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Migalhas Criminais

Temas relevantes do Direito Penal e Processual Penal, com enfoque para os julgamentos mais recentes do STF e STJ.

Júlio César Craveiro Devechi
Nesta edição da coluna Migalhas Criminais, temos a satisfação de contar com a colaboração de João Gabriel Ribeiro Preira Silva, juiz de Direito do TJ/DFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, juiz auxiliar no STJ e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, que enfrenta com profundidade e clareza um dos temas mais complexos e atuais do Direito Penal contemporâneo: a competência da Justiça Federal para julgar delitos relacionados à oferta de criptomoedas ao público. O autor parte da constatação do crescente protagonismo das moedas digitais no cenário econômico e jurídico para analisar como a jurisprudência do STJ tem se posicionado em conflitos de competência entre a Justiça Federal e a estadual. Com base em precedentes recentes, o magistrado esclarece os critérios adotados pelo STJ para diferenciar, por exemplo, operações fraudulentas típicas de estelionato daquelas que, pela estrutura e habitualidade, podem configurar crimes contra o sistema financeiro nacional. Além disso, o texto chama atenção para a recente alteração legislativa promovida pela lei 14.478/22, que passou a incluir os prestadores de serviços com ativos virtuais no rol das instituições financeiras equiparadas, o que pode provocar relevante inflexão na jurisprudência consolidada até aqui. Em meio a uma zona cinzenta de regulação e interpretação, o artigo convida à reflexão sobre os limites do conceito de instituição financeira, a natureza jurídica dos ativos virtuais e os contornos da competência penal no Brasil. Imperdível para estudiosos do direito penal econômico e todos os que se deparam com os desafios da criminalidade digital. Com a palavra, nosso convidado João Gabriel. Ao menos desde a primeira hipervalorização sofrida pelo "Bitcoin" nos anos de 2017 e 2018, nos quais a criptomoeda saiu do patamar de dólares para dezenas de milhares de dólares, a questão relativa às criptomoedas entrou em voga, inspirando apaixonados debates e deixando em seu caminho uma legião de arrependidos, que do passado só tem a certeza de que se pudessem retornar, adquiririam a "moeda". Embora de difícil estimativa, tem-se, atualmente, notícia de que cerca de 17 mil tipos diferentes de "criptomoedas" em negociação1, em um mercado que, estima-se, movimenta cerca de US$ 18,83 trilhões apenas nas 15 principais "exchanges"2 (hubs responsáveis por oferecer sistemas de carteira que guardam e oferecem à compra e venda os ativos). Como não poderia ser diferente, um fenômeno social que tangencia valores de tamanha relevância não passaria ao largo do sistema Judiciário brasileiro, que tem sido chamado a enfrentar problemas jurídicos envolvendo tais ativos, cujo potencial litigioso pode desafiar as mais variadas questões: desde a regulamentação pelas autoridades monetária e de valores mobiliários, passando por questões sucessórias e tangenciando a justiça criminal. Em termos de justiça criminal, mostra-se quase intuitiva a ligação entre a moeda e a Justiça Federal. Seja porque a CRFB/88 - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 proclama, de maneira direta, o monopólio da União para a emissão da moeda (art. 21, VII), seja porque, no imaginário popular, uma das hipóteses mais comuns de se ver cidadãos submetidos a processos penais perante a justiça especializada é a relativa ao processamento pelo crime de moeda falsa, previsto no art. 298 do CP brasileiro.  Contudo, ao público mais familiarizado com o Direito Penal, o diálogo entre o instrumento monetário e o sistema criminal evoca também o menos conhecido e mais sofisticado delito de operar uma instituição financeira sem autorização do Banco Central, cuja tipificação encontra-se na lei 7.492/86, art. 16, que comina pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa ao banqueiro clandestino. Diante da carnal imbricação havida entre o sistema financeiro e a moeda, o próprio constituinte houve por bem estabelecer, em termos claros, a competência da Justiça Federal para processar em julgar "(...) nos casos determinados por lei, (os crimes) contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira" (art. 109, VI da CRFB/88). Ocorre, contudo, que, no caso do delito de operação irregular de instituição financeira, a despeito da clareza da previsão da regra de competência, a apuração da competência da Justiça Federal resta dificultada por um dos elementos objetivos do tipo previsto no art. 16 da lei 7.492/86: o conceito de "instituição financeira". Ao leitor mais atento não foge a resposta direta: a carga normativa desta expressão decorre da conceituação direta dada pelo art. 1º do mesmo diploma legal que define que "Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários." Assim, aos filhos e filhas ou pais e mães que aplicam os recursos de sua prole ou de seus genitores em arranjo de "holding familiar" já se recomenda, de imediato, a contratação de advogado para a defesa em eventual ação penal. No mesmo sentido, aos colegas de trabalho que arrecadam em conta de suas pessoas jurídicas os valores para custeio da confraternização de fim de ano se recomenda cautela. Obviamente, tais situações de "intermediação" financeira estão ao largo do objetivo da norma penal, que objetiva, em verdade, a persecução penal de pessoas jurídicas que, de maneira sistemática e continuada, captem recursos privados e os mantenham em custódia e, de outro lado, ofereçam crédito ao público. Assim, a diferenciação entre a adoção de estratagemas que viabilizam, através de engano, fraude, artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento a apropriação de recursos de terceiros, em típica conduta de estelionato, e a lesão à economia popular promovida por instituição financeira não autorizada é mais sutil do que se pode pensar e, por tal motivo, o STJ tem sido chamado, frequentemente, a se pronunciar sobre o tema em conflitos de competência julgados pela 3ª seção. Dispõe o art. 105, I, d, da CRFB/88 que "Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente (...) d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos". A análise da jurisprudência da corte em casos em que o delito investigado é o de estelionato praticado em desfavor de particular determinado mediante oferta de investimentos com rendimentos mensais indica posição remansosa do STJ no sentido de reputar competente o juízo estadual. Neste sentido: (...) A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da lei 7.492/1986. Assim, a princípio, processos criminais envolvendo a matéria devem correr no âmbito da Justiça estadual. (...) (AgRg no CC 189304 / RJ, RELATOR ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, DATA DO JULGAMENTO 13/12/2023, DATA DA PUBLICAÇÃO/FONTE DJe 18/12/23) Em reforço: "A captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular)" (STJ, CC n. 146.153/SP, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Terceira Seção, julgado em 11/5/16, DJe 17/5/16). Mencione-se, ainda, os seguintes conflitos julgados colegiadamente: CC 195.150/SP, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 12/4/23, DJe de 19/4/23; CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20; CC 202.036, ministra Daniela Teixeira, DJe de 11/3/24 e CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18. Da análise de tais precedentes, o que se observa é que, na maioria dos casos, a 3ª seção do STJ tem se pronunciado no sentido de que artifícios comumente estruturados na forma de "pirâmide financeira", devem ser caracterizados, ao menos para efeito de definição inicial da competência para a prestação de jurisdição, como estelionato, incumbindo, portanto, à Justiça Estadual, o processamento e julgamento dos fatos. Em geral, o entendimento adotado baseia-se nos seguintes argumentos:  "A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976." (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.); "(...) 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, no autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. (...)" (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª seção, julgado em 28/11/18, DJe de 5/12/18.); "Conforme jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, "a captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular) (CC 146.153/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 17/5/2016)" (CC 170.392/SP, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 3ª seção, julgado em 10/6/20, DJe de 16/6/20). Observa-se, portanto, que ausente regulação Federal das "criptomoedas", seja como substitutivo ou representativo da moeda nacional, seja como ativo, tem-se percebido o seu uso como elemento que compõe o "engano", "fraude", "artifício" ou "ardil" típico do estelionato ou como elemento típico da conduta prevista no art. 2º, IX, da lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular). Ademais, como pontuado pelo ministro Sebastião Reis Júnior por ocasião do julgamento colegiado de um dos primeiros conflitos de competência envolvendo a matéria (CC 161.123/SP), a mera negociação de tais "criptomoedas" não tipifica, por si, delito de ordem tributária que envolva exação Federal, evasão de divisas ou lavagem de capitais antecedida por delito apurado pela justiça especializada. Pode-se, dizer, assim, que a questão encontra-se pacificada perante o STJ. Ocorre, contudo, que a pesquisa de jurisprudência também permite encontrar delitos praticados mediante o emprego de "criptomoedas" cuja competência para apuração restou atribuída à Justiça Federal, destacando-se, aqui, o CC 187976 / RS e AgRg no CC 189304 / RJ. No primeiro precedente citado, a ministra Laurita Vaz estabeleceu "distinguishing" de clareza ímpar: "O caso dos autos, entretanto, possui nuances distintas, uma vez que a atividade exercida pelo investigado não se limitava à compra e venda de criptomoedas, mas incluía também atividades fiscalizadas pela União, tais como a operação de serviços de câmbio, bem assim a captação de recursos em moeda corrente com oferta de rendimentos." (CC 187.976/RS, relatora ministra Laurita Vaz, 3ª seção, julgado em 10/8/22, DJe de 18/8/22.) No último, tratando-se de caso rumoroso que envolveu a apuração de delitos praticados mediante oferta de "criptomoedas" que geraram prejuízos bilionários a milhares de pessoas, a 3ª seção se dividiu, prevalecendo, após o voto desempate proferido pelo presidente da Seção, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a posição adotada pelo relator, o ministro Ribeiro Dantas, no sentido de que "eventualmente, é possível que o referido delito (pirâmide financeira) esteja conexo a outros crimes contra o Sistema Financeiro Nacional". Asseverou-se, como "distinguishing", naquela ocasião, que "o grupo criminoso funcionou como instituição financeira clandestina, bem como que os contratos ofertados ao público caracterizavam-se como valores mobiliários, na modalidade contratos de investimento coletivo (CIC)" e que "os delitos da Lei n. 7.492/1986 contentam-se com a figura da Instituição Financeira equiparada, na forma do art. 1º, parágrafo único, da referida Lei." (AgRg no CC 189.304/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, 3ª seção, julgado em 13/12/23, DJe de 18/12/23.) Observa-se, portanto, que diante da prática de delitos exercida continuadamente através da negociação de criptomoedas e sua oferta ao público, não se pode dizer, de maneira definitiva, que a para apuração será exercida pela Justiça estadual. Há, numericamente, superioridade de hipóteses em que o STJ se pronunciou neste sentido, a qual deve ser interpretada como sinal indicativo, no sentido de que o deslocamento da apuração para a Justiça Federal deve ser amparado pelo apontamento de "distinguishing" em linha com os realizados pela Corte cidadã. A definição, contudo, resta ainda mais turvada pela inclusão pela lei 14.478 do I-A ao parágrafo único do art. 1º da lei 7.492/1986, que passou a equiparar a instituição financeira "a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia". É certo que, assim como a definição genérica contida no "caput" do dispositivo não é capaz de definir como instituição financeira as práticas cotidianas mencionadas no início do texto, tal dispositivo também não alçará a tal categoria as pessoas que negociem itens, contas e "skins" de jogos online como se ativos fossem. A questão estará ligada, portanto, à definição jurídica adequada do conceito de instituição financeira, a qual é, a seu turno, diretamente influenciada pelo entendimento que os juristas têm da moeda. Nesta missão, o componente essencial é o estrutural. O entendimento de que a instituição financeira, para ser assim entendida como tal, é aquela que, com habitualidade, capta recursos junto ao público de maneira ampla, custodiando-os em favor dos depositantes e, na outra ponta, empresta recursos financeiros também ao público, comprometendo-se a devolver os recursos depositados e a colocar à disposição de quem toma o montante emprestado, a soma que mutuou. ____________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Em julgamento finalizado no dia 11/3/25, o Plenário Virtual do STF trouxe novamente ao debate um tema sensível e de grande impacto para o direito processual penal brasileiro: o foro por prerrogativa de função para agentes públicos. O ministro Gilmar Mendes, em seu voto como relator nos autos de Habeas Corpus (HC) 232.627/DF e na Questão de Ordem no Inquérito 4.787, propôs a revisão do entendimento até então vigente na Corte e que estava inserido na Questão de Ordem na Ação Penal 937 (AP 937-QO), esta da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. O decano sugeriu que o foro especial deve subsistir mesmo após a cessação das funções do agente público, desde que os crimes imputados tenham relação com o exercício do cargo. Nesta edição, o coordenador da coluna Migalhas Criminais, Júlio César Craveiro Devechi, aborda a evolução jurisprudencial do foro por prerrogativa de função na Suprema Corte, sobretudo os argumentos agora apresentados pelo ministro Gilmar Mendes, a evolução do entendimento do ministro Luís Roberto Barroso e as possíveis consequências práticas da mudança de compreensão sobre o tema. 1. A evolução do entendimento do STF sobre o foro por prerrogativa de função A competência ou foro por prerrogativa de função é um instituto presente na Constituição Federal de 1988 (CF/1988), garantindo que certas autoridades sejam julgadas, na esfera penal, diretamente pelos Tribunais e em razão das relevantes funções públicas que desempenham. É o que ocorre, por exemplo, com as infrações penais comuns imputadas ao Presidente da República, ao Vice-Presidente, aos membros do Congresso Nacional, aos ministros do Supremo Tribunal Federal e ao Procurador-Geral da República, que devem ser apreciadas diretamente pelo STF. Da mesma forma, nos crimes comuns, os Governadores de Estado e do Distrito Federal serão processados e julgados diretamente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os juízes federais, por sua vez, devem ser julgados criminalmente perante seus respectivos Tribunais Regionais Federais (TRFs). Quanto aos crimes de responsabilidade, a CF/1988 também traz regras específicas nos artigos 102, inciso I, alínea "c"; 105, inciso I, alínea "a", segunda parte; e 108, inciso I, alínea "a", segunda parte. O objetivo dessas regras é evitar influências políticas locais sobre decisões judiciais e assegurar que ocupantes de altos cargos exerçam suas funções sem interferências indevidas. Historicamente, o Supremo oscilou entre dois critérios principais para a aplicação do foro especial por prerrogativa de função: Regra da Atualidade: o foro por prerrogativa de função vincula-se ao exercício presente (atual) do cargo. Assim, se um agente público perder o mandato (por renúncia, cassação ou término do período), seu processo deve ser encaminhado às instâncias ordinárias. Regra da Contemporaneidade: esse entendimento, por outro lado, traz vinculação entre o crime e o cargo. Assim, a prerrogativa de foro subsiste mesmo após o término do mandato, mas desde que o crime tenha sido cometido durante o exercício das funções públicas. Na Questão de Ordem na Ação Penal 937, consolidou-se a regra da atualidade, limitando-se a prerrogativa de foro apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo e extinguindo-a na hipótese de o agente deixar a função pública, qualquer que seja o motivo. Duas teses foram fixadas pelo Plenário do STF em 3/5/2018 e restaram assim redigidas: "(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo". A primeira tese foi responsável por redefinir o alcance do foro por prerrogativa de função, limitando sua incidência somente aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções nele desempenhadas. Justificou-se o entendimento na necessidade de garantir maior eficiência ao processo criminal de autoridades, evitando o uso indevido do foro extraordinário como mecanismo de impunidade e reforçando os princípios constitucionais da igualdade e da moralidade administrativas. A segunda tese estabeleceu um marco temporal de vigência para esse foro especial. A partir do momento em que a instrução processual é encerrada, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para julgar a ação penal se estabiliza e não poderá mais ser alterada em razão de o agente público deixar as funções ou assumir outro cargo. A construção do entendimento se deu para evitar manobras processuais capazes de atrasar o julgamento e comprometer a efetividade da justiça, por exemplo, com o esgotamento do prazo prescricional da pretensão punitiva. Por outro lado, o estabelecimento desse marco temporal implicou a redistribuição de várias ações penais. Passou-se a compreender que, antes dele - ou seja, antes da publicação do despacho de intimação para a apresentação de alegações finais -, não haveria estabilidade na competência dos Tribunais, que poderia ceder diante do término do mandato, da renúncia, da cassação ou da posse do agente em cargo público diverso. Em outras palavras, a ação penal apenas permaneceria nos órgãos colegiados quando estivesse "madura" para julgamento, com sua instrução já finalizada. Noutras hipóteses, o feito teria continuidade - a partir da fase em que se encontrasse - perante as instâncias ordinárias do Poder Judiciário. 2. O voto do ministro Gilmar Mendes: um Resgate da Contemporaneidade O ministro Gilmar Mendes propôs a revisão da questão, reintroduzindo a regra da contemporaneidade para os crimes praticados por agentes públicos detentores do chamado "foro privilegiado". Em seu entendimento, a competência de foro por prerrogativa de função deve subsistir mesmo após a saída do cargo, permanecendo, contudo, a exigência de que os fatos delituosos devem guardar relação direta com o exercício das funções. O ministro argumentou que a mudança promovida pela AP 937-QO gerou uma incongruência: se o critério é a relação do crime com o cargo, não faria sentido a prerrogativa desaparecer automaticamente quando o agente deixa a função. Para ele, essa lacuna incentivaria manobras protelatórias, como a renúncia estratégica para alterar o foro de julgamento e a busca eventual da prescrição e da impunidade. 3. O Contraponto do ministro Luís Roberto Barroso O ministro Luís Roberto Barroso, relator da AP 937-QO, revisitou o tema e acompanhou a nova proposta de Gilmar Mendes. Em seu voto-vista, reconheceu que a tese da AP 937-QO trouxe problemas práticos, especialmente quanto à morosidade e à instabilidade causada pelos sucessivos deslocamentos de competência, o que pode levar à prescrição. Embora tenha mantido a premissa central de que o foro por prerrogativa de função se aplica apenas a crimes cometidos no cargo e em razão dele, Barroso concordou com a necessidade de estabilizar a competência mesmo após a cessação das funções públicas e antes de encerrada a instrução processual, evitando que os feitos criminais mudem de instância conforme avançam. Isso representa uma inflexão parcial em relação à posição anterior do ministro presidente, que priorizava a cessação imediata da prerrogativa de foro ao fim do exercício da respectiva função pública e antes do encerramento da instrução processual. Assim, Barroso endossou a proposta de Gilmar Mendes, mas sem abandonar os fundamentos essenciais por ele expostos na AP 937-QO. 4. Demais Ministros Além do presidente da Corte, os ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques e Dias Toffoli também acompanharam a posição do ministro Gilmar Mendes. Zanin seguiu integralmente o voto do relator, destacando que a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do titular, ainda que a investigação ou a instrução da ação penal não estejam concluídas. Ele ressaltou que essa interpretação é essencial para garantir uniformidade, eficiência e segurança jurídica, evitando oscilações de competência e possíveis prescrições. O ministro Alexandre de Moraes enfatizou que a proposta de fixação da competência do STF não altera a essência da atual jurisprudência, consolidada na AP 937-QO, mas apenas estabiliza o foro nos Tribunais sempre que estiverem presentes os requisitos de contemporaneidade e pertinência temática. Destacou, ainda, que a interpretação adotada fortalece o controle jurisdicional e evita que investigações sejam deslocadas arbitrariamente para outras instâncias. Flávio Dino reiterou a necessidade de fixação do entendimento de que a prerrogativa de foro persiste mesmo após o afastamento do cargo, desde que os crimes tenham sido cometidos no exercício da função e em razão dela. Ressaltou que a mudança de cargo público ou a sua perda não devem alterar a competência originalmente estabelecida. Para Nunes Marques, em voto-vista, a interpretação sobre a prerrogativa de foro tem sido progressivamente ampliada pelo STF desde a decisão adotada na AP 937-QO. Nesse sentido, destacou precedentes nos quais a Corte manteve sua competência para avaliar a admissibilidade de denúncias e arquivamentos de investigações, mesmo após o término do exercício do cargo público. Assim, acompanhou o voto do ministro relator, compreendendo que a reformulação da tese é capaz de proporcionar maior segurança jurídica e evitar mudanças sucessivas de competência que possam prejudicar a condução processual e a efetividade da persecução penal. Apesar de acompanhar o relator, o ministro Dias Toffoli não manifestou suas razões por meio de voto-vogal. Outros quatro ministros divergiram do novo entendimento proposto pelo decano. Foram eles: André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia. Para André Mendonça, o princípio do juiz natural impede a manutenção da competência do Supremo Tribunal Federal após o encerramento das funções do agente público no cargo respectivo. Argumentou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado restritivamente, pois constitui uma exceção à regra geral de competência da Justiça Comum. Citou o cancelamento da Súmula 394 pelo STF, que já havia afastado a possibilidade de prorrogação da competência do chamado "foro privilegiado" para ex-ocupantes de cargos públicos e enfatizou que a regra deve proteger a função, e não o indivíduo, cessando assim a prerrogativa com o término do exercício do respectivo cargo. O ministro Edson Fachin também se posicionou contra a tese do relator, defendendo que o foro especial é uma garantia do cargo, e não da pessoa que o ocupa. Ressaltou que a Constituição Federal de 1988 e a jurisprudência consolidada do STF determinam que a prerrogativa de foro se encerra quando o agente deixa a função pública. Citou o julgamento da AP 937-QO, no qual a Corte firmou o entendimento de que a prerrogativa se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados às suas funções, cessando com a perda do respectivo mandato, salvo quando a instrução processual já estiver encerrada. Fachin alertou que a tese do relator poderia levar a distorções e à perpetuação de um tratamento diferenciado e injustificado a determinados agentes. Cármen Lúcia reforçou a divergência. Destacou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado em conformidade com os princípios republicanos e democráticos, que impõem limites a esse tipo de privilégio. Ressaltou que o STF já consolidou entendimento contrário à prorrogação do foro, conforme demonstrado no cancelamento da Súmula 394 e no julgamento da ADI 2.797, a qual declarou inconstitucional tentativa legislativa de restabelecer essa prerrogativa para ex-ocupantes de cargos públicos. Concluiu que admitir a permanência do foro para quem não ocupa mais o cargo violaria o princípio do juiz natural e poderia ser interpretado como um privilégio indevido, violando a isonomia constitucional. O ministro Luiz Fux apenas acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro André Mendonça, sem expor suas razões por meio de voto-divergente. 5. Consequências Práticas da Mudança A proposta do ministro Gilmar Mendes sagrou-se vencedora por 7 votos a 4. Com a mudança, podemos visualizar as seguintes consequências práticas imediatas: Maior estabilidade institucional: a mudança evita que políticos e agentes públicos se utilizem de estratégias processuais para escapar da jurisdição dos Tribunais ou garantam a impunidade dos crimes praticados durante o cargo em razão do advento da prescrição da pretensão punitiva. Desafogamento das instâncias inferiores: com a jurisprudência consolidada na AP 937-QO, muitas investigações e ações penais foram deslocadas para a primeira instância, sobrecarregando os juízos locais. A nova interpretação manteria esses processos nos Tribunais, desafogando as instâncias ordinárias. Maior previsibilidade no processamento de crimes funcionais: a permanência do foro extraordinário para crimes vinculados à função evitaria que os casos mudassem de competência no transcurso de seu processamento, trazendo maior segurança jurídica. Considerações Finais A recente mudança na interpretação do foro por prerrogativa de função pelo Supremo Tribunal Federal demonstra a constante evolução da jurisprudência constitucional em matéria processual penal. O retorno à regra da contemporaneidade, com a manutenção da competência dos Tribunais para o julgamento de crimes praticados no cargo e em razão dele, mesmo após a cessação da função pública, traz impactos relevantes à persecução penal de autoridades e à estabilidade institucional do sistema de justiça. Ao mesmo tempo em que evita manobras processuais voltadas à prescrição ou ao deslocamento estratégico de competência, essa nova diretriz reforça a previsibilidade na tramitação de investigações e ações penais contra agentes públicos, promovendo maior segurança jurídica e eficiência no julgamento desses casos. No entanto, o tema permanece controverso, especialmente à luz dos princípios republicanos e do juiz natural, levantando questionamentos sobre a extensão e os limites da prerrogativa de foro em um contexto democrático. De toda forma, o entendimento agora fixado pelo STF marca mais um capítulo na complexa relação entre direito penal, processo penal e organização do Estado, reafirmando a necessidade de atualização constante e equilíbrio entre a responsabilização de autoridades e a proteção das funções públicas que elas desempenham.
terça-feira, 11 de março de 2025

As Regras de Mandela e o Tribunal do Júri

A edição da coluna Migalhas Criminais desta quinzena traz à reflexão os impactos das Regras de Mandela no Tribunal do Júri, tema de crescente relevância no direito penal contemporâneo. No texto, o autor Vitor Eduardo Tavares de Oliveira, defensor público estadual e assessor de ministra no STJ, examina as recentes decisões do STJ e a forma como o uso de vestimentas prisionais pelo réu pode influenciar a percepção dos jurados. A análise ancora-se em referenciais teóricos e jurisprudenciais, explorando como a indumentária do acusado afeta os princípios da presunção de inocência e da plenitude de defesa.  O artigo destaca decisões sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira. No HC 778.503/MG, por exemplo, ela anulou um julgamento porque o réu foi obrigado a comparecer ao plenário com uniforme prisional. O texto examina a relação entre os rituais do Tribunal do Júri e a construção simbólica do processo decisório dos jurados. Além disso, aborda outro julgamento, no HC 768.422/SP, no qual a Quinta turma do STJ reforçou que a disposição física do réu no plenário também interfere na garantia de um julgamento justo.  Ao longo da exposição, Vitor evidencia o avanço do entendimento jurisprudencial quanto à humanização do processo penal, ressaltando o papel das Regras de Mandela e dos compromissos internacionais do Brasil na proteção dos direitos fundamentais dos acusados. Contexto do HC 778.503/MG A decisão proferida pela Quinta turma do STJ no HC 778.503/MG, sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira, reconheceu a nulidade do julgamento de um réu no Tribunal do Júri, que foi obrigado a comparecer à sessão trajando uniforme prisional. A defesa argumentou que a vestimenta poderia influenciar negativamente a percepção dos jurados, violando os princípios da plenitude de defesa e da presunção de inocência. A ministra relatora destacou que o rito do Tribunal do Júri é permeado por significados simbólicos e que o uso de roupas civis pelo acusado é um direito, conforme sustentado pelas Regras de Mandela (Regra 19), reforçando a necessidade de garantir um julgamento isento de estigmas. A decisão afastou a justificativa apresentada pelo TJ/MG, que havia negado o pedido sob o argumento de que não haveria prejuízo para a defesa e que a segurança do fórum era insuficiente para permitir a troca de vestimenta. Para Daniela Teixeira, a negativa do direito de o réu se apresentar com trajes civis não foi devidamente fundamentada, configurando cerceamento de defesa e influenciando indevidamente o Conselho de Sentença. O acórdão citou precedentes do próprio STJ e do STF, enfatizando que a igualdade de tratamento entre acusados presos e soltos deve ser resguardada para evitar impacto na imparcialidade dos jurados. Contexto do HC 768.422/SP A Quinta turma do STJ, também sob a relatoria da ministra Daniela Teixeira, proferiu decisão no HC 768.422/SP, reconhecendo a nulidade do julgamento de um réu no Tribunal do Júri, que foi mantido sentado de costas para os jurados durante toda a sessão plenária. A defesa sustentou que essa disposição física do acusado configurava cerceamento de defesa e afrontava os princípios da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, influenciando indevidamente a percepção dos jurados. O STJ reafirmou que a dignidade do acusado não depende de uma norma específica, mas decorre diretamente da Constituição Federal e dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. A decisão sublinhou que a posição física do réu, suas vestimentas e sua postura diante dos jurados são elementos que podem interferir na convicção íntima do Conselho de Sentença, tornando-se fatores relevantes na comunicação simbólica do julgamento. São essas decisões paradigmáticas que serão analisadas pelo nosso convidado de hoje, para quem, com muita honra, passamos a palavra. *** Uso de roupas civis pelo acusado e o direito de ser visto pelos jurados O pedido de troca do uniforme prisional por roupas civis durante o julgamento foi indeferido, com o argumento de que isso não afetaria a defesa do réu e de que havia risco de fuga por conta da baixa vigilância. No entanto, a defesa argumentou que o uso do uniforme prisional poderia influenciar negativamente os jurados. Com base na jurisprudência e nas Regras de Mandela, que preveem o uso de roupas civis por prisioneiros em circunstâncias especiais, o STJ reconheceu que o réu tem o direito de se apresentar com roupas civis no Tribunal do Júri.  Assim, foi concedida a ordem de habeas corpus para anular o julgamento e submeter o réu a novo julgamento, permitindo que ele utilize roupas civis durante a sessão. Decisão de relatoria da ministra Daniela Teixeira no HC 778.503/MG A decisão da ministra Daniela Teixeira, após analisar os autos de HC 778.503/MG, foi no seguinte sentido: "ouso divergir dos fundamentos utilizados pela Corte local, pois a decisão não aponta um risco concreto de fuga especificamente do paciente, mas apenas de modo geral e hipotético, devido à insuficiência de vigilância naquele Fórum." O voto mencionado apresenta divergência em relação à decisão da Corte local, que indeferiu o pedido de que o réu utilizasse roupas civis durante o julgamento, sem apontar um risco concreto de fuga do acusado, baseando-se apenas na possibilidade geral de vigilância insuficiente no Fórum.  Argumentou-se que a utilização de vestimentas civis pelo réu não oferece qualquer perigo, especialmente com o policiamento ostensivo disponível, e que o indeferimento desse direito viola princípios fundamentais, como o da presunção de inocência e o princípio da isonomia. O Tribunal do Júri, na visão do jurista Lenio Streck, é um ritual, ou seja: "a instituição da sociedade existe enquanto materialização desse magma de significações imaginárias sociais, traduzível por meio do simbólico. A relação dos agentes sociais com a realidade (que aparece) é intermediada por um mundo de significações".  Em suma, o ritual e seus simbolismos serão levados em conta pelo jurado, juiz natural do júri, para tomar a decisão final: "É nesse contexto que o Tribunal do Júri será examinado. Por seu forte componente ritual, as representações imaginárias da sociedade, simbolizadas nos julgamentos, resultam em uma leitura possível dos comportamentos desejados e desejantes da sociedade ali "representada". Isto porque, como bem lembra Gonçalves, os processos simbólicos e míticos assumem importância fundamental na exteriorização das práticas sociais ritualizadas, referentes ao saber e ao saber-fazer de qualquer cultura e sociedade. As metáforas e os símbolos da transmissão e da perpetuação do poder, as encenações do poder e as "liturgias políticas" nas sociedades modernas, os conteúdos simbólicos do processo político nos ritos de soberania das sociedades tradicionais, os ritos de passagem e os rituais de iniciação, os rituais cíclicos da vida individual ou os rituais calendarizados e sazonais constituem processos essenciais da teatralização da vida coletiva e rituais por excelência da comunicação política nas sociedades tradicionais e rurais, como nas modernas sociedades tecnológicas." (Streck, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais, 44 ed., Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001.) Partindo de tais premissas, a ministra Daniela Teixeira verificou que o paciente foi submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença com a utilização do uniforme prisional, violando seu direito de se apresentar com roupas civis durante a sessão plenária do Tribunal do Júri. A fundamentação baseou-se, inclusive, na doutrina de Rodrigo Casimiro, que defende a dignidade humana e a necessidade de o acusado ser julgado de forma justa e sem ser estigmatizado pelo uso de roupas prisionais: "A utilização das próprias vestes, quando do julgamento pelo Conselho de Sentença, visa resguardar a dignidade da pessoa humana (vetor interpretativo reconhecido como fundamento da Constituição da República de 1988) e o princípio da presunção de não culpabilidade do pronunciado preso preventivamente 9, evitando que o acusado seja exposto a tratamento degradante 10. Ressalte-se, ainda, que, eventual negativa judicial do direito ao uso das vestes civis por parte do acusado preso cautelarmente, (a) implica em violação ao princípio constitucional da isonomia (já que o pronunciado solto é levado ao julgamento do Conselho de Sentença sem trajar a "farda" do sistema carcerário) e (b) materializa um deletério efeito extraprocessual da segregação preventiva, não admitido à luz do Direito Processual Penal constitucional. Nas palavras de Carnelutti, "o processo penal é um banco de prova da civilização", revelando-se, pois, descabido que o pronunciado que se encontra segregado provisoriamente seja submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença trajando vestes do sistema prisional, fato que, inexoravelmente, irá repercutir negativamente na convicção dos jurados, causando prejuízo irreparável ao acusado (art. 563 do CPP). Dissertando sobre o standard probatório necessário para uma condenação no Tribunal do Júri, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho et al afirmam que 12 "Como se sabe, os jurados não necessitam fundamentar suas decisões, que são pautadas na livre convicção (convicção íntima), o que gera sempre uma desconfiança porque, se é assim, a prova parece não ter tanta importância para o julgamento"." (A Faixa Verde no Júri V, Projeto Bruxas do plenário, capítulo 5. Ed. plácido. 2024) Também foram citadas as Regras de Mandela, que garantem a possibilidade de o acusado vestir roupas próprias em determinadas situações: "Ressalte-se, ainda, que é possível a utilização das Regras de Mandela ao caso concreto (Regra 19), que dispõe: "Em circunstâncias excecionais, sempre que um recluso obtenha licença para sair do estabelecimento, deve ser autorizado a vestir as suas próprias roupas ou roupas que não chamem a atenção." Além disso, o voto fez referência a um entendimento jurisprudencial consolidado pelo ministro Ribeiro Dantas, segundo o qual o uso de roupas civis durante o julgamento no Tribunal do Júri é um direito garantido pela plenitude da defesa: (...) 3. A Carta Magna prevê a plenitude de defesa como marca característica e essencial à própria instituição do Júri, garantindo ao acusado uma atuação defensiva plena e efetiva, ensinando o doutrinador Guilherme de Souza Nucci que "O que se busca aos acusados em geral é a mais aberta possibilidade de defesa, valendo-se dos instrumentos e recursos previstos em lei e evitando-se qualquer forma de cerceamento. Aos réus, no Tribunal do Júri, quer-se a defesa perfeita, dentro, obviamente, das limitações naturais dos seres humanos." (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 35). 4. Havendo razoabilidade mínima no pleito da defesa, como se vislumbra do pedido pela apresentação do réu em plenário com roupas civis, resta eivada de nulidade a decisão que genericamente o indefere. (...) (RMS n. 60.575/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta turma, julgado em 13/8/19, DJe de 19/8/19.) (grifos acrescidos) Por fim, a decisão consolidou um entendimento do STJ de que o indeferimento genérico do pedido, sem um motivo justificado, viola esse princípio e acarreta nulidade no julgamento. Assim, o voto, acompanhado pela Quinta turma, foi pela concessão da ordem de habeas corpus, declarando nula a sessão anterior e determinando a realização de novo julgamento, com a garantia de que o réu possa usar roupas civis durante o Tribunal do Júri.  Direito do acusado se posicionar de maneira adequada no Tribunal do Júri Na hipótese apresentada no habeas corpus 768.422/SP, o réu foi condenado por feminicídio. Durante o julgamento pelo Tribunal do Júri, o acusado foi colocado de costas para os jurados, o que foi considerado uma violação do princípio da presunção de inocência e da dignidade humana. A defesa argumentou que essa disposição física prejudicou a análise dos jurados e cerceou a defesa plena, levando à anulação monocrática do julgamento do Tribunal do Júri e à determinação de sua renovação. O Ministério Público recorreu, mas o STJ, seguindo os argumentos apresentados pela ministra Daniela Teixeira, negou o provimento do agravo regimental e manteve a decisão de anular o julgamento, destacando a necessidade de respeito à dignidade e aos direitos do réu. Decisão de relatoria da ministra Daniela Teixeira no HC 768.422/SP O Tribunal do Júri é o juiz natural e soberano para julgar os crimes dolosos contra a vida, sendo instituição que desempenha o exercício direto da participação da sociedade no Poder Judiciário, nos termos preceituados no art. 5º, XXVIII, da Constituição Federal. A ministra Daniela Teixeira parte da premissa básica de que "a decisão do Tribunal do Júri, soberana, é regida pelo princípio da livre convicção, e não pelo art. 93, IX, da CF." A decisão reforça que: "a palavra 'sentença' deriva do verbo 'sentir' e que o sentimento é anterior ao pensamento na vida intrauterina", ou seja, os jurados utilizam todos os seus sentidos para chegaram a um veredicto. Outrossim, cita precedente do STF, da lavra do ministro Marco Aurélio que subsidiou a edição da súmula vinculante 11 ("Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado"), que inibe qualquer constrangimento oficial àqueles que estão em julgamento no Tribunal do Júri: "É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados. A lei em comento - 4.898/65, editada em pleno regime de exceção -, no art. 4º, enquadra como abuso de autoridade cercear a liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder - alínea "a" - e submeter pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei - alínea "b". No caso, sem que houvesse uma justificativa socialmente aceitável para submeter um simples acusado à humilhação de permanecer durante horas e horas com algemas, na oportunidade do julgamento, concluiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a postura adotada pelo Presidente do Tribunal do Júri, de não determinar a retirada das algemas, fez-se consentânea com a ordem jurídico-constitucional. Proclamou a Corte que "a utilização das algemas durante o julgamento não se mostrou arbitrária ou desnecessária e, por conseguinte, não vinga a nulidade arguida", aludindo, no entanto, a precedente da Segunda turma do Supremo que vincula a permanência do preso algemado à necessidade de manutenção da ordem dos trabalhos e de garantia da segurança dos presentes (folhas 408 e 409, numeração de origem, dos autos em apenso)." (HC 91952, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 7/8/08, DJe-241) Vale lembrar, apenas a título de exemplo, que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos assegura a todos as pessoas submetidas ao processo penal um tratamento com garantias mínimas: "Art. 8. Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas" Sobre o tema, cabe citar a doutrina de Daniel Avelar e Rodrigo Faucz: A presunção de inocência envolve igualmente a obrigação de tratar o acusado como inocente durante toda a persecução penal, ou seja, não apenas garantir a observância dos seus direitos e garantias constitucionais, mas de respeitá-lo na amplitude da sua dignidade à luz de uma dogmática constitucional emancipatória. Assim, cabe aos agentes públicos - aqui incluídos os policiais, agentes penitenciários, Ministério Público, Defensoria Pública, magistrados - tratar o acusado com urbanidade e respeito, evitando a prática de ato que diminua a figura humana da pessoa do réu perante a sociedade (como determinando o uso de algemas quando prescindível; expondo desnecessariamente a sua imagem à curiosidade pública fazendo uso do perpetrator walk; promovendo interrogatórios recheados de perguntas insidiosas ou alavancando armadilhas que possam ancorar o espírito do júri a ir de encontro à autodefesa em plenário, entre outros).? (...) Pela análise neurocientífica e psicológica, o fato de julgadores e acusados estarem em posições socioculturais antagônicas traz problemas de identificação. Quanto mais distante for a realidade dos jurados da dos acusados, menos empatia haverá. Isso pode ter como consequência inconsciente uma predisposição a condenar ou, ao menos, uma maior dificuldade de os julgadores conseguirem julgar despidos de qualquer preconceito. (...) Nenhuma das partes pode mencionar o fato de o acusado estar ou não algemado. Assim, a acusação não poderá fazer referência ao fato de estar o acusado algemado durante o julgamento como forma de comprovação de sua periculosidade. Da mesma forma, mas em sentido contrário, a defesa não poderá utilizar o fato de estar o acusado sem algemas para demonstrar que o acusado não é perigoso. O Conselho de Sentença, em geral, é composto, em sua maioria, de pessoas sem conhecimento jurídico e que, portanto, estariam suscetíveis ao estigma provocado pelo uso de algemas em plenário. De maneira a evitar que a estética de culpado repercuta em um prévio juízo de culpabilidade e periculosidade do agente, a legislação veda que as partes façam referências à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade. A utilização das algemas não pode servir como argumentação arbitrária para, perante uma corte leiga e que decide a partir do voto de consciência, projetar a condenação do acusado." (Manual do Tribunal do Júri. 2 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 187, 361 e 485). (Grifo acrescido) De acordo com a ministra: "O julgamento do Tribunal do Júri pode se estender por muitas horas e, durante esse período, os jurados dedicam atenção a todos os ritos, aos advogados e, principalmente, ao acusado, que permanece exposto a análises até a decisão final. Desse modo, o local em que ele fica, a roupa que usa e a utilização de algemas, por exemplo, são fatores simbólicos observáveis e ponderados pelos jurados." Nesse sentido é a doutrina dos defensores públicos Lucas Aparecido A. Nunes, Ana Cláudia de Souza Ferreira e Denis Sampaio: "Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer concebe o Tribunal do Júri como um ritual lúdico, onde ações ordenadas - falas, gestos, expressões - de natureza predominantemente simbólica, se desenvolvem em momentos distintos das sessões e inspiram atitudes de lealdade, respeito e reverência a valores que se materializam nos votos dos jurados. Em sua tese, a autora tenta "decodificar" (grifo no original) as linguagens do plenário - expressão textualizada por Thales Nilo Trein- e concorda com este autor quanto à comunicação, durante a sessão plenária, ir muito além da linguagem verbal. O contato visual, as expressões faciais, os gestos e a postura, a vestimenta e aparência, a relativa proximidade entre o defensor e o acusador com o Júri, a paralinguagem (velocidade da fala, volume, variações de tom) e a presença de espectadores na assistência são elementos que podem, involuntariamente, afetar a decisão do Conselho de Sentença. Obviamente, o peso e o impacto dessas diferentes formas de comunicação não verbal variam à medida que são incorporadas e apreciadas no subconsciente de cada jurado." (Grifo acrescido) (O direito à utilização de trajes civis no julgamento perante o Tribunal do Júri) A ministra concluiu: "No caso, verifico que o juízo submeteu o paciente, inclusive durante o interrogatório, a situação vexatória ao deixar ele de costas aos jurados, juízes naturais da causa. Por fim, verifico que não existe previsão legal e regulamentar para deixar os acusados de costas, mesmos nos julgamentos do Crime Organizado, de acordo com a lei 12.694/12, e de acordo com a recomendação 77/20 do CNJ."  Conclusão As decisões analisadas são precedentes que reforçam o princípio da presunção de inocência aos acusados nos processos do Tribunal do Júri, permitindo que se apresentem com roupas civis e sejam vistos por seus julgadores. Além disso, os precedentes reconhecem a importância da aparência do acusado no julgamento pelos jurados, "o ritual e seus simbolismos serão levados em conta pelo jurado, juiz natural do júri, para tomar a decisão final." As decisões, ainda, reforçam as Regras de Mandela e o compromisso do Brasil com os tratados de direitos humanos, demonstrando sensibilidade do STJ para com o direito das pessoas mais vulneráveis e os direitos humanos. Os precedentes vão na linha dos julgados da Quinta turma, podendo ajudar na consolidação do entendimento pelos demais juízes e tribunais estaduais de Justiça. O STJ reafirma a importância do respeito aos princípios constitucionais, como a presunção de inocência, e condena práticas que possam prejudicar a análise justa e imparcial por parte dos jurados. Em suma, os acórdãos garantem a dignidade da pessoa humana até mesmo na hora de seu julgamento por seus pares.
A edição especial da coluna Migalhas Criminais de hoje trata da influência do professor Claus Roxin no Direito Penal brasileiro, especialmente no contexto da Ação Penal 470, o "Caso Mensalão". Nosso convidado para homenagear a memória do doutrinador alemão é o professor Felipe Longobardi Campana. Felipe é doutorando e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e assessor da Ministra Daniela Teixeira no Superior Tribunal de Justiça. No texto a seguir, Roxin, falecido em 20/2/25, é lembrado pelo professor Felipe por sua significativa contribuição à teoria do delito, em especial à teoria do domínio do fato. No julgamento do "Mensalão", o Supremo Tribunal Federal utilizou essa teoria para justificar condenações, principalmente no caso do ex-Ministro Chefe da Casa Civil, argumentando que sua posição hierárquica indicava controle sobre os crimes cometidos. No entanto, em entrevista à Folha de São Paulo em 2012, o próprio Roxin esclareceu que a teoria exige prova concreta de que o agente em posição de comando emitiu ordens diretas para que os crimes fossem executados, criticando o uso equivocado de sua concepção. O texto analisa, nesse contexto, os erros do STF na aplicação da teoria do domínio do fato, destacando a falta de individualização das condutas e a confusão entre a definição de autoria e a prova da autoria. Apesar do impacto positivo do debate acadêmico que se seguiu, com obras e pesquisas aprofundadas sobre o tema, o Judiciário brasileiro continua, na visão do nosso convidado, a cometer equívocos semelhantes, especialmente em crimes tributários, ao presumir autoria com base na hierarquia empresarial. Com a palavra, então, com muita honra, o professor Felipe Campana. *** No dia 20 de fevereiro os penalistas e as ciências criminais receberam a triste notícia do falecimento do Professor Dr. Claus Roxin, um dos grandes pensadores do Direito Penal da metade do séc. XX e do séc. XXI. Sua vasta produção acadêmica nos mais variados temas da teoria do delito e sua inegável influência em todo o mundo, inclusive e principalmente no Brasil, são provas do tamanho de seu legado. Como forma de homenageá-lo, apresentamos hoje uma edição extraordinária da coluna, relembrando o momento histórico em que Claus Roxin deu uma aula de Direito Penal ao Brasil e demonstrando que muitos de seus "alunos" aprenderam com ele, mas outros ainda continuam precisando de reforço. A aplicação da teoria do domínio do fato na AP 470 pelo STF O ano era 2012 e o Supremo Tribunal Federal se viu diante de seu maior desafio em matéria de Direito Penal até então: julgar a ação penal 470, conhecida como "Caso Mensalão". De forma resumida, o caso dizia respeito a um esquema de pagamento de vantagens indevidas a parlamentares em troca de votos em projetos de lei, o que levou à acusação de crimes como de corrupção passiva, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, associação criminosa, gestão fraudulenta e outros. Dentre os temas controversos que a Corte Suprema teve de enfrentar neste julgamento, um chamou especialmente a atenção do homenageado, Professor Claus Roxin: a aplicação da teoria do domínio do fato. É possível sistematizar a aplicação da teoria do domínio do fato no acórdão do STF que julgou a AP 470 em dois momentos: (i) para o afastamento da tese da inépcia da denúncia em relação ao crime de gestão fraudulenta por ausência de descrição das condutas individualizadas dos acusados e (ii) para a condenação do Ministro-Chefe da Casa Civil à época pelo crime de corrupção ativa dos parlamentares. Vejamos cada um desses momentos em detalhes. (I) Afastamento da tese da inépcia da denúncia pelo crime de gestão fraudulenta Uma das acusações formuladas pelo Ministério Público nesta ação penal foi a da prática de gestão fraudulenta de um Banco por meio da realização de contratos de mútuo sem as devidas garantias. Ocorre que a descrição da denúncia para este fato, nas palavras da Ministra Rosa Weber: "... se limitou a dimensionar todos os atos operados por meio da referida instituição financeira, com a presumida decisão de seus administradores responsáveis" (p. 1160 do inteiro teor do acórdão). Por conta disso, as defesas dos acusados argumentaram que se tratava de denúncia inepta, que descumpria com o exigido pelo art. 41 do Código de Processo Penal. A Ministra Rosa Weber, ao enfrentar essa tese defensiva, lançou mão da teoria do domínio do fato da seguinte forma: "Em verdade, a teoria do domínio do fato constitui uma decorrência da teoria finalista de Hans Welzel. O propósito da conduta criminosa é de quem exerce o controle, de quem tem poder sobre o resultado. Desse modo, no crime com utilização da empresa, autor é o dirigente ou dirigentes que podem evitar que o resultado ocorra. Domina o fato quem detém o poder de desistir e mudar a rota da ação criminosa. Uma ordem do responsável seria o suficiente para não existir o comportamento típico. Nisso está a ação final.... Importante salientar que, nesse estreito âmbito da autoria nos crimes empresariais, é possível afirmar que se opera uma presunção relativa de autoria dos dirigentes" (p. 1.161 do inteiro teor do acórdão). Em suma, no voto a Ministra Rosa Weber entendeu que em crimes empresariais não havia necessidade de descrever a conduta individualizada de cada um dos acusados, pois, partindo da teoria do domínio do fato, é autor aquele que tem controle sobre os fatos e, na empresa, quem tem controle é quem ocupa o cargo de dirigente, razão pela qual ele é presumivelmente o autor do crime. (II) Condenação do Ministro-Chefe da casa civil pela prática do crime de corrupção ativa de parlamentares Outra acusação feita pelo Ministério Público foi a da prática do crime de corrupção ativa de parlamentares pelo Ministro-Chefe da casa civil do Governo, mais especificamente da compra de apoio político em projetos do Congresso Nacional. O ponto central da discussão era que o Ministro-Chefe da Casa Civil, pelo cargo que ocupava, foi descrito como o "principal articulador dessa engrenagem", realizando encontros para tratar de repasses de dinheiro e acordos políticos e que tinha muito poder a ponto de garantir que nada aconteceria com os demais integrantes da engrenagem (p. 4612-4613 do inteiro teor do acórdão). Porém, não se descreveu as contribuições concretas do Ministro-Chefe da Casa Civil para os crimes de corrupção ativa dos parlamentares. Sendo assim, o Ministro Relator do caso, Joaquim Barbosa, lançou mão da teoria do domínio do fato afirmando: "...Como salienta o penalista JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, a definição de autor baseada na teoria do domínio do fato é a que se adotada na dogmática penal desde que Hans Welzel, pela primeira vez, mencionou-a, em 1939. Veio a ser desenvolvida por Claus Roxin e, nas palavras do abalizado estudioso brasileiro, é a teoria que define "todas as formas de realização ou de contribuição para a realização do tipo de injusto" (p. 4701 do inteiro teor do acórdão). Adiante, o Ministro ainda menciona a figura da "autoria de escritório" dentro da teoria do domínio do fato para confirmar a condenação do Ministro-Chefe da Casa Civil pela posição de líder que ocupava (p. 4704 do inteiro teor do acórdão). O Ministro Joaquim Barbosa foi seguido por outros Ministros, que argumentaram não só que a teoria em questão era compatível e aplicável ao sistema jurídico-penal brasileiro, como também a utilizaram para confirmar a mencionada condenação. A título de exemplo é possível citar o Ministro Ayres Britto, que chegou a afirmar em um aparte durante o julgamento: "Agora, essa Teoria do Domínio do Fato pode ser compreendida no plano da fungibilidade, que é da substituição do agente, como também da infungibilidade: o agente não pode ser substituído. Então, quem não podia ser substituído nesse esquema, sob pena de fazer o esquema ruir? Quem era o regente da orquestra? O mais insubstituível ou infungível de todos. A Teoria do Domínio do Fato conduz, também, a esse raciocínio" (p. 5226-5227 do inteiro teor do acórdão). Outro exemplo foi o voto do Ministro Celso de Mello, que, após exposição teórica sobre o concurso de pessoas e conclusão que a teoria do domínio do fato não implica em responsabilidade penal objetiva, transcreveu a seguinte lição doutrinária "Lapidar, sob tal aspecto, a autorizada lição de DOUGLAS FISCHER ("Requisitos de Denúncias Penais que envolvam Delitos Complexos e/ou com Autoria Delitiva", item 4, 2012), que, ao referir-se ao tema da teoria do domínio do fato, em coautoria, acentua que "é preciso compreender a realidade das coisas para se ter como premissa importante de que, muitas vezes, pelo modo e por quem praticadas (ou por quem ordenadas as práticas delitivas), não há como descrever detalhes e minúcias sobre o nexo causal entre o autor e o fato. Mas é possível se afirmar que o fato não se realizaria sem a ação (controle) daquele que detinha o domínio dele (.)" (p. 5207 do inteiro teor do acórdão - grifos do original). A voz dissidente foi a do Ministro Ricardo Lewandowski, que afirmou: "O próprio Claus Roxin ... manifestou preocupação com o alcance indevido que alguns juristas e certas cortes de justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal alemão, estariam dando a ela, especialmente ao estendê-la a delitos econômicos, sem observar que os pressupostos essenciais para sua aplicação - dentre os quais a fungibilidade dos membros da organização delituosa - "existem apenas no injusto do sistema estatal, no 'Estado criminoso dentro do Estado', assim como a Máfia e formas semelhantes de manifestação da criminalidade organizada". Feitas essas considerações, e analisados todos os elementos constantes dos autos, especialmente as condutas descritas na denúncia, chego à inelutável conclusão de que os fatos nela descritos não se revestem da excepcionalidade que o Parquet pretende lhes atribuir, razão pela qual tenho que a dita "teoria do domínio do fato" não comporta aplicação ao caso sob exame" (p. 4953-4954 do inteiro teor do acórdão). A aula do Professor Claus Roxin ao Brasil As diversas menções à teoria do domínio do fato e ao nome do Professor Claus Roxin pelos Ministros do STF no maior julgamento criminal da história da Corte chamou a atenção não só dos juristas, mas de jornalistas e da sociedade em geral, e acabaram chegando ao seu conhecimento. Por conta disto, no dia 11 de novembro de 2012, Roxin concedeu entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, na qual ensinou com a clareza e a simplicidade de seus escritos que "A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem"; disse ainda que afirmar que alguém é autor de crime somente pela sua posição hierárquica "seria um mau uso" da teoria; afirmou também que "quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado" e concluiu de forma categórica que "a posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato"1. Nesta breve entrevista, o Professor alemão fez afirmações simples, mas com enorme profundidade, tornando-se uma verdadeira aula que transcendeu os conceitos da teoria do domínio do fato e atingiu os passos mais elementares para a aplicação do Direito penal por um julgador. Em primeiro lugar, quando Roxin afirmou que a pessoa que ocupa a posição no topo precisa "ter comandado esse fato, emitido uma ordem", o que ele indicou foi que, muito mais básico do que afirmar os critérios do "domínio do fato", é preciso identificar uma conduta praticada por todos os indivíduos. Deixou claro que qualquer condenação penal precisa que um indivíduo tenha praticado uma conduta e, por isso, afirmar que alguém é autor do crime somente pela sua posição hierárquica seria um mau uso da teoria. A teoria do domínio do fato não substitui a necessidade de que o acusado tenha praticado uma conduta, mas antes pressupõe essa prática. Já neste ponto os Ministros se equivocaram, pois, ao invés de identificarem as condutas concretas para condenar os acusados pelos crimes de gestão fraudulenta e corrupção ativa, o que fizeram foi utilizar o uso coloquial do termo "domínio do fato" para substituir a necessidade de identificar as condutas praticadas. Em segundo lugar, ao afirmar que a ordem deveria ser provada, Roxin destacou que essa conduta individualizada - a ordem - é objeto de prova no processo penal. Portanto, quando se identifica conduta de um indivíduo que ocupa um cargo de superior hierárquico, ainda é preciso que o Ministério Público prove que aquela conduta realmente foi praticada. Logo, a teoria do domínio do fato também não substitui a necessidade de provar as condutas. Aqui novamente os Ministros erraram, pois buscaram na teoria do domínio do fato o caminho para "presumir a autoria" em detrimento das provas necessárias das condutas, quando a teoria do domínio do fato é uma teoria que estabelece um critério para definir quem é o autor do crime. E é preciso deixar claro: "prova da autoria" e "definição de autor de um crime" são conceitos diferentes. A prova da autoria, no processo penal, é a prova de quem praticou a conduta descrita na denúncia. A definição do autor de um crime é a utilização de um critério jurídico para definir, dentre os vários intervenientes em um fato criminoso, quem é o autor e quem é partícipe.    Por fim, em terceiro lugar, ao afirmar que a posição hierárquica não fundamenta o domínio do fato, Roxin finalmente adentrou no debate sobre os critérios da teoria. Assim, uma vez identificada a conduta de cada interveniente e provadas as suas ocorrências, passa-se ao exame jurídico para definir quem é autor e quem é o partícipe nos fatos, o que se denomina de teoria do concurso de agentes. De início, é preciso ter em mente que essa definição de autor e partícipe é um problema concreto no direito penal alemão, pois o Código Penal traz expressamente a separação entre as duas figuras (sistema diferenciador). Logo, os penalistas precisam se debruçar para tentar encontrar critérios que melhor as distinguem. No Brasil esse problema não é tão claro, pois o Código Penal não apresenta essa distinção, admitindo que todos os concorrentes para o fato serão igualmente responsabilizados por ele (art. 29 do CP). Porém, caso se adote o sistema diferenciador no Brasil, é necessário contextualizar que a teoria do domínio do fato é uma teoria que procura apresentar um critério para definir quem é o autor de crimes comuns, dolosos e comissivos, distinguindo-o dos partícipes. O que diz a teoria é: será autor do crime aquele que, com seu comportamento, controlar o se e o quando do crime. Esse controle pode acontecer em três hipóteses: (i) quando o agente controla a própria ação (autoria imediata): situação em que o agente, ao realizar a conduta executiva, tem controle sobre o próprio corpo e, portanto, controla o se e o quando do crime; (ii) quando o agente controla a vontade de terceiro (autoria mediata): situação em que o agente, ao realizar sua conduta, controla aquele que praticará a conduta executiva (executor), pois ele atuará sem conhecimento a respeito de alguma circunstância fática importante (em erro) ou atuará sob coação moral e, portanto, acaba controlando o se e o quando do crime, mesmo não tendo realizado a conduta executiva com o próprio corpo e (iii) quando o agente tem controle funcional do fato (coautoria): situação em que o agente tem um plano comum com os outros intervenientes e cada um deles, ao praticarem suas condutas individuais, acabam contribuindo na fase executiva do crime e, portanto, detém, todos, o controle sobre o se e o quando do crime. Uma das principais contribuições de Roxin para o critério do domínio do fato foi desenvolver uma terceira forma de autoria mediata: o chamado domínio por aparatos organizados de poder. Conforme esclareceu na entrevista, Roxin se incomodava com a questão de que a teoria do domínio do fato, tal qual concebida até então, conduziria a afirmar que aqueles que ocupam uma posição hierarquicamente superior em uma organização apartada do Direito e prolatam uma ordem para um inferior hierárquico executar o crime seriam somente partícipes. Isso porque, dado que o inferior hierárquico praticou a conduta executiva sem estar em erro e sem estar coagido, ele era autor imediato e controlava sozinho o se e o quando do crime. Logo, o superior hierárquico seria somente partícipe por instigação. Portanto, concebeu a figura da autoria por aparatos organizados de poder, na qual, quando se está diante de uma organização com hierarquia rígida, que esteja apartada do Direito e que tenha em seus executores pessoas fungíveis, aquele que profere a ordem tem tamanha certeza de que ela será cumprida, que detém o domínio sobre o se e o quando do crime, sendo, portanto, autor. No entanto, diferente das outras figuras da autoria mediata, nas quais o executor não é autor porque está em erro ou sob coação, nesta figura sua fungibilidade e atuação em um aparato organizado de poder não lhe retiram a autoria, razão pela qual se diz que essa é a figura do "autor por trás do autor". Foi a figura da autoria por aparatos organizados de poder que os Ministros do STF tentaram utilizar, mas a confusão era tamanha, principalmente com os dois passos anteriores, que sequer conseguiram chegar a uma verdadeira discussão jurídica e madura a respeito desta figura e sua aplicação no Brasil. Porém, como se pôde ver acima, ela não significa que quem ocupa uma posição de superior hierárquico é autor, mas sim ela diz que quem ocupa tal posição em um aparato organizado de poder, ao proferir uma ordem (conduta provada), será autor do crime tal qual o executor que recebeu essa ordem. Com esses pontos, fica evidente que a entrevista concedida pelo homenageado de hoje foi muito mais profunda do que uma simples explicação dos critérios da teoria do domínio do fato. Foi uma verdadeira aula sobre como julgar um fato criminal que envolve diversos intervenientes. Fizemos a lição de casa? Em parte, os "alunos" dessa "aula" de Roxin fizeram a lição de casa. Todo esse debate sobre a teoria do domínio do fato no STF e depois a entrevista do professor alemão foram essenciais para que se sucedessem ótimos artigos, livros, dissertações e teses sobre a temática do concurso de agentes no Direito Penal brasileiro. A título de exemplo, é possível citar a obra "Autoria como domínio do fato", dos Professores Luís Greco, Alaor Leite, Adriano Teixeira e Augusto Assis, e a obra "A teoria do concurso de pessoas: uma investigação analítico-estrutural a partir da controvérsia sobre o conceito de instigação", da Professora Beatriz Corrêa Camargo. No entanto, de outro lado, o Poder Judiciário continua insistindo nos equívocos cometidos pelos Ministros no julgamento da Ação Penal 470 do STF. Tem-se observado, ainda de forma reiterada, denúncias e condenações por crimes tributários, por exemplo, baseadas exclusivamente na posição hierárquica de sócio ou diretor da empresa, preterindo, assim, a necessária indicação de uma conduta praticada pelo agente e da prova dessa conduta. Observa-se, ainda, a incorreta afirmação de que o indivíduo, por ocupar essa posição de sócio ou diretor, detém o "domínio do fato", que nada mais é do que um uso coloquial e indevido da teoria. Na contramão dessa insistência, podem ser ilustradas duas recentes decisões monocráticas proferidas pela Ministra Daniela Teixeira do Superior Tribunal de Justiça (HC 968.598 e AREsp 2.738.499), nas quais reconheceu não só que os acusados foram condenados com base somente na posição de sócios que ocupavam, mas também que os Tribunais utilizaram equivocadamente a teoria do domínio do fato com um uso coloquial do termo. O Ministro Lewandowski, ao fazer um aparte durante o julgamento da ação penal 470, acabou apresentando a seguinte "profecia": "O que me preocupa, Senhor Presidente, eminente Decano, é exatamente a banalização dessa teoria. Como é que os quatorze mil juízes brasileiros vão aplicar essa teoria, se esta Suprema Corte não fixar parâmetros bem precisos?" (p. 5201-5202 do inteiro teor do acórdão). Um agradecimento final Essa é uma singela homenagem de um desses "alunos" da entrevista, que lá em 2012 se encantou com todo esse debate e acabou seguindo o caminho dos estudos e pesquisas em Direito Penal. Muito obrigado, Professor Claus Roxin! *** 1 Entrevista reproduzida em: "Teoria do domínio do fato é usada de forma errada".
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O que já aconteceu e o que vem por aí?

A retrospectiva dos principais precedentes da jurisprudência criminal dos Tribunais Superiores marcou a estreia desta nova coluna. Hoje, iremos tratar dos julgamentos já ocorridos neste início de ano judiciário no STF e no STJ e dos possíveis julgamentos que ainda virão em 2025. ADPF das Favelas (STF) Na primeira sessão plenária de 2025, a Suprema Corte iniciou o julgamento da ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - 635, conhecida como "ADPF das Favelas". O relator, ministro Edson Fachin, proferiu seu voto, julgando parcialmente procedentes os pedidos formulados e estabelecendo uma série de medidas para a redução da letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro. Os principais pontos da decisão do relator foram: 1. Plano de redução da letalidade policial Homologação parcial do "plano de redução da letalidade policial", apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro; Inclusão de novos indicadores para monitoramento da letalidade policial, como eventos de uso excessivo da força e mortes com autoria indeterminada; Publicização de dados sobre mortes de civis e policiais, especificando a corporação envolvida, se estavam em serviço e o contexto da ocorrência. 2. Reconhecimento do estado de coisas inconstitucional O relator reconheceu a permanência de um estado de coisas inconstitucional na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, determinando seu acompanhamento contínuo. 3. Criação de comitê de acompanhamento Criação de um colegiado interinstitucional, com caráter consultivo, para fiscalizar o cumprimento das determinações do STF. O comitê seria composto por representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Poder Executivo, do CNJ, do Conselho Nacional do Ministério Público e da sociedade civil. 4. Observância de normas internacionais e nacionais sobre uso da força Aplicação das seguintes normas: (i) lei 13.060/14, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública; (ii) princípios básicos sobre utilização da força (ONU/90); e (iii) código de conduta para funcionários responsáveis pela aplicação da lei (ONU/79). 5. Assistência psicológica aos profissionais de Segurança Pública Recomendação para a criação de um programa de saúde mental para policiais, com atendimento psicossocial obrigatório após incidentes críticos. 6. Afastamento preventivo de policiais Regulamentação para afastamento preventivo de agentes envolvidos em mais de uma ocorrência com morte decorrente de intervenção policial no período de um ano. 7. Regulação do uso de helicópteros em operações Condicionamento do uso de aeronaves à estrita necessidade, com elaboração de relatório circunstanciado ao final de cada operação. 8. Restrições ao ingresso em domicílios A busca domiciliar deve ser realizada somente durante o dia, salvo flagrante delito justificado por fundamentos robustos; Vedação ao uso exclusivo de denúncia anônima como justificativa para o ingresso forçado em domicílio. 9. Presença obrigatória de ambulâncias em operações Regulamentação, em até 180 dias, para garantir a presença de ambulâncias em operações policiais com risco de confronto armado. 10. Preservação de vestígios de crimes Proibição da remoção indevida de cadáveres, sob pretexto de socorro, e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação. 11. Restrições a operações policiais próximas a escolas e hospitais Observância da proporcionalidade e justificativa detalhada sobre necessidade de operações em tais locais, além da proibição do uso de instalações de escolas e hospitais como bases operacionais para as polícias. 12. Transparência e relatórios detalhados sobre operações policiais Relatórios pré e pós-operação detalhados, incluindo dados sobre planejamento, execução e resultados; Uso obrigatório de câmeras corporais; Comunicação imediata ao Ministério Público em casos de mortes por intervenção policial. 13. Monitoramento e controle de armas e munições Integração entre sistemas de rastreamento do Ministério da Defesa e do Ministério da Justiça e Segurança Pública; Adesão do Estado do Rio de Janeiro ao Sistema Nacional de Análise Balística. 14. Garantia de investigações independentes sobre mortes por policiais Determinação para que as investigações sobre mortes por intervenção policial sejam conduzidas diretamente pelo Ministério Público; Vedação da atuação de peritos vinculados à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro nessas hipóteses. 15. Acesso aos microdados da Segurança Pública pelo Ministério Público Obrigatoriedade de compartilhamento de dados sobre operações, investigações e perícias entre forças de segurança e o Ministério Público. 16. Apoio Federal Envio da decisão ao governo Federal para análise e suporte no controle de armas e na reestruturação da Polícia Científica do Estado do Rio de Janeiro. Com essas determinações, a decisão do relator estabeleceu um amplo conjunto de medidas para reduzir a violência policial e garantir maior controle e fiscalização das forças de Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro, reforçando a necessidade de transparência, prestação de contas e respeito aos direitos fundamentais. O julgamento foi suspenso após o voto do ministro Fachin e ainda não há data definida para seu retorno ao plenário da Corte. Ficaremos atentos! Revista íntima para ingresso em presídios (STF) O ARE - Recurso Extraordinário com Agravo - 959.620 foi objeto de julgamento na segunda sessão plenária presencial do STF, confirmando a intensidade com que o ano de 2025 se iniciou para os operadores do Direito Criminal. O referido recurso objetiva estabelecer se a revista íntima para ingresso em estabelecimento prisional ofende ou não o princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção constitucional do direito à intimidade, à honra e à imagem das pessoas. Em 28/10/20, o relator, ministro Edson Fachin, proferiu seu voto em sessão virtual e propôs a fixação da seguinte tese de julgamento: "É inadmissível a prática vexatória da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedados sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos e radioscópicos". No dia seguinte, 29/10/20, o ministro Alexandre de Moraes apresentou voto divergente, sugerindo a fixação da seguinte tese: "A revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exames invasivos. O excesso ou abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização da visita". Na ocasião, foram colhidos os votos dos ministros Roberto Barroso e Rosa Weber, que acompanharam o relator, tendo o ministro Dias Toffoli pedido vista. Em 28/6/21, o ministro Toffoli concordou com o voto divergente do ministro Alexandre e houve novo pedido de vista, dessa vez pelo ministro Nunes Marques. Em 22/5/23, Nunes Marques acompanhou, na íntegra, o voto divergente de Alexandre de Moraes. Em 6/6/24, os ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia acompanharam o voto do ministro Edson Fachin. Houve pedido de vista pelo ministro Cristiano Zanin e, no dia 28/10/24, ele proferiu voto igualmente acompanhando o relator, mas propôs a seguinte complementação à tese de julgamento: "Neste período, ou até que os mencionados equipamentos eletrônicos estejam em funcionamento nas instituições de segregação, é permitida a revista pessoal superficial, desde que não vexatória". Alexandre de Moraes destacou o feito, o qual foi levado a julgamento na sessão plenária presencial do último dia 6/2/25. Fachin confirmou seu voto, mas reformulou a tese proposta no seguinte sentido: "1. Em visitas sociais nos presídios ou estabelecimentos de segregação é inadmissível a revista íntima com o desnudamento de visitantes ou a inspeção de suas cavidades corporais. 2. A prova obtida por revista vexatória é ilícita, ressalvando-se as decisões proferidas e transitadas em julgado até a data deste julgamento. 3. A autoridade administrativa tem o poder de não permitir a visita diante da presença de indício robusto de ser a pessoa visitante portadora de qualquer item corporal oculto ou sonegado, especialmente de material proibido, como produtos ilegais, drogas ou objetos perigosos. 4. Confere-se o prazo de 24 meses, a contar da data deste julgamento, para aquisição e instalação de equipamentos como scanners corporais, esteiras de raio X e portais detectores de metais. Neste período, ou até que os mencionados equipamentos eletrônicos estejam em funcionamento nas instituições de segregação, é permitida a revista pessoal, desde que não vexatória". O ministro Alexandre de Moraes, então, sugeriu outra redação à tese, nos seguintes termos: "Excepcionalmente, na impossibilidade de utilização do scanner corporal, esteira de raio-x, portais detectores de metais, a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais deverá ser motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos nas hipóteses de exames invasivos. O excesso ou o abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou do médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização da visita". O julgamento está suspenso e ainda não há data definida para retornar ao plenário da Suprema Corte. Tema repetitivo 1.186 (REsp 2.015.598/PA - STJ) No primeiro encontro deste ano da Terceira seção do STJ, ocorrido em 6/2/25, foi julgado o Tema repetitivo 1.186 (REsp 2.015.598/PA). A questão submetida a julgamento era definir se o gênero sexual feminino, independentemente de a vítima ser criança ou adolescente, é condição única para atrair a aplicabilidade da lei 11.340/06 (lei Maria da Penha) nos casos de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, afastando-se, automaticamente, a incidência da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Em decisão unânime, os ministros fixaram a seguinte tese, publicada no último dia 12/2/25: "1. A condição de gênero feminino é suficiente para atrair a aplicabilidade da lei Maria da Penha em casos de violência doméstica e familiar, prevalecendo sobre a questão etária. 2. A lei Maria da Penha prevalece quando suas disposições conflitarem com as de estatutos específicos, como o da Criança e do Adolescente" Tema repetitivo 1.241 (REsp 2.059.576/MG e 2.059.577/MG - STJ) No dia 6/2/25, a Terceira seção também iniciou o julgamento do Tema repetitivo 1.241 (REsp 2.059.576/MG e 2.059.577/MG), cuja controvérsia é a possibilidade ou não de utilização da quantidade e da variedade das drogas apreendidas para definir a fração da minorante do tráfico privilegiado, prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06. O relator, ministro Ribeiro Dantas, acatando as sugestões do ministro Messod Azulay Neto, proferiu seu voto e propôs a seguinte tese de julgamento: "1. A quantidade e a natureza da droga apreendida podem ser utilizadas para modular a fração de diminuição da pena prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06, desde que não consideradas na primeira fase da dosimetria. 2. A quantidade de droga, por si só, não afasta necessariamente a aplicação do redutor, mas pode servir de parâmetro para modulação da fração de diminuição". Houve pedido de vista pelo ministro Rogério Schietti Cruz e o julgamento foi suspenso na sessão do dia 12/2/25, pois os ministros pretendem analisar o feito em conjunto com outros correlacionados ao mesmo tema e que se encontram sob a relatoria do ministro Messod Azulay Neto. Tema repetitivo 1.277 (REsp 2.069.773/MG - STJ) Na análise do Tema repetitivo 1.277, relacionado ao Leading case REsp 2.069.773/MG, sob a relatoria do desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, a Terceira seção definiu, por unanimidade, na primeira sessão presencial de 2025, que: "É possível, conforme o art. 42 do Código Penal, o cômputo do período de prisão provisória na análise dos requisitos para a concessão do indulto e da comutação previstos nos respectivos decretos". Tema repetitivo 1.274 (REsp 2.119.556/DF e 2.109.337/DF - STJ) O Tema repetitivo 1.274, apreciado pela Terceira seção no dia 12/2/25, igualmente sob a relatoria do desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo, buscava definir se o preso pode receber visitas de quem está cumprindo pena em regime aberto ou em gozo de livramento condicional. Após sugestão do ministro Messod Azulay Neto, a tese restou assim fixada: "O fato de o visitante cumprir pena privativa de liberdade em regime aberto ou em livramento condicional não impede, por si só, o direito à visita em estabelecimento prisional". Julgamentos previstos Como vimos, as duas primeiras semanas do ano judiciário de 2025 foram intensas e marcadas por julgamentos de extrema relevância para a interpretação e aplicação do Direito Criminal brasileiro. Além da retomada da análise da "ADPF das Favelas" pelo STF, está previsto o enfrentamento das seguintes questões pela Terceira seção do STJ1: Tema repetitivo 1.107 - A questão submetida a julgamento é saber se há imprescindibilidade de laudo pericial firmado por perito oficial para o reconhecimento da qualificadora do rompimento de obstáculo nos crimes de furto. O relator do processo é o ministro Rogerio Schietti Cruz. Tema repetitivo 1.163 - A controvérsia aqui é saber se a simples fuga do réu para dentro da residência, ao avistar os agentes estatais, e/ou a mera existência de denúncia anônima acerca da possível prática de delito no interior do domicílio, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, constituem ou não, por si sós, fundadas razões (justa causa) a autorizar o ingresso dos policiais em seu domicílio, sem prévia autorização judicial e sem o consentimento válido do morador. O relator também é o ministro Rogerio Schietti Cruz. Tema repetitivo 1.236 - O julgamento determinará se, para obtenção da remição da pena pela conclusão de curso na modalidade a distância, a instituição de ensino deve ser credenciada junto à unidade prisional em que o reeducando cumpre pena para permitir a fiscalização das atividades e da carga horária efetivamente cumprida pelo condenado. O tema repetitivo tem como relator o ministro Og Fernandes. Estupro de vulnerável - O colegiado analisará, em processo sob segredo de justiça, se o critério para configuração do estupro de vulnerável é objetivo. A discussão é determinar se o fato de a pessoa ter menos de 14 anos é suficiente para caracterizar o crime. O recurso, da relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, foi afetado à Terceira seção em dezembro de 2024 por decisão da Sexta turma. A medida foi tomada devido a divergências entre as duas turmas de Direito Penal (Quinta e Sexta turmas do STJ). Estaremos atentos a cada passo dos Tribunais Superiores em 2025. Quando surgir alguma novidade, ela será abordada nesta coluna com o objetivo de manter nossos leitores sempre atualizados. Vamos em frente e um excelente ano judiciário a todos! 1 Fonte: disponível aqui.
Com o ano de 2025, estreamos uma nova coluna em nosso portal: a Migalhas Criminais. Aqui, iremos tratar quinzenalmente de temas relevantes sobre o Direito Penal e Processual Penal, com enfoque para os julgamentos mais recentes e relevantes dos Tribunais Superiores (STF e STJ). Convidaremos professores, doutrinadores e especialistas para nos auxiliarem nos debates, sempre preocupados em levar a melhor e mais depurada informação a você, nosso leitor. O coordenador da nova coluna é o professor Júlio César Craveiro Devechi, que possui vasta experiência no Poder Judiciário, tendo atuado como servidor público de carreira em todas as suas instâncias. Júlio iniciou sua trajetória profissional em 2004 no TJ/PR, onde ficou até 2013, sempre no assessoramento de desembargador. Em 2013, ingressou na JF/PR - Justiça Federal do Paraná (TRF-4) como analista judiciário, cargo de provimento efetivo e privativo de bacharel em Direito. Na JF/PR, foi supervisor do JEF - Juizado Especial Federal e assessor de magistrados Federais de primeiro grau em Pato Branco/PR e em Curitiba/PR. Em 2022, migrou para Brasília/DF, onde trabalhou como assistente de ministro do STF. Hoje, é assessor de ministra do STJ. Na área acadêmica, Júlio é bacharel (2007) e mestre (2023) em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba/PR). Desde 2024, cursa doutorado em Direito Constitucional no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília/DF). Também é parecerista da Revista de Estudos Jurídicos do STJ, professor de Direito Penal e Processual Penal em Brasília/DF, autor e coautor de diversos artigos científicos e obras jurídicas. Nesta primeira edição, nosso coordenador fará uma breve retrospectiva dos principais precedentes do STJ e do STF julgados em 2024, ano bastante movimentado para os operadores do Direito Criminal. Foi um período repleto de decisões paradigmáticas e debates intensos nos Tribunais Superiores, que firmaram entendimentos importantes e modulares para o aprimoramento do Direito Penal e Processual Penal brasileiros. 1. O STF e a abordagem policial com base em perfilamento racial (HC 208.240/SP) No dia 11/4/24, o plenário da Suprema Corte finalizou o julgamento do Habeas Corpus 208.240/SP, suscitando reflexões sobre a prática do perfilamento racial em abordagens policiais no Brasil. No caso concreto, o paciente - um homem negro - foi abordado pela polícia, circunstância que deu ensejo à apreensão de 1,53 grama de cocaína e sua subsequente condenação por tráfico de drogas. Ao deliberar sobre a licitude da abordagem e das provas obtidas, o STF reafirmou princípios constitucionais importantes, ao mesmo tempo em que enfrentou um tema de alta sensibilidade social: o racismo estrutural. A tese fixada pelo STF representa um marco na proteção de direitos fundamentais, ao exigir que a busca pessoal seja fundada em indícios objetivos. Esse posicionamento reafirma o papel contramajoritário do Judiciário em coibir práticas discriminatórias e assegurar que o combate ao crime não se dê à custa de direitos e garantias constitucionais, sobretudo de populações vulneráveis. Tese de julgamento: "A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física". 2. O STF e o poder investigatório do MP(ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG) Voltou à pauta do plenário do STF o tema relacionado aos poderes de investigação do MP, em especial seu alcance, seus parâmetros e limites. O julgamento da questão foi finalizado em maio de 2024, oportunidade em que os ministros reafirmaram a atribuição concorrente do MP - ao lado dos órgãos com competência de polícia judiciária - para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal. No âmbito das ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG, foram fixadas as seguintes condições para a realização de procedimentos investigatórios pelo MP: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento do procedimento investigatório; (ii) observância dos prazos e regramentos previstos para inquéritos policiais, com necessidade de autorização judicial para prorrogações; (iii) aplicação subsidiária do art. 18 do CPP - Código de Processo Penal ao PIC - Procedimento Investigatório Criminal, que autoriza a realização de novas pesquisas depois de ordenado o arquivamento do inquérito e desde que haja notícias de novas provas; e (iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer do PIC ou do inquérito policial relacionado. O STF reforçou, ainda, que o respeito às prerrogativas profissionais da advocacia e à reserva constitucional de jurisdição é inegociável. A documentação dos atos praticados no curso da investigação pelo MP deve estar integralmente disponível, em conformidade com a súmula vinculante 14/STF, a qual garante à defesa amplo acesso aos elementos de prova já documentados em procedimentos investigatórios criminais. Teses de julgamento: "1. O MP dispõe de atribuição concorrente para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado. Devem ser observadas sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais da advocacia, sem prejuízo da possibilidade do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição (Tema 184 RG); 2. A realização de investigações criminais pelo MP tem por exigência: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição; (ii) observância dos mesmos prazos e regramentos previstos para conclusão de inquéritos policiais; (iii) necessidade de autorização judicial para eventuais prorrogações de prazo, sendo vedadas renovações desproporcionais ou imotivadas; iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer de PIC ou inquérito policial a fim de buscar evitar, tanto quanto possível, a duplicidade de investigações; v) aplicação do art. 18 do CPP ao PIC instaurado pelo MP; 3. Deve ser assegurado o cumprimento da determinação contida nos itens 18 e 189 da Sentença no Caso Honorato e Outros versus Brasil, de 27/11/23, da CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de reconhecer que o Estado deve garantir ao MP, para o fim de exercer a função de controle externo da polícia, recursos econômicos e humanos necessários para investigar as mortes de civis cometidas por policiais civis ou militares; 4. A instauração de procedimento investigatório pelo MP deverá ser motivada sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infrações penais ou sempre que mortes ou ferimentos graves ocorram em virtude da utilização de armas de fogo por esses mesmos agentes. Havendo representação ao MP, a não instauração do procedimento investigatório deverá ser sempre motivada; 5. Nas investigações de natureza penal, o MP pode requisitar a realização de perícias técnicas, cujos peritos deverão gozar de plena autonomia funcional, técnica e científica na realização dos laudos". 3. O STF e a inconstitucionalidade da desqualificação da vítima mulher(ADPF 1.107/DF) A ADPF 1.107/DF foi ajuizada pela PGR - Procuradoria-Geral da República, que apontou a existência de condutas omissivas e comissivas do Poder Público, capazes de perpetuar práticas discriminatórias contra mulheres vítimas de crimes sexuais. Entre os problemas destacados estavam os questionamentos em audiências sobre o modo de vida e a vivência sexual das vítimas, utilizados com frequência para desqualificá-las e desacreditar seus relatos. Por unanimidade, o plenário do STF julgou procedente a referida ADPF em 23/5/24, fixando quatro diretrizes principais: (i) interpretação conforme a Constituição do art. 400-A do CPP, vedando-se a invocação de elementos relacionados à vivência sexual pregressa ou ao modo de vida das vítimas em audiências de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sob pena de nulidade do ato; (ii) vedação à revalorização prejudicial da conduta da vítima em sentenças. Assim, expressão "comportamento da vítima" do art. 59 do Código Penal não pode ser interpretada para valorar negativamente aspectos de sua vida pregressa ou comportamento social; (iii) atuação judicial ativa para coibir essas práticas, impondo-se aos magistrados o dever de impedir tais abordagens durante os processos, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal; e (iv) comunicação dessas diretrizes aos tribunais inferiores, com a finalidade de uniformizar as práticas judiciais no país. Tese de julgamento: "É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais". 4. O STF e a tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal (Tema 506 da repercussão geral) No julgamento do RE 635.659/SP, o STF enfrentou o controverso tema da constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal. Por maioria, a Corte decidiu que o porte de até 40 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, para consumo pessoal, é conduta atípica, sendo aplicadas medidas educativas em procedimento de natureza não penal e sem repercussões criminais. A decisão não impede que quantidades menores sejam consideradas tráfico, desde que evidências adicionais apontem para o intuito de mercancia, como embalagens e outros instrumentos encontrados (balança de precisão, por exemplo). A tese fixada equilibra as políticas de combate ao tráfico de drogas no Brasil, mas atribui ao Congresso Nacional a responsabilidade pela regulamentação futura do tema. Teses de julgamento: "1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do art. 28 da lei 11.343/06, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário". 5. O STF, a soberania do júri e a execução imediata da pena (Tema 1.068 da repercussão geral) Em setembro de 2024, o STF consolidou o entendimento de que a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a execução imediata da pena, independentemente de seu montante. No julgamento do RE 1.235.340/SC, fixou-se que a decisão do Conselho de Sentença não pode ser sustada por recursos ordinários, assegurando-se maior celeridade e efetividade às decisões? condenatórias proferidas em plenário. Tese de julgamento: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada". 6. Os Tribunais Superiores e a retroatividade do ANPP(STF: HC 185.913/DF e STJ: Tema repetitivo 1.098) No HC 185.913/DF, o STF decidiu pela possibilidade de celebração do ANPP em casos de processos em andamento na data de vigência da lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), mesmo sem que tenha ocorrido prévia confissão do réu. O STJ, no Tema repetitivo 1.098, reforçou essa orientação, aplicando, da mesma forma, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Ambos os Tribunais Superiores condicionaram o acordo à manifestação motivada do MP, promovendo segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto. Teses de julgamento: STF "1. Compete ao membro do MP oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno; 2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da lei 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado; 3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo; 4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo MP, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso". Teses de julgamento: STJ "1 - O Acordo de Não Persecução Penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual, no que diz respeito à possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal, e, de outro lado, natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do CPP. 2 - Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma pena benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da lei 13.964/19, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação. 3 - Nos processos penais em andamento em 18/9/24 (data do julgamento do HC 185.913/DF, pelo plenário do STF), nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo MP ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo no caso concreto. 4 - Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir de 18/9/24, será admissível a celebração de ANPP antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura do acordo, no curso da ação penal, se for o caso". 7. O STF e a absolvição por clemência no Tribunal do Júri(Tema 1.087 da repercussão geral) A controvérsia posta no ARE - Agravo em Recurso Extraordinário 1.225.185/MG surgiu a partir de julgamento do Tribunal do Júri que absolveu um réu por meio de quesitação genérica, amparando-se em argumentos de clemência apresentados pela defesa em plenário. O MP local interpôs recurso de apelação com fundamento no art. 593, III, "d", do CPP, sustentando que a decisão afrontava as provas constantes nos autos. O TJ/MG manteve o veredito absolutório, ressaltando a soberania dos jurados, conforme garantido pelo art. 5º, XXXVIII, "c", da Constituição Federal. Inconformado, o MP recorreu ao STF, invocando a necessidade de controle mínimo da racionalidade das decisões do júri. Por maioria, o STF fixou duas teses principais: (i) cabimento do recurso de apelação, nos termos do art. 593, III, "d", do CPP, quando a decisão do Tribunal do Júri, fundamentada em quesitação genérica, for considerada manifestamente contrária às provas dos autos; e (ii) vedação ao Tribunal de Apelação de determinar novo júri se constar em ata a apresentação de tese defensiva que conduza à clemência, desde que compatível com a Constituição Federal, os precedentes vinculantes do STF e as circunstâncias fáticas dos autos. Tese de julgamento: "1. É cabível recurso de apelação com base no art. 593, III, 'd', do CPP, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos. 2. O Tribunal de Apelação não determinará novo júri quando tiver ocorrido a apresentação, constante em ata, de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, os precedentes vinculantes do STF e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos". 8. O STF e a tipicidade do porte de arma branca(Tema 857 da repercussão geral) O caso concreto em discussão no ARE 901.623/SP envolvia a condenação do recorrente ao pagamento de 15 dias-multa por portar uma arma branca sem justificativa plausível. Alegava-se, no recurso, a inconstitucionalidade do art. 19 da LCP - lei das Contravenções Penais devido à falta de regulamentação específica exigida pelo próprio dispositivo. Além disso, questionava-se a compatibilidade do preceito com o princípio da taxatividade penal, argumento central da defesa. Por maioria, o STF entendeu que: (i) o art. 19 da LCP não exige regulamentação complementar para sua aplicação às armas brancas, considerando-se suficiente a avaliação judicial do elemento subjetivo do agente e da potencialidade lesiva do instrumento; (ii) a norma penal é compatível com o princípio da legalidade, uma vez que define com clareza o comportamento vedado, cabendo ao magistrado analisar as circunstâncias concretas para aferir a tipicidade da conduta; e (iii) não houve usurpação da competência da União, já que o fundamento da condenação não se baseou em normas estaduais, mas no próprio decreto-lei Federal. O precedente reafirma a vigência do art. 19 da LCP em um contexto de questionamentos sobre a utilidade e a contemporaneidade das contravenções penais. A decisão também sinaliza uma abordagem pragmática ao princípio da taxatividade, permitindo certa abertura interpretativa para avaliar o contexto fático de cada caso. O STF destacou, nesse aspecto, que, ao avaliar a tipicidade, o juiz deve observar o elemento subjetivo (a intenção do agente ao portar a arma branca) e a potencialidade lesiva da arma (a capacidade do instrumento de causar dano à incolumidade física de terceiros). Tese de julgamento: "O art. 19 da lei de Contravenções penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca, cuja potencialidade lesiva deve ser aferida com base nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, inclusive, o elemento subjetivo do agente". 9. O STJ e os contornos da confissão extrajudicial(AREsp 2.123.334/MG) A Terceira seção do STJ abordou a confissão extrajudicial no AREsp 2.123.334/MG, reafirmando sua inadmissibilidade quando colhida de forma informal, fora de estabelecimentos estatais oficiais e sem garantias de licitude. O órgão fracionário do Tribunal, responsável pela uniformização da jurisprudência criminal no Brasil, alertou para os riscos de falsas confissões, destacando a necessidade de controle rigoroso sobre a atividade policial. A decisão enfatiza a proteção contra práticas abusivas e reforça o papel do MP como fiscal da lei. Teses de julgamento: "1: A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu). 2: A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao MP possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória. 3: A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP. 4. A aplicação dessas teses fica restrita aos fatos ocorridos a partir do dia seguinte à publicação deste acórdão no DJe (2/7/24). Modulação temporal necessária para preservar a segurança jurídica (art. 927, § 3º, do CPC). 5. Ainda que sejam eventualmente descumpridos seus requisitos de validade ou admissibilidade, qualquer tipo de confissão (judicial ou extrajudicial, retratada ou não) confere ao réu o direito à atenuante respectiva (art. 65, III, "d", do CP) em caso de condenação, mesmo que o juízo sentenciante não utilize a confissão como um dos fundamentos da sentença. 10. O STJ e a impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal(súmula 231 do STJ) Em agosto de 2024, a Terceira seção do STJ reafirmou a validade de sua súmula 231, que proíbe a redução da pena abaixo do mínimo legal, na segunda fase da dosimetria, mesmo diante da incidência de circunstâncias atenuantes genéricas. A controvérsia era saber se a expressão "sempre atenuam a pena", presente no caput do art. 65 do Código Penal, autorizava a mitigação da reprimenda corporal abaixo do mínimo em caso de incidência de circunstâncias atenuantes genéricas. Prevaleceu o entendimento do ministro Messod Azulay Neto, no sentido de que a questão já foi enfrentada pelo STF em precedente vinculante (Tema 158 da repercussão geral), não cabendo ao STJ afrontá-lo com sinalização jurisprudencial em outro sentido. Enunciado (súmula 231 do STJ): "A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". Tese (Tema 158 da repercussão geral): "Circunstância atenuante genérica não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". 11. O STJ e a ausência de prazo das medidas protetivas de urgência(Tema repetitivo 1.249) No mês de novembro de 2024, a Terceira seção deliberou sobre a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, previstas na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), bem como sobre a possibilidade ou não de fixação de prazo predeterminado para sua duração pelo juiz. O colegiado compreendeu que essas medidas possuem natureza de tutela inibitória, não se vinculando à existência prévia de procedimentos da persecução criminal, como o inquérito policial ou a ação penal. Além disso, prevaleceu o entendimento de que as medidas protetivas de urgência devem viger enquanto perdurar o risco à mulher, ou seja, sem a possibilidade de fixação de prazo predeterminado de validade pelo juiz. O texto final da tese de julgamento ainda não foi publicado pelo STJ. 12. O STJ e os limites à atuação judicial na prisão preventiva(súmula 676 do STJ) No final do ano, foi aprovada pela Terceira seção do STJ a súmula 676, estabelecendo que, após a lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), é vedado ao juiz decretar a prisão preventiva ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício. Essa consolidação jurisprudencial reafirma o sistema acusatório e a separação das funções judiciais e persecutórias, da forma prevista no art. 3º-A do CPP. Enunciado: Em razão da lei 13.964/19, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva. *** Esta primeira edição da coluna "Migalhas Criminais" representa uma singela homenagem à memória do advogado paranaense Antonio Devechi, falecido em Curitiba/PR no último dia 2/1/25. Devechi nasceu em Mandaguari/PR em 25/3/48 e trabalhou no Banestado - Banco do Estado do Paraná como gerente geral e gerente regional em diversas agências. Formou-se em Direito aos 48 anos de idade, sendo o primeiro colocado de sua turma de graduação. Escreveu mais de 15 livros jurídicos, todos publicados pela Editora Juruá de Curitiba/PR. Os últimos cargos ocupados por Devechi foram o de Diretor-Geral e de Secretário de Estado na Secretaria de Justiça, Família e Trabalho do Paraná.