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. No Direito Médico em específico, não vislumbramos a hipótese de legítima defesa, mas vamos trazer dois exemplos das duas outras causas excludentes de ilicitude médica. a) Estado de necessidade, que vem detalhado no art. 24 do Código Penal: Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Exemplo: aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I, do CP). b) Estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de um direito como previsto no artigo 23 do CP, ocorrendo nas situações em que o médico pratica uma ação no exercício legal e regulamentar de sua profissão, sem possibilidade de ser punido por isso. Exemplo: o aborto com o consentimento da gestante, quando a gravidez resulte de estupro (art. 128, II, do CP). 5. A suspensão do exercício da Medicina imposta como pena alternativa criminal As chamadas penas restritivas de direitos ou alternativas substituem a pena privativa de liberdade (reclusão ou detenção) quando a lei permite. Segundo o art. 43 do Código Penal, são as seguintes: I - prestação pecuniária; II - perda de bens e valores; III - limitação de fim de semana; IV - prestação de serviço a comunidade ou a entidades públicas; V - interdição temporária de direitos. A questão que se coloca é se o juiz criminal, ao reconhecer a existência de um crime e fixar uma sanção criminal, pode substituir a pena privativa de liberdade pela pena alternativa prevista no inciso V do art. 43 acima: a interdição temporária de direitos na modalidade suspensão do exercício da Medicina.      Por mais que não se concorde com essa solução, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça ratificou a decisão das instâncias inferiores num caso em que a pena privativa de liberdade do médico foi substituída pela suspensão do exercício de sua profissão: Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado em favor de MARCELO FIGUEIREDO SOUZA COSTA, apontando como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (Apelação n. 1.0343.11.000949-9/001). Depreende-se dos autos que o réu foi condenado às penas de 1 ano e 8 meses de reclusão e 4 meses de detenção, em regime aberto, e ao pagamento de 20 dias-multa, pela prática dos delitos inscritos nos arts. 121, §§ 3.º e 4.º, e 319, c/c o art. 69, todos do Código Penal (homicídio culposo circunstanciado e prevaricação). A sanção corporal foi substituída por prestação de serviços à comunidade e interdição temporária de direitos, consistente na proibição do exercício da Medicina pelo tempo da pena privativa de liberdade aplicada. Ante o exposto, denego a ordem. Outrossim, julgo prejudicado o pedido de reconsideração de e-STJ de fls. 229/234.4 (grifei) Guardado o devido respeito, segundo meu entendimento, a decisão nesse sentido acaba por subtrair do Médico a garantia fundamental ao exercício do seu ofício ou profissão e não pode ser aplicada como sanção de natureza criminal, mas sim deve ser reservada à analise da responsabilização ético-profissional pelo órgão de classe competente. 6. Relativa independência entre as esferas criminal e cível Sabemos que, pelo princípio da independência das instâncias, em tese, a violação de um só dever, por parte do Médico, caracterizando-se eventualmente ilícito penal e civil numa só conduta médica, pode desencadear, em princípio, responsabilização nas duas instâncias concomitantemente e de modo independente. Isto é, o Médico pode ser absolvido em uma instância e vir a ser condenado em outra, pois, em regra e em princípio, as esferas de responsabilidade são autônomas entre si - penal e civil. É a norma estabelecida na primeira parte do art. 935 do Código Civil, fixando, em princípio, uma certa independência entre as instâncias cível e criminal de apuração da responsabilidade médico-jurídica, conforme abaixo: Art. 935 - A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Porém, veja-se que, na segunda parte do mesmo art. 935 do CC, a regra da independência absoluta entre as instâncias é mitigada, criando-se uma causa de vinculação da Justiça Cível na hipótese de a Justiça Criminal fixar de maneira cabal acerca da existência e da autoria de um fato criminal médico. Em outras palavras, uma vez declarado definitivamente pela Justiça Criminal que houve um crime médico e que determinado profissional é autor deste mesmo fato, essas questões não podem mais ser objeto de discussão na Justiça Cível - aqui caberá apenas a fixação da quantia da indenização médica e sua execução patrimonial: Apelação cível. Erro médico. Indenização. Falecimento do filho da autora. Erro de diagnóstico, que culminou no óbito do filho da autora. Ação julgada improcedente. Responsabilidade solidária (art. 7.º do CDC). Preliminar de ilegitimidade passiva da corré, previna rejeitada. Inconformismo da autora. Reconhecimento da culpa dos apelantes no âmbito penal. Acórdão que condenou os réus por homicídio culposo. Aplicação do artigo 935 do cc. Impossibilidade de discussão sobre a existência do fato ou sobre quem seja o autor. Questões já decididas na esfera criminal. Extinção da punibilidade que não afasta a responsabilidade civil - dever de indenizar. Art. 67, II, do CPP). Precedentes do STJ. Sentença penal condenatória considerada título executivo judicial (art. 515, VI, do CPC). Dano material restrito às despesas com sepultamento. Reparação devida. Honorários contratuais e despesas extrajudiciais que não comportam reparação. Dano moral evidente. Indenização arbitrada em R$50.000,00. Dado provimento parcial ao recurso5 (grifei) De outro lado, se o Médico foi beneficiado com uma absolvição no juízo criminal, mas essa absolvição decorreu de uma dúvida na formação da culpa, por exemplo, por insuficiência de provas, o paciente, ainda assim, continua com a oportunidade de ajuizar uma ação civil indenizatória contra o profissional para a obtenção de uma indenização. 7. Dolo eventual x culpa consciente e as principais diferenças legais práticas dessa distinção no cometimento de um crime na área médica - o caso do homicídio Há uma diferenciação muito sofisticada e técnica que merece uma breve menção, no que tange à distinção entre dolo eventual x culpa consciente. Na culpa consciente, o agente, confiando em suas habilidades, pratica o ato prevendo que seja possível a ocorrência de algum resultado adverso, mas confia firmemente que isso não ocorrerá. No dolo eventual, o agente também prevê a possibilidade da ocorrência de um resultado adverso, embora não o deseje diretamente, mas acaba assumindo o risco de produzir o dano por força de sua conduta. As diferenças básicas entre o reconhecimento de um homicídio na modalidade culposa e na modalidade de dolo eventual são de duas vertentes: uma - de conteúdo - sob o ponto de vista da própria intensidade da sanção criminal; e outra - de forma - sob o ponto de vista do procedimento criminal a ser adotado em cada uma das situações. Explico.           No caso de homicídio culposo, o processo será julgado por um Juiz de Direito monocrático e a pena é bem mais branda (detenção de 1 a 3 anos). No caso de homicídio com dolo eventual, a pena é bem mais elevada (reclusão de 6 a 20 anos), com o seguinte "detalhe" que muda todo o panorama de exposição do profissional: o julgamento final é feito pelo Tribunal do Júri Popular da Comarca onde o serviço médico foi prestado. Dito isso, na Parte II dessa série de Direito Penal Médico, veremos dois casos relatados pelo Eminente Desembargador Miguel Kfouri Neto do Tribunal de Justiça do Paraná, cada qual num sentido - um homicídio culposo e um homicídio com dolo eventual, ambos na área médica. __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação 0000045-30.2012.8.24.0037/SC, Relator Desembargador Sérgio Izidoro Heil, Julgamento: 07/03/2023. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 2132292-17.2020.8.26.0000, 8.º Grupo de Direito Criminal, Relator Desembargador Otávio de Almeida Toledo, Julgamento: 08/04/2021, Publicação: 08/04/2021. 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus 684954 MG 2021/0248166-0, Relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Julgamento: 05.10.2021. 5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 0050906-85.2012.8.26.0547, 8.ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Silvério da Silva, Julgamento: 18/11/2020, Publicação: 01/12/2020.
No início de abril de 2024, foi publicada, no Diário Oficial da União, norma editada pelo Conselho Federal de Medicina - Resolução 2.378/2024 -, que prevê a proibição do procedimento de assistolia fetal em gestações decorrentes de estupro. O texto normativo, em artigo único a tematizar a questão, especifica o seguinte:  É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas. Poucos dias depois, órgãos do sistema de justiça, da classe médica e da sociedade civil iniciaram uma série de manifestações contra a referida resolução. O Ministério Público Federal, a Sociedade Brasileira de Bioética e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ajuizaram Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência (ACP 5015960-59.2024.4.04.7100) em face do CFM, objetivando a declaração de nulidade do ato normativo, por restringir indevidamente direito fundamental de mulheres, em especial o direito de acesso ao melhor atendimento de profissionais de saúde para a realização de aborto legal, o que cria ilegalmente mais "uma barreira à integridade dos cuidados de saúde". Em 18 de abril, a 8ª Vara Federal de Porto Alegre, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, deferiu o pedido liminar no bojo da ACP para suspender os efeitos da Resolução n. 2.378/24, vedando a utilização do ato normativo para obstar o procedimento ou impor punição disciplinar aos médicos que o realizarem. Em sede constitucional, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com suporte técnico do ANIS - Instituto de Bioética, CRAVINAS - Clínica de Direitos Humanos e Reprodutivos da Universidade de Brasília e do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, também questionou a constitucionalidade da resolução ao ajuizar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 11411 pedindo a  suspensão da eficácia da norma impugnada até o julgamento final da ação. Em 26 de abril, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região conferiu efeito suspensivo ao agravo de instrumento interposto pelo Conselho Federal de Medicina e reformou a decisão recorrida afirmando que a ADPF 989 e a ADPF 1.141 discutem o tema, por isso não seria adequada, no momento, a prolação de decisões singulares com eficácia e abrangência nacional determinando a suspensão do ato normativo atacado. Como se pode ver, a discussão está longe de terminar. Enquanto isso, a insegurança jurídica só aumenta e, com ela, o risco persecutório de profissionais da Medicina. Isso porque a Resolução 2.378/2024, ao estabelecer vedações não dispostas em lei, repercute não somente discussões já antigas sobre os limites da competência do CFM para regulamentar determinadas matérias, como também intensifica o cenário de obstáculos à interrupção da gravidez nas hipóteses permitidas pelo ordenamento jurídico.2 São elas: i) quando a gestação é decorrente de estupro/violência sexual; ii) quando há risco de vida para a pessoa gestante (art. 128, I e II, Código Penal) e; iii) desde 2012, o STF estendeu a excludente de ilicitude para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54. Embora a ementa da Resolução 2.378/2024 a sintetize como normativa que "regulamenta o ato médico de assistolia fetal", a literalidade da redação expressa patente proibição aos profissionais da Medicina quanto à realização do procedimento, o qual é descrito como "ato médico que ocasiona o feticídio"3. Além de a autarquia federal violar o princípio da legalidade e apropriar-se inadequadamente da competência do Congresso Nacional de legislar sobre o tema, extrapolando o seu poder regulamentar, ao produzir alteração normativa de caráter primário por tipificar a conduta de profissionais médicos, pode-se afirmar que diversos outros preceitos fundamentais são ofendidos pela resolução do CFM. Há uma série de evidências científicas sobre a utilização terapêutica da assistolia fetal em gestações avançadas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde4, recomenda-se a indução da assistolia fetal como um procedimento pré-abortamento5, isto é, antes do esvaziamento uterino nas gestações acima de 20 semanas.6 O Ministério da Saúde, no âmbito da Nota Técnica Conjunta 37/2023 SAPS/SAES/MS, também sinaliza que a indução de assistolia fetal, ao preceder as induções medicamentosas nos casos de abortamento, trata-se de técnica que produz cuidados em saúde, "por trazer benefícios emocionais, legais e éticos relacionados ao impedimento da expulsão fetal com sinais transitórios de vida".7 Sendo assim, ao preconizar que os profissionais não poderão se valer do procedimento nos casos de aborto decorrente de estupro, o CFM impede que a melhor técnica disponível na saúde seja aplicada, o que é atentatório á liberdade científica (artigo 5º, IX, da Constituição Federal) e contraria o próprio Código de Ética Médica, o qual estipula, em seu artigo 32, que é vedado ao profissional "deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente". Adicionalmente, o CFM impõe uma restrição de forma discriminatória ao limitar a proibição do uso da técnica aos casos de gravidez resultante de estupro, sem qualquer respaldo jurídico, científico e ético para tanto. Da mesma forma, a norma viola a liberdade do exercício da profissão prevista no artigo 5°, inciso XIII, da Constituição Federal, pois impede que a(o) profissional da Medicina escolha técnica segura e eficaz na condução do abortamento. Tal proibição, ademais, agrava a insegurança jurídica que já paira nos serviços de atendimento ao aborto, especialmente nos casos oriundos de violência sexual, questão que vem sendo denunciada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989. Todas essas violações potencializam a vulnerabilidade de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar que buscam o aborto nas hipóteses autorizadas8, principalmente nas situações decorrentes de estupro. Isso porque, segundo o IPEA, a cada minuto, praticamente duas pessoas são estupradas9 e, dentre as consequências sofridas pelas vítimas do estupro, a terceira maior prevalência diz respeito à gravidez (7,1%). Na faixa etária entre 14 e 17 anos, a proporção de vítimas que ficam grávidas cresce para 15%.10 Portanto, impossibilitar a interrupção da gestação em casos de estupro - em caráter seletivo e discriminatório, como a Resolução do CFM o faz - caracteriza patente violação ao direito à saúde, o que, por sua vez, também pode acarretar danos ao projeto de vida de quem tem frustrado o acesso aos melhores cuidados em saúde ao buscar o aborto legal.   Por sinal, o fundamento apresentado na Resolução 2.378/2024, CFM para se proibir o procedimento de assistolia, de que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, direito esse que deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção", em alusão ao artigo 4.1. da Convenção Americana de Direitos Humanos, não se sustenta.  Na decisão do caso Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012)11, a Corte Interamericana de Direitos Humanos interpretou aquele dispositivo e esclareceu que, devido à expressão "em geral" presente no artigo, a proteção do direito à vida não pode ser absoluta nem incondicional: ela deve ser gradual e progressiva, de acordo com o seu desenvolvimento. Além disso, na mesma decisão, a CorteIDH consignou que o objeto de proteção do direito à vida é principalmente a mulher grávida, pois é ela que carrega a potencialidade da existência de vida, afirmando-se o direito à integridade pessoal em relação à autonomia e à saúde sexual e reprodutiva. Como se vê, trata-se de precedente instaurado há mais de uma década, amplamente difundido na literatura especializada12, que reflete a interpretação evolutiva e sistemática adotada pela CorteIDH no que tange à Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo que a resolução do CFM, ao ignorá-lo, também esbarra no crivo da convencionalidade.  A propósito, este entendimento se alinha à Recomendação Geral n° 35 do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que preconiza que as violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como a recusa ou atraso no acesso ao aborto seguro e aos cuidados pós-aborto, a imposição forçada de gravidez, o abuso e maus-tratos a mulheres e meninas que buscam informações, produtos e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, são consideradas formas de violência de gênero. Ainda, dependendo das circunstâncias, essas violações podem ser equiparadas à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.  Estes argumentos parecem encontrar reflexo no posicionamento de diversas entidades e organizações que se manifestaram publicamente em relação à Resolução 2.378/2024, incluindo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)13 e Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice - Brasil)14, que contam com representantes da classe médica.  O contexto apresentado nos mostra, portanto, a necessidade de um debate pautado em evidências científicas, tanto da saúde quanto do direito, sobre a regulamentação da interrupção da gravidez e dos atos realizados pelos sistemas de saúde a fim de garantir acesso ao abortamento seguro e fortalecer as políticas de planejamento reprodutivo. A atenção humanizada às mulheres, meninas e demais pessoas com capacidade de gestar em abortamento pressupõe atenção à gestante prioritariamente e o respeito a direitos fundamentais que não podem ser solapados por normas ético-profissionais. __________ 1 A ADPF 1141 apresenta pedido de medida cautelar e distribuição por prevenção por conexão com a ADPF 989/DF, ação na qual se objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao aborto legal. Disponível aqui. 2 LIMA, Francielle Elisabet Nogueira; SCHIOCCHET, Taysa; NUNES, Mariana. Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil. Migalhas de Direito Médico e Bioética, 04 de dez 2023. Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril de 2024. 3 Termo que não leva em consideração a diferenciação biológica entre embrião (até a 8ª semana de gestação e feto (a partir da 8ª semana de gestação até seu termo) e sequer tem previsão no ordenamento jurídico penal brasileiro. 4 Segundo as Orientações Técnicas da Organização Mundial de Saúde1 (OMS) o abortamento pode ser: a) farmacológico (ou medicamentoso), no qual se utilizam fármacos para finalizar a gravidez (método médico); b) cirúrgico, no qual se utilizam procedimentos transcervicais para finalizar a gravidez (método cirúrgico) (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Abortamento   seguro: orientação técnica de políticas para sistemas de saúde. 2.ed. OMS, 2013). 5 Abortamento é "a expulsão do feto antes de sua viabilidade" (BLAKISTON. Dicionário médico. 2a. ed. São Paulo: Andrei, 1997. p. 18). O aborto, segundo a OMS, "é uma intervenção de saúde segura e não complexa que pode ser eficazmente gerida usando medicamentos ou um procedimento cirúrgico em vários contextos. As complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico. (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, 2022. Disponível em: Disponível aqui. Acesso em 16 fev. 2023).          6 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Clinical practice handbook for quality abortion care, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024. 7 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota Técnica Conjunta nº 37/2023-SAPS/SAES/MS. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024. 8 As restrições legais ao abortamento não ajudam a diminuir sua ocorrência nem a assegurar o aumento de taxas de natalidade, isso porque "o estatuto jurídico do aborto não altera a necessidade de aborto de uma mulher, mas afeta significativamente o seu acesso ao aborto seguro" (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, op. cit.). 9 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Elucidando a Prevalência de Estupro no Brasil a Partir de Diferentes Bases de Dados, 2023, p. 22. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024. 10 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, 2014, p. 15-16. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024. 11 "(...) Por outro lado, em relação à controvérsia sobre quando começa a vida humana, a Corte considera que se trata de uma questão apreciada de diversas formas sob uma perspectiva biológica, médica, ética, moral, filosófica e religiosa, e coincide com tribunais internacionais e nacionais, no sentido de que não existe uma definição consensual sobre o início da vida. (...) A expressão "toda pessoa" é utilizada em vários artigos da Convenção Americana e da Declaração Americana. Ao analisar todos estes artigos não é factível argumentar que um embrião seja titular e exerça os direitos consagrados em cada um destes artigos. Além disso, tendo em consideração o já argumentado no sentido que a concepção somente ocorre dentro do corpo da mulher (pars. 186 e 187 supra), pode se concluir em relação ao artigo 4.1 da Convenção que o objeto direto de proteção é, fundamentalmente, a mulher grávida, em vista de que a defesa do não nascido se realiza essencialmente através da proteção da mulher, como se observa no artigo 15.3.a) do Protocolo de San Salvador, que obriga os Estados Parte a "conceder atendimento e ajuda especiais à mãe antes e durante um período razoável depois do parto", e do artigo VII da Declaração Americana, que consagra o direito de uma mulher em estado de gravidez a proteção, cuidados e ajudas especiais. Portanto, a Corte conclui que a interpretação histórica e sistemática dos antecedentes existentes no Sistema Interamericano confirma que não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião", grifado (OEA. Corte IDH. Sentença. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) Vs. Costa Rica, 28 de novembro de 2012. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2024). 12 LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raissa; FONSECA, Priscila Silva. O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas. Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022. 13 FEBRASGO. Nota sobre a Resolução do CFM 2378. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024. 14 DOCTORS FOR CHOICE BRASIL (@doctorsforchoicebr). "Na mídia", 5 de abril de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024.
Em que pese o preceito constitucional de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I, da Constituição Federal), bem como que a partir da promulgação da Declaração Universal de direitos humanos de 1948 o direito de homens e mulheres passa a ser universalmente reconhecido, ainda há a necessidade de efetivação da igualdade, positivamente prevista, de modo que passe a ser realidade e não apenas "letra de lei". Após a Convenção da ONU pela eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher em 1979, também chamada de "Carta Internacional dos Direitos da Mulher" (CEDAW), que foi ratificada por 189 Estados até setembro de 2019, tendo entrado em vigor desde 3 de setembro de 1981, consagrou-se a obrigação dos Estados de eliminar a discriminação contra a mulher e zelar pela sua igualdade relativamente aos homens. Nela, também restou determinado que os Estados Partes devem suprimir a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares, deste modo, observa-se que a discriminação de gênero é um assunto que está intimamente ligado é a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, uma vez que, diante do processo histórico, no qual as mulheres foram subjugadas de diversas formas, dentre elas no que concerne a prática sexual, envolvendo também as relações familiares e casamento e, consequentemente, a reprodução. Ainda hoje, muitos assuntos relacionados aos direitos sexuais e domínio do próprio corpo da mulher são questões controvertidas na sociedade, à título de exemplo o aborto, o uso de anticoncepcional e da "pílula do dia seguinte", a realização do procedimento de laqueadura quando a mulher ainda não teve filhos ou é muito jovem, bem como o a própria decisão de se ter ou não filhos. Mesmo diante de questões ainda muito controversas acerca de direitos sexuais e reprodutivos, que levantam embates morais, o parto sempre foi visto como um momento de importância, na medida que mantém viva a própria existência da raça humana. Todavia, diante do avanço científico e da popularização, se não obrigatoriedade, do parto institucionalizado, emergiu o conceito de violência obstétrica, que diz respeito aos atos praticados sem o consentimento da gestante/mãe, tanto nela quanto no recém-nascido, tornando também o próprio parto âmbito de discussão sobre direitos. No presente artigo busca-se relacionar a violência obstétrica com a violação aos direitos humanos, especificamente direitos sexuais e reprodutivos, bem como verificar se há relação com a violência de gênero. Não obstante o foco ser a pessoa da mulher no presente estudo, não se olvida que o nascituro também pode ser vítima da violência obstétrica, sendo, igualmente, sujeito de direitos. Outrossim, é relevante mencionar que a violência obstétrica possui um recorte ainda mais acentuado quando analisadas vítimas mulheres que são vulneráveis socialmente em decorrência de outros fatores além do gênero, como a cor de pele, nível de instrução e renda, devendo reconhecer a existência de interseccionalidades. Todavia, o enfoque desta pesquisa é uma relação geral entre a violência obstétrica, vítima mulheres e a violação de direitos humanos, essencialmente no que tange os direitos sexuais e reprodutivos e direito à igualdade de gênero. Salienta- se, porém, que essa temática também pode ser atrelada a outros direitos humanos, como o direito à integridade física e/ou psíquica, à saúde, à liberdade, à vida, direito de não ser submetido a tortura e tratamento cruel ou degradante, de não ser submetido à discriminação, entre outros mais.  Direitos reprodutivos e direitos humanos Mister inicialmente diferenciar os direitos sexuais dos direitos reprodutivos, enquanto aqueles dizem respeito exercício e a vivência sexual dos seres humanos, estes "[...] consistem no conjunto de direitos relacionados ao exercício da capacidade reprodutiva do ser humano"1. Malgrado haja esta distinção, de modo que os direitos sexuais são mais amplos e não estão sempre atrelados à procriação, ambas categorias são complementares. À luz de tais conceitos, pode-se dizer que são direitos derivados dos direitos reprodutivos os seguintes: a) o direito de escolha, de forma livre e informada, sobre ter ou não ter filhos, sobre o intervalo entre eles, sobre o número de filhos e em que momento de suas vidas; b) o direito de acesso a receber informações e o acesso a meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos; c) o direito de exercer a reprodução, sem sofrer discriminação, temor ou violência2. Os movimentos sociais que influenciaram a positivação e proteção de tais direitos também são distintos, a luta pelos direitos reprodutivos está associada ao movimento feminista, já na busca por direitos sexuais, soma-se a contribuição do movimento LGBTQI+.3 No contexto internacional, após a Convenção da ONU pela eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher em 1979 e a promulgação da CEDAW, foi assegurado às mulheres (em regime de igualdade com os homens) decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos, sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos. Por meio desse documento, inicia-se a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na sua dimensão positiva. Apenas, em 1993, na II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos da ONU, é que os direitos sexuais das mulheres foram tratados expressamente em dimensão negativa, ou seja, direitos que se referem às vedações de violência e discriminação com base na sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero. Após, houve outras conferências que trataram sobre a temática (Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento em Cairo, em 1994; IV Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas, em Pequim, em 1995) e no ano 2000, a ONU publicou as metas de desenvolvimento do milênio, dentre as quais há a redução da mortalidade neonatal e melhorar a saúde materna. Nesse aspecto, deve ser ressaltado o papel do Estado na proteção às vítimas de violação de direitos reprodutivos, que deve ser atinente às duas dimensões anteriormente mencionadas (positiva e negativa). Venezuela, Argentina e Uruguai criaram leis para definir do que seria a violência obstétrica, indicando com uma forma de violência contra a mulher4. Na legislação argentina (Lei 26.485/2009, Artigo 6º), violência obstétrica é definida como aquela exercida pelos profissionais da saúde e caracterizada pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais5. Já na Venezuela, considerou-se que a violência obstétrica é uma forma de violência de gênero e assim conceituou-se, no artigo 15 (13), da lei 38668: [.] 13. Violência obstétrica: a violência obstétrica é entendida como a apropriação do corpo e os processos reprodutivos das mulheres pelo profissional de saúde, que é expresso em um tratamento desumano, no abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, levando a perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, afetando negativamente a qualidade de vida das mulheres6. No âmbito interno, o Brasil ratificou a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979 (Decreto 4.377/2022), bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994. Válido mencionar que a Constituição Federal de 1988 não traz de maneira expressa os direitos reprodutivos em seu rol de direitos fundamentais (exemplificativo), no artigo 5º, todavia, no §2º deste dispositivo, é asseverado que o disposto não exclui outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Ademais, no Brasil, não há lei federal que trate especificamente sobre o tema violência obstétrica, apenas leis estaduais e algumas leis municipais. Contudo, há exemplos de leis federais que trazem direitos reprodutivos em seu teor, como é caso da lei do acompanhante (lei 14.737/23), que foi promulgada muito recentemente, demonstrando preocupação, ainda que ínfima perto do que necessário, em proteger às mulheres gestantes. Isso é demonstrado pelas pesquisas, Souza7 aponta que dos partos ocorridos na rede pública, o parto vaginal ocorre em 65% dos casos, enquanto há 35% de cesarianas, por outro lado, nas redes particulares a cesariana é esperada em 83% dos partos e 17% de partos vaginais. Tais números são alarmantes pois, conforme a OMS, a cesariana deve ocorrer em apenas 15% dos partos8. Também pode ser mencionado o levantamento realizado pela ouvidoria da Rede Cegonha no ano de 2012, que mostrou que, nos hospitais do SUS, das 83.574 mil mulheres entrevistadas, 65,2% relataram que não tiveram direito ao acompanhante durante o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato9. Conforme pesquisa que analisou o perfil e a experiência de parto de 555 mulheres, entre o grupo de mulheres que teve parto vaginal, 46,4% ficaram na posição litotômica no momento do parto, em 23,7% foi realizada a manobra de Kristeller, em 30,4% foi realizada a episiotomia e a realização desse procedimento não foi informada para 35,6% das mulheres10. Tais procedimentos deveriam ser excepcionais e podem ser considerados como violência obstétrica. Destarte, há uma falta de efetividade, tanto formal quanto material, na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, resultando em uma facilitação da ocorrência da violência obstétrica. Violência obstétrica Percebendo que os direitos reprodutivos são enquadrados como direitos humanos, resguardado em cenário internacional, deve-se pensar na situação de violação a esse direito, especificamente a violência obstétrica, e também o impacto do gênero nesse contexto. A violência obstétrica pode ocorrer em três momentos distintos: pré-parto, durante o parto e pós-parto. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência obstétrica é: Apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida11. A vítima desse ato ilícito pode ser tanto a gestante quanto o feto ou o recém-nascido. Já em relação a quem pratica, a legislação brasileira sobre o assunto imputa o ato aos membros da equipe médica que prestarem atendimento à mulher, todavia, por ser, em latu sensu praticada no âmbito hospitalar (institucional), bem como em uma situação específica (antes, após e durante o parto), qualquer funcionário do nosocômio, como secretária, equipe de limpeza e segurança, pode praticar a agressão12. Dessa forma, o objetivo principal do enfrentamento desse tipo de violência é impedir dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher (durante o período gestacional e puerpério), possibilitando o exercício da autonomia da mulher para as tomadas de decisões sobre seu parto. Assim, a violência obstétrica restringe à autonomia da mulher, ou seja, a liberdade de exprimir o desejo e concordância com o procedimento médico que será realizado, tendo a paciente (como qualquer outro paciente) direito à informação13. Ademais, a violência obstétrica pode ser física, verbal ou moral/ psicológica. A violência verbal consiste em ofensa verbal proferida pelo profissional da instituição de saúde durante o atendimento à parturiente ou puérpera, diminuindo-a. Muitas vezes, essas ofensas são proferidas em tom de "brincadeiras", passando muitas vezes despercebidas.  A título de exemplo, frases em tom de ameaças como "se você não parar de gritar, não poderei te ajudar" ou "na hora de fazer, não gritou". Já a violência moral é aquela que atinge o emocional da paciente, concretizando- se por ameaças veladas ou expressa. Como exemplo a indução de vontade para que a mulher realize cesariana, não sendo caracterizada apenas por uma ação verbal, pode ser também uma ação comportamental, como exemplo, o hospital negligenciar ou negar atendimento à mulher, não oferecer métodos de alívio da dor ou impor dificuldades para tal. Por fim, a violência física ocorre quando há ação de membro da equipe médica que cause danos à integridade física da paciente, sendo exemplo comum, no parto vaginal, a episiotomia, que, na maioria dos casos, é realizada sem o consentimento da paciente ou até mesmo sem a transmissão de informação. O Ministério da Saúde estabeleceu em 2018 novas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, recomendando a restrição do uso da episiotomia para partos vaginais espontâneos, devendo ser utilizada apenas em casos excepcionais14. Outra prática comum que se caracteriza como violência física é a Manobra de Kristeller que "consiste em um profissional se colocar sobre a barriga da parturiente durante o trabalho expulsivo do parto e pressionar a barriga com movimentos que acarretem a expulsão do feto pelo canal vaginal"15. Esses são alguns exemplos de violências caracterizadas como violências obstétricas, as quais podem ser caracterizadas, como manifestação da violência de gênero. Deve-se destacar que no campo do Judiciário Brasileiro existem diversas demandas discutindo a ocorrência desses atos e as possíveis responsabilizações16. Nesse aspecto, destaca-se a pesquisa realizada por Taysa Schiocchet e Suéllyn Mattos de Aragão17 do que analisaram decisões judicias do sul do país e constataram diversas limitações na argumentação jurídica e na racionalidade, o que implica em uma insegurança e instabilidade ao sistema jurídica. Nesse cenário, percebe-se uma afetação negativa aos direitos das pacientes gestantes.  Violência de gênero  Segundo Silvia Pimentel, Ana Lúcia P. Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian18 "as relações de gênero ou relações sociais entre os sexos devem ser, pois, analisadas dentro de um complexo contexto de poder e violência, no qual se encontram inseridas". Para Fidalgo (2020, p. 11) a violência de gênero: [...] enquadra-se da mesma forma que toda e qualquer conduta que tem por base o gênero, que concorra para provocar, ou seja passível de, causar morte, dano ou sofrimento nos âmbitos: físico, sexual ou psicológico da mulher, tanto na esfera pública quanto na privada19.  Outrossim, Saffioti aponta que tal conceito "[...] pode ser compreendido como uma relação de poder e de dominação do homem e de submissão da mulher, refletindo a ordem patriarcal de gênero"20. Assim, diante de tais apontamentos sobre gênero, no que concerne à violência obstétrica, a prima facie aparenta que esta violência apenas atinge as mulheres, por serem aquelas que passam pelo processo gestacional, todavia, conforme anteriormente dito, também pode ser vítima o feto ou nascituro, contudo, o que busca-se evidenciar é em como os pais de gênero na sociedade e relações de poder, em vista de um passado histórico  patriarcal, influencial no tratamento dispensado às mulheres dentro do sistema de saúde, quando do período gestacional e puerpério. Garcia21 aponta que o feminino foi historicamente construído como sinônimo de submissão e docilidade, assim, ainda hoje essa ideologia ressoa no que é esperado das mulheres posturas ativas e protagonistas são rechaçadas com violência. No mais, é válido salientar que no momento do parto a mulher encontra-se totalmente vulnerável, diante de suas condições físicas. Garcia22 também ressalta que além da questão do feminino, por outro lado, os dados sobre o tema demonstram outros aspectos que influem na condição de vulnerabilidade e acabam por facilitar a violência, como a cor e a condição socioeconômica, sendo mais suscetíveis à violência obstétrica mulheres pretas, pardas e pobres. Outrossim, muitas vezes, a gestante se submete à vontade imposta pelo profissional da saúde, pelas razões histórico-sociais já exposta, mas também por haver, ali no ambiente institucional, uma relação hierárquica de poder, a qual não é desvinculada ao contexto já mencionado. [...] é possível verificar que no topo da relação hierárquica está o médico, o detentor de conhecimento técnico-científico, a maior autoridade sobre o corpo, a saúde, o cuidado e o tratamento do paciente. Na base, como representante hierárquico inferior, temos a gestante, cuja função única é a de seguir o que lhe é transmitido23.  Um dos pontos primordiais que se deve ter em mente quando se está relacionando a violência de gênero com a violência obstétrica é a questão da autonomia da mulher em relação ao seu próprio corpo. Siqueira24 (2021) entende que a autonomia, enquanto direito que permite a intervenção médica no corpo do paciente, depende da obtenção prévia do consentimento livre e informado, para que seja possível afastar o injusto. Ainda, a autora explica que não basta mera anuência para que a conduta médica seja regular, mas sim que a regularidade depende de uma série de pressupostos que visam garantir que a tomada de decisão da paciente seja livre. Deste modo, além de requisitos específicos que podem ser aplicados à situação, podemos verificar o consentimento por meio do conceito jurídico de autonomia da vontade, que deve ser livre de vícios como o erro, engano e coação. [...] especialmente no caso das intervenções médicas, do cumprimento do dever de esclarecimento, que impõe ao médico a obrigação de informar ao paciente todos os aspectos referentes ao diagnóstico, às alternativas, à evolução e aos riscos do tratamento. Nas hipóteses em que não houver condições fáticas para colher o consentimento ou informar suficientemente o paciente, poderá o médico recorrer ao consentimento presumido para legitimar sua atuação, sempre orientando-se pela vontade presumida do paciente25. (Siqueira, 2021).  Ressalva-se que, em que pese existência dessa autonomia, ela pode ser barrada em casos que houver um risco iminente de morte ou de lesão com potencial de afetar gravemente a qualidade de vida extrauterina do feto (como exemplo, uma lesão cerebral grave). Nessas condições, é e dever ser permitida a sobreposição da decisão médica sobre a da mulher, todavia, essa sobreposição deve ser justificada. Para não haver dúvidas acerca da manifestação de vontade da mulher, Assis e Camargo26 (2022, p. 436) asseveram que é recomendada a elaboração de um plano de parto, que se trata de "[...] um documento elaborado pela gestante e o seu médico desde o início do pré-natal, sendo complementado ao longo do período gestacional". Segundo Juvenal Borrielo, "é uma forma de comunicação entre a mulher, ou o casal, e os profissionais de saúde, incluindo obstetrizes e médicos que darão assistência durante o trabalho de parto"27. Entretanto, destaca-se que apesar do plano de parte ser uma ferramenta fundamental para o exercício da autonomia da gestante, não deve ser um obstáculo para impedir o obstetra a realizar procedimentos necessários e urgentes que sejam exigidos para a manutenção da vida dos envolvidos. O que se verifica é que o plano de parto é uma alternativa de facilitação da comunicação entre a paciente e o médico, bem como uma forma de consolidação da verdadeira manifestação de vontade, mas ainda assim, não é uma garantia de que não haverá a sobreposição arbitrária de interesses médicos e institucionais sobre as decisões da mulher, consolidado uma violência que é manifestadamente de gênero, visto que a principal vítima é a mulher. Conclusão Em conclusão a violência obstétrica representa uma violação flagrante dos direitos humanos, destacando-se especialmente como uma afronta aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Foi visto que, em que pese uma evolução histórica dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito internacional, no âmbito interno, ainda é corriqueira a violência obstétrica, não havendo normas federais que tratam sobre o assunto, de modo que há carência de um direito formal e material, bem como a carência de efetividade destes. Essa violência é institucionalizada e perpetuada por uma cultura que desvaloriza a autonomia e dignidade das gestantes e parturientes, sobrepondo-se à autonomia da mulher, sendo-lhe, muitas vezes, negado o consentimento informado e perpetrados procedimentos invasivos. O que se observa após o estudo, é que a violência obstétrica não apenas viola os direitos das mulheres, mas também perpetua desigualdades de gênero e contribui para a manutenção de um sistema de saúde que falha em garantir cuidados humanizados e respeitosos. Para enfrentar efetivamente esse problema, é crucial que sejam implementadas políticas e práticas que promovam o respeito à autonomia das mulheres, reconheçam sua capacidade de tomar decisões informadas, bem como uma mudança legislativa, através da criação de leis federais. No mais, para que de fato haja proteção, deve haver uma fiscalização dos ambientes hospitalares, haja vista o fato dessa violência ser institucionalizada. __________ 1 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 2 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 3 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 4 SIQUEIRA, Flávia. Violência na assistência ao parto e (des)respeito à autonomia da mulher: o tratamento penal das intervenções médicas arbitrárias em gestantes e parturientes. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 184. ano 29. p. 55-99. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 5 OLIVEIRA, Luaralica Gomes Souto Maior de. Violência obstétrica e direitos humanos dos pacientes. Monografia (Graduação). Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 6 VENEZUELA. Ley organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, n° 38668. Venezuela. 23 abr. 2007. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. Tradução nossa. 7 SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Direito Médico. 2. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. E-book. ISBN 9786559645565. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 8 SOUZA, op. Cit. 9 OLIVEIRA, Op.cit., p. 24 10 LANSKY, Sônia et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 2811-2824, ago. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 2815. 11 Apud ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; CAMARGO, Sarah Silveira. A humanização do parto e a conduta do obstetra. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 16, n. 46, p. 425-446, jan./jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 430. 12 SOUZA, op. Cit., p.248. 13 SOUZA, op. Cit., p.238. 14 SOUZA, op. Cit., p. 242 15 SOUZA, op. Cit., p. 242. 16 Como exemplo, vide a matéria do Portal Migalhas. 17 SCHIOCCHET, Taysa; ARAGÃO, Suéllyn Mattos de. Panorama jurisprudencial da violência obstétrica e análise discursiva das decisões judiciais do sul do Brasil. Revista Direito GV, v. 19, p. e2321, 2023. 18 KNIPPEL, Edson Luz; DIAS, Isabella de Antonio. O enquadramento da violência obstétrica como espécie de violência de gênero. Revista de Direito e Medicina. vol. 3. jul./set. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 19 FIDALGO, Amanda Cabral. Violência contra a mulher x violência de gênero e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos das mulheres. Revista Fórum de Ciências Criminais - RFCC, Belo Horizonte, ano 7, n. 14, p. 9-22, jul./dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 11 20 KNIPPEL; DIAS, op. Cit. 21 GARCIA, Anna Marcella Mendes. Violência obstétrica: uma barreira na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. In: MENDES, Denise Pinheiro Santos; MENDES, Giussepp; BACELAR, Jeferson Antonio Fernandes (Coords.). Magníficas mulheres: lutando e conquistando direitos. Belo Horizonte: Fórum, 2023. p. 65-72. ISBN 978-65-5518-488-4. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 22 GARCIA, op. Cit. 23 KNIPPEL; DIAS, op. Cit. 24 SIQUEIRA, op. Cit. 25 SIQUEIRA, op. Cit. 26 ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; CAMARGO, Sarah Silveira. A humanização do parto e a conduta do obstetra. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 16, n. 46, p. 425-446, jan./jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 27 Apud ASSIS; CAMARGO, op. Cit.
Em sua descrição de um laboratório fictício, Huxley já antevia, em meados da primeira metade do século XX, a realidade científica que o mundo se encontrava e suas perspectivas futuras. Tudo isso graças a todos os avanços e descobertas que ocorreram num curto intervalo de tempo, mais expressivamente no campo da Engenharia Genética.1 A verdade é que nos últimos anos a sociedade se deparou com avanços científicos pelas quais não se encontrava preparada para lidar com as possíveis consequências decorrentes de inovações tão futuristas, como a fecundação in vitro, a pesquisa com células-troncos embrionárias,2 os alimentos transgênicos (geneticamente modificados), a clonagem humana, além de tantas outras novas possibilidades e avanços científicos capazes de mudar a sociedade. No que se refere ao caso dos fetos anencéfalos, assunto polêmico que é inserido em um quadro de dúvidas e incertezas que nos remete a uma necessidade de um posicionamento jurídico. Num passado não muito distante era impossível sequer saber o sexo de um feto no estado intrauterino, porém com todos os estudos e os avanços no ramo da Fetologia (parte da Medicina que estuda a vida dos fetos). O diagnóstico da anencefalia é feito ainda na fase de desenvolvimento intrauterino no ventre materno. Caberá ao Direito, depois de uma análise criteriosa com o axuílio de ciências como a medicina e a biologia, estabelecer critérios que possibilitem abreviar o sofrimento da mãe que gestou uma criança, criando toda a expectativa da maternidade, que logo se transformará em tristeza e morte. Há, contudo, quem defenda a possibilidade e o direito à vida do feto anencéfalo,  assegurando assim o seu direito à vida conforme o posicionamento de Jutta Limbach, magistrada alemã que já ocupou o cargo de Presidente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha: A ciência do Direito não é competente para responder a questão de quando começa a vida humana, as ciências naturais, em virtude de seu conhecimento, não estão em condições de responder a questão sobre a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição.3 Ao longo dos séculos a luta pelos direitos humanos sempre foi ensejadora de grandes conflitos e causou bastante instabilidade nas sociedades na História da humanidade travadas ao longo dos séculos. As barbáries cometidas pelas sociedades nazistas e fascistas durante a segunda grande guerra, que assistiu inerte o massacre de milhões de civis nos campos de concentração em nomes das ideologias que dominavam determinados segmentos da sociedade alemã. Para Bobbio a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa um reconhecimento de um sistemas de valores positivados em virtude do consenso geral que se estabelece acerca da sua validade, assim expõe: A declaração universal representa um fato novo na história, na medida em que pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na terra.4 Contudo, o processo de universalização dos direitos do homem não começa com a Declaração de 1948. Bobbio esclarece que há pelo menos três fases que marcaram a conquista pelo universalismo: a primeira delas se caracteriza pelo surgimento de teorias filosóficas, de acordo com as quais o homem é detentor de direitos pela simples natureza humana que possui tida como ideia própria do jusnaturalismo; a segunda fase consiste no momento em que o direito se mostra mais concreto, positivando-se; enquanto que a terceira fase está marcada pela constituição da Declaração de 1948.5 Ao analisar a ideia de Direito Natural, enquanto produto da racionalidade humana, Bobbio entende que "este critério liga-se a uma concepção racionalista da ética, segundo a qual os deveres morais podem ser reconhecidos racionalmente, de um modo mais geral por uma concepção racionalista da filosofia".6 Um dos grandes precursores do Direito Natural na era moderna foi Hugo Grócio. Conhecido como o criador do Direito Internacional, Grócio entendia o Direito Natural como o depositário da justa razão, que um ato seria julgado moralmente bom ou ruim pela "natureza racional" do homem.7 No entanto, Bobbio apresenta John Locke como o precursor do jusnaturalismo moderno, para quem o estado civil não passa de uma criação a fim de convalidar os direitos de liberdade e igualdade que fazem parte dos direitos naturais do homem. A segunda fase caracteriza-se pela Era das Revoluções, principalmente a Revolução Francesa. A partir delas, os Estados passam a reconhecer os direitos dos homens, e então os subscrevem em documentos oficiais. Assim, tem-se a formação do sistema positivista de Direito.8 Norberto Bobbio entende que o Positivismo Jurídico pode apresentar duas teorias, quais sejam, o Juspositivismo em sentido estrito e o Juspositivismo em sentido amplo e se filia à segunda jurídica e a teoria da interpretação lógica ou mecanicista do Direito.9 Finalmente, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, inaugura-se a terceira fase, na qual os direitos são afirmados enquanto um sistema universal e positivo. A concepção universal se aplica ao fato de que os princípios por ela estabelecidos valem para todos os homens e não apenas aos pertencentes a uma nação específica, tampouco a um determinado credo religioso ou etnia.10 A partir de então, os direitos humanos em caráter universal não são somente reconhecidos, mas também efetivamente garantidos e protegidos , inclusive contra o próprio Estado que não cumprir. A luta pelo reconhecimento de direitos, continua e tem como um dos fundamentos a saúde da mulher que ganhou mais notoriedade com o movimento feminista em meados da década de 1970. Havia a necessidade da igualdade de gênero, visto que, culturalmente a mulher tinha sido rebaixada em todas as camadas das sociedades civilizadas à condição de cuidadora do lar, sendo incumbida a ela obrigação de perpetuar a prole. O marco inicial do movimento feminista foi pelos direitos a contracepção e ao aborto em países desenvolvidos. Somente em meados dos anos 1980 é que o governo brasileiro incluiu como metas de políticas públicas os movimentos sociais que vislumbravam direitos que anteriormente eram tidos como de esfera privada, passando assim a fazer parte da discussão pública. O Brasil como país signatário da ONU ratifica a Declaração Universal dos Direitos do Homem que dispõe em seu art.8 que: toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.11 De forma bem genérica os direitos sexuais abrangem muito mais que a simples igualdade de gêneros, como também a causa dos grupos formados por homoafetivos, buscando uma maior tolerância e aceitação pela sociedade, a fim de romper com antigos paradigmas obsoletos, que não mais tem na sociedade subsídios argumentativos que os sustentem; visto que a própria CF/88 em seu art. 5º caput e incisos subsequentes que: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros(...)". O direito como decorrência das primeiras garantias sexuais implicam agora a necessidade de políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Torna-se assim indispensável a necessidade do acesso à informação e a garantia a meios e recursos seguros de contracepção, bem como o direito a o acompanhamento da gestante em pré-natal seguro e o direito à educação. Apesar de não tão recente, os direitos reprodutivos só foram reconhecidos como direitos humanos em 1994 com a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, ratificada por 184 países. Porém, foi no ano seguinte, em 1995, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz realizada em Beijing, reafirma o mesmo posicionamento.12 Na Conferência de Beijing o problema do aborto é lembrado como questão de saúde pública a ser observada pelos governos. O Brasil  regulamenta o planejamento familiar na lei 9.263 de 12/1/96 e o Ministério da Saúde que propõe campanhas educativas de promoção à saúde da mulher. Nesse sentido, a legislação pátria incorpora os padrões internacionais no cuidado à saúde da sexual e reprodutiva tanto da mulher com do homem. Contudo, o aborto é a última consequência em um conglomerado de fatos aqui dispostos, sendo um problema de saúde pública no Brasil. A legislação pátria incorpora as determinações internacionais de cuidado à saúde reprodutiva e sexual da mulher e do homem. Isso porque, o governo se compromete mediante políticas sanitárias, disponibilizar métodos e acompanhar adequadamente a gravidez e o parto. Entende-se também como meio de acompanhamento a disponibilização de toda uma aparelhagem que venha a auxiliar o profissional de saúde para um melhor atendimento à saúde da gestante. O aborto é um problema mundial de saúde pública, cabendo ao poder público a instituição de medidas educativas que venham, a permitir que liberdade e autonomia reprodutiva de mulher sejam efetivamente assegurada, uma vez que esta compreende o planejamento de uma gravidez saudável e com o devido planejamento familiar que é assegurado pela Constituição do Brasil em seu art. 226, inciso VII que: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por partes de instituições oficiais ou privadas. Dessa maneira mais abrangente percebe-se que os objetivo maior da tutela de tais direitos visam assegurar uma dupla vertente. Ou seja, os direitos sexuais e reprodutivos implicam na necessidade de políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Torna-se assim essencial o direito à educação e o acesso à informação. Simone de Beavoir, um dos maiores ícones do movimento feminista, analisada por Wayne Morrison, para quem a filósofa está presa a aos critérios existencialistas de controle da própria existência, para ela, as mulheres vivem num estado de escravidão aos fatos biológicos da gravidez, do parto e da amamentação que não podem dar sentido a sua sua existência.13 Não há de se confundir ética com moral, isto porque a moral tem caráter prescritivo e normativo, uma vez que estabelece o conjunto de regras as quais um determinado grupo social deve seguir. A ética pode ser entendida também como a reflexão acerca do código definido pelas normas morais, compreendendo a relação do homem com os preceitos de conduta. A ética pode assim ser definida como Estudo filosófico dos valores morais e dos princípios ideais do comportamento humano.14 A ética discursiva tem por princípio básico a universalização, este princípio seria criado pormeio de um diálogo objetivo que todos podem reconhecer como norma moral universal. A ética da reciprocidade, por outro lado, é construída pela relação de dois sujeitos que buscam uma convivência digna, reconhecendo como norma moral universal. A ética da reciprocidade, é construída pela relação de dois sujeitos que buscam uma convivência digna, reconhecendo-a como duas existências de igual valor moral. A ética da justiça, assim como a discursiva surge de um consenso, a justiça pode ser entendida como princípio fundamental das estruturas sociais de uma sociedade bem ordenada.15 Na relação médico-paciente, aplicam-se os princípios básicos delimitados pela Bioética são os da autonomia do paciente, da não maleficência e da beneficência para o paciente. Portanto, cabe ao médico condutas que não  causem, mas, pelo contrário, promovam benefícios à sua saúde. Dispõe o art.37, do Código de Ética Médica que: é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de risco iminente de morte. 19 O princípio da beneficência (bonu facere) como a obrigatoriedade que tem o profissional de saúde em promover o bem ao paciente, baseado na relação de confiança que se estabelece. O princípio da não maleficência, por sua vez, também advindo da relação de confiabilidade implica em não infringir qualquer tipo de dano ao enfermo. Já o princípio da autonomia diz respeito à capacidade que tem a racionalidade humana de autogovernar-se.16 A Constituição Federal não reconhece nem exclui a titularidade de direitos fundamentais17. Esse silêncio normativo significa que deixou a critério do legislador ordinário a competência de decidir se e em qual medida o nascituro terá direitos fundamentais e como ocorrerá seu exercício. O exemplo mais relevante diz respeito à existência de um direito à vida. O aborto viola um direito fundamental do nascituro? A Constituição silencia sobre o assunto e esse silêncio é proposital. Diante das controvérsias políticas sobre a oportunidade de incluir no texto constitucional norma sobre o tema e havendo grupos que insistam na proibição. A interrupção da gravidez nos casos de fetos anencefálicos, analisada sob a ótica dos direitos humanos fundamentais, da Bioética e, sobretudo, do Biodireito,  conforme estabelecido na CF/88, ainda representa um significativo desafio para a efetivação dos direitos reprodutivos femininos. Embora o Judiciário pareça ter resolvido essa questão desde o ano de 2012 com o julgamento da ADPF 54, para milhares de mulheres brasileiras, a situação continua sendo uma experiência extremamente árdua. De fato, o mais importante é compreender os Direitos Humanos  Fundamentais de uma forma mais abrangente sem hierarquia. Isso porque todos os direitos estão de certa maneira consolidados e consagrados a todos os seres humanos. Não se pode esquecer que os direitos fundamentais não são imutáveis e que variam de acordo com a sociedade que os aplicam. Nos casos de gestação de fetos anencéfalos, não há de se falar em conflito de bens jurídicos a ser tutelados, pois existem duas situações distintas que ensejam a mesma conclusão: o feto que possui malformação grave do sistema nervoso central, falecendo no curso da gestação, ou ainda, em casos extremos de número ínfimo, pode vir a nascer com vida, perecendo em algumas horas ou dias depois. Pode se falar no direito à vida (quando há vida), questão polêmica que gera os mais calorosos debates, havendo diversas teorias sobre quando de fato começa a vida humana. Acredita-se contudo, no conceito de vida desenvolvido pela Medicina que assegura que, a vida humana começa por volta da 12 semana de gestação, período em que há a formação do sistema nervoso central, que é o grande responsável por todas as funções básicas do corpo humano, que vão desde a locomoção até a interação do homem com o próprio meio e com seus semelhantes. Se de fato e de direito a morte da pessoa natural é declarada com o fechamento do diagnóstico de morte encefálica22 , pode-se compreender também que a vida começa com o surgimento do sistema nervoso central.A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 2.378, aprovada em 21/3/24 e publicada em 3/4/24 limita a atuação de médicos a 22 semanas na prática do aborto legal, sendo assim, constatada mais uma grande violação aos Direitos Humanos, e ao Código Penal vigente no Brasil que não estabelece limite de tempo para a prática do aborto legal. Há um grave conflito legal uma vez que a lei não estabelece limites, não podendo uma resolução administrativa contrariar texto de lei, sendo uma clara violação de direitos travestida de legalidade. A Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei (CNE-VS) da Febrasgo, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia também publicou manifestação contrária ao conteúdo da resolução por violar regras internacionais de Direitos Humanos e o Código Penal vigente, sendo uma clara tentativa de inviabilizar o acesso aos meios legais do aborto a mulheres de mulheres brasileiras, incluindo os anencefálicos. Cabe aqui salientar que incubir ou, até mesmo obrigar uma gestante a terminar uma gestação de um feto anencefálico, cujo destino final é a morte, ou manter gravidez cuja prerrogativa é exclusiva da mulher induz a acreditar que o direito desconhece o instinto humano de conservação em todos os seus aspectos sejam eles ético, sociais, morais e até mesmo jurídicos. É preciso ficar bem claro que o que é proposto e defendido por este trabalho é o direito de escolha da mulher em decidir se quer ou não levar adiante uma gravidez de um feto anencefálico. É uma escolha que deve ser própria da mulher, e não da sociedade. Importante ressaltar que este trabalho não faz apologia ao aborto indiscriminadamente, mas sim ao direito que a mulher tem de escolher e de se privar de um sofrimento desnecessário para ela e para o feto, além de todos os riscos fisiológicos que a mulher sofre com a gravidez de um anencefálico. O Estado precisa ser cada vez mais laico e menos ideológico no que diz respeito às decisões e legislações sobre questões dessa natureza, é certo que não pode ser levado em consideração posicionamento isolados, de forma que a laicidade do Estado seja uma característica de uma sociedade livre e democrática e não mera função governamental. __________ 1 HUXLEY, Aldous, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1 ed. São Paulo: Ícone, 2011.p.05. 2 BRASIL.Adin. 3510 / DF - DISTRITO FEDERAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator (a): Min. AYRES BRITTO Julgamento: 29/05/2008 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. 3 LIMBACH JUTTA, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os Fetos Anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1/ed. São Paulo: Ícone: 2011.p 21. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p. 27. 5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p. 28. 6 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.p.23. 7 Idem.,p.20. 8 Idem.,p.65. 9 Idem.,pp.237- 238. 10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p.30. 11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Declaração de Direitos do Homem. Disponível em:Declaração Universal dos Direitos Humanos - UNESCO Digital Library. Acessado em 25/03/2024 às 00h31. 12 PIOVESAN, Flávia, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1 ed. São Paulo: Ícone: 2011.p 36. 13 BEAVOIR, Simone de. The Second Sex, apud, MORRISON, Wayne, Ano.2002.p. 591 -592. 14 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.p 509. 15 PEGORARO, Olinto, apud KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.p. 11- 12. 16 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Equilíbrio do Pêndulo- a Bioética e a Lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 42 -43. 17 O contrário é afirmado muitas vezes na doutrina. Cfr.Nunes jr. Em Araújo e Nunes jr, 2003, p.104 apud Teoria geral dos direitos fundamentais /Dimitri Dimoulis, Leonardo Martins. - 2. Ed. Rev.atual. e ampl.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2009. p .54.
Nas ações judiciais em Direito Médico e da Saúde, o esclarecimento dos fatos depende de conhecimentos científicos que o juízo não possui. Entra em cena, então, a ciência como meio de prova judicial, a prova científica. Na prática, isso significa a necessidade de produção de uma prova pericial, no mais das vezes, uma perícia médica judicial. O resultado dessa prova pericial, expresso no laudo pericial, pode influenciar diretamente na decisão. Existe uma certa deferência do juiz ao laudo, ele se utiliza dos conhecimentos apresentados pelo perito para decidir. Portanto, o laudo médico pericial desempenha um papel importante na formação do livre convencimento motivado do juiz. Frequentemente, a sentença reflete as conclusões científicas nele apresentadas. De tal forma que o êxito nessas ações está intimamente ligado ao resultado favorável da prova pericial, o qual, por sua vez, depende do convencimento do perito médico do juízo. As partes da ação buscam, por meio de argumentos científicos, persuadir o perito para que ele forme determinada convicção sobre os fatos. Nesse contexto, a elaboração de quesitos periciais desempenha um papel estratégico. Quesitos são perguntas direcionadas ao perito que ajudam a esclarecer os pontos controvertidos do caso e a delimitar o escopo da perícia. Eles são essenciais porque direcionam a análise do perito para os pontos-chaves do caso, facilitando, assim, a compreensão e a avaliação do juízo. Neste texto examino a importância estratégica dos quesitos periciais e aponto algumas práticas que podem auxiliar advogados a aprimorar suas técnicas de quesitação e a extrair o máximo desse instrumento processual. Faço um recorte para tratar dos quesitos periciais no processo civil. Conforme estabelecido no art. 473 do CPC, o laudo pericial deve incluir resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz e pelas partes, sejam quesitos iniciais, suplementares (artigo 469) ou de esclarecimento (artigo 477). Essa regra processual, no entanto, não consegue evitar um problema prático enfrentado pelas partes: a resposta "prejudicado". Esta resposta, além de não ser conclusiva, não oferece pistas que auxiliem na interpretação do seu significado dentro do contexto fático específico, o que, evidentemente, prejudica a capacidade de argumentação das partes. Quando o perito médico utiliza as expressões "prejudicado" ou "não se aplica" como resposta a um quesito pericial isso significa que ele não conseguiu oferecer uma resposta direta a esse quesito. Essa situação pode ocorrer por diversas razões. Destacarei aqui algumas que estão sob controle de quem formula o quesito: Ausência de informações essenciais para a análise: ocorre quando a resposta ao quesito depende de dados que não constam nos autos (problema de instrução), não existem na ciência médica (Medicina Baseada em Evidências) ou que só poderiam ser conhecidos caso o perito tivesse presenciado os fatos. Falta de clareza ou coerência textual (quesitos confusos): ocorre quando o quesito não é claro e sua mensagem se torna incompreensível. Ou seja, quando o perito sequer consegue entender o que lhe foi perguntado. Limitações da perícia: ocorre quando o quesito ultrapassa os limites de designação do perito ou refoge ao escopo da perícia. Por exemplo, quando o quesito adentra o campo do Direito, que está fora da área de expertise do perito médico. Impossibilidade fática de conclusões definitivas: ocorre quando o perito não consegue chegar a conclusões definitivas sobre determinados pontos controversos do caso devido à falta de evidências conclusivas, à limitações da ciência médica ou à dependência de interpretação subjetiva de evidências contraditórias. Para tratar da função estratégica dos quesitos periciais, parto de duas premissas. Em primeiro lugar, os quesitos asseguram que o perito analise as principais teses e evidências do caso. De modo geral, não há mecanismo para assegurar que determinada tese ou evidência foi localizada, examinada e valorada pelo perito. Mas se essa tese ou evidência é inserida nos quesitos, cria-se uma garantia, tendo em vista que a resposta aos quesitos é obrigatória por força de lei. Os quesitos funcionam, portanto, como um controle poderoso sobre a atividade pericial. Em segundo lugar, os quesitos representam o desfecho de um encadeamento de atos processuais de interesse médico-legal. Para ilustrar, utilizo um exemplo concreto. Em uma ação de responsabilidade médica há, inicialmente, uma instrução técnica pré-processual. Em seguida, há uma Análise Técnica de Viabilidade para verificar se as teses aventadas possuem base científica. Na sequência, as teses de maior nível de evidência são selecionadas e inseridas na ação. Somente após esses atos é que as partes indicam médico assistente técnico e apresentam os quesitos periciais. Ou seja, muito antes de apresentar os quesitos as partes precisam ter em mãos teses científicas fortes. São essas teses que darão sustentação aos quesitos. Figura 1: Etapas que precedem a apresentação dos quesitos periciais. Os quesitos desempenham funções fundamentais na ação judicial, incluindo: Simplificar e objetivar teses longas e complexas. Esclarecer se as partes estão ou não embasadas em evidências científicas. Organizar as linhas argumentativas das partes, sobretudo em casos em que as peças anteriores não são claras. Destacar as controvérsias técnico-científicas do caso. Destacar as principais teses e evidências apresentadas pelas partes. Proporcionar às partes a última oportunidade de convencer o perito antes que ele forme sua primeira convicção sobre o caso. Veja esse exemplo. Quesito genérico: Os protocolos médicos foram observados? Quesito estratégico: Conforme estudos científicos de elevado nível de evidência (Medicina Baseada em Evidências), os protocolos médicos aplicáveis ao caso são X e Y? Em caso positivo ou negativo, explicar. Conforme os registros das fichas de descrição cirúrgica dos prontuários médicos do caso, os protocolos X e Y foram observados pelos profissionais que prestaram os atendimentos? Em caso positivo ou negativo, explicar. Note-se que, ao reformular o quesito de maneira técnica e específica, a parte consegue direcionar a atenção do perito para as suas teses, influenciar sua análise e fortalecer seus argumentos. Isso implica em mudança de uma abordagem passiva para uma abordagem ativa no processo pericial. Essas alterações transmitem uma mensagem clara ao perito: a parte que apresenta esse quesito possui um conhecimento detalhado dos fatos, está familiarizada com as normas técnicas pertinentes e conhece o resultado da comparação entre ambos (fatos x padrões aceitos pela ciência médica). Além disso, quesitos sofisticados reduzem a necessidade de formulação de quesitos de esclarecimento e de impugnação ao laudo pericial. De que forma, então, as partes podem formular quesitos periciais que reduzam a incidência de respostas "prejudicadas" e sejam capazes de convencer o perito médico nas ações em Direito Médico e da Saúde? 1. Tenha clareza sobre as suas teses científicas É crucial compreender que, na perícia médica judicial, o foco está nas teses científicas, não nas teses jurídicas. O perito quer saber quais teses científicas estão dando sustentação às teses jurídicas. É impossível formular quesitos periciais que convencem se você não possui teses científicas fortes. 2. Não apresente quesitos genéricos Os quesitos genéricos, comumente utilizados de forma repetida em diferentes ações, representam um grande risco para as partes. Além de não contribuírem para comprovar as teses defendidas, podem direcionar o debate para pontos que são contrários a elas. 3. Não apresente quesitos que não se conectam com as suas teses Quesitos como "qual o diagnóstico?" ou "qual o tratamento?" não ajudam as partes a provarem as suas teses. Do ponto de vista estratégico, os quesitos não são o melhor instrumento para se esclarecer dúvidas que poderiam ser facilmente esclarecidas de outra forma, com uma consulta aos documentos médicos do caso, por exemplo. Os quesitos devem guiar o perito para que ele percorra as linhas argumentativas das partes, passando pelas principais teses e evidências. Após tomar ciência dessas linhas, o perito determina qual tem maior probabilidade de ser verdadeira e estar em conformidade com a ciência médica (verossimilhança e correspondência). 4. Não pergunte a opinião do perito, pergunte a "opinião" da Medicina Baseada em Evidências O perito é nomeado pelo juízo como um preposto da ciência médica, está incumbido de apresentar, de forma acessível ao juízo e às partes, o entendimento da ciência médica sobre os fatos controversos em questão. A partir da utilização da pirâmide de evidências as partes conseguem reduzir a subjetividade e a discricionariedade nas respostas dos quesitos.  5. Seja claro e direto Se o texto do quesito é confuso, há uma grande probabilidade de ele não ser compreendido. E se não é compreendido, dificilmente será respondido de forma satisfatória. Quanto mais longo é o quesito, maior a chance de ele se tornar truncado. Caso a questão aborde um assunto complexo e impossível de ser tratado de forma concisa, é preferível dividir quesitos extensos em dois ou mais quesitos menores para garantir clareza na comunicação. 6. Quesite comparando e contrastando Nas ações judiciais envolvendo Direito Médico e da Saúde a análise médico pericial crucial baseia-se na comparação dos fatos (registros dos prontuários médicos e demais documentos de interesse médico-legal) com os padrões técnicos estabelecidos pela ciência médica (Medicina Baseada em Evidências). Esse é o quebra-cabeça que será montado pelo perito. Quando as partes apresentam essa análise comparativa nos quesitos, ou seja, quando apresentam o quebra-cabeça já montado, isso gera um efeito de persuasão no perito, pois ele consegue rapidamente compreender a estrutura do caso. 7. Utilize elementos visuais para destacar as suas principais evidências Os quesitos são uma ferramenta valiosa para as partes destacarem de forma objetiva os elementos essenciais de sua argumentação: suas teses científicas e suas evidências científicas. Ao ancorar os quesitos nesses pontos e ao empregar recursos visuais para apresentá-los, as partes favorecem a compreensão dos fatos pelo perito, tornando-a rápida e acessível. 8. Inclua a frase "em caso de resposta prejudicada, esclareça o motivo" Se todas as estratégias anteriores não surtirem efeito, as partes podem assegurar que a resposta "prejudicada" venha acompanhada de explicações sobre a sua causa. Isso permitirá reformular o quesito para uma nova apresentação (quesitos de esclarecimento), recuperando assim as chances de provar as teses e de convencer o perito. Investir tempo e esforço na elaboração de quesitos periciais sofisticados pode ser crucial para determinar se um laudo pericial será favorável ou desfavorável. Quando as partes são representadas por advogados que dominam técnicas de quesitação estratégica, elas possuem maior capacidade de influenciar o resultado da perícia por meio da apresentação de subsídios científicos ao perito médico. O êxito nas ações em Direito Médico e da Saúde passa pelo êxito na perícia médica judicial. E a utilização de quesitos que convencem e convertem emerge como uma ferramenta fundamental para as partes alcançarem esse objetivo. 
Com grande satisfação, inauguramos a coluna "Migalhas de Direito Médico e Bioética" de 2024, marcando a primeira edição sob a coordenação de membros da Diretoria do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN) - Direito Médico e da Saúde, Miguel Kfouri Neto, Rafaella Nogaroli, Fernanda Schaefer, Igor Mascarenhas e Wendell Lopes. Entrando no nosso terceiro ano de publicações, permanecemos firmes em nossa missão de oferecer estudos aprofundados e reflexões criteriosas sobre os temas mais prementes e relevantes no campo do Direito Médico e da Bioética. Comprometemo-nos a trazer análises, discussões atuais sobre legislação, inovações no setor da saúde, além das mais recentes decisões judiciais que impactam a prática médica e os direitos dos pacientes. Esperamos que nossos leitores encontrem valor e insights significativos em cada artigo, contribuindo, assim, para a evolução do conhecimento jurídico neste campo vital. Dito isso, passamos a tratar da temática proposta para este artigo. Quando ocorre um evento adverso em saúde, a fim de aferir a culpa médica, há um ecossistema de responsabilidade civil na atividade médica, que precisa ser especialmente ponderado. A causa eficiente do dano sofrido pelo paciente deve ser analisada sob três perspectivas: serviços essencialmente médicos, paramédicos ou extra médicos. Todavia, nota-se frequente divergência e confusão na doutrina e jurisprudência pátrias quanto à compreensão destes aspectos e de que maneira repercutem sobre a natureza da responsabilidade civil objetiva ou subjetiva. Exemplo desse embate jurídico é o Enunciado n. 460 da V Jornada de Direito Civil: "a responsabilidade subjetiva do profissional da área da saúde, nos termos do art. 951 do Código Civil e do art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, não afasta a sua responsabilidade objetiva pelo fato da coisa da qual tem a guarda, em caso de uso de aparelhos ou instrumentos que, por eventual disfunção, venham a causar danos a pacientes, sem prejuízo do direito regressivo do profissional em relação ao fornecedor do aparelho e sem prejuízo da ação direta do paciente, na condição de consumidor, contra tal fornecedor". Contudo, qualquer extensão do escopo de responsabilidade do médico na direção da responsabilidade do produto não leva em consideração a divisão legal entre responsabilidade de segurança relacionada ao produto em si, por um lado, e responsabilidade médica relacionada ao tratamento. Não se pode perder de vista a natureza sui generis da atividade médica, que é essencialmente pautada na álea terapêutica e qualquer tentativa de objetivação da responsabilidade do profissional da Medicina desvirtuaria - e até inviabilizaria - os seus pilares de atuação. Por isso, discordamos sobre a possibilidade de atribuir natureza objetiva à responsabilidade do médico que utiliza um equipamento de saúde, nos termos a seguir ponderados. Partindo-se da hipótese de uma relação de consumo entre médico e paciente, com o atendimento/tratamento realizado de modo particular e em hospital privado, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu de: "a) serviço essencialmente médico: ocorre quando o dano sofrido está ligado, em nexo causal, a uma conduta médica; o evento danoso decorre diretamente de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da Medicina, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. A responsabilidade médica é subjetiva, calcada na culpa (negligência, imprudência e imperícia), nos termos dos artigos 927 e 951, ambos do CC, e do art. 14, §4º, do CDC. A culpa médica consiste no desvio do padrão de conduta compatível com os códigos e protocolos prescritos para a atividade médica. b) serviço paramédico: ocorre quando o dano advém da falha na atuação da enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores, sob as ordens do médico. Por exemplo, há dano ocasionado por um serviço paramédico quando o evento lesivo decorre de questões relacionadas à esterilização de equipamentos médicos, colocação de gesso em membro fraturado, administração de medicamentos, aplicação de injeções, exames radiológicos, curativos, controle de pressão arterial e temperatura etc. Eventuais lesões sofridas pelos pacientes, advindas da má prestação desses serviços, subordinam-se às regras do CDC. Assim, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC. c) serviço extramédico: ocorre quando o dano resulta de serviços de alojamento, alimentação, conforto das instalações, deslocamento do doente nas dependências do hospital, manutenção e funcionamento regular dos equipamentos. Estes serviços são desempenhados por pessoal auxiliar, sob as ordens da administração do hospital. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC.  Além disso, quando for reconhecida a culpa do médico, responde solidariamente o hospital (artigos 932, inc. III, 933 e art. 942, parágrafo único, todos do CC), desde que haja vínculo de emprego ou preposição. Trata-se da chamada "Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada"1, 2pois o nosocômio responde objetivamente pelos danos causados ao paciente desde que previamente seja demonstrada a culpa profissional"3. Dessa forma, na hipótese de uma cirurgia robótica realizada em hospital particular, o dano pode ser relacionado tanto à culpa médica (imperícia pela falta de treinamento adequado com o robô, por ex), quanto à falha do serviço de apoio e de enfermagem (incorreta regulagem do robô, por ex.) ou, ainda, deficiência do serviço de hotelaria hospitalar (manutenção do equipamento em desconformidade com indicações do fabricante, por ex.). Na primeira hipótese, a responsabilidade médica é subjetiva; nas outras duas, a responsabilidade hospitalar é objetiva. O cenário jurídico brasileiro aponta que há bastante confusão no correto trato sobre a maneira pela qual deve ser avaliada a responsabilidade do hospital em caso de um ato essencialmente médico. Nem sempre fica clara a necessidade de uma fase prévia de aferição da culpa médica, para só então determinar a responsabilidade da entidade nosocomial. Além disso, com o implemento cada vez mais frequente de sistemas decisionais baseados em inteligência artificial e equipamentos de saúde de alta tecnologia, a determinação da causa eficiente do dano se torna uma tarefa ainda mais complexa, tendo em vista a possibilidade de falta de transparência algorítmica nos processos decisórios, além dos diversos agentes envolvidos: médicos, enfermeiros, entidade hospitalar, fabricante e distribuidor do produto. Nesse cenário, em boa hora chega a proposta de reforma do Código Civil (Lei 10.406/2022), resultante do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal, presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão (STJ). Para o propósito do presente estudo, destaca-se a atualização do art. 951 do CC, por meio da inserção de três parágrafos (vide quadro comparativo em nota de fim)4. Esse acréscimo esclarece pontos importantes a respeito do ecossistema da responsabilidade civil em eventos adversos de saúde (elucidação quanto à aplicação da responsabilidade objetiva do profissional da área da saúde; responsabilidade objetiva da entidade detentora de vínculo empregatício com o profissional que tenha culpa reconhecida; aplicação da legislação em caso de lesão ou morte resultante de uso ou falha de equipamento de saúde; responsabilidade solidária entre fabricantes e demais instituições envolvidas na administração dos aparelhos). O §1º discorre sobre a maneira de aplicação da Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada no contexto de um dano resultante de ato essencialmente médico: "§1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade com a qual possua algum vínculo de emprego ou de preposição, responde objetivamente pelos danos por ele causados". Já o §2º aborda a responsabilidade civil decorrente da falha em um serviço extra médico: "§2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de falha de equipamentos de manuseio médico-hospitalar, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, para que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na adoção, utilização ou administração desses aparelhos respondam objetiva e solidariamente pelos danos causados". Observa-se que a Relatoria-Geral da Comissão de Juristas realizou uma supressão da redação final do §2º, que tinha constava no texto proposto pela Subcomissão de Responsabilidade Civil: "(...) excluída a responsabilidade do profissional liberal, desde que respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente". Optou-se por inserir um último parágrafo ao artigo 951, para tratar especificamente da exclusão da responsabilidade médica quando o dano decorre de um serviço extra médico, tal como uma falha em equipamentos de manuseio médico-hospitalar: "§3º./ Nas hipóteses do parágrafo anterior, fica excluída a responsabilidade do profissional liberal, quando chamado em regresso pelo responsável e não ficar demonstrada a sua culpa por lesão ou morte". O grande problema na supressão da redação final do §2º - exclusão da responsabilidade médica desde que "respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente" - é a possibilidade de abrir margem interpretativa no sentido de que o profissional não pode ser responsabilizado quando há falha em um equipamento - salvo se provada a culpa direta pelo dano -, mesmo quando neste cenário ele tiver violado algum dever de conduta. É essencial compreender que, em paralelo ao dever de o médico seguir uma conduta diligente, de acordo com a leges artis da profissão, há deveres de conduta decorrentes da boa-fé - ex.: informação e esclarecimento, lealdade e cooperação, proteção, cuidado e vigilância, atualização etc. - que permeiam a relação médico-paciente e são especialmente relevantes quando envolvidos sistemas decisionais e equipamentos médicos. O médico não deve ser responsabilizado se um sistema decisional automatizado ou equipamento de saúde causa danos porque possui um defeito ou é impróprio para o uso, quando isto é impossível de ser verificado pelo próprio profissional ou outro membro da equipe médica. Contudo, o profissional pode eventualmente violar um dever de vigilância se, dentro da sua concreta possibilidade, perceber que um dispositivo médico, com o passar do tempo, passou a apresentar alguma falha e reiteradamente ocasiona danos aos seus pacientes. Como exemplo, há o famoso episódio com os equipamentos de radioterapia com Cobalto-60, ocorrido entre 2000 e 2001 no Instituto Oncológico Nacional do Panamá. Cerca de 20 pacientes foram lesionados e 5 morreram após receber excesso de radiação, que não possuía manutenção e supervisão clínica adequadas - e mesmo cientes disso, alguns médicos permaneceram por alguns meses utilizando o equipamento. No caso de sistemas de inteligência artificial, há estudos que atestam elevado grau de falibilidade em algumas tecnologias utilizadas na área médica, além dos problemas de opacidade ou falta de transparência na tomada de decisões automatizadas. Em 2018, noticiou-se o problema de que o sistema decisional automatizado Watson for Oncology, utilizado para apoiar as decisões clínicas em oncologia, estava frequentemente indicando tratamentos inseguros e flagrantemente incorretos para pacientes oncológicos. O médico, agindo com boa-fé, tem uma espécie de dever de vigilância quanto ao acompanhamento do quadro clínico do enfermo e, dentro das suas concretas possibilidades, também em relação ao arcabouço tecnológico que utiliza nos cuidados de saúde5 .Isto advém da relação da natureza existencial do contrato e da especial confiança que há entre o médico e o paciente, buscando zelar por sua saúde com dignidade e prudência. Em tais situações, o equipamento médico não substitui o profissional, de modo que eventual falha no processo decisional é, na verdade, do próprio profissional, na medida em que a tecnologia serve como um suporte, jamais como um elemento de supressão da autonomia médica. Inclusive, toda essa lógica se alinha à nova sistemática proposta com a reforma do CC, para que às regras de responsabilidade civil se apliquem as funções preventiva, punitiva, e reparatória de danos (art. 926-A). Nessa linha, destaca-se, ainda, a previsão do artigo 926-B: "toda pessoa tem o dever de adotar, de boa-fé e de acordo com as circunstâncias, medidas ao seu alcance para evitar a ocorrência de danos previsíveis que lhe seriam imputáveis, mitigar a sua extensão e não agravar o dano, caso este já tenha ocorrido." Vale ressaltar que o padrão de diligência na conduta do profissional sofre modulação, por meio da aplicação da já mencionada "Teoria da Alteração das Circunstâncias" no contexto sanitário: "as circunstâncias da atividade médica têm sido sensivelmente modificadas com o implemento de sistemas decisionais automatizados, razão pela qual os deveres de conduta profissional decorrentes da boa-fé objetiva devem ser ressignificados periodicamente, a partir da nova realidade posta à prática médica com o novo arcabouço tecnológico"6. Além disso, alguns expoentes na doutrina pátria, como Faleiros Júnior e Rosenvald, que defendem uma função promocional da responsabilidade civil7 e, nessa linha, quando ocorre um evento adverso envolvendo IA, deve-se constatar, por exemplo, se o médico e/ou hospital investiu em compliance e regras de boas práticas - seguindo princípios éticos e deveres de conduta decorrentes da boa-fé, com monitoramento constante da tecnologia - razão pela qual poder-se-ia cogitar a possibilidade de redução equitativa da indenização, a partir da incidência do art. 944, parágrafo único, do CC ("se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização"). Ou seja, essa "sanção premial" reflete-se na função promocional da responsabilidade civil, no intuito de encorajar comportamento meritórios. Inclusive, a respeito dessa exceção ao princípio da reparação integral, no relatório da Subcomissão de Responsabilidade Civil para reforma do CC, sugeriu-se a modificação desse dispositivo legal, estendendo a possibilidade de redução equitativa por parte do magistrado para hipóteses nas quais a responsabilidade seja objetiva - entendimento que já vinha sendo adotado por parte da doutrina. Confira-se: "§1º Se houver excessiva desproporção entre a conduta praticada pelo agente e a extensão do dano dela decorrente, segundo os ditames da boa-fé, ou se a indenização prevista neste artigo privar do necessário o ofensor ou as pessoa/s que dele dependem, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização, inclusive em casos de responsabilidade objetiva." Seguindo o entendimento dos juristas responsáveis por essa proposta de atualização - e aqui destacamos Nelson Rosenvald -, a responsabilidade civil no século XXI deve expandir os seus limites, pois além de oferecer compensação, impor punições e prevenir danos, ela também precisa ficar estrategicamente orientada a premiar atitudes e ações positivas de indivíduos e organizações. Caberá ao agente que agiu de maneira culposa, ou desempenhou uma função com riscos inatos, provar que o seu agir foi diligente, em conformidade com a boa-fé. Atualmente, o papel do Direito transcende a simples proteção de interesses mediante a supressão de atos proibidos, fortalecendo, em vez disso, a criação de um ambiente jurídico que não só tutela, mas também incentiva a adoção de determinados valores. Nesse novo horizonte, o Direito Médico deve se posicionar como uma ponte para o encontro entre a rigidez das normas e a fluidez das transformações sociais. __________ 1 Sobre a Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada, destaca a doutrina: "(...) Diante das demandas ajuizadas em face de erros médicos, em que figurarem no polo passivo o médico e o hospital, para que possa se exigir a responsabilização do último será necessário antes comprovar a culpa do profissional médico. Continua a existir a responsabilidade subjetiva para os médicos e objetiva para os nosocômios, contudo, em relação à última, trata-se de uma responsabilidade objetiva diferenciada, haja vista não ser suficiente a existência de um ato, comprovação do dano e do nexo causal" (BARBOSA, Ana Beatriz Nóbrega; MASCARENHAS, Igor de Lucena. Responsabilidade hospitalar por erro médico: a necessidade da comprovação da culpa em razão da aplicação da Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra, DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 147-158.). 2 Segundo a jurisprudência majoritária do STJ, quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional; nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil. Neste sentido, cf.: STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.832.371/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22 jun. 2021). 3 Trechos retirados (com adaptações) da obra NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 136-145. 4  Redação Atual CC/02 Redação Proposta pela Subcomissão de Resp. Civil Redação da Relatoria-Geral Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. Art. 955. O disposto nos arts. 952, 953 e 954 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, a partir dos protocolos ou técnicas reconhecidas ou adotadas, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. §1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade na qual possua alguma forma de vínculo empregatício ou de preposição responde objetivamente pelos danos causados em decorrência do ato profissional. §2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de uso ou falha de equipamento de saúde, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, estabelecendo que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na prescrição, utilização ou administração desses aparelhos responderão solidariamente pelos danos causados, excluída a responsabilidade do profissional liberal, desde que respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente. Art. 951. O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, em conformidade com protocolos, técnicas reconhecidas ou adotadas pela profissão, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho. §1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade com a qual possua algum vínculo de emprego ou de preposição, responde objetivamente pelos danos por ele causados. §2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de falha de equipamentos de manuseio médico-hospitalar, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, para que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na adoção, utilização ou administração desses aparelhos respondam objetiva e solidariamente pelos danos causados. §3º. Nas hipóteses do parágrafo anterior, fica excluída a responsabilidade do profissional liberal, quando chamado em regresso pelo responsável e não ficar demonstrada a sua culpa por lesão ou morte. 5 Para maiores reflexões sobre todos os deveres de conduta médica em sistemas decisionais automatizados e equipamentos de saúde, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, passim. 6 NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 126-127; 262-263; 282-289. 7 Trata-se de ideia defendida por Rosenvald e Faleiros Jr. no contexto da Lei Geral de Proteção de Dados (ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 771-807).
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Adeus 2023! Novas tecnologias e equidade em saúde

2023 está chegando ao fim e quantas novidades acompanhamos ao longo deste ano! Se entre 2020 e 2022 muito discutimos sobre os desafios da pandemia (Covid-19), 2023 foi um ano de retomada da diversidade de assuntos, muitos marcados pelo alto grau de incertezas e tantos outros identificados pelas renovadas esperanças em tratamentos e cuidados de saúde. No campo da reprodução humana assistida continuamos sendo desafiados agora com a divulgação dos primeiros embriões sintéticos não humanos (embrioides) que se desenvolveram em um útero artificial; a criação de embriões humanos a partir de células-tronco; pelo nascimento do primeiro bebê gerado em um útero transplantado (em cirurgia robótica e fora de um ensaio clínico); pelo nascimento do bebê com DNA de três pessoas (a partir do uso da técnica de Tratamento de Doação Mitocondrial); pelo nascimento de bebê gestado por duas mulheres. Chegamos à marca mundial de 10 milhões de pessoas nascidas em 45 anos de fertilização in vitro (sem contar a enorme quantidade de embriões congelados); o turismo do parto e da reprodução assistida (em especial a busca pela maternidade de substituição) se intensificou; empresas já acenam a possibilidade de fertilizar embriões no espaço. Enquanto as técnicas avançam, o Brasil não consegue tirar do papel nenhum projeto de lei sobre o tema, permanecendo regulado por softs laws que não dão minimamente conta da complexidade jurídica da matéria. Mas não é só o início de vida que apresenta novidades. Os questionamentos também se manifestam nas questões referentes à terminalidade de vida. Culturalmente, brasileiros se recusam a reconhecer a finitude humana como algo indissociável da vida e acabam criando grandes expectativas quando acompanham notícias como a do bilionário americano que gasta milhões de dólares em tratamentos que visam o rejuvenescimento; ou quando bilionários (como Elon Musk, Jeff Bezos e Peter Thiel) investem verdadeiras fortunas em empresas de biotecnologia que têm como principal objetivo a busca da imortalidade. A Neuralink (de Musk) obteve autorização da FDA para testar seus chips neurais em seres humanos, que com os implantes seriam capazes de controlar dispositivos externos com o pensamento. Já a Altos Labs (de Bezos) está desenvolvendo técnicas de reprogramação celular para combater doenças e expandir expectativa de vida. Thiel vem investindo em pesquisas e serviços de criogenia que apresentam como promessas salvar e prolongar a vida, o que desafiaria, juridicamente, o próprio conceito biológico de morte. Se não bastassem os altos investimentos na busca da perpetuação da vida, outros debates importantes ganham novos espaços. Discute-se se a obstinação terapêutica seria um direito do paciente (ou dos pais, quando se refere de crianças como no recente caso da bebê inglesa Indi Gregory), ou se deve haver limites às intervenções médicas, consideradas inúteis ou fúteis. Se de fato não é possível afirmar a obstinação terapêutica como direito, com os cuidados paliativos não há dúvidas: são direitos do paciente (tanto no setor público, quanto no privado). No entanto, assim como nas questões referentes ao início da vida, o legislador brasileiro nega-se a avançar em atos normativos referentes à terminalidade. O conceito de morte biológica para fins de tipos penais (como homicídio) distancia-se do conceito de saúde (adotado pela OMS) e, portanto, das novas concepções a respeito do fim da vida. A legislação ainda se prende ao enterro como regra, aceitando a cremação com normas restritivas e desconhecendo outras formas de dar fim ao corpo humano que talvez atendam mais aos valores do morto e, até mesmo, a importantes questões ambientais. A Inteligência Artificial ganha cada vez mais espaços na Medicina. Anunciou-se uma nova mão biônica que se funde aos ossos, nervos e músculos do usuário e é capaz de entender comandos, permitindo gestos mais precisos, o que com certeza amplia as fronteiras do transumanismo. No entanto, com a popularização de softwares como o ChatGPT intensificaram-se os debates sobre a utilização da Inteligência Artificial na Medicina; a necessidade do uso de tecnologias assistivas na adoção e uso de dispositivos médicos; a proteção de dados de saúde coletados por esses sistemas. A Medicina de Precisão avança, não só no que se refere à personalização de medicamentos, mas também quanto ao tratamento certo e ao momento oportuno de acesso (o que continua sendo uma grande barreira, em especial para os pacientes oncológicos e com doenças raras e ultrarraras). A genômica avança, ao ponto do Reino Unido autorizar o primeiro tratamento com edição genética (uso da CRISPR) para a Doença Falciforme e a Beta-Talassemia. A genômica também está por trás da pesquisa que resultou em cinco pacientes com HIV curados a partir de transplantes com células-tronco geneticamente modificadas para resistir ao vírus. Anunciou-se o fim do sequenciamento genético completo do cromossomo Y, o que pode levar a novas descobertas sobre suas funções. Pela primeira vez cientistas anunciaram sucesso no cultivo de células de rim humano em um embrião de outro animal, o que intensifica as promessas de xenotransplantes. Mas é claro que nem tudo são flores. As tecnologias, sem dúvida, fascinam e trazem esperanças renovadas à Medicina. É nesse cenário de promessas e esperanças, de transformações profundas, de busca pela realização do direito à saúde que para além do princípio da responsabilidade, precisamos falar também no princípio da precaução que não se preocupa em apenas evitar danos conhecidos e esperados (prevenção), mas busca impedir ou limitar comportamentos que, em razão do atual estado do conhecimento e da ciência, representam mais uma possibilidade de dano, do que uma certeza benéfica. No entanto, para além dos desafios trazidos pelas tecnologias em si, com elas alguns dilemas parecem se aprofundar e, talvez, o principal deles, seja como garantir o acesso e a equidade em saúde. Os medicamentos e tratamentos cada vez mais caros provocam discussões não só sobre qual deve ser o custo de um fármaco ou dispositivo, mas também o que deve ser custeado pelo Estado e por operadoras de saúde (podemos colocar preço na vida?). Transtornos de saúde mental se agravam e as políticas públicas não parecem avançar. A assistência básica à saúde ainda possui gargalos importantes que acabam levando ao agravamento de saúde e, por consequência, à busca da assistência especializada (muito mais cara e nem sempre eficaz). Mesmo com tantas tecnologias, acabamos nos esquecendo do básico! Não investimos em letramento em saúde! Importante abordagem para a boa saúde e bem-estar, que auxilia na informação e torna as comunidades aptas a adotar um estilo de vida mais equilibrado (de acordo com as suas próprias realidades), a tomar decisões autônomas e, principalmente, a questionar as diferentes notícias sobre ações e serviços de saúde que nem sempre possuem conteúdo verdadeiro ou útil. A alfabetização em saúde é instrumento que auxilia a capacitar as pessoas para cuidar e se responsabilizar pela própria saúde e pela saúde coletiva, prevenindo doenças, impedindo agravamentos e fazendo escolhas mais saudáveis. É também ferramenta que permite que usuários conheçam seus direitos, o sistema de saúde e as ações e serviços que estão à sua disposição. Por tudo isso, talvez possamos afirmar que a crise dos sistemas de saúde (público e privado) evidenciam-se pelo seu alto custo, baixa resolutividade e insignificante impacto social, devendo se agravar nos próximos anos não só pela pressão das novas e caras tecnologias, mas especialmente porque a expectativa de vida aumentou substancialmente e, com ela, estão sendo alteradas as principais causas de adoecimento e morte. De fato, o que aqui quero registrar, é que por mais fascinantes que sejam as novas tecnologias, é preciso antes delas (ou com elas) se lançe um olhar mais cuidadoso para as determinantes de saúde, porque essas sim impactam substancialmente os sistemas de saúde. A ideia de igualdade, constante no art. 196, da Constituição Federal e no art. 7º., IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90), revela que o sistema de saúde não se realiza apenas na ideia de assistência, mas sim, no conjunto de condicionantes e determinantes de saúde que têm reflexo imediato na qualidade de vida. É de equidade que estamos tratando, que pensada a partir de seus múltiplos conceitos, garante que todas as pessoas tenham oportunidades justas para atingir seu potencial de saúde e isso, por óbvio, não vai ser atingido se a opção for investir fortunas em tecnologias que se distanciam de realidades sociais. Por isso, é preciso que o discurso utilitarista do preço da vida seja mitigado por outros fatores que devem ser primeiramente levados em consideração como eficiência real da tecnologia pretendida e as realidades sociais em que serão inseridas ou disponibilizadas. Nesse contexto, o princípio da equidade, mostra-se intimamente relacionado ao princípio bioético da justiça considerado, ao lado do princípio da beneficência, prevalente em razão da sua necessariedade à convivência social. Quando se fala em equidade na saúde se está a tratar de compatibilizar o ideal constitucionalmente prometido com o real possível (não confundir com reserva do possível), sem que se justifiquem as impossibilidades simplesmente nos discursos utilitaristas. Trata-se de buscar a melhor distribuição possível de recursos que são naturalmente escassos, de modo que possam beneficiar o maior número possível de pessoas de forma isonômica e equânime. O problema está, então, na priorização das escolhas e como justificá-las. Foi com esse olhar que ao longo de 2023, nesta coluna, discutimos as tecnologias digitais emergentes e o Direito Civil e Médico no prelúdio de um admirável mundo novo (com Felipe Braga Netto e Rafaella Nogaroli); conversamos sobre os danos que alguns médicos causam nas redes sociais (com Luciana Dadalto); descobrimos a hermenêutica médica (com Clenio Jair Schulze); ficamos chocados com a mistanásia social e o genocídio do povo yanomami (com Cláudia Regina de Oliveira Magalhães da Sila Loureiro); refletimos sobre a Slow Medicine (com Livia Callegari); enfrentamos as questões sobre a técnica de controle de constitucionalidade das normas dos Conselhos profissionais de saúde (com Silvio Guidi); surpreendemo-nos com os organismos geneticamente modificados e como o princípio da precaução nos auxilia com a regulação (com Daniela Guarita Jambor); enfrentamos a polêmica aplicação da teoria da perda de uma chance pelo STJ (com Glenda Gonçalves Gondim); analisamos cirurgias estéticas, uso de PMMA em excesso e morte do paciente (com Mariana de Arco e Flexa Nogueira); encaramos o difícil tema da mistanásia de pessoas idosas no Brasil (com Hideliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral); investigamos se descendentes têm direito de conhecer a sua origem biológica (com Flaviana Rampazzo); estudamos o consentimento do paciente e as novas tecnologias (com Juliano Ralo); discutimos o cado Indi Gregory (com Renata Oliveira Almeida Menezes e com Alexandro de Oliveira); analisamos os desafios do aborto legal no Brasil (com Francielle Elisabet Nogueira Lima; Taysa Schiocchet e Mariana Martins Nunes). Como podem notar, a diversidade de temas revela a complexidade dos estudos realizados no Grupo de Pesquisas Direito da Saúde e Empresas Médicas, coordenado por Miguel Kfouri Neto, agora transformado em Instituto Miguel Kfouri Neto. As tecnologias avançam cada vez mais rapidamente e o Direito, como o pensamos hoje, mostra-se incapaz não só de acompanhar tantas transformações, mas também, de dar boas respostas às novas perguntas, especialmente quando respostas utilitaristas são mais fáceis e tentadoras do que as respostas personalistas. Se 2023 ficou conhecido como o ano da retomada (pós-pandemia) e já nos surpreendeu com tantas novidades, imagine o que podemos esperar de 2024! Encerramos as publicações deste ano desejando que nos próximos 365 dias possamos dar continuidade aos nossos estudos e, quem sabe, apresentar algumas respostas em um ambiente de tantas incertezas.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil

Aos fins de setembro de 2023, um conceito ainda pouco explorado juridicamente ganhou maior visibilidade a partir do voto da Ministra Rosa Weber no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442: o de justiça social reprodutiva. Apontado no voto como uma forma de resposta aos deveres fundamentais de proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, derivados do desenho constitucional brasileiro, a Ministra se posicionou pela não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, a fim de descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. O julgamento da ADPF, contudo, foi interrompido, ante o pedido de destaque feito pelo Ministro Luís Roberto Barroso, retirando a ação do Plenário Virtual e encaminhando-a para ser julgada no ambiente físico. Os debates pela descriminalização da interrupção voluntária da gestação têm se mostrado centrais em articulações dos movimentos feministas na América Latina e no Caribe, onde há países em que a legislação sobre o tema é bastante restritiva, como o Brasil. Entretanto, ainda que o aborto permaneça tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, fato é que, desde a década de 1940, ele  é permitido quando a gravidez é decorrente de estupro/violência sexual e há risco de vida para a gestante (art. 128, I e II, Código Penal). Em 2012, o STF estendeu a excludente para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54. Em que pese o longo período de estagnação regulatória (entre 1940 e 1990), os procedimentos para acesso ao aborto legal possuem regulamentação - não somente pelos marcos normativos já mencionados, mas também por outras leis, guidelines internacionais - como o recente "Guia sobre cuidados no aborto", da Organização Mundial da Saúde1, lançado em 2022 -, além da existência de normas infralegais (denominadas soft law interna, como resoluções, portarias, normas técnicas e protocolos) e de jurisprudência. Como exemplo, citam-se a lei 12.845/2013 ("Lei do Minuto Seguinte") e o decreto 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelecem o atendimento às vítimas de violência sexual; na esfera infralegal, destacam-se a Portaria do Ministério da Saúde n° 1.508, de 1º de setembro de 2005, que estabelece o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), determinando os fluxos a serem seguidos por profissionais de saúde no atendimento de situações que se enquadram nas hipóteses legais, bem como as Normas Técnicas do Ministério da Saúde (MS) "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), "Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual - perguntas e respostas para profissionais de saúde (2011)", "Prevenção e Tratamento dos Agravos à Saúde de Mulheres e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual" (2012), e "Atenção às mulheres com gestação de Anencéfalos" (2014). Além disso, a realização do aborto nos casos de outras malformações fetais incompatíveis com a vida foi chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.467.888/GO), que também se manifestou recentemente (março de 2023) reiterando o dever legal de sigilo médico, inclusive em casos de suspeita de crime de aborto provocado pela própria gestante. Apesar de as  hipóteses permissivas do aborto estarem inseridas em um quadro de legalidade bastante robusto, o acesso a esse direito vem sendo obstaculizado por diversas razões, como: i) a falta de divulgação, estrutura e acesso aos serviços de referência que realizam o procedimento; ii) a imposição de medidas restritivas, como objeção de consciência, exigência de Boletim de Ocorrência ou alvará judicial; iii) a restrição em razão da idade gestacional, dentre outros problemas. Alguns casos emblemáticos são representativos da problemática desenhada por esses obstáculos. Em 2020, no estado do Espírito Santo, ganhou notoriedade o incidente envolvendo uma criança que, após ser vítima de repetidos abusos sexuais, ficou grávida aos dez anos2. A menina precisou viajar entre estados para realizar o procedimento de aborto legal, uma vez que tal intervenção foi negada em sua cidade natal. Já em 2022, em Santa Catarina, uma investigação conduzida pelos veículos "The Intercept" e Portal Catarinas3 revelou a história de outra criança, de 11 anos, que enfrentou repetidos abusos institucionais, particularmente durante uma audiência presidida por uma juíza, com a participação de uma promotora de justiça, pressionando a criança a prosseguir com a gravidez com frases como: "suportaria ficar mais um pouquinho?", "queres escolher um nome?" e "você acha que o pai concordaria?". No mesmo ano, no estado do Piauí, a imprensa divulgou o caso de uma menina de 12 anos, grávida pela segunda vez, expondo os detalhes dos abusos institucionais sofridos, incluindo a designação de um curador especial para o feto4. Quem trabalha ou pesquisa esse tema sabe que não se tratam de casos isolados. Muito pelo contrário. No documentário intitulado "Além da lei - o aborto legal no Brasil", lançado em 2018 pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relatam-se outras histórias nas quais se constatam as dificuldades de acessar o aborto legal por mulheres vítimas de violência sexual, assim como a visão de profissionais da saúde, juristas e ativistas sobre a questão5. As sistemáticas ações e omissões por parte do Poder Público relacionadas acima provocaram, inclusive, o ajuizamento, em 2022, da ADPF 989, que objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconsticional relativamente ao aborto legal. Importante destacar que, à época da proposição da ação, vigorava a Portaria GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que previa a necessidade de o(a) profissional médico(a) comunicar o aborto à autoridade policial responsável. Ademais, naquele ano, havia sido publicada a Nota Técnica "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento" - atualmente retirada da plataforma virtual do Ministério da Saúde -, na qual se indicam procedimentos obsoletos para se realizar o abortamento, como a curetagem, além de orientar a utilização de critérios não respaldados em guias internacionais de melhores práticas atuais, como o "Abortion Care Guideline", da OMS (2022), como peso fetal e tempo de gestação em casos de aborto induzido, agravando ainda mais o quadro de inefetividade do aborto legal. Não menos relevantes são os impactos causados pelas intersecções entre marcadores sociais como gênero, raça e classe no tocante a esse cenário.  De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2021), 74% das mulheres que já realizaram um aborto em sua vida eram negras. Em estudo realizado em Minas Gerais sobre as causalidades de mortalidade materna relacionada ao aborto6, apontou-se que 70% das mulheres que vieram a óbito por aborto eram negras. O cotejamento entre esses dados pode indicar maior dificuldade de acesso aos serviços de aborto nos casos permitidos por lei, levando mulheres negras que teriam direito à interrupção a se submeterem a procedimentos inseguros que culminam em sua morte. Mais recentemente, já em novembro deste ano, no estado do Paraná, uma mulher indígena, vítima de violência sexual, morreu em decorrência do parto após ter o aborto legal negado em virtude da idade gestacional em que se encontrava quando buscou realizar o procedimento (26 semanas). Embora a atual gestão do Ministério da Saúde já tenha se manifestado no âmbito da ADPF 989 no sentido de que "não existe um prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou qualquer outra circunstância legalmente prevista", diretrizes e orientações contrárias a esse entendimento continuam a guiar a atuação de gestores e  profissionais da saúde no país. Como se vê, a carência de normativas e mecanismos positivos que reforcem o dever de implementação e assistência ao aborto legal com base nas melhoras práticas e evidências científicas tem ocasionado múltiplas violações aos direitos fundamentais de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar, incluindo o direito à vida. Se buscamos um horizonte de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, sem a necessidade de qualquer outra condicionante, é imperativo que o Poder Público e todos os profissionais envolvidos atendam ao dever jurídico de assegurar o acesso ao aborto previsto em lei. Para tanto,  mostra-se necessária a cooperação dos órgãos administrativos competentes, removendo-se os entraves ilegais de ordem regulatória e sanitária que se opõem à concretização do sistema constitucional de justiça social reprodutiva outrora afirmado pela Ministra Rosa Weber em seu voto. __________ 1 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortion care guideline. Genebra: World Health Organization. 2022. 2 JIMENEZ, Carla. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html. Acesso em: 01 de dez. 2023. 3 GUIMARÃES, Paula et al. Em audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir de aborto. Portal Catarinas; The Intercept. 20 de jun 2022. Disponível aqui. Acesso em: 01 dez 2023. 4 SENA, Yala. Justiça nomeia defensora para atuar em favor do feto de menina estuprada no Piauí. Folha de S. Paulo. 2 fev. 2023. Disponível aqui. Acesso em 01 dez 2023. 5 O documentário está disponível na plataforma YouTube. 6 Martins, E. F, Almeida, P. F. B, Paixão, C. O, Bicalho, P. G, Errico, L. S. P. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cadernos de Saúde Pública, 2017; v. 33, n. 1. Disponível aqui.
(...) Além dessa portaHá paz, eu tenho certezaE eu sei que não haverá maisLágrimas no Paraíso O presente artigo tem como ponto de recorte, a análise judicial do caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, teve por, decisão judicial, ordem de desligamentos dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. A música que encabeça o presente artigo, "Tears in Heaven", é uma canção composta por Eric Clapton, onde personifica a dor e a perda do compositor após o falecimento de seu filho de 4 anos de idade. A morte já é difícil de aceitar quando envolve (...) Além dessa porta Há paz, eu tenho certeza E eu sei que não haverá mais Lágrimas no Paraíso O presente artigo tem como ponto de recorte, a análise judicial do caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, que teve por decisão judicial, ordem de desligamentos dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. A música que encabeça o presente artigo, "Tears in Heaven", é uma canção composta por Eric Clapton, onde personifica a dor e a perda do compositor após o falecimento de seu filho de 4 anos de idade1. A morte já é difícil de aceitar quando envolve um adulto, mas quando o tema é a morte de uma criança, a perspectiva é dramaticamente alterada. A morte de uma criança, especialmente quando resulta da não iniciação ou suspensão de tratamento, pode ser vista como injusta, prematura e, até mesmo, cruel.2 Não é possível começar esse debate sem recordar a advertência da Profa. Heloisa Helena Barboza, na abertura do VII Congresso Brasileiro de Direito Civil, realizado no Rio de Janeiro, em 2018, em que destaca o "Direito e biotecnologia: Vivendo o futuro", levando-se a inúmeras reflexões. A premissa ventilada pela Ilustríssima Professora pavimenta a velocidade das mudanças sociais, jurídicas, enfatizando em seu artigo, os progressos biotecnológicos que afetam diretamente as etapas do nascimento até a sua finitude. A provocação destaca que a "recepção do futuro não se confunde com um rompimento do passado, ao contrário, é tido como a compreensão de que é faz necessário ir adiante, oferecer novas respostas, e apresentar novas indagações"3. E, diante desse novo cenário, é necessário repensar os instrumentos, normas e ferramentas de proteção da pessoa humana, inclusive sobre pontos imaculados e sagrados4, inclusive pelas lentes da filosofia, não apenas no Direito, em especial de Michael Foucault5, a partir dos conceitos de biopolítica e biopoder. Antes de abordar a proposta, é importante registrar a dificuldade de sintetizar inúmeras decisões judiciais proferidas, com contornos tão peculiares e informações complexas, em breves linhas desse diminuto artigo, mas seguiremos na desafiadora proposta, em especial, pela necessidade de luzes sobre este caso e o tema embrionário em cenário nacional. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. Acesso feito em 22.11.2023. 2 PETER A Clark. Medical futility in pediatrics: is it time for a public policy? Disponível aqui. Acesso feito em 22.11.2023. 3 SCHULMAN, Gustavo. A Capacidade Civil lida do Avesso: A construção do futuro e seus desafios Jurídicos. Trajetória do direito civil, estudos em homenagem à professora Heloísa Helena Barboza/coordenação por Gustavo Tepedino, Vitor Almeida. Editora Indaiatuba. Editora Foco. 2023. p. 74. 4 Ensina Heloisa Helena Barboza. "sob o império da biopolítica, a força do poder se encontra na manutenção da vida, e, para tanto, é preciso pô-la em ordem, sustentá-la, assegurá-la. Mas isso não pode ser feito à custa da autonomia e da dignidade do ser humano". BARBOZA, Heloisa Helena. A pessoa na Era da Biopolítica: autonomia, corpo e subjetividade. Caderno IHU ideias (UNISINOS). v. 194, p.3-20, 2013, p.18. 5 "Atendo-se a uma análise nominalista, Foucault recusa-se a pensar o poder enquanto coisa ou substância, as quais seriam possuídas por uns e extorquidas de outros. O poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas como a família, a escola, o hospital, a clínica. Ele é, por assim dizer, um conjunto de relações de força multilaterais." FURTADO, Rafael Nogueira  e  CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault.  Rev. Subj. [online]. 2016, vol.16, n.3, pp. 34-44. ISSN 2359-0769. Disponível aqui. Acesso feito 22.11.2023.
A delimitação teórica necessária, particularmente no Direito, tem sua relevância sublinhada quando a realidade social apresenta casos concretos que demandam uma reflexão mais aprofundada, já que a aproximação entre possíveis conceitos aplicáveis tem a capacidade de gerar consequências totalmente discrepantes entre si. O caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, capaz de impedir que as células do corpo produzam energia1, apresentou aproximações dos conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia. Igualmente no âmbito das Ciências Biológicas e Médicas, a imprecisão técnica gera repercussões plurais e, para o caso específico, as dificuldades em delimitar marcos para o fim de vida causam consequências no âmbito social e jurídico;  além disso, resulta no questionamento central que tem lugar no caso ora analisado: o prolongamento artificial da vida deve ser mantido, no caso de um bebê com doença incurável e progressiva? Indi Gregory teve sobrevida artificial até menos de 9 meses, e conforme a equipe clínica do Queen's Medical Center, não haveria possibilidade de restabelecimento da sua saúde, logo, as tentativas clínicas nesse sentido a causavam dor e eram inúteis em relação à cura. A conclusão da equipe do Queen's Medical Center é condizente com os preceitos da bioética, já que refutam a distanásia e buscam a promoção da ortotanásia.  Formado a partir da junção do prefixo grego orthos (reto) e de thanatos (morte), o termo ortotanásia, elaborado por Jacques Roskam2, remete à ideia de terminalidade da vida de forma digna, justa, respeito pelo momento da morte natural e não prolongamento fútil da vida de modo artificial. A ortotanásia nem antecipa a morte, tampouco prolonga artificialmente a vida, apenas possibilita que a morte natural tenha o seu curso normal, do modo mais confortável e indolor possível, por meio da suspensão de medicamentos e de meios artificiais de prolongamento de vida3, substitutindo-os gradativamente por cuidados paliativos. São requisitos para configurar a ortotanásia o diagnóstico de uma doença mortal específica e irreversível, com exatidão e firmeza sobre o quadro clínico; a enfermidade ser progressiva; a morte ser iminente ou ameaçadora; o paciente estar frágil, com forças diminuídas; ser incapaz de exercer as funções humanas básicas, ou exercê-las com considerável dificuldade4. Todos os critérios estavam presentes no caso da Indi Gregory. De outra sorte, a distanásia seria esse prolongamento artificial da vida, de uma sobrevida que já teria sido findada se não fossem os aparatos biotecnológicos e a evolução farmacêutica, tomando como imperativa a manutenção da vida, independentemente da sua qualidade, sujeitando o paciente a sofrimento desproporcional, prolongando o seu processo de morte5, negando-lhe os cuidados paliativos no auge da sua vulnerabilidade. Os atos de distanásia sacrificam o paciente por motivos alheios vários, e prolongam o processo de morte da pessoa em fim de vida hospitalizada. Essas motivações podem ser de ordem religiosa; de ordem particular dos genitores - como fases de elaboração do processo de luto; de ordem científico-paternalista - com adoção de lógica utilitarista com vistas ao progresso da Medicina para benfeciar terceiros; entre outras. Há que elucidar que a ortotanásia, preconizada pela equipe do Queen's Medical Center, não pode ser confundida com eutanásia. Embora não seja um conceito uníssono, majoritariamente a eutanásia é considerada como a eliminação de uma pessoa que padece de enfermidade terminal, com a finalidade de findar as suas dores ou sofrimentos, realizado por outra pessoa, movida por sentimento de compaixão ou piedade. Sem o elemento subjetivo de compaixão com o próximo, configuraria homicídio.6 7 Os genitores de Indi Gregory discordavam da opinião da equipe clínica do   Queen's Medical Center, e requereram  judicialmente a manutenção artificial da vida. Após as negativas em primeira e segunda instância, foi decidido que não deveria investir mais em suporte vital, mas que Indi Gregory deveria continuar sendo cuidada em hospital ou em hospice - unidade de cuidados paliativos,8 9 ou seja, a decisão estabeleceu que deveria ser providenciada a ortotanásia, para garantia do conforto e preservação da dignidade da paciente. Urge ressaltar que a decisão, conforme o relato da imprensa a respeito, não previu a antecipação do processo de morte; caso contrário, configuraria eutanásia. Deixar de investir artificialmente para prolongamento de sobrevida sem perspectiva de cura ou de restabelecimento de funções básicas,em hipótese de doença devidamente diagnosticada, e investir em manejo químico e mecânico da dor, não configura eutanásia - em qualquer modalidade que seja -, trata-se de ortotanásia. Para o caso, a classificação da eutanásia conforme o tipo de ação, em que na modalidade ativa há uma ação direta para encurtar a vida, e passiva a morte é antecipada pela omissão de intervenção,10 deve ser afastada pois dar ênfase à eutanásia é já adotar um viés argumentativo, para tentar defender a distanásia, ou seja, leva à  perspectiva de que a preocupação central sobre sobrevida artificial deve ser quantitativa e não qualitativa, e desconsidera que, no caso concreto, não se antecipou o processo de morte, apenas permitiu que a sobrevida retomasse o seu curso natural. A obstinação terapêutica resulta em prolongamento precário e penoso da vida,11 deve ser rechaçada, especialmente por contrariar dois princípios básicos, pilares da bioética principiológica: o da beneficência e não-maleficência. Na análise do bem possível a ser proporcionado à Indi Gregory com o prolongamento artificial da sua sobrevida, sopesando com o quão doloroso era o tratamento, restou claro para a equipe clínica que a assistia que deveriam ser usados os fármacos e os aparatos decorrentes da Revolução Biotecnológica para paliar, para cuidar mesmo ante a incurabilidade da doença - em conformidade com o Juramento de Hipócrates. A imprecisão técnica sobre quando termina o processo de morte não deve servir de subterfúgio para prolongamento artificial do sofrimento. _____________ 1 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023. 2 ROSKAM, Jacques. Survie Purement Végétative dans La cérébrosclérose. Euthanasie, Dysthanasie, Orthothanasie. Revue Médicale de Liège. Liège: Faculdade de Medicina de Liège vol. V. nº 20. pp. 709 - 713, 15 out. 1950. 3 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015. 4 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015. 5 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá, 2017. 6 SAMBRIZZI, Eduardo. Derecho y eutanásia. Buenos Aires: La Ley, 2005. 7 LOPES, Antonio; LIMA, Carolina; SANTORO, Luciano. Eutanásia, ortotanásia e distanásia. São Paulo: Atheneu, 2011. 8 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023. 9 PHIPPIS, Amy; FARMES, Brian. Indi Gregory: Life-support withdrawn from critically ill baby. BBC. News, 12 nov. 2023. 10 FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires, Astrea, 2007. 11 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004.
terça-feira, 21 de novembro de 2023

Consentimento do paciente e novas tecnologias

As reflexões aqui expostas foram apresentadas quando da minha participação no Simpósio de lançamento dos livros da Dra. Rafaella Nogaroli, intitulado "Responsabilidade Civil Médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI" e dos Dr. Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, denominado "Responsabilidade Civil: Teoria Geral", ocorrido na UniCuritiba-PR em outubro de 2023. O referido evento tinha como tema a "Inovação no Poder Judiciário: dilemas da responsabilidade civil para os próximos 30 anos". Minha contribuição centrou-se na questão do "consentimento do paciente e as novas tecnologias". Neste artigo, exploramos a intersecção desses temas e discutimos as implicações legais e éticas que emergem à medida que as tecnologias avançam, particularmente ao longo dos próximos 30 anos: Imagine estar em 06 de outubro 2053 e experimentar a "medicina do futuro". Você acorda às 05h58min com uma sensação desconfortável no peito e verifica seu sistema de monitoramento vital em seu pulso. Ele detecta uma anomalia em seu ritmo cardíaco e imediatamente aciona um sistema de saúde avançado. Em questão de minutos, um drone equipado com desfibriladores externos automáticos chega e fornece tratamento de desfibrilação rápida, salvando sua vida. Após a estabilização, wearables (dispositivos vestíveis inteligentes que permitem o monitoramento remoto dos pacientes) encaminham informações para uma central médica que encaminha até sua residência um robô cuidador. Ele injeta nanorrobôs em seu corpo, que viajam até o seu coração, localizam bloqueios nas artérias e os eliminam as anomalias ali presentes de forma precisa e eficaz. Em poucas horas, você se recupera completamente, sem a necessidade de cirurgia invasiva. A central de atendimento médico recebe todas essas informações, em segundos analisa esses dados com algoritmos de Inteligência Artificial e propõe um tratamento imediato. Este é apenas um exemplo do que se projeta como avanço para a medicina em 2050, onde a integração da tecnologia, nanotecnologia e telemedicina proporciona tratamentos mais rápidos, precisos e menos invasivos, garantindo uma qualidade de vida e de sobrevida, incomparáveis com os dias atuais. Para compreendermos como será o consentimento do paciente do futuro se faz necessário conhecer um pouco mais sobre a respeito do cenário que se projeta acerca das tendências e dos avanços tecnológicos na medicina no ano de 2050 e de que maneira isso impactará as mudanças em relação ao consentimento do paciente nesse porvir. Não obstante o exemplo acima, o tradicional jornal britânico Pulse1 publicou recentemente uma reportagem denominada "Dez maneiras pelas quais a medicina mudará até 2050", listando as principais mudanças que deveremos testemunhar na área da saúde nos próximos 30 anos: I) Medicina Personalizada: a genômica e a análise de Big Data permitirão tratamentos mais personalizados. Isso significa que os tratamentos serão ajustados às características genéticas e biomoleculares individuais e ambientais; II) Impressão 3D de Órgãos: a bioimpressão, ou impressão 3D de tecidos e órgãos, poderá se tornar uma realidade. Isso revolucionará os transplantes, reduzindo listas de espera e problemas de rejeição; III) Tecnologias Vestíveis e Implantes: dispositivos que monitoram constantemente a saúde do usuário, prevendo problemas antes que se tornem graves; IV) Robótica: robôs serão cada vez mais comuns em cirurgias, permitindo procedimentos mais precisos e menos invasivos; V) Terapias Genéticas: tratamentos que visam modificar ou substituir genes defeituosos podem se tornar mais comuns, tratando doenças antes consideradas incuráveis; VI) Realidade Aumentada e Virtual: estas tecnologias poderão ser usadas em treinamento médico, planejamento cirúrgico e até em algumas terapias; VII) Nanotecnologia: poderá ser usada para administrar medicamentos de maneira mais precisa, visando apenas células doentes e reduzindo efeitos colaterais; VIII) Inteligência Artificial (IA): A IA poderá ser usada em diagnósticos, análise de imagens médicas, e até na previsão de surtos e epidemias; IX) Telemedicina: Consultas e monitoramento à distância serão aprimoradas, com o uso de holograma, e dispositivos caseiros de monitoramento, se tornarão ainda mais comuns, especialmente em áreas remotas; X) Novas Vacinas e Terapias: Com as lições aprendidas com a pandemia da COVID-19, investimentos em pesquisa de vacinas e terapias antivirais provavelmente continuarão crescendo. A essa lista ainda se acrescentam terapias com Células-Tronco; interfaces brain-computer; biotecnologia CRISPR; smart drugs; novos métodos de monitoramento contínuo; imuno-oncologia, entre diversas outras promessas que reforçarão a esperança de dias melhores, mas também a importância preservarmos à autodeterminação dos pacientes face às novas tecnologias em saúde. Do exposto, pode se extrair que a medicina do futuro será cada vez mais multifuncional, caracterizada pelos quatro "P's" fundamentais: preventiva, preditiva, personalizada e proativa. Isso significa que a medicina se concentrará no descobrimento antecipado de doenças, na previsão de riscos individuais, na adaptação dos tratamentos às características individuais e na promoção do bem-estar geral. Entraremos em uma era onde a robótica e a IA não serão apenas ferramentas, mas assumirão um papel de maior relevância nas decisões em saúde, com as quais interagiremos diariamente. Assistentes virtuais, robôs de cuidado e algoritmos de recomendação moldarão nossas experiências e as decisões médicas. O grande dilema será ético. Ao consideramos que os algoritmos de machine learning, tomarão cada vez mais decisões autônomas cada vez mais baseadas em seus "aprendizados", de forma que surgirão questionamentos como: "quem será o responsável por essa decisão?" Será o fabricante, programador ou o usuário? E como garantiremos que os usuários realmente consintam e compreendam como essas tecnologias funcionam, especialmente quando os algoritmos são tão complexos que até mesmo os especialistas têm dificuldade em interpretá-los? Será correto uma máquina substituir a expertise médica? Quem assumirá os riscos dessa intervenção? Até que ponto os pacientes entenderão a extensão e o uso desses dados? De fato, o consentimento do paciente, de forma clara, livre e esclarecida, está longe de ser um direito aperfeiçoado pela doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras, mas ainda será indispensável e considerado como um "porto-seguro" para a autodeterminação do paciente. Trata-se de um instituto que está em constante evolução, que será aprimorado com as mudanças proporcionadas pelo avanço da relação médico-paciente e, em especial, pelas que surgirão como resultado do uso de Big Data. Nesse sentido, será ainda mais essencial compreender o consentimento informado em relação às novas tecnologias médicas nas próximas décadas, uma vez que a medicina continuará a evoluir e a incorporar novidades cada vez mais sofisticadas. Nesse cenário e contexto, abaixo são propostas algumas reflexões que devem ser consideradas para garantir um consentimento informado, transparente e ético, capaz de garantir a autodeterminação do paciente perante os avanços da medicina: I. Transparência e Compreensão: o consentimento informado deverá ser um processo dialógico, transparente e compreensível para os pacientes. Isso implicará em fornecer informações detalhadas sobre as tecnologias envolvidas, seus objetivos, benefícios esperados, comprovações científicas, limitações, riscos médicos e possíveis alternativas. Os profissionais de saúde deverão garantir que os pacientes tenham um entendimento claro do que estão consentindo. II. Autonomia e livre escolha do paciente: o princípio da autonomia do paciente continuará sendo fundamental. Os pacientes deverão ter o direito de tomar decisões informadas e livres sobre seu próprio tratamento, sem estar influenciados por algoritmos. Em outras palavras, eles deverão ser informados sobre as opções disponíveis e ter a liberdade de aceitar ou recusar um tratamento ou procedimento, mantendo-se as diretrizes atuais. III. Uso responsável de dados: as tecnologias médicas muitas vezes envolvem o uso de dados pessoais dos pacientes. Os pacientes deverão ser informados sobre como seus dados serão usados, protegidos e compartilhados, para evitar problemas como o caso Cambridge Analytica (2018), YouTube, que foi multado em US$ 170 milhões (Singer e Conger 2019) por ter extratificado dados para direcionar propaganda para o público infantil ou, ainda, do clube britânico, Bounty, que foi multado em £ 400.000 (2019) por compartilhar dados de mais de 14 milhões de seus usuários com terceiros para fins de marketing.  Como se vê desde já, a privacidade e a segurança dos dados do paciente são preocupações críticas, ainda mais tratando-se da saúde e bem-estar da população. Com efeito, sobre os itens acima, em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou o pioneiro relatório global "Ética e Governança da Inteligência Artificial na Saúde" (Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health)[2]. Após extenso processo de pesquisa e consultas com a participação de especialistas de todo o mundo, o referido relatório forneceu orientações abrangentes para todos os relacionados no desenvolvimento, uso e impacto da IA na área da saúde, listando a autonomia, a transparência e a privacidade de dados como seus pilares fundamentais. IV. Inteligibilidade e explicabilidade das tecnologias: Devido à complexidade das tecnologias médicas avançadas, será importante que os profissionais de saúde se esforcem para explicar de maneira compreensível como essas tecnologias funcionarão e como poderão afetar o tratamento do paciente, seus riscos e benefícios, incluindo a possibilidade de erros ou resultados inesperados. V. Responsabilidade e prestação de contas: Deverá haver mecanismos claros de responsabilidade civil e criminal para lidar com erros ou decisões incorretas da IA. VI. Registro e documentação: Continuará a ser fundamental documentar todo o processo de obtenção do consentimento informado, incluindo as informações fornecidas ao paciente, as perguntas feitas pelo paciente e as decisões tomadas, em especial em prontuários eletrônicos que conterão todas as informações de saúde do paciente. Isso será importante em caso de disputas legais ou éticas no futuro. VII. Aprimoramento do consentimento informado: Em um ambiente em constante evolução, os profissionais de saúde devem estar dispostos a se manterem atualizados sobre as mais recentes tecnologias e práticas éticas relacionadas ao consentimento informado. Isso inclui participar de treinamentos e educação continuada. Podemos incluir aí um consentimento livre e esclarecido digital, pois será provável que o consentimento seja obtido de forma mais eficaz e segura através de meios eletrônicos. Ademais, novos recursos como o design thinking deverão ser usados para facilitar o processo comunicativo.  VIII. Envolvimento do paciente nas decisões: mais do que nunca, os pacientes deverão ser incentivados a fazer perguntas, expressar preocupações e participar ativamente das decisões sobre seu tratamento. Apesar da constante demanda e falta de tempo, os profissionais de saúde continuarão a criar um ambiente de comunicação aberta e colaborativa.   IX. Regulamentação e ética: Os Conselhos de Medicina, as organizações médicas e demais autoridades de saúde deverão continuar a desenvolver diretrizes e regulamentos que orientem a obtenção do consentimento informado em um cenário tecnológico em constante mudança. A ética médica deverá ser central a todas as práticas relacionadas ao consentimento informado. X. Responsabilidade compartilhada: O consentimento informado não deverá ser apenas uma formalidade, mas um compromisso mútuo entre o paciente e o profissional de saúde, para garantir o melhor atendimento possível. Ambos têm responsabilidades na tomada de decisões informada e na busca do melhor resultado para a saúde do paciente. Em conclusão podemos compreender que o consentimento informado para os próximos 30 anos deverá continuar sendo um processo dinâmico e colaborativo que levará em consideração a evolução constante da medicina e das tecnologias de saúde. A transparência da relação médico, a autonomia do paciente e o uso ético das tecnologias seguirão como elementos essenciais para garantir o cuidado adequado e o respeito pelos direitos dos pacientes. Conforme reportagem: "Ten ways medicine will change by 2050". Disponível em: https://www.pulsetoday.co.uk/views/practice-personal-finance/ten-ways-medicine-will-change-by-2050/. Acesso em 01 de outubro de 2023. Para maiores informações: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200.
Antes da revolução das técnicas de reprodução assistida (RA), a revelação da paternidade dependia da vontade e da "memória", da disposição e do conhecimento da mãe ou de terceiros. Atualmente, pesquisas e exames de DNA são capazes de abreviar esse caminho e de dispensar tais atributos ou vontades. Assim, cabe perguntar se o doador de material biológico reprodutivo tem direito ao anonimato, se o conhecimento da ascendência genética seria um direito da pessoa gerada por técnica de RA e se seria possível haver conformação entre um e outro. E, sendo admissível que haja a informação, convém investigar a quem competiria o dever de prestá-la à pessoa que quisesse conhecer a sua origem biológica. No âmbito normativo, o tema da confidencialidade dos dados de doador de material reprodutivo é objeto da Declaração Universal sobre o genoma humano e os direitos humanos (arts. 7º e 9º) e da Declaração Internacional sobre os dados genéticos humanos (art. 14, a) da UNESCO, as quais estabelecem a confidencialidade dos dados biológicos e especificam que a identificação do doador é medida excepcional, a depender da regulamentação do país onde o material for tratado. No Brasil, não há lei tratando especificamente a respeito do assunto. Há, no entanto, projetos em tramitação na Câmara dos Deputados que tratam do tema da RA. O mais importante para o objeto deste texto é o PL 4892/12, o qual institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais. No art. 6º, o PL proíbe a mistura de material genético de um dos pretensos genitores e o material genético de doador para evitar dúvida quanto à origem biológica do concebido. No art. 7º, o PL trata dos princípios aplicáveis às técnicas de RA, dentre os quais estão "o superior interesse do menor" e a "transparência". No art. 13 do PL consta que todas as informações relativas a doadores e receptores devem ser coletadas, tratadas e guardadas em sigilo, não podendo ser facilitada, nem divulgada informação que permita a identificação civil do doador ou receptor. Consta ainda que o médico deverá escolher o doador e assegurar, sempre que possível, a semelhança fenotípica, imunológica e a máxima compatibilidade entre doador e receptores (art. 16). No PL consta utilização do material genético de doador para uma única gestação "no Estado da localização da unidade", além de determinar a criação de um Banco de Células embrionárias para impedir reprodução assistida (RA) com o mesmo material no Estado em que já foi utilizado. O texto proíbe que médicos, funcionários e integrantes da equipe multidisciplinar sejam doadores de material biológico reprodutivo. O art. 19 prevê a garantia de sigilo ao doador de gametas, "salvaguardado o direito da pessoa nascida com utilização de material genético de doador de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial", sendo que o mesmo direito é assegurado ao doador, "em caso de risco para sua vida, saúde ou, a critério do juiz, por outro motivo relevante". No âmbito do Conselho Federal de Medicina, a resolução 2.320/22, estabelecida com contornos de soft law, prevê o sigilo das informações sobre a identidade de doadores de gametas e de embriões, assim como dos receptores, e proíbe que doadores e receptores conheçam a identidade um do outro, "exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até quarto grau, de um dos receptores (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos), desde que não incorra em consanguinidade". Ademais prevê como excepcional o fornecimento de informações, desde que estas sejam dirigidas exclusivamente aos médicos e com motivação de saúde, conforme o texto do Capítulo IV, ns. 2 e 4. As Clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter o registro permanente dos dados clínicos de caráter geral, de características fenotípicas e, na região de localização da unidade, evitar-se-á que um doador tenha produzido mais de dois nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 milhão de habitantes, embora um doador possa contribuir para várias gestações em uma mesma família receptora (Capítulo IV, ns. 5 e 6). O consentimento deve ser obtido por termo, contendo todos os aspectos médicos da técnica, com os resultados obtidos na unidade de tratamento, com a técnica proposta, além de dados de caráter biológico, jurídico e ético. Tanto o processo informativo decisório quanto o de consentimento abrange o doador e os receptores, cada um com as suas peculiaridades informacionais e decisórias. Nesse contexto em que se vislumbra uma nítida tendência de sigilo, não se pode perder de vista a prioridade dos direitos da criança e do adolescente prevista no art. 227 da CF e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU (art. 3.1), que estabelece que as ações relativas às crianças e adolescentes devem considerar o "interesse maior" destes. Além disso, há possibilidade de emprego, por analogia, do art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual "o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes". Seguindo esse raciocínio, se o adotado tem o direito de conhecer a sua origem biológica, qual seria a razão para a criança gerada por técnica de RA ser privada desse direito? Não se está aqui tratando do direito da filiação ou do estado de filiação (paternidade jurídica), porque este está radicado no Direito de Família e abrange fatores mais amplos que os meramente biológicos. É dizer: o reconhecimento da filiação jurídica do direito de família admite tanto a filiação biológica quanto a não biológica, conquanto possa prescindir de fatores biológicos. O conhecimento da origem genética é distinto, constitui objeto do estudo do biodireito e diz respeito aos direitos de personalidade e não trata da constituição de parentesco legal. Assim, com base no direito geral da personalidade, entende-se que deve ser assegurado ao indivíduo o direito de ter informações sobre a sua origem genética tanto quanto da sua ascendência. A legitimidade dessa pretensão está assentada no direito geral de personalidade e ao seu livre desenvolvimento, além do direito à saúde e a prevalência do direito da criança e do adolescente, quando for o caso. Ademais, assume relevância o critério finalístico avindo do texto das normas antes referidas, do qual é extraída a necessidade de preservar o  sigilo dos dados do doador, que (ao menos em princípio) realiza o ato de doação de material genético com finalidade altruísta, desinteressada e não remunerada: quando a função informacional diz respeito ao atendimento de necessidades relevantes e juridicamente suficientes e justificáveis daquele cuja informação seja necessária. Tais necessidades (interesses jurídicos relevantes) em geral são ligadas à saúde física ou psíquica daquele que quer conhecer a sua origem genética. Quando houver essa fundamentação relevante e juridicamente aceitável, será justificável a postulação de obtenção das informações quanto a origem genética. Os destinatários da pretensão processual a ser exercida são, conforme o caso, dos pais, caso eles tenham sido responsáveis pelos atos de concepção (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou a clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso a concepção tenha decorrido do emprego de técnicas de RA. Com isso, fica claro que, caso a informação seja postulada judicialmente, não o será por ação investigatória de paternidade. Há, inclusive, a possibilidade de uso de habeas data para a obtenção de informações (para dados constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público), conforme as circunstâncias concretas, lembrando-se que tais dados são qualificados como sensíveis pela LGPD e, portanto, recebem elevado grau de proteção. A questão a tratar brevemente agora é saber se o filho que não recebe essa informação a que teria direito poderia ser indenizado ao deixar de ser informado. A resposta dependerá das circunstâncias de cada caso concretamente considerado. Hipoteticamente, na situação de um filho com problema de saúde cujo tratamento seja mais eficaz se houver a informação sobre a origem genética, a falha informativa poderá ensejar a ocorrência de danos patrimoniais, caso esse filho-paciente tenha despesas de tratamentos de saúde que não incidiriam se a informação sobre a origem genética fosse relevante e não tivesse sido ocultada. Quanto aos danos extrapatrimoniais no exemplo acima, podem estar presentes se, v.g., o filho tivesse que conviver com uma doença que pudesse ser eliminada ou mitigada com a possibilidade de identificação e de disposição de auxílio por parte das pessoas a ele vinculadas geneticamente. A pretensão para ser atendida, no entanto, depende de prova e deve ser dirigida aos pais, caso a ocultação ocorra em razão de ato a eles imputável (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou à clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso deixe de fornecer os dados do doador ou doadora do material genético.
"Não se pode esquecer de que a vida não deixa de ser uma passagem constante de uma vulnerabilidade para outra vulnerabilidade. O sentido profundo do ser humano é o acolhimento e a proteção de sua vulnerabilidade" (Pessini, 2017, p. 80). Sinopse  A mistanásia é um fenômeno que inquieta a Bioética contemporânea, pois a morte indigna, decorrente de fome, miséria e abandono de pessoas vulneradas, cresce de forma exponencial. O presente artigo se propõe a analisar a mistanásia no âmbito das pessoas idosas, neste momento em que o envelhecimento, como fenômeno global, também se constitui preocupação da Bioética. O fato é que a vulnerabilidade das pessoas idosas, expõe-nas a riscos, vitimando-as de forma frequente e cruel, pois a sociedade, os hospitais e estabelecimentos similares e até mesmo as famílias praticam atos contra essas pessoas, levando-as a experimentarem a vida miserável e morte mistanásica. A população brasileira se encontra em franco processo de envelhecimento e as famílias seguem a mesma linha, têm envelhecido de forma progressiva e, nessa ambiência, filhos idosos (com mais de 60 anos) estão cuidando de seus pais muito mais idosos (às vezes com 80 a 95 anos), sem que houvesse tempo para se organizarem e se capacitarem para essa realidade. Então, quando as famílias não conseguem administrar as consequências advindas dessa transformação demográfica, praticam condutas criminosas contra as pessoas idosas, em razão de vários fatores, dentre os quais se destaca os óbices para exercerem suas atividades laborativas de forma plena. As práticas mais comuns são abandono afetivo, moral e material, dentro das próprias residências e ainda abandono hospitais e nas ruas para ser recolhida em abrigos. Todas essas hipóteses se tornam rotineiras, no Brasil e no mundo, e têm acarretado a morte mistanásica das pessoas idosas em grande proporção,  tornando-se necessária a adoção de urgentes políticas públicas, a fim de minimizar as mortes miseráveis e promover saúde e dignidade a essa população que já caminha para a última fase da existência humana.  Introdução  A mistanásia é um lamentável fenômeno da Bioética contemporânea, pois a morte indigna de pessoas vulneradas tem crescido de forma assustadora no Brasil e em outros países da América Latina. Trata-se da morte miserável, precoce e evitável de pessoas expostas a riscos dos quais elas não conseguem se proteger por si sós, necessitando buscar mecanismos estatais de defesa, aos quais, elas nem sempre têm acesso. São diversas situações de miséria, abandono social, desigualdade e até de homicídios, nos casos mais graves, concorrendo para a morte em condições precárias e indignas. A mistanásia se apresenta em muitas hipóteses decorrentes da precarização da saúde pública, da violência dos grandes centros urbanos, do abandono de pessoas necessitadas pelo Poder Público, em vários outros matizes e se manifesta até mesmo no âmbito das famílias que não cuidam de seus idosos, em especial, quando doentes, deixando-os desassistidos ou até mesmo abandonados à própria sorte. Antes de se tratar da mistanásia no contexto das pessoas idosas, impende situá-las no contexto da legislação nacional, apresentando-se o art. 1º do Estatuto da Pessoa Idosa, que é a lei de tutela da parte frágil com a função de regulamentar os direitos dessa classe de pessoas: "[...] destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos" (Brasil. Lei n. 10. 741, 2003). O envelhecimento no Brasil e no mundo, passa a se constituir preocupação como fenômeno global e objeto de estudo da Bioética, pois a população composta por pessoas idosas cresce de forma desproporcional, na medida em que, por um lado, as pessoas estão se cuidando melhor, cultivando hábitos saudáveis, adotando atividades físicas, além da evolução da ciência, que encontra solução para várias enfermidades antes fatais, incuráveis e que agora se tornam crônicas, por outro lado, decresce a taxa de natalidade, em razão da opção por famílias cada vez menores. Em razão desses fatores, as famílias estão envelhecendo e não raro nos deparamos com pessoas idosas cuidando de outras muito mais idosas: filho de mais de sessenta anos cuidando de seu ascendente octogenário ou nonagenário, ambos com suas limitações, às vezes ouvindo mal e com reais dificuldades de locomoção. Descortina-se então uma realidade à vista desta transformação demográfica: a sociedade não está preparada para cuidar dessas pessoas, não opera pequenas adaptações no interior das residências que podem fazer grande diferença para a segura locomoção, como assentar barras de apoio nos boxes e sanitários e corrimãos nas escadas, por exemplo. Tem-se assistido a muitos acidentes domiciliares com grandes consequências como sérias fraturas, fato que demonstra a necessidade de precaução, de medidas preventivas às quedas. Esse é apenas um dos vários aspectos a serem observados na conjuntura do cuidado às pessoas idosas, pois "as quedas lideram as internações", somaram 48.940, segundo estudo realizado em 2000 acerca das causas externas de mortes de pessoas idosas (Gawryszewski; Jorge; Koizumi, RAMB, 2004). É preciso se compreender que nenhuma dessas justificativas pode ser considerada como razoável para levar a família ao abandono de seus ascendentes, de várias formas. No caso do abandono material, falta alimentação adequada, condições de higiene e mínimo conforto, sabendo-se que tais situações ensejam a prática de mistanásia e que a consequência natural da vida indigna é a morte igualmente indigna e miserável de pessoas que não dispõem de mecanismos de defesa capazes de se colocarem a salvo dos riscos. Ante esses fatos, o presente artigo se propõe a despertar a comunidade cientifica para a cruel realidade de saúde pública e interesse social que é o aumento de casos de banalização da vida das pessoas idosas e a consequente morte mistanásica delas. E, lançando um olhar prospectivo, realiza um breve exame de algumas medidas preventivas ou políticas públicas a serem adotadas no sentido de minimizar as mortes mistanásicas dessa faixa composta por pessoas que já deram sua contribuição à sociedade, criaram suas famílias e agora dependem de serem acolhidas em sua vulnerabilidade a fim de oferecer dignidade para dar cumprimento e completude à sua existência nos seus derradeiros dias. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
Brasil no ranking dos países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas do mundo e substâncias arriscadas sendo utilizadas cotidianamente. Se a paciente morre depois da cirurgia, denuncia-se o médico por culpa ou dolo eventual? No Brasil, o mercado da estética, hoje, é altamente rentável e lucrativo, sobretudo porque, além de médicos, diversos outros profissionais atuantes na área da saúde estão fazendo tais procedimentos1, principalmente em razão deste contexto social que dita padrões de beleza ideais em relação à imagem das pessoas, o que afeta principalmente mulheres e meninas, que vêm buscando intervenções estéticas desde a adolescência. O Brasil, inclusive, é o segundo país do mundo em que mais são realizadas cirurgias plásticas embelezadoras, ficando atrás somente dos EUA. Dito isso, o profissional da Medicina é quem, de fato, possui autorização legal e normativa2 para realização destes procedimentos estéticos eletivos, escolhidos e refletidos pelo paciente, relacionados à Medicina do aprimoramento3 e que têm relação com o desejo subjetivo de cada paciente em termos de sentir-se belo e melhor consigo mesmo, ainda mais porque o conceito de beleza é relacional e depende de cada indivíduo e de sua concepção própria. Logo, caso o paciente pretenda, queira, entenda os riscos depois de informado e consinta com a intervenção, o médico poderá atuar. Ou seja, de acordo com o paradigma da autonomia, é o consentimento livre, informado e esclarecido do paciente que legitima e autoriza a intervenção do médico em sua esfera corporal, sob pena de caracterização dos delitos de constrangimento ilegal e/ou lesão corporal4. Neste caso das cirurgias plásticas estéticas, procedimentos invasivos e arriscados por si só, como a Medicina é um ambiente extremamente complexo, normatizado e técnico em âmbito ético-administrativo, há diversas normas setoriais que regulamentam a profissão, que visam a conferir uma parametrização e standards de conduta para que ocorra um ato médico seguro, o que vai depender, logicamente, da especialidade do médico e do contexto em que atendeu o paciente. Ao seguir tais normas técnicas, chamadas de lex artis, presume-se que a atividade do profissional está dentro de um limite de risco permitido, aceitável e tolerado. Porém, em caso de restar violado esse limite de risco-base5 ao qual o médico deve obediência para manter sua atividade lícita, a depender da eventual incorreção de sua conduta, pode o profissional ser responsabilizado nas esferas ético-disciplinar (perante o Conselho Regional de Medicina onde possui inscrição), cível (ao pagamento de indenização) e criminal (caso haja a prática de um delito). Dito isso, tragamos um caso ilustrativo, inspirado em fatos reais. Paciente A, com 30 anos de idade, capaz, decide colocar silicone nos glúteos, para dar um aspecto mais tonificado à região, e procura um médico famoso e conhecido nas redes sociais, com mais de meio milhão de seguidores, agora denominado B, que faz o procedimento, inclusive divulgando fotos de "antes e depois" e anunciando descontos e parcelamentos imperdíveis às suas potenciais pacientes-clientes (ou então leads convertidas?). Ambos combinam o valor dos honorários médicos, há assinatura de termo de consentimento, de contrato de prestação de serviços e, finalmente, chega o dia do procedimento. No dia do ato médico, em um hospital, o profissional B realiza a intervenção estética e opta por utilizar a substância polimetilmetacrilato, vulgo PMMA, na paciente, aplicando duas vezes mais o volume autorizado pela ANVISA6 para fins estéticos. Não obstante, o profissional não informa à paciente qual substância será utilizada, tampouco os riscos básicos a ela relacionados. Após a cirurgia, a paciente tem alta e vai para sua casa. No entanto, depois de dois dias, é acometida por infecção generalizada e falece em decorrência de embolia pulmonar decorrente dos efeitos do PMMA em seu organismo. A família acha estranha a morte repentina, consulta um médico assistente técnico e registra boletim de ocorrência. A polícia passa a investigar o profissional da Medicina por conta da prática do crime de homicídio, devido ao fato de a conduta médica ter sido a causa eficiente da morte da paciente A, havendo relação causal entre o ato médico e o óbito. Após realização de perícia, tem-se que a causa mortis é realmente o uso da substância PMMA em excesso. Depois disso, Ministério Público denuncia o médico com fundamento em dolo eventual, vez que agiu de modo indiferente quanto ao resultado morte da paciente que confiou em seus serviços. Além disso, família da vítima aciona o CRM e, concomitantemente, ajuíza ação civil de reparação de danos devido à morte da paciente com fundamento "erro médico". Dito isso, partindo da hipótese de que a morte se deu, de fato, em razão do uso da substância PMMA em excesso, há dolo eventual ou culpa frente à conduta do médico? Devido à independência relativa entre as esferas jurídicas, a suposta incorreção do ato médico pode ser apurada em ramos distintos do Direito. Caso ocorra infração ao Código de Ética Médica, o médico pode ser investigado em sindicância e eventualmente responder a processo ético-profissional. Além disso, é possível analisar a responsabilização civil do médico se restar comprovada conduta culposa, que pode se manifestar via negligência, imprudência e/ou imperícia, nexo causal e danos - das mais variadas espécies, v.g., material, moral, estético e desvio produtivo - sofrido pelo paciente, ou, então, em caso de negligência informacional, caso o profissional não informe e esclareça o paciente sobre os riscos inerentes a determinado procedimento antes da intervenção, violando deveres anexos. Ademais, a depender da gravidade da ilicitude da conduta do profissional, nada impede que sua conduta também seja apurada na esfera jurídico-criminal, caso estejamos diante dos juízos político-criminais de merecimento de pena (dignidade de pena) ou necessidade de pena (carência de tutela penal)7. Isso porque o Direito Penal é a última ratio e somente deve ser chamado a atuar para resolver problemas sociais nos casos de afetação grave de bens jurídicos, quando os outros ramos jurídicos se mostrarem insuficientes e inadequados para tanto. A seara jurídico-penal possui caráter fragmentário e subsidiário, podendo agir nos limites do necessário, sobretudo porque é a liberdade da pessoa eventualmente acusada e processada que está em jogo. Com efeito, o primeiro passo para analisarmos a possibilidade de imputação de crime e posterior responsabilização criminal ao médico B do exemplo é compreender se houve conduta que violou a norma jurídico-criminal proibitiva ou mandamental. Ademais, como houve resultado morte de paciente, deve-se analisar se há relação causal e normativa entre a conduta e este resultado. O crime de homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal, significa a conduta de matar alguém, ou melhor, eliminar vida humana alheia. No caso do médico B, a nosso ver, sua conduta ultrapassou um limite de risco até então permitido - que seria realizar cirurgias plásticas estéticas de modo seguro, dentro dos protocolos médicos de segurança referentes ao procedimento - e não respeitou as normativas e diretrizes técnicas que deveriam cercar o ato médico naquele contexto da cirurgia plástica, mormente devido ao uso da substância PMMA em excesso. Este modus operandi temerário do profissional tem relação causal com a morte da paciente A, nos termos do art. 13, caput, do Código Penal8.  Não basta, porém, para o Direito Penal, uma relação de mera causa e efeito para que a pessoa seja responsabilizada. É preciso analisar, também, a causalidade psíquica, ou seja, compreender se o agente agiu com dolo ou culpa. Em poucas palavras, o dolo pode ser caracterizado como a consciência e vontade de realizar a conduta típica, e se subdivide basicamente em dolo direto ou dolo eventual. Em relação ao dolo direto, configura-se quando o agente quis o resultado; por sua vez, quanto ao dolo eventual, o agente - no caso, o médico - assumiu o risco de produzir este resultado. No caso do dolo eventual, o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode causar, admitindo a possibilidade de se concretizar, sendo a ele indiferente. A culpa, por sua vez, é a violação de um dever objetivo de cuidado previsível à pessoa média, caracterizando-se como a conduta voluntária desatenciosa com resultado involuntário e não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado9. No caso do médico B, quanto ao elemento subjetivo que cercou sua conduta, a nosso ver, o ponto fulcral da questão reside justamente no uso desmedido e inadequado - vez que em excesso - do PMMA, substância10 cujo uso para fins estéticos não é recomendado por diversas entidades sérias em âmbito médico, tais como Conselho Federal de Medicina (CFM), Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), embora a ANVISA não vede formalmente - e ainda11 - a utilização do produto12. Aliás, o uso de tal substância para fins cirúrgicos estéticos já foi objeto de artigos científicos13 e realmente os riscos superam os benefícios, daí porque sua utilização acaba sendo arriscada. No caso, o profissional da Medicina B utilizou o volume do produto a maior, sem contar que não informou a paciente sobre a substância utilizada, aumentando exponencialmente os riscos já inerentes à substância. Enquanto médico expert, tinha o dever de saber ou ao menos representar que aquela seria uma postura perigosa e optou por agir assim mesmo, de forma indiferente quanto a eventual resultado produzido no que tange à morte da paciente devido aos malefícios referentes ao produto. Neste caso, além de tudo, o médico, que detinha o conhecimento técnico em contraposição à pessoa da paciente, tolheu dela o direito de recusar o procedimento caso estivesse ciente dos riscos que o englobam em relação a eventual possibilidade de morte. Por isso, a nosso ver, agiu o médico de forma indiferente e irrefletida, assumindo um risco e sendo indiferente em relação ao resultado morte da vítima neste caso, sobretudo porque há alternativas ao uso do PMMA em procedimentos estéticos e, mais ainda, devido ao uso exacerbado da substância. É possível, pois, sustentar que há dolo eventual em sua conduta frente a esta situação, porém, é o caso concreto e as circunstâncias dos autos em termos probatórios que serão cruciais para realmente a imputação subjetiva ao agente. De todo modo, de acordo com os preceitos de um Direito Penal democrático, amparado no supraprincípio da dignidade da pessoa humana, jamais poderia ser admitida uma responsabilização automática do profissional da saúde, devendo ser analisado, para além da relação causal da conduta do resultado, o elemento subjetivo que cercou a conduta do agente, seja o dolo ou a culpa, sob pena de concluirmos pela atipicidade do fato e inexistência de responsabilidade criminal. No entanto, fato é que, hoje em dia, com uso cada vez maior de substâncias cujos riscos superam os benefícios em procedimentos estéticos, sem contar a ampliação desmedida deste mercado - com cada vez mais pacientes se tornando vítimas14 de variados profissionais da saúde que acabam agindo de modo temerário -, médicos devem abster-se de agir de modo não cuidadoso e violando diretrizes de um ato médico seguro, colocando vida e saúde de pacientes em risco, sob pena de responderem em diversas esferas jurídicas em decorrência de seus atos. __________ 1 Médicos, dentistas, esteticistas, biomédicos, enfermeiros, cosmetólogos, técnicos em enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticos, dentre outros profissionais, estão atuando no ramo estético, porém, nosso foco, aqui, não é falar sobre legitimidade, tampouco sobre "quem pode ou não pode" fazer tais procedimentos, sobretudo porque se trata de assunto polêmico. 2 Ressalte-se que, para que o médico seja considerado apto a realizar uma cirurgia plástica, além dos 6 (seis) anos de graduação em Medicina, exige-se, como pré-requisito, que sejam cursados 3 (três) anos de cirurgia geral e mais 3 (três) anos de cirurgia plástica, ou seja, são 12 (doze) anos de estudo no total para que o profissional seja, de fato, especialista nesta área inserida dentre as 55 (cinquenta e cinco) especialidades médicas atualmente existentes, conforme Resolução 2.330/2023 do CFM. Além disso, há incontáveis aperfeiçoamentos que podem ser realizados pelos médicos, o que, ao fim e ao cabo, visam a promover não só a especialização do profissional, mas também a segurança do paciente que confiou no profissional antes de fazer o procedimento eletivo, que, na maior parte das vezes, demanda um cuidado especial inclusive por parte do paciente no pós-operatório, v.g., alimentação, repouso, uso de vestimentas adequadas, acompanhamento com outros profissionais, tais como esteticistas e fisioterapeutas para fins de drenagem, uso de medicamentos, consultas de retorno, feedback ao médico sobre a intervenção etc. 3 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da medicina - 1 Ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 396. 4 GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. Studia Juridica. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade (vol. 1). v. 108, 2017, p. 644-669. 5 GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª Ed. Ver. Atual. / São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 57. 6 ANVISA esclarece sobre indicações do PMMA. No Brasil, o PMMA para preenchimento subcutâneo precisa ser registrado na Anvisa, pois é um produto de uso em saúde da classe IV (máximo risco). De acordo com o órgão, há registros de produtos para essa finalidade há mais de 10 anos no Brasil. Disponível em acesso em 15 set. 2023. 7 FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-criminais. Liber Discipolurum, para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 57-59. 8 De acordo com o art. 13, caput, do Código Penal, o resultado (jurídico referente à ofensa à norma e naturalístico, em relação a haver uma modificação no mundo exterior), de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa; considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. 9 NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal / Guilherme de Souza Nucci. - 16 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 313-318. 10 SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA. Com má fama, PMMA não deveria ser usado para fins estéticos, dizem médicos. Disponível aqui, acesso em 21 mar. 2023. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA, SBD. CREMESP, SBCP E SBD pedem retratação à ANVISA sobre indicações do PMMA. Disponível aqui, acesso em 09 ago. 2022. 11 Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA. Analisa o Projeto de Lei (PL) nº 403, de 2021, que "restringe a venda e utilização do polimetilmetacrilato (PMMA) para a realização de procedimentos estéticos". Disponível aqui, acesso em 29 ago. 2023. De acordo com o VOTO Nº 131/2021/SEI/DIRE3/ANVISA, Processo nº 25351.905324/2021-10, manifestou-se que concorda com a possibilidade de restringir a comercialização e uso desse tipo de produto para profissionais habilitados, visando a evitar maiores tragédias e mortes de pacientes. 12 KURIMORI, KLEBER TETSUO et al. Complicação grave do uso irregular do PMMA: relato de caso e a situação brasileira atual. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP). Disponível aqui, acesso em 19 jun. 23. 13 Myers S. D., Streiff M., Dulberger A. R., et al. (August 19, 2021) Polymethylmethacrylate Pulmonary Embolism Following Vertebroplasty. Cureus 13(8): e17314. DOI 10.7759/cureus.17314. 14 Exemplos de reportagens que falam do uso de PMMA e efeitos gravosos em modelos brasileiras. Disponível aqui e aqui - acesso em 15 set. 2023.
A teoria da perda de uma chance é aplicada na jurisprudência brasileira desde a década de 19901. Mas, foi no ano de 2005, por meio de um julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em um caso que envolvia um programa de premiação televisivo que tomou maior notoriedade no país2. Trata-se de uma teoria desenvolvida na França3, criada pela jurisprudência e dentro da qual ela tem o seu maior desenvolvimento e aplicação. E por isso, o objetivo presente é analisar como o Superior Tribunal de Justiça tem enfrentado a matéria. Para tanto, optou-se por analisar os julgados relativos à responsabilidade civil médica e, especialmente, quando se discute a probabilidade de cura ou sobrevida do paciente. É preciso compreender que para sua aplicação devem estar presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil, de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial, que são categóricos em afirmar a necessidade de restarem configurados: o ato antijurídico, o dano e o nexo causal4. O ato antijurídico será avaliado de acordo com os ditames existentes para sua configuração, isto é, a contrariedade ao direito em si5. Ocorre que os pressupostos do dano e do nexo causal serão avaliados de forma diversa, por meio de uma lente que tem como enfoque não o resultado suportado pela vítima. Isso não significa dizer que há ausência de dano, mas sim que haverá um dano final, relativo ao total suportado pela vítima e um dano chance, que se refere a probabilidade perdida. Este último é que será reparado desde que seja "real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade"6. O dano chance é avaliado pela probabilidade de que a vítima teria uma vantagem esperada ou poderia obstar um prejuízo7, mas nenhuma das duas hipóteses acontecerá, porque houve uma interrupção indevida do desencadeamento de fatos que poderia alcançar este resultado. A primeira situação pode ser exemplificada pelo caso julgado do "Show do Milhão", em que uma candidata se submeteu a uma série de perguntas e ao final, caso acertasse a última questão, alcançaria o prêmio de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Contudo, este último questionamento foi formulado equivocadamente. Isto porque, a pergunta era sobre o percentual de terras destinado aos indígenas na Constituição Federal. Ocorre que não há percentual definido constitucionalmente e, assim, todas as alternativas estariam erradas. A candidata desistiu e posteriormente, processou o programa, pois não havia resposta correta e com isso, ninguém ganharia o prêmio. Se a pergunta estivesse correta e com possibilidade de acerto, não é possível saber se a candidata acertaria, todavia, é possível concluir que havia probabilidade de acerto. E é esta probabilidade definida pelo número de alternativas existentes e que poderiam ser escolhidas, que se configura na perda da chance de obter uma vantagem8. Para a segunda hipótese, ou seja, quando o desencadeamento importará em obstar o prejuízo, é possível exemplificar casos médicos, no qual o paciente deseja estar curado de uma doença que lhe acomete, mas em razão de um erro médico (ato antijurídico), o profissional reduz as possibilidades concretas de cura do paciente, o que impede o tratamento adequado. Em razão das possíveis concausas de cura que possam restar configuradas, como o tipo de patologia, o estágio quando do diagnóstico e as reações pessoais ao tratamento, não é possível afirmar que uma correta atuação do médico resultaria sem dúvidas na cura total do paciente, mas diante das peculiaridades do caso é possível verificar a probabilidade de cura existente para um tratamento eficaz. Nos dois casos, o dano é a chance perdida, seja em obter a vantagem esperada, seja em obstar o prejuízo. Por isso, fala-se em dano chance e não dano final. Após verificada a probabilidade existente no momento da ocorrência do ato antijurídico, "o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final"9. Diante da necessidade de estarem presentes os três pressupostos básicos da reparação, os quais serão estudados em relação ao dano chance, pode-se afirmar que há a possiblidade de aplicação da teoria em todos os possíveis casos de responsabilização, inclusive para atos médicos, conforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência da corte superior que entende ser "plenamente cabível, ainda que se trate de erro médico, acolher a teoria da perda de uma chance para reconhecer a obrigação de indenizar (...)"10. Em acórdão proferido pela Ministra Nancy Andrighi, foram analisados os argumentos contrários a aplicação da teoria da perda de uma chance para atos médicos. Mas, todos os argumentos foram confrontados e afastados para concluir pela possível e necessária aplicação da teoria. O julgamento foi proferido em processo no qual a paciente diagnosticada com câncer de mama foi submetida a masectomia parcial. Contudo, este não seria o tratamento adequado, mas sim a masectomia radical e, também, era necessária a recomendação de quimioterapia. Diante do inadequado tratamento, a paciente veio a óbito em decorrência da doença. Entendeu-se que o erro médico frustrou a possibilidade de cura da paciente. A responsabilidade do médico configura-se pelo "fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta."11 Neste caso, não apenas se verificou a possibilidade da aplicação da teoria nos casos médicos, mas, também, considerou-se que a perda da chance de tratamento é uma chance reparável. E para saber se pode ou não existir a reparação é preciso fazer o mesmo raciocínio lógico para o dano final, isto é, avaliar se é um interesse juridicamente relevante que foi lesado12. A chance da sobrevida se caracteriza quando o ato médico diminui ou afasta a possibilidade de cura e tratamento esperados13. Ela está "ligada não à vida, mas à sobrevivência, não a perda de um processo, mas ao seu êxito e não a permanência de uma enfermidade, mas de sua cura"14, relacionados com direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana e, portanto, tutelado pelo direito. O Superior Tribunal de Justiça entende que a mera chance de sobrevida é reparável por ser juridicamente relevante. Este foi o posicionamento do voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no Recurso Especial n.º 1.335.622/DF, ao julgar o processo proposto em razão do falecimento de uma criança que contava, à época, com oito meses de vida. A criança inicialmente foi atendida por um hospital, no qual houve o seu internamento. Com o agravamento do quadro clínico, os médicos recomendaram que a paciente deveria ser encaminhada a outro local com melhores recursos. Os pais foram instruídos a proporem ação judicial que permitisse a internação da menor neste hospital, cujo atendimento seria particular. Proposta a ação e obtida a liminar, o médico que acompanhava o quadro clínico da menor, entrou em contato com a médica plantonista do hospital, mas foi informado que era necessário o envio da decisão. O mesmo médico imprimiu uma cópia e pessoalmente encaminhou para a imediata transferência da paciente, mas novamente houve a negativa do internamento, por entenderem que não era válida a cópia da internet. Em razão disso, a paciente foi mantida em ventilação mecânica em equipamento ultrapassado e veio a falecer. Os pais propuseram ação em face do hospital que recusou o atendimento, mesmo com a ciência da gravidade e emergência existentes na situação, bem como de liminar concedida e que determinava o seu internamento. O hospital foi condenado ao pagamento de indenização, porque resto comprovado que "caso o tratamento fosse realizado, poderia a filha dos autores ter tido a chance de, ao menos, sobreviver"15 e esta chance foi considerada como reparável, pois se repara não a cura em si, mas a impossibilidade do seu tratamento que postergaria a vida dessa menor. A partir deste julgado, a corte superior adotou o posicionamento de que "A simples chance (de cura ou sobrevivência) passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada."16 Outros casos passaram a ter o mesmo entendimento. Como o julgamento do processo em que uma paciente que era acometida por leucemia sofreu tonturas, desmaiou e veio a óbito por traumatismo craniano. No caso, a descrição dos fatos revela que, por diversas vezes, a paciente esteve no hospital com sintomas que poderiam levar a crer da sua patologia, o que seria constatado por um simples hemograma completo. Não há certeza de que a queda foi ocasionada única e exclusivamente pela doença que lhe acometia, mas há certeza de que o melhor atendimento e verificação em tempo da sua doença teria evitado o mal maior. Por isso, entendeu-se que o erro de diagnóstico "retirou da paciente uma chance concreta e real de ter o mal que a afligia corretamente diagnosticado e de ter um tratamento adequado, ou seja, de obter uma vantagem"17. Por ser reparável o dano chance e não o dano final, o valor da indenização também não pode se referir ao valor total. Como por exemplo, no julgamento proferido pelo Ministro Og Fernandes. Neste caso, uma paciente sofreu uma parada cardíaca e o seu marido entrou em contato com o serviço de emergência do Município. Ocorre que o atendimento foi inadequado e contrariou aos protocolos existentes, pois não houve a transferência da ligação para um médico responsável e, ainda, o atendente informou a impossibilidade de deslocamento de uma ambulância, porque a que estava no local estaria estragada, sem ao menos requerer o deslocamento de outra ambulância em localidade mais próxima. Em razão disos, o marido da vítima, amputado de uma mão, apesar de suas dificuldades físicas, foi obrigado a colocar a esposa em veículo de passeio e levar até o pronto socorro mais próximo, quando ela veio a óbito18. O Superior Tribunal de Justiça entendeu pela perda da chance de sobrevida, ante o atendimento inadequado do atendente e arbitrou a indenização no percentual de 20% (vinte por cento) sobre os valores usuais de indenização por morte de ente querido da família19. Assim, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça entende pela aplicação da teoria da perda de chance para casos médicos e considera a impossibilidade de cura ou sobrevida como reparável (dano chance), uma vez que juridicamente relevante. Sendo que a indenização deverá considerar a chance perdida e a quantia que seria arbitrada para o dano final. __________ 1 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 59. Disponível em < https://editoraclassica.com.br/livro/a-reparacao-civil-na-teoria-da-perda-de-uma-chance> 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334. 3 GONDIM, Glenda Gonçalves. Obra citada, p. 55. 4 Neste sentido, transcreve-se trecho da ementa do julgamento proferido pela Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial n.º 1.666.388/SP, do qual se extrai a seguinte conclusão: "A visão tradicional da responsabilidade civil subjetiva; na qual é imprescindível a demonstração do dano, do ato ilícito e do nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e o ato praticado pelo sujeito; não é mitigada na teoria da perda de uma chance." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.662.338/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 12 de dezembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 02 de fevereiro de 2018.) 5 THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur l'evolution du droit de la responsabilité. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v.3, p.561-584, jul./set. 1999, p. 572. 6 BRASIL. Recurso Especial n.º 1.104.665/RS. Terceira Turma. Relator Ministro Massami Ami Uyeda. Julgamento em 09 de junho de 2009. Diário da Justiça eletrônico em 03 de agosto de 2009. 7 Esta referência é adotada em julgados do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: "(...) 2. A teoria da perda de uma chance comporta duplo viés, ora justificando o dever de indenizar em decorrência da frustração da expectativa de se obter uma vantagem ou um ganho futuro, desde que séria e real a possibilidade de êxito (perda da chance clássica), ora amparando a pretensão ressarcitória pela conduta omissiva que, se praticada a contento, poderia evitar o prejuízo suportado pela vítima (perda da chance atípica)." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017). 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo interno no Recurso Especial n.º 1.923.907/PR. Terceira Turma. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento em 20 de março de 2023. Publicado no Diário da Justiça Eletrônico de 23 de março de 2023. 10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 553.104/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Marco Buzzi. Julgamento em 01 de dezembro de 2015. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 07 de dezembro de 2015. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.254.141/PR. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 04 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 20 de fevereiro de 2013.   12 LORENZO, Miguel Federico de. El daño injusto en la responsabilidad civil: alterum non laedere. Buenos Aires: Abeledo - Perrot, 1997, p. 51. 13 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 8ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 75.   14 CHABAS, François. La perte d'une chance em droit français. In: GUILLOD, Olivier (Ed.). Développements recents du droit de la responsabilité civile. Zurique: Schulthess Polygraphischer Verlag, 1991, p. 133. [tradução livre] 15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013. 16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013. 17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017. 18 Informações constantes do acórdão recorrido. (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n.º   0000845-85.2011.8.24.0007. Quinta Câmara de Direito Público. Relator Hélio do Valle Pereira. Julgamento em 23 de fevereiro de 2021). 19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 2.000.983/SC. Segunda Turma. Relator Ministro Og Fernandes. Julgamento em 02 de agosto de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 09 de agosto de 2022.
Desde o final do Século XX, vivemos a chamada "sociedade de risco" em que as espécies de responsabilidade civil "clássicas" - subjetiva e objetiva - e a teoria do risco não são suficientes a solucionar danos. Adicione-se, então, os princípios da precaução e da prevenção - funções preventivas da responsabilidade civil - parar tentar minimizar os riscos.  O princípio da precaução ("Princípio") se origina na Alemanha, em idos de 1970, associado ao Direito Ambiental. O Princípio:  (.) é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza1.  O Princípio é composto por dois elementos básicos: (1) incerteza científica (incerteza, razoável e efetiva, de que um dano grave / irreparável ocorrerá); e (2) risco de dano (grave e irreversível). Há, ainda, duas condições formais do Princípio: (1) incerteza científica e a respectiva medida adotada deve ser transitória; e (2) pesquisa investigativa deve se manter em andamento - adotar medida para evitar o risco não isenta a pesquisa e análise de medida definitiva ao risco.  O Princípio não pode - e não deve - ser aplicado indiscriminadamente, a qualquer situação, fator, serviço, produto. Ao contrário, deve haver sopesamento entre liberdade e direitos de indivíduos e empresas perante novas tecnologias; bem como necessidade de reduzir riscos nocivos das novas tecnologias. Assim, o Princípio deve ser aplicado considerando cautela, equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade. "[O] princípio da precaução não é um princípio da fatalidade, mas um princípio da inteligência"2. O Princípio foi amplamente recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo hoje utilizado na proteção do meio ambiente, saúde e defesa do consumidor. Resta a pergunta: como aplicar o Princípio? Não há resposta fixa, inelástica. Ao contrário, as formas de o aplicar são indeterminadas, inúmeras, para que se analise e determine, caso a caso, qual a melhor forma de aplicar o Princípio. O que se pode sugerir são critérios para implementar o Princípio, a saber: (1) existência de risco de dano grave ou irreversível; (2) incerteza científica (constatada ou em início); (3) proporcionalidade e razoabilidade entre a medida adotada e seus efeitos; e (4) revisão da medida adotada após determinado período. Tudo isso baseado em análise científica e técnica sérias, utilizados os melhores conhecimentos e tecnologia da época, frente também aos fatores sociais, econômicos e ambientais. Defendemos que a maneira mais importante de implementar, aplicar, o Princípio, é via informação, porque (1) é a forma mais barata e eficaz de implementação do Princípio; (2) não interfere no desenvolvimento da tecnologia; e (3) permite a livre e consciente escolha do indivíduo. Contudo, veja que não é qualquer ato de informação que será eficaz, apenas o informar compreensível, adequado, suficiente, verídico, tempestivo e atual. Pois bem. A informação e o princípio da precaução são aplicados aos Organismos Geneticamente Modificados ("OGMs") por simples razão: não se concluiu, em termos técnico-científicos finais, sobre os riscos de consumo de alimentos OGMs. Felizmente, o Brasil adotou a rotulagem obrigatória para alimentos OGMs, sem relacionamento limite máximo de OGM em alimentos (via batalha judicial vitoriosa para o último aspecto). Contudo, sustentamos críticas: o símbolo (triângulo em amarelo e preto) é agressivo, remete a substância venenosa, perigo, atenção e cuidado; desvirtualizando a sua finalidade.  A revisão do símbolo e modo de comunicação, então, a nosso ver, é medida indiscutível e imperiosa. Propomos o "combo" de (1) informações escritas e (2) visuais (símbolo); ausente linguagem técnica e de maneira extremamente objetiva.  Quanto às informações escritas, veja exemplo do que sugerimos: Quanto ao símbolo, proximidade com o símbolo adotado pelos Estados Unidos parece funcionar. Isto é, designo que informe a presença de OGMs no alimento, em cores preto e branca, com a frase simples e direta "contém OGMs".  Símbolo e frase de alerta devem ser inseridos no painel principal do alimento; enquanto as informações escritas devem ser inseridas no painel da lista de ingredientes e da tabela de informação nutricional.  Considerações adicionais: informar, pura e simplesmente, não soluciona o impasse. Medidas complementares devem ser adotadas pela sociedade, cidadãos, cientistas, empresas privadas, ONGs, associações de defesa do consumidor e Poder Público. As que se destacam são: educação e participação.  Educação é via para criar consciência social. A cada uma das partes, dadas limitação e competência, cabe auxiliar e promover a educação sobre os OGMs. Tarefa árdua e complexa, considerando a taxa alta de analfabetismo do Brasil. Educados e informados, deve-se instigar a participação em processos decisórios envolvendo OGMs. Aqui, valem as considerações para (des)contruções técnicas sobre os alimentos OGMs, bem como quanto ao modo de informar. Consultas e audiências públicas devem ser efetivamente participativas, de modo que o Poder Público considere o posicionamento da sociedade (consumidores e empresas).  Temas associados aos alimentos OGMs, especificamente o direito à informação, continuarão a ser discutidos: há discussões técnico-científicas que devem ser revisadas (vis a vis o desenvolvimento técnico atual e futuro); e verificar-se-á o aumento na (já presente) discussão sobre a rotulagem obrigatória nos Estados Unidos. País que seria defensor ferrenho dos alimentos OGMs (frente ao posicionamento conservador da Europa), passa a impor a rotulagem obrigatória em 2022, que não foi muito bem-vista pela sociedade, notadamente empresas do setor.  O Brasil já teria passado pelo nível primário, de implementação. Dizer "em tese" é preciso, porque nem todas as empresas do setor de alimentos "adotaram" a rotulagem obrigatória. Observação baseada nas análises técnicas realizadas por órgãos de defesa do consumidor.  No passado, em curto período de tempo, houve uma intensificação da fiscalização de presença / comunicação devida sobre os OGMs em alimentos. As medidas passaram, eventuais infrações continuaram (e continuam).  A nosso ver, é imprescindível um controle administrativo "pesado e poderoso", bem como o desenvolvimento de instrumentos jurídicos eficazes para repreender e cobrar o atendimento à legislação. A individualidade em cada caso é importante, de maneira que haja a devida fiscalização, respectiva análise e imposição de penalidade.  "Em conclusão, o tema é de fundamental importância e não deixará de ser discutido, ao menos, até que se possua um posicionamento formal e definitivo da ciência sobre os OGMs. Enquanto isso, deve-se informar a sociedade, educar, conscientizar e instigar a participação de todos em processos decisórios. Deve-se também continuar a investigar os alimentos OGMs, sobretudo seus riscos. (...) Toda pessoa possui o direito de saber o que está consumindo e de escolher se consome ou não determinado produto"3. __________ 1 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 103. 2 No original: "[L]e principe de précaution n'est pas un príncipe de fatalité, mais un principe d'intelligence". (GRISON, Denis. Qu'est-ce que le príncipe de précaution? Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012, p. 70). 3 JAMBOR, Daniela Guarita. Organismos Geneticamente Modificados: precaução, informação e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 166.
Recentemente, publiquei artigo aqui no Migalhas apresentando um critério de aferição de constitucionalidade de normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Naquela oportunidade, defendi que a técnica de controle passa pela compreensão de que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, esses Conselhos fazem parte do SUS. Assim o sendo, suas normas devem estar vocacionadas aos objetivos desse sistema, quais sejam a satisfação do direito fundamental da saúde, priorizando ações preventivas e de proteção, sem prejuízo das assistenciais. Quanto ao tema específico da assistência, a técnica de controle passa pela análise do acesso. Desse modo, se a norma editada por um dado Conselho diminuir o acesso às ações e serviços de saúde, haverá sinal efetivo de inconstitucionalidade, já que na contramão dos objetivos do SUS. Ao final do artigo, incomodou-me a ideia de não apresentar um pensamento propositivo. Ou seja, de qual é a melhor técnica para que os Conselhos venham a produzir normas que, para além de estar em sintonia com a Constituição, possam efetivamente colaborar com o desenvolvimento da saúde no país. Esse artigo nasce dessa inquietação. O ponto inaugural da produção normativa dos Conselhos parte da compreensão de que a norma é veículo para modificar a regulação setorial. É fundamental compreender que regulação não é sinônimo de regulamentação. Esta última (pela qual se proíbe ou se condiciona certas condutas) é, em verdade, ferramenta da primeira. A regulação é uma técnica de intervenção do Estado em dado setor da sociedade, com o objetivo de orientar que as atividades desse setor colaborem com alcance de certos objetivos públicos. Pensando na saúde, a regulação haverá, por determinação constitucional, de orientar os atores desse setor a moldar suas atividades a bem de colaborar (direta ou indiretamente) com a missão de satisfação respectivo do direito fundamental. A regulação é função do Estado, tal como define o artigo 174 da Constituição Federal. Pode ser coercitiva (sinônimo de regulamentação), mas não necessariamente. Há outras formas de o Estado regular a conduta de agentes privados, seja criando incentivos para a prática de certas condutas, seja pela imposição de ônus para atividades que se desvirtuem dos objetivos regulatórios. Mas a regulação irá tradicionalmente implicar novos custos ao regulado. Daí porque nem sempre a regulação é um bom negócio, na medida em que essa ampliação importará no aumento do preço da prestação, tendo potencial de diminuir o acesso. Além disso, provavelmente terá impacto econômico e na oferta de trabalho, desencadeando uma sequência de impactos que transbordam o próprio objetivo que se pretende atingir com a regulação. Portanto, o agente regulador deve ter em mente que sua missão é de equilibrar múltiplas questões e interesses, de modo que o produto de sua regulação tenha maior capacidade de contribuir para os objetivos ao qual se destina, conduzindo as condutas dos agentes privados para essa finalidade, sem onerar em demasiado a atividade regulada e as demais atividades a ela subjacentes. É legítimo trabalho de um equilibrista. Por isso, a primeira missão do agente regulador é decidir se irá ou não se valer da regular. Quando a decisão for positiva, compreendendo que o incremento dos ônus sociais derivados da regulação é sopesado por vantagens outras, deverá definir quais alternativas regulatórias se valerá: coerção, incentivos positivos para adoção de certas posturas ou incentivos negativos para frear condutas indesejadas. A decisão de se e como regular, logo se vê, não trivial. Pensando na regulação produzida pelos Conselhos profissionais de saúde, o primeiro passo para essa tomada de decisão é compreender seu lugar no SUS e que, como integrante desse sistema, sua atividade regulatória deve se orientar à ampliação das chances de satisfação do direito fundamental à saúde. A partir dessa compreensão, os Conselhos se valem de um meio (regulação da atividade profissional) para o atingimento de um fim (atendimento do direito fundamental à saúde). Regulação não é, claro, uma ciência exata. Mas têm mais chances de acertar na calibragem regulatória aqueles que se valem das ferramentas hoje disponíveis a qualquer agente regulador. Ainda que desnecessário fosse, todas elas têm hoje previsão legal expressa. Servem, em boa medida, para democratizar o processo de produção regulatória e assim, ampliando o diálogo com a sociedade, permitir que a regulação seja resultado de um processo mais participativo e menos impositivo. Esse processo não só aumenta as chances de acerto na regulação, como diminui os riscos de impactos negativos à sociedade que sequer foram cogitados pelo regulador. E, no âmbito dos Conselhos profissionais, isso me parece fundamental, especialmente para impedir que a regulação deles derivada seja fruto da percepção única dos que compõem aquela determinada profissão de saúde. Afinal, a regulação desses Conselhos é meio para atendimento de finalidades que transbordam o interesse de determinada categoria profissional. As ferramentas regulatórias mais consagradas, e que já se viu utilizadas ocasionalmente pelos Conselhos, são as audiências e consultas públicas. Por meio desses instrumentos, os Conselhos deverão interagir publicamente, de modo a colher impressões de como a pretensa regulação irá afetar os múltiplos setores da sociedade. Além disso, há de convidar aqueles atores que podem ter sua atividade mais intensamente atingidas, como a ANVISA, ANS, Ministério e secretarias de saúde, por exemplo. Mas a consulta e audiência públicas não são as únicas ferramentas disponíveis. Talvez uma significativamente relevante é a AIR (Análise de Impacto Regulatório). Segundo o artigo 5º da Lei da Liberdade Econômica nº 13.874/2019, sua utilização é obrigatória, toda vez que órgãos e entidades estatais (tal qual os Conselhos) editarem normas "de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados". A AIR, aliás, foi devidamente regulamentada (vide decreto 10.411/2020). Por esse regulamento, só está dispensada o AIR quando a regulação a ser produzida for de baixo impacto, conceito assim compreendido como aquele que: "não provoque aumento expressivo de custos para os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados; não provoque aumento expressivo de despesa orçamentária ou financeira; e não repercuta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais" (alíneas do inciso II do artigo 2º do decreto 10.411/2020). A AIR é uma atividade preditiva, aplicada com vistas a antever os impactos da regulação num dado setor e na sociedade como um todo. Seus resultados permitem melhor calibrar a regulação, auxiliando na produção material de norma, orientando se o seu conteúdo seja coercitivo ou de fomento, bem como definindo mitigadores voltados à diminuição ou compensação pelos impactos negativos derivados da regulação. Há técnicas específicas para elaboração dessas análises, tal como aquelas referidas nas alíneas do artigo 7º do decreto 10.411/2020: análise multicritério; análise de custo-benefício; análise de custo-efetividade; análise de custo; análise de risco; ou análise risco-risco. Agências reguladores independentes (tal como ANVISA e ANS) valem-se há mais de década da AIR e certamente podem exportar know-how aos Conselhos profissionais, auxiliando na execução da ferramenta a partir das melhores práticas. Outras ferramentas, que não serão aprofundadas nesse artigo, são igualmente úteis aos Conselhos profissionais de saúde. Refiro aqui, por exemplo, ao sandbox regulatório (ambiente regulatório experimental), com previsão expressa no artigo 11 da na Lei Complementar do Empreendedorismo Inovador nº 182/2021. Trata-se de técnica valiosíssima, especialmente diante da intensidade da inovação tecnologia experimentada no setor da saúde. Além disso, é possível relembrar da revisão regulatória, da agenda regulatória e da Análise de Resultado Regulatório (ARR). Fato é que atualmente a regulação da saúde sofre de uma enorme disformidade técnica. Isso impacta negativamente o setor e, por consequência, impõe obstáculo maior à satisfação do direito fundamental à saúde. Há, de um lado, agências regulatórias independentes, como ANVISA e ANS. Regidas pela Lei Geral das Agências (lei 13.848/2019) e por leis próprias, trabalham com as técnicas regulatórias aqui referidas e tantas outras igualmente sofisticadas. De outro, os Conselhos profissionais de saúde, compostos por representantes eleitos pelos profissionais da área. Esses dirigentes dominam, em maior ou maior medida, o conteúdo da ciência da área da saúde e a prática profissional. Mas a eles faltam, visivelmente, instrumentos e conhecimento técnico capazes de auxiliar na produção da boa regulação. Ambos os atores regulatórios erram. Mas erra menos quem se vale de uma técnica de produção da regulação, combinada com objetivos bem definidos. Espero ter alcançado o objetivo de apresentar um texto propositivo. Busquei apresentar que a decisão por regular e complexa e, uma vez positiva, o caminho para alcançar uma regulação de qualidade é recheado de desafios. Apresentei algumas das ferramentas mais eficientes para ampliar as chances de atingir esse resultado ótimo. Não faltando esforço e espírito de contribuição, torço para que esse artigo seja a centelha para que os Conselhos profissionais de saúde possam efetivamente começar a se valer das melhores práticas regulatórias.
As ações de saúde no Brasil são fortemente impactadas pelas normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Não é exagerado concluir que há uma concorrência normativa entre agências reguladoras, como a ANVISA, por exemplo, e os Conselhos profissionais de saúde. Embora atuem como agentes reguladores da profissão, os Conselhos acabam por regular as próprias ações de saúde no país. Um bom exemplo disso está na recente polêmica para a utilização terapêutica de produtos à base de canabidiol. Já há algum tempo, a ANVISA vem autorizando a distribuição desses medicamentos no Brasil. Diante do grau de risco atrelado à utilização desses medicamentos, a ANVISA determinou a apresentação de receita médica para aquisição. Em 2022, o Conselho Federal de Medicina editou o resolução 2.324, a qual "aprovou o uso do canabidiol para tratamento" de certas doenças. A resolução foi suspensa temporariamente, diante da abertura de consulta pública (vide Resolução CFM 2326/2022). Independentemente da suspensão, fato é que, caso volte a vigorar a norma, surgirá enorme limitação para a autorização da ANVISA. Ainda que não submetida hierarquicamente ao CFM, há alguma diminuição da eficácia da norma da ANVISA. É que, se a norma do CFM diminui o espaço para profissionais médicos indicarem a medicação a pacientes, e a prescrição médica é condição para acesso ao medicamento, haverá, por consequência, a própria inutilização de parcela da norma da ANVISA, em razão de limitadores postos pela resolução do CFM. Essa limitação irá impactar tanto o sistema público, quanto o privado, já que em ambos a prescrição da medicação caberá ao profissional médico. Não quero aqui fazer um juízo de valor quanto ao acerto da norma do CFM, mas sim chamar a atenção para um fenômeno pelo qual as normas de Conselhos profissionais têm força para afetar todo o sistema de saúde brasileiro, indo muito além da esfera circunscrita à profissão. Mas o tema da participação dos Conselhos profissionais no sistema de saúde brasileiro não estava à mesa, quando de sua criação. E isso porque a saúde só passou a ser efetivamente um sistema no Brasil com o advento da Constituição de 88. Os Conselhos profissionais, por sua vez, foram criados muito antes, e por isso, não havia com antever essa relevância estrutural. Sua concepção se voltou a desenhar requisitos mínimos para o exercício das profissões de saúde, especialmente numa época em que a existência de práticos (pessoas sem formação específica, mas que exerciam cuidados de saúde a partir de certo conhecimento empírico) era uma realidade. Assim, esses Conselhos criavam normas que modulam o exercício das profissões e, simultaneamente, julgavam e sancionavam os profissionais que as descumprissem. Para se ter ideia disso, basta olhar os Conselhos Regionais e Federal de Medicina, criados pela Lei nº 3.268, em 1957. Segundo o artigo 2º da referida Lei, a competência dos Conselhos era a de zelar pela ética profissional, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. Mesmíssima dicção tem a Lei nº 4.324 de 1964, criadora dos Conselhos Federal e Regionais de Odontologia. A preocupação com a saúde, individual e coletiva, era reflexa aos Conselhos. Afinal, como autarquias, eram parte da estrutura estatal, a qual não tinha como finalidade o atendimento à saúde da população. Em resumo, a saúde não era um direito do cidadão a ser satisfeito pelo Estado, não sendo, à época, de competência normativa dessas entidades profissionais. Mas isso mudou radicalmente quando do advento da Constituição de 88. A saúde não só se consolidou como um direito, mas de categoria fundamental. Além de previsão expressa como direito social (que é direito fundamental de segunda geração), a Constituição cuidou de direcionar o dever de atendimento a esse direito ao Estado (artigo 196). Mais do que impor ao Estado o dever de satisfação do direito à saúde do cidadão, a Constituição cuidou de definir como o Estado haveria de atuar para cumprir sua missão. No próprio artigo 196, a Constituição coloca a prestação de serviços voltados à recuperação do indivíduo como última alternativa. À frente estão ações de proteção, promoção e promoção da saúde. Portanto, é dever do Estado criar camadas para que o indivíduo tenha uma vida saudável e que não adoeça. Se tais objetivos não forem alcançados, a assistência integral surge como obrigação prestacional. Além disso, a Constituição, ainda no artigo 196 (que se vê, de conteúdo riquíssimo), dispõe que é dever do Estado garantir, mediante políticas públicas (sociais e econômicas), aos cidadãos acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. E aqui está a chave para se compreender os contornos da atuação normativa dos Conselhos profissionais de saúde. Seguem eles como autarquias integrantes da estrutura estatal. Sua autonomia se limita às esferas administrativa e financeira. Sua função, como integrantes do Estado que o são, também é a satisfação do direito à saúde (a ser exercida dentro de sua função ético-normativa), não estando mais voltados simplesmente a garantir "bom nome e prestígio profissional". A regulação da atividade profissional é agora é meio para o atingimento da finalidade de consagração do direito fundamental à saúde. Ou seja, não existe autonomia ou liberdade normativa aos conselhos de profissões de saúde. Suas normas não mais são "decisões interna coporis". Os Conselhos profissionais, diante da virada constitucional de consagração da saúde como direito fundamental a ser satisfeito pelo Estado, passam, assim, a ser parte integrante do SUS. Aliás, o inciso II do artigo 200 da Constituição deixa evidente que uma das competências do SUS é a ordenação da formação dos recursos humanos na área da saúde. A ordenação, sinônimo de regulação, tem como parâmetro a construção das profissões para que os desígnios do SUS sejam atendidos. É função a ser exercida tanto no período da graduação (técnica ou profissional), quanto do exercício profissional, moldando sua execução de maneira sinérgica às finalidades do SUS. Compreendidas as condições constitucionais, que conformam as atividades dos Conselhos profissionais de saúde às normas do SUS, tem-se adequado parâmetro de controle de constitucionalidade das normas editadas pelos Conselhos. Está-se a falar que as normas reguladoras editadas por essas autarquias devem ir ao encontro das finalidades do SUS, em especial: acesso universal e igualitário com prioridade às ações de promoção e prevenção da saúde, sem prejuízo das assistenciais. Dessa forma, normas que limitarem o acesso às ações e serviços de saúde hão de ser consideradas inconstitucionais, ainda que editadas anteriormente à Constituição de 88 (diz-se aqui da não recepção dessas normas pelo ordenamento jurídico vigente). Esse raciocínio, aliás, é aplicável também às leis anteriores à Constituição, não raramente utilizadas como base de legitimidade para a edição de normas reguladoras por parte dos Conselhos. Uma das formas adequadas para o exercício desse controle de constitucionalidade é a análise da motivação do ato de resolução. Os Conselhos devem explicitar e comprovar as razões pelas quais as normas que editam estão em consonância com os objetivos do SUS. Certamente, não devem ser consideradas inconstitucionais aquelas normas que hoje vigem, mas não estão devidamente motivadas. No entanto, se desafiadas no âmbito do Judiciário, o ônus de demonstrar a compatibilidade com os objetivos do SUS recairá sobre os Conselhos que editaram normas desmotivadas. De outro lado, se devidamente motivadas, caberá a quem entender em contrário, provar em Juízo que a motivação apresentada na norma é inverídica e que, ao invés de colaborar, é obstáculo à missão estatal da satisfação do direito à saúde.
segunda-feira, 15 de maio de 2023

Slow Medicine: simplesmente medicina

Em um tempo de açodamento e superficialidade nas relações, o sopesamento de valores  e  a conduta reflexiva nem sempre são bem vistas e ficam cada vez mais em desuso. Isso em acentua em um cenário de desenvolvimento em volume exacerbado de modalidades tecnológicas, mediadas ou não pela Inteligência Artificial, que culminam nas mais variadas possibilidades de dispositivos aplicáveis em saúde e que, em não raras vezes, servem como suporte para sustentar narrativas que pregam soluções simples e rápidas para problemas complexos. Consequentemente, às mentes menos despertas, isso pode gerar uma espécie de encantamento que chega a ser pueril, pela falta de letramento mínimo das soluções que são oferecias, fato que pode atingir tanto o público leigo como profissionais que não tenham o mínimo de massa crítica aguçada. Então, a pressa toma conta de todas as vertentes da sociedade, afinal esse é o elemento que se traduz como o traço característico da atualidade. Porém, essa mesma pressa pode levar a decisões não muito acertadas. O paciente, por sua vez, que está cada vez mais impaciente com tudo, quer respostas na mesma velocidade, pois acredita que a tecnologia tem a salvação para tudo, todavia, por falta de conhecimento, desconsidera a existência das variantes inerentes a qualquer ecossistema. Com efeito, é bem verdade que a tecnologia e o avanço científico quando aplicados adequadamente trazem muitos ganhos, inclusive na assertividade que essas ferramentas de apoio à assistência da saúde possam causar no diagnóstico e tratamento, algo que, invariavelmente, causará reflexos na forma de atuar do profissional da saúde.  Contudo, apesar do propalado acréscimo trazer, em alguns aspectos, a possibilidade de aumento de segurança para o paciente, jamais reduzirá a Medicina a uma certeza da exatidão matemática tendente a se resumir o ato a uma obrigação de resultado. Isso porque, a Medicina guarda aspectos imponderáveis, próprios de peculiaridades e reações de um organismo vivo, que, por vezes, pode ser individualizável ao paciente, e impossível de controle. Por esse motivo, cada vez mais é necessário verificar concretamente se essas aludidas novas tecnologias tão propagadas pelos mais variados e, por vezes, ardis instrumentos de marketing, de fato, estão maduras para o seu uso, ou seja, se quando da finalização das etapas metodológicas para se atestar segurança e eficácia dos resultados das pesquisas ocorridas em ambiente controlado de laboratório, a fim de possibilitar a aplicabilidade no mundo real com existência de plena relação de efetividade. Nesse sentido, com o ímpeto de chamar a atenção e se apresentado sob a forma de revolução cultural contra a noção de que o que é mais rápido é sempre melhor, pauta-se a filosofia Slow, não com a proposta fazer tudo a um passo lento, mas fazer tudo na velocidade certa. Essa filosofia abrange várias vertentes como alimentação, estilo de vida, moda, sustentabilidade e saúde. Notadamente, dentro do escopo relacionado aos cuidados em saúde, a Slow Medicine - termo utilizado pela primeira vez pelo médico cardiologista  Alberto Dolara (2002)1 e traduzido no Brasil como Medicina sem Pressa - refere-se à busca por equilíbrio em detrimento a ênfase exagerada de processos rápidos na assistência, que levam à redução da qualidade e expõe o paciente a riscos desnecessários. Em realidade, o que se pretende é associar o termo Slow  Medicine a uma Medicina reflexiva, como forma de chamar a atenção para uma dimensão mais humana na assistência em saúde e, sobretudo, centrada nas necessidades do paciente. Destarte, é um apelo internacional por um cuidado mais consciente.2 Para tanto, atua com função educadora vislumbrando divulgação de informações amplas e robustas para auxiliar os pacientes nas melhores escolhas. Incentiva o autocuidado, ajuda o paciente e a comunidade na literacia em saúde 3, auxiliando na construção do conjunto de habilidades e competências que cada indivíduo possui para buscar compreender, avaliar e dar sentido às informações sobre saúde. Atualmente, em muitas situações profissionais que nada introjetaram do seminal objetivo do movimento apropriam-se do termo e o utilizam como forma de engajamento, publicidade e outras efemeridades. Por esse motivo é necessário destacar que Slow Medicine não é um mero anglicismo para fomentar uma nova grife, um modismo ou uma tendência passageira. Muito menos se pretende estabelecer como especialidade médica, certificação de boas práticas, ou na criação de relação de médicos diferenciados. Antes de tudo, a Slow Medicine pretende aprimorar a assistência com resgate de valores perdidos ao longo do tempo.4 Por esse motivo, apenas pretende a Slow Medicine reensinar os médicos a individualizarem suas condutas, desenvolver uma visão mais crítica a respeito das informações acessadas. Em suma, trata-se de uma filosofia e de uma prática em saúde que busca oferecer o melhor cuidado, baseando-se nas melhores evidências científicas, com foco centrado no paciente, elaborando decisões ponderadas e cautelosas e, sempre que possível, compartilhadas. Propõe um cuidado que busca a tecnologia apropriada à singularidade de cada paciente e de sua situação vivencial, tendo como premissa que nem sempre fazer mais significa fazer o melhor. Por isso que se arrima na fundamental necessidade de priorizar análise pormenorizada sobre a utilização dos novos tratamentos e meios procedimentos diagnósticos e se eles, realmente, trazem maiores benefícios do que riscos ao paciente. 5 O tempo é visto como elemento essencial, seja ele para ouvir, refletir, construir relações sólidas e duradouras entre médicos, pacientes, famílias e comunidade. Importante esclarecer, contudo, que o fato de um profissional seguir a filosofia e, por consequência, adotar uma postura slow, não significa dizer que precisará de mais tempo cronológico para estabelecer vínculos importantes e fazer avaliações acuradas em pouco tempo. É possivel ser treinado para otimizar o tempo e, principalmente, entender que quando estiver diante do paciente, deverá estar presente no tempo presente. Os profissionais de saúde atuam com atenção, equilíbrio e educação.6 Tudo começa a partir do diálogo cuidadoso com empatia e aproximação, segundo o qual se propõe entrevistar e examinar o paciente, equilibrar benefícios e danos das intervenções diagnósticas e terapêuticas, sendo ponderado para intervir quando os sintomas são indiferenciados,  comprometido com a observação como uma importante estratégia diagnóstica e terapêutica e cauteloso sobre a adoção de novos testes diagnósticos e terapias até que a evidência estabeleça seu valor.7 Existe o olhar humanizado, a escuta ativa e a conduta fundamentada na compaixão e no constante "colocar-se no lugar do outro". Busca identificar e reconhecer a singularidade, a capacidade e autodeterminação do paciente, objetivando encaixar suas características e história de vida, para que se sinta acolhido e colaborativo no processo do cuidado.  Para tanto, a autonomia do paciente é elevada a um patamar adequado, sendo que, há a aposição do conceito positivo de saúde, com foco no autocuidado, resiliência, e prevenção. No mesmo mote, considera os valores, expectativas e desejos do paciente como invioláveis por estar umbilicalmente vinculado com o fundamento da dignidade da pessoa humana.  Considera que é condição inerente da autonomia do paciente o direito de se expressar amplamente. O profissional, portanto, incentiva a comunicação honesta, ponderada e completa com o paciente, é respeitoso, acolhe e levar em consideração os valores, preferências. Nesse sentido,  reconhece o valor das narrativas individuais na prática clínica, não apenas para validar a experiência do paciente, mas também incentivar a criatividade e autorreflexão no médico, enveredando  para a Medicina Narrativa.8 O profissional com base na informação do paciente e dentro da autonomia técnica tem preparo para utilizar ferramentas mediadas pela Medicina Baseada em Evidências. Significa integrar a experiência clínica individual com as melhores evidências clínicas disponíveis a partir de pesquisas sistemáticas. Para tanto, é preparado para analisar estudos, desenhos de pesquisas, as metodologias aplicadas e se os resultados obtidos são factíveis. Logo, o termo slow em nada se vincula a uma medicina relaxada, indolente, preguiçosa, não resolutiva, e que leva muito tempo para tomar uma decisão e iniciar uma conduta. De certo, em muitas circunstâncias, a medicina deve ser rápida, ainda mais quando se deparam com situações de grave risco de vida. No entanto, é fundamental saber refletir sobre como lidar com uma doença, o significado da prevenção e do atendimento personalizado, saber avaliar criticamente os resultados de exames diagnósticos, saber adaptar as recomendações das diretrizes a cada paciente.9 Parte-se, então, de eixos arrimados na Medicina Sóbria, Respeitosa, Justa10 e honesta. Considera-se Medicina Sóbria, na ação com moderação, de forma gradual e sem desperdícios; Medicina Respeitosa, por cuidar da preservação da dignidade e dos valores de cada pessoa; e Medicina Justa, por estar empenhada em garantir o acesso a cuidados adequados para todos.  Por isso, não se trata de uma nova construção, mas um reenraizamento na essência da Medicina, em ampla confluência e aplicação prática dos princípios bioéticos. Nesse sentido, sumariamente, Medicina Sóbria, muito bem se adéqua aos princípios da beneficência ou não-maleficência, por visar o primum non nocere. Por sua vez, a Medicina Respeitosa, conflui com o princípio da autonomia, devido ao fato de valorizar as crenças e costumes individuais do paciente como ponto fundamental ao processo de tomada de decisão compartilhado. Por fim, a Medicina Justa, está entrelaçada com o princípio da justiça, pois, quando o profissional age racionalmente no manejo das propostas destinadas ao paciente, sem conflitos de interesse ou sem desperdícios irracionais, resulta em critérios de justiça distributiva. Não se olvide que o excesso irracional de cuidados para alguns, não deveria acontecer à custa da escassez de outros. Propugna-se, também, na utilização da tecnologia baseada em Choosing Wisely (escolhas sábias)11 e, consequentemente, anda em direção diametralmente oposta ao desperdício irracional e exposição de riscos desnecessários a todos os participantes da assistência, pois se acredita que fazer mais nem sempre significa fazer melhor. É o caminho para um tratamento sóbrio, respeitoso e justo, partilhado pelos profissionais da saúde, pelos pacientes e  para a comunidade. 12  Em consequência, distancia-se do oferecimento de um tratamento exagerado, desrespeitoso e injusto, tão aplicados pela medicina moderna, que em muitas situações é dotado de prática agressiva, ao aplicar o uso da tecnologia acriticamente em estrito cumprimento das recomendações que afirma tratar todos da mesma maneira, de modo a negligenciar as necessidades, expectativas, desejos, ansiedades,  e medos de cada pessoa que precisa de cuidados.  Prioriza a qualidade de vida, sopesando possíveis excessos do uso da tecnologia bem como  relação entre o risco benefício de uma conduta, sendo que, por critério de segurança do paciente, recomenda-se não intervir quando houver dúvida. Com essa linha de desdobramento lógico, enfatizam que o fato de ser fazer mais não significa fazer melhor, mas ao contrário em muitos casos. Nos processos de tomada de decisão reflete um conhecimento científico da maior qualidade, ou seja, melhores informações e melhores evidências, o que auxilia os profissionais na seleção das condutas e exames a serem pedidos, e leva em consideração a experiência do profissional médico e a vontade do paciente. Note-se que é essencial alicerçar a prática profissional em evidências científicas, desde que os profissionais da saúde façam uma leitura crítica da literatura científica para oferecerem cuidado sóbrio ao paciente, que consiste em empregar tudo o que for necessário, evitando-se desperdícios e excessos.  Assim, objetivamente definem David, Willian e Muir (1996)13: Medicina baseada em evidências é o uso consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência disponível ao tomar decisões sobre o cuidado de um paciente. 14 Nesse diapasão, importante trazer, em arremate, os dez princípios que norteiam a pratica filosófica na assistência da saúde, compilados pela iniciativa Slow Medicine Holanda quais sejam15: 1. Tempo: tempo para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões. A tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção cuidadosa ao paciente; 2. Individualização: cuidado particularizado, justo, apropriado. feitos na medida adequada e equitativa A individualidade em lugar da generalidade. O paciente deve ser o foco da atenção e seu ponto de vista e seus valores são fundamentais; 3. Autonomia e Auto-Cuidado: a tomada de decisão deve ser compartilhada segundo os  valores, expectativas e preferências do paciente. Isto engloba uma integração do programa de cuidados no ambiente do doente; família, vizinhos, amigos e outros recursos;  4. Conceito positivo de saúde: transcende o antigo conceito de saúde da OMS ("um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades") o foco é no auto cuidado e resiliência, com ênfase na saúde e não na doença, abordando os cuidados de saúde e a prevenção de doenças e a manutenção da qualidade e da acessibilidade dos cuidados; 5. Prevenção: alimentação saudável é a prescrição básica para uma vida saudável. Atividade física regular.  pensamento positivo e flexibilidade mental podem (re)programar e são essenciais para manter nossos cérebros saudáveis;  6. Qualidade de vida: fazer mais nem sempre significa fazer melhor. Mais que quantidade deve-se investir na qualidade, na aceitação do inevitável. Deve-se sempre considerar a arte médica de não intervir a sabedoria da observação clínica e a arte médica; 7. Medicina Integrativa: a medicina complementar se possível em evidências. Segurança em primeiro lugar, eficácia quando possível. Sem metáforas da luta ou guerra contra a doença. As palavras de ordem são recuperação, equilíbrio, harmonia; 8. Segurança em primeiro lugar: lembre-se do juramento de Hipócrates : Primum non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir; 9. Paixão e compaixão: resgatar a paixão pelo cuidar e o sentimento da compaixão na atenção médica. Buscar incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde; 10. Uso parcimonioso da tecnologia: a tecnologia deve servir ao homem. As novas tecnologias devem cumprir seus objetivos de auxiliar a pessoa no autocuidado e auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, que busquem primordialmente melhorar sua qualidade de vida. A Slow Medicine é, portanto, uma real retomada da medicina individualizada, pois todos somos uma única essência em nos mesmos, e não meras estatísticas em uma coletividade massificada. É o ideal resgate do "primum non nocere et in dubio abstine" (primeiro não prejudicar e na dúvida se abstenha). É o renascimento da verdadeira arte de cuidar.16 __________ 1 Dolara A. Invito ad una "Slow Medicine". Ital Heart J Suppl 2002; 3: 100-1. Disponível aqui. 2- Lie Y Slow Medicine, an international appeal on mindful healthcare Disponível aqui. 3-Peres F Rodrigues KM Silva TL Literacia em Saúde Fiocruz Rio de Janeiro 2021 4- Velho JCC Slow Medicine não é uma especialidade médica. Saiba por que. Disponível aqui. 5-Note-se que apesar de conter medicine na expressão, claramente não estaria limitado apenas à Medicina.  Como tem em seu escopo mais purista a proposta de direcionar a posturas éticas, ponderadas e baseadas em boas práticas centradas na pessoa, na prática atinge transversalmente todos os profissionais da saúde. 6-Bifulco V, Bottoni A. Porque uma medicina sóbria, respeitosa e justa é possível Disponível aqui.               7-Updates in Slow Medicine Disponível aqui. 8-Costa A C S  Medicina translacional na interseção da medicina baseada em evidências e da medicina narrativa Journal of Human Growth and Development versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598 J. Hum. Growth Dev. vol.25 no.3 São Paulo  2015 Disponível aqui. 9-Bobbio M. Chiarlo M. Arcadi P. Per Slow Medicine le prove sono indispensabili Disponível aqui. 10- Il Manifesto di Slow Medicine ETS nel Mondo Disponível aqui. 11- Velho JCC Choosing Wisely e Slow Medicine: caminhos compartilhados Disponível aqui. 12-Birolini D. Slow Medicine - um conceito em evolução Disponível aqui. 13- David S., William R., Muir G. Evidence based medicine: what it is and what it isn't BMJ; 13 January 1996 disponível aqui. 14- Velho JCC Medicina Baseada em Evidências e Slow Medicine Disponível aqui. 15- Lie Y. Slow medicine, your medicine to a healthy life Ten basics of Slow Medicine Disponível aqui. 16- Callegari L. Slow Medicine: um a interface entre a Bioética, a Medicina e o Direito Disponível aqui.
Introdução Em 20 de janeiro de 2023, o Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública, em escala nacional, diante da necessidade de combate à desassistência sanitária dos Povos que vivem no território Yanomami1. O Ministério da Saúde também instalou o Centro de Operações em Emergências em Saúde Pública, o COE-Yanomami, um mecanismo nacional de gestão coordenada para responder à emergência em âmbito nacional, cuja gestão está sob a responsabilidade da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI). O COE é responsável pela coordenação das medidas a serem empregadas durante o estado de emergência, incluindo a mobilização de recursos para o restabelecimento dos serviços de saúde na região, bem como pela articulação com os gestores estaduais e municipais do SUS. A situação é tão grave que as equipes do Ministério da Saúde encontraram, na região Yanomami, território indígena com mais de 30,4 mil habitantes, crianças e idosos em estado grave de saúde, com quadro de desnutrição grave, malária, infecção respiratória aguda e outros agravos, com registro de mortes de crianças e de cerca de mais de 11 mil casos de malária. Por isso, o Ministério da Saúde também instalou a sala da situação para tratar a grave crise humanitária dos Povos Indígenas Yanomami, com a participação do Ministério Público Federal, que enviou ao Governo Federal duas Recomendações, nº 1/2021 e 23/20222, com a indicação de diversas medidas para a reestruturação da assistência básica de saúde aos Povos da Terra Indígena Yanomami, para auxiliar a tomada de decisão dos gestores e para orientar a ação de equipes locais. O Ministério da Saúde constatou que o garimpo ilegal é a principal causa da crise de saúde que afeta a etnia que, no Brasil, vive entre os Estados do Amazonas e Roraima. Diante desse cenário, o artigo tem o objetivo de analisar a situação do Povo Yanomami, sob o viés do ordenamento jurídico brasileiro, bem como do direito internacional. Por sua vez, seu objetivo específico é refletir sobre a aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, de 1948 ao caso, que se caracteriza como mistanásia social. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 As informações estão disponíveis aqui. Acesso: 11 fev. 2023. 2 As informações estão disponíveis aqui. Acesso: 11 fev. 2023.
segunda-feira, 17 de abril de 2023

Hermenêutica médica

Interpretar significa revelar o sentido de algo. Na área médica é muito comum haver divergências sobre interpretação. Neste sentido, é sempre importante haver clareza na cadeia de interpretação do ato médico (interpretação médica => interpretação do ato médico => interpretação do julgador). Em primeiro lugar, há a interpretação médica, ou seja, produzida pelo agente que pratica ou participa do ato (médico assistente/cirurgião, por exemplo). É a interpretação autêntica. Em segundo lugar, a interpretação do ato médico decorre da análise de terceiro, que geralmente não participa do ato. Por exemplo: um jornalista que analisa uma acusação de erro médico. Em terceiro lugar, há a interpretação do julgador (Conselho de Medicina ou Poder Judiciário, por exemplo). Aqui a interpretação pode ganhar contornos diversos, com ênfase no aspecto técnico ou destaque para a regulação jurídica do ato médico. Estas duas últimas geralmente serão interpretações constitutivas e não autênticas. Cada fase é autônoma e pode originar resultados distintos. Dai a importância em: a) promover a interpretação adequada; b) afastar as interpretações equivocadas; c) fomentar a interpretação de acordo com o contexto; d) prestigiar a interpretação conforme os fatos (com o fim de preservar o mundo real), ou seja, a interpretação não pode ser meramente abstrata1. Zagrebelski assenta que a interpretação não é apenas um ato reprodutivo, mas também produtivo2. Ou seja, a versão apresentada pode influenciar o ato médico interpretado. Tais considerações são importantes no cenário brasileiro, pois o ato médico é constantemente submetido ao crivo da análise judicial ou do controle de classe (processo ético no Conselho de Medicina), razão pela qual a compreensão adequada do tema é indispensável para a preservação da ato médico e também da proteção dos seus destinatários (sociedade).  A hermenêutica também é muito importante nas discussões sobre erro médico (principalmente quando se investiga o erro técnico e o erro de raciocínio).  O erro médico é frequentemente judicializado. Na via cível, quando se postula indenização por danos ocorridos. E também no âmbito criminal, quando há tipificação na legislação penal vigente. Na esfera administrativa, é possível processar o profissional em razão de eventual descumprimento da ética médica. Ou seja, a responsabilização pode ser tríplice. Neste sentido, é importante saber a conceituação adequada. Erro médico é todo e qualquer ato que viola a legislação e, principalmente, causa dano/prejuízo. É um conceito amplo. O erro técnico é mais específico, pois se refere a questões da prática médica. Groopman faz importante observação sobre o tema: Durante muito tempo acreditei que os erros que cometemos na medicina fossem basicamente técnicos - prescrever a dose errada de um medicamento, fazer uma transfusão de sangue incompatível, marcar uma radiografia de um braço 'direito' em vez de 'esquerdo'. Mas como cada vez mais as pesquisas revelam, os erros técnicos são responsáveis por apenas uma pequena parcela de nossos diagnósticos e tratamentos errados. A maioria dos erros é de raciocínio equivocado. E parte do que provoca erros cognitivos são nossos sentimentos internos, aqueles que não admitimos imediatamente e que se muitas vezes nem sequer reconhecemos.3 O erro de raciocínio pode ocorrer na forma de "erro de representatividade: seu raciocínio é guiado por um protótipo; portanto, deixa de considerar possibilidades que contradizem o protótipo, atribuindo desse modo os sintomas à causa errada."4 Outra forma de erro médico muito comum é o "erro de atribuição: quando os pacientes se encaixam em um esteriótipo negativo."5 Tal reflexão indica a relevância na forma de pensar o ato médico. Vale dizer, após a anamnese o profissional deve fazer a interpretação adequada e apresentar a conclusão correta para o fato ou caso clínico. É claro que a medicina não é considerada uma ciência exata6. Mas a interpretação deve ser a mais científica possível, sob pena de permitir discussão do ato e eventual prática de erro médico, nas suas múltiplas possibilidades. A hermenêutica ainda influencia aspectos médicos específicos, tal como se verifica no dever de informação.  Um dos grandes desafios na área da saúde é concretizar o direito fundamental à informação. No Direito Médico, por exemplo, a soberania da palavra do profissional praticamente impedia o diálogo e o esclarecimento sobre os tratamentos e as intervenções sanitárias. Contudo, houve aumento significativo de condenações de médicos ao pagamento de indenizações em razão da omissão em informar adequadamente seu paciente. A questão é analisada com frequência pelo Superior Tribunal de Justiça. Em relevante decisão, a aludida Corte assentou que: [...] Todo paciente possui, como expressão do princípio da autonomia da vontade, o direito de saber dos possíveis riscos, benefícios e alternativas de um determinado procedimento médico, possibilitando, assim, manifestar, de forma livre e consciente, o seu interesse ou não na realização da terapêutica envolvida, por meio do consentimento informado. Esse dever de informação encontra guarida não só no Código de Ética Médica (art. 22), mas também nos arts. 6º, inciso III, e 14 do Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 15 do Código Civil, além de decorrer do próprio princípio da boa-fé objetiva. 3.1. A informação prestada pelo médico deve ser clara e precisa, não bastando que o profissional de saúde informe, de maneira genérica, as eventuais repercussões no tratamento, o que comprometeria o consentimento informado do paciente, considerando a deficiência no dever de informação. Com efeito, não se admite o chamado "blanket consent", isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação. 3.2. Na hipótese, da análise dos fatos incontroversos constantes dos autos, constata-se que os ora recorridos não conseguiram demonstrar o cumprimento do dever de informação ao paciente - irmão dos autores/recorrentes - acerca dos riscos da cirurgia relacionada à apnéia obstrutiva do sono. Em nenhum momento foi dito pelo Tribunal de origem, após alterar o resultado do julgamento do recurso de apelação dos autores, que houve efetivamente a prestação de informação clara e precisa ao paciente acerca dos riscos da cirurgia de apnéia obstrutiva do sono, notadamente em razão de suas condições físicas (obeso e com hipertrofia de base de língua), que poderiam dificultar bastante uma eventual intubação, o que, de fato, acabou ocorrendo, levando-o a óbito.7 Assim, os Tribunais brasileiros passaram a adotar posição contundente quanto ao cumprimento do direito à informação. Portanto, é indispensável que o termo de consentimento do paciente contemple todas as informações possíveis (sobre a intervenção, o desfecho desejado, possíveis eventos adversos, riscos, comportamento do paciente, etc), a fim de conferir mais transparência o ato, maior confiabilidade e deixar o seu destinatário seguro quanto ao serviço prestado. __________ 1 ZAGREBELSKI, Gustavo. Interpretare. Dialogo tra un musicista e un giurista. Il Mulino: Bologna, 2016, p. 48. 2 L'interpretazione non è mai solo un atto ri-produttivo, mas anche produttivo."  ZAGREBELSKI, Gustavo. Interpretare. Dialogo tra un musicista e un giurista. Il Mulino: Bologna, 2016, p. 54. 3 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 49/50. 4 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 53. 5 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 54. 6 COEN, Daniele. L'arte della probabilità: certezze e incertezze della medicina. Raffaella Cortina Editore: 2021. 7 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, REsp 1848862/RN, RELATOR Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DATA DO JULGAMENTO 05/04/2022, DJe 08/04/2022, Disponível aqui. Acesso em: 26 Abr. 2022.
O dr. Fulano, médico que trabalha com questões estéticas, possui 2 milhões de seguidores no Instagram e, em seu perfil, mescla posts pessoais com posts profissionais. Ou seja, ao lado de fotos - do tipo família margarina - com seus filhos e sua mulher há também fotos de procedimentos pouco invasivos realizados no consultório, reels de alguns atendimentos, reposts de pacientes que publicam fotos com ele e, ainda, fotos dos trabalhos sociais que ele faz. Na "bio" do seu perfil, há apenas a informação que ele é médico. O número do CRM e no Registro de Qualificação de Especialidade (RQE) não são divulgados. Este é um caso fictício, que inventei para ilustrar a reflexão que proponho neste texto: um médico que viola as normas de publicidade exaradas pelo Conselho Federal de Medicina causa danos ao paciente que o segue? De acordo com as atuais normas do Conselho Federal de Medicina (CFM), especialmente as resoluções CFM 1974/2011 e 2126/2015, o médico não pode postar fotos de seus pacientes. Nem se o paciente autorizar. Nem se o paciente pedir. Nem se o paciente já tiver divulgado a foto. Nem se a foto estiver rodando os grupos de whatsapp. Nem se a foto for capa do jornal de maior circulação do país. Não pode. Estas mesmas normas vedam as postagens do tipo "antes e depois" a determinam que o médico deve divulgar o número do seu CRM e de seu RQE, caso se apresente como especialista, em todas as publicidades que fizer. Há ainda uma lacuna normativa sobre a possibilidade de o médico misturar em um mesmo perfil, a vida pessoal e profissional. Sobre este tema, o médico e pesquisador australiano Neil David Long1, afirmou que "a confusão entre vida profissional e pessoal pode levar a infelizes consequências (...). Um momento de deslize pode deixar uma pegada digital permanente e prejudicar a confidencialidade, honestidade e confiança na profissão médica." Na era da sociedade da espetacularização, a sociedade de consumo privilegia o produto/profissional/serviço mais exposto, mais curtido, mais seguido... e esse posto tem se tornado objeto de desejo de muitos médicos. É inegável  que ter um perfil no instagram é uma forma de o médico fazer publicidade. E para muitas pessoas, há um excesso de conservadorismo - e muito atraso - nas atuais normas do CFM; afinal, as redes sociais hoje são um importante meio de comunicação e também de realização de negócios. Poderíamos dizer, assim, que as violações que o dr. Fulano comete às normas do CFM não é de interesse de seus pacientes. Para estes, importa que o Dr. Fulano seja um bom médico, leia-se, os atenda com cordialidade e entregue os resultados desejados. Todavia, a Medicina não é uma profissão de resultados, ela é uma profissão de cuidado. O objetivo do médico não é entregar ao paciente a estética desejada, é oferecer ao paciente o melhor cuidado, dentro da melhor técnica existente. "Primum non nocere" (em tradução literal: "primeiro não fazer o mal") é uma máxima que rege a relação paciente-médico desde os primórdios. Significa, resumidamente, que antes de qualquer ato, o médico deve ponderar os efeitos maléficos deste ao paciente. Se tais efeitos são claros em atuações negligentes, imperitas ou imprudentes, em temas afetos à publicidade médica a maleficiência não é tão cristalina. Ouso dizer, inclusive, que a maioria da população sequer consegue visualizar esta relação. Portanto, poderíamos concluir que o Dr. Fulano não causa danos ao paciente em sua atuação nas redes sociais. Contudo, profissionais de saúde que trabalham e pesquisam saúde mental já defendem que  "o uso problemático da Internet tornou-se uma preocupação de saúde pública, particularmente entre adolescentes e adultos emergentes."2 E mais, há, atualmente, uma preocupação crescente na psicologia os efeitos psíquicos que o uso desadaptativo causam nas pessoas, incluindo aumento de transtornos psíquicos e de dificuldades em relacionamentos interpessoais.3-4-5 Por estas razões, entendo que o dr. Fulano causa, sim, graves danos aos seus atuais e futuros pacientes. Explico: Em todo o mundo, a Medicina aparece como uma das profissões mais respeitadas e admiradas pela sociedade, portanto, como médico, o dr. Fulano ostenta uma posição de respeito e admiração. Soma-se a isso, o fato de que o dr. Fulano tem 2 milhões de seguidores, o que dá a ele um status de bom profissional. Assim, ao divulgar sua família margarina, o Dr. Fulano pode fazer com que seus pacientes olhem para a própria vida e sintam-se fracassados. Ao divulgar os procedimentos feitos em consultório, o Dr. Fulano pode alimentar nas pessoas a falsa sensação de que os procedimentos estéticos são simples e sem riscos. Ao divulgar reels de alguns de atendimentos, pode gerar o desejo narcísico de que o seguidor seja o próximo paciente. Ao repostar posts feitos pelos pacientes, pode criar uma falsa sensação de proximidade e cuidado. Ao divulgar fotos os trabalhos sociais que pratica, pode ganhar a empatia de seus seguidores à despeito de suas competências técnicas. Diante de tudo isso, é esperado que o leitor pense: "é simples, basta que o seguidor que se sinta mal deixe de seguir o dr. Fulano." É verdade, ele pode dar um unfollow no dr. Fulano. Mas as chances são pequenas. E mais, o fato de o Dr. Fulano ser médico vulnera a maior parte do seu público que está lá porque confia, respeita e admira o médico. Assim, ainda que o malefício causado pelo dr. Fulano não seja explícito, não podemos negar a possibilidade de que ele exista. E, quiçá, de que ele seja ainda mais grave do que os demais, exatamente por ser um dano não reconhecido. __________ 1 Long, Neil David (2018). The good, the bad and the ugly of social media: How to navigate through the noise. Emergency Medicine Australasia, -. doi:10.1111/1742-6723.13098  2 Shahla Ostovar;Reyhaneh Bagheri;Mark D. Griffiths;Intan Hashimah Mohd Hashima; (2021). Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance . Clinical Psychology & Psychotherapy, -. doi:10.1002/cpp.2581 3 Ostovar S, Bagheri R, Griffiths MD, Mohd Hashima IH. Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance. Clin Psychol Psychother. 2021 Nov;28(6):1509-1524. doi: 10.1002/cpp.2581. Epub 2021 Mar 23. PMID: 33687117. 4 Zsila Á, McCutcheon LE, Demetrovics Z. The association of celebrity worship with problematic Internet use, maladaptive daydreaming, and desire for fame. J Behav Addict. 2018 Sep 1;7(3):654-664. doi: 10.1556/2006.7.2018.76. Epub 2018 Sep 17. PMID: 30221539; PMCID: PMC6426373. 5 Fioravanti G, Flett G, Hewitt P, Rugai L, Casale S. How maladaptive cognitions contribute to the development of problematic social media use. Addict Behav Rep. 2020 Feb 21;11:100267. doi: 10.1016/j.abrep.2020.100267. PMID: 32467856; PMCID: PMC7244923.