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Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, José Fernando Simão, Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
1. Introdução Em meados de abril de 2024, foi apresentado ao Senado Federal o anteprojeto de revisão e atualização do CC de 2002. A Comissão responsável pela sua elaboração foi formada por 38 juristas, mulheres e homens provenientes de várias regiões do Brasil e representando diferentes profissões jurídicas1.  Coerente com a época atual, em que se percebe a polarização inflamada de diversos assuntos cotidianos, o anteprojeto de reforma do CC não passou incólume pelas dicotomizações que empobrecem os debates e pelas fake news. Para alguns imperioso, para outros indesejado, é papel da doutrina se debruçar sobre o novo texto legal enunciado, a fim de apontar suas virtudes e insuficiências, apresentando, quando possível, sugestões de aprimoramento. Eis que, dentre as propostas de alteração do código, há uma instigante reconfiguração do instituto do fideicomisso, figura hodiernamente em desuso, mas que poderá reemergir oferecendo inúmeras possibilidades de utilizações práticas, como, por exemplo, em planejamentos patrimoniais e sucessórios. O presente artigo visa tecer primeiras considerações sobre as propostas de alteração do regime legal do fideicomisso. Inicialmente, é abordado sinteticamente o regramento atual do instituto no CC de 2002 e as descontinuidades com o CC de 1916, que lhe conferia um campo de aplicação mais amplo. Em prosseguimento, são examinadas as principais mudanças propostas no anteprojeto sobre o fideicomisso. Por fim, são apresentadas sugestões e ponderações no ensejo de contribuir, ainda que singelamente e no limite deste breve ensaio, sobre o "novo fideicomisso". 2. O fideicomisso no CC de 2002 Embora hoje em dia seu uso seja infrequente e, por essa razão, tenha sido relegado ao esquecimento, o fideicomisso já foi mais valorizado pela lei e doutrina brasileiras em épocas passadas, tendo sido objeto de estudo de juristas de escol2. O código de 2002 recebeu uma seção específica para tratar da substituição fideicomissária3, determinação realizada via testamento de transmissão de herança ou legado em favor de um fiduciário para que, ocorrendo a morte desse ou ocorrendo determinado termo ou condição, tais bens sejam transmitidos em caráter definitivo a um terceiro, o fideicomissário. Logo, a substituição fideicomissária possui uma estrutura tripartite: em primeiro lugar, o fideicomitente, que é o testador, o qual decide instituir o fideicomisso; em segundo lugar, há o fiduciário, que no momento da morte do fideicomitente receberá em caráter resolúvel os bens objeto do fideicomisso. Seus deveres são os de conservar tais bens e ocorrendo o termo ou a condição estabelecida pelo fideicomitente, transmiti-los ao fideicomissário, de modo que sua propriedade será resolúvel. O fideicomissário será o titular em caráter permanente dos bens. O fideicomisso pode ser universal, recaindo sobre todos os bens deixados em herança, ou particular, incidindo apenas sobre bens determinados. A substituição fideicomissária promove uma única sucessão, mas com ordens sucessivas. Por esta razão, consoante afirmou Pontes de Miranda, o fideicomisso não configura verdadeira substituição testamentária, pois o fiduciário não é simplesmente trocado pelo fideicomissário4. A beleza do fideicomisso está justamente em permitir que o mesmo bem seja fruído por mais de um sujeito, porém em momentos diferentes, apresentando, em tese, inúmeras potencialidades. Uma importante ruptura separa o CC de 1916 do CC de 2002 no que tange ao fideicomisso: O fato de o atual art. 1.952 determinar que a substituição fideicomissária "somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador"5, isto é, a prole eventual6. A opção do codificador de 2002 de reduzir drasticamente o número de situações passíveis de instituição de fideicomisso tornou o instituto de pouca serventia e aplicação prática escassa na atualidade. Além disso, para a doutrina majoritária, a instituição de fideicomisso só pode ocorrer em testamento, sendo vedada a sua inserção em cláusula contratual, pois representaria afronta à vedação do pacta corvina, previsto no art. 426 do CC7. Nesse sentido, prevê o enunciado 529 da V jornada de Direito Civil do CJF: "O fideicomisso, previsto no art. 1.951 do CC, somente pode ser instituído por testamento". Logo, o fideicomisso no tempo presente está sendo uma figura de parca utilização. Todavia, pela semelhança de sua estrutura tríplice com os trusts e as inúmeras funções que poderia desempenhar, tem sido mencionado em projetos de lei que visam lhe atribuir nova roupagem, potencializando a sua aplicação8. 3. O fideicomisso no anteprojeto de reforma do CC Diferente de muitas das propostas de alteração do CC, a reconfiguração do fideicomisso não representa a cristalização da jurisprudência. Em realidade, parte do acolhimento das críticas de seu estado atual de desuso e do cotejo com o direito comparado, o que já motivou a propositura de projetos de lei que permitam uso alargado do fideicomisso, tornando-o uma espécie de trust à brasileira9. No anteprojeto, para que se viabilize o "novo fideicomisso", foram realizadas alterações em vários dispositivos. Passa-se ao exame de tais formulações, principiando, por ordem topográfica, pela parte geral. Ainda que não haja remissão direta ao fideicomisso, a proposição de nova redação ao art. 91 do código pode impactar no seu bom funcionamento, uma vez que corresponde ao que se entende por patrimônio. Em um primeiro olhar, pode-se pensar que a sugestão de mudança contemplaria a teoria contemporânea do patrimônio, a qual concebe que uma mesma pessoa possa ser titular de mais do que um patrimônio, permitindo a criação de patrimônios de afetação. Isso seria positivo para reforçar a ideia que os bens submetidos ao fideicomisso constituiriam um patrimônio afetado, o que poderia representar maior segurança, sobretudo para os fideicomissos inter vivos. Contudo, a proposta contempla a expressão "experimentadas por uma ou mais pessoas, conforme assim se tenha estabelecido", que ficou pouco compreensível e não captou a essência das teorias contemporâneas. Neste ponto, modestamente, se aconselha uma emenda e como norte indica-se o art. 2º da Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. No livro de Contratos, o anteprojeto introduz o art. 426-A, por meio do qual "é admitido o fideicomisso por ato entre vivos, desde que não viole normas cogentes e de ordem pública". Esta modificação representará uma verdadeira revolução para o fideicomisso, que poderá, então, ser utilizado amplamente em negócios jurídicos, tais como compra e venda, doação, pactos societários, dentre outros. Importante a cautela do legislador ao reforçar a necessária observância das normas de ordem pública, para que esta proposta tão promissora, não seja desvirtuada e empregada no cometimento de fraudes. No livro de Sucessões, foram feitas diversas mudanças no regramento da substituição fideicomissária. Inicialmente, o enunciado proposto para o art. 1.951 repara a limitação desacertada operada na passagem do código Beviláqua para o de 2002. Na proposição consta que o fideicomissário poderá ser "pessoa jurídica ou natural, já nascida ou concebida, ou ainda pessoas não concebidas, determinadas ou determináveis", expandindo consideravelmente o alcance do instituto. No dispositivo subsequente, descreve-se como um fideicomisso poderá ser estruturado com a participação de um fiduciário que seja gestor profissional dos bens a ele transferidos, de modo extremamente semelhante ao que ocorre nos trusts, em que é frequente a utilização de trustees profissionais. Neste ponto, cabe destacar que esta maneira de planejamento patrimonial poderá beneficiar sujeitos vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, além de permitir a sucessão hereditária por etapas10. Todavia, é preciso cautela para que não haja a deturpação de sua vocação para finalidades merecedoras de tutela, mormente em nosso país, em que as instituições financeiras e assemelhadas gozam de privilégios que nem sempre são coerentes com a proteção dos cidadãos. O anteprojeto também deixa claro que poderão fazer parte da instituição do fideicomisso "quaisquer bens e direitos, incluindo os bens digitais" (art. 1.952-A) e no art. 1.952-B estão arrolados os elementos mínimos que devem constar na cláusula testamentária que cria o fideicomisso, contribuindo para que sua instituição seja inequívoca e assertiva. Do mesmo modo, ratifica as responsabilidades e deveres do fiduciário, prestigiando a vontade do testador. Digna de registro é a redação prevista no art. 1.953-A, segundo a qual: "(p)ode ser fideicomissa'rio qualquer sujeito de direito, ente juri'dico despersonalizado ou pessoa determinável, ainda que não concebida no momento da instituição do fideicomisso". Deste modo, o fideicomisso realmente poderá ser útil em diversas situações de planejamento patrimonial ou sucessório, sem prejuízo de ser coligado a outras figuras. Pelo exposto, percebe-se que, em aprovada a reforma, o fideicomisso terá maior campo de aplicabilidade, podendo desempenhar papel de maior protagonismo no ordenamento jurídico brasileiro. O conhecimento de sua forma de funcionamento será fundamental para todos os profissionais da área jurídica. Alguns dos leitores podem se sentir tentados a aguardar o andamento do anteprojeto para iniciarem seus estudos. Todavia, a lei que rege a sucessão é a vigente ao tempo de sua abertura11. Isso significa que, para a boa prática profissional, as consultas jurídicas realizadas pela advocacia devem ao menos considerar a hipótese de que quando futuramente houver o falecimento do cliente, a lei poderá ter sido alterada. 4. Considerações finais As propostas de remodelação do fideicomisso são alvissareiras. Exigiram um trabalho coordenado das subcomissões (em especial de contratos e sucessões), que resultou em uma proposta de alteração legislativa corajosa e arrojada. Certamente é uma das 'joias' escondidas do anteprojeto. A opção por resgatar e aprimorar institutos com os quais já temos familiaridade é muito mais produtiva. Espera-se que o futuro reserve ao fideicomisso maior aplicação prática e versatilidade para colmatar lacunas e oferecer soluções adequadas, sem descuidar das cautelas necessárias para que não tenha seu uso desvirtuado.   ________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 05/11/24. 2 Dentre diversos escritos sobre o tema, destacam-se os pareceres proferidos por Alfredo Bernardes, Carlos Maximiliano, Clovis Beviláqua, Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato, que constam na obra a seguir: VALLADÃO, Haroldo. Enfim... Fideicomisso!. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942. 3 Vide artigos 1.951 a 1.960 do CC de 2002. 4 "Num só capítulo, o CC (1916) juntou dois institutos de natureza diversa, e só semelhantes na aparência: a substituição vulgar e o fideicomisso. Naquela há, realmente, uma substituição, - uma pessoa fica no lugar que tocava a outra; nesse, não: uma foi, ou é, até certo tempo, ou até certo fato, e depois outra lhe sucede na herança. Não a substitui, vem-lhe depois. Os juristas constroem-na como instituição condicional; sem que isso lhe obste poder ser ela mesma condicional nos casos em que o pode ser a instituição do herdeiro ou legatário". (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Direito das sucessões: sucessão testamentária, disposições testamentárias e formas ordinárias de testamento. Atual. por Giselda Hironaka e Paulo Lôbo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. Coleção tratado de direito privado: parte especial, 58, p. 145). 5 Art. 1.952 do CC de 2002: "A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. Parágrafo único. Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário". 6 O código Beviláqua previa a possibilidade de a prole eventual herdar via testamento, desde que expressamente determinado pelo testador e que quando do falecimento desse a prole eventual fosse existente. No CC de 2002, ao contrário, não é necessário estar concebido ou nascido no momento da morte do testador. Exige-se apenas que em até dois anos contados da abertura da sucessão esteja concebido. 7 Art. 426 do CC de 2002: "Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". 8 A título de ilustração, mencionam-se os projetos de lei do Senado 487/13 e 4.758/20. 9 Sobre as semelhanças e dessemelhanças entre fideicomisso e trust, toma-se a liberdade de remeter a trabalho mais aprofundado da autora: XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 143 e ss.   10 Desenvolve-se com mais detalhes essas ideias em: XAVIER, Luciana Pedroso. O trust e suas potencialidades no planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 509-525. Tomo III. 11 Art. 1.787 do CC de 2002: "Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela".
I. Introdução O texto procura fornecer um panorama geral do tema da racionalidade limitada aplicada aos contratos, apresentando o essencial sobre o tema, algumas das discussões mais relevantes e possíveis implicações no ordenamento jurídico brasileiro.  O ponto de partida escolhido foi a lei da liberdade econômica, embora a questão da racionalidade limitada seja muito tratada e dispense qualquer arcabouço positivo, eis que verificada por farta doutrina e por experimentos empíricos que confirmam a hipótese de sua incidência no campo contratual.  Também é proposta uma intersecção entre Direito, economia e psicologia através da apresentação da AED - Análise Econômica do Direito e da Economia Comportamental, e como elas podem ser utilizadas no âmbito do direito contratual.  A lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) alterou o art. 113, do CC, que regula o tema da interpretação dos negócios jurídicos, interessando para o presente texto o disposto no parágrafo primeiro, inciso V, que estabelece:  "A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração". Tendo o dispositivo acima como ponto de partida, passa-se à exposição dos argumentos. II. Law and economics e behavioral law and economics O dispositivo introduziu no direito brasileiro o tema da racionalidade econômica, reconhecendo em grande parte a influência e importância da economia para o Direito, especialmente para os contratos. Destaca-se a corrente conhecida por L&E - Law and Economics e a sua mais recente variação, conhecida por BL&E - Behavioral Law and Economics, popularizadas mundialmente por obras de autores como Coase, Becker, Posner, Taller, Sunstein e Kahnemann1. Tais obras sustentam, em apertada síntese, que Direito e economia caminham juntas em diversas áreas e que podem colaborar reciprocamente para a solução de questões jurídico-econômicas.  Assim, embora não seja estranho ou desconhecida a tese de que o sistema jurídico influencia a produção de riquezas em uma sociedade, a análise econômica do direito vai além e busca explicar como o indivíduo reage às normas jurídicas valendo-se, para tanto, do instrumental da economia. Sinteticamente, a L&E busca avaliar as consequências e os motivos das escolhas humanas, permitindo uma nova compreensão do cenário jurídico, inclusive para situações futuras.   Essa perspectiva é possível uma vez que a ciência econômica é acima de tudo uma ciência comportamental, pois, para os economistas, a relação das pessoas com o mundo é explicada por elas agirem e serem governadas por regras que atingem diretamente a racionalidade humana. Sob a perspectiva da Teoria da Escolha Racional2, os agentes econômicos são seres absolutamente estraordinários, porque são capazes de possuir preferências definidas e estáveis; conseguem processar todas as informações para calcular e comparar dentre as diversas escolhas possíveis qual é a melhor e tomam decisões sempre ótimas, que maximizam perfeitamente a utilidade esperada.  Como é possível observar, o padrão comportamental da Teoria da Escolha Racional parte da ideia hipotética de que todo indivíduo tem acesso e compreensão de todas as informações relevantes para a tomada de decisão. Entretanto, a realidade contradiz essa premissa, tanto que Herbert Simon apresentou uma crítica contundente ao modelo quando enunciou e até demonstrou que os indivíduos possuem limitações cognitivas que comprometem a sua racionalidade plena, razão pela qual exprime a ideia de racionalidade limitada a partir da verificação objetiva de que existem limitações cognitivas que comprometem a visão de racionalidade plena, inaugurando a chamada Economia Comportamental.3 Essa corrente questiona os postulados da economia clássica que defendia a existência do "homo economicus", um ser completamente racional, mas que somente existia nos livros. Assim, o indivíduo da racionalidade limitada é mais factível, porque substitui "o objetivo da maximização pelo da satisfação, substitui a exigência do ótimo pela do meramente suficiente, daquilo que basta para se poder agir".4 Aprofundando o tema, pesquisas de Richard Thaler5, Daniel Kahneman e Amos Tversky6 7-  demonstraram a existência de uma multiplicidade de fatores capazes de influenciar o processo de tomada de decisão, pois os indivíduos utilizam heurísticas, ou atalhos mentais que facilitam a tomada de decisões ditas complexas. Essas heurísticas, por sua vez, podem ser contaminadas por vieses cognitivos, ou seja, distorções no processo de julgamento das informações disponíveis, causando erros previsíveis nas decisões. Deste modo, ao tomar decisões, as pessoas cometem erros previsíveis por se apoiarem em heurísticas que resultam em vieses comportamentais. Assim, estudos em conjunto de psicólogos e economistas verificaram que a maximização da utilidade não é o único fator que motiva o comportamento humano, existindo outros fatores que devem ser considerados, inclusive subjetivos, como bem-estar e justiça, além, é claro, da sujeição à diversas heurísticas e vieses que podem levar a erros na tomada de decisão. A transposição dessas lições para a área contratual é inerente. O indivíduo que celebra contratos possui racionalidade limitada condicionada por heurísticas e vieses que acabam por influenciar a decisão final. Esse fator passa a ser objeto de considerações e deve ser acolhida pela literatura jurídica, na medida em que não é possível dissociar o plano do contrato da decisão que leva até ele.  III. Racionalidade limitada e contratos incompletos A racionalidade econômica dos indivíduos é limitada e isso impacta a forma de compreensão do contrato. A carga cognitiva necessária para compreender o contrato é variável, porque envolve considerar muitas contingências que podem não ser retratadas no contrato celebrado entre as partes. É muito complexo estabelecer um conjunto de cláusulas que abarque a totalidade de variáveis envolvidas numa determinada relação, motivo pelo qual as partes costumam empregar mecanismos cognitivos de simplificação, as heurísticas e vieses.  Heurísticas são espécies de atalhos mentais que o indivíduo emprega no processo de tomada de decisão, para evitar ter que processar e separar toda informação disponível a respeito do negócio que se pretende firmar e ver retratado em um contrato. Vieses, por sua vez, são padrões de distorção que empregamos no processo de tomada de decisão, desvios lógicos que levam a decisões irracionais. Como os indivíduos costumam utilizar informações ao nível satisfatório e não ótimo ou completo, valem-se de heurísticas e vieses cognitivos para encurtar esse processo de tomada de decisão, o que pode levar a erros ou decisões irracionais que acabam por macular o objetivo do contrato.  Isso leva ao tema dos contratos incompletos. Em geral é muito caro produzir um contrato completo, por diversos motivos. A alocação de tempo, as contingências necessárias para todas as variáveis de potencial descumprimento, os custos de oportunidade envolvidas, dentre outros elementos necessários para buscar um contrato completo podem ser tão expressivos que os custos de transação se tornam proibitivos para celebrar o contrato, e não é esse o objetivo das partes. Elas querem e desejam celebrar o contrato e por isso contentam-se com um nível satisfatório de informações que levam a cláusulas e condições contratuais incompletas. A incompletude, portanto, tem um certo grau de intencionalidade das partes que precisa ser ponderada no momento de se interpretar o contrato. Em certa medida as partes escolhem no contrato um nível de "ignorância racional"8 para tomar a decisão de celebrar este ou aquele contrato, por incluir ou não incluir esta ou aquela cláusula e assim sucessivamente. Por exemplo, não é incomum verificar contratos de longa duração de fornecimento de insumos elaborados de forma relativamente simples, porque as partes depositaram na confiança e na reputação boa parte das expectativas em torno da solução de futuros estados de mundo, eis que, por ser um contrato de longa duração, seria impossível prever todas as contingências possíveis sem incorrer em elevados custos de transação que poderiam levar à não celebração do contrato. O grau de confiança e a reputação são fatores importantes e geralmente considerados na celebração de contratos, e que fazem as partes escolherem uma à outra. Por outro lado, isso por si não é uma garantia inequívoca de que o contrato será totalmente cumprido e que condutas oportunistas não poderão surgir ao longo da vida do contrato, todavia, continuam sendo um indicador para juízos de ponderação para a tomada de decisão a respeito de contratar ou não contratar.  A liberdade de contratar tem custos que as partes precisam incorrer, por isso a opção, muitas vezes, pelos contratos incompletos. Comecemos pela definição de um contrato completo, que é aquele em que as partes conseguem prever, ex ante, todas as contingências contratuais futuras, constituindo um modelo ideal que leva em consideração fatores que facilmente se constatam como inexistentes. São eles: custos de transação zero, racionalidade ilimitada dos contratantes e informações perfeitas e simétricas. Esse cenário é geralmente irreal.  A visão mais realista aponta para os contratos incompletos, que garantem uma estrutura de governo ativa e funcional, endógena e exógena capaz de disciplinar e oferecer soluções eficientes para situações futuras e incertas que afetem os resultados pretendidos pelas partes quando da formação dos contratos.9 A racionalidade econômica limitada facilmente nos leva à opção das partes por deixar pontos vagos ou imprecisos no contrato para reduzir os custos de transação na fase de negociação. Portanto, é nesta fase que a incompletude se revela, mas que se materializa no contrato. Por esse motivo, algumas vezes não é possível encontrar na fase de negociação nenhuma tratativa a respeito de um determinado evento futuro e incerto simplesmente porque as partes optaram por isso, uma espécie de "ignorância racional'. IV. A racionalidade limitada dos tribunais Partes insatisfeitas com um contrato costumam recorrer aos tribunais. Nesse momento elas adicionam uma terceira "parte" que também possui racionalidade limitada e que, por isso, terá dificuldades em preencher as lacunas contratuais que foram, em certa medida, intencional e deliberadamente deixadas pelas partes contratantes. Assim, os tribunais são chamados a concluir contratos que foram deixados incompletos pelos próprios contratantes. O contrato é capaz de descrever direitos e obrigações das partes em estados alternativos do mundo que não existiam no momento da celebração. Assim, na formação do contrato são levadas em consideração fatos do passado e do presente, mas o contrato serve para regular situações hipotéticas futuras inexistentes naquele momento, as quais podem ou não se verificar objetivamente. Os contratantes, portanto, muitas vezes optam por não atribuir obrigações em estados futuros possíveis porque isso pode ser muito custoso.   Logo, a tendência é de que, por serem limitadamente racionais, os indivíduos precificarão um número limitado de hipóteses futuras como parte de sua decisão de contratar, o que pode levar a que os termos escolhidos para formar o contrato não sejam eficientes o suficiente para resolver potenciais desacordos no momento do cumprimento do contrato.  Basicamente seriam dois os mecanismos disponíveis para solucionar essa lacuna. Os contratantes estabelecem no próprio contrato formas de suprir futuros estados do mundo através de uma renegociação, estabelecendo o modo e a forma como ela poderá ocorrer; ou então, buscam uma decisão adjudicatória junto ao tribunal.  O tribunal, por sua vez, precisa estabelecer mecanismos, a partir da sua própria racionalidade limitada, para tomar a decisão adjudicatória necessária para suprir a incompletude contratual deixada pelas partes. Nessa situação, o tribunal costuma estar assimetricamente informado, e verdadeira desvantagem em relação às partes que firmaram o contrato, porque cada uma delas possui um conjunto de informações que pode ou não trazer à discussão e apreciação do tribunal. Cabe ao tribunal buscar suprir essa lacuna informacional adotando mecanismos probatórios suficientemente abrangentes e aponto de reduzir ao menos em parte a assimetria de informação que paira sobre ele no momento de tomar a decisão.  Para essa tarefa, existe o art. 113, parágrafo primeiro, inciso V, do CC, que estabeleceu uma espécie de "equação" para essa tarefa, um modelo interpretativo aplicável aos contratos, como será adiante apresentado.  V. A racionalidade econômica do art. 113 do CC A primeira parte da equação prevista no art. 113, do CC, envolve compreender o que seria a razoável negociação das partes para o contrato. A segunda parte propõe inferir- deduzir, tirar por conclusão - o que seria razoável das (i) demais disposições contratuais e (ii) da racionalidade econômica das partes, para, dessa forma, obter a melhor interpretação para o contrato incompleto.  Finalmente, a legislação reconhece que na equação a assimetria de informações deve ser considerada levando em conta o momento em que o contrato é celebrado. Sendo assim, embora o contrato trate de futuros estados de mundo, tomará por base as informações que as partes dispunham quando celebraram o contrato.  A primeira parte da equação afirma que a interpretação "deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida". Portanto, envolve conhecer as condições sobre as quais as partes negociaram as cláusulas do contrato. O momento que antecede a formação de um contrato envolve esforços consideráveis das partes para suprir a natural assimetria de informação presente. Cada parte vai avaliar o nível de informação de que dispõe e que pretende ainda obter visando a celebração do contrato, pois, para obter a informação, são despendidos custos consideráveis de tempo. Adicionalmente, algumas informações são públicas e, portanto, facilmente acessíveis a custos relativamente baixos. Entretanto, outras informações são do tipo privadas e obtê-las envolve custos que as partes podem não querer incorrer. Essa fase também envolve analisar a informação obtida, processando-a para poder extrair o conteúdo necessário para reduzir ou eliminar uma dada assimetria informacional. Embora seja uma fase muito importante, as partes são orientadas segundo a sua racionalidade limitada e podem contentar-se, não com um nível ótimo de informações, mas com um nível suficiente e não necessariamente exauriente, dados os custos envolvidos.                    Obtida e processada a informação, as partes partem para a negociação que precisa ser razoável. Mas o que é razoável? Essa avaliação depende de uma série de circunstâncias próprias de cada contrato e das partes envolvidas. Em algumas oportunidades a "razoável negociação" para uma das partes envolve custos de transação relevantes e a inserção de cláusulas indesejáveis que podem inviabilizar a celebração do contrato. As partes envolvidas também podem ter posições jurídico-econômicas diferentes, de tal sorte que a "razoável negociação" não é algo uniforme, variando para cada uma das partes envolvidas em grau e extensão. Razoável não significa equilibrada. E razoável remete à razão, a racional. Portanto, é preciso avaliar a "razoável negociação" a partir da racionalidade limitada dos agentes envolvidos no contrato.  Em seguida, o artigo estabelece que essa "razoável negociação" deve ser inferida das demais disposições do negócio. O termo "inferida" remete a deduzir, o que se faz raciocinando e, portanto, novamente à luz da racionalidade limitada própria dos indivíduos quando se colocam a interpretar o contrato. Essa inferência se dá sobre as disposições do negócio, portanto, o ponto de partida é a própria literalidade das cláusulas contratadas entre as partes porque é pressuposto que elas reflitam a negociação que levou à sua formação. Entretanto, é natural que as partes levem em consideração seu auto interesse no momento de redigir as cláusulas, consolidando posições conquistadas ao longo da negociação segundo a sua capacidade de barganha. Portanto, a literalidade das cláusulas fornece pistas, mas não necessariamente a solução para resolver problemas interpretativos no contrato. Elaborar contratos com cláusulas que abranjam uma grande quantidade de futuros estados de mundo é custoso e as partes podem optar por não as incluir de imediato no contrato, optando por estabelecer mecanismos de solução para essas contingências contratuais futuras. Assim, podem ser estabelecidas cláusulas de renegociação prevendo uma forma de ajustar as condições contratuais, em que as próprias partes buscarão ajustar os seus interesses para o caso do surgimento de circunstâncias que justifiquem a modificação do que foi estabelecido inicialmente no contrato. A segunda alternativa é não estabelecer nenhuma cláusula neste sentido e confiar no paternalismo, conferindo aos tribunais a tarefa de ajustar esses interesses. Deixando, portanto, para o Estado a tarefa de interpretar o contrato para o qual ele não concorreu na fase de negociação, execução e descumprimento. O problema é que os tribunais também estão assimetricamente informados e dependem do que as partes informarão no curso do processo para tentar reduzir a sua própria assimetria.  E os tribunais podem incorrer, por esse motivo, em algumas situações desagradáveis porque as partes podem comportar-se de forma oportunista para obter vantagens extraordinárias e superiores àquelas que obteriam caso o contrato fosse cumprido tal como celebrado. É o caso das informações ocultas por uma das partes ou ambas, a assunção de riscos por uma parte fora do controle da outra parte, impossibilidade de perceber que a informação era detida pela parte que movimentou o tribunal. Parte-se para algumas exemplificações, a começar pelo contrato de sociedade. No momento da formação do contrato optam-se por cláusulas genéricas, ainda que se possa aprofundar mais um ou outro ponto, a regra é a generalidade. Isso ocorre porque, ao se formalizar o contrato social, não é possível antecipar todas as situações futuras e incertas que poderão ocorrer ao longo daquela relação que tende a ser de longo prazo. Assim, durante a relação contratual as partes, neste caso os sócios, vão estabelecendo sistemas próprios de solução das lacunas contratuais através dos quais preenchem no âmbito estritamente privado a incompletude que foi originalmente deixada por eles próprios. Podem fazê-lo informalmente mediante negociação; ou prever o modelo por deliberações em que a maioria societária tomará uma decisão que pode estar antagonizando alguns sócios no âmbito interno da sociedade.  Nos contratos de longa duração envolvendo o fornecimento de insumos essenciais para uma determinada indústria, as partes não conseguem prever todas as contingências da relação ao longo de períodos de cinco ou dez anos, motivo pelo qual costuma-se optar por contratos incompletos e aceitar a racionalidade limitada envolvida, fixando regras abertas de renegociação das bases contratuais à medida que a relação contratual for evoluindo no tempo.  Finalmente, a equação fica completa quando se observa que devem ser "consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração". Neste ponto é preciso posicionar o contrato no tempo em que foi celebrado e aferir quais informações estavam disponíveis às partes, como elas as utilizaram e se o acesso a uma determinada informação seria capaz de alterar o processo decisório que levou ao contrato. As partes negociaram sob a égide de certas informações que estavam disponíveis - as tais informações públicas e privadas - ou de informações que trocaram entre si. Desde logo é preciso salientar que não é necessário disponibilizar todas as informações para a outra parte interessada na contratação, o que é preciso averiguar é se a informação seria determinante na decisão final ou não e qual das partes detinha essa informação. Certos aspectos da negociação envolvem naturalmente informações sigilosas detidas pelas partes quando começam a discutir um determinado negócio e a contratação. É natural a existência de assimetrias informacionais nestas fases. Todavia, isso envolve um conjunto de deveres anexos de informar, de transparência e de lealdade, à luz da boa-fé enunciada pelo art. 113 em seu caput.  A título de exemplo, na transmissão de estabelecimento empresarial é corriqueira a existência de discussões a respeito de contingências e obrigações que não foram informadas ao comprador. Neste tipo de caso, os tribunais reconhecem que cabe ao transmitente informar adequadamente o comprador para sanar a assimetria informacional, porque o comprador somente pode ter acesso a tais informações se for informado pelo vendedor. O quadro, porém, pode sofrer mudanças se as informações forem públicas e de fácil acesso, pois também não se pode albergar o amadorismo empresarial, ou ainda, se tais informações foram disponibilizadas e mesmo assim o comprador resolveu assumir o risco do negócio.  Portanto, é importante levantar quais eram as informações disponíveis e de quem era o dever de informar ou de manter-se informado.  VI. Conclusões O texto não tem o objetivo de exaurir o tema, longe disso, visa unicamente apresentar umas primeiras linhas para reflexão a respeito de um tema que vem sendo desenvolvido fortemente na literatura contratual moderna, especialmente estrangeira.  A racionalidade econômica é limitada e isso impacta os contratos. Por isso é preciso compreender se a equação prevista no art. 113, parágrafo 1º, inciso V, do CC, é suficiente ou não para fazer frente a esse problema, uma vez que ele próprio enuncia a necessidade de observar a racionalidade econômica das partes.  Somando-se a isso, há a própria racionalidade limitada dos tribunais, que também precisa ser levada em consideração para a análise do problema.  Como esse texto é uma primeira reflexão, neste momento contenta-se em apresentar algumas bases para a compreensão do problema.  __________ 1 Recomendamos a leitura das seguintes obras: POSNER, Richard. Economic analysis of contract law after three decades: success or failure? The Yale Law Journal. Vol. 112, No. 4 (Jan., 2003); POSNER, Richard A. El análisis económico del derecho. 2ª ed. Tradução de Eduardo L. Suarez. México: FCE, 2007; BECKER, Gary. The economic approach to human behavior. Chicago: Chicago University Press, 1990 [1976]; COASE, Ronald. O problema do custo social, The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies: Vol. 3: No. 1, Article 9, 2008; KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012; THALER, Richard e SUNSTEIN, Cass. Nudge: o empurrão para a escolha certa. Elsevier, 2008. 2 Ver a respeito: KOROBKIN, Russell B.; ULEN, Thomas S. Law and behavioral science: removing the rationality assumption from law and economics. California Law Review, v. 88, n. 4, p. 1.060, July 2000. Disponível aqui; GREEN, Donald P.; SHAPIRO, Ian. Pathologies of rational choice theory: a critique of applications in political Science. New Haven: Yale University Press, 1961. 3 SIMON, Herbert A. A behavioral model of rational agent. Quarterly Journal of Economics, v. 69, n. 1, p. 99-188, Feb. 1955.  4 ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 4ª Edição. I. Introdução e Microeconomia. 2021. AAFDL - Imprensa FDUL. Lisboa, p. 62 5 Vide: THALER, Richard. Fairness and the assumptions of economics. Journal of Business, v. 59, n. 4, pt. 2, p. 285, 1986. 6 Vide: TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgement under uncertainty: heuristics and biases. Sciences, New Series, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, sep. 1974. 7 Vide: KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values, and frames. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 8 ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 4ª Edição. I. Introdução e Microeconomia. 2021. AAFDL - Imprensa FDUL. Lisboa, p. 63. 9 ARAÚJO, Fernando. Teoria econômica do contrato. Coimbra: Almedina, 2005.
A prestação de serviços é atualmente um dos mais importantes contratos da contemporaneidade, constituindo a figura típica e especial que mais prevalece na prática em todo o mundo. Trata-se do negócio jurídico pelo qual alguém - o prestador - compromete-se a realizar uma determinada atividade com conteúdo lícito, no interesse de outrem - o tomador -, mediante certa e determinada remuneração. Tem-se, em sua natureza jurídica, um contrato bilateral, pela presença do sinalagma obrigacional, eis que as partes são credoras e devedoras entre si. O tomador é ao mesmo tempo credor do serviço e devedor da remuneração, presentes direitos e deveres para ambas as partes, de forma proporcional. O prestador é credor da remuneração e devedor do serviço. O contrato é oneroso, pois envolve sacrifício patrimonial de ambas as partes, estando presente uma remuneração denominada preço, honorários ou salário civil. Trata-se de um contrato consensual, que tem aperfeiçoamento com a mera manifestação de vontade das partes. Constitui um contrato comutativo, pois o tomador e o prestador sabem de antemão quais são as suas prestações, qual o objeto do negócio. O contrato é informal ou não solene, não sendo exigida sequer forma escrita para sua formalização, muito menos escritura pública. Na grande maioria das vezes incide sobre a prestação de serviços a lei 8.078/90, sendo certo que o seu art. 3.º enuncia que serviço de consumo é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Essa norma específica é aplicada a contratos de prestação de serviços em que há um destinatário final, fático e econômico desses últimos, presente a assimetria entre as partes. De todo modo, tornou-se cada vez mais comum a contratação da prestação de serviços por meio de pessoas jurídicas e empresas, nas prestações de serviços entre partes iguais e simétricas, fazendo com que seja necessária a modificação do Código Civil, cuja essência das previsões normativas em vigor é tratar da prestação de serviços por pessoas naturais. Por isso é fundamental e essencial alterar e atualizar alguns dispositivos relativos a esse importante contrato em espécie, o que está sendo proposto no anteprojeto de reforma do Código Civil, apresentado por Comissão de Juristas ao Congresso Nacional em abril deste ano de 2024. Não se olvide, ademais, a influência da recente lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), que informa algumas das propostas, em prol de uma menor intervenção nos contratos civis e empresariais de prestação de serviços. Como primeira proposta a ser citada, o art. 595 da codificação privada confirma atualmente se tratar de um contrato informal e não solene, pois, nos termos da norma, quando qualquer uma das partes não souber ler nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo - a seu pedido - e subscrito por duas testemunhas. A previsão pretende dar maior segurança ao negócio celebrado na situação descrita, sendo certo que diminuiu o número de testemunhas para provar o contrato, que era de quatro, conforme o art. 1.217 do Código Civil de 1916. Não se trata, assim, de regra que diga respeito à validade do negócio, mas apenas de questão relativa à sua prova, de sua eficácia perante terceiros. De todo modo, é preciso fazer alguns ajustes no comando, deixando o seu caput mais técnico e efetivo, para mencionar que a regra se aplica apenas às pessoas naturais: "no contrato de prestação de serviço entre pessoas naturais, quando qualquer das partes não souber ler nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas, tendo que ser lido e explicado à pessoa analfabeta, antes da referida assinatura". Em prol do dever de informação inerente à boa-fé objetiva, como se nota, é pertinente incluir regra sobre o esclarecimento do conteúdo à pessoa analfabeta. Além disso, sugere-se a introdução de um parágrafo único nesse art. 595 do Código Civil, tendo em vista a proteção da pessoa com deficiência e o que está previsto no seu estatuto próprio, a lei 13.146/15, a saber: "de forma semelhante, quando qualquer das partes for pessoa com deficiência, a outra deve encetar esforços para lhe informar o conteúdo do contrato". Como se pode perceber, as proposições são necessárias para a determinação do alcance das regras ora vigentes e a sua atualização frente às normas atuais, sobretudo o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Como outra necessária e urgente mudança, sabe-se que o Código Civil de 2002 continua limitando o prazo da prestação de serviços em quatro anos (art. 598), o que é a consagração da velha regra romana de que o negócio em questão não pode ser perpétuo (nemo potest locare opus in perpetuum). Ademais, a norma tem justificativa social na proibição do trabalho escravo, cabendo a sua transcrição: "Art. 598. A prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de quatro anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida de quem o presta, ou se destine à execução de certa e determinada obra. Neste caso, decorridos quatro anos, dar-se-á por findo o contrato, ainda que não concluída a obra". O entendimento majoritário é no sentido de que, havendo fixação de prazo superior, o contrato deve ser reputado extinto em relação ao excesso, ocorrendo redução temporal, hipótese de ineficácia parcial. Diante do princípio da conservação dos contratos, esse entendimento deve ainda ser aplicado, buscando a preservação da autonomia privada. Como é notório, há tempos existe entendimento segundo o qual a norma não se aplica às pessoas jurídicas, eis que a hipótese foge dos fins sociais que justificaram a proibição. A esse propósito, vejamos dois acórdãos do Tribunal Paulista, para ilustrar: "APELAÇÃO. Ação Ordinária para Resolução Contratual. Parcial procedência. Recurso da autora. Art. 598 do Código Civil. Inaplicabilidade à prestação de serviços de pessoas jurídicas. Renovação automática. Possibilidade. Ferramenta que possibilita maior previsibilidade das contratações. Multa. Abusividade não constatada. Contratante que é empresa de grande porte, apta a entender os termos contratuais e a ponderar os fatores preço-prazo-multa, decidindo contratar quando verifica que tais lhe são favoráveis. Sentença mantida. Recurso não provido" (TJ/SP, Apelação n. 1013340-29.2016.8.26.0100, Acórdão n. 10614216, São Paulo, Trigésima Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Spencer Almeida Ferreira, julgado em 20/07/2017, DJESP 25/07/2017, p. 1666). "Prestação de serviços. Cominatória. Indenizatória. Cerceamento de defesa. Ausência. Contrato de prestação de serviços. Desinteresse na renovação. Prazo contratual desobedecido. Artigo 598, do Código Civil. Inaplicabilidade a contratantes pessoas jurídicas. Vigência e validade. Fornecimento de energia elétrica. Obrigação contratual. Multa devida. Procedência mantida. Assistência Judiciária Gratuita. Pessoa jurídica. Filantropia. Assistência social. Benefício concedido. Preliminar rejeitada. Recurso parcialmente provido" (TJSP, Apelação n. 9081895-20.2006.8.26.0000, Acórdão n. 5138991, São José dos Campos, Vigésima Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ferraz Felisardo, julgado em 18/05/2011, DJESP 07/06/2011). Esse entendimento, porém, encontra barreiras na afirmação de ser a regra do art. 598 do Código Civil uma norma cogente ou de ordem pública, não podendo ser contrariado por convenção entre as partes, não importando quem elas sejam. Esse sério entrave já justifica a alteração urgente da norma, até porque as contratações geralmente são feitas com prazo de cinco anos, no mínimo, sobretudo nas relações entre pessoas jurídicas e entre empresas, em que a alocação dos riscos é um dos seus fatores essenciais. Reforçando essa última afirmação, na I Jornada de Direito Comercial, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal em outubro de 2012, aprovou-se enunciado doutrinário segundo o qual "nos contratos de prestação de serviços nos quais as partes contratantes forem empresários, e a função econômica do contrato estiver relacionada à exploração de atividade empresarial, as partes poderão pactuar prazo superior aos citados quatro anos" (Enunciado 32). Seguindo essa linha, em prol de maior segurança jurídica e estabilidade para os contratos civis empresariais, a Comissão de Juristas sugere que o art. 598 apenas mencione os contratos em que o prestador for pessoa natural, aumentando-se, ainda, por regras de tráfego hoje consolidadas o prazo máximo para cinco anos. Assim, o caput do comando passará a enunciar o seguinte: "quando o prestador for pessoa natural, a prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de cinco anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida de quem o presta, ou se destine à execução de certa e determinada obra; dar-se-á por ineficaz o contrato, decorridos cinco anos, ainda que não concluída a obra". Seguem-se, ainda, as premissas da lei da liberdade econômica, de valorização da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda) e de uma menor intervenção estatal nos negócios jurídicos privados em geral. Além disso, insere-se no art. 598 do Código Civil um parágrafo único, prevendo que, se os serviços prestados não foram suficientes para pagar a dívida ou para que a obra seja concluída, o tomador de serviços terá direito a cobrar o saldo da dívida ou a exigir perdas e danos pela inexecução da obra. O objetivo, assim, é deixar evidentes regras relativas ao inadimplemento do que foi contratado entre as partes. Outra norma que precisa de ajustes urgentes é o art. 599 da codificação privada, um dos principais comandos relativos à extinção do contrato de prestação de serviço. Por esse preceito, em sua redação atual, sendo o referido negócio celebrado sem prazo, não podendo o elemento temporal ser retirado da sua natureza ou do costume do lugar, "poderá qualquer uma das partes, a seu arbítrio e mediante prévio aviso, resolver o contrato". Como se pode notar, há claro equívoco na norma ao mencionar a "resolução" - extinção por descumprimento -, ao invés da "resilição" - extinção por exercício de um direito potestativo, no caso por denúncia unilateral de uma das partes. De todo modo, na interpretação correta da norma, não havendo prazo especificado, a prestação de serviço deve ser considerada como celebrada por prazo indeterminado. Dito de outra forma, não havendo prazo previsto pelas partes, reputa-se o negócio como de prazo indeterminado, cabendo o citado direito à extinção por resilição unilateral ou denúncia, como assegura o caput do art. 473 da lei geral privada. Em complemento, o parágrafo único do art. 599 da codificação material, na sua redação atual, consagra prazos específicos para a denúncia do contrato e sua posterior extinção, ou seja, prazos para o aviso prévio, a saber: Com antecedência de oito dias, se a retribuição se houver fixado pelo tempo de um mês, ou mais; Com antecipação de quatro dias, se a retribuição se tiver ajustado por semana, ou quinzena; De véspera, quando se tenha contratado por menos de sete dias. Além do grave problema técnico no caput da norma, percebe-se que os incisos do seu parágrafo único têm redação confusa, distante dos comuns prazos que hoje são aplicados na prática contratual, de quinze ou trinta dias. Ademais, é evidente que a norma foi criada para a tutela dos serviços prestados por pessoas naturais, sendo urgente a sua reforma e atualização diante da realidade contemporânea de contratos de prestação de serviços firmados entre pessoas jurídicas e empresas. Por todos esses problemas, a Comissão de Juristas sugere no anteprojeto que o comando passe a mencionar a resilição em seu caput, com a possibilidade de notificação judicial ou extrajudicial da parte contrária: "Art. 599. Não havendo prazo estipulado para o contrato nem se podendo inferi-lo da sua natureza ou dos usos e costumes do lugar, qualquer das partes, a seu arbítrio, mediante prévio aviso, pode resilir unilateralmente o contrato, mediante notificação judicial ou extrajudicial". Ademais, o § 1º do preceito passará a mencionar um prazo único de quinze dias para o aviso prévio, com a possibilidade de se convencionar o contrário: "nos casos deste artigo, não havendo prazo fixado para o contrato, dar-se-á o aviso para a resilição unilateral com antecedência de quinze dias". Além disso, inclui-se, em boa hora, um § 2º no art. 599 do CC/02, para que seja possível em contratos amplamente negociados entre as partes (paritários) a cláusula de resilição unilateral, mesmo quando o contrato seja fixado sem tempo determinado. Como é notório, há grande divergência doutrinária a respeito da validade dessa previsão, pois o art. 473 menciona a resilição unilateral apenas nos casos em que a lei expressa ou implicitamente a admita, sem qualquer previsão a respeito da viabilidade jurídica de a autonomia privada criar o direito potestativo à extinção. Seguindo, há necessidade também urgente de reparar os arts. 602 e 603 do Código Civil, que trazem regras específicas a respeito da rescisão do contrato de prestação de serviço, mencionando a "justa causa", em previsões mais uma vez criadas para a proteção do prestador de serviços pessoa natural, muito distantes da realidade dos contratos entre pessoas jurídicas e entre empresas. Nos termos do primeiro comando, o prestador de serviço contratado por tempo certo ou por obra determinada não pode se ausentar ou se despedir, sem justa causa, antes de preenchido o tempo, ou concluída a obra. Se o prestador se despedir sem justa causa, terá direito à retribuição vencida, mas deverá pagar perdas e danos ao tomador de serviços (art. 602 do CC/02). A mesma premissa é aplicável se o prestador for despedido por justa causa. Por outra via, se o prestador de serviço for despedido sem justa causa, a outra parte será obrigada a pagar-lhe por inteiro a retribuição vencida, e por metade a que lhe tocaria de então até o termo legal do contrato (art. 603 do CC/2002). O valor correspondente à metade da prestação de serviços serve como antecipação das perdas e danos materiais, tendo natureza de penalidade. No tocante aos danos morais ou extrapatrimoniais, lembre-se que podem ser pleiteados independentemente do que consta do dispositivo, eis que os danos imateriais não admitem qualquer tipo de tarifação ou tabelamento. Mais uma vez, na I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal e STJ, realizada em 2012, aprovou-se correta proposta doutrinária, segundo a qual, nos contratos de prestação de serviços entre empresários, é lícito às partes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato, multas superiores àquela prevista no art. 603 do Código Civil (Enunciado 33). De toda sorte, vale lembrar que o limite dessa multa é o valor da obrigação principal (art. 412 do CC); e, se ela for exagerada, caberá a sua redução equitativa consagrada pelo art. 413 da própria codificação privada. Portanto, na linha do enunciado doutrinário aprovado, onde se lê nos dispositivos em vigor a expressão "com justa causa", pode-se entender "denúncia motivada". Por outra via, o termo "sem justa causa" equivale a "denúncia imotivada", o que pode ocasionar a resolução do contrato por inadimplemento ou descumprimento do contrato. Essas já são interpretações dos dois comandos verificadas nas páginas da melhor doutrina. Por todo o exposto, urge alterar os comandos, como está sendo proposto no anteprojeto de reforma do Código Civil. Assim, o art. 602 da codificação privada passará a prever o seguinte: "o prestador de serviço contratado por tempo certo ou para obra determinada, não se pode ausentar ou denunciar imotivadamente o contrato, antes de preenchido o tempo ou concluída a obra". E, nos termos do seu parágrafo único ora projetado, com uma melhor organização ao que hoje está previsto, de forma até confusa: "vigente o prazo do contrato, se o prestador denunciar imotivamente o contrato, terá direito à retribuição vencida, mas responderá por perdas e danos, ocorrendo o mesmo se denunciado motivadamente, pela outra parte". Também pelo que está sendo sugerido pela Comissão de Juristas, o art. 603 do Código Civil passará a enunciar que, "se denunciado imotivadamente o contrato pelo tomador, este será obrigado a pagar ao prestador do serviço por inteiro a retribuição vencida, e por metade a que lhe tocaria ao termo legal do contrato". E mais, "em se tratando de contrato de prestação de serviços, paritário e simétrico, é lícito às partes pactuarem, para a hipótese de denúncia imotivada do contrato, penalidades superiores àquelas previstas no caput" (parágrafo único). Como se pode notar, as propostas em nada inovam no sistema jurídico quanto à correta interpretação das normas civis, apenas atualizando os comandos para as necessidades do mundo contemporâneo, na linha da melhor doutrina. O Código Civil deve tratar em sentido genérico as citadas categorias jurídicas, a englobar também as contratações por pessoas jurídicas ou por empresas. Exatamente nessa mesma linha, seguindo proposições da professora Claudia Lima Marques, almeja-se inserir no Código Civil um tratamento típico sobre a prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, o que é mais do que necessário no mundo contemporâneo (arts. 609-A a 609-F). Na definição proposta pela jurista, e aceita amplamente na nossa Comissão, nos termos do primeiro comando a ser incluído na Norma Geral Privada, "a prestação digital de serviço ou de acesso a seus conteúdos digitais é composta por um conjunto de prestações de fazer, economicamente relevantes, que permitam ao usuário criar, tratar, armazenar ou ter acesso a dados em formato digital, assim como partilhar, efetivar mudanças ou qualquer outra interação com dados em formato digital e no ambiente virtual". Tratarei especificamente dessa figura em outro texto, a ser oportunamente publicado neste mesmo canal, em continuidade ao presente.
Em nossa coluna de fevereiro, iniciamos o raciocínio sobre a reforma do CC em matéria de vício redibitório (arts. 441 a 446 do CC), tema que trabalhei em minha dissertação de mestrado nos anos de 1997-2002. Temos, agora, o anteprojeto entregue ao Senado Federal. A entrega se deu em 17/3/24. Cabe, então, concluir nossas reflexões com o resultado final, ou seja, qual foi a proposta que constou do anteprojeto. a) Art. 441 A seção V passa a se chamar "Dos vícios ocultos". Melhor que vícios redibitórios (apesar da tradição), porque: (i) uniformiza a linguagem com a adotada pelo CDC; e (ii) redibição - desfazimento do contrato - é apenas um efeito do vício, já que se permite, também, o abatimento (redução do preço). Trocar "enjeitar" por "rejeitar" é atualizar a linguagem apenas. Os verbos são sinônimos. Dá mais clareza "rejeitar". Há um novo parágrafo acrescido ao art. 441 que assim dispõe: "§ 2º Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser ao menos existentes ao tempo da aquisição da coisa, não sendo necessário que estejam manifestados nessa ocasião." Leia-se: Não podendo ter se manifestado antes da entrega. Se já se manifestou antes da entrega, o visto passa a ser aparente e logo cabe ao adquirente rejeitar de imediato a coisa. Se a aceita, aceita o vício e dele não pode reclamar. b) Art. 441 - A Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o adquirente sabia ou não podia ignorar a sua existência, considerados as circunstâncias do negócio e os usos e os costumes do lugar da sua celebração. Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios. O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo, o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).  O termo "adquirente" substitui "comprador", que constava da proposta original da subcomissão.  Novamente, o parágrafo mostra que o standard do "homem médio" não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.  Não se trata mais de um adquirente "em abstrato", mas sim em concreto.  c) Art. 442 Art. 442. Caracterizado o vício oculto, o adquirente pode, à sua escolha:  I - rejeitar a coisa, resolvendo o contrato, sem prejuízo das perdas e danos;  II - reclamar o abatimento no preço ou; III - salvo pacto em contrário, exigir seja sanado o vício da coisa, mediante o custeio de reparos, salvo se o alienante dispuser- se a realizá-los diretamente ou por terceiro. Parágrafo único. Quando os reparos ficarem a cargo do alienante e não forem realizados no prazo de até trinta dias ou prazo superior que tenha sido pactuado pelas partes, o adquirente poderá optar pela resolução do contrato ou pelo abatimento no preço. Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), o anteprojeto dispõe que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na parte geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).  Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.  Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado art. 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.  O adquirente, que pela redação atual do CC tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.  É o inciso I que mudou radicalmente se compararmos o relatório da subcomissão e o relatório final: Temos não mais "redibir", mas sim resolver. Correto e melhor. Conforme analisei quando fiz minha dissertação de mestrado em 20011: Seguindo o raciocínio de Orlando Gomes, a redibição dos contratos comutativos em virtude de vício oculto seria uma modalidade especial de resolução do contrato, pois tem como causa a inexecução parcial em forma específica, ou seja, a entrega de coisa que não tem as qualidades comuns às demais de sua espécie. Faltam à coisa qualidades próprias devido à existência do vício.2 Temos ainda menção às perdas e danos. As perdas e danos exigem má-fé do alienante (art. 443 do CC3). Em leitura sistemática, o art. 442 não aboliu o requisito do art. 443. Um artigo deve ser lido pelo outro. Se o alienante não conhecia o vício (boa-fé subjetiva), não cabem perdas e danos. Por fim, o anteprojeto não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o art. 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória). d) Art. 445. Prazos. Art. 445. Os prazos de garantia legal contra vícios ocultos, contados da data da entrega efetiva do bem, são de:  I - sessenta dias, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor inferior a dez salários mínimos; II - um ano, se a coisa for móvel e tiver sido adquirida por valor igual ou superior a dez salários mínimos;  III - dois anos, se a coisa for imóvel.  § 1º Se o adquirente já estava na posse da coisa, os prazos de garantia contam-se da data do contrato e serão reduzidos à metade.  § 2º Transcorridos os prazos previstos neste artigo, cessa a garantia legal por vícios ocultos. § 3º O adquirente tem o prazo decadencial de sessenta dias, tratando-se de bem móvel, e de um ano, tratando-se de bem imóvel, para o exercício dos direitos previstos no art. 442, contado da data final do prazo de garantia, desde que o vício tenha aparecido antes de findo esse prazo.  O anteprojeto conjuga duas qualidades ao definir o prazo para se aparecer, manifestar o vício oculto (direitos previstos no art. 442 do CC): Mobilidade e valor da coisa. Se de maior valor, maior o prazo. Se imóvel (e aí não importa o valor), maior ainda a o prazo. Seguindo regra atual do Código Civil, em ocorrendo traditio brevi manu4 (aquele que possui em nome alheio passa a possuir em nome próprio - locador que compra o carro locado, comodatário que compra a casa emprestada), o prazo para aparecer, se manifestar se reduz pela metade (I - 30 dias, II - 180 dias e III - 1 ano). Claro que o início do prazo para o vício aparecer, se manifestar não pode mais ser a entrega da coisa, pois o adquirente já tem a posse direta. Assim, o prazo passa a ser o da celebração do contrato. Se o vício aparece após tais prazos, nenhum direito tem o adquirente, salvo existência de garantia contratual. A pergunta que surge é: se o vício aparece nos prazos previstos nos incisos I, II ou III do art. 445 (eventualmente reduzidos pela metade por força do §1º), qual o prazo teria o adquirente para exercer os direitos que lhe confere o art. 442? O prazo não se inicia com o surgimento do vício, mas com o fim da garantia legal. Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 60 dias da entrega da coisa ao adquirente. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois;  Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 1 ano da entrega da coisa ao adquirente; Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 2 anos da entrega da coisa ao adquirente; E se o adquirente já estiver na posse do bem? É o caso do locatário que compra o bem locado. Para bens móveis de valor inferior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 30 dias da celebração do contrato. Não importa se o vício surgiu no dia seguinte à entrega ou 30 dias depois.  Para bens móveis de valor superior a 10 salários mínimos, o prazo é de 60 dias que se inicia após 180 dias da celebração do contrato. Para bens imóveis, o prazo é de 1 ano que se inicia após 1 ano da celebração do contrato. Estes comentários vão ao encontro da justificativa apresentada pela Subcomissão de Contratos. Vejamos: Os prazos decadenciais para o exercício dos direitos previstos no art. 442, quanto aos vícios manifestados durante o prazo de garantia, somente são contados a partir do término do prazo de garantia. Ou seja: Os direitos podem ser exercidos durante todo o prazo de garantia, e em até 60 dias, no caso de bens móveis, e 1 ano, no caso de imóveis, após o término daquele prazo. A ideia é fixar o marco legal na data da ciência seria problemático tanto por aumentar a litigiosidade quanto por prejudicar o adquirente que - por vezes - demora a ter certeza de que a inconsistência do bem adquirido é realmente um vício, e não uma mero transtorno tolerável. e) Art. 446. Garantia contratual. Art. 446. A garantia contratual é complementar à garantia legal e será conferida mediante termo escrito.  § 1º Esse termo deve esclarecer, de maneira adequada e clara, em que consiste a garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do adquirente. § 2º Não correrão os prazos de garantia legal por vícios ocultos na constância de cláusula de garantia, mas o adquirente deve denunciar o vício ao alienante no prazo de trinta dias, sob pena de perda da garantia contratual.  § 3º Cessada a garantia contratual, nos termos do parágrafo anterior, inicia-se o prazo de decadência da garantia legal, nos termos do art. 445. Vejamos a redação atual do art. 446 e aquela do anteprojeto. Utilizando-se a expressão "não correrão os prazos do artigo antecedente", o atual art. 446 prevê o fenômeno do impedimento da decadência5, pois o prazo sequer se inicia. Não se trata de suspensão nem de interrupção do prazo. Nas hipóteses de suspensão, o prazo que já se iniciou para de fluir por determinado período de tempo e, depois, volta a fluir do dia em que parou. No caso de interrupção, o prazo se reinicia desconsiderando-se o prazo fluído anteriormente ao evento interruptivo.6 Com o CC de 2002, a existência de uma garantia contratual significa que os prazos decadenciais não se iniciam. Ora, como causa impeditiva da decadência que o é, o adquirente terá grande vantagem, pois poderá contar com prazos certamente superiores àqueles previstos no art. 445 para exercer seu direito. Apenas depois de esgotada a garantia teria início o prazo para redibição, abatimento etc. Qual a questão que surge atualmente e o anteprojeto resolve? Embora haja previsão de uma causa impeditiva de fluência do prazo decadencial, há também um dever imposto ao adquirente: informar ao alienante a existência do defeito em até trinta dias após seu descobrimento. O legislador cria uma decadência intercorrente, pois dá ao adquirente prazo exíguo de 30 dias para que informe ao alienante, sob pena de perder a garantia contratual ou também a garantia legal? Defendi em minha dissertação de mestrado que "caso o adquirente não cumpra o dever legal de informação no prazo de 30 dias, sofrerá a sanção de decair em seu direito".7 Haveria perda de ambas as garantias. O anteprojeto esclarece que não. A perda é somente da garantia contratual e, portanto, se não denunciado o vício em 30 dias, começam de imediato a correr os prazos da garantia legal (art. 445). Com isso, acabamos a análise de todas as regras relativas aos vícios ocultos (arts. 441 a 446) contidas no anteprojeto de reforma do CC. _________ 1 À época, concluir que melhor seria usar o termo "rescindir". Claro equívoco da juventude. "Resolver" está correto. 2 Orlando GOMES, idem, p. 172. 3 Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato. 4 Constituto possessório é o oposto: alguém que possui em nome próprio passa a possuir em nome alheio (proprietário vende a casa e celebra com comprador contrato de locação). 5 Permitida excepcionalmente pela regra do artigo 207 do Código Civil. 6 A questão é desenvolvida com maior profundidade quando da análise do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor. 7 O dever de denúncia dos vícios previstos neste artigo está restrito exclusivamente às hipóteses em que há uma garantia estabelecida. Contrariamente, o Código Civil português (artigo 916) e o italiano (artigo 1.495) exigem a denúncia em toda e qualquer hipótese de vício oculto.
Em que pese o conteúdo principal de um contrato seja a autodeterminação de vontades, atualmente deve-se reconhecer que este instrumento é integrado por outras fontes advindas da política interventiva do Estado. Por se tratar de um dos maiores motores propulsores do desenvolvimento econômico e social, as normas voltadas ao contrato reconhecem que ele instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, e, por isso, devem ajustar-se a parâmetros que consideram a dimensão coletiva dos conflitos sociais que a eles se incorporam.1 Os contratos, ainda que gratuitos ou benéficos, possuem como objeto coisa que representem valor, e, por isso, estão intrinsecamente relacionados com a economia. O valor daquilo que é o objeto contratual de uma compra e venda, troca ou prestação de serviço, é representado por uma moeda, que é, ao mesmo tempo, tanto uma medida de valor como um meio de pagamento. Ocorre que a moeda como medida de valor está sujeita a alteração decorrente de fatos alheios à vontade dos contraentes, como ocorre com a inflação, conceituada pelo Banco Central do Brasil de forma bastante simples como o aumento dos preços de bens e serviços no tempo. Ainda que muito seja relevante a discussão dos motivos causadores da inflação, este estudo limitar-se-á a investigação de seus efeitos jurídicos, afinal, em razão da inflação aquela original bilateralidade contratual transforma-se numa relação triangular cujos partícipes passam a ser credor, devedor e o Estado, este último na qualidade de criador do risco decorrente da depreciação monetária.2 São variados os índices que sirvem para medir a perda do poder de compra da moeda brasileira3, no entanto, o Banco Central do Brasil adotou como principal medida da inflação o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O IPCA foi criado pelo IBGE e é calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística, indicando a variação de preços mensalmente de treze áreas urbanas do país4, obtendo, aproximadamente, 430 mil preços em 30 mil diferentes locais.5 A redação original do Código Civil de 2002 considerou em seu art. 389 que o inadimplemento de determinada obrigação culminava na imposição do devedor pagar aquele valor original acrescido perdas e danos, juros e correção monetária "segundos índices oficiais regularmente estabelecidos". Ainda que tivesse em conta o fato da recomposição do valor da moeda, a redação original trazia insegurança jurídica porque diferentes interpretações e diversos índices poderiam ser utilizados para calcular uma mesma obrigação inadimplida ou protraída no tempo. Não fosse suficiente, sequer o montante de juros se conseguia extrair de forma indubitável da original redação do Código Civil de 2002, mesmo que se levasse em conta o complemento descrito no art. 406 do mesmo dispositivo legal. Como se pode observar, ainda que exista previsão legal em relação a necessidade de correção monetária e juros moratórios em decorrência de inadimplemento contratual, há insegurança jurídica acerca do índice que deverá ou poderá ser utilizado para valorar a depreciação da moeda e o montante mínimo e máximo para remunerá-la com juros no curso do tempo. O tema é parcialmente objeto do Recurso Especial n. 1.795.982/SP, que em 06/03/2024 teve proclamação de julgamento6 no sentido de, por 6 votos a 5, dar-se provimento ao recurso especial para determinar que nas dívidas civis sejam os juros de mora e correção monetária calculados pela taxa SELIC. É bem verdade que o Recurso Especial trata apenas de casos judicializados e sem previsão contratual acerca do índice de correção monetária utilizado ou juros pactuados. No entanto, o apertado placar na Corte da Cidadania deixa clara a divisão jurisprudencial na interpretação daquilo que originalmente disposto no Código Civil de 2002. Talvez não por outra razão o relatório final da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil já prevê e propõe a alteração de artigos na lei a fim de trazer maior segurança jurídica e mais claros limites aos contratantes em relação aos juros que podem pactuar. De toda sorte, enquanto a substancial e ampla alteração do Código Civil não é finalizada, cuidou o Poder Legislativo, apressado ou não pelo julgamento daquele Recurso Especial acima mencionado, de trazer alterações à legislação civil voltada ao cálculo e limites de pactos contratuais no que se refere à correção monetária e à incidência de juros moratórios e remuneratórios. Dentre as alterações trazidas e que passarão a ser plenamente válidas a partir de 1º setembro de 2024 está utilização do IPCA como índice subsidiário de atualização monetária quando não previsto outro em contrato ou lei específica7 e a definição da taxa legal, que passa a ser definida como SELIC menos o IPCA e que será utilizada subsidiariamente quando não houver pacto em sentido diverso ou não determinados por lei8. Desta forma, bem ou mal vê-se que a Lei 14.905/2024, ao mesmo tempo que fortalece a autonomia de vontade ao expressamente reconhecer a possibilidade de pactuação de índice e taxa de juros pelas partes, cuidou de trazer critérios objetivos e balizadores para o cálculo da desvalorização da moeda e índice de juros moratórios e remuneratórios para os casos em que silente as partes quanto à forma de atualizar-se o valor da obrigação avençada. Em linhas gerais, o que se percebe é que com o advento das alterações trazidas pela Lei 14.905/24, quando não pactuados de forma diversa, juros e correção monetária, juntos, serão calculados pela SELIC. Isto é, como a correção monetária será o IPCA e os juros a SELIC diminuída do IPCA, ambos, somados, resumem-se à SELIC integral. Também dispõe a nova redação do Código Civil naquilo que aqui se propõe a estudar que caberá ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a metodologia para o cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação, e, ainda, que caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para o período de referência. Necessário destacar que a Lei 14.905/24 trouxe alterações na Lei da Usura (DL 22.626/1933) que é aquela que limita a convenção de taxa de juros ao dobro da taxa legal, contudo, este ponto e aquele que se refere a aplicação da Lei 14.905/24 em relação a contratos firmados, demandas formadas e decisões transitados em julgado anteriormente à vigência da lei, são digressões que remanescem para um posterior estudo acerca do tema.  Desta forma, mesmo que a alteração legislativa pudesse ser mais simples o operacional na forma de correção e remuneração de valores, verdade que trouxe mais segurança jurídica para as relações contratuais, e, com isso, certamente ganha a cidadão. Para concluir, serve este estudo para alertar os leitores que a partir de setembro de 2024, para que não fiquem sujeitos a uma taxa de juros e de correção monetária limitada à SELIC, necessário será que pactuem de forma expressa o índice e a a taxa de juros compensatórios e moratórios que julgue aquela mais adequada à contratação realizada a fim de não causar onerosidade excessiva para credor ou devedor. __________ 1 GOMES, Orlando. Contratos. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 2 WALD, Arnoldo. A correção monetária no direito privado. In Doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (orgs). Volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 3 Como o IGP-M, INPC, Taxa SELIC, dentre outros. 4 Belém(PA), Belo Horizonte(MG), Curitiba(PR), Distrito Federal(DF), Fortaleza(CE), Goiânia(GO), Porto Alegre(RS), Recife(PE), Rio de Janeiro(RJ), São Paulo(SP) e Vitória(ES). 5 IBGE. Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Disponível aqui. Acesso em 04 de agosto de 2024. 6 Sem trânsito em julgado. 7 Nova redação do art. 389, parágrafo único. 8 Nova redação do art. 406, caput e 406, parágrafo primeiro.
A ampliação da liberdade de pactuar nas relações familiares conjugais e convivenciais é uma demanda crescente no cenário jurídico e social, e é impulsionada pela conquista jurídica da liberdade de escolha do modelo familiar. É importante, inicialmente, romper a barreira do discurso contrário à contratualização das relações familiares conjugais e convivenciais, como se a realização de um pacto ou ajuste a respeito dos efeitos patrimoniais do relacionamento fosse um indicativo de ausência de afeto. Todos os relacionamentos conjugais ou convivenciais geram efeitos patrimoniais contratados. Ao celebrar um casamento ou iniciar uma união estável, os cônjuges ou conviventes estão contratando o regime de bens de comunhão parcial de bens, que está previsto de maneira supletiva nos artigos 1.640 e 1.725 do Código Civil, ainda que não elaborem um pacto ou contrato escrito ou específico. Por esta razão, inclusive, a figura do contrato de namoro vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência, a fim de evitar o reconhecimento de união estável contrário a vontade das partes, e presumir a existência de uma contratação de regime de bens1. O que estamos a defender, acima de tudo, é a ampliação da liberdade de pactuar um modelo patrimonial adequado à cada relacionamento. A elaboração de pactos conjugais e convivenciais tornam possível que cada casal formate os efeitos patrimoniais do seu relacionamento de acordo com as individualidades existentes em sua relação. Cada relação conjugal ou convivencial é única, e a escolha do modelo patrimonial mais adequado passa pela análise de diversos fatores pessoais, familiares e patrimoniais únicos.  A escolha de um regime de separação total de bens, por exemplo, tem diferentes consequências pessoais e patrimoniais a depender da situação pessoal, patrimonial e familiar de cada um dos cônjuges. O casamento entre duas pessoas jovens, sem filhos, e que estão iniciando a vida profissional e aquisição de patrimônio, bem como planejando ter filhos durante a relação, por exemplo, merece um olhar mais cuidadoso sobre a distribuição e cuidados financeiros, já que nesta fase da vida é mais comum que as mulheres abdiquem de crescimento profissional e financeiro em razão do cuidados dos filhos que serão gerados na constância da união, de forma que a escolha de um regime simples de separação total de bens, por exemplo, poderá trazer desequilíbrio econômico e insegurança na relação.  Por outro lado, o casamento entre  pessoas com filhos adultos, e que já tem patrimônio e vida profissional definido, pode ter um bom resultado com o regime de separação total de bens, garantindo a independência patrimonial e financeira de cada um. E seguindo nos exemplos, o casamento entre duas pessoas em situações pessoais e patrimoniais diferentes também precisa de um olhar único. Pode existir uma grande diferença econômica e familiar entre os cônjuges na hipótese em que um deles seja detentor de patrimônio e já tenha filhos, e o outro cônjuge não tenha patrimônio e filhos.   É certo que não conseguimos esgotar os exemplos, já que as dinâmicas familiares são muito mais complexas e individualizadas. E justamente por isso que não podemos supor que todas as relações familiares devem se submeter às mesmas regras tipificadas de regime de bens.  A individualização do modelo patrimonial é muito mais do que escolher um dos regimes de bens previsto no código, como a comunhão parcial, a comunhão universal ou a separação total de bens. Pensar desta forma é limitar por demais as possibilidades jurídicas de enriquecer os arranjos individuais de cada casal. As regras gerais são importantes em todas as relações contratuais pois definem os contornos jurídicos dos institutos, simplificando a sua aplicabilidade, em especial para aqueles que não desejam elaborar um contrato mais complexo. A autonomia das partes na realização de pactos e contratos conjugais e convivenciais, no entanto, pode ir além da utilização dos modelos previstos em lei. O contrato de compra e venda é um bom exemplo da importância de regras gerais, sem excluir as individualizações em cada situação concreta. A grande maioria dos contratos de compra e venda realizados diariamente é feito por meio de contratos simples, e muitas vezes até verbais. Isso, no entanto, não limita a realização de contratos com cláusulas específicas, individualizando cada situação, respeitando por evidente as normas de ordem pública. O anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil2 caminha exatamente nesta direção, mantendo as regras de regime de bens de maneira supletiva, permitindo aqueles que iniciarão um casamento ou união estável apenas aderirem aos regimes de bens existentes. Inclusive, o texto aprovado pela comissão de juristas aprimora os regimes de bens existentes a fim de facilitar a sua compreensão e aplicabilidade. No regime de comunhão parcial, por exemplo, o rol de comunicabilidades é atualizado (art. 1.659 e 1.660), inserindo expressamente temas que há anos são objeto de embates doutrinários e jurisprudenciais, como a comunicabilidade do FGTS, de participação em previdência privada, bem como a controvertida questão da participação do cônjuge nas quotas sociais do outro,  na valorização destas quotas e nos lucros gerados. Também o regime de separação total de bens tem importante modificação, inserindo dois parágrafos no art. 1.688 prevendo a possibilidade de partilha de bens adquiridos com contribuição econômica direta de ambos bem como prevendo compensação pelo trabalho na residência da família e cuidado da prole. E ainda, o texto do anteprojeto tem disposições específicas revogando as normas que  o regime de participação final nos aquestos e o da separação obrigatória de bens. E mais do que isso, o texto do anteprojeto consolida e amplia de maneira expressa a liberdade de pactuar nas relações conjugais e convivenciais para aqueles que assim o quiserem. Muito além de optar por um dos regimes previstos no Código Civil, o anteprojeto traz, no art. 1.640, § 2º, a previsão de possibilidade expressa das partes em pactuarem um regime misto ou atípico, tendo por limite as normas cogentes ou de ordem pública. Assim poderiam escolher, por exemplo, a separação total para participações societárias, e adotar a comunhão parcial para bens imóveis adquiridos na constância da união. Considerando que as relações conjugais e convivências podem se modificar com o tempo, o art. 1.639, § 2º do anteprojeto prevê a facilitação da mudança de regime de bens, possibilitando que o seja de maneira extrajudicial.  Desta forma, um casal que, no início do casamento ou da união entendeu que determinado regime era mais adequado, pode com mais facilidade modificar esse regime de bens na constância do casamento, tornando mais dinâmica a relação patrimonial. Como novidade, foi inserida pelo art. 1.653-B do anteprojeto a previsão expressa de possibilidade de cláusula prevendo a modificação automática do regime de bens, conhecida como sunset clause.  E a dinamicidade do momento de elaboração dos pactos conjugais ou convivenciais segue reforçada pela previsão art. 1.656-A., que prevê expressamente que os pactos poderão ser firmados antes ou depois de celebrado o matrimônio ou constituída união estável. Esta liberdade de modificar ou pactuar os regimes de bens na constância do casamento ou da união estável é limitada pela irretroatividade desta mudança, o que deve ser observado pelos contratantes. Não pretendemos com este texto esgotar as situações que consolidam a ampliação da liberdade de pactuar, uma vez que foram diversos ponto no anteprojeto que a reforçam, ultrapassando os limites do direito familiar. A título de exemplo, a previsão de inserir a liberdade de contratar sobre a herança no pactos conjugais ou convivenciais, com a inserção de parágrafos no art. 426 do Código Civil, que expressamente trata sobre a renuncia antecipada da condição de herdeiro; também há no anteprojeto previsão de ajustes no direito empresarial, por exemplo nos artigos 1.027 e 1.028, na questões relativas a participação do cônjuge ou herdeiro do sócio em relação à sociedade , entre outras previsões de modificações no Código Civil que direta ou indiretamente ampliam a liberdade do casal. A ampliação da liberdade de ajustes patrimoniais entre os cônjuges e conviventes é uma conquista, mas que não deve vir desacompanhada do olhar criterioso quando presente desequilíbrio econômico, social ou pessoal entre os cônjuges. A liberdade contratual somente se faz presente, efetivamente, em um cenário de igualdade entre as partes. Devemos atentar que muitas vezes, em relações conjugais e convivenciais, há uma vulnerabilidade social e econômica da mulher contratante, o que não se ignorar ao se interpretar o pacto na situação específica quando presente a desigualdade. A ampliação da liberdade de pactuar também aumenta a responsabilidade das partes nas suas escolhas ao explicitar antecipadamente as decisões  daquele casal para reger a sua vida patrimonial, e portanto amplia a necessidade de comunicação, evidenciando os pilares que fundamentam o seu relacionamento. Desta forma, é o possível a redução de conflitos pela maior previsibilidade dos efeitos patrimoniais.  _______________ 1 Sobre este assunto, recomendamos a leitura da coluna do mês anterior, escrita pela prof. Marilia Xavier  https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/408949/contrato-de-namoro-tem-validade-confirmada-pelo-tj-pr 2 Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da  ou https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630
A figura jurídica do contrato de namoro, recentemente, foi examinada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A decisão, de maneira unânime, afastou a incidência de união estável e confirmou a validade do contrato de namoro que havia sido firmado entre as partes. O acórdão em questão foi proferido nos autos de apelação cível n. 0002492-04.2019.8.16.0187, pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sob a relatoria do Des. Sigurd Roberto Bengtsson. Este texto não fará qualquer menção às iniciais das partes e demais detalhes patrimoniais do deslinde da causa com o objetivo de colaborar com a preservação do segredo de justiça.1 O referido acórdão negou o pedido de reconhecimento de união estável do relacionamento entre as partes mantido de julho de 2016 a junho de 2018. O principal argumento que permitiu ao Tribunal afastar as provas testemunhais produzidas nos autos e outros documentos juntados pela parte autora foi a existência do contrato de namoro. Diversos fundamentos contribuíram para a decisão neste sentido. Em primeiro lugar, o TJPR afastou a necessidade de o contrato de namoro ser celebrado por instrumento público. Consignou, ainda, que isso só é necessário para que o contrato tenha validade em relação a terceiros. Citou, para tanto, entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, no REsp n. 1.988.228, no sentido de que "o contrato particular de união estável com separação total de bens não impede a penhora de patrimônio de um dos conviventes para o pagamento da dívida de outro, pois somente tem efeito entre as partes, não produzindo efeitos em relação a terceiros quando não há registro público". Em seguida, o tribunal enfrentou a validade do pacto. A parte ré/apelante defendia a tese de que o contrato de namoro era válido, porque realizado sem vício de consentimento e com acompanhamento de advogados. Já a parte autora/apelada defendia tese mais complexa: dizia ela que o documento não era válido por conta de sua vulnerabilidade. A tese da vulnerabilidade foi afastada pelos julgadores porque o contrato particular foi firmado por agentes capazes, com reconhecimento de firma e mediante assinatura de advogados. O tribunal desconsiderou, ainda, o argumento da parte autora de que haveria disparidade entre as formações profissionais entre o casal: enquanto a parte autora seria da área da enfermagem, a parte ré seria da medicina. Este argumento não foi capaz de configurar por si só a alegada vulnerabilidade, pois além de ambas as partes terem concluído o ensino superior, o acórdão destaca que exerciam atividade empresária e que a parte autora havia sido aprovada em concurso público. O acórdão ressalta, em seguida, a ausência completa de provas acerca de eventual vício de consentimento na assinatura do contrato de namoro. Assim, estaria configurada a assinatura do documento por agentes capazes e que conheciam seu conteúdo e consequências jurídicas. Seguindo, a decisão concluiu que o requisito legal da relação duradoura também não estava demonstrado nos autos. Isso porque o casal teve períodos de rompimento ao longo do tempo, com afastamentos e retomadas. O acórdão também não constatou a presença do requisito de objetivo de constituir família. Para o TJPR esse elemento "depende da prova de interesse volitivo de ambas as partes em constituir família, uma vez que a affectio maritalis é o requisito que mais se assemelha à figura do casamento, elemento que identifica se o relacionamento se configura como um namoro ou já conviviam como se casados fossem". Para o tribunal, as provas testemunhais e documentais trazidas pela parte autora não superam a estipulação contratual. A corte reitera que o contrato foi livremente pactuado pelas partes e que não há nenhuma prova que o invalide. Por isso, deve ser considerado válido naquilo que não afronte a lei. O acórdão também destaca que "os depoimentos testemunhais devem ser sopesados com os demais elementos constantes nos autos, tendo em vista que namorados também frequentam festas juntos, visitam as casas de amigos, realizam viagens, compartilham a vida com o filho do outro (...)". Ao invés de comprovar a união estável, entendeu o TJPR que a prova testemunhal nada mais fez do que comprovar que havia uma relação de namoro qualificado. Com esses fundamentos, o tribunal deu provimento ao recurso de apelação, afastando a união estável. A decisão do TJPR é absolutamente adequada e acertada. Felizmente, os julgadores forem sensíveis e bem separaram o joio do trigo. É certo que o contrato de namoro emerge na contemporaneidade como importante instrumento de planejamento patrimonial e sucessório. Além de fornecer segurança jurídica, é uma forma idônea de garantir que as partes exerçam a sua autonomia privada e possam desenhar os exatos termos e efeitos de seus relacionamentos afetivos. No momento atual, o conceito de união estável captado pelo artigo 1.723 do Código Civil tem gerado muitos embates e decisões conflitantes que demandam uma postura ativa dos casais no sentido de se valer de instrumentos preventivos para aclarar suas reais vontades e anseios, em especial consolidar se o relacionamento tem ou não o objetivo de constituir família. É fundamental recordar que o momento presente é pródigo, em termos doutrinários e jurisprudenciais, em conferir cada vez mais direitos para a união estável. Dessa forma, resta clara a importância em afastar preventivamente a aplicação de suas normas quando as partes estiverem diante de um namoro ou de um namoro qualificado. __________ 1 O artigo aborda apenas a questão da validade do contrato de namoro, sem expor outros pedidos e temas julgados na decisão. Essas análises poderão ser objeto de estudos futuros.
O contrato de doação, instrumento principal das liberalidades, é um dos mais instigantes do ponto de vista de sua construção e regulação. Justamente por veicular atribuição patrimonial sem contraprestação, as possibilidades de utilização da doação no exercício da autonomia privada (no gerenciamento dos interesses econômicos e solidários) são variadíssimas. O amplo espectro de boa e má utilização do contrato de doação, chama regulações específicas, tendo em vista a sua causa, o seu conteúdo ou as partes do contrato. Bem por isso o legislador se preocupa com diversas modalidades de doação, como, por exemplo, a doação com cláusula de reversão, a doação universal, a possibilidade de revogação da doação por ingratidão do donatário, a doação como instrumento de adiantamento da herança, a doação inoficiosa etc.  Proíbem-se, total ou parcialmente, diversas modalidades de doação, considerando-as inválidas ou ineficazes. Uma destas hipóteses chama a atenção, por razões sensíveis (envolve as relações afetivas) mas também por sua construção jurídica. Trata-se da antes chamada "doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice", tida como inválida pelo artigo 550 do Código Civil. Em poucas palavras, a lei diz que não vale a doação de pessoa casada, para alguém com quem teve relação adulterina.  A preocupação do legislador em proteger patrimonialmente a família constituída legalmente diante de relações espúrias já era prevista no artigo 1.177 do Código Civil de 1916, cuja redação foi praticamente repetida no art. 550 do Código Civil de 2002:  "Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal."  O dispositivo, tanto em 1916 como em 2022 (melhor seria dizer em 1975, quando o projeto do Código Civil foi encaminhado ao Poder Legislativo) tinha alvo firme: para o bem da família, ainda que o cônjuge tivesse pleno poder de disposição (basta pensar num bem móvel de propriedade exclusiva de um cônjuge) ele não podia fazer doação para aquele com quem tivesse praticado - ou praticasse - adultério.  A norma revela uma determinada concepção da família (no caso, a família matrimonial), uma preocupação de gênero (ainda que se aplicasse para o adultério da mulher, evidentemente mirava o adultério do marido), e a criminalização da infidelidade (adultério já foi considerado crime). A quaestio envolvida na proibição de doação em tal circunstância era complexa. Bem por isso dizia SERPA LOPES, em 1991, que "Este dispositivo envolve uma parte do problema das liberalidades entre amantes, o que por si só já justifica uma monografia a respeito"1.  O dispositivo, tal qual escrito (diga-se: reproduzido do Código anterior), prestava-se a uma série de dúvidas interpretativas, decorrentes dos avanços sociais e da necessidade de aplicá-lo na atualidade. Três exemplos de dúvidas que surgem na sua aplicação: - a invalidade aplica-se apenas ao casamento (a lei fala em "cônjuge") ou também à união estável? - o que se considera adultério (exige relação sexual com terceiro ou apenas relação  afetiva? Aplica-se ao "adultério virtual?) - o art. 550 prevalece sobre o artigo 1.642, V do Código (que fala da faculdade de o cônjuge reivindicar bens doado ao concubino)?  Além de ser de uma constitucionalidade duvidosa2 a redação do artigo 550 do Código Civil merece críticas. Como disse Flávio TARTUCE,  "Na verdade, o art. 550 do CC é polêmico, parecendo-me a sua redação um verdadeiro descuido do legislador, um grave cochilo".  Pois firme no propósito de atualizar e tornar mais operável a legislação civil, o reformador propõe alteração no dispositivo. A sugestão de redação é:  "Art. 550. A doação de pessoa casada ou em união estável a terceiro com quem mantenha relação na forma do art. 1.564-D pode ser anulada pelo outro cônjuge ou convivente, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal ou a união estável."  Vê-se bem que a lógica da vedação e suas linhas mestras continuam. A doação será inválida, o prazo decadencial para pleitear a anulação é de 2 anos e os legitimados são o cônjuge e os herdeiros necessários.  Mas, agora, o dispositivo (a) refere a união estável (a proibição, acertadamente, não se dirige apenas à família matrimonial), (b) afasta-se do adultério como tipo civil e (c) concatena-se com o tratamento dado ao antigo concubinato (expressão que deve ser defenestrada da ordem jurídica, mas é aqui utilizada por razão didática). O artigo 1.564 projetado cuida da união estável3 e a sua letra D dispõe: "Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família. Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886."  O reformador então, enfrenta o problema das uniões paralelas, para reconhecer que elas não constituem família, que podem gerar demandas patrimoniais, as quais serão atingidas pelas regras do enriquecimento sem causa.  Por fim, a nova redação do dispositivo afasta-se do adultério como um tipo civil, facilitando sua aplicação, na medida em que a conceituação do art. 1.564 é mais objetiva.  Fatalmente situações fáticas imprevistas acontecerão, obrigando o julgador a adequar a normativa a cada caso concreto, em verdadeira criação da norma pela interpretação. Ademais, há que se aguardar o resultado do processo legislativo. De qualquer maneira, o tema, muito sensível como foi dito acima, foi objeto de atenção do reformador, e mostra a preocupação em destravar o direito sem descurar de sua sistematização. __________ 1 Miguel Maria de SERPA LOPES. Curso de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos: 1991, p. 374-375. 2 Paulo LOBO. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraivajur, 2021, p. 301. 3 Art. 1.564-A. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.
1. Terceiro cúmplice na relação contratual e a exceção ao princípio da relatividade dos efeitos contratuais Um dos princípios1 individuais dos contratos é o da relatividade dos efeitos contratuais2 (res inter alios3), ou seja, o contrato produz efeitos entre as partes. O terceiro é aquele "que não participa do negócio jurídico, para quem a relação é absolutamente alheia".4 Noutros termos, a "posição jurídica do terceiro assenta-se em um alheamento material e formal a determinada e particular relação jurídica".5 Desse modo, em regra, o contrato firmado entre dois contratantes não afeta aquela pessoa que não contratou. Existem hipóteses nas quais há uma maior proximidade de um não contratante daquele contrato no qual não faz parte, como exemplifica Otávio Luiz Rodrigues Júnior: O sucessor, o credor quirografário, o accipiens hipotecário diante do devedor que aliena a coisa dada em garantia, o terceiro a favor de quem se constituiu estipulação, o locador em face do locatário que subloca o imóvel, o fiador superveniente, o cedido na cessão de crédito, o devedor ante o terceiro sub-rogado e, por derradeiro, o gestor de negócios são exemplos de pessoas que normalmente figurariam como terceiros, muitos até recebem essa denominação, entretanto ostentam um tal nexo com a relação jurídica específica que mais se assemelham a satélites em derredor aos planetas: não se encontram na atmosfera destes, mas gravitam com tal proximidade a sua órbita, que não podem deixar de influir ou de ser influenciados por aquela.6 Além disso, existem hipóteses legais em que o terceiro é atingido diretamente pelo contrato que não é parte: (i) a responsabilidade dos(as) herdeiros(as) do(a)contratante (Código Civil - CC, art. 1.792); (ii) a promessa de fato de terceiro (CC, arts. 439-440), como na promessa do produtor de um show para que um terceiro (cantor) realize o show, o contrato de transmissão de jogos de futebol,7 entre outros; (iii) a estipulação em favor de terceiros (CC, arts. 436-438), por exemplo, o contrato de seguro de vida, no qual o terceiro consta como beneficiário e o contrato é firmado entre a seguradora e o segurado;8 (iv) contrato com pessoa a declarar (CC, .arts. 467-471), como o contrato preliminar;9 (v) a ideia de consumidor por equiparação ou bystander posta nos arts. 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, como se vê no Enunciado 47910 da Súmula do STJ; (vi) a função social do contrato (CC, arts. 421 e 421-A), como aponta o Enunciado 21 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF): "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito".11 A função social do contrato como fundamento da tutela externa do crédito é controversa na literatura jurídica brasileira,12 como se exporá em outro tópico deste artigo; (vii) com a boa-fé objetiva;13 (viii) da responsabilidade por ato ilícito ou abusivo (STJ - RESP 2.023.942/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2022, DJe 28.10.2022); (ix) publicidade de registros notariais, documentais ou de títulos;14 (x) fraude contra credores e demanda revocatória falimentar. O contrato pode ter efeito sobre terceiros, mesmo que não haja a intenção de prejudicar terceiros, como aponta Otavio Luiz Rodrigues Júnior: Muita vez, os efeitos reflexos ocorrem sem que os contraentes os desejem ou os tenham previsto, porém suas conseqüências sobre o terceiro apresentam-se de modo inevitável, revelando que sua relatividade será mais ampla que o próprio desejo dos declarantes. 57 Posteriormente, com o desenvolvimento das relações contratuais de massa e do direito do consumidor, passou-se a admitir a figura do contrato em prejuízo de terceiro, assim entendido o que produz prejuízo reflexo a terceiros, mesmo sem ser essa a intenção dos declarantes. 58 São exemplos dessa espécie a formação de cartéis entre fornecedores para impedir a redução de preços ou para controlar sua majoração, bem assim contratos destinados a repartir faixas de mercado, limitar a concorrência e prejudicar o interesse dos consumidores, que se colocam como terceiros em face de tais pactos. 59 Segundo Vincenzo Roppo (2001:565), a nulidade desses contratos em dano a terceiro não depende de uma violação do princípio res inter alios acta, mas da ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.15 Esclarece-se que o CDC, nos arts 3º, 7º, 12, 14 e 25, estabelece uma "solidariedade legal entre agentes econômicos diversos, cujos efeitos dimanam sobre a responsabilidade pelo produto ou serviço, em regra, de caráter objetivo (arts. 12, 14 e 25 do CDC".16 Delimitado os pontos sobre a eficácia perante terceiros de contratos nos quais não são partes, passa-se ao tópico seguinte a abordar da tutela externa do crédito, a fim de aferir, no último tópico, se o art. 608 do CC e o art. 28 da lei 9.615/98 (Lei Pelé) são exemplos de tal instituto e se podem ser aplicados cumulativamente pela entidade desportiva contra o atleta profissional e contra a entidade desportiva que o auxiliou na quebra do contrato antes do tempo combinado. Há , também, a hipótese de tutela externa do crédito prevista no art. de 209 da lei 9.279/96 (concorrência desleal em negócios jurídicos de comércio alusivos à propriedade industrial),17 que não será objeto de análise neste artigo. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 Entende-se que os princípios são deontológicos, parâmetros interpretativos que fundam as normas jurídicas (resultado da interpretação do texto no contexto de aplicação) e operam no código jurídico/antijurídico, pois significam a incorporação jurídica do mundo prático ao Direito, sendo instituidor da regra jurídica. "Uma regra só pode ser aplicada a partir de um ou mais princípios, e um princípio sempre será aplicado por meio de uma regra (...) Se a regra não fosse porosa, bastaria sempre a subsunção. Por isso, sempre será necessária a presença de um ou mais princípios para a sua interpretação. Mesmo nas situações (ou nas que são consideradas) mais claras, pelas quais uma regra pode abarcar determinada situação fática, ainda assim haverá a interferência de um princípio. Nesses termos, princípios (constitucionais) devem ser compreendidos a partir do que chamo de "tese de descontinuidade": eles instituem o mundo prático no Direito, possibilitando, a partir de sua normatividade, o fechamento interpretativo no Direito. ". STRECK, Lenio. Diferença entre regras e princípios. In: STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 67-70, p. 69-70. 2 Lôbo, Paulo Luiz Neto. Direito Civil: Contratos. 10. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 82. 3 Tartuce, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 129. 4 Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil - Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 485. 5 Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Revista dos Tribunais | vol. 821/2004 | p. 80 - 98 | Mar / 2004, edição eletrônica. 6 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 7 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu: "Contratos. Televisão. Jogos. A confederação que engloba os times de certa atividade desportiva firmou contrato com a empresa de televisão a cabo, pelo qual lhe cedia, com exclusividade, os direitos de transmissão ao vivo dos jogos em todo o território nacional, referentes a determinada temporada. Sucede que 16 times, em conjunto com a associação que formaram, e outra empresa de televisão também firmaram contratos com o mesmo objetivo. Daí a interposição dos recursos especiais. Pela análise do contexto, conclui-se que, apesar de figurar no primeiro contrato como cedente e detentora dos direitos em questão, a confederação firmou, em verdade, promessa de fato de terceiro: a prestação de fato a ser cumprido por outra pessoa (no caso, os times), cabendo ao devedor (confederação) obter a anuência dela quanto a isso, tratando-se, pois, de uma obrigação de resultado. Pela lei vigente à época (art. 24 da Lei n. 8.672/1993), somente os times detinham o direito de autorizar a transmissão de seus jogos. Assim, visto que a confederação não detém o direito de transmissão, cumpriria a ela obter a anuência dos times ao contrato que firmou, obrigação que constava de cláusula contratual expressa. O esvaziamento desse intento, tal como atesta notificação posta nos autos realizada pela própria confederação, de que não conseguiu a anuência dos clubes, enseja a resolução (extinção) desse contrato e sua responsabilização por perdas e danos (art. 929 do CC/1916, hoje art. 439 do CC/2002). Contudo, não se fala em nulidade ou ineficácia, pois, houve, sim, a inexecução (inadimplemento) de contrato válido, tal como concluiu o tribunal a quo. Tampouco há falar em responsabilidade solidária dos times porque, em relação ao contrato firmado pela confederação, são terceiros estranhos à relação jurídica, pois só se vinculariam a ele se cumprida a aludida obrigação que incumbia ao promitente, o que, como dito, não se realizou. Já a associação, mesmo que tenha anuído a esse contrato, não pode ser responsabilizada juntamente com a confederação: não há previsão contratual nesse sentido e pesa o fato de que a obrigação de obter a aceitação incumbia apenas à confederação, quanto mais se a execução dependia unicamente dos times, que têm personalidades jurídicas distintas da associação que participam e são os verdadeiros titulares do direito. Com esse e outros fundamentos, a Turma negou provimento aos especiais" (STJ, REsp 249.008/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJRS), j. 24.08.2010). 8 Tartuce, Flávio, 2024, p. 129. 9 Tartuce, Flávio, 2024, p. 131. 10 Enunciado 479 da Súmula do STJ: "as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". 11 Tartuce, Flávio, 2024, p. 132. 12 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela externa da obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11abr2024. 13 Tartuce, Flávio, 2024, p. 519-520; Greco Bandeira, Paula. Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 30, ano 8, abr./jun., 2007, p. 79-128. 14 Otávio aponta: "Trata-se de questão inerente à eficácia e não à validade do ato. 33 São exemplos: a) a carta de fretamento, desde que escriturada por corretor de navios ou tabelião, com duas testemunhas, terá eficácia de instrumento público, caso contrário "obrigará as próprias partes, mas não dará direito contra terceiro" (art. 569 da Lei Imperial 556, de 25.06.1850, do Código Comercial brasileiro); b) o contrato de câmbio marítimo deverá ter forma de instrumento público ou, se particular, entre outras formalidades, reconhecido e visado por "cônsul do Império", sob pena de ficar "este subsistindo entre as próprias partes, mas não estabelecerá direitos contra terceiro" (art. 633 do CCo (LGL\1850\1) brasileiro 34); c) "o instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público" (art. 221 do CC/2002 (LGL\2002\400)35); d) é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não se celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades legais (art. 288 do CC/2002 (LGL\2002\400)36); e) "o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial" (art. 1.144 do CC/2002 (LGL\2002\400)37); f) "para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis" (art. 1.333, parágrafo único, do CC/2002 (LGL\2002\400)38); g) "as convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges" (art. 1.657 do CC/2002 (LGL\2002\400). 39); h) nos contratos de locação predial urbana, com cláusula de vigência em caso de alienação devidamente averbada junto à matrícula do imóvel, o adquirente - terceiro em relação ao locador e ao locatário - não poderá denunciar o vínculo locatício, devendo aguardar o termo final da avença primitiva (artigo 8.º da Lei 8.245 de 18.10.1991, com norma similar no art. 576 do CC/2002 (LGL\2002\400)40)". Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 15 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 16 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004. 17 Lei 9.279/2006: "Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. § 1º Poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória. § 2º Nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada".
Introdução A Victor Hugo, um dos mais importantes escritores do século XIX, é atribuída a frase "nada é mais poderoso do que uma ideia que chegou no tempo certo", que tem características românticas e políticas como o próprio autor que além de escritor foi deputado e, combateu duramente a pena de morte em seu país.  A Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil instalada pelo presidente do Senado da República em agosto de 2023, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, e que tem como relatores dois dos maiores juristas contemporâneos, prof. dra. Rosa Maria de Andrade Nery e prof. dr. Flávio Tartuce, é com toda certeza uma ideia que chegou no tempo certo. Desde a entrada em vigor do CC/02, em janeiro de 2003, surgiram projetos, comentários, propostas, sempre com objetivo de atualizar o texto de lei e, revisar equívocos involuntariamente cometidos no processo de discussão e aprovação. É possível afirmar que havia consenso entre os civilistas brasileiros de que o projeto aprovado em 2002 nasceu com ares de meados do século XX, insuficiente, por isso mesmo, para dar conta das grandes transformações que as diferentes sociedades têm vivido no século XXI, em especial, nas áreas econômica e social. Assim, a constituição de uma Comissão de Juristas para revisar e atualizar os diferentes capítulos do Código Civil foi uma ideia no tempo certo, porque ao desejo de mudança que já existia desde 2002 se somou a experiência acumulada nesses 21 anos de vigência da lei civil com as decisões dos tribunais estaduais, dos tribunais superiores, dos instigantes debates das Jornadas do Conselho Federal de Justiça, do CNJ, e pelo trabalho dos doutrinadores que exaustivamente pesquisaram, escreveram, atualizaram, compararam com o direito civil de outros países, e publicaram livros e artigos ao longo de todos esses anos. É preciso ponderar, no entanto, que um código precisa ter linha lógica, fios condutores que permitam organicidade, interpretação sistemática e coerente. E, nesse sentido, a Comissão de Juristas tomou a decisão de manter integralmente os princípios que orientaram o Código de Miguel Reale: a sociabilidade, eticidade e operabilidade, que ao longo dos últimos 21 anos se mostraram de enorme relevância no trato com a interpretação e aplicação do direito aos casos concretos oriundos da hipercomplexidade que, na atualidade, caracteriza a sociedade em que vivemos.  Não se trata de uma reforma do Código Civil, de uma lei nova, mas sim de um criterioso e cuidadoso processo de revisão e atualização, sem desprezar as diretrizes que orientaram o trabalho dos juristas que nos antecederam. 1. Contratos de seguro no Código Civil O tratamento do CC/02 aos contratos de seguro teve aspectos inovadores. O contrato foi definido como instrumento para garantir ao segurado mediante o pagamento do prêmio seu interesse legítimo sobre pessoas ou coisas, contra riscos predeterminados. No Código Civil de 1916 a definição caracterizava o contrato como instrumento que obrigava o segurador a indenizar, herança do Código Civil italiano de 1942, porém, inadequada para definir corretamente a principal obrigação que o segurador assume nesse contrato bilateral, além de inaplicável para os contratos de seguro de pessoas. A responsabilidade de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados que possam atingir bens ou pessoas, reforça a ideia do mutualismo como elemento essencial que alicerça os contratos de seguro. Afinal, para garantir é preciso organizar e administrar e esse é, exatamente, o principal papel do segurador na constituição do fundo mutual de onde sairão os recursos necessários para o pagamento das indenizações quando e se necessárias. Apesar dessa inovação e de algumas outras pontuais, o CC/02 não abordou temas que àquela época já eram relevantes para segurados e seguradores. Por essa razão, a Comissão de Juristas buscou revisar artigo por artigo do capítulo XV à luz da construção jurisprudencial e, a partir da contribuição dos enunciados das jornadas e do trabalho dos doutrinadores. Além disso, há um minucioso trabalho de integração e adequação do Capítulo XV, dos Contratos de Seguro, às normas da Parte Geral do Código Civil, da Parte Geral dos Contratos e, em especial, ao novo capítulo sobre Direito Digital que integrará o Código Civil cujo projeto está sendo construído.  O novo capítulo XV cuida, ainda, de ressaltar sempre que necessário, a prevalência da lei especial federal de proteção do consumidor, a lei 8.078/90, o CDC, na aplicação aos contratos de seguro denominados como massificados, ou seja, aqueles em que há um consumidor na condição de contratante ou, mais especificamente, de aderente às condições prefixadas pelo segurador. Confira aqui a íntegra da coluna.
I - Uma possível introdução  Um dos versos mais declamados em língua portuguesa, inclusive por quem não é afeto à leitura de poemas, "navegar é preciso, viver não é preciso", faz parte de um dos muitos sonetos do genial Fernando Pessoa.  Nascido em Lisboa no ano de 1888, no Largo do Teatro de São Carlos, Pessoa se é sem dúvida um dos mais aclamados poetas do mundo lusófono. Notabilizou-se por seus heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis etc e até hoje é leitura obrigatória nas escolas não só pela beleza e qualidade de seus versos, mas pela riqueza de detalhes históricos que sua obra contém.  Para sermos honesto, a frase não é de autoria de Fernando Pessoa. Plutarco, que viveu no Século I antes de Cristo, atribui a frase ao general romano Gnaeus Pompeius Magnus1 (navigare necesse, vivere non est necesse) que a teria proferido a frase quando embarcava para Roma com grãos essenciais à alimentação do povo e uma tormenta se abateu sobre a frota.  Evidentemente, diante da situação em que a frase é mencionada, "preciso" só pode ter um significado, que é necessário. Navegar é necessário para que os grãos cheguem ao povo romano.  Por mais encantadora que seja uma outra possível leitura pela qual os portugueses, conhecedores exímios dos mares (assim como eram os romanos com relação ao mar Mediterrâneo que chamavam de mare nostrum) achariam a navegação precisa por ser certa, exata, sem erros, sem surpresas; enquanto a vida, ao contrário, é sempre imprevisível e cheia de intempéries, não é esse o sentido do adjetivo na poesia de Pessoa.  O poeta afirma que "Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande". Logo, a ideia não era de precisão, de certeza. Não se tratava de precisão matemática e sim de uma necessidade.  Reformar o Código Civil é preciso, necessário, por força das inúmeras mudanças que o mundo e em especial o Direito passou nesses últimos 20 anos. A necessidade de incorporação das mudanças que o direito pessoal de família sofreu é realmente óbvia. Se lermos o direito pessoal de família e a intepretação dos Tribunais, vê-se que a lei não está, nem de perto, refletida na leitura jurisprudencial.  A questão das novas tecnologias e seus efeitos para o direito das obrigações não poderiam deixar de ser incorporadas aos sistemas. Aliás, a tão falada herança digital é tema que compete ao Código Civil tratar.  Agora, se sobra necessidade, problema temos com a precisão no sentido de exatidão. O desafio da Comissão, da qual honrosamente faço parte, é se desincumbir do ônus de alterar a lei espetacularmente pensada por Juristas simplesmente geniais, com precisão, exatidão, para que o sistema seja aprimorado.  II - Os vícios redibitórios na reforma do CC  Vejamos o texto atual e o sugerido pela subcomissão de contratos.  a) Art. 441 do CC {EMBED_IFRAME_3977} O primeiro ponto que se nota é que o projeto opta por utilizar "vício oculto" no texto da lei e não "redibitório" como está no título da Seção V. Faz bem. Redibição é um efeito do vício oculto, mas não o único já que, ao invés de se devolver a coisa (recebendo o valor eventualmente pago de volta), o adquirente pode optar pelo abatimento do preço (ação estimatória ou quanti minoris).  Suprime-se a palavra defeito, pois era redundante. Se há defeito, há vício e se há vício é porque há defeito. Utiliza-se a expressão "obrigação de garantia" e esta menção não gera nenhum efeito prático. Nada muda por ser uma obrigação de garantia. Contudo, também não prejudica em nada a lógica do sistema.  Há uma alteração de alcance da norma, pois o Código Civil determina sua aplicação às doações onerosas sendo que a reforma restringe às doações com encargo. Mas há outras doações onerosas que não a doação com encargo? Sim, as doações remuneratórias, as doações em contemplação do merecimento do donatário (art. 540 do CC), por exemplo, são onerosas, mas não contém encargo.  O parágrafo 2º assim menciona: "A transferência do bem pode referir-se à posse". A regra é também não é imprescindível, mas não prejudica o sistema. Dá clareza para contratos comutativos como a locação em que somente a posse é transferida.  O parágrafo § 3º determina que "Os vícios ocultos de que trata o caput já devem ser existentes, mas não manifestados ao tempo da aquisição". Perfeita a regra. Decorre da própria definição de vício oculto e de sua distinção para vício aparente. Se o vício se manifestou, oculto não é.  a) Art. 441 - A  O artigo é uma inovação. Tem a seguinte redação:  "Art. 441-A. O transmitente não será responsável por qualquer vício do bem se, no momento da conclusão do contrato, o comprador sabia ou não podia ignorar a sua existência, consideradas as circunstâncias do negócio no momento da aquisição.  Parágrafo único. Se a identificação do vício demandar preparação científica ou técnica, deve-se levar em consideração se, diante da qualificação do adquirente, de sua atividade profissional, ou da natureza do negócio, era seu ônus buscar elementos técnicos que permitissem aferir a presença ou não de vícios".  O dispositivo segue com a distinção entre vício aparente e vício oculto. Será aparente o vício se o adquirente sabia da existência (foi informado pelo alienante ou um terceiro, por exemplo) ou deveria saber (por exemplo o preço do bem é tão ínfimo que só pode ter um defeito).  O termo adquirente é preferível a comprador.  Novamente, o parágrafo mostra que o standard do "homem médio" não é sempre o utilizado para a distinção entre vício oculto e aparente. Um mecânico que compra um carro, um veterinário que compra um animal, um dentista que compra objetos de uso profissional etc. Aqui temos uma situação de qualificação do adquirente que exige dele maior cuidado na celebração do contrato comutativo. Eu chamaria de adquirente qualificado em razão de seus conhecimentos.  Não se trata mais de um adquirente "em abstrato", mas sim em concreto.  b) Art. 442  Vamos novamente comparar a redação atual e a sugerida. {EMBED_IFRAME_3978} Além das tradicionais alternativas (redibição ou abatimento do preço), a subcomissão sugere que o adquirente (melhor dizer adquirente que comprador) possa exigir do alienante as despesas que teve com o reparo do vício, salvo se o último se propuser a realizar os reparos. A regra sugerida é positiva. O alienante tem a opção, a escolha, de reparar o vício (ele mesmo ou terceiros por suas expensas). Se não fizer, o adquirente o fará e terá direito ao reembolso (direito restitutório). O prazo prescricional da pretensão de restituição será aquele previsto na Parte Geral para o enriquecimento sem causa (atualmente de 3 anos).  Nos moldes do CDC, se o alienante tiver que fazer os reparos, há um prazo de 30 dias para tanto. Decorrido tal prazo sem que o reparo tenha ocorrido, poderá o adquirente exigir o abatimento do preço ou a redibição.  Questão interessante se coloca. O adquirente pode se valer desde logo da ação redibitória ou da quanti minoris (incisos I e II do projetado artigo 442) ou tem o direito suspenso até que decorram os 30 dias previstos no inciso III? A regra projetada é clara. O adquirente tem uma de três opções: i) redibição; ii) abatimento do preço; e iii) exigir o saneamento do vício. Não há, como no CDC, um direito do alienante de sanar o vício do bem.  O adquirente, que pela redação atual do Código Civil tinha duas alternativas, passa a ter três. Logo, o parágrafo único projetado se refere apenas ao inciso III e não aos demais.  Por fim, a subcomissão não condicionou a redibição ou o abatimento à extensão do vício ou à redução do valor da coisa. Sendo pequeno ou grande o vício, o adquirente pode optar por qualquer dos direitos que lhe confere o artigo 442. Gosto da solução. Sempre defendi que o direito do adquirente era potestativo e incondicionado. Aqui a lei afasta a ideia de primazia da conservação do negócio jurídico (pelo abatimento do preço) e permite a extinção (em o adquirente utilizando a ação redibitória). __________ 1 Aquele que ao lado de Crasso e Julio Cesar foi triúnviro, posteriormente inimigo capital de Cesar e que acaba sendo morto no Egito por ordens do Faraó Ptolomeu XIII.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Pacto sucessório e a reforma do Código Civil

Como amplamente divulgado, a presidência do Senado Federal institui - sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e relatoria dos professores Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce - Comissão de Juristas à qual foi atribuída a missão de atualizar e reformar o Código Civil brasileiro. A Comissão tem dado aos seus trabalhos amplíssima divulgação. A presidência da Comissão oficiou inúmeras instituições dedicadas ao Direito em geral e ao Direito Civil em especial para que apresentassem suas sugestões de aprimoramento do Código Civil. A Comissão vem organizando diversas audiências públicas para ouvir professores, advogados, juízes, defensores etc. Ademais, tornou pública a compilação dos pareceres das diversas subcomissões, de modo que qualquer interessado pode acessar o site do Senado Federal, ler os pareceres e apresentar considerações dirigidas aos membros da Comissão ou mesmo publicar artigos e ministrar aulas e palestras com sugestões de aprimoramento do texto atualmente vigente ou daqueles - ainda provisórios, insisto - constantes dos pareceres.   A comunidade jurídica tem a oportunidade e, permito-me dizer, o dever moral de apresentar suas contribuições para que tenhamos o melhor Código Civil possível. Se é verdade que criticar as alterações depois de elas entraram em vigor é um direito, fazê-lo sem ter apresentado sugestões de aprimoramento enquanto isso é possível é despundonor. Dito isso, na qualidade de membro-consultor da Comissão de Juristas, quero aproveitar o espaço gentilmente concedido pelo Migalhas para tratar dos chamados pactos sucessórios, designadamente para apresentar à comunidade jurídica minha opinião sobre qual seja o Livro mais adequado do Código Civil para constarem eventuais exceções à proibição dos pacta corvina e para apontar algumas objeções à proposta apresentada pela subcomissão quanto ao tema. Um código de leis, qualquer um, é "uma ordem conjetural de problemas", como precisamente definiu Miguel Reale em seu "O Direito como Experiência", obra que reputo das mais importantes sobre teoria do Direito. O encadeamento adequado das disposições normativas é, portanto, condição necessária para que um conjunto de artigos, incisos, parágrafos e alíneas forme um Código. Durante o estágio de pós-doutoramento que o professor Flávio Tartuce e eu cursamos sob a supervisão do professor José Fernando Simão, tivemos, os três, ocasião de estudar com profundidade o tema dos pactos sucessórios e entendemos por bem apresentar ao Senador Rodrigo Pacheco proposta de alteração do Código Civil. A proposta que apresentamos acrescentava seis parágrafos ao artigo 426 do Código Civil; foram elas: Art. 426. (...). § 1º. Os cônjuges podem, por meio de pacto antenupcial, e os companheiros, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou companheiro. § 2º. A renúncia pode ser condicionada às hipóteses de concorrência com descendentes ou com ascendentes. § 3º. A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do artigo 1.829, não sendo necessário que a condição seja recíproca. § 4º. A renúncia não implicará perda do direito real de habitação previsto no artigo 1831, salvo expressa previsão dos cônjuges ou companheiros. § 5º. Quaisquer outras disposições sucessórias que não as previstas nos parágrafos anteriores, sejam unilaterais ou bilaterais, ocorrendo em pacto antenupcial, instrumento público ou particular firmados por cônjuges ou companheiros, são nulas. § 6º. A renúncia será ineficaz se no momento da morte do cônjuge ou companheiro o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária. As justificativas - cuja íntegra omito pelo bem da brevidade - concentraram-se na possibilidade de os cônjuges e companheiros disporem de autonomia privada para planejarem sua sucessão, sem prejuízo da proteção ao importantíssimo direito real de habitação. As exceções ao artigo 426 foram postas no próprio artigo, por meio do acréscimo de parágrafos, seguindo o que dispõe a Lei Complementar n. 95/98 em seu artigo 11, III, alínea c, verbis: Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (omissis) III - para a obtenção de ordem lógica: (omissis) c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida. A subcomissão responsável pela revisão e reforma do Livro V do Código Civil (direito das sucessões) sugeriu que a disciplina dos pactos sucessórios constasse do Livro V da Parte Especial e criou regime jurídico muitíssimo inovador. Apresento, a seguir, a proposta da subcomissão em itálico e, a cada dispositivo, minhas considerações. Art. 1.790-A. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva ou dispõe sobre a sua própria sucessão. A expressão sucessão contratual tem já um significado preciso que é o decorrente da transmissão da posição contratual de uma parte a algum terceiro. Por exemplo, a cessão da posição de locatário ao adquirente do ponto comercial. O que a subcomissão pretendeu fazer foi criar um contrato que possa tratar amplamente da sucessão de pessoa viva, e não apenas da renúncia à qualidade de herdeiro. Quando o dispositivo inclui a frase ou dispõe sobre a sua própria sucessão parece permitir que haja algo como um "contrato testamentário", numa importação, a meu ver, imprópria do § 1941 do BGB (Código Civil alemão); imprópria na medida em que absolutamente estranha à tradição jurídica nacional e, ainda, incompatível com o regime jurídico da sucessão testamentária. Para apontar apenas uma das inconveniências da sugestão, basta dizer que a existência de uma sucessão contratual (o melhor seria contrato de sucessão ou contrato sucessório), por coerência lógica, teria de implicar a revogação de testamento anterior incompatível com o contrato e a ineficácia de testamento posterior que o contrariasse. § 1º. É válida a doação, com eficácia submetida ao termo morte. O dispositivo consagra algo que a melhor doutrina já admite e, portanto, é de se louvar. Não obstante, o seu local adequado é entre os dispositivos que formam o regime jurídico do contrato de doação, até porque a doação sob termo morte - ou à causa de morte - é contrato de doação, e não pacto sucessório. § 2º. A transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou, na omissão deste, nos contratos celebrados entre titulares e usuários e as respectivas plataformas. Atualmente, salvo equívoco de minha parte, não há dúvidas de já ser permitido o que o dispositivo visa a permitir. Evidentemente que a explicitação é muito bem-vinda, mas me parece que deveria constar de parágrafo ao artigo 1.857 do Código Civil. Algo como: Art. 1.857.... § ...º. Sem prejuízo do disposto nos contratos celebrados entre usuários e as plataformas, a transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento. § 3º. A reconstrução de voz e imagem após a morte se submete à mesma proteção dos direitos morais de autor. O dispositivo é salutar, mas deveria constar da Parte Geral do Código Civil, designadamente entre os artigos que disciplinam os direitos da personalidade. § 4º. A sucessão em participações societárias, ou na administração da sociedade, pode ser regulada nos instrumentos societários das sociedades em geral, sem prejuízo à legítima dos herdeiros necessários. Esse talvez seja um dos mais louváveis e importantes dispositivos sugeridos. Embora o inciso I do artigo 1.028 do Código Civil já contemple a possibilidade, a explicitação seria de todo benéfica. Penso, no entanto, que deveria constar do Livro II da Parte Especial, e não no seu livro V § 5º. Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o valor da participação societária será avaliada com base em balanço patrimonial especialmente levantado na data da abertura da sucessão, avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma. § 6º Se o valor a que se refere o parágrafo anterior superar ao do quinhão atribuído em partilha ao sucessor contratual designado, este deverá repor ao monte o valor do excesso, em dinheiro. § 7º A sucessão contratual dos sócios ou administradores, quando expressamente regulada nos instrumentos societários ou pactos parassociais, se fará automaticamente após a abertura da sucessão, independentemente de autorização judicial. § 8º Em caso de morte de sócio ou administrador único, o Juiz poderá designar um administrador provisório até que se conclua a sucessão na sociedade. Os parágrafos 5º a 8º são matéria puramente de direito societário e, portanto, devem ser tratadas no livro próprio, para o bem da unidade sistêmica do Código Civil.   §9º Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no artigo 426. Em sendo superadas as objeções que levantei, penso que a melhor redação para esse parágrafo seria: Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos neste Código, sendo nulos todos os demais, nos termos do disposto no artigo 426. Não há risco de "prejuízo" se o dispositivo sugerido vai ao encontro do artigo 426. Em síntese, a mim parece adequado que haja exceções ao artigo 426. Defendo que, para a manutenção da ordem sistemática, fundamental a qualquer código, as exceções constem como parágrafos do artigo 426, e não no Livro V da Parte Especial. Ademais, pelas razões - superficialmente - apontadas e outras que o tempo me impediu de expor, defendo que não seja positivada a categoria do "contrato sucessório". Concluo este brevíssimo texto enaltecendo o trabalho primoroso da Comissão de Jurista - não veja aqui o leitor um autoelogio porque funciono como mero consultor - e parabenizando especialmente os membros da subcomissão de direito das sucessões, todos juristas que considero meus professores.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Panorama do Direito Contratual brasileiro em 2023

O ano de 2023 foi significativo para o Direito Contratual Brasileiro, uma vez que mudanças ocorreram e modificações no Código Civil se avizinham. Isso porque, do ponto de vista legislativo, três importantes leis foram promulgadas, quais sejam: lei 14.620/2023 (Programa Minha Casa, Minha Vida), lei 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias) e regulatório com o Código Nacional de Normas e Regulamentação da Adjudicação Compulsória Extrajudicial pelo CNJ (Provimento CNJ n.º 150/2023). A lei 14.620/2023 trata do Programa Minha Casa, Minha Vida e alterou critérios postos no programa Casa Verde e Amarela, com o intuito de ""promover o direito à cidade e à moradia de famílias residentes em áreas urbanas e rurais", na forma do art. 1º da lei 14.620/2023. Saliente-se que "além de promover o direito e ampliar a oferta à moradia para famílias com determinadas rendas preestabelecidas, seu objetivo também é promover o desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural, de forma sustentável, mitigando vulnerabilidades e prevenindo riscos de desastres, gerando trabalho e renda, elevando padrões de habitabilidade, de segurança socioambiental e de qualidade de vida da população".1 Do ponto de vista contratual, para além da utilização dos contratos para promover os objetivos legislativos postos nos arts. 2º, 3º e 4º da lei 14.620/2023, tal lei permite: (i) que a União doe ou aliene, de forma gratuita ou onerosa, bens imóveis (lei 14.620/23, art. 6º XII); (ii) majoração do direito de construir (lei 14.620/23, arts. 4º e 6º, § 13, XII), mediante contratos de prestação de serviços e (ou) empreitada; (iii) fortalecimento do contrato de financiamento obtido com recursos do FGTS ou "em condições equivalentes às do Sistema Financeiro da Habitação, em qualquer parte do País" (lei 14.620/2023, art. 9º, I); (iv) prioridade aos "contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) (lei 14.620/2023, art. 10); (v) estabelecimento de direito resolutório da relação contratual em caso de descumprimento pela família beneficiária (lei 14.620/2023, arts. 12 e 32); (vi) respeito e tutela aos contratos firmados entre o Estado e as concessionárias de energia elétrica (lei 14.620/2023, art. 13); (vi) previsão de condições gerais contratuais obrigatórias (lei 14.620/2023, art. 13); (vii) respeito à função social do contrato, via tutela do direito à moradia, respeito às mulheres, as pessoas com deficiência e em situação de vulnerabilidade (lei 14.620/2023, arts. 8º, 16, 33 e 40) e da função ambiental do contrato pelo fomento à edificações sustentáveis ambientalmente, inclusive com subsídios públicos (lei 14.620/2023, arts. 13, 16, 32 e 33); (viii) fomento da locação em área urbana e do arrendamento em área agrária "de parcela do imóvel não prevista para uso habitacional, bem como a alienação de unidades imobiliárias, desde que o resultado auferido com a exploração da atividade econômica reverta-se em benefício do empreendimento" (lei 14.620/2023, art. 14); (ix) fomento do contrato de seguro obrigatório para os empreendedores na "produção de unidades imobiliárias novas em áreas urbanas" (lei 14.620/2023, art. 15); (x) facilitação para financiamento para os projetos de interesse social "nas áreas de habitação popular, inclusive regularização fundiária e melhoria habitacional, sendo permitido o financiamento nas áreas de saneamento e infraestrutura, desde que vinculadas aos programas de habitação, bem como de equipamentos comunitários" (lei 14.620/23, art. 26); e (xi) facilitação à utilização dos imóveis produzidos com "recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) poderão ser destinados por cessão, doação, locação, comodato, arrendamento ou venda, em contrato subsidiado ou não, total ou parcialmente, para pessoa física ou jurídica, conforme regulamentação do Ministério das Cidades, sem prejuízo de outros negócios jurídicos compatíveis" (Lei n.º 14.620/23, art. 29). Outros pontos positivos como os relacionados à desapropriação ultrapassam o escopo deste texto. A lei 14.711/2023 cuidou do aprimoramento das garantias e outros temas, sendo relevante destacar que o IBDCONT apresentou Nota Técnica,2 que teve grande impacto para a elaboração da lei, como as críticas ao instituto das instituições gestoras de garantia (IGG) e aquela relacionada a mais uma hipótese de penhorabilidade do bem de família, entre outros pontos, tendo sido mantido o contrato de gestão de garantias, sendo relevante refletir sobre o tema a partir da construção da literatura jurídica, como, por exemplo: 1. É cabível subalienações fiduciárias em garantia, também chamadas de alienações fiduciárias sucessivas (art. 22 da lei 9.514/1997). 2. Nas subalienações fiduciárias em garantia, os credores fiduciários de segundo ou mais graus serão titulares de um direito real de propriedade sujeito a duas condições: (i) a condição resolutiva consistente no adimplemento da respectiva dívida garantida; e (ii) a condição suspensiva consistente na extinção da propriedade fiduciária de grau inferior (capítulo IV.1.1.). 3. Apesar do silêncio da Lei das Garantias, entendemos que as subalienações fiduciárias em garantia de bens móveis são plenamente admissíveis, porque a alienação de coisa futura é permitida pelo nosso ordenamento, especialmente pelo art. 483 do CC. O outro caminho que chegaria a resultado prático similar é a realização de cessão fiduciária (que pode ser sucessiva) do direito real de aquisição pelo devedor fiduciante (capítulo IV.1.2.). 4. Na subalienação fiduciária em garantia, a cláusula cross default precisa estar consignado no instrumento constitutivo e não se opera automaticamente: depende de manifestação do credor na intimação do procedimento executivo extrajudicial (capítulo IV.1.3.). 5. Penhoras e alienações (fora da alienação fiduciária) não devem recair sobre a propriedade superveniente, e sim sobre o direito real de aquisição do devedor fiduciante: é a solução que enxergamos diante da opção não adequada do legislador em ter preferido focar a propriedade superveniente ao disciplinar a garantia fiduciária sucessiva (capítulo IV.1.5.). 6. O recarregamento, também chamado de extensão, compartilhamento ou refil, da hipoteca ou da alienação fiduciária em garantia de imóveis é admitido como o objetivo de facilitar, do ponto de vista cartorário, a conexão de novas obrigações a uma anterior garantia real imobiliária: basta ato de averbação na matrícula. Não se confunde com hipóteses de meros aditivos contratuais (capítulos IV.2.1., IV.2.3. e IV.2.7.). 7. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia de imóveis só pode ser realizado por instituição financeira ou por empresas simples de crédito em qualquer tipo de negócio, ao contrário do recarregamento de hipoteca (livre a qualquer sujeito) (capítulo IV.2.2.). 8. Vigora, no recarregamento das garantias reais imobiliárias, a regra da unicidade do credor, admitida, porém, no caso de hipotecas recarregadas, que fato superveniente enseje a diversidade de credores. A preferência creditória seguirá o princípio da prioridade registral, resumido no brocardo prior in tempore potio in iure (capítulo IV.2.4. e capítulo IV.2.5.). 9. Terceiros com direitos contraditórios na matrícula previamente ao recarregamento da garantia real não perdem a preferência creditória (capítulo IV.2.6.). 10. Quanto ao cabimento do recarregamento da garantia imobiliária na hipótese de preexistir direito tabular em favor de terceiros, há solução diferente a depender do tipo de garantia: é vedado o recarregamento apenas quando se tratar de alienação fiduciária em garantia (capítulo IV. 2.6.). 11. O recarregamento da garantia real há de respeitar o prazo e o valor previstos no registro para a dívida originária (capítulo IV.2.8.). 12. No recarregamento da garantia real, a cláusula cross default é admissível, mas tem de ser consignada no instrumento. Sua ativação, porém, depende de manifestação do credor na notificação expedida no curso do rito executivo extrajudicial. Essa regra vale mesmo para o caso de hipoteca, apesar do silêncio legal (capítulo IV.2.9.). 13. A boa técnica de redação registral recomenda que, ao averbar o recarregamento da garantia, o registrador deve consignar expressamente os efeitos jurídicos potencialmente lesivos a terceiros, como a existência da cláusula cross default, o respeito a direitos contraditórios e as informações essenciais sobre os dados dos sujeitos e do valor da dívida (capítulo VI.2.10.). 14. O recarregamento da alienação fiduciária em garantia sobre imóvel pode ser formalizado por instrumento particular, sem necessidade de reconhecimento de firma. Já o recarregamento da hipoteca depende de escritura pública, salvo se o imóvel for de valor inferior a 30 salários mínimos (capítulo IV.2.11.). 15. Há autonomia do devedor em quitar antecipadamente qualquer uma das obrigações penduradas na mesma garantia real recarregada (capítulo IV.2.12.). 16. A regra do no negative equity guarantee restringe-se à alienação fiduciária em garantia envolvendo financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial e fora do sistema dos consórcios (capítulo IV.3.). 17. Mesmo para casos de cobranças judiciais, a regra acima é válida e eficaz (capítulo IV.3.2.). 18. É cabível a aplicação do duty to mitigate the loss contra o credor fiduciário no caso de demora desarrazoada em iniciar a execução da dívida, com a consequente perda do direito sobre os encargos moratórios incidentes a partir da caracterização da inércia (capítulo IV.3.3.). 19. O próprio devedor tem legitimidade para iniciar o rito executivo extrajudicial da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis, desde que tenha sido frustrada a tentativa de solução amigável com o credor (capítulo IV.3.4.). 20. No segundo leilão envolvendo alienação fiduciária em garantia em casos de financiamentos de imóveis residenciais, o piso é o valor da dívida, ainda que seja inferior a 50% do valor do imóvel (capítulo IV.4.1.). 21. No segundo leilão nos demais casos de alienação fiduciária em garantia, há dois pisos: o principal (valor da dívida) e o piso subsidiário (metade do valor do imóvel). O piso subsidiário depende do exclusivo arbítrio do credor fiduciário e, por isso, não pode implicar o aumento do eventual saldo devedor remanescente a ser arcado pelo devedor no caso de negative equity. Além disso, na hipótese de o valor da dívida ser inferior ao do piso do segundo leilão, caberá ao credor pagar, em pecúnia, a diferença para o devedor (capítulo IV.4.2.). 22. Registro é para atos jurídicos destinados a instituição de direito real sobre imóvel ou a transmissão da propriedade, independentemente do tipo de ato jurídico escolhido pela parte (capítulo IV.5.). 23. RCPN pode colher prova de vida e de domicílio da pessoa natural para instituições interessadas (capítulo V). 24. Desjudicializou-se a busca e apreensão de bens móveis alienados fiduciariamente, fixando um rito perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos e facultando, no caso de veículos, o rito ocorrer perante o respectivo Detran (capítulo V). 25. Positiva-se a busca de soluções negociais no Cartório de Protestos (capítulo V). 26. Desburocratizou-se o procedimento de comunicação no procedimento de protesto (capítulo V). 27. Aprimoraram-se regras de emolumentos e de serviços da central nacional de serviços eletrônicos compartilhados no caso dos Cartórios de Protestos (capítulo V). 28. Disciplina-se a atuação dos cartórios de notas em cessões de precatórios (capítulo V). 29. Autoriza-se os notários a atuarem como árbitro, mediador e conciliador, além de certificarem a ocorrência de condições ou de outros elementos negociais, ademais de outras questões (capítulo V). 30. Tratou-se de legitimados a apresentarem extratos eletrônicos relativos a bens móveis no âmbito do SERP (capítulo V). 31. Desjudicializou-se a execução do crédito hipotecário (capítulo V). 32. Disciplina-se o procedimento nos ritos executivos extrajudiciais de crédito hipotecário ou fiduciário quando há mais de um crédito sobre o mesmo imóvel (capítulo V). 33. Autoriza-se que, em loteamentos, o mesmo imóvel sirva como garantia ao Município ou ao Distrito Federal na execução das obras de infraestrutura e a créditos constituídos em favor de credor em operações de financiamento a produção do lote urbanizado (capítulo V). 34. Admite-se, como título executivo extrajudicial, o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores (capítulo V). 35. Disciplinou-se o contrato de administração fiduciária de garantias (capítulo V). 36. Ajustara,-se regras de hipoteca (capítulo V). 37. Prevê-se multa de 0,5% ao mês contra o credor fiduciário no caso de atraso na entrega do termo de quitação (art. 25, § 1º-A, da lei 9.514/1997). 38. Realizaram-se outros ajustes na lei 9.514/1997 (arts. 24; 26; 26-A, § 2º; 27, §§ 2º-A, 2º-B, 3º, 11 e 12; 27-A; 30; 37; 39) (capítulo V).3 O Provimento CNJ n. 150/2023 trata da regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial, "prevista no artigo 216-B da Lei n.º 6.015/1973, na redação determinada pela recente lei 14.382/2022". Esta é entendida como "quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta, bem como as relativas cessões ou promessas de cessão, contanto que não haja direito de arrependimento exercitável" (Provimento CNJ n.º 150/2023, art. 1º). Como síntese dos pontos positivos do Provimento CNJ n.º 150/2023: 1. Esclareceu o Provimento 150/2023 do CNJ que o inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade previsto no art. 216-B, §1º, III, da lei 6.015/73 não é aquela que consta no inciso II e que deve ser realizada pelo registro imobiliário. 2. Diz-se isso porque ao se observar o que dispõe o art. 440-G, IV, do mencionado Provimento, vê-se que o inadimplemento que deve constar na ata notarial é aquela voltada às providências que deveriam ter sido tomadas pelo requerido do procedimento para a transmissão da propriedade e foram inadimplidas. 3. Assim, tem-se que já por esta razão de extrema utilidade o Provimento porque explica e demonstra a diferença entre o inadimplemento previsto no art. 216-B, §1º, II daquele previsto no art. 216-B, §1º, III, ambos da lei 6.015/1973. 4. Por sua vez, para a segunda situação tida como de possível controversa, possível observar que foi muito feliz o Provimento n. 150/2023, em seu art. 440-G, §6º, incisos I a VII, ao trazer itens exemplificativos daquilo que pode servir como prova da quitação do preço. 5. Dentre estes exemplos trazidos pelo Provimento, chamam atenção os incisos II e VII, que afirmam que poderia ser utilizado como prova de quitação tanto mensagens eletrônicas em que se reconheça que o pagamento foi efetuado, como a notificação extrajudicial destinada à constituição em mora da parte contrária. 6. Trata-se de relevante e moderna possibilidade conferida às partes envolvidas na promessa de compra e venda porque, salvo melhor juízo, viabiliza a comprovação quitação de forma célere e simplificada quando, por exemplo, um contratante notifica o outro para que aquele lhe outorgue a quitação e permanece a parte contrária inerte. 7. Em linhas gerais, de forma expressa o Provimento 150/2023 do CNJ relembra que a manifestação de vontade pode ser exarada de variadas maneiras, inclusive o silêncio, e que não exige forma ou formato específico. 8. Com estes exemplos de quitação entregues à comunidade jurídica, o CNJ alinha-se aos caros princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato. O primeiro porque induz um comportamento leal e diligente de ambas as partes; já o segundo porque faz com que o contrato seja capaz de transmitir a propriedade e com isso produza todos aqueles efeitos para o qual foi formalizado. 9. Desta forma, possível concluir que a adjudicação compulsória extrajudicial, editada pela lei 14.382/22 muito contribui tanto para a celeridade e efetivação dos contratos de promessa de compra e venda, como para a desobstrução do Poder Judiciário, já que viabiliza a solução de questões não litigiosas pela via extrajudicial. 10. Ao mesmo tempo, necessário registrar que além de ser de grande valia por fornecer um caminho padronizado dentro do direito notarial e registral para a adjudicação compulsória extrajudicial, o Provimento 150 de 11 de setembro de 2023 do CNJ presenteia o direito civil com uma espécie de releitura dos princípios contratuais da boa-fé e da função social ao incutir de forma expressa formas de interpretação de atos jurídicos praticados pelos contratantes.4 Do ponto de vista judicativo podemos destacar, entre outros, alguns entendimentos estáveis do Superior Tribunal de Justiça que envolvem o Direito dos Contratos, a seguir destacados: 1. "A inexistência de registro imobiliário da transação (contratos de gaveta) não impede a caracterização do fato gerador do laudêmio, sob pena de incentivar a realização de negócios jurídicos à margem da lei somente para evitar o pagamento dessa obrigação pecuniária (Tese julgada sob o rito do art. 1.036 do CPC/2015 - TEMA 1.142)".5 2. "É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família (Súmula n. 486/STJ)."6 3. "É possível a penhora do bem de família, quando a dívida exequenda for decorrente de contrato de compra e venda ou de promessa de compra e venda do próprio imóvel".7 4. "É possível a penhora do bem de família de fiador de contrato de locação, inclusive quando pactuado antes da vigência da lei 8.245/1991, que acrescentou o inciso VII ao art. 3º da lei 8.009/1990".8 5. "As seguradoras integrantes do consórcio do seguro obrigatório (DPVAT) são solidariamente responsáveis pelo pagamento das indenizações securitárias".9 6. "O fato gerador da cobertura do seguro obrigatório (DPVAT) é o acidente causador de dano pessoal provocado por veículo automotor terrestre ou por sua carga, em movimento ou não".10 7. "As instituições financeiras devem utilizar o Sistema Braille nas contratações bancárias (contratos bancários de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo) estabelecidas com a pessoa com deficiência visual, a fim de atender ao direito de informação do consumidor, indispensável à validade da contratação, e, em maior extensão, ao princípio da dignidade da pessoa humana".11 8. "É direito do devedor fiduciante a retirada dos aparelhos de adaptação de veículo automotor (pertenças) para direção por deficiente físico, se anexados ao bem principal em momento posterior à celebração do contrato fiduciário, quando houver o descumprimento do pacto e a consequente busca e apreensão do bem, entendimento que se coaduna, também, com a solidariedade social verificada na Constituição Federal e na lei 13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência".12 Do ponto de vista doutrinário, muitos livros foram atualizados e artigos publicados em revistas especializadas, sendo importante destacar a Revista Brasileira de Direito Contratual (IBDCONT) que chegou ao seu 17 número em 2023. Como se vê, desafios emergem para quem se dedica ao direito contratual no ano de 2024, sendo relevante que a comunidade jurídica se faça presente para encará-los, mormente com a possibilidade de reforma do Código Civil iniciada pelo Senado Federal13, com a formação de uma Comissão de Juristas para propor modificações que afetarão o Direito Civil e, por consequência, o direito contratual brasileiro. Desejo às pessoas boas festas e um excepcional 2024. __________ 1 QUINTANA, Bruna. Nova lei do Minha Casa Minha Vida aponta retrofit como solução inteligente. Acesso em 12dez2023. 2 Nota Técnica IBDCONT disponível aqui. Acesso em 12dez23. 3 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Disponível aqui. Acesso em 12dez2023. 4 WERNER, Felipe Probst. Os avanços da adjudicação compulsória extrajudicial após o provimento 150/23 do CNJ. Migalhas contratuais. Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 5 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 6 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 7 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 8 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 9 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 10 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 11 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 12 Disponível aqui. Acesso em 12dez23. 13 Disponível aqui. Acesso 12dez23.
Tema que invariavelmente gera dúvidas e às vezes apreensão é o da contratação pela internet, em especial por conta das dificuldades de compreender a estrutura lógica do negócio virtual digital, seus riscos e os elementos ocultos que estão por trás de uma transação eletrônica. Não se tem como duvidar, no entanto, que tais negócios já fazem parte do cotidiano e que já não é mais possível evitar a participação em negócios pela rede mundial de computadores. Contratos de consumo ou contratos em geral movimentam um sem-número de negócios todos os dias, com compras e vendas, locações, contratação de serviços, inclusive com novas formas de celebrar contratos tradicionais por meio eletrônico, com assinatura digital e a facilitação inclusive de atos públicos pela recente Lei dos Cartórios (lei 14.382/2022) que se tem denominado de Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP). Nesse contexto, sabe-se que muitas dessas negociações não têm em ambos os polos pessoas naturais "assinando" as manifestações de vontade, mas, sim, um robô dotado de conhecimento e de informações sobre a vida e os dados do outro contratante. Este é um dos muitos motivos pelos quais surgiu o PL 2.338/2023, de iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco, que no art. 1º descreve sua finalidade, de estabelecer "[...] normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de Inteligência Artificial (IA) no Brasil, visando proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico". O importante Projeto de Lei nasce privilegiado em qualidade e técnica, visto que advém do Ato n.º 4/2022 do Presidente do Senado Federal, que em 17 de fevereiro deste ano incumbiu uma Comissão de notáveis Juristas para subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo para os PLs 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021, com objetivo de regular o desenvolvimento e a aplicação da Inteligência Artificial no Brasil. A Comissão de Juristas, sob a presidência do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da professora Laura Schertel Mendes, contou os seguintes membros: Ana Frazão, Bruno Bioni, Danilo Doneda, Fabrício da Mota, Miriam Wimmer, Wederson Siqueira, Cláudia Lima Marques, Juliano Maranhão, Thiago Sombra, Georges Abboud, Frederico D'Almeida, Victor Marcel, Estela Aranha, Clara Iglesias Keller, Mariana Valente e Filipe Medon. Dentre os muitos temas importantes que o Projeto contempla, no presente texto, pretende-se tratar brevemente dos art. 7º e 8º, que compõem a Seção II, sob o título "Dos direitos associados a informação e compreensão das decisões tomadas por sistemas de Inteligência Artificial". O interesse existe porque é voz corrente a dificuldade que o leigo tem de conhecer e entender como a Inteligência Artificial toma decisões e/ou adota determinado comportamento nas relações entre o humano e a máquina. Dessa realidade, surge o direito de o contratante receber, previamente à contratação ou à utilização de sistemas, informações claras e adequadas quanto a sete situações, descritas nos incisos do aludido artigo da futura Lei. São eles: I - caráter automatizado da interação e da decisão em processos ou produtos que afetem a pessoa; II - descrição geral do sistema, tipos de decisões, recomendações ou previsões que se destina a fazer e consequências de sua utilização para a pessoa; III - identificação dos operadores do sistema de inteligência artificial e medidas de governança adotadas no desenvolvimento e emprego do sistema pela organização; IV - papel do sistema de inteligência artificial e dos humanos envolvidos no processo de tomada de decisão, previsão ou recomendação; V - categorias de dados pessoais utilizados no contexto do funcionamento do sistema de inteligência artificial; VI - medidas de segurança, de não-discriminação e de confiabilidade adotadas, incluindo acurácia, precisão e cobertura; e VII - outras informações definidas em regulamento. O § 1º ainda determina que, para além do fornecimento de informações de maneira completa em meio físico ou digital aberto ao público, quando a informação a ser obtida for a pertinente ao inc. I, ou seja, sobre o caráter automatizado da interação e da decisão em processos ou produtos que afetem a pessoa, deverá ser fornecida, quando possível, "com o uso de ícones ou símbolos facilmente reconhecíveis". Em outras palavras, o que se pretende é que a pessoa tenha condições de compreender sobre com quem está lidando e qual o poder que a máquina alcança na relação "interpessoal" em desenvolvimento. Mencione-se, ainda, que o conteúdo do § 2º determina que pessoas expostas a sistemas de reconhecimento de emoções ou a sistemas de categorização biométrica deverão ser claramente informadas sobre a utilização e o funcionamento do sistema no ambiente em que ocorrer a exposição. Caso se trate de pessoas vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, os sistemas de IA serão desenvolvidos para que estas pessoas consigam entender o seu funcionamento e seus direitos em face dos agentes de Inteligência Artificial. Tudo isso, para tornar realidade os princípios que o Projeto de Lei pretende estabelecer sobre o desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de Inteligência Artificial no Brasil, descritos no art. 3º, em especial o constante do inc. VI, da transparência, explicabilidade, intelegibilidade e auditabilidade. A tutela desse direito à compreensão dos sistemas de IA, encontra-se em sintonia com o direito de acesso consagrado no art. 9º da LGPD, uma vez que igualmente garante ao titular de dados obter informações relevantes sobre as operações de tratamento de seus dados pessoais. As mencionadas informações devem ser disponibilizadas de forma clara e satisfatória, acerca de, entre outros aspectos, a finalidade específica do tratamento, sua forma e duração. Como se vê da "Análise Preliminar do PL 2338/2023", publicada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, o tema é de grande relevância: Os recentes casos de investigação de aplicações baseadas em IA generativa (por exemplo, os grandes modelos de linguagem - large language models, como o ChatGPT) por autoridades de proteção de dados como a italiana, a espanhola e a canadense, já evidenciam a importância de se assegurar acesso a informações adequadas para o exercício de direitos do titular cujos dados pessoais são objeto de tratamento por tais sistemas de IA. A Rede Iberoamericana de Proteção de Dados também iniciou, em maio deste ano, uma ação coordenada para garantir a proteção de direitos e liberdades de indivíduos afetados pelo ChatGPT8.1 No sentido da análise da ANPD, o relatório final da Comissão de Juristas indica a importância de facultar o acesso do contratante aos meandros dos sistemas de IA, com vistas a transparência, mas que a explicabilidade não é tema simples, pois o direito a ser explicado para determinado funcionamento não é de todo simples, necessitando-se atentar para o segredo empresarial e as dificuldades de explicação técnica para leigos. Nas audiências públicas que aconteceram no âmbito dos trabalhos da Comissão de Juristas, destacam algumas manifestações sobre o tema da explicabilidade. Ana Paula Bialer, defende que: "[...] explicabilidade não é necessariamente entender absolutamente todos os caminhos feitos pelo algoritmo"2. Parece pertinente este raciocínio, uma vez que a mera curiosidade não faz nascer o direito à explicabilidade, mas o prejuízo da pessoa que somente possa ser reparado mediante explicação3. Nina da Hora expôs que a explicabilidade não pode ser dirigida apenas a pessoas bem engajadas nas discussões de IA, mas que deve se voltar para a sociedade. Concorda-se, neste sentido, que a explicação deve ser acessível a todos o que dela precisem, não apenas aos que tem facilidade de compreensão em TI4. Ao mesmo tempo, parece impactante a manifestação de Paulo Rená, ao sugerir que: "[...] se você não consegue explicar porque é que a sua ferramenta comete uma discriminação, ela não pode ser oferecida para o público"5. Por fim, o presente autor concorda com Gabrielle Sarlet que se manifesta no sentido de que o devido processo informacional seria uma ressignificação da ampla defesa e contraditório, de forma que a transparência seria um direito fundamental. Destacou, ainda, da necessidade de "medidas concretas" de explicabilidade, de interpretabilidade e de contestabilidade6. Uma saída interessante - e resumida - para a questão, talvez possa ser a sugestão de Virgílio Almeida que sugere "[...] estabelecer práticas para auditoria e regras para tornar os sistemas mais transparentes"7. Fácil perceber que não será tarefa fácil a concretização da disposição legal relativa à transparência por meio da explicabilidade, em especial porque a própria natureza dos sistemas de IA revelam grande complexidade algorítmica dificilmente compreensível pela pessoa leiga. Parece, no entanto, que não se fala tão somente em explicar, mas, sim, como o próprio art. 3º, VI, determina, a informação deverá ser transparente, porque explicável, intelegível e auditável. Assim, aquele que se sentir prejudicado, fundamentadamente, nas situações do art. 7º e 8º do PL ora em discussão, terá a seu favor a possibilidade de exigir explicações, para a informação ser compreendida (inteligibilidade) e isso somente será possível se o sistema for auditável. Tudo isso constrói a ideia de transparência.   Sobre o problema que se tem levantado de que "abrir, expor, o sistema" por meio da explicabilidade geraria risco de segurança à empresa responsável pela IA ou revelaria seus segredos empresariais, trata-se de empreendimento que no próprio contexto do desenvolvimento e dos riscos do negócio. Em outras palavras, se a empresa deseja se valer de ferramentas de Inteligência Artificial para alcançar seus objetivos de lucro, deve prever o resultado do uso e fazer acontecer a prevenção, pois o que prevalece no contexto do mercado e da sociedade são os direitos fundamentais das pessoas com quem se relaciona. O ter não pode existir em detrimento do ser. A atividade empresarial não pode ser favorecida em detrimento das pessoas e de seus dados pessoais que, repise-se, são direitos fundamentais descritos no art. 5º, inc. LXXIX, da Constituição Federal. Decorrência lógica da proteção dos direitos associados à informação e à compreensão das decisões tomadas pela IA (art. 7º e 8º do PL 2338/2023), ou, se preferir, sua concretização e procedimentalização, estão nas Seções III e IV, dos art. 9º a 12, sob o título: "Do direito de contestar decisões e de solicitar intervenção humana" e, também, "Do direito à não-discriminação e à correção de vieses discriminatórios diretos, indiretos, ilegais ou abusivos. Em todo esse contexto, pergunta que se reitera em diversos espaços, jurídicos ou não, sobre se a Inteligência Artificial deve ser objeto de regulação estatal ou se deve o mercado se autorregular, o presente autor entende que sim, tal regulação é indispensável, como forma de realização e efetivação de direitos fundamentais. Concorda-se, para responder a tal indagação, com os termos utilizados no Relatório Final da Comissão: Assim, o peso da regulação é dinamicamente calibrado de acordo com os potenciais riscos do contexto de aplicação da tecnologia. Foram estabelecidas, de forma simétrica aos direitos, determinadas medidas gerais e específicas de governança para, respectivamente, sistemas de inteligência artificial com qualquer grau de risco e para os categorizados como de alto risco8. E tudo isso ficará mais fácil de ser implementado pelos entes regulados se houver conscientização da necessidade de se efetivamente - e não somente no papel - tratar de forma adequada os dados pessoais, em todas as relações, inclusive nas contratuais. Metodologias facilitadoras - e porque não dizer obrigatórias - podem ser encontradas, por exemplo, nos programas de Governança e de Compliance9, que serão adequados a auxiliar na estruturação de procedimentos de categorização de riscos descrita nos art. 13 a 18 do ora discutido PL, assim como de Governança elencados nos art. 19 a 21 e no art. 30. Diga-se, também, da necessidade de avaliação de impacto algorítmico, previsto nos art. 22 a 26, também do PL.  Por fim, considerando-se que o Código Civil é lei geral no que seja pertinente aos contratos, e que está em andamento os trabalhos da Comissão de Juristas incumbida de construir Projeto de Lei para sua revisão e atualização10, parece razoável que os princípios aqui discutidos, em especial o da explicabilidade, possam ser nele inseridos, para fortalecer o conteúdo de confiabilidade e transparência dos contratos efetivados por meio eletrônico11, em especial aqueles que tenham auxílio de sistemas de Inteligência Artificial. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 27/10/2023. 2 Disponível aqui. Acesso em: 28/10/2023. 3 Op. cit. p. 109. 4 Op. cit. p. 113. 5 Op. cit. p. 115. 6 Op. cit. p. 115. 7 Op. cit. p. 115. 8 Disponível aqui, p. 11. 9 Sobre compliance digital em proteção de dados pessoais, leia mais em: SILVA, Alexandre Barbosa da; FRANÇA, Phillip Gil. Compliance digital em proteção de dados pessoais: a necessidade de humanização da regulação de dados nas instituições. In: Direito civil e tecnologia. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 353-370. 10 Disponível aqui. 11 Para ler mais sobre Contratos Eletrônicos, por todos, indica-se: MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 4. ed. Barueri: Atlas, 2023.
No Direito brasileiro a assinatura de um contrato, por si só, não é capaz de transferir a propriedade de uma coisa. No caso de imóveis, para que a propriedade seja transferida será necessário o registro de determinado título junto à matrícula do bem para que, então, seja reconhecida pelo direito a transmissão da propriedade. Dentro do rol de contratos relativos ao direito imobiliário, assume proeminência aquele da promessa de compra e venda, no qual uma das partes se obriga a pagar o preço e, outra, a outorgar escritura definitiva de compra e venda daquele imóvel objeto do negócio quando a obrigação da parte contrária estiver satisfeita. Voluntariamente ou não, nem sempre as partes cumprem com suas obrigações. Assim como o promitente adquirente pode não vir a realizar todos os pagamentos, pode ocorrer do promitente vendedor deixar de outorgar a escritura de compra e venda definitiva do imóvel. O foco deste breve estudo será a segunda parte da frase acima exposta, isto é, a eventual não outorga da escritura de compra e venda do imóvel objeto daquele contrato preliminar de promessa de compra e venda. A consequência mais comum a este inadimplemento, que na maioria dos casos decorre da parte que está a prometer a venda do bem, é a necessidade de uma adjudicação1 compulsória. A adjudicação compulsória é um instrumento originalmente utilizado pelo direito com o objetivo de transferir, via decisão judicial, um bem de um proprietário a quem de direito, independente da vontade daquele primeiro. Neste sentido, dispõe o art. 1.418 do Código Civil de 2002 que uma vez existindo registro de uma promessa de compra e venda, estando quitado o preço e cumpridas as obrigações pelo promitente adquirente, lhe cabe, em caso de recusa do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva de compra e venda, o direito à adjudicação compulsória do imóvel. Muito já se debateu acerca do art. 1.418 do Código Civil de 2002 e a imprescindibilidade de se ter uma promessa de compra e venda registrada junto à matrícula do imóvel para que se pudesse obter o direito à adjudicação compulsória. Tal tema, contudo, esgotou-se com a edição da Súmula 239 do STJ, posteriormente ratificada pelo Enunciado 95 da I Jornada de Direito Civil que assim dispôs: "O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis". A matéria assumiu novos contornos quando a lei 14.382/2022 criou o instituto da adjudicação compulsória extrajudicial e incluiu o art. 216-B na Lei 6.015/73.  Com isso foi criada a possibilidade de realizar-se a transferência forçada da propriedade, após quitado o preço da promessa de compra e venda, sem a necessidade de ser a promessa de compra e venda registrada junto à matrícula imobiliária ou mesmo de recorrer-se ao Poder Judiciário. Como todo procedimento extrajudicial, para que se possa a adjudicação ser feita fora do âmbito judicial dispôs a Lei 14.382/2002 que, em primeiro lugar, não poderá existir litígio sobre o direito perseguido pelo promitente comprador. Além disso, exigiu o legislador que para a adjudicação compulsória fossem trazidos: i) instrumento da promessa de compra e venda, de cessão ou sucessão; ii) prova do inadimplemento do promitente vendedor que não celebra a escritura de compra e venda após ser notificado pelo cartório de registro de imóveis dentro de 15 dias; iii) ata notarial celebrada por tabelião que conste a identificação do imóvel, dados do promitente comprador, prova do pagamento do preço e caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar a escritura pública de compra e venda; iv) certidões que demonstrem que inexiste litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda objeto da adjudicação; e v) comprovante de pagamento do ITBI. É bem verdade que a nova modalidade de adjudicação compulsória criado pela lei 14.382/2022 tem como escopo facilitar a transmissão da propriedade de bens imóveis para aqueles adquirentes adimplentes que, por qualquer razão, não conseguiram viabilizar a formalização de uma escritura de compra e venda para si. Ocorre que após a edição da supramencionada lei federal verificou-se alguns pontos que poderiam ser interpretados de forma divergente entre registros imobiliários e tabelionatos. Dentre os principais, cito a notificação para constituição do promitente vendedor em mora e a prova do efetivo pagamento do preço por parte do promitente comprador. A título exemplificativo, considerada apenas a regra insculpida no art. 216-B da lei 6.015/73 seria possível compreender que para realizar-se o procedimento precisava o promitente comprador: i) solicitar que o registro de imóveis realizasse a prévia notificação do promitente comprador; ii) certificada a mora pelo registrador, comparecer ao tabelionato para a lavratura da ata notarial; iii) com a ata notarial, retornar ao registro de imóveis para finalizar aquele procedimento outrora iniciado. Para sanar estas divergências de interpretação e impor uma conduta unificada nacional, o CNJ editou o Provimento 150, de 11 de setembro de 2023 que visa padronizar o procedimento da adjudicação compulsória extrajudicial no país. Muito bem elaborado, o Provimento estabelece uma ordem para a realização do procedimento e organiza uma série de questões intrínsecas ao direito notarial e registral. Dentro deste trabalho, verifica-se que foi dada atenção e apresentada solução para aqueles dois pontos principais que poderiam ser interpretados de forma divergente pelos registros imobiliários e tabelionatos: notificação para constituição do promitente vendedor em mora e a prova do efetivo pagamento do preço por parte do promitente comprador. Para o primeira situação, esclareceu o Provimento 150/2023 do CNJ que o inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade previsto no art. 216-B, §1º, III, da lei 6.015/73 não é aquela que consta no inciso II e que deve ser realizada pelo registro imobiliário. Diz-se isso porque ao se observar o que dispõe o art. 440-G, IV, do mencionado Provimento, vê-se que o inadimplemento que deve constar na ata notarial é aquela voltada às providências que deveriam ter sido tomadas pelo requerido do procedimento para a transmissão da propriedade e foram inadimplidas. Assim, tem-se que já por esta razão de extrema utilidade o Provimento porque explica e demonstra a diferença entre o inadimplemento previsto no art. 216-B, §1º, II daquele previsto no art. 216-B, §1º, III, ambos da lei 6.015/73. Por sua vez, para a segunda situação tida como de possível controversa, possível observar que foi muito feliz o Provimento 150/2023, em seu art. 440-G, §6º, incisos I a VII, ao trazer itens exemplificativos daquilo que pode servir como prova da quitação do preço. Dentre estes exemplos trazidos pelo Provimento, chamam atenção os incisos II e VII, que afirmam que poderia ser utilizado como prova de quitação tanto mensagens eletrônicas em que se reconheça que o pagamento foi efetuado, como a notificação extrajudicial destinada à constituição em mora da parte contrária. Trata-se de relevante e moderna possibilidade conferida às partes envolvidas na promessa de compra e venda porque, salvo melhor juízo, viabiliza a comprovação quitação de forma célere e simplificada quando, por exemplo, um contratante notifica o outro para que aquele lhe outorgue a quitação e permanece a parte contrária inerte. Em linhas gerais, de forma expressa o Provimento 150/2023 do CNJ relembra que a manifestação de vontade pode ser exarada de variadas maneiras, inclusive o silêncio, e que não exige forma ou formato específico. Com estes exemplos de quitação entregues à comunidade jurídica, o CNJ alinha-se aos caros princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato. O primeiro porque induz um comportamento leal e diligente de ambas as partes; já o segundo porque faz com que o contrato seja capaz de transmitir a propriedade e com isso produza todos aqueles efeitos para o qual foi formalizado. Desta forma, possível concluir que a adjudicação compulsória extrajudicial, editada pela Lei 14.382/22 muito contribui tanto para a celeridade e efetivação dos contratos de promessa de compra e venda, como para a desobstrução do Poder Judiciário, já que viabiliza a solução de questões não litigiosas pela via extrajudicial. Ao mesmo tempo, necessário registrar que além de ser de grande valia por fornecer um caminho padronizado dentro do direito notarial e registral para a adjudicação compulsória extrajudicial, o Provimento 150 de 11 de setembro de 2023 do CNJ presenteia o direito civil com uma espécie de releitura dos princípios contratuais da boa-fé e da função social ao incutir de forma expressa formas de interpretação de atos jurídicos praticados pelos contratantes. __________ 1 Adjudicar é palavra de origem latina formada pelo prefixo ad, cujo sentido é de "trazer para si", e a palavra judicare, que traz a lógica de haver uma decisão ou envolvimento judicial. Possível seria dizer, portanto, que adjudicar é trazer algo para si por meio de uma decisão judicial. 
Introdução É de conhecimento geral no mundo jurídico que o inadimplemento obrigacional pode se dar tanto totalmente quanto parcialmente, sendo que a diferença entre ambos é, essencialmente, a utilidade da obrigação para o credor - se não há mais interesse do credor no cumprimento da obrigação, trata-se de inadimplemento total (ou absoluto), enquanto que, se ainda há interesse por parte do credor, o inadimplemento é considerado parcial. A aparente dualidade entre o inadimplemento total e o inadimplemento parcial, no entanto, não alcança todas as situações de não cumprimento das obrigações. Uma delas é o inadimplemento eficiente, que será abordado neste breve trabalho.  O ponto de partida  Juliana Krueger Pela define inadimplemento eficiente (efficient breach) como a situação em que os custos que o devedor tem para cumprir uma prestação excedem o benefício do credor em ter a prestação adimplida. Assim, sempre que isso acontecesse, o não cumprimento da obrigação seria economicamente eficiente e o inadimplemento deliberado estaria autorizado. Em seu trabalho "Inadimplemento Eficiente (Efficient Breach) nos Contratos Empresariais", Juliana Kruger Pela (i) expõe alguns casos concretos em que se verifica o problema do inadimplemento eficiente, (ii) demonstra possíveis soluções jurídicas para tal situação, (iii) aborda os obstáculos legais à sua aplicabilidade no Brasil e, por fim, (iv) critica a unificação do direito contratual positivo brasileiro, que teria feito com que esses obstáculos legais incidissem indistintamente sobre os contratos cíveis e empresariais. Entendemos que a crítica feita à unificação é merecida. E, para que isso fique claro, convém analisar se os obstáculos legais à aplicação da teoria do inadimplemento eficiente no Brasil subsistem à análise teleológica de dois princípios basilares da teoria geral dos contratos: o princípio da boa-fé e o princípio da função social. A boa-fé como garantia de um contrato empresarial eficiente  Dentre os obstáculos à utilização do conceito de inadimplemento eficiente no Brasil, o primeiro que chama atenção é a cláusula geral da boa-fé (Art. 422 do Código Civil). A ideia é que a boa-fé não se harmonizaria com o inadimplemento deliberado, uma vez que esta impõe às partes contratantes o dever anexo de cooperar para a execução do contrato. Ocorre que outro dever anexo ínsito à boa-fé é o de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio, "[...] esclarecendo os fatos relevantes e as situações atinentes à contratação, procurando razoavelmente equilibrar as prestações [...]" (AZEVEDO, p. 29, 2019), e, nesse ponto, a crítica à unificação do direito contratual positivo brasileiro começa a fazer sentido. Se o intérprete considerasse as diferenças entre os contratos cíveis e empresariais, especialmente no que tange à alocação de riscos e objetivos, chegaria à conclusão de que, nos contratos empresariais, o dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio auxilia na avaliação que ela fará sobre os riscos desse negócio e sobre seus impactos no mercado. Isso, sem dúvida, é cooperar na execução do contrato, até porque a boa-fé objetiva "exige que as partes atuem de modo a garantir obtenção, por ambas, do resultado útil programado" (PEREIRA, p. 21, 2020). Nesse contexto, portanto, um inadimplemento eficiente pode se tornar vantajoso para uma das partes, ou para ambas, sem violar a boa-fé objetiva. Basta, para isso, que o cálculo feito pela parte contratante para saber o que fica mais caro (cumprir ou não cumprir o contrato) parta das informações sobre o conteúdo do contrato prestadas pela outra. Função social e inadimplemento eficiente como instrumentos para a preservação de direitos coletivos Se a cláusula da boa-fé não é obstáculo à aplicabilidade do inadimplemento eficiente no Brasil, menos ainda o é a cláusula da função social (Art. 421 do Código Civil). A premissa é a de que, quando exercida nos limites da função social, a liberdade de contratar deixa de focar apenas nas pretensões individuais dos contratantes e se torna um instrumento de preservação de interesses coletivos, já que "o contrato não pode ser mais concebido como uma bolha que envolve as partes [...]" (TARTUCE, p. 100, 2017). Como dito anteriormente, antes de celebrar um contrato empresarial, as partes contratantes avaliam os riscos e os impactos do contrato no mercado. Se elas fazem essa avaliação, o que está em jogo não é apenas uma pretensão subjetiva entre os contratantes, mas também uma disputa entre ambos os contratantes e os demais agentes econômicos do mercado. Ao interpretar o contrato dessa maneira, o intérprete faz uso da cláusula da função social, pois este princípio "[...] funciona como uma agulha, forte e contundente, que fura a bolha [...]" (TARTUCE, p. 101, 2017). Portanto, escolher inadimplir deliberadamente um contrato empresarial, nesse contexto, pode ir além de proporcionar vantagens para os agentes econômicos contratantes. Essa escolha pode proporcionar vantagens a consumidores, por exemplo, na medida em que inadimplir pode fazer com que um agente econômico fuja da onerosidade excessiva e, com isso, consiga se posicionar melhor no mercado diante de outro agente econômico. A rapidez, a agilidade e o dinamismo característicos dos contratos empresariais, aliás, têm o objetivo de evitar a onerosidade e a lesividade (MARTINS, p. 447, 2015). Além disso, no direito empresarial, a esperteza e a sagacidade dos agentes econômicos são presumidas (FORGIONI, p. 119, 2016). Logo, a pergunta que fica é: não é ágil e sagaz o devedor que escolhe não cumprir um contrato por perceber que o custo para o seu cumprimento é superior à vantagem que ele proporcionará para o credor, economiza com isso, e consegue concorrer com outros agentes econômicos, baixando os preços de determinado produto ou serviço? Entendemos que sim. E entendemos também que essa sagacidade atende muito bem à função social dos contratos empresariais, justificando novamente a crítica feita por Juliana Kruger Pela à unificação do direito contratual positivo brasileiro. Afinal de contas, são nos contratos empresariais que os interesses concorrenciais se manifestam e "se um dos fundamentos do bem-estar do consumidor é sua liberdade de escolha entre várias opções diferenciadas [...] não há como considerar uma regra aplicada explicitamente com o objetivo de proteger a competição 'ineficiente' do ponto de vista do consumidor" (SALOMÃO FILHO, p. 76, 2013). Considerações finais Como se pôde demonstrar aqui, o inadimplemento eficiente das obrigações, como um terceiro gênero de inadimplemento obrigacional, não deve ser considerado incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos não por uma suposta incompatibilidade com as cláusulas gerais da boa-fé (Art. 422 do Código Civil) e da função social dos contratos (Art. 421 do Código Civil). Ao contrário, embora possam haver restrições à aplicação desse instituto aos contratos de natureza civil, não se vislumbra qualquer tipo de incompatibilidade quando se foca nos contratos de natureza empresarial, que possuem características próprias e exigem habilidades diferentes das partes. Essas breves objeções à suposta inaplicabilidade jurídica do inadimplemento eficiente no Brasil demonstram que a dualidade entre inadimplemento total e inadimplemento parcial é aparente, pois o interesse do devedor no cumprimento da obrigação também pode definir o tipo de inadimplemento. Essa discussão, longe de ser estritamente acadêmica, é extremamente relevante do ponto de vista prático, pois são nessas áreas cinzentas que os conflitos aparecem e se justifica o trabalho do jurista.  Referências AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos. ed. 4. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: Teoria Geral e Aplicação. ed. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2016. MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. ed. 38. Rio de Janeiro: Forense, 2015. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. ed. 24. Rio de Janeiro: Forense, 2020. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2013. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. ed. 12. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
As mudanças tecnológicas agem como um relevante vetor de alteração da dinâmica social e que, junto a outros fatores, posicionam as sociedades contemporâneas em uma outra fase. Assim sendo, não se pode deixar de considerar o impacto que a tecnologia tem causado nas mais diversas áreas. A propagação no uso das tecnologias de comunicação e informação tem aferido mudanças nas relações sociais, nos processos comerciais e organizacionais, nos sistemas de gestão, na educação, e não seria diferente com a área jurídica, notadamente, as relações negociais. No contexto atual, são inúmeros os contratos utilizados para aquisição de produtos e serviços que podem ser realizados por meio de diversas ferramentas tecnológicas. Vivencia-se a denominada Quarta Revolução Industrial, sendo inegáveis as transformações, quase que instantâneas, trazidas pela utilização da tecnologia. Expressões como "Tecnologia 4.0", 'Industria 4.0", "Direito 4.0" e "Artificial General Intelligence - AGI" são utilizadas para caracterizar essa nova fase. Assim, os dispositivos tecnológicos estão sendo desenvolvidos para se tornarem capazes de operar utilizando uma lógica semelhante ao raciocínio humano, conferindo-lhes certa aptidão para analisar dados, entender e solucionar problemas e, em alguns casos, direcionar a tomada de decisão. Na década de 1950, o conceito de inteligência artificial foi criado por John McCarthy, cientista da computação, que a definiu como sendo a projeção de uma rede computacional desenvolvida para executar um conjunto definido de ações. Nessa mesma década, Alan Turing apresentou produções científicas individuais que indicavam poder ser a máquina programada para aprender por meio da imitação da inteligência humana. Assim, a inteligência artificial é um termo amplo que abrange tecnologias desenvolvidas para que as máquinas (ou algoritmos) possam, partindo de dados obtidos, construir raciocínios mais assertivos e rápidos, levando a predições que subsidiam a tomada de decisão. Em algumas situações, observa-se que o nível de sofisticação da tecnologia permite inclusive que a máquina "analise" uma situação e conduza a uma "solução", mais célere e assertiva, a partir do cruzamento de dados. A evolução tecnológica disponibiliza dispositivos dotados de sistematização de informações que se assemelham a atividades humanas como "pensar", "interpretar", "raciocinar". Com as informações recebidas, os sistemas que integram a I.A podem, fazendo um caminho semelhante ao utilizado pelo cérebro humano, através de uma rede neural formada por  "neurônios artificiais", escrever um texto científico, redigir um contrato, influenciar pessoas para realizarem compras de um determinado produto ou contratarem um serviço. Em paralelo, discute-se sobre a proteção de dados pessoais e como é necessária a regulamentação quanto ao uso da I.A. A tecnologia vem sendo utilizada, por exemplo, para avaliar, a partir de dados coletados em diversas bases, a vida financeira de um indivíduo. A partir dessa avaliação, decide-se se determinado indivíduo deve receber um empréstimo de instituição financeira ou não, inclusive com taxas de juros personalizadas. Ou seja, a avaliação de risco de inadimplência deixa de ser de um ser humano, no caso, o gerente da instituição, e passa a ser de um sistema. As transformações trazidas pela I.A. exigem que seja realizada uma análise apurada por parte do direito contratual, do direito consumerista e da responsabilidade civil. As suas consequências ainda estão sendo observadas e não podem ser previstas com precisão, apesar de haver normas jurídicas que podem ser utilizadas na proteção do consumidor vulnerável. A modernização traz consigo o risco da ocorrência de danos pouco conhecidos ou totalmente desconhecidos. De acordo com Miragem (2019, p. 15) é "... comum às atividades associadas à tecnologia da informação e sua multifacetada e crescente utilização para uma série de finalidades, a identificação de novos riscos". O direito civil constitucional possui uma substancial base principiológica, utilizando-se dos valores e princípios constitucionais, como os da liberdade, igualdade, boa-fé, informação, precaução, reparação integral dos danos, entre outros, para orientar as relações no âmbito privado. A importância da constitucionalização do direito civil dá-se pela implementação da denominada sociedade de risco. O contrato eletrônico de consumo é um tipo de contrato elaborado e executado por um sistema de software. A inteligência artificial faz uso de técnicas de reconhecimento de padrões e correlações significativas para alavancar o comércio. Afirma Lee (2019, p.251) que "quando a força criativa e destruidora da IA está sendo sentida ao mesmo tempo no mundo todo, precisamos olhar uns para os outros em busca de apoio e inspiração". Ou seja, todos precisam aprender como lidar com essa nova realidade e as suas consequências, o que inclui a existência de danos.  No direito consumerista há princípios que garantem a proteção do consumidor e, eventualmente, de terceiros que não estejam diretamente envolvidos na relação contratual contra os riscos que porventura possam existir. As relações negociais podem e devem se valer dos princípios e regras contidos no Código Civil quando assim for necessário, Portanto, os princípios comuns a ambos os regimes, em razão da vocação normativa que cada um ostenta, sofrem a calibração das exigências valorativas, cujo resultado é a variação de intensidade de sua aplicação e nas regras que criam à hipótese fática. ... O ponto de toque entre o direito civil e o direito do consumidor é a seara contratual, ou melhor dizendo, as relações negociais. (Pieroni, 2021, p. 52) O consumidor, parte vulnerável da relação, não tem a exata compreensão dos riscos advindos desta era digital, que transformou a forma como os contratos são realizados. Esta modificação acarreta a necessidade de uma interpretação das normas jurídicas já existentes, como o Código de Defesa do Consumidor, adequando a realidade transacional tecnológica. De acordo com Divino (2021, p.660) Da amplitude e da efetividade das garantias asseguradas pelo CDC aos vulneráveis, a possibilidade de que a sociedade da informação se desenvolva para com os entes inteligentes artificialmente é uma tarefa a ser pautada e evidenciada pelos juristas. Nesse momento, deve-se percorrer ao exame das principais atribuições que envolvem os ganhos e riscos para a utilização dessas tecnologias. Deve-se refletir, conscientemente, sobre os interesses e verificar em quais casos poderá o CDC atuar para a defesa dos direitos lesados. Várias relações contratuais são realizadas entre o homem e a máquina. Mas será que o consumidor possui conhecimento de que está negociando com uma inteligência artificial programada para dar lucro, baseada em dados antes extraídos? Não se pode partir do pressuposto de que todo e qualquer consumidor sabe que há a utilização de uma tecnologia programada a favor do fornecedor. Um dos deveres previstos no CDC é o da informação clara e precisa. As instituições bancárias, por exemplo, estão substituindo as agências físicas por aplicativos e por "chatsbots", ou seja, por um programa que leva as pessoas a terem a sensação de que estão interagindo com outra pessoa e não com uma ferramenta tecnológica. Os chatbots tentam simular a conversação como se esta estivesse acontecendo como outro ser humano e não com uma máquina. A depender, por exemplo, do grau de escolaridade ou do grau de compreensão do consumidor, poderá haver inexatidão nas informações fornecidas por este a máquina; e, até mesmo, a incompreensão dos termos utilizados pela inteligência artificial, o que pode acarretar imprecisões na tomada de decisão. Divino (2021) considera ser a dificuldade na compreensão semântica de termos uma das causas de possíveis danos decorrentes de um pedido incorreto ou de um aconselhamento  desfavorável ao consumidor. A inteligência artificial utiliza-se das informações e do cruzamento destas para influenciar e induzir o consumidor. Assim, é dever do fornecedor, que utiliza a inteligência artificial e a obtenção e cruzamento de dados, arcar com os riscos da sua atividade, sendo este um risco inerente. Desta forma, a responsabilidade pelos danos conhecidos ou que ainda virão a ser observados, é objetiva. Princípios como o da boa-fé, o da precaução e da prevenção devem ser entendidos como pilares da responsabilização objetiva do fornecedor pelo uso da inteligência artificial nas relações de consumo. Nem sempre o Direito, como ciência e como agente regulador das relações, conseguirá prever ou evitar os danos causados pela modernização e transformação da sociedade. O princípio da prevenção será aplicado quando o risco do dano for atual, concreto e real. Trata-se do perigo, que é o risco conhecido, como, por exemplo, o limite de velocidade nas estradas ou os exames médicos que antecedem uma intervenção cirúrgica. Já o princípio da precaução deve ser aplicado no caso de riscos potenciais ou hipotéticos, abstratos e que possam levar aos chamados danos graves e irreversíveis. É o "risco do risco". (Rosenvald, 2017, p. 120)   A modernização da sociedade por meio da tecnologia traz embutido o risco. De acordo com Rosenvald (2017, p. 22), "... O risco é uma característica definidora de nossa era. Tudo se processa 'reflexivamente' em uma civilização que ameaça a si própria". As ações do homem, no campo da inteligência artificial, trazem consequências imprevisíveis. As escolhas realizadas podem gerar danos não almejados. E quem responderá por estes? No caso da relação consumerista, o fornecedor, logicamente. O reconhecimento e o fortalecimento de procedimentos que conforme padrões de integridade dos envolvidos na atividade digital, sobretudo naquelas voltadas as relações obrigacionais, são medidas que se impõem, como forma de prevenção de riscos de prejuízos e de agressões a direitos subjetivos (SILVA, FRANÇA, 2021 p. 522) A I.A. é empregada para gerar ganhos de produtividade, o que necessariamente leva a ganhos financeiros para os fornecedores. No entanto, os benefícios financeiros, como por meio do aumento na contratação de um determinado serviço, pela utilização de algoritmos ou outros sistemas, deve observar as regras contratuais como a do dever de informação,a da boa-fé objetiva e da segurança. Há limites jurídicos que devem ser observados quando da contratação por meio da inteligência artificial, sendo estes os mesmos aplicados para os contratos que não as utilizam, devendo haver um cuidado maior na observação das regras de direito contratual e consumerista quando se está diante da tecnologia. O fornecedor, pessoa natural ou jurídica, responde em face do consumidor pelo dano que lhe for causado. O que se pretende entender é se o uso desses algoritmos ou dispositivos são efetivamente benéficos para o consumidor. Ou, se são projetados para que o fornecedor sempre obtenha vantagem, causando danos. São muitas as indagações para as quais ainda não se tem a resposta de forma consolidada. E o Poder Judiciário brasileiro precisa se preparar para as demandas e questionamentos que virão, bem como para o reconhecimento de outros danos que podem surgir além dos já reconhecidos. O Poder Judiciário deve ficar atento para não indeferir demandas que venham a trazer indagações sobre uma decisão tomada pelo consumidor quando da aplicação de sistemas automatizados, baseando-se na autonomia da vontade, favorecendo, assim, o fornecedor causador do dano. A vulnerabilidade do consumidor fica mais evidente quando se está diante de contratações por meio de inteligência artificial. A legislação brasileira já possui regras de proteção ao consumidor que podem ser aplicadas em casos de danos causados pela utilização da inteligência artificial. Ao direito cabe a regulamentação e o equilíbrio das relações sociais através da adequação às mudanças advindas da modernização, em especial quando se tem a contratação por meio da utilização de inteligência artificial. Se o Poder Judiciário se abster de aplicar os princípios e regras jurídicas já existentes que protegem o consumidor, estará contribuindo para o aumento dos danos, inclusive, através da violação de direitos da personalidade do consumidor, além dos danos materiais efetivos. A segurança jurídica precisa ser garantida! Referências bibliográficas DIVINO, Sthéfano Bruno Santosa. Desafios e benefícios da inteligência artificial para o direito do consumidor. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p.654-688, 2021. LEE, Kai-Fu. Inteligência artificial [recurso eletrônico] : como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos / Kai-Fu Lee ; tradução Marcelo Barbão. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. MIRAGEM, Bruno. A lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018) e o direito do consumidor. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 1009, p.1-41, 2019. Disponível aqui. Acesso em 27 jul 2023. PIERONI, Aline Martinez. Princípios gerais e princípios contratuais: Código Civil X Código de defesa do consumidor. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 28, p. 43-75, abr./jun. 2021. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. SILVA, Alexandre Barbosa da; FRANÇA, Phillip Gil. Novas Tecnologias e o futuro das relações obrigacionais privadas na era da inteligência artificial: a preponderância do "fator humano". In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos. CATALAN, Marcos. MALHEIROS, Pablo (Coord). Direito Civil e tecnologia. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
1. Da ausência de regime legal do cartão de crédito no Brasil De acordo com o último censo de 2022 divulgado pelo IBGE, a população total, no Brasil, atingiu a marca de 203 milhões de habitantes. Segundo os registros do Banco Central, existiam, emitidos e válidos, no último trimestre de 2022, um total de 208 milhões de cartões de crédito vinculados aos bancos brasileiros.1 Assim, em princípio, todo habitante do país é possuidor de um cartão de crédito, apesar de que só podem ser contratantes desses instrumentos de crédito pessoas maiores e capazes. Estamos diante, portanto, de um fenômeno que deve ser considerado como geral ou quase universal na sociedade brasileira: salvo raras exceções, todo cidadão capaz é contratante de cartão de crédito, hoje instalado no próprio aparelho celular. Apesar da destacada relevância do cartão de crédito como um dos mais utilizados e importantes instrumentos de pagamento e de assunção de obrigações creditícias na civilização contemporânea, substituindo o dinheiro e os ancestrais títulos de crédito cartulares, em papel, até hoje o cartão de crédito, o novo dinheiro plástico, não foi objeto ou merecedor de regulação legal específica no direito brasileiro. Não existe nenhuma lei tipificando e disciplinando as operações físicas e eletrônicas, na internet, com cartões de crédito, com exceção da recente lei 14.181/21, que alterou o Código de Defesa do Consumidor. Em qualquer país desenvolvido no mundo, as operações com cartões de crédito e débito são reguladas por lei. Na União Europeia, diversas diretivas do Parlamento e do Conselho estabelecem normas específicas para a regulação dos meios de pagamento com o uso de cartão de crédito (Diretiva 2007/64/CE, Diretiva 2008/48/CE, Diretiva 2011/83/EU e Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu). No direito contratual europeu, operação com cartão de crédito é a "operação de pagamento baseada em cartão cujo montante é debitado total ou parcialmente ao ordenante em data mensal específica previamente acordada, de acordo com uma facilidade de crédito preestabelecida, com ou sem juros".2 A partir dessa definição, diversas regras amplas e detalhadas disciplinam os procedimentos e as obrigações das empresas operadoras e administradoras de cartões de crédito na sua relação com as empresas e com os consumidores e clientes dos bancos emissores. Na legislação portuguesa, o cartão de crédito é operação financeira representada por um contrato de crédito, "pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante" (Decreto-lei 133/09).3 A regulação de Portugal dispõe sobre outras questões relevantes nas relações de crédito, como o fornecimento de informações pré-contratuais, assistência ao consumidor, dever de avaliar a solvabilidade do devedor, requisitos do contrato de crédito, renegociação do contrato, direito de livre revogação pelo consumidor, ultrapassagem de crédito, taxa anual de encargos efetiva global (TAEG) e proibição de aplicação de juros elevados, sob pena de usura. Nos Estados Unidos da América, herdeiro fiel da tradição do capitalismo liberal de Adam Smith, as operações com cartão de crédito encontram-se reguladas, de modo específico e detalhado, no "Credit Card Accountability Responsibility and Disclosure Act of 2009''. Dentre as normas de proteção dos titulares de cartões de crédito, a lei americana obriga os bancos e empresas operadoras de cartões de crédito, no caso de aumento na taxa de juros aplicada, "fornecer aviso por escrito de aumento na taxa percentual anual, no prazo de 45 dias antes da data efetiva do aumento".4 No Brasil, ao contrário, não existe obrigação de comunicação prévia ao titular de cartão quanto ao aumento das taxas anuais nos juros praticados, apesar desses juros serem os mais elevados do mundo, da ordem de 14,5% ao mês ou 447% ao ano, segundo o último dado constante dos registros do Banco Central.5 Não obstante tal exagero na fixação variável dos juros nas operações com cartões de crédito, a jurisprudência dominante não considera essas taxas abusivas, a partir do entendimento consolidado na Súmula 283 do Superior Tribunal de Justiça: "As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura". Existem em tramitação no Congresso Nacional não apenas dezenas, mas centenas de projetos de lei, todos com a finalidade de regular as operações com cartões de crédito. Desde 1975, quando aqui se iniciava a utilização dos primeiros cartões de crédito, sob as bandeiras Diners e Credicard, o Instituto dos Advogados do Brasil, com a relatoria do jurista J.M. Othon Sidou, elaborou proposta de projeto de lei para a regulamentação dessas operações em nosso país. Em sua exposição de motivos, justificava a importância de proteção dos consumidores, advertindo que "já é tempo de dar-se um ponto final no crédito de confiança que as autoridades monetárias abriram às empresas responsáveis pelos cartões de crédito", diante da "conhecida instabilidade no atinente aos cartões de crédito no Brasil", e em face da necessidade de "proteger as empresas, aliviando-lhes dos custos e diminuindo-lhes os riscos, sempre às custas dos usuários".6 Atualmente, segundo o próprio Banco Central do Brasil, a regulamentação dos cartões de crédito "se mostra importante em um contexto de uso crescente dos meios de pagamentos eletrônicos no país".7 Todavia, tal regulação é estritamente infralegal, estando hoje em vigor a Resolução BCB 96/21, em que as operações com cartões de crédito encontram-se abrangidas nas disposições relativas à abertura, manutenção e encerramento de contas de pagamento bancárias. Nessa resolução, o cartão de crédito é denominado, tecnicamente, como "conta de pagamento pós-paga", sendo aquela "destinada à execução de transações de pagamento que independem do aporte prévio de recursos" (Resolução BCB 96/2021, art. 3º, II). Ou seja, a disciplina do cartão de crédito no Brasil resume-se à relação entre o banco emissor e o cliente titular do cartão, não envolvendo a sistemática e os procedimentos da rede credenciada de fornecedores e da utilização do cartão de crédito nessa rede, tanto em operações físicas como eletrônicas. Esse regulamento, portanto, limita-se a estabelecer requisitos de informação a serem prestadas nos demonstrativos e faturas das contas de pagamento pós-paga e a definir critérios para a fixação dos limites de crédito do titular. Essa regulação do cartão de crédito como mera conta de pagamento pós-paga, alinha-se com os conceitos e disposições da lei 12.865/13, que estabelece normas de funcionamento do Sistema de Pagamentos Brasileiro - SPB, em que o cartão de crédito é classificado como "instrumento de pagamento", o qual significa, restritamente, "dispositivo ou conjunto de procedimentos acordado entre o usuário final e seu prestador de serviço de pagamento utilizado para iniciar uma transação de pagamento" (art. 6º, V). 2. Natureza jurídica do cartão de crédito A doutrina brasileira, salvo raras exceções, como Nelson Abrão, Fran Martins e Waldirio Bulgarelli, não se aprofundou em estudos sobre a sistemática e procedimentos adotados nas operações com cartões de crédito. Nos manuais e cursos de direito empresarial da atualidade, as operações com cartões de crédito sequer são referidas, apesar de sua relevância nos dias de hoje, em especial nas compras on-line na internet. No conceito clássico de Patrick Chebrier, "cartão de crédito é o documento de identificação que individualiza o beneficiário de um serviço e garante que seu portador disponha de um crédito aberto pelo emissor".8 A sua natureza seria, assim, mais próxima dos títulos de crédito. Fran Martins segue o mesmo entendimento e define o cartão de crédito como "documento de identificação do portador e ao mesmo tempo instrumento de pagamento em relação ao fornecedor".9 Na realidade, o cartão de crédito abrange e compreende várias relações jurídicas, representadas, do modo bem assinalado por Nelson Abrão, como um feixe de contratos entre (i) o banco emissor e o titular; (ii) entre o emissor e o fornecedor; e (iii) entre o titular do cartão e o fornecedor.10 Nessa evolução descritiva, diante do aumento da complexidade de suas operações, o cartão de crédito assume nítida natureza contratual, como espécie de contrato financeiro ou bancário, mas que tem por utilidade principal servir como meio de pagamento na rede de fornecedores de produtos e serviços credenciada pelas principais empresas internacionais de serviços financeiros, das bandeiras Visa, Mastercard, Elo e American Express. Para Waldirio Bulgarelli, o cartão de crédito representa "operação polifacética", ou seja, compreende um negócio jurídico com várias facetas, integrado por "vários contratos que se desdobram entre os componentes do negócio, e unifica-se pela finalidade proposta: permitir que o consumidor adquira, de imediato, em determinados estabelecimentos, os bens e serviços que necessita".11 Na opinião de Gerson Carlos Branco "o cartão de crédito constitui "típica relação contratual de massa, que substitui os padrões tradicionais da compra e venda por prestação de serviços no processo de aquisição de bens de consumo".12 Podemos assim concluir, com esteio na lição de Eduardo Salomão Neto, que tal relação jurídica "resulta de um contrato, frequentemente de adesão, e seus principais elementos são a obrigação do emissor de manter-se filiado a sistema de cartão que possua rede de fornecedores credenciados e reembolsá-los de despesas feitas pelos usuários".13 No contrato de adesão celebrado com instituição financeira, o titular do cartão de crédito está vinculado aos direitos e obrigações estipulados unilateralmente pelo emissor, o banco operador e credor. Todavia, como o usuário final e titular do cartão enquadra-se no conceito de consumidor, como assim definido pelo art. 2º da lei 8.078/90, aplica-se a toda e qualquer operação com cartão de crédito o enunciado da súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras". 3. Riscos nas operações com cartão de crédito e responsabilidade objetiva do banco emissor Na ausência de regulamentação legal aplicável às operações com cartão de crédito, a jurisprudência dos nossos tribunais vem assumindo, de modo impróprio, a função legislativa de definir o conceito, conteúdo e efeitos desse contrato atípico. Sem embargo, demonstra-se totalmente incompreensível e injustificável que não exista regulação em uma das modalidades contratuais, como o cartão de crédito, que mais demandam contestações, controvérsias e litígios nos órgãos de proteção de consumidor, na condição de líder absoluta, com 26,4% das reclamações formalizadas na Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça.14 Também no Poder Judiciário, o número de ações envolvendo bancos operadores de cartões de crédito predominam nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça.15 Ocupando esse hiato normativo, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 479 da sua jurisprudência, ao estabelecer que, na análise de casos de fraude, "[a]s instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias". Na análise prática dos riscos gerados pelas operações com cartão de crédito, especialmente através da internet, Ênio Zuliani observou, com propriedade, que o cliente que teve o seu cartão de crédito clonado por um hacker que realizou compras fraudulentas, esse correntista "não poderá sofrer o desfalque da liberação dos créditos e que surgem no extrato de sua fatura". Isso porque "o cliente não utilizou o cartão para compras ou pagamentos, tendo sido vítima de um criminoso que, com sua habilidade, fraudou o sistema de segurança bancário e deu golpes". O banco responderá objetivamente, na forma da súmula 479, por ser esse caso típico de fortuito interno, ou seja, decorrente da própria atividade que cabia ao banco evitar".16 Com anos de atraso, a lei 14.181/21, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, regulou, em boa hora, regime protetivo de prevenção e resolução do sério problema do superendividamento que hoje atinge, segundo levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) cerca de 40% da população, no expressivo número de mais de 60 milhões de brasileiros, a grande maioria em virtude de dívidas de cartão de crédito.17 As operações com cartão de crédito passaram a ser reconhecidas e consideradas, por força dessa nova lei, como negócio jurídico conexo, coligado ou interdependente do contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e com os contratos acessórios de crédito garantidores do financiamento bancário (art. 54-F). Mais importante: a lei 14.181/21 proíbe o banco emissor do cartão de crédito de realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com o cartão, enquanto não for solucionada a controvérsia, cabendo ao titular notificar a administradora do cartão com antecedência de 10 dias do vencimento da fatura, vedada a repetição da cobrança na fatura seguinte (art. 54-G, I). Além de descrever e tipificar a excludente de responsabilidade do titular do cartão de crédito no caso de fraude praticada mediante ardil, clonagem ou uso indevido do cartão, a nova lei consagrou, em definitivo, o entendimento jurisprudencial atributivo de responsabilidade objetiva da instituição financeira emissora do cartão de crédito pelas fraudes praticadas com o uso não autorizado do instrumento de pagamento por terceiros. Ao considerar o titular do cartão de crédito como consumidor, a jurisprudência dominante do STJ, na lição do Ministro Luís Felipe Salomão, consolidou o entendimento de que "[o] código consumerista introduziu novidade no ordenamento jurídico brasileiro, ao adotar a concepção objetiva do abuso do direito, que se traduz em uma cláusula geral de proteção da lealdade e da confiança nas relações jurídicas, prescindindo da verificação da intenção do agente - dolo ou culpa - para caracterização de uma conduta como abusiva (...) Não há que se perquirir sobre a existência de dolo ou culpa do fornecedor, mas, objetivamente, verificar se o engano/equívoco/erro na cobrança era ou não justificável".18 Em conclusão, a lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismo protetivo em favor do titular do cartão de crédito diante de ações fraudulentas, especialmente as praticadas on-line, na internet, consagrou e positivou as teses dominantes no Superior Tribunal de Justiça, de atribuição e assunção do risco objetivo pelos bancos emissores e instituições financeiras. Isso porque essas organizações são dotadas de maior e da mais especializada condição para prevenir e coibir, com seus recursos tecnológicos, acessos indevidos aos sistemas informatizados depositários dos dados dos cartões de crédito por ela administrados. Ocorrendo o vazamento dessas informações ou sua captura por terceiros não autorizados, devem as instituições financeiras emissoras responder e assumir, objetiva e integralmente, os riscos e prejuízos incidentes. ____________ 1 Banco Central do Brasil. Estatísticas do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/spbadendos; Acesso em 05 jul 2023. 2 EUROLEX. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32015R0751&from=CS; Acesso em 06 Jul 2023. 3 PORTUGAL. Decreto-Lei 133/2009. Disponível em: https://www.bportugal.pt/legislacao/ decreto-lei-no-1332009-de-2-de-junho; Acesso em 06 Jul 2023. 4 USA. 123 Statute 1734 Public Law 111-24-May 22, 2009 Public Law 111-24 111th Congress. Disponível em: https://uscode.house.gov/statutes/pl/111/24.pdf; Acesso em 06 Jul 2023. 5 Banco Central do Brasil. Estatísticas. Taxas de Juros. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/ estatisticas/txjuros. Acesso em 06 Jul 2023. 6 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 1998, p. 659. 7 Banco Central do Brasil. BC aprimora normas para os cartões de crédito. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/546/noticia; Acesso em 06 Jul 2023. 8 CHABRIER, Patrick Grayll. Les cartes de crédit. Paris: Librairies Techniques, 1968, p. 108. 9 MARTINS, Fran. Cartões de crédito: Natureza Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 75-76. 10 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 152-154. 11 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis, cit., p. 671. 12 BRANCO, Gerson Carlos. O sistema contratual do cartão de crédito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 59. 13 SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 317-318. 14 Governo Federal. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional do Consumidor. Boletim Consumidor 2022, p. 7. 15 Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Relatório Justiça em números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf; Acesso em 07 Jul 2023. 16 ZULIANI. Ênio Santarelli. Responsabilidade dos bancos diante da súmula 479 do STJ. Revista Eletrônica Migalhas. Disponível em: www.migalhas.com.br/depeso/161926/responsabilidade-dos-bancos-diante-da-sumula-479-do-stj; Acesso em 07 Jul 2023. 17 Senado Federal. Tribuna do Consumidor: superendividamento dos brasileiros. Disponível em https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2023/03/02/tribuna-do-consumidor-superendividamento-dos-brasileiros; Acesso em 07 Jul 2023. 18 STJ. Corte Especial. EAREsp 600.663/RS. Relator para acórdão Herman Benjamin. DJe 30/03/2021. ____________ *Ivanildo Figueiredo é doutor em Direito Privado (UFPE). Pós-Doutor (USP). Professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Tabelião. Associado fundador do IBDCont.
Introdução O atual cenário de ampla disseminação das plataformas de apostas esportivas suscita alguns relevantes questionamentos pertinentes ao Direito Privado, tais como os ora enunciados: como devem ser qualificados os contratos celebrados com casas de apostas esportivas online - trata-se de apostas proibidas, toleradas ou permitidas? As dívidas oriundas de apostas esportivas online constituem meras obrigações naturais (portanto, juridicamente inexigíveis) ou, ao revés, obrigações plenamente exigíveis? Ao enfrentamento de tais questões eu me dediquei na minha exposição no I Congresso Carioca de Direito Contratual, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT) em parceria com a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), que teve lugar na cidade do Rio de Janeiro, no dia 19 de maio de 2023. Aproveito, então, a presente oportunidade para compartilhar algumas das reflexões que suscitei naquela ocasião, sem deixar de registrar meu agradecimento ao Prof. Dr. Flávio Tartuce pela pronta acolhida da ideia da presente publicação, que modestamente pretende dar continuidade ao protagonismo do IBDCONT no enfrentamento do tema.1 Agradeço, ainda, ao Prof. Dr. Daniel Dias e ao advogado João Marcelo Mathias pelas atenciosas revisões críticas do original. Já não surpreende a afirmação de que as questões enunciadas acima se tornam cada mais relevantes em razão de a nossa sociedade vivenciar a ampla disseminação da prática de apostas esportivas, sobretudo na modalidade online.2 Tal fenômeno se manifesta não apenas pela expansão das cifras movimentadas por esse mercado, já em patamares bilionários, mas também, por exemplo, pela ostensiva proliferação do patrocínio de clubes de futebol por casas de apostas.3 Tudo isso se desenvolve em um contexto de insuficiente regulação pelo direito positivo brasileiro, o que acentua a insegurança jurídica na matéria - sem embargo da recente (e ainda carente de regulamentação) Lei nº 13.756/2018, à qual voltarei a fazer menção no decorrer deste artigo. Chama atenção, aliás, a circunstância - que me parece não fortuita - de que as casas de apostas atuantes junto ao público brasileiro comumente são estruturadas em torno de pessoas jurídicas estrangeiras (sem filial ou correspondente com nacionalidade brasileira) e domiciliadas no exterior - no mais das vezes, em países desconhecidos por boa parte dos apostadores brasileiros.4 Nesse contexto, diversas questões desafiam a comunidade jurídica, em seus mais variados ramos, envolvendo temas desde a caracterização ou não de contravenção penal até a pauta da regulação da atividade desenvolvida pelas plataformas de apostas online. A propósito, vale destacar que a sociedade civil aguarda a regulamentação, a cargo do Ministério da Fazenda, da modalidade lotérica de "apostas de quota fixa", criada pelo art. 29 da Lei nº 13.756/2018). As apostas de quota fixa "consistem em apostas, efetivadas por meio físico ou eletrônico, referentes à competição esportiva, em que o jogador efetua prognóstico relativo ao resultado da competição, sabendo de antemão qual o prêmio receberá caso seu prognóstico se confirme (...). Vale dizer: não há flutuação no prêmio, conhecido do jogador no momento da aposta".5 Como não poderia deixar de ser, também no âmbito do Direito Civil se colocam variadas questões, e é precisamente a elas que ora me dedico. Em especial, ocupo-me do questionamento central que move o presente artigo: as dívidas oriundas apostas esportivas online são juridicamente exigíveis ou, ao revés, são meras obrigações naturais (portanto, juridicamente inexigíveis)? A ilustrar a relevância do raciocínio, imaginemos que, após fazer aposta sobre o resultado de determinada partida de futebol e vir a acertá-lo, o apostador venha a ser surpreendido pela recusa da casa de apostas ao pagamento do valor prometido. Nesse caso, poderá o apostador socorrer-se do Poder Judiciário para compelir a plataforma ao pagamento do valor prometido? Muito ao revés de mera elucubração teórica, tal circunstância lamentavelmente já integra a realidade social brasileira, conforme tem noticiado a imprensa nacional.6 Apostas proibidas, toleradas ou permitidas? No plano do Direito Civil, a elaboração de uma resposta aos questionamentos norteadores do presente artigo não prescinde da adequada qualificação das apostas pactuadas junto às plataformas online. Em apertada síntese, segundo a disciplina estabelecida pelo Código Civil brasileiro, as dívidas oriundas de jogo ou de aposta são inexigíveis (art. 814, caput), ressalvadas as dívidas oriundas dos "jogos e apostas legalmente permitidos" (art. 814, § 2º, in fine) e os "prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística" (art. 814, § 3º). O legislador brasileiro dispensa aos contratos de jogo e aos de aposta uma idêntica disciplina jurídica, o que se vincula à circunstância de ambos serem contratos essencialmente aleatórios, tendo no fator sorte o elemento central da sua sistemática.7 Não se desconhece, por certo, a diversidade estrutural ou conceitual entre jogo e aposta: de uma parte, o jogo se caracteriza pela participação direta dos contratantes para a realização do resultado a cujo implemento se subordinada a deflagração do prêmio; de outra parte, na aposta não há participação direta dos contratantes para a realização de tal resultado.8 Dessa distinção conceitual não decorrem, contudo, efeitos jurídicos relevantes. Com efeito, a distinção relevante na matéria não é a que aparta o jogo da aposta, mas sim a que os subdivide entre apostas ou jogos proibidos, tolerados e permitidos. Tanto os jogos ou apostas proibidos (i.e., vedados pelo Estado, de que constitui célebre exemplo o "jogo do bicho") quanto os tolerados (i.e., não permitidos nem proibidos, como o jogo de pôquer entre amigos) se sujeitam ao caput do art. 814 do Código Civil: "[a]s dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito". Já os jogos ou apostas permitidos (i.e., admitidos e regulados pelo Estado - caso, por exemplo, das loterias estatais e do turfe), expressamente excepcionados pelo § 2º do art. 814 do Código Civil, geram obrigações plenamente exigíveis (e, por certo, também irrepetíveis). Diante de tais caracteres, não surpreende que a doutrina historicamente tenha sedimentado o entendimento de que as dívidas oriundas de jogo ou aposta constituem hipóteses de obrigações naturais,9 passíveis de compreensão, em esforço de síntese, como as obrigações em que, a despeito da existência do dever jurídico, não há responsabilidade do devedor pela respectiva prestação. Trata-se, segundo as expressões alemãs célebres na matéria, de obrigações em que há "Schuld" sem "Haftung":10 ou seja, existe o dever jurídico, mas falta a responsabilidade do devedor - o que, focando na perspectiva do credor, equivaleria a dizer que existe o direito ou título jurídico, mas falta a exigibilidade de tal direito. Esforço de qualificação jurídica das apostas a partir da (ainda carente de regulamentação) lei 13.756/2018 Diante do arcabouço normativo regente dos contratos de jogo e aposta, podemos perceber a relevância da adequada qualificação das relações contratuais que tenham por objeto apostas esportivas, uma vez que de tal classificação decorrem consequências drásticas do ponto de vista do Direito Contratual. Como devem, então, ser qualificadas as apostas esportivas pactuadas junto a casas de apostas online - trata-se de apostas proibidas, toleradas ou permitidas? A questão é complexa e ainda não conta com uma resposta pacífica na experiência brasileira, o que, por certo, não desaconselha (ao revés, reclama) um esforço da doutrina para a enunciação de parâmetros para uma resposta segura. Tal esforço há necessariamente de levar em consideração um marco normativo ainda recente e de todo relevante - a lei 13.756/2018, por meio da qual, como já destacado, foi criada "a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional" (art. 29, caput). Movido pelo propugnado esforço de adequada qualificação dos contratos que tenham por objeto apostas esportivas de quota fixa celebrados junto a plataformas de apostas online, passo a enunciar sinteticamente as minhas reflexões iniciais sobre o tema. Para tanto, proponho assumirmos, em caráter preliminar, a necessidade de diferenciarmos a situação jurídica dos contratos em questão (apostas esportivas em modalidade de apostas de quota fixa) com um recorte temporal em torno do momento de implementação da regulamentação prevista pelo art. 29, § 3º, da lei 13.756/2018. Antes do implemento da regulamentação, não me parece possível - em uma leitura inicial e assumidamente fria - cogitar da qualificação das apostas como permitidas, justamente porque lhes faltariam as necessárias regulamentação e autorização por parte do Estado. Assim, até que se implemente a regulamentação - e os respectivos requisitos sejam integralmente preenchidos pela empresa de apostas interessada, com a obtenção da autorização ou concessão na forma do art. 29, § 2º, da lei 13.756/2018 -, as apostas tendem a ser consideradas proibidas, inclusive com possibilidade de eventual configuração de contravenção penal.11 Quando muito, poderíamos cogitar da qualificação das apostas como toleradas - ao argumento, por exemplo, de que a lei 13.756/2018 teria consagrado o reconhecimento estatal acerca da juridicidade da atividade explorada pelas casas de apostas esportivas -, sendo certo que, em qualquer desses cenários (qualificação como aposta proibida ou tolerada), não seria possível, nessa leitura assumidamente fria, afastar a pecha da inexigibilidade das obrigações delas decorrentes. Já no período posterior ao implemento da regulamentação prevista pelo art. 29, § 3º, da lei 13.756/2018, finalmente poderão ser consideradas plenamente permitidas as apostas pactuadas junto a entidades regularmente habilitadas, pelo Estado, ao exercício da modalidade lotérica de apostas esportivas de quota fixa. A contrario sensu, quando pactuadas junto a entidades que não tenham obtido regular autorização para desenvolvimento da atividade, as apostas tenderão a ser consideradas proibidas, por inobservância direta da regulamentação pertinente. Perspectivas para o reconhecimento da exigibilidade das obrigações oriundas de apostas online no atual cenário normativo As diretrizes propugnadas acima, embora úteis, parecem-me apenas parcialmente suficientes para o enfrentamento do problema, uma vez que não enfrentam o núcleo daquela que me soa justamente a questão mais desafiadora na matéria. Afinal, subsiste a questão: o direito brasileiro permite o reconhecimento da plena exigibilidade de obrigações oriundas de contratos de apostas esportivas de quota fixa celebrados junto a plataformas de apostas que não contem com autorização estatal (seja porque ainda sequer existe a regulamentação pertinente, seja porque a específica casa de apostas não obteve a necessária autorização estatal)? Penso que sim, por algumas razões. Em primeiro lugar, parece-me possível a qualificação de tais apostas como permitidas quando, a despeito da inexistência da regulamentação pelo direito brasileiro, a plataforma de apostas não for sediada no Brasil (o que se afigura de todo frequente, como já destacado) e o contrato com ela celebrado atender aos requisitos de validade estabelecidos pelo ordenamento jurídico correspondente ao país de seu domicílio. Em tal cenário, a se admitir que a casa de apostas estrangeira seria tecnicamente a parte proponente,12 concluiríamos que o contrato se formou "no lugar em que foi proposto" (conforme preconiza o art. 435 do Código Civil) e, por conseguinte, a lei aplicável seria a do país estrangeiro pertinente (conforme determina o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB). Assim, caso atendidos os requisitos impostos pela ordem jurídica estrangeira, não apenas poderia restar afastada a caracterização de contravenção penal (com base na premissa de que "[a] lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada no território nacional", cfe. art. 2º do decreto-lei 3.688/1941), como, no plano do Direito Civil, impor-se-ia o respeito à exigibilidade da obrigação validamente formada no exterior, na esteira do entendimento jurisprudencial já encontrado na experiência brasileira a respeito de dívidas contraídas junto a cassinos no exterior.13 Registro, por oportuno, que ainda permaneceriam em aberto relevantes questões de índole processual, como a definição da jurisdição competente e a própria aferição da validade de eventual cláusula de eleição de foro porventura considerada excessivamente gravosa ao consumidor brasileiro. Ademais, mesmo no cenário de impossibilidade de qualificação da aposta como permitida nos moldes destacados acima - como, por exemplo, na hipótese de a empresa ser sediada no território brasileiro, a inviabilizar a invocação de normativa estrangeira -, penso que o direito brasileiro permite o reconhecimento da exigibilidade das dívidas oriundas de apostas esportivas. Com efeito, parece-me que eventual recusa da plataforma ao pagamento do prêmio poderia ser considerada ilegítima com base em fundamentos variados. Nesse sentido, poderíamos pensar, ilustrativamente, em fundamentos como a vedação ao benefício da própria torpeza, o princípio da boa-fé objetiva, o princípio da conservação do negócio jurídico, a tutela da aparência, a proteção do apostador de boa-fé e o caráter vinculante da oferta ao público (v. art. 429 do Código Civil e art. 30 do Código de Defesa do Consumidor). Tais fundamentos tendem a se fortalecer pela circunstância - a que já pude fazer menção - de que as plataformas de apostas esportivas oferecem os respectivos produtos ou serviços de modo manifestamente ostensivo, muito diversamente do caráter clandestino que caracteriza o "Jogo do Bicho", por exemplo. O reconhecimento da plena exigibilidade das obrigações me parece ainda mais necessário quando estiver em jogo a proteção de apostador qualificado como consumidor, presumidamente vulnerável inclusive quanto a informações a respeito da estrutura jurídica e do domicílio da pessoa jurídica da casa de apostas. Conclusão: ainda há muitas questões por enfrentar As questões atinentes à (in)exigibilidade das obrigações oriundas de apostas esportivas justificariam, por si só, a importância do avanço rumo à efetiva regulamentação da modalidade lotérica de "apostas de quota fixa" criada pela lei 13.756/2018. A regulamentação estatal é premente, contudo, não apenas para a disciplina estritamente contratual, mas igualmente (quiçá, com ainda mais urgência) para toda uma miríade de questões relacionadas à exploração da atividade de apostas esportivas pelas plataformas. Destaco, por exemplo, questões como a necessidade de proteção a crianças e adolescentes, a necessidade de proteção à saúde mental dos apostadores, o crescente risco de superendividamento e a repressão à publicidade enganosa e/ou abusiva. Ademais, avulta a importância premente da regulação no contexto atual de difusão de suspeitas de manipulações de resultados desportivos em razão de interesses escusos no universo das apostas,14 o que agrava ainda mais a insegurança que infelizmente caracteriza o atual estado do setor em questão. Nesse cenário, oxalá possa a vindoura regulamentação contribuir para a construção de um arcabouço que propicie segurança jurídica ao mercado sem deixar de estabelecer salvaguardas tanto para a coletividade quanto para cada pessoa humana que eventualmente figure como apostadora. Enfim, a sorte está lançada. __________ 1 Nesse sentido, destaco a relevante contribuição, nesta mesma coluna, de SCHMITT, Cristiano Heineck. Jogos de apostas esportivas online: o caminho da legalidade até a proteção do consumidor. Migalhas, 5/12/2022. Disponível aqui. Acesso em 10/6/2023. 2 No início de 2023, noticiava-se que "mais de 450 plataformas de apostas esportivas atuam no mercado brasileiro" (ROCHA, Felippe; PESSÔA, Lucas. Mercado de apostas esportivas mira faturamento bilionário no Brasil em 2023. Lance, 6/1/2023. Disponível aqui . Acesso em 10/6/2023). 3 Em 2022, por exemplos, todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro de futebol masculino foram patrocinados por casas de apostas esportivas, como relatam LEITE, Douglas; REGIS, Erick. Notas sobre a regulamentação dos sites de apostas esportivas no Brasil. Jota, 20/1/2023. Acesso em 10/6/2023. 4 A título puramente ilustrativo, destaco exemplos de casas de apostas online licenciadas por Curaçao (e.g., v. 1, 2 e 3. Acesso em 21/5/2023), Malta (e.g., v. Betway. Acesso em 21/5/2023) e Gibraltar. Acesso em 21/5/2023). 5 TEPEDINO, Gustavo; BANDEIRA, Paula Greco. In: TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil. Volume 3: contratos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 532. 6 Ilustrativamente, v. MARTINES, Fernando. "Meu dinheiro está preso lá": além da Betano, Bet365 também coleciona queixas sobre saques travados. UOL, 26/2/2023. Disponível aqui . Acesso em 10/6/2023. 7 V., por todos, BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. 3. ed. atual, por Achilles Beviláqua e Isaías Beviláqua. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1931, p. 409; GOMES, Orlando. Contratos. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 427; FACHIN, Luiz Edson. Existência, validade e eficácia do bilhete de loteria - a inadmissibilidade do mandato verbal para a realização de aposta. Soluções Práticas de Direito. Volume 1: contratos e responsabilidade civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, item 5. 8 A propósito da distinção estrutural entre o jogo e a aposta, v., por todos, PINTO, Paulo Mota. Contrato de swap de taxas de juro, jogo e aposta e alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 5, p. 161-257, out.-dez./2015, item II.1.2.1; e VASCONCELOS, Fernando Antônio. Contratos de jogo e aposta: permissão ou proibição?. Revista Direito e Liberdade, vol. 15, n. 2, p. 79-95, maio-ago./2013, p. 80. 9 "Como se sabe, em regra, as dívidas de jogo e aposta constituem obrigações naturais ou incompletas havendo um débito sem responsabilidade ('debitum sem obligatio' ou 'Schuld sem Haftung')" (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 770). 10 A propósito, v., na doutrina alemã, por todos, LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts. I. Band: Allgemeiner Teil. 8. ed. München: C. H. Beck, 1967, p. 15. 11 Se não a contravenção consistente em "[e]stabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público" (art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941), talvez aquela consistente em "[p]romover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal" (art. 51 do decreto-lei 3.688/1941). 12 Como sustenta, ao tratar da tradicional loteria estatal (em entendimento extensível à presente temática), FACHIN, Luiz Edson. Existência, validade e eficácia do bilhete de loteria, cit., item 3.1. Cumpre advertir que seria discutível até mesmo a identificação da parte a ser compreendida como a proponente. O desenvolvimento de tal análise, contudo, escaparia ao escopo do presente artigo. 13 Assim entendeu o Superior Tribunal de Justiça ao apreciar caso no qual se controvertia sobre a exigibilidade ou não de dívida contraída por cidadão brasileiro em cassino no exterior: "(..) 1.  Na presente demanda está sendo cobrada obrigação constituída integralmente nos Estados Unidos da América, mais especificamente no Estado de Nevada, razão pela qual deve ser aplicada, no que concerne ao direito material, a lei estrangeira (art. 9º, caput, LINDB). (...) 3. Na hipótese, não há vedação para a cobrança de dívida de jogo, pois existe equivalência entre a lei estrangeira e o direito brasileiro, já que ambos permitem determinados jogos de azar, supervisionados pelo Estado, sendo quanto a esses, admitida a cobrança. (...) 5.  Aquele que visita país estrangeiro, usufrui de sua hospitalidade e contrai livremente obrigações lícitas, não pode retornar a seu país de origem buscando a impunidade civil. A lesão à boa-fé de terceiro é patente, bem como o enriquecimento sem causa, motivos esses capazes de contrariar a ordem pública e os bons costumes. 6. A vedação contida no artigo 50 da Lei de Contravenções Penais diz respeito à exploração de jogos não legalizados, o que não é o caso dos autos, em que o jogo é permitido pela legislação estrangeira. (...)" (STJ, 3a T., REsp 1.628.974/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 13/06/2017). Em sentido similar, v. TJRJ, 17ª C.C., Ap.Cív. 0027764-89.2019.8.19.0001, Rel. Des. Marcia Ferreira Alvarenga, julg. 4/12/2019. 14 Cumpre mencionar, a propósito, a "Operação Penalidade Máxima". A propósito, v., por todos, OTTOBELLI, Lorenzo; RAYZEL, Igor. Operação penalidade máxima: olhar sob o viés do Direito e Processo Penal. Migalhas, 19/5/023. Disponível aqui. Acesso em 11/6/2023.
segunda-feira, 5 de junho de 2023

O "contrato" de trust e a MP 1.171/23

No dia 30 de abril de 2023, o marasmo dominical que antecedia o feriado do Dia do Trabalho foi interrompido pela publicação repentina da Medida Provisória 1.171/2023, a qual promoveu alterações substanciais no regime de tributação da renda auferida pelas pessoas físicas residentes no Brasil que possuem aplicações financeiras, entidades controladas e trust no exterior. O tema possui evidente importância e reflexos práticos, mas é certo que a discussão ganha contornos ainda mais sensíveis levando em conta que no contexto político contemporâneo de polarização ideológica, muitos brasileiros, temerosos com o panorama eleitoral, optaram por mitigar riscos financeiros investindo parte de seus recursos em países estrangeiros1. É curioso notar que a maior parte da repercussão midiática da referida MP se limitou a comentar um aspecto: a elevação da faixa de isenção do Imposto de Renda das Pessoas Físicas a partir de 1º de maio de 2023, que passou de R$ 1.903,98 para R$ 2.112,002. O valor da faixa de isenção não era reajustado desde 2015. A partir deste aumento, em 2023 a previsão é a de que o governo deixe de arrecadar R$ 3,2 bilhões, segundo estimativas do Ministério da Fazenda3. Naturalmente, o Estado não poderia simplesmente renunciar a tal numerário e foi necessário encontrar uma saída para recompor a receita. A solução criativa encontrada foi a de compensar tais perdas com o aumento da taxação de pessoas físicas residentes no Brasil que optam por investimentos em países estrangeiros. As razões pelas quais uma pessoa decide enviar e manter recursos em outros países são diversas. Há quem busque maior rentabilidade, enquanto outros intencionam salvaguardar o patrimônio de riscos, diversificar a carteira de investimentos ou realizar planejamento tributário/sucessório mais refinado. Também, tem se tornado cada vez mais frequente o caso de famílias com um ou mais membros residindo em outros países (família internacionalizada). Nesse mesmo sentido, tem aumentado o contingente de pessoas que são residentes no Brasil, mas que prestam serviço em home office para empresas internacionais e recebem seus salários/pagamentos em contas bancárias registradas em outros países. Não é demais ressaltar que - desde que respeitadas as regras fiscais brasileiras - é absolutamente lícito enviar e manter dinheiro no exterior. Com o regime estabelecido pela MP n.º 1.171/2023, tais opções financeiras devem ser estudadas com maior cautela, exigindo reflexão e cálculos para verificar se a operação compensa. No que concerne ao trust4, ele é tratado de forma específica no Capítulo IV, arts. 7º ao 9º da MP. A contemplação expressa no texto da MP por si só é algo digno de registro, uma vez que até então não havia um ato normativo que o definisse e o regulasse de modo abrangente. É bem verdade que a Instrução Normativa n.º 1.627/2016 da Receita Federal já havia estabelecido algumas orientações para a tributação de trusts, bem como a Solução de Consulta COSIT n.º 41/2020. Contudo, ambas não apresentam o grau de detalhamento presente na MP. Diante deste quase ineditismo, é evidente que o texto da MP ainda exige certos aprimoramentos, sobretudo diante da dificuldade inerente de compreensão do que é um trust, uma vez que ele não se confunde com nenhum outro instituto do direito brasileiro e é aberto conceitualmente em sua essência, podendo desempenhar diversas funções e assumindo diversas estruturas5. Começando pelo final, no art. 9º é apresentada uma definição de trust. Neste ponto, pode-se pensar num aprimoramento do dispositivo, pois o instituto do trust é conceituado como "figura contratual", quando, em realidade, em certas modalidades de instituição de trust, trata-se de negócio jurídico. Pode parecer preciosismo, mas esta imprecisão conceitual e categórica pode contribuir para  confusões perniciosas sobre quem são os sujeitos presentes em um trust e seus respectivos papéis6. E, acerca das "partes" que compõem um trust, percebe-se que a MP claramente se inspirou na Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento (ainda que o Brasil não seja signatário) e dela tomou emprestada a noção de que um trust se caracteriza quando há uma relação jurídica estabelecida entre um instituidor (settlor), um administrador (trustee) e um beneficiário. Contudo, a Convenção captou melhor a real natureza jurídica do trust, deixando claro que ele pode ser criado por ato inter vivos ou causa mortis7. Além disso, partindo da premissa de que o trust é uma "concha hospitaleira"8, ao invés de o conceituar, tarefa que seria inexequível, a Convenção corretamente enumera as características nucleares de trust, principiando pela mais importante: que os bens objeto do trust configuram um patrimônio separado do patrimônio pessoal do trustee. Infelizmente, a MP não positivou esta relevante qualidade dos trusts. Além disso, não oferece distinção entre os trusts revogáveis e irrevogáveis. No caso dos últimos, o instituidor perde o controle sobre os bens e direitos objeto do trust, de modo que torná-lo responsável pela declaração e pelo recolhimento de tributos é inadequado, demonstrando falta de compreensão sobre como o instituto realmente funciona. Uma opção acertada da MP foi a de empregar o termo "trust" em língua inglesa. Por mais que possa parecer um anglicismo, a tentativa de traduzir esse peculiar instituto poderia dificultar o entendimento sobre seu âmbito de aplicação. Não raro, o instituto é traduzido por expressões equivocadas, tais como "fundo fiduciário", "truste", sendo preferível o termo no original. Por mais que legalmente ainda não seja prevista a criação de trusts no Brasil, há registros de negócios celebrados com esta finalidade (vide Recurso Especial n.º 1.438.142-SP, de relatoria do saudoso Min. Paulo de Tarso Sanseverino) e vários projetos de lei objetivaram a sua inclusão no ordenamento jurídico pátrio9. Outrossim, há institutos como o dos fundos patrimoniais previstos pela lei 13.800/2019, os quais têm por objetivo arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público. Eles configuram uma aproximação do direito brasileiro com os trusts, uma vez que são fruto do "transplante jurídico" dos trusts conhecidos como endowment funds. No art. 8º, §1º, a MP determina que caso o titular de um trust já tenha o apresentado na sua declaração de IR, a partir de agora deverá informar os bens e direitos contemplados por tal trust e qual foi o seu custo de aquisição. Ora, ainda que o trust seja um ente não personificado, tal exigência denota uma desconsideração de seu modo de funcionamento, enquanto arranjo patrimonial10. Outrossim, o art. 2º da MP elevou consideravelmente as alíquotas aplicáveis, alterando sensivelmente a obrigação tributária dos contribuintes que se encaixam nesta hipótese. É bem verdade que o trust pode ser usado para fins ilícitos e que isso deve ser energicamente reprimido em nosso país. Porém, não se pode ceder a este tipo de argumento retórico para sufocar o instituto. A verdade é que qualquer instituto jurídico pode ser anteparo para fins ilegais, até mesmo figuras seculares e comuns, como um contrato de doação. Assim, casos isolados e excepcionais que possam configurar fraude devem ser tratados com todo o rigor. Ainda que sejam recomendados aprimoramentos, a MP tem um grande mérito: é mais um ato normativo que reconhece e regulamenta a existência dos trusts. Ao tratar do instituto, a MP o reconhece como modelo de utilização global, inclusive por brasileiros aqui residentes, e torna mais evidentes quais são as regras do jogo. Espera-se que o regramento mais minucioso sobre os trusts oferecido pela MP (que possivelmente será convertida em Lei) possa contribuir para um olhar menos pejorativo aos trusts e mais aberto para suas potencialidades, de modo que em breve possa ser definitivamente incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro. __________ 1 Ver aqui. Acesso em: 30/05/2023. 2 Conforme o §2º do art. 14, é possível ainda deduzir R$ 528,00, de modo que o valor de isenção passa a ser R$ 2.640,00, que atualmente corresponde a 2 salários mínimos. 3 Com a medida, o governo projeta, ainda, redução de arrecadação de R$ 5,88 bilhões em 2024 e de R$ 6,27 bilhões em 2025. Disponível aqui. Acesso em 30/05/2023. 4 Importante esclarecer que não existe um modelo único de trust, mas sim diversos. Sendo assim, o mais correto seria utilizar o termo no plural, isto é "os trusts". Contudo, para fins de maior clareza na redação do texto e para que ele esteja em harmonia com a opção utilizada na MP n.º 1.171/2023, será utilizada neste artigo também a expressão no singular. 5 O trust surgiu no contexto histórico peculiar da Inglaterra do século XI, após a conquista normanda. Este ponto foi tratado com mais profundidade em: XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 31 e seguintes. 6 Acerca da categoria do Negócio Jurídico, adota-se a perspectiva de Marcos Bernardes de Mello (Teoria do fato jurídico - plano da existência. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 245). 7 Art. 2º da Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento. 8 Sagaz expressão utilizada por Camille Jauffret-Spinosi ao se referir ao trust e à dificuldade em defini-lo: La Convention de la Haye relative à la loi applicable au trust et à sa reconnaissance (1er juillet 1985). Journal du Droit International, n.1, p. 23, 25, 1987. 9 Vide, por exemplo, a tramitação no Senado do Projeto de Lei n.º 4.758/2020, que prevê a regulamentação do "Contrato de Fidúcia". Ainda que o nome seja diverso, há grande semelhança com a relação jurídica estabelecida por um trust. Além disso, tramita na Câmara dos Deputados o PLP n.º 145/2022, que dispo~e sobre a lei aplica'vel ao trust, sua efica'cia e seu tratamento tributário no Brasil. 10 Em vez de declarar a existência do trust, é preciso apontar todos os bens, aplicações, pessoas jurídicas, imóveis, etc. que são por ele "controlados". Há a opção ao contribuinte, prevista no capítulo V da MP, de atualizar o valor dos bens e direitos no exterior que constaram na sua declaração de IR para o valor de mercado em 31 de dezembro de 2022, de modo que será tributado apenas em 10% a diferença em relação ao custo de aquisição. A depender da situação, esta possibilidade pode ser bem vantajosa, pois em certos casos pode ser aplicada alíquota de 22,5%.
A interpretação dos contratos é tema extremamente tormentoso no âmbito da teoria contratual. Os autores normalmente a tratam como a técnica pela qual se busca determinar o significado de uma vontade manifestada1. Em outras palavras, por intermédio da interpretação busca-se esclarecer o sentido da vontade exteriorizada pelos sujeitos contratantes2. Mas essa interpretação pode suscitar inúmeros transtornos às partes, quando do momento patológico, em que cláusulas contraditórias, ambíguas ou obscuras levam os sujeitos a discordarem do alcance daquelas palavras. O ponto de partida, então, para uma correta análise da interpretação dos contratos e da problemática existente em torno dela diz respeito ao seu objeto. É comum encontrar na doutrina que este seria a vontade dos contratantes. Trata-se de um equívoco que necessita ser esclarecido. O objeto da interpretação não é a vontade, mas a forma na qual a vontade se expôs, ou seja, a sua forma representativa, sua exteriorização3. Em outras palavras: interpretam-se as palavras, isto é, aquilo que se fez ou aquilo que se disse4. Com efeito, o que se pretende na interpretação é justamente buscar a vontade dos contratantes, entendida como vontade nova resultante da fusão da vontade individual de cada um deles5. Daí que interpretar é uma ação cujo sucesso é o entendimento, seja do comportamento, seja das palavras escritas ou faladas. Dessa forma, a busca pela vontade se inicia inevitavelmente nessa exteriorização, que podemos chamar de linguagem e, nesse sentido, o problema da interpretação também é um problema da linguagem em si. A linguagem, por sua vez, não é clara. Ela não é recebida pelo destinatário de forma pronta, mas é um "apelo e um incitamento" ao intelecto, que força o seu destinatário a revelar e recriar com suas categorias mentais a ideia que ela suscita e representa. Este é o ofício do intérprete: entender o sentido da manifestação do pensamento alheio. E aqui reside um dos problemas mais sensíveis da interpretação. Todo processo cognitivo é dotado de uma subjetividade do intérprete6, que implica na necessidade de renovar e reproduzir o pensamento alheio a partir de dentro, como se fosse algo próprio. A verdade não é absoluta. Não é um dado da natureza a ser apreendido e registrado7. A busca pela "verdade" das manifestações da vontade também não. Ao revés, ela exige um processo cognitivo que busca alcançar uma forma de conhecimento8, de entendimento. Este processo cognitivo, entendido como processo interpretativo, exige um trabalho árduo daquele que o desempenhará. Mas, se o referido processo é dotado de uma subjetividade, por que deve prevalecer a interpretação de um dos contratantes em detrimento do outro? Por um lado, percebe-se a insegurança jurídica que um contrato mal elaborado pode gerar no momento de sua execução. Por outro, não se pode olvidar que, no caso de um litígio acerca da interpretação do contrato, um terceiro será chamado a determinar o sentido mais adequado daquela exteriorização: o juiz. Este é, em regra, um terceiro estranho aos interesses dos contratantes. Note-se, é esse sujeito estranho e alheio às intenções (e até mesmo motivações) dos interessados que decidirá o significado do negócio jurídico celebrado, o que pode encerrar ainda mais insegurança aos contratantes. Tais ponderações demonstram que a interpretação do contrato pode gerar um enorme ônus aos contraentes, caso não se observe com cautela a elaboração e a redação das cláusulas contratuais. Todavia, é preciso esclarecer desde já que, mesmo dotado de subjetividade e sendo um terceiro a decidir a interpretação mais adequada, o processo hermenêutico deriva de uma dialética proveniente da antinomia entre subjetividade do entendimento e objetividade do sentido. Se por um lado o referido processo cognitivo exige a subjetividade do intérprete, pois o entendimento só pode ser alcançado graças à sua sensibilidade em relação ao valor expressivo da linguagem, por outro é imperiosa a exigência de uma objetividade, visto que a revelação do sentido deve ser a mais pertinente e fiel possível ao valor expressivo na forma representativa que se trata de entender. Em outras palavras, o sentido deve ser extraído da forma representativa, isto é, da manifestação objetiva, garantindo-se sua autonomia intrínseca, e evitando-se um sentido introduzido de modo impróprio e oculto. Dessarte, se a interpretação contratual suscita toda essa problemática9, é preciso estabelecer parâmetros hermenêuticos que deem ao intérprete instrumentos suficientes para alcançar a solução mais adequada ao caso concreto. Nesse diapasão, com o advento do Código Civil em 2002 que, sem estabelecer uma parte específica sobre a interpretação dos negócios jurídicos, positivou algumas regras a respeito, complementadas pela Lei 13.874/2049 - Declaração de Direitos de Liberdade Econômica -, que introduziu alterações no art. 113, do diploma civil, torna-se indispensável a revisão do processo interpretativo dos contratos à luz da unidade do ordenamento10 - em especial os valores e princípios constitucionais - e da nova principiologia contratual - notadamente os princípios da função social e da boa-fé objetiva. Tradicionalmente, costuma-se colocar o debate entre a teoria da vontade e a teoria da declaração. Pela primeira, deve-se buscar a vontade real das partes11, pouco importando o que foi exteriorizado. A segunda, considerando que a vontade interna seria uma fase passageira constante apenas na gênese do negócio jurídico, procura fazer valer a declaração independentemente da vontade interna do agente12. Ambas as tendências interpretativas, no entanto, são passíveis de críticas. Ao buscar, seja a "vontade real", seja a declaração em abstrato, a teoria da vontade e a teoria da declaração são dotadas de um unilateralismo radical que protege excessivamente ou o declarante - teoria da vontade - ou o destinatário - teoria da declaração. Registre-se que a reação ao voluntarismo liberal, que pautava a concepção clássica do contrato, provocou uma ruptura da teoria contratual e teve notável impacto também nas tendências interpretativas. A teoria da confiança, fundada no solidarismo, foi, então, uma exigência natural da mudança do paradigma do contrato, consistindo num verdadeiro refinamento da teoria da declaração. Ela impõe a esta um limite que reside na garantia da legítima expectativa do destinatário da declaração, isto é, na confiança. Para esta teoria, além da declaração, são importantes o comportamento e a expectativa de quem a recebe13. Segundo Orlando Gomes, a teoria da confiança prestigia a aparência, protegendo aquele que, em razão das circunstâncias, é levado a crer como firme a declaração que se podia admitir como a vontade efetiva da outra parte14. Nesse sentido, a teoria da confiança é um verdadeiro avanço em relação às outras. Se elas se justificavam na primazia da vontade, a teoria da confiança observa o aspecto social em que o contrato é celebrado15. Ela tem claramente um fundamento social e concorre terminantemente para a estabilidade das relações jurídicas16. Conforme se percebe, a teoria da confiança encontra seu fundamento na própria boa-fé objetiva, segundo a qual exige-se que o comportamento dos sujeitos deva respeitar um conjunto de deveres17. Com efeito, é legítimo esperar alguns comportamentos por parte de quem age com lealdade e cooperação para alcançar os fins colimados18. A partir daí, fica vedado adotar comportamentos contraditórios ou que de alguma forma frustrem as legítimas expectativas criadas. Na medida em que uma das partes adota condutas que geram na contraparte uma expectativa, levando-a a acreditar naquilo que foi exteriorizado, essa confiança deve ser protegida. Diante de todas as tendências interpretativas, é de se indagar qual delas foi adotada pelo ordenamento vigente. Nesse diapasão, o Código Civil de 2002, em seu art. 112, alterando a redação do art. 85 do Código Civil de 1916, determinou que "nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem". Uma leitura precipitada do dispositivo poderia levar o intérprete a entender que o Código teria adotado a teoria da vontade. Todavia, privilegiando a socialidade e a eticidade, inerente ao Código de 2002, o legislador estabeleceu que seja perseguida a intenção a partir da declaração, adotando a teoria da confiança. Diante do dispositivo, o intérprete deverá conjugar tanto a intenção como a declaração a fim de descobrir a vontade contratual, pois ele deve buscar a intenção que está consubstanciada na declaração. Nesse ponto, a boa-fé objetiva, enquanto cláusula geral de lealdade e colaboração exerce uma função fundamental no processo interpretativo, esclarecendo de vez a opção legislativa pela teoria da confiança19 ao estabelecer no art. 113 do Código Civil que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". A boa-fé, portanto, ao lado das funções integrativa20 (art. 422, CC/02) e restritiva do exercício de direitos21 (art. 187, CC/02), exerce uma função interpretativa. Ela serve como critério hermenêutico exigindo a interpretação mais conforme a lealdade e a honestidade22. Veda-se, assim, uma interpretação atomista e puramente gramatical, buscando, ao contrário, a integração da declaração com as circunstâncias socialmente relevantes em que se desenvolveu23. Consequentemente, torna-se imperioso na interpretação do contrato o contexto em que foi desenvolvida a declaração. A impressão que a conduta de uma das partes gera na outra segundo as visões sociais correntes é imprescindível, sendo de total relevância o que se disse e o que se fez, desde que reciprocamente reconhecíveis24. A interpretação conforme a boa-fé exige, portanto, o reconhecimento do comportamento como fato social no local, tempo e forma em que tiveram relevância jurídica para a outra parte.  Isto é, a partir da conjugação dos arts. 112 e 113 do Código Civil pode-se concluir que na interpretação dos contratos o juiz deverá analisar todo o contexto em que a declaração foi emitida, valendo-se do que aconteceu no momento pré-contratual, contratual e pós-contratual. Desta forma poder-se-á atingir a exigência solidarista de considerar que o acordo seja alcançado não com o domínio de um interesse por parte do outro, mas sim num espírito de cooperação para o adimplemento das expectativas recíprocas. Nesse ponto, o Superior Tribunal de Justiça já concluiu que, nos contratos de seguro habitacional no âmbito do SFH, a interpretação da cláusula que exclui a responsabilidade do segurador, à luz dos parâmetros da boa-fé objetiva e da função social do contrato, deve ser no sentido de que os vícios estruturais de construção estão acobertados pelo seguro habitacional, cujos efeitos devem se prolongar no tempo, mesmo após a conclusão do contrato, para acobertar o sinistro concomitante à vigência deste, ainda que só se revele depois de sua extinção (vício oculto).25 Ao avaliar, para além do que foi efetivamente exteriorizado, o contexto social em que é exprimida, ela confere maior proteção ao declarante e ao declaratário, bem como garante uma solução mais condizente com a realidade dos contratantes. O juiz, ao apreciar o contexto fático26 em que é elaborada a declaração de vontade, exerce uma função individualizadora da normativa aplicável ao contrato celebrado e, consequentemente, uma decisão mais próxima dos interesses das partes27. Nesse ponto, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, embora criticável em alguns pontos, caminhou bem na tramitação no Congresso Nacional ao inserir os parágrafos primeiro e segundo no art. 113. Apesar dos incisos II e III serem redundantes em relação ao caput, pois estabelecem que deve ser atribuído o sentido que corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio e à boa-fé - tal regramento decorre do próprio caput -, há aspectos importantes positivados. O inciso I determina que deve ser atribuído o sentido que for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio28, em clara alusão aos aspectos inerentes da teoria da confiança. Muito embora tal entendimento já fizesse parte da civilística nacional, a verdade é que se trata de importante regra finalmente positivada no ordenamento. Evidentemente que o dispositivo não afasta a importância dos comportamentos anteriores à conclusão dos negócios, que permanece de todo relevante para uma correta interpretação. No que diz respeito aos incisos II e III, é preciso compreender que os critérios de racionalidade, de proteção da boa-fé, da confiança e da legítima expectativa não podem prescindir da observância da prática social29. O inciso IV, por sua vez, busca estabelecer o sentido que foi mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo. Considerando que tal regra não se restringe apenas aos contratos de adesão, que já tem regra própria (seja no art. 423, do CC ou no art. 47, do CC), trata-se de regra bastante duvidosa. Se se trata de um contrato estipulado bilateralmente em que ambas as partes tiveram a oportunidade de se manifestar sobre a redação da cláusula, por qual motivo há de se interpretar em favor daquela que não se opôs à redação? Apesar de doutrina afirmar que em caso de dúvida sobre o texto de contratos empresariais, a leitura deve ser contra aquele beneficiado pelo dispositivo contratual30, parece que o dispositivo gera mais problemas do que soluções. Por fim, o inciso V é certamente a principal regra e mais importante das inovações. O contrato, enquanto expressão da racionalidade das partes, é realizada em razão da operação econômica subjacente, buscando uma finalidade prático-social. Não se pode desconsiderar, nesse sentido, a racionalidade própria e concreta das partes. Tampouco se pode deixar de lado o fato de que a tomada de decisão das partes, na elaboração das cláusulas e da celebração do contrato, leva em consideração as informações disponíveis ao tempo da contratação. Como se vê, a interpretação dos contratos tem sérias implicações no dia a dia das relações econômicas, levantando uma série de questões. Porém, ela também sofreu as transformações decorrentes da evolução do próprio direito contratual, devendo o magistrado estar atento a essas alterações que correspondem aos anseios sociais e necessidades do tráfego jurídico. Assim, a consagração definitiva da boa-fé objetiva em sua função interpretativa deve nortear o intérprete conferindo uma maior proteção ao declarante e ao destinatário. Só assim será possível uma interpretação condizente com o espírito de cooperação para o adimplemento das expectativas recíprocas. __________ 1 Ver, por todos, ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 221. 2 GOMES, Orlando. Contratos. 26ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 238. 3 BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Tomo I. Campinas: LZN Editora, 2003, p. 184. 4 BETTI, Emilio, Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXXVIII. 5 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 228. 6 Idem, p. XLI. 7 BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XXXIII. 8 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 66. 9 DIEZ-PICASO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial - introduccion, teoria del contrato. 5ª Ed. Madrid: Editora Civitas, 1996, p. 393. 10 TEPEDINO, Gustavo. Crise das fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002 in: Temas de direito civil - Tomo II, p. 7. 11 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense 2006, p. 50. 12 GOMES, Orlando. Contratos. 26ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 250. 13 ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves. Lineamentos acerca da interpretação do negócio jurídico: perspectivas para a utilização da boa-fé objetiva como método hermenêutico. In: , p. 131. 14 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 252. 15 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como um processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 35/36. 16 Idem, p. 255. 17 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 632. 18 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2ª Ed. Ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 80. 19 "A interpretação pela boa-fé reforça o dispositivo que lhe antecede [art. 112] e prestigia a teoria da confiança, que é de certa forma um ecletismo entre as duas teorias que a precederam" ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves. Lineamentos acerca da interpretação do negócio jurídico: perspectivas para a utilização da boa-fé objetiva como método hermenêutico. In: , p. 138. 20 Na função interpretativa, a boa-fé exerce o papel de criadora de deveres fiduciários à prestação principal. Tratam-se dos chamados deveres secundários, laterais, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância. 21 A boa-fé também funciona como um limite para o exercício de direitos no âmbito de uma relação contratual, a fim de coibir o exercício abusivo dos direitos. 22 TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no código de defesa do consumidor e no novo código civil. In: Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 36. 23 No mesmo sentido Menezes Cordeiro: "De todo o modo, entendemos que a interpretação do negócio deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. Embora virada para as declarações concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele decorra." MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português. I. Parte Geral, Tomo I - introdução, doutrina geral, negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1999, p. 479. 24 BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 352/353. 25 REsp n. 1.804.965/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 27/5/2020. 26 BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 359. 27 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In: O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria o Advogado, 1997, p. 42. 28 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao art. 7º - a interpretação os negócios jurídicos após a lei das liberdades econômicas. In: Declaração de direitos de liberdade econômica - comentários à Lei 13.874/2019. Org. André Santa Cruz, Juliana Oliveira Domingues e Eduardo Molan Gaban. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 427. 29 FORGIONI. Paula A. A interpretação dos negócios jurídicos II - alteração do art. 113 do Código Civil: art. 7º. In: Comentários à lei de liberdade econômica - Lei 13.874/2019. Org. Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Jr. E Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 379. 30 Idem, p. 381.
Introdução: o problema da tutela específica desproporcional  No direito contratual brasileiro, a tutela específica é a resposta preferencial para a inexecução das obrigações. Assim, como regra geral, o credor prejudicado pelo inadimplemento tem o direito de requerer a imposição de medidas judiciais que forcem o devedor a cumprir a sua promessa de entregar coisa certa, fazer, ou não fazer algo. De acordo com a literalidade da legislação, o cabimento da tutela específica somente será afastado quando houver requerimento do credor ou quando a sua realização se tornar impossível. Nesse sentido, o art. 499 do Código de Processo Civil dispõe que "a obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente." Mas o que acontece nos casos em que os benefícios buscados pelo credor se mostram manifestamente desproporcionais aos custos impostos ao devedor? A tutela específica deve ser perseguida a todo e qualquer preço enquanto permanecer possível e desejada pelo contratante prejudicado? A compreensão do problema aqui apresentado pode ser facilitada por meio da consideração de alguns exemplos. O caso do anel, formulado por Philipp Heck no início do século XX, continua sendo a ilustração mais emblemática do dilema sobre o cabimento da tutela específica que acarretaria resultados desproporcionais.1 Imagine que, formalizada a compra e venda de um anel insubstituível, mas antes da efetivação da respectiva entrega, o vendedor se descuida e deixa a joia cair nas águas de um lago profundo. A mobilização de uma operação para o resgate do anel, embora fosse possível no plano hipotético, demandaria a realização de investimentos muito superiores ao preço originalmente combinado. Diante desta situação fictícia, o referido autor, professor da Universidade de Tubinga (Alemanha), concluiu que seria inaceitável a imposição do cumprimento coativo da obrigação violada. A solução mais adequada, portanto, seria a reparação pecuniária dos prejuízos sofridos pelo comprador em virtude da inexecução. O debate a respeito da viabilidade da tutela específica desproporcional também pode ser encontrado em alguns precedentes estrangeiros. Na França, um julgamento que chamou a atenção foi o caso da moradia construída com 13 polegadas de diferença em relação à altura inicialmente prometida.2 O dono da obra, insatisfeito com a inadequação das medidas, ajuizou uma ação pleiteando que a empreiteira fosse compelida a demolir e a reconstruir completamente a edificação defeituosa. Em sua defesa, a ré alegou que os pedidos não mereciam acolhimento porque as providências solicitadas demandariam gastos muito maiores do que o valor da perda experimentada pelo autor. A Corte de Cassação, ao final, decidiu que a obrigação de fazer mal executada deveria ser satisfeita em termos literais, independentemente dos sacrifícios exigidos. Esta orientação jurisprudencial rigorosa e inflexível foi uma das razões que motivaram a reforma do Código Civil francês em 2016. Os tribunais brasileiros, da mesma forma, já foram chamados a analisar a proporcionalidade da tutela específica. No julgamento do Recurso Especial 1.055.822/RJ, por exemplo, a 3ª Turma do STJ recusou a efetivação de um pedido de tutela específica considerado excessivamente oneroso.3 O conflito teve início quando uma consumidora adquiriu a assinatura anual de uma revista, mas recebeu apenas cinco exemplares mensais, porque a publicação foi descontinuada pela editora. A assinante não aceitou as ofertas de substituição e buscou uma ordem judicial que constrangesse a fornecedora a produzir os sete volumes faltantes. Como argumento de defesa, a empresa aduziu que seria economicamente inviável sustentar a linha de produção de um periódico para a satisfação de uma única cliente. Os ministros deram razão à parte ré e rejeitaram o pedido de tutela específica, porém ressalvaram o direito da autora de receber uma quantia equivalente ao valor dos fascículos não entregues. Afinal, no âmbito do direito brasileiro, o cabimento da tutela específica das obrigações contratuais deve ser limitado por uma análise de proporcionalidade entre os custos do devedor e os benefícios do credor? Em caso positivo, qual seria o fundamento jurídico desta restrição excepcional? Tais indagações, embora sejam relevantes para a compreensão dos efeitos da inexecução dos contratos, continuam em aberto, tendo em vista que ainda não se vislumbra uma resposta clara na legislação, na jurisprudência ou na doutrina. Estado da arte: a busca por respostas no ordenamento brasileiro  A noção de desproporcionalidade como limitação da viabilidade da tutela específica das obrigações foi problematizada de forma pioneira por Pontes de Miranda. Em meados do século XX, influenciado pela doutrina alemã, ele já afirmava que a tutela específica extremamente custosa deve ser considerada impossível, ilustrando a afirmação com o exemplo clássico do objeto que cai nas águas antes da entrega e somente poderia ser resgatado por meio de investimentos muito superiores ao preço estabelecido no contrato.4 Recentemente, contudo, Gabriel Barreto contestou o entendimento de que a tutela específica desproporcional pode ser tratada como impossível. Para ele, a impossibilidade que excepciona a regra da tutela específica deve ser real, ou seja, deve corresponder a um obstáculo físico ou jurídico que efetivamente impeça a realização da prestação. Assim, a constatação de um desequilíbrio, ainda que significativo, não seria suficiente para afastar o remédio da tutela específica diante do inadimplemento relativo.5 Ao tratar particularmente da tutela específica ressarcitória, Luiz Guilherme Marinoni afirma que a reparação in natura deve ser afastada quando acarretar onerosidade excessiva para o devedor. O autor fundamenta seu posicionamento com elementos de direito comparado e com argumentos de natureza econômica, evidenciando a ineficiência da tutela específica ressarcitória que demanda custos desproporcionais aos próprios benefícios.6 Essa linha de raciocínio é compartilhada por Guilherme Teixeira.7 Em sentido contrário, Daniel Neves discorda da utilização da ideia de onerosidade excessiva para limitar o cabimento das diferentes modalidades de tutela específica. Na parte do seu Manual de Direito Processual Civil voltada às restrições da tutela específica, ele adota uma visão mais próxima da legislação e defende tão somente as duas limitações expressamente consagradas no art. 499 do Código de Processo Civil, que correspondem à vontade do exequente e à impossibilidade da prestação.8 Venceslau da Costa Filho e Roberto Albuquerque Jr., por sua vez, apresentam uma argumentação embasada no princípio da menor onerosidade da execução.  Nos termos do art. 805 do Código de Processo Civil, "quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado". De acordo com os autores, esta norma poderia ser utilizado como um dos fundamentos para o afastar a tutela específica que traria resultados desproporcionais.9 Finalmente, Fredie Didier Jr., sustenta que o princípio da menor onerosidade da execução não é capaz de impedir o cabimento da tutela específica das obrigações inadimplidas. Em sua interpretação, o art. 805 do Código de Processo Civil não regula a escolha entre as formas de tutela jurisdicional, mas sim a escolha dos meios executivos aptos a concretizar a execução. O referido princípio atuaria apenas em um momento posterior, servindo de parâmetro para avaliar e hierarquizar os diferentes mecanismos coercitivos e sub-rogatórios.10 Como se pode notar, não há consenso na doutrina a respeito do problema da tutela específica de obrigações contratuais que envolve custos e benefícios desproporcionais. Alguns defendem a sua rejeição, com base na noção ampla de impossibilidade, no conceito de onerosidade excessiva ou no princípio da menor onerosidade da execução. Outros, apoiados na interpretação literal da legislação, argumentam que a tutela específica só deve ser recusada nos casos de ausência de interesse do credor ou impossibilidade em sentido estrito. Tendo em vista que o ordenamento nacional não contém uma resposta definitiva para o problema do controle de proporcionalidade da tutela específica, o estudo do direito comparado pode oferecer novos horizontes de solução. Isso porque, nos últimos anos, tem crescido no meio dos países filiados à tradição romano-germânica a percepção de que o direito à tutela específica deve ser limitado a partir de um sopesamento entre o proveito do credor e o sacrifício do devedor.  Direito comparado: a contribuição das experiências estrangeiras  Na Alemanha, a reforma do Código Civil que foi promulgada no ano de 2001 estabeleceu um novo regime para a tutela específica das obrigações. A legislação alemã conta hoje com um dispositivo que protege o devedor, concedendo a ele o direito de recusar o cumprimento compulsório quando for verificada uma grave desproporção. Esta hipótese, que não se confunde com a situação de impossibilidade em sentido estrito, recebeu da doutrina a alcunha de impossibilidade prática.    Eis o enunciado da segunda seção do § 275 do Código Civil alemão: "O devedor pode recusar a prestação na medida em que ela exija um esforço que, levando em conta o conteúdo da relação obrigacional e os mandamentos da boa-fé, seja grosseiramente desproporcional ao interesse do credor na execução. Na determinação dos esforços exigíveis do devedor, deve-se considerar também se ele é responsável pelo obstáculo à prestação" (tradução nossa). A inovação legislativa é interessante porque obsta o exercício do direito à tutela específica em casos extremos, que demandariam esforços exorbitantes do devedor. Sua interpretação tem sido associada ao célebre § 242, que mesmo antes da reforma já consagrava a cláusula geral da boa-fé objetiva. Para os juristas alemães, o instituto de impossibilidade prática representa uma concretização da função limitativa da boa-fé objetiva e da correlata proibição de abuso do direito. O texto da segunda seção do § 275 deixa claro que o direito à tutela específica, embora seja reconhecido, não pode ser efetivado a qualquer preço. A faculdade que o credor possui de requerer a tutela específica da obrigação inadimplida deve ser exercida de maneira razoavelmente equilibrada, sob pena de configuração de abusividade. Michael Stürner, nesse sentido, explica que a regra da impossibilidade prática "abre um direito independente de recusar a prestação, que é baseado fundamentalmente na proibição de abuso do direito" (tradução nossa).11 Algo muito semelhante ocorreu na França em 2016, com o advento de uma reforma do Código Civil que também alterou o regramento da tutela específica. Por um lado, a redação atual da codificação francesa reconhece expressamente o direito que o contratante prejudicado possui de requerer a tutela específica diante do inadimplemento. Por outro lado, no entanto, o texto legal apresenta duas exceções ao cabimento da execução in natura, que são a impossibilidade da prestação e a manifesta desproporcionalidade.      Em sua versão mais atualizada, o art. 1221 do Código Civil francês estabelece que "o credor de uma obrigação poderá, após notificação formal, demandar a sua execução em espécie, a menos que tal execução seja impossível ou que exista uma desproporção manifesta entre seu custo para o devedor de boa-fé e sua vantagem para o credor" (tradução nossa). Este dispositivo foi uma reação contra a jurisprudência da época, que reconhecia o direito à tutela específica independentemente de qualquer análise custo-benefício. Buscou-se impedir a reiteração de julgamentos criticáveis, como a decisão que ordenou a demolição e a reconstrução da casa com uma pequena diferença de altura. De acordo com a doutrina francesa, a nova regra decorre da constatação de que a exigência da prestação em circunstâncias desproporcionais corresponde, na verdade, a uma espécie de abuso do direito.12 A própria exposição de motivos da reforma, ao tratar do art. 1221, esclarece que "esta nova exceção visa evitar certas decisões judiciais muito contestadas: quando a execução in natura é extremamente onerosa para o devedor sem que o credor tenha um interesse efetivo nela, parece injusto e injustificado que este último possa exigi-la, sendo que uma condenação em perdas e danos poderia fornecer-lhe uma compensação adequada a um preço muito mais baixo. O texto proposto é analisado como uma variação do abuso de direito" (tradução nossa).13 Conclusão: o abuso do direito como uma possível solução O exame do direito comparado revela, portanto, que alguns países de civil law assimilaram normas que impedem a tutela específica desproporcional. Como evidenciam as experiências da Alemanha e da França, esses dispositivos têm sido atrelados às noções de boa-fé objetiva e de abuso do direito. A hipótese aqui defendida é que tal raciocínio pode ser transposto para o ordenamento brasileiro, que não possui uma regra expressa a respeito do tema, mas conta com uma cláusula geral proibitiva do abuso do direito. Nos termos do art. 187 do Código Civil, "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." Desde o seu surgimento, esse dispositivo tem sido utilizado de maneira profícua pela doutrina e pela jurisprudência. A abertura da sua redação permite que ele seja aplicado em diferentes ramos do ordenamento para reprimir toda sorte de tentativas de aproveitamento inaceitável de posições jurídicas.14 Das três limitações ao exercício de direitos mencionadas no art. 187, o limite imposto pela boa-fé objetiva é certamente aquele que tem recebido a maior atenção no Brasil. Com base na função limitativa da boa-fé objetiva, os juristas nacionais sistematizaram diversas hipóteses de abusividade associadas ao exercício inadmissível de posições jurídicas.15 Nesse contexto, sem prejuízo das demais categorias de conduta abusiva, destaca-se uma modalidade peculiar, que é a noção de abuso do direito como desequilíbrio no exercício jurídico. O abuso do direito, compreendido enquanto exercício jurídico desequilibrado, ocorre quando uma atuação lícita do ponto de vista formal acaba gerando resultados desproporcionais. Menezes Cordeiro, ao tratar desta tipologia particular de comportamento abusivo, esclarece que "a ideia de desequilíbrio no exercício traduz um tipo extenso de atuações inadmissíveis de direitos. Abrigam-se, a ela, subtipos variados de conjunturas abusivas, próximas por, em todas, haver despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados."16 A ideia de abuso do direito como desequilíbrio no exercício jurídico auxilia na compreensão de algumas condutas que não são admitidas no direito contratual brasileiro. Ela ajuda a explicar os casos em que a jurisprudência impede a efetivação de determinadas pretensões justamente para evitar a ocorrência de prejuízos desproporcionais. De fato, existem várias situações em que a legislação concede prerrogativas aos contratantes, mas o Poder Judiciário interfere para evitar o aproveitamento dessas faculdades de maneira abusiva. O art. 475 do Código Civil, por exemplo, garante à parte lesada pelo inadimplemento o direito de optar pela resolução do contrato. Com base na teoria do adimplemento substancial, no entanto, os tribunais têm entendido que essa medida não deve ser efetivada perante descumprimentos contratuais insignificantes.17 A resolução contratual, embora seja cabível em abstrato, torna-se abusiva nestas hipóteses exatamente porque acarretaria consequências desproporcionais em comparação com a inexecução de pequena importância. Pois bem, por uma questão de coerência, é preciso admitir que o direito à tutela específica também está sujeito a um filtro de proporcionalidade no exercício. Assim como acontece com as demais pretensões contratuais, os pedidos de tutela específica devem ser rejeitados quando houver manifesta desproporção entre o interesse do requerente e o sacrifício do requerido. O instituto do abuso do direito, em sua vertente de vedação ao desequilíbrio no exercício jurídico, oferece um fundamento razoável e familiar para essa excepcionalização. Em síntese, conclui-se que a cláusula geral de abuso do direito pode ser mobilizada para impedir o exercício desproporcional do direito à tutela específica.  É importante ressaltar, por fim, que o contratante prejudicado não ficará totalmente desprotegido, porque sempre terá à sua disposição a tutela substitutiva ou genérica. Sendo assim, caso o requerimento de tutela específica seja recusado em virtude da sua abusividade, o credor ainda poderá demandar uma quantia equivalente ao valor da obrigação contratual inadimplida. __________ *Este texto retoma alguns dos argumentos que foram defendidos como tese de doutorado junto à Universidade Federal de Minas Gerais e publicados posteriormente em formato de livro, cf. ANDRADE, Daniel de Pádua. Tutela específica das obrigações contratuais. São Paulo: Almedina, 2022. 1 HECK, Philipp. Grundriss des Schuldrechts. Tübingen: Mohr, 1929, p. 69. 2 ROWAN, Solène. Remedies for breach of contract: a comparative analysis of the protection of performance. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 45-46. 3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.055.822/RJ. Relator: Min. Massami Uyeda, 24 de maio de 2011. 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. 4. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 165. 5 BARRETO, Gabriel de Almeida. Tutela específica e meios coercitivos para o cumprimento das obrigações contratuais: um estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça à luz da literatura de direito e economia. Dissertação (Mestrado em Direito) - Escola de Direito de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2019, p. 87. 6 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 298. 7 TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Tutela específica dos direitos: obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 214. 8 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: volume único. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1187. 9 COSTA FILHO, Venceslau Tavares da; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Notas sobre as ações relativas às prestações de fazer, de não fazer e de entregar coisa no Código de Processo Civil de 2015. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 5, n. 4, p. 1613-1643, 2019, p. 1631-1633. 10 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 593-594. 11 STÜRNER, Michael. Die Grenzen der Primärleistungspflicht im Europäischen Vertragsrecht. European Review of Private Law, v. 19, n. 2, p. 167-185, Apr. 2011, p. 171. 12 TERRÉ, François. La réforme du droit des obligations. Paris: Dalloz, 2016, p. 52. 13 FRANÇA. Ministère de la Justice. Rapport au Président de la Republique relatif à l'ordonnance nº 2016-131 du 10 février 2016. Journal Officiel de la République Française, Décrets, arrêtés, circulaires, Textes Généraux, texto 25, 11 févr. 2016, p. 18. 14 TARTUCE, Flávio. A construção do abuso de direito nos dez anos do Código Civil brasileiro de 2002. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 1, v. 6, p. 447-472, 2015, p. 459-469. 15 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 87. 16 CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 851. 17 Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial 1.581.505/SC. Relator Min. Antonio Carlos Ferreira, 18 de agosto de 2016.
No Brasil, segundo o Mapa de Empresas divulgado pelo Governo Federal, no último quadrimestre de 2022, 92,32% das sociedades empresárias brasileiras respondem pelo tipo societário limitado, o que faz com que as avenças empresariais ocorram, quase que de forma unânime, através dos contratos sociais, constituindo este importante objeto de análise. Enquanto sociedades limitadas, as empresas brasileiras são norteadas pelo estruturante elemento da affectio societatis, o que faz com que as relações familiares dos sócios gerem repercussões diretas na esfera empresarial. Em razão de tal elemento, o cônjuge/companheiro meeiro e herdeiros, em regra, não ingressam na empresa, quando do divórcio/dissolução da união estável, ou da morte do sócio, concretizando o brocado latim socci non socici esteo. Com isso, possuindo tais pessoas direito ao valor econômico das quotas empresariais, nasce o conflito entre a preservação da empresa, com fundamento em sua função social, já que para o pagamento do valor a que fazem jus os impedidos de entrarem na sociedade, pode ocorrer um desinvestimento na empresa (dissolução parcial da sociedade empresarial); e o direito da livre associação em adição ao direito de propriedade, de tais membros impedidos. Neste contexto, quando o evento ocorrido compreende a morte de um dos sócios, o art. 1.028 do Código Civil, não gera dúvidas quanto à possibilidade imediata de dissolução parcial da empresa, assim como a data base para a apuração dos haveres: o momento em que ocorreu a abertura da sucessão. Portanto, nesta situação, a controvérsia remanesce quanto ao critério de apuração dos haveres e o modo de seu pagamento, instabilidades que afetam de sobremaneira a empresa, já que no silêncio do contrato social, aplicam-se as regras do Código Civil, onde o método de apuração será o Balanço de Determinação, conforme dispositivo no artigo 606 do Código de Processo Civil, posição ratificada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do Recurso Especial 1.877.331/SP1, no qual há  referência a julgados bastante antigos, demonstrado ser esta a posição consolidada do Colendo Tribunal; garantida a escolha de método diverso, desde que esta seja de forma expressa, conforme decisão proferida no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.334.975/SP2. Ocorre que, nem sempre tal método de fato reflete o real valor econômico da sociedade empresária, especialmente para os negócios que pouco possuem ativos imobilizados, a exemplo das sociedades de tecnologia e sociedades de advogados. Além de tal incongruência, ausente disposição em sentido diverso no contrato social, nos termos do art. 1.031, §2º do Código Civil, os haveres apurados devem ser pagos em dinheiro, dentro do prazo de 90 dias. Trazendo tais instabilidades a concreta realidade brasileira, tem-se que, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE - 98,83% das sociedades empresárias verdes e amarelas são micro e pequenas empresas, o que significa ínfima possibilidade de previsão diversa em seus contratos sociais, fato que, combinado com a ausência de grande número de sócios em tais sociedades, leva à quebra da empresa, as quais, somadas, respondem pela geração de 30% do Produto Interno Bruto Brasileiro e 50% da mão de obra no país, dimensionando desta forma o impacto de tais instabilidades. Tal situação se agrava ainda mais, quando o evento ocorrido se encontra no divórcio ou na dissolução da união estável de um dos sócios. Neste caso, além das instabilidades acima relatadas, há sérias e importantes controvérsias quanto a possibilidade de dissolução parcial imediata da empresa para pagamento da meação do ex-cônjuge/companheiro, a natureza do pagamento dos lucros que devem ocorrer até a dissolução total da empresa, a própria data de apuração dos haveres, além da possibilidade de opor a estas pessoas impedidas de entrarem na sociedade empresária, as avenças constantes no próprio contrato social. Deste modo, os deletérios efeitos das instabilidades se multiplicam de sobremaneira quando o rompimento da relação de conjugalidade do sócio ocorre durante a vida dos consortes. Neste sentido, quanto a possibilidade de dissolução parcial imediata da sociedade empresária em caso de divórcio/dissolução de união estável do sócio, para pagamento do valor econômico das quotas societárias correspondente a meação, a interpretação do art. 1.027 do Código Civil, tem sido no sentido de que não é possível tal dissolução, cabendo ao meeiro impedido o recebimento de lucros proporcionais da referida sociedade, até que esta seja dissolvida integralmente. Sob este aspecto, aparentemente há um conflito entre a preservação da empresa, no viés do cumprimento de sua função social, e o direito à livre associação do ex-cônjuge/companheiro, assim como seu direito de propriedade, pois, à primeira vista, parece que estes ficam acorrentados a empresa do ex-consorte, até que esta seja extinta, data completamente imprevisível, já que as pessoas jurídicas são ficção jurídica que objetivam a perpetuidade. Neste contexto, parte da doutrina e da jurisprudência entende que tais lucros serão pagos até a dissolução integral da empresa, momento em que o ex-cônjuge/companheiro receberá o valor econômico das quotas a que faz jus, a exemplo do Recurso Especial 1.537.107/PR3, que inclusive determina que a data de apuração dos haveres é a da própria partilha, e não da separação de fato. No entanto, verificando a questão sob as lentes do direito de família, observa-se que, de acordo com o art. 1.571 do Código Civil, lido conforme entendimento majoritário de que não há mais no ordenamento jurídico brasileiro separação judicial, a comunicabilidade promovida pelo regime de bens encerra-se com a separação de fato, posição ratificada na Decisão Monocrática proferida no Agravo em Recurso Especial 1.499.914/SC.4 Portanto, no momento da separação de fato encerra-se a participação do ex-cônjuge/companheiro na sociedade empresária que possui meação, passando este a ocupar a posição de credor particular do sócio que era seu consorte, e por isso, a ser aplicado o regime jurídico disposto pelo art. 1.026 do Código Civil, o que faz com que os lucros que serão pagos em seu favor tenham o condão de amortização do valor econômico de direito daquele  que se divorciou ou dissolveu a união estável com um dos sócios. Insta consignar que, além de tal posicionamento estar de acordo com o regime jurídico aplicável nas relações de família, sob a ótica dos regimes de bens que geram comunicabilidades, este acaba sendo um entendimento mais protetivo àqueles que possuem valores a receber da sociedade, já que não ficam expostos ao risco do negócio operado pelo ex-consorte, assim como mais justo ao ex-parceiro que permanece na sociedade empresária, já que após a separação de fato não há mais esforço comum na construção do patrimônio. Por fim, ainda há controvérsia quanto a possibilidade de aplicar as avenças constantes no contrato social, quando existentes, quanto a apuração de haveres e forma de pagamento destes, ao ex-cônjuge/companheiro não sócio direito da sociedade empresária, assim como em relação a possibilidade de fiscalização e pedido de prestação de contas da empresa, por estes. Neste sentido, a jurisprudência não apresenta coerência, uma vez que por um lado, admite a fiscalização e o pedido de prestação de contas pelo ex-cônjuge/companheiro meeiro não sócio da empresa, a exemplo do Recurso Especial 1.924.301/SP5, mas por outro, entende pela impossibilidade de oposição das avenças constantes no contrato social a estes, já que terceiro, como reconhece o Recurso Especial 1.531.288/RS6. Tais instabilidades afeitas ao universo empresarial alcançam patamar extremamente crítico, quando somadas as incertezas derivadas do direito de família e das sucessões. No que diz respeito ao âmbito da família, a maior gravidade encontra-se no instituto da união estável, já que enquanto ato-fato jurídico, tal interpretação também objeto de controvérsia, mas de entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência, a exemplo do Recurso Especial 1.761.881/MS7; não resta necessário que os envolvidos queiram estar em união estável, mas que apenas sejam perfeitos os requisitos constantes no art. 1.723 do Código Civil, onde o ânimo de constituir família é aferido pela sociedade, e não por aqueles que estão efetivamente se relacionando. Com isto, não se sabe ao certo se está se vivendo uma relação de conjugalidade, ou apenas um namoro, já que a diferenciação entre tais relações é bastante tênue: intenção imediata ou futura de constituir família? Não bastasse tal incerteza, a interpretação atual da doutrina e da jurisprudência impossibilita a mitigação dos efeitos patrimoniais gerados pelo "efeito surpresa" da relação de conjugalidade, ao vedar a retroatividade do regime de bens a ser pactuado entre os companheiros, a exemplo do Recurso Especial 1.383.624/MG8. Quanto ao casamento, e neste contexto também a união estável após a declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, pelo Recurso Extraordinário 878.694/MG9, a celeuma advém dos direitos sucessórios do cônjuge/companheiro em descompasso com os anseios sociais. Isto ocorre porque, embora os tempos atuais sejam de plena dissolubilidade do casamento, e haja fugacidade das relações na líquida sociedade liquida de Zygmunt Bauman, o Código Civil de 2022 rumou em sentido contrário, auferindo direitos sucessórios permanentes aos cônjuges, e agora também aos companheiros, através da criação do direito concorrencial deste com descendentes e ascendentes , conforme dispõe o art. 1.829 do Código Civil, assim como conferiu ao cônjuge (quanto ao companheiro pendem importantes controvérsias doutrinárias) o status de herdeiro necessário, a luz do art. 1.845 do referido diploma legal, quando no Código Civil anterior, quando estes não possuíam tal posição, mas somente faziam jus ao usufruto vidual e ao direito de habitação, nos termos do art. 1.611, parágrafos primeiro e segundo, do Código Civil de 1916, direitos estes apenas temporários. Somada a esta inconsistência entre os anseios sociais e as normas sucessórias, tem-se  hoje entendimento majoritário da doutrina (outra questão de intensa controvérsia), de que não é possível a renúncia antecipada dos atuais direitos sucessórios conferidos ao cônjuge/companheiro, a exemplo do Recurso especial 1.142.945/RJ10, quanto à renúncia concorrencial, e do Recurso Especial 1.433.650/GO11, quanto a herança propriamente dita. Com isto os indesejáveis direitos sucessórios tornam-se uma realidade inafastável. Frente a este cenário, o mercado, de forma caótica e desordenada, buscou suas próprias saídas, estas concentradas no movimento de pejotização das relações de família, sítio onde ocorre a migração de um ambiente de forte incidência do princípio da solidariedade, base das normas de ordem pública de família e sucessões, para um ambiente de prevalência da autonomia privada, qual seja, o ambiente societário. Com isto, ao migrarem para o ambiente empresarial, as regras a vigerem para a família em questão passam a ser as constantes no contrato social, o qual pode organizar com muito mais elasticidade de menos controles aquilo que atenda a vontade dos envolvidos, que deixam de ser família e passam a serem sócios, com a presunção de uma relação de paridade, o que não ocorre com as relações familiares, que são, em grande maioria, ainda relações desiguais, demandando por isso tutela dos vulneráveis nela existente. Além da pejotização das relações de família fragilizar a tutela dos vulneráveis, tal prática promove solo fértil para a perpetração de fraudes, pois através de manobras financeiras e negociais é possível esvaziar o balanço de uma empresa, promovendo inclusive a migração da lucratividade para empresa cujos sócios são as pessoas que o autor da herança deseja beneficiar, ao arrepio da reserva da legitima, e com isto facilmente violar meações e direitos hereditários. Trazendo tal realidade para a perspectiva de gênero, nos termos da Recomendação 128 do Conselho Nacional de Justiça, emitida em 15 de fevereiro de 2022, tem-se que a pejotização das relações de família incrementam a vulnerabilidade de gênero, já que na sociedade brasileira a mulher ainda é o membro mais vulnerável, posto que ainda vivemos sob a égide sexista dos séculos anteriores, presentes, ainda que de modo escamoteado, no microssistema nacional. Tal realidade é perceptível de modo claro quando se verificam os dados aferidos pelo IBGE no ano de 202112. Segundo tais dados, no mercado de trabalho, recorte diretamente relacionado a pejotização das relações de família, do exército de pessoas desempregadas, 53,72% são do gênero feminino, percentual que em números absolutos corresponde a quase oito milhões de mulheres. Quando a ótica de análise diz respeito as pessoas efetivamente ocupadas no Brasil, tal ocupação sob o prisma das atividades informais, são exercidas por 50,59% de pessoas do gênero feminino, nicho onde o rendimento médio do trabalho informal corresponde a menos que a metade do obtido pelo exercício de atividades de modo formal. Tal perspectiva desfavorável de repete quanto as atividades formais exercidas por mulheres, onde constata-se que 55,58% destas estão alocadas em subocupações, ou seja, mais da metade das vagas a atividade a ser desenvolvida está abaixo de sua capacidade laboral. Migrando a análise dos dados para a espécie de atividade desenvolvida, na triangulação empregado, empregado doméstico e empregador, a intensa desigualdade de gênero torna-se ainda mais nítida. O labor na posição de empregado representa a maioria das relações de trabalho no Brasil, respondendo por 53% da mão de obra ocupada. Dentro deste cenário, quanto aos empregos formais, 60,15% são ocupados por homens, o que relega as mulheres somente 39,85% dos empregos com proteção das leis trabalhistas e maior estabilidade. Tal perspectiva torna-se ainda mais grave, quando se verifica o trabalho doméstico. Embora tal relação de trabalho corresponda apenas a 6% das pessoas ocupadas, dentro deste nicho, 92% dos trabalhadores são do gênero feminino e 93% destas exercem suas funções de modo informal. De modo coerente, no vértice oposto, quando o parâmetro de análise passa a ser o empregador, 72,19% destes são homens, o que faz com que somente 27,81% das mulheres ocupem esta posição. Note-se que, além de tais números demonstrarem por si só a intensidade da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, a ampla maioria masculina na posição de empregador muito diz sobre o agravamento de tal desigualdade de gênero promovida pela pejotização das relações de família, já que tais sociedades empresárias são nitidamente de empregadores. Por fim, o último parâmetro que faz com que não pendam dúvidas quanto à ampla desigualdade de gênero no mercado de trabalho, diz respeito aos rendimentos médios auferidos pelas pessoas ocupadas no Brasil. De modo geral, os indicadores sociais levantados pelo IBGE em 2021, apontam que as mulheres recebem, em média, 30% menos que os homens. Tal diferença aumenta, quanto maior for o cargo ocupado, alcançando 61,64% para os cargos de gerência e diretoria, números estes que mais uma vez guardam forte relação com o movimento de pejotização em análise. Deste modo, restam correlacionadas as instabilidades advindas da dinâmica empresarial, que somadas com derivadas das relações de família e sucessões, levam ao caótico e desordenado movimento de pejotização das relações de família que tem sido observado de modo empiricamente, hoje em escala crescente; com fundamento em contratos sociais, já que a maioria das sociedades empresárias brasileiras são limitadas, desencadeando o aumento da desigualdade de gênero, pois ao pejotizar as relações de família ocorre o incremento da vulnerabilidade pelo fato de que no ambiente empresarial prevalece a autonomia privada e presume-se que as relações são paritárias, não havendo a necessária proteção aos membros vulneráveis, hoje, em virtude de herança histórica e de injustiças instituídas não debeladas, ainda a mulher. ---------- 1 STJ, Recurso Especial 1.877.331/SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 13/4/21, DJE. 14/3/21 2 STJ, AgInt no AREsp 1.334.975/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, julgado em 19/4/21, DJe. 26/4/21   3 STJ, REsp 1.537.107/PR, Terceira Turma, Reatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 17/11/16, DJe. 25/11/16 4 STJ, Decisão monocrática no AREsp 1.499.914/SC, proferida pelo Ministro Marcos Buzzi em 18/8/19 5 STJ, REsp 1.924.501/SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/4/22, DJe. 28/4/22 6 STJ, REsp 1.531.288/RS, Terceira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellize, julgado em 24/11/15, DJe. 17/12/15. 7 STJ. REsp 1.761.887/MS, Quarta Turma. Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, julgado em 6/8/19. 8 STJ, REsp 1.383.624/MG, Terceira Turma, Relator Ministro Moura Ribeiro, julgado em 2/6/15 9 STF. RE 878.694, Tribunal Pleno. Relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/5/17 10 STJ, Resp 1.142.945/RJ, Terceira Turma, Relator Ministro Ricardo Villas Boas Cuerva, julgado em 7/10/14 11 STJ, Resp 1.433.650/GO, Quarta Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 19/11/19 12 Disponível aqui. Acesso em 14/2/23.
Introdução Com a permissão e convite do Professor Doutor Flavio Tartuce, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT, apresentamos nossos fundamentos legais que permitem a instrumentalização particular da doação de imóveis, acima de 30 salários mínimos, baseada na interpretação sistemática do atual Código Civil, na leitura conjunta da primeira parte do artigo 108, o qual faz ressalva quanto a exigibilidade da escritura pública nos negócios imobiliários com a redação do artigo 541, que trata da permissão da forma plúrima do contrato de doação. Da possibilidade da doação de imóveis por instrumento particular O Código Civil atual, copiando a norma anterior, dispõe sobre a facultatividade da forma pública ou particular na instrumentalização do contrato de doação como dispõe o art. 541 atual1. Diversamente, porém, o art. 1.168 do Código Civil de 1916, fazia remissão à aplicação do art. 134, cujo dispositivo previa a exigência da escritura pública como elemento essencial dos atos translativos de imóveis de valor superior a Cr$50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros)2. Tal correlação e dependência entre os mesmos institutos (doação e escritura pública) não há no novo Código Civil. Havendo em nosso sistema, uma busca pela circulação de riquezas, pensamos que o legislador entendeu a necessidade de se ampliar o acesso do instituto da doação, facultando a materialização deste contrato por instrumento público ou particular de modo expresso na lei, sem fazer qualquer inclusão remissivo como fazia o Código Civil anterior. Contudo, ao analisarmos alguns julgados sobre o assunto, vimos uma certa divergência de entendimentos. A 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, negou recurso proposto por M.G.O. que pretendia anular o acordo de doação de parte de um imóvel aos dois filhos menores de idade, firmado em processo de separação consensual. O fundamento para a inexigibilidade da escritura pública baseou-se no argumento de que doação decorrente da livre manifestação de vontade, realizada por instrumento particular homologado judicialmente é válida, eficaz e plenamente executável, caso o doador se negue a efetuar a escritura pública. (Apelação nº 0034746-69.2009.8.26.0068). Na mesma linha de raciocínio, a 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, entendeu que a formalidade da doação, expressa no art. 541 do Código Civil é o suficiente para justificar a doação, sendo que "adotada qualquer uma das formas (pública ou particular), o negócio deve ser levado a registro no Cartório, da situação do imóvel, por força do art. 167, I, item 33, da Lei 6.015/73". (APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0137.10.000440-7/001 - Comarca de Carlos Chagas - Relator: DES. JOÃO CANCIO j. 20/03/2012). Em sentido contrário, a 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, decidiu por não autorizar o registro de um instrumento particular de doação com reserva de usufruto de imóvel, por entender ser indispensável o uso da escritura pública, fundamentando apenas que o seu valor superava a taxa legal, como está assentado na doutrina e na jurisprudência.3 Seguindo o mesmo raciocínio, no julgamento de dúvida inversa com o intuito de registrar o instrumento particular denominado "termo de doação de imóvel" e de procuração em causa própria, foi ressaltado pelo juízo especializado que em observância à forma prescrita em lei, por envolver direitos reais, a essencialidade do negócio exigiria escritura pública específica, sendo esta pressuposto de validade.4 No mesmo sentido, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em julgamento de recurso de apelação que manteve a recusa do registro de instrumento particular de doação de imóvel, fundamentou-se apenas no valor do bem, o qual à luz do art. 108 da Lei Civil, seria de rigor a escritura pública.5 É de se observar nas decisões colacionadas, que os julgados não fazem nenhuma referência sobre a permissão da forma plúrima prevista no art. 541 do Código Civil. A posição da doutrina, em sua grande maioria, adota a aplicação do artigo 108 do Código Civil, sem aprofundamento do diálogo jurídico com o art. 541 do Código Civil, como se não houvesse diferenças entre as regras do código anterior e o atual. Jones Figueiredo Alves, defende a forma solene (escritura pública), como essência do ato, nos casos da coisa ser imóvel e com valor superior a trinta salários mínimos, aplicando-se a regra do art. 108 do Código Civil.6 Nelson Rosenvald, segue a mesma linha de pensamento sobre a aplicação do art. 108 do Código Civil, nos casos de doação de imóveis com valor superior aos trinta salários, apesar de afirmar que não resta dúvida sobre o caráter formal da doação em exigir a forma escrita, apontando como referência o julgado do TJSP, Ap. Cível n. 7.302.494.00, rel. Maia Rocha, j. 01.12.2008.7 Caio Mário da Silva Pereira, também seguia a linha da indispensabilidade do instrumento público, nos casos do art. 108 do Código Civil.8 Maria Helena Diniz, afirma ser a doação um contrato solene, no sentido da exigibilidade de ser escrito particular ou público, ressalvando que a escritura pública será necessária, nas hipóteses do art. 108.9 Ulysses da Silva, também segue a linha da aplicabilidade do art. 108 do Código Civil na doação. (Direito Imobiliário: o registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada - Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008, p. 206) Paulo Nader, também opina pela exigibilidade da escritura pública quando o objeto for imóvel acima de trinta salários mínimos, apesar de afirmar que o contrato de doação possui natureza formal, uma vez que se exige a escritura pública ou particular, como regra geral, segundo prescreve o caput do art. 541 do Código Civil.10 Inclusive nosso mestre Professor Flavio Tartuce, aduz que a doação será formal e solene no caso de doação de imóveis com valor superior a 30 salários mínimos.11 Em sentido contrário, Carlos Roberto Gonçalves, afirma que a doação, por se tratar de um contrato formal, se aperfeiçoa com o acordo de vontades, podendo ser verbal quando se tratar de bem móvel e de pequeno valor e será solene, ao observar a forma escrita, seja ela particular ou pública.12 A justificativa para tanto é definida pela doação se tratar de um contrato formal ou solene, pela imposição da lei da forma escrita, por instrumento público ou particular (art. 541, caput), salvo a de bens móveis de pequeno valor, que pode ser verbal (parágrafo único).13 Hércules Aguiarian, é bastante objetivo ao afirmar que a doação, quando se tratar de bem imóvel, será um contrato formal ou solene, nos termos do art. 541 do Código Civil, não se aprofundando sobre eventual combinação com o artigo 108 do Código Civil.14 Da interpretação da forma prescrita em lei Em recente artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Contratual nº 13 - ano IV (out-dez 2022) discorremos sobre a necessária revisão na interpretação da forma dos atos e negócios jurídicos, principalmente da redação do artigo 108 do Código Civil. Cumpre ressaltar que o artigo 107 do Código Civil concede como regra do sistema jurídico civil a liberdade de forma para as declarações de vontade, inclusive nos atos e negócios jurídicos, exceto quando a lei exigir forma especial, sob pena de nulidade (art. 166, inciso IV, Código Civil). Desse modo, o Código Civil impõe em artigo 104, inciso III, o respeito à forma definida na lei, seja ela única ou plúrima, ou ainda a forma não defesa (livre). Em consonância com o magistério do Professor Flavio Tartuce, a noção da diferença entre formalidade e solenidade é fundamental para esta compreensão, tendo a solenidade o significado da exigibilidade da presença do delegatário extrajudicial para materialização do ato, ao passo que a formalidade define-se pela exigibilidade de cumprimento de qualquer meio documental para se provar o ato, como o ato escrito, de modo particular ou público, concluindo-se que a forma seria gênero e a solenidade espécie.15 Os atos solenes ou de forma prescrita única, são caracterizados como aqueles em que a presença dos delegatários extrajudiciais é obrigatória ou cogente para materializar os institutos jurídicos, sob pena de nulidade (art. 166, IV, CC), como nos seguintes exemplos: (i) a constituição de renda (art. 807)16; (ii) a constituição do direito real de superfície (art. 1.369)17; (iii) o casamento (art. 1.525)18; (iv) a procuração para casamento (art. 1.542)19; (v) o pacto antenupcial (art. 1.640, parágrafo único)20; (vi) a instituição de bem de família voluntário (art. 1.711)21; (vii) a cessão de direitos hereditários (art. 1.793)22. Por outro lado, a lei permite a forma plúrima (atos meramente formais, ou escritos), na qual a instrumentalização é facultada por meio de instrumento público ou particular, como é o caso: (i) da cessão de crédito (art. 288)23; (ii) do mandato (art. 657)24; (iii) a sociedade simples (art. 997)25; (iv) a convenção de condomínio edilício (art. 1.334, §1º)26; (v) o compromisso de compra e venda de imóveis (art. 1.417)27 ou sua cessão de direitos (art. 26, lei 6.766/79)28; (vi) o penhor rural (art. 1.438)29; (vii) o reconhecimento de filhos (art. 1.609)30; (viii) a autorização do cônjuge na alienação de bens particulares do outro cônjuge (art. 1.649, parágrafo único)31; (ix) a partilha amigável de herdeiros capazes (art. 2.015)32; ou ainda (x) nos negócios vinculados à alienação fiduciária33. Ademais, naqueles atos e negócios que necessitam de mais celeridade, a lei em regra, permite a forma livre para se materializarem, como o contrato de locação, cujo objetivo da lei é o cumprimento do direito social da moradia, expresso no art. 6º da Constituição Federal34 ou no caso do mandato (art. 658, Código Civil35).  Da permissão do instrumento particular pelo artigo 108 do Código Civil Em nossa perspectiva, o artigo 108 é mal compreendido por sua redação "quase" idêntica com o artigo 134 do Código Civil de 1916.  Código Civil 1916 Código Civil 2002 Art. 134. É, outro sim, da substância do ato a escriptura publica.   I. Nos pactos antenupciais e nas adoções.   II. Nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola. (Redação dada pela Lei nº 7.104, de 1983) (...) Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. É evidente que o Código Civil de 1916 exigia a ESCRITURA PÚBLICA para QUALQUER contrato constitutivo (referindo-se aos direitos reais sobre coisas alheias de fruição, como usufruto, uso, habitação, servidão, ou superfície) ou translativo (referindo-se ao direito real sobre coisa própria, melhor dizendo a propriedade), desde que o imóvel fosse superior a determinado valor, excepcionando o penhor agrícola. Porém, de modo diverso, o artigo 108 do Código Civil, amplia as hipóteses para se exigir a forma pública da escritura ou ato solene, não apenas nos contratos constitutivos ou translativos, mas também nas modificações e renúncias de direitos reais. As modificações de direitos reais referem-se às hipóteses de divisão do imóvel, como o desdobro, loteamento e desmembramento, ou na fusão de imóveis, como a unificação de bens para incorporação imobiliária, e por fim, as renúncias de direitos reais, como nas hipóteses de renúncia de usufruto, uso, habitação e até mesmo a propriedade. A primeira parte do artigo 108 do Código Civil traz a expressão "Não dispondo a lei em contrário". Em nossa interpretação, o significado dessa primeira frase do artigo em comento determina que todo negócio jurídico imobiliário que a lei permitir a forma plúrima (instrumento particular ou público) de forma expressa, afastará a exigibilidade do ato solene ou da escritura pública. Sendo assim, SERÁ PERMITIDA A FORMA PARTICULAR, nas hipóteses em que a lei de modo genérico, facultar sua instrumentalização, afirmando que o instituto se constituirá por instrumento público ou particular, ou naqueles casos, em que tratar que o será feito por escrito apenas ou ainda por ato "inter vivos", como na hipótese, da procuração (art. 653), fiança (art. 819), sociedades em comum, nas quais os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade (art. 987), assim como as sociedades simples ou empresárias, que se constituem por escrito (art. 997), no caso do penhor pecuário, o qual exige do credor, o prévio consentimento, por escrito, para o devedor poder alienar os animais empenhados (art. 1.445), assim como no penhor industrial, o devedor não pode, sem o consentimento por escrito do credor, alterar as coisas empenhadas ou mudar-lhes a situação, nem delas dispor (art. 1.449), ou no direito de laje, em que exige-se a ciência por escrito dos titulares da construção-base e da laje, em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, os quais terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros (art. 1.510-D). No entanto, a segunda parte do artigo 108 exige a forma pública ou solene quando estivermos diante de um negócio imobiliário, cuja finalidade for constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, e que o bem imóvel tenha valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Evidencia-se que a exigência da forma pública ou solene, diferentemente da redação do art. 134, inciso II, do Código Civil de 1916, é afastada quando a lei permitir a forma particular. Assim, entendemos que a exigibilidade da forma solene ou pública, alcança os institutos jurídicos em que a lei expressamente o exigir, como a constituição de renda (art. 807), a constituição do direito real de superfície (art. 1.369), o casamento (art. 1.525), a procuração para casamento (art. 1.542), o pacto antenupcial (art. 1.640, parágrafo único), a instituição de bem de família voluntário (art. 1.711), ou a cessão de direitos hereditários (art. 1.793), ou naqueles em que a lei se omite por completo, e nessa última hipótese, estarmos diante dos seguintes requisitos - (i) negócio jurídico imobiliário; (ii) objetivo do negócio ser a constituição de direitos reais sobre coisas alheias (hipotecas, usufrutos, superfície, servidão etc) ou transferência, modificação ou extinção de direitos reais sobre coisas próprias (propriedade e laje); (iii) o valor do bem for superior trinta salários mínimos, como é o caso dos negócios imobiliários (compra e venda, permuta, dação em pagamento, hipoteca) de imóveis com valor superior a trinta salários mínimos. Em nosso raciocínio, demonstra o Código Civil que a materialização da vontade não dependerá de forma especial (forma não defesa), salvo quando a lei exigir de forma expressa (forma prescrita única ou plúrima).36  Conclusão Conclui-se que o Novo Código Civil trouxe uma singela diferença entre a forma exigida para a doação de imóveis, no qual não se faz mais a referência ou remissão de subordinação entre a previsão legal da exigibilidade da escritura pública como essência do ato translativo de imóveis. Além disso, é imperioso esclarecer que o Código Civil atual faz expressa permissão da doação, de bens móveis ou imóveis, por escrito, seja pela forma pública ou particular, fazendo ressalva, no parágrafo único do art. 541 apenas dos bens móveis de pequeno valor, permitindo a forma livre. __________ 1 Código Civil - Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular. Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição. 2 Código Civil de 1916 - Art. 1.168. A doação far-se-á por instrumento publico, ou particular (Art. 134). Parágrafo único. A doação verbal será valida, se, versando sobre bens moveis e de pequeno valor, se lhe seguir in-continenti a tradição. 3 1VRPSP - Processo: 583.00.2007.101699-0 Localidade: São Paulo (14º SRI) Data de Julgamento: 08/03/2007 Relator: Marcelo Martins Berthe 4 1VRPSP - Processo: 129318-49.2019.8.26.0100 Localidade: São Paulo Data de Julgamento: 14/02/2020 Relator: Tânia Mara Ahualli 5 CSMSP - Apelação Cível: 0011169-71.2015.8.26.0482 Localidade: Presidente Prudente Data de Julgamento: 16/02/2017 Relator: Manoel de Queiroz Pereira Calças 6 Código Civil Comentado, 6. ed. rev. e atual. - coordenação Regina Beatriz Tavares da Silva - São Paulo: Saraiva, 2008, p. 493. 7 Código Civil comentado - coordenação Cezar Peluso - 8. ed. rev. e atual. - Barueri, SP: Manole, 2014, p. 557 8 Instituições de direito civil - 18. ed.  rev. e atual. por Caitlin Mulholland - Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 233 9 Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 3. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais - 29. Ed. - São Paulo: Saraiva, 2013, p. 266 10 Curso de direito civil, v. 3: Contratos. - 8. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 314 11 Manual de Direito Civil: volume único - 3. Ed. ver. atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 664 12 Direito Civil Esquematizado, v. 2 - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2014, p.86 13 Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais - 9. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012, p. 283 14 Curso de Direito Imobiliário, 9. ed. rev., ampl. e atual. - Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 112 15 TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil: volume único - 3. Ed. ver. atual - Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2013, p.203 16 Código Civil - Art. 807. O contrato de constituição de renda requer escritura pública. 17 Código Civil - Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. 18 Código Civil - Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: I - certidão de nascimento ou documento equivalente; II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra; III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar; IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio. 19 Código Civil - Art. 1.542. O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com poderes especiais. 20 Código Civil - Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. 21 Código Civil - Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. 22 Código Civil - Art. 1.793. O direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública. 23 Código Civil - Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1 o do art. 654 24 Código Civil - Art. 657. A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito. 25 Código Civil - Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: (...) 26 Código Civil - Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: (...) § 1º A convenção poderá ser feita por escritura pública ou por instrumento particular. 27 Código Civil - Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. 28 Lei 6.766/79 - Art. 26. Os compromissos de compra e venda, as cessões ou promessas de cessão poderão ser feitos por escritura pública ou por instrumento particular, de acordo com o modelo depositado na forma do inciso VI do art. 18 e conterão, pelo menos, as seguintes indicações: (...) 29 Código Civil - Art. 1.438. Constitui-se o penhor rural mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas. Parágrafo único. Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor rural, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula rural pignoratícia, na forma determinada em lei especial. 30 Código Civil - Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: (...) II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; 31 Código Civil - Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária ( art. 1.647 ), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento público, ou particular, autenticado. 32 Código Civil - Art. 2.015. Se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz. 33 Lei 9.514/97 - Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. (Redação dada pela lei 11.076, de 2004) 34 Constituição Federal - Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional 90, de 2015) 35 Código Civil - Art. 656. O mandato pode ser expresso ou tácito, verbal ou escrito. 36 Código Civil - Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
Resumo 1. No caso de incorporação imobiliária, a averbação da construção extingue automaticamente o patrimônio de afetação, se estiver tiver sido apresentada a quitação da dívida do financiamento das obras ou declaração da inexistência desse financiamento (art. 31-E, § 1º, da lei 4.591/1964). A boa técnica da redação registral - que prestigia o princípio da continuidade registral -, recomenda que, no corpo desse ato de averbação, seja consignada expressamente esse efeito extintivo do patrimônio de afetação. 2. Se, na hipótese descrita, o termo de quitação da dívida do financiamento só vier a se apresentado ao Registro de Imóveis tempos depois da averbação da construção, o cancelamento do patrimônio de averbação será formalizado por um ato de averbação específica, lançado na matrícula-mãe e nas matrículas-filhas. Para fins de emolumentos, porém, só será devida a cobrança por um ato em razão da presunção de ato único do art. 237-A da LRP. 3. A ata notarial de especialização é documento obrigatório para o procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória (art. 216-B, § 1º, II, da LRP). 4. A ata notarial de especialização destina-se a individualizar elementos de especialidade subjetiva - as partes envolvidas nos contratos preliminares ou nos de cessão - e de especialidade objetiva - identificação do imóvel, prova do pagamento do preço e caracterização da recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo. 5. Há aparente antinomia entre o inciso II e o inciso II, ambos do § 1º do art. 216-B da LRP. A melhor interpretação é a de que, na ata notarial de especialização, o notário noticiará os documentos apresentados pelo interessado comprovando a recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo, como uma conversa de whatsapp ou, ainda que sozinha, uma declaração unilateral nesse sentido. O registrador de imóveis, ao receber o requerimento inicial com a ata notarial de especialização, promoverá a notificação de caracterização da mora da outra parte. 6. A adjudicação compulsória extrajudicial independe de prévio registro da promessa de compra e venda, não havendo ofensa ao princípio da continuidade registral (art. 216-B, § 2º, LRP; Súmula nº 239/STJ; Enunciado nº 95 da I Jornada de Direito Civil). 7. No procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, a apresentação de certidão de regularidade fiscal do alienante é dispensável. 8. No caso de ausência de apresentação da certidão de regularidade fiscal do alienante, é recomendável que o registrador alerte expressamente os interessados sobre os riscos pertinentes (como o de declaração de ineficácia prevista no art. 185 do CTN). Esse alerta, porém, não deve ser consignado no ato de registro lançado na matrícula.  Introdução A lei 14.382/2022 (Lei do SERP1) havia sido publicada em 22 de dezembro de 2022, com alguns dispositivos vetados pelo Sr. Presidente da República. A propósito, como essa lei alterou substancialmente diversas questões em Direito Privado, publicamos o Livro "Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos" pela Editora Forense, esmiuçando cada uma das alterações.2 Todavia, no dia 5 de janeiro de 2022, foram publicados, "em repescagem legislativa"3, dispositivos da lei 14.382/2022 (Lei do SERP). Com isso, duas questões sofreram alterações: a) a extinção automática do patrimônio de afetação no caso de incorporação imobiliária (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964 - Lei de Incorporação Imobiliária); e b) a adjudicação compulsória extrajudicial no caso de promessa de compra e venda (art. 216-B, § 1º, III, e § 2º, da lei 6.015/1973 - Lei de Registros Públicos - LRP). A obra publicada por nós segue plenamente útil, seja porque tratou desses dispositivos vetados, seja porque a Lei do SERP promoveu inúmeras outras inovações legislativas que se mantêm hígidas. Recomendamos, porém, que o leitor complemente a referida obra com o presente artigo apenas nessas duas questões. No presente artigo, comentaremos apenas essas questões alcançadas pela derrubada do veto. Extinção do patrimônio de afetação com a averbação da construção acompanhada do termo de quitação do financiamento da obra (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964) DISPOSITIVO EM FOCO "Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:            I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;              II - revogação em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 36), ou de outras hipóteses previstas em lei; e                  III - liquidação deliberada pela assembleia geral nos termos do art. 31-F, § 1o.                          § 1º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica.      § 2º Por ocasião da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas.      § 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do caput e do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da lei 10.931, de 2 de agosto de 2004.       § 4º Após a denúncia da incorporação, proceder-se-á ao cancelamento do patrimônio de afetação, mediante o cumprimento das obrigações previstas neste artigo, no art. 34 desta lei e nas demais disposições legais".      COMENTÁRIOS. No caso de incorporação imobiliária, o incorporador pode facultativamente instituir o regime de patrimônio de afetação, na forma do art. 31-A e seguintes do Código Civil. Por esse regime, os adquirentes de "imóveis na planta" e os credores surgidos em razão do empreendimento terão uma maior garantia patrimonial para satisfazer seus créditos no caso de eventual malogro do incorporador. Do ponto de vista registral, o regime de patrimônio de afetação é averbado na matrícula-mãe do imóvel, ou seja, na matrícula relativa ao terreno sujeito à incorporação imobiliária. Essa averbação é feita após o registro da incorporação imobiliária (art. 31-B, lei 4.591/1964). Para o incorporador, o regime de patrimônio de afetação traz um benefício tributário: o incorporador será beneficiado com o direito de poder optar pelo Regime Especial de Tributação (RET), previsto nos arts. 1º ao 11-A da lei 10.931/2004.4 A ideia é oferecer um estímulo financeiro ao incorporador com o objetivo de estimular o regime de patrimônio de afetação, que, ao final, acaba sendo uma grande proteção aos consumidores adquirentes de imóveis "na planta". Com o fim da "incorporação imobiliária", o regime de patrimônio de afetação também deve findar-se. Esse fim da incorporação dá-se em duas principais hipóteses: (1) a conclusão das obras; e (2) por ato de vontade, especificamente a revogação ou liquidação do patrimônio de afetação no caso de "quebra" do incorporador. O art. 31-E da Lei 4.591/64 trata dessas extinções do patrimônio de afetação. Nosso foco neste texto é a extinção do patrimônio de afetação no caso de conclusão das obras. A razão de ser do patrimônio de afetação é proteger os adquirentes de imóveis "na planta" bem como os credores conexos, tendo em vista a dificuldade que eles teriam em executar seus créditos por conta da falta da existência física da construção. Entre os credores conexos, a Lei de Incorporação Imobiliária dá um prestígio protetivo maior ao financiador da construção, ou seja, à instituição financeira que emprestou dinheiro para o custeio das obras. Ainda que esse financiador do empreendimento não tenha obtido nenhuma garantia real inscrita na matrícula do imóvel, a Lei de Incorporação Imobiliária defere-lhe uma proteção especial: o registrador de imóveis só poderá extinguir o patrimônio de afetação após prova de quitação da dívida desse financiamento das obras. Em outras palavras, para cancelar o patrimônio de afetação, não basta averbar a construção; é preciso, também, que o incorporador apresente prova de quitação da dívida de financiamento das obras. Na hipótese de inexistir financiamento da obra, entendemos que bastará ao incorporador apresentar uma declaração nesse sentido. Essa é a inteligência do art. 31-E, I, da Lei de Incorporação Imobiliária: "Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela: I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;               (...)".  Concluídas as obras, o regime de patrimônio de afetação perde sua razão de ser. A Lei do SERP, após a derrubada de vetos, objetivou desburocratizar a formalização registral da extinção do patrimônio de afetação nessa hipótese. Pretendeu também deixar clara a subsistência do Regime Especial de Tributação - RET. Sob o aspecto registral, a conclusão das obras é formalizada pela averbação da construção (devida após a emissão do "habite-se" pelo Poder Público). A questão, porém, é saber o seguinte: além da averbação da construção, há ou não necessidade de uma averbação específica da extinção do patrimônio de afetação? A resposta depende se há ou não prova da quitação da dívida do financiamento da obra. Se não houver prova de quitação da dívida perante o financiador das obras, não há extinção do patrimônio de afetação com a averbação da construção. Caberá ao incorporador, futuramente, apresentar prova da quitação da referida dívida, hipótese em que o registrador lançará, na matrícula-mãe e nas matrículas-filhas, o ato de averbação de cancelamento do patrimônio de afetação. Em termos de emolumentos, o registrador só poderá cobrar emolumentos por um único ato de averbação, tendo em vista a presunção de ato único para este fim na forma do art. 237-A da lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).5 Sobre o tema, apontamos o seguinte em nosso livro "Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos": "Questa~o interessante e´ definir se o registrador podera´ cobrar emolumentos por cada ato de averbac¸a~o: o realizado na matri´cula-ma~e e os praticados nas matri´culas-filhas. Entendemos que na~o. O registrador so´ podera´ cobrar emolumentos por um u´nico ato, tendo em vista a presunc¸a~o de ato u´nico previsto no art. 237-A da LRP para atos juri´dicos-reais globais. Esclarec¸a-se que o referido dispositivo menciona que a presunc¸a~o de ato u´nico para fins de emolumentos da´-se para atos juri´dicos-reais globais 'ate´ a conclusa~o das obras de infraestrutura ou da construção', o que alcança, inclusive, os atos praticados por conta dessa averbação das obras. A preposição 'ate´' abrange o 'inclusive'. Os atos de averbação da extinção do patrimônio de afetação por conta da conclusão das obras devem ser considerados como abrangidos pela presunção de ato único para fins de emolumentos do art. 237-A da LRP, ainda que cronologicamente eles sejam praticados depois da averbação da conclusão das obras".6  Se, porém, houver a prova da quitação da dívida perante o financiador da obra ou se não houver financiamento das obras, a averbação da construção, por si só, já implica a extinção do patrimônio de afetação. Assim, não há necessidade da prática de nenhum ato de averbação específico para tanto. Trata-se de um efeito legal expressamente previsto no § 1º do art. 31-F, § 1º, da lei 4.591/1964. Sob a ótica da técnica de redação registral, recomendamos que o registrador expressamente consigne esse efeito legal no ato de averbação de cancelamento, visto que a matrícula deve ser redigida do modo mais didático ao leitor, que geralmente não é um especialista em direito imobiliário. Na prática, o § 1º do art. 31-D da lei 4.591/1964 objetivou "reduzir custos", dispensando o interessado de ter de pagar dois emolumentos: um pela averbação da construção e outro pela averbação. Todavia, conforme a nossa antes destacada interpretação do art. 237-A da LRP, esse problema de "duplicidade" de emolumentos não subsistia, tendo em vista a presunção de ato único para fins de emolumentos no referido dispositivo. Assim, ao nosso sentir, o § 1º do art. 31-F da lei 4.591/1964 não possui muita utilidade prática. Além disso, o texto do referido dispositivo pecou do ponto de vista da técnica da redação registral, pois deveria ter sido expresso em exigir que o registrador consignasse expressamente o efeito do cancelamento do patrimônio de afetação. Afinal de contas, é basilar que a estruturação redacional da matrícula precisa externar ao leitor a adequada continuidade dos fatos jurídicos inscritos. O patrimônio de afetação é averbado quando do seu nascimento; logo, é essencial que o seu cancelamento seja noticiado textualmente na matrícula posteriormente, ainda que dentro de um ato de averbação da construção. Fere regras básicas de redação registral deixar esse efeito extintivo implícito, fora do texto tabular. Além disso, em uma manifestação pleonástica, o § 3º do art. 31-E da lei 4.591/1964 esclarece que, com a extinção do patrimônio de afetação em razão da conclusão das obras e da quitação da dívida do financiamento, o incorporador não perderá o benefício tributário do Regime Especial de Tributação (RET), previsto no art. 1º da lei 10.931/2004. Trata-se de um pleonasmo, porque já era o entendimento prevalecente o de que o RET subsistiria mesmo após a extinção do patrimônio de afetação com a conclusão das obras e a quitação da dívida de financiamento. Sobre o tema, em nossa obra, já havíamos alertado para o fato de que o veto presidencial - que veio a ser derrubado pelo Congresso Nacional - ao referido dispositivo era inútil: "O segundo veto disse respeito ao § 3.o do art. 31-E da Lei n. 4.591/1964, que estabelecia a subsistência do regime especial de tributação (RET) para a incorporac¸a~o imobilia´ria. O RET e´ previsto nos arts. 1.º ao 11-A da lei 10.931/2004. (...) Parece-nos que esse veto na~o traz qualquer repercussa~o pra´tica, uma vez que o dispositivo vetado era pleona´stico. Isso porque, a` luz do art. 11-A da lei 10.931/2004, o RET vigora ate´ o pagamento integral do valor das vendas. O referido dispositivo na~o atrela o fim do RET ao cancelamento do patrimo^nio de afetac¸a~o. A propo´sito do tema, esclarece Maciel da Silva Braz:  '(...) em entendimento manifestado na Solução de Consulta DISIT/ SRRF07 n. 7.045/2014, o Fisco deu a entender que também estão sujeitas ao RET e a` alíquota de 4% (quatro por cento), as receitas decorrentes das vendas das unidades imobilia´rias apo´s extinc¸a~o do patrimo^nio de afetac¸a~o."  Seja como for, o dispositivo analisado, apesar de pleona´stico, tinha o me´rito de impedir eventual interpretac¸a~o em sentido contra´rio por parte dos o´rga~os fazenda´rios".7  Portanto, o veto presidencial em nada alterava a nossa interpretação sobre esse tema.  Adjudicação compulsória extrajudicial (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964)  DISPOSITIVO EM FOCO. "Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.    § 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos:    I - instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;   II - prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;   III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;     IV - certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação;   V - comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);    VI - procuração com poderes específicos.   § 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor.      § 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º deste artigo, o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão".    COMENTÁRIOS. Com a derrubada do veto presidencial, três ajustes foram feitos no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, a seguir resumidos: a) Torna-se obrigatória, entre os documentos instrutórios do requerimento, o que nós chamamos de "ata notarial de especialização". b) Esclarece-se que é dispensável o prévio registro da promessa de compra e venda. c) Dispensa-se a comprovação de regularidade fiscal do promitente vendedor. Antes de comentá-los, convém relembrar que o art. 216-B da LRP nasceu com o objetivo de atacar um sério entrave à regularização fundiária: a burocracia existente para a obtenção do contrato definitivo pelas partes ou cessionários de promessas de compra e venda. As dificuldades e a demora com o procedimento judicial de adjudicação compulsória desestimulavam as partes a regularizarem sua situação jurídica mesmo após o pagamento integral do preço pactuado nas promessas de compra e venda. O resultado sempre foi a proliferação de contratos de cessão de direitos decorrentes de promessas de compra e venda a aumentar a dificuldade de regularização fundiária. Assim, o art. 216-B da LRP permite a qualquer das partes valer-se de um procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória perante o competente Registro de Imóveis. Aprofundamos o procedimento em nosso livro8. Neste texto, ater-nos-emos aos três aspectos supracitados e decorrentes da derrubada dos vetos presidenciais em pauta. Um dos documentos obrigatórios para o procedimento extrajudicial é o que designamos de ata notarial de especialização (art. 216-B, § 1º, III, da LRP). Designamos assim, porque essa ata notarial destina-se a individualizar elementos de especialidade subjetiva - as partes envolvidas nos contratos preliminares ou nos de cessão - e de especialidade objetiva  - identificação do imóvel, prova do pagamento do preço e caracterização da recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo. O objetivo é que o Tabelião de Notas ateste a presença dos dados juridicamente relevantes para o fato jurídico almejado, qual seja a adjudicação compulsória extrajudicial. Cabe um esclarecimento em relação à exigência de que a ata notarial de especialização contenha a "caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade" (art. 216-B, § 1º, III, da LRP). Essa previsão guarda certo conflito com o inciso II do referido preceito. Este último inciso exige, ao lado da ata notarial de especialização, um outro documento, a saber: a "prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos". A redação legal não foi feliz. Dá ensejo a interpretações diferentes, no nosso entender, o que merece ser detalhado. De um lado, pode-se entender que o interessado teria de, em primeiro lugar, pleitear, perante o Registro de Imóveis, a notificação extrajudicial comprobatória do inadimplemento. Em seguida, o interessado dirigir-se-ia ao Tabelião de Notas para a lavratura da ata notarial de especialização, na qual o notário consignaria a prova do inadimplemento em razão do silêncio da outra parte diante da retromencionada notificação extrajudicial. Posteriormente, o interessado voltaria ao Cartório de Registro de Imóveis para apresentar o requerimento de adjudicação extrajudicial com todos os documentos exigidos pelo art. 216-B da LRP. Essa interpretação é manifestamente descabida, porque submete o interessado a um "ping-pong burocrático", de vaivém entre as serventias que, geralmente, estão situadas em locais diferentes, o que contraria o espírito desburocratizante da Lei do SERP. Rejeitamos, pois, essa primeira interpretação. De outro lado, pode-se entender que a ata notarial de especialização é lavrada antes de qualquer procedimento no Cartório Registro de Imóveis. O notário consignará nela as provas apresentadas pelo interessado acerca da recusa da outra parte em celebrar o contrato definitivo, como uma conversa de whatsapp ou até mesmo uma declaração unilateral do próprio interessado. Ainda que o interessado não tenha provas documentais, o notário deverá satisfazer-se com a declaração unilateral dele, a ser devidamente consignada na ata notarial de especialização. Na nossa opinião doutrinária, é sob essa ótica que se deve entender a exigência do inciso III do § 1º do art. 216-B da LRP no sentido de que a ata notarial de especialização deve conter a "caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade". Posteriormente, o interessado dirigir-se-ia ao Cartório de Registro de Imóveis para requerer a adjudicação compulsória, apresentando os documentos indicados nos incisos I e III a VI do § 1º do art. 216-B da LRP e requerendo a realização da notificação extrajudicial comprobatória da mora prevista no inciso II do § 1º do art. 216-B da LRP. O registrador, então, fará a notificação extrajudicial da outra parte para que este, no prazo de 15 dias, celebre o contrato definitivo, sob pena de ultimação do procedimento de adjudicação compulsória. Em havendo inércia da outra parte, o registrador concluirá o procedimento, registrando, na matrícula, a transmissão definitiva da propriedade em substituição ao contrato definitivo de compra e venda. Como está claro, preferimos essa última interpretação, porque não submete o interessado a um injustificado ping-pong irracional entre serventias extrajudiciais, além de estar de acordo com o espírito de redução de burocracias das novas normas emergentes em nosso País nos últimos anos. Além dessa questão relativa à ata notarial de especialização, o Congresso Nacional derrubou o veto ao § 2º do art. 216-B da LRP com o objetivo de eliminar empecilhos burocráticos ao procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória. A eliminação do primeiro empecilho deu-se deixando claro que a adjudicação compulsória extrajudicial não depende de prévio registro da promessa de compra e venda. Trata-se de esclarecimento legal importante para evitar interpretações indevidas de que o princípio da continuidade registral exigiria esse prévio registro. A bem da verdade, esse esclarecimento legal é, de certa maneira, pleonástico, porque a jurisprudência já era pacificada nesse sentido. A propósito, vejamos o que, a quatro mãos, havíamos escrito em nossa obra: "O fundamento legal para tal conclusão esta´ no art. 464 do Código Civil, segundo o qual, 'esgotado o prazo, podera´ o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação'. Em certa medida, esse comando legal acabou por positivar a ideia que constava da Sumula n. 239 do Superior Tribunal de Justiça: 'O direito a` adjudicação compulsória na~o se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imo´veis'. A esse propósito, destacamos o Enunciado n. 95, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que traduz a posição consolidada entre os civilistas: 'o direito a` adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo Código Civil), quando exercido em face do promitente vendedor, na~o se condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de registro imobilia´ria (Su´mula n. 239 do STJ)'. A afirmação passa a valer também para a adjudicação compulsória extrajudicial, em nosso entender".9 A remoção de outro empecilho burocrático removido ocorreu quando o § 2º do art. 216-B da LRP textualmente dispensa a comprovação de regularidade fiscal do promitente comprador como condição para o registro da transmissão definitiva da propriedade. De fato, esses tipos de condicionamento representam criticáveis formas de coerção indireta de que se vale o Fisco para cobrar tributos. Muitas situações imobiliárias ficam sujeitas à informalidade, porque um efeito de Direito Civil - a transmissão da propriedade - fica dependente de uma questão afeta à cobrança tributária. Porém, não se pode negar que a informalidade imobiliária gera muito mais prejuízos ao interesse público, acarretando problemas sociais e estatais. Mais eficiente seria que o legislador, no lugar de impedir o aperfeiçoamento de efeitos de Direito Civil, lançasse mão de outras ferramentas mais adequadas à cobrança do crédito tributário, como a presunção de fraude à execução prevista no art. 185 do Código Tributário Nacional (CTN). A própria constitucionalidade dessas formas de coerção indireta para a cobrança de tributos é discutível. Seja como for, o fato é que, em se tratando de adjudicação compulsória extrajudicial, o registrador não poderá exigir a apresentação de certidão de regularidade fiscal. O § 2º do art. 216-B da LRP prevalece em relação a leis especiais. Assim, por exemplo, na via desse procedimento, não será aplicável o art. 47 da lei 8.212/1991, que, no caso de transferência de imóveis pertencentes. Todavia, é fundamental que o promitente comprador tenha ciência de que a aquisição da propriedade poderá vir a ser declarada ineficaz perante o Fisco em razão do art. 185 do CTN.10 Por esse motivo, entendemos que cabe ao registrador de imóveis alertar o promitente comprador disso, caso não tenha sido apresentada certidão de regularidade fiscal do alienante. Convém que esse alerta de eventual ineficácia seja expressamente consignado pelo registrador ao longo do procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória. Não é conveniente, porém, que esse alerta seja consignado na matrícula, seja porque a matrícula não deve ser poluída por alertas meramente abstratos e potenciais, seja porque o art. 216-B da LRP nada exige nesse sentido. __________ 1 SERP: Sistema Eletrônico dos Registros Públicos. 2 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 3 Designamos de "repescagem legislativa" o procedimento de derrubada de vetos presidenciais pelo Congresso Nacional. Quando há um veto parcial (veto do Presidente da República a alguns dispositivos de uma lei), a lei é publicada sem esses dispositivos vetados. Estes vão para a fase de "repescagem legislativa": serão reapreciados pelo Congresso Nacional e, em caso de rejeição dos vetos ("derrubada do veto"), serão tardiamente promulgados e publicados. 4 Para aprofundamento, recomendamos o informe aqui. 5 Lei 6.015/1973. "Art. 237-A. Após o registro do parcelamento do solo, na modalidade loteamento ou na modalidade desmembramento, e da incorporação imobiliária, de condomínio edilício ou de condomínio de lotes, até que tenha sido averbada a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção, as averbações e os registros relativos à pessoa do loteador ou do incorporador ou referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento e suas unidades, bem como a própria averbação da conclusão do empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel a ele destinado e replicados, sem custo adicional, em cada uma das matrículas recipiendárias dos lotes ou das unidades autônomas eventualmente abertas.   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022). § 1º Para efeito de cobrança de custas e emolumentos, as averbações e os registros relativos ao mesmo ato jurídico ou negócio jurídico e realizados com base no caput deste artigo serão considerados ato de registro único, não importando a quantidade de lotes ou de unidades autônomas envolvidas ou de atos intermediários existentes.   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022). § 2o  Nos registros decorrentes de processo de parcelamento do solo ou de incorporação imobiliária, o registrador deverá observar o prazo máximo de 15 (quinze) dias para o fornecimento do número do registro ao interessado ou a indicação das pendências a serem satisfeitas para sua efetivação. (Incluído pela Lei nº 11.977, de 2009). § 3º O registro da instituição de condomínio ou da especificação do empreendimento constituirá ato único para fins de cobrança de custas e emolumentos. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 4º É facultada a abertura de matrícula para cada lote ou fração ideal que corresponderá a determinada unidade autônoma, após o registro do loteamento ou da incorporação imobiliária. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022). § 5º Na hipótese do § 4º deste artigo, se a abertura da matrícula ocorrer no interesse do serviço, fica vedado o repasse das despesas dela decorrentes ao interessado, mas se a abertura da matrícula ocorrer por requerimento do interessado, o emolumento pelo ato praticado será devido por ele. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)" 6 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 233-234. 7 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 237-238. 8 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 203-213. 9 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 208. 10 CTN. "Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.(Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005) Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)".
São cada vez mais evidentes os sites e aplicativos de apostas online. Em que pese existir uma diversidade grande desses jogos que são explorados no ambiente digital por centenas de empresas espalhadas pelo globo, o foco do presente artigo é tratar da situação dos jogos de apostas esportivas oferecidos na internet. Não é peculiaridade do século XXI o desejo do ser humano pela diversão proporcionada por jogos variados onde ocorram apostas, especialmente aquelas com efeitos patrimoniais, isto é, que envolvam dinheiro, sendo aptas a renderem prêmios em moeda. Um olhar sobre a História, remete-nos, por exemplo, à prática de jogos esportivos com o fulcro de ganhar algo, ainda que fosse somente o status social. Observando-se o mundo ocidental, já que seria uma tarefa hercúlea descrever todas as modalidades de jogos praticados ao longo da existência humana, temos o destaque aos jogos olímpicos da Grécia Antiga, com início em torno de 776 a.C., realizados no Santuário de Olímpia, sendo uma festa religiosa, que durava dias, e em homenagem a Zeus.  Desde esse período até o atual, há um interregno de inúmeros séculos marcados pelo desejo humano do desafio e pela possibilidade de ganhar e superar um adversário. Posteriormente, a este interesse é somado aquele que visa o recebimento de valores em consequência da vitória. O próprio Estado, nas suas três esferas de atuação, se trabalharmos com o caso brasileiro, é um exímio explorador de jogos, especificamente, de azar. Para termos uma ideia dessa dimensão, a Caixa Econômica Federal, uma instituição financeira bastante conhecida entre os brasileiros, que tem a forma de empresa pública, explora vários concursos de apostas, e faz isso ao longo de várias décadas. Nesse sentido, a título exemplificativo, tem-se o caso da mega-sena, lotofácil, quina, lotomania, timemania, dupla sena, loteca, dia de sorte e super sete.1 Esse conjunto de possibilidades, somado aos entraves para a prática do jogo no Brasil, deixa bastante perceptível que o Estado não pretende dividir o mercado com a concorrência de um mercado amplamente lucrativo. Recentemente, o leque de apostas da Caixa Econômica Federal, que até então detém praticamente um monopólio da exploração do jogo legalizado no Brasil, foi expandido com a permissão da Loteria da Saúde e da Loteria do Turismo, criadas pela Lei nº14.455, de setembro de 2022. Não nos concentraremos nas loterias estatais brasileiras, mas sim nas formas mais recentes de apostas, que remetem à internet, mais precisamente, a aplicativos e sites de apostas esportivas, cuja presença cresce gradativamente no Brasil e no mundo. O debate, contudo, exige uma passagem pela normatividade exposta no Código Civil, Lei nº10.406/02, que trata do tema de forma bastante breve entre os artigos 814 a 817. A leitura das regras positivadas no diploma civil indica um legislador que, reconhecendo a realidade do jogo e da aposta na vida do brasileiro, não poderia se eximir em apresentar algo sobre o tema. Se houvesse uma opção puramente refrativa ao jogo e à aposta, ter-se-ia  um legislador divorciado da vontade dos cidadãos e da realidade. Por outro lado, uma baixíssima dedicação normativa expõe o fato de que o legislador e executivo mantiveram a tradição de não incentivo ao jogo e à aposta no Brasil, retirando a força sobre as obrigações derivadas desses acordos. Mesmo que situado no capítulo inerente aos contratos em espécie, e sendo tratado como tal, o artigo 814 do CC coloca essas figuras num pedestal de obrigação natural. Assim, reconhecesse o débito derivado da operação, mas retira-se a possibilidade  de cobrança judicial do crédito. No entanto, uma vez paga a aposta, esta não será repetível, isto é, não poderá ser reavida pelo apostador, derrotado ou não, salvo se houver prova de dolo, ou se se tratar de jogo efetivado com menor de idade ou interdito. Por outro lado, pende a dúvida sobre qual tipo de jogo e aposta está a se tratar no âmbito do Código Civil. O parágrafo único do artigo 814 do Código Civil ressalta que a regra de mínima proteção do contrato, por assim dizer, somente terá cabimento em se tratado de jogo não proibido, que se convenciona chamar de "tolerado". No entanto, a norma reconhece como obrigação perfeita aquela derivada dos jogos e apostas legalmente permitidos, isto é, os que possuem uma legislação própria que os legitima e os torna obrigações completas, como é o caso das apostas operadas pela Caixa Econômica Federal. O jogo tolerado, para atingir a meta de legalidade prevista no diploma civil, deve envolver práticas esportivas, onde estão presentes caracteres que justificam a vitória, como experiência, dedicação, estratégia, etc. O mesmo não serve para acobertar jogos de azar, que assim são conhecidos diante da exploração reiterada por uma das partes, nos quais não a outra parte não consegue influir no resultado final. Até então, estamos a perceber a existência do jogo e aposta legalizados, com legislação própria e explorados pelo Estado, a dos tolerados, constantes no Código Civil. Mas ainda existe uma terceira categoria, e que são os jogos proibidos, ditos ilegais, que são objeto da legislação penal.  Símbolo do jogo proibido no Brasil, é o caso do notoriamente conhecido Jogo do Bicho. A sua prática reiterada, diária, sendo consumido por milhares de indivíduos, gera um certo mal-estar social no sentido da ausência de desejo no cumprimento da lei. É uma estrutura tão difundida que a repressão estatal, quando ocorre, é mínima se comparada ao volume de operações geradas pela prática.    A origem do jogo do bicho no Brasil data de 1892, e foi uma bolsa de apostas em que números eram representados por animais, sendo criada para aumentar a frequência popular ao zoológico. O mesmo funcionava da seguinte maneira: "receberia um prêmio em dinheiro o portador do bilhete de entrada que tivesse a figura do animal do dia, o qual era escolhido entre os 25 animais do zoológico e passava o dia inteiro encoberto com um pano. O pano somente era retirado no final do dia, revelando o animal do dia. Posteriormente, os animais foram associados a séries numéricas da loteria e o jogo passou a ser praticado largamente fora do zoológico".2 Posteriormente, o Jogo do Bicho atingiu níveis de, por assim dizer, profissionalização na sua prática, fazendo surgir a figura dos "bicheiros", e tornando-se, talvez, o jogo de apostas mais praticado no Brasil. No entanto, o mesmo nunca foi legalizado, de forma que a sua prática é vista como a contravenção penal estatuída no artigo 50 da decreto-lei 3.688 de 1.941, Lei das Contravenções Penais, que expõe o que segue: "Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena - prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local". Ainda, consoante o §2o da referida norma, "incorre na pena de multa, de R$2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador". E esse mesmo artigo 50, em seu §3º, estatui o que se consideram como sendo jogos de azar:  "a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva". Em suma, há um interesse do Estado em evitar a exploração econômica dos jogos de azar por parte dos particulares, embora ele, Estado, faça aquilo que condena. Registra-se, no entanto, que a prática do Jogo do Bicho recebe certa persecução penal na medida em que o mesmo possa estar associado ao crime organizado, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, e até mesmo homicídios e outros crimes praticados entre concorrentes "bicheiros", o que atrai violência e desagregação social. Uma cena que ficou famosa também nesse contexto foi ocupada pela lei 9.615/98, chamada de "Lei Pelé", que trata sobre o desporto no Brasil, e que trazia consigo a liberação para que entidades desportivas, por si ou por empresa administradora, exercessem a atividade de bingo. Foi uma época de grande proliferação de Casas de Bingo pelo território nacional, explorados por empresas privadas, que deveriam destinar parte do  lucro do jogo para entidades desportivas. Nessas casas de apostas, era possível ver máquinas de caça níqueis convivendo com salões onde continuamente eram efetivadas rodadas de bingo. No entanto, a lei 9.981/21 revogou as regras permissivas do jogo de bingo da lei anterior, de forma que os Bingos foram proibidos, e os que continuaram, se mantiveram à margem da lei. No entanto, o tema retoma importância na medida em que fora aprovado na Câmara do Deputados, no final de fevereiro de 2022, o Projeto de Lei nº 442/1991, que legaliza no Brasil os jogos de azar como cassinos e bingos, e que aguarda análise do Senado. A perspectiva do projeto abre a possibilidade de abertura de cassinos em hotéis, resorts, áreas de turismo, prática de bingo, apostas esportivas, retirando essas atividades da clandestinidade, e da figura da contravenção penal. Além disso, coloca o Estado na posição de um regulador, manifestando-se por meio de agência regulatória própria, que expedirá normas e fará a fiscalização do setor.3 Portanto, jogos de azar explorados por particulares ainda, de regra, são práticas delitivas, ilegais, reprimidas pelo Estado brasileiro e não podem ser respaldadas nos permissivos do Código Civil. Neste rol inclui-se, de momento, cassinos, os quais já tiveram sua prática permitida, e que foi tolhida por força do decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra sob o argumento de que a prática do jogo (de apostas) é degradante para o ser humano. Como dito, o jogo organizado, se pouco ou nada fiscalizado, pode atrair uma série de práticas criminais conjugadas, o que também não é algo particular dessa operação. Há quem aponte o problema da "ludopatia", o vício em jogos, como um problema social atraído por jogos de apostas variados. São cenários de compulsão ou obsessão por jogar, que podem levar o indivíduo a uma ruptura nas suas relações, com perda de amigos, trabalho, divórcio, depressão, cometimento de crimes patrimoniais visando obtenção de valores para apostas, sendo patologia classificada com a siglas CID-10-Z72. 6 (Mania de jogo e apostas) e CID-10-F63. 0 (Jogo patológico), da Organização Mundial da Saúde - OMS. O comportamento do paciente, neste caso, é semelhante ao vício por bebida alcóolica, drogas, etc. Os números não são exatos, mas há quem fale em comprometimento de 0,1% a 6% da população, o que no Brasil poderia significar, no mínimo, duzentos mil habitantes.4 No entanto, estamos investigando o que seria possível efetivar no Brasil em termos de jogos, e que não enfrentassem uma nulidade, ou uma percussão penal, que pudessem ser reputadas como uma obrigação perfeita e que desenhe uma relação de consumo. O desenvolvimento da internet vai produzindo demandas variadas em larga escala. A pandemia Covid19, com seu isolamento necessário, remeteu milhares de pessoas aos meios digitais, e aumentou o tempo de uso daqueles que já frequentavam o ciberespaço de forma corriqueira. Se o "novo normal" garantiu um vultoso aumento das transações de consumo pela internet, envolvendo alimentação, vestuário, plataformas de streaming, etc., por que isso não acarretaria também um aumento no que concerne aos serviços de apostas eletrônicas? Gradativamente, tais atividades vão sendo ampliadas, englobando uma fatia cada vez maior do mercado, e por lógico, esse movimento aporta também aos jogos e apostas eletrônicas on line.5 Com a disseminação dos jogos de apostas on line, cada vez mais as empresas do setor investem de forma maciça em aprimoramentos e publicidade. São diversos players no mercado, com marcas conhecidas, que costuma ocupar espaços de publicidade em campos de futebol e nas mídias em geral, patrocinando eventos entre outros. São empresas que podem apresentar produtos variados, que envolvam não apenas jogos esportivos, mas até mesmo transmissões ao vivo de jogos com comentaristas conhecidos do público. Como no Brasil o futebol ainda é o esporte número um do gosto popular, cada vez mais os clubes têm gerando parcerias de patrocínios com os fornecedores. Clubes como Atlético-MG (Betano), Atlético-GO (Amuleto Bet), América-MG (Pixbet), Avaí (Pixbet), Botafogo (Blaze), Fluminense (Betano) e São Paulo (Sportsbet.io) tem como patrocinadores do tipo máster, nas respectivas camisas, empresas do setor de apostas, sendo que muitas delas chegam a investir em dois, três, até seis clubes ao mesmo tempo, como forma de garantir visibilidade à marca e incentivar o consumo do serviço.6 No entanto, em razão de inconsistências legais, por assim dizer, criou-se uma situação paradoxal. Na medida em que empresas do setor de apostas esportivas convivem na mídia esportiva como sendo um dos grandes patrocinadores de times, de programas de televisão, youtube, etc, expondo suas marcas em inúmeros espaços, estas não podem funcionar no Brasil como casa de apostas, mas somente podem operar fora dele. Considerando-se o gosto do brasileiro pelo esporte, especialmente o futebol, a associação do mesmo a casas de apostas esportivas revela um segmento de mercado altamente lucrativo, e que poderia gerar muitos empregos no país, tributos, etc. Em 2021, uma estimativa apontada pela empresa Sports Value indicava que os brasileiros movimentaram em torno de 4 bilhões de reais em apostas esportivas, sendo investido 140 milhões de reais na parte publicitária promovida por casas de apostas on line, sendo que 85% dos times brasileiros da primeira divisão, isto é, dezessete times, possuíam algum tipo de patrocínio sobre o tema, sem contar em times de basquete, e-sports, influenciers digitais, etc.7 E a pregunta que se reprisa é, afinal, está legalizada a aposta esportiva no Brasil promovida por empresa privada, na medida que espaços de publicidades, até uniformes de jogadores, carregam o nome e marca de casas de jogos? A resposta não é tão simples assim. Uma espécie de cruzada moral e política sempre atuou como empecilho da exploração do jogo no Brasil, moralismo esse que cede quando o promotor das apostas e o próprio Estado. A presença do Estado inundaria o mundo do jogo, sob essa ótica, com uma espécie de beatificação, permitindo livremente sua oferta. Esse cenário repressor, por assim dizer, atrasou inclusive o debate do tema, impregnando a atividade com uma burocracia impeditiva, salvo para aqueles que vivem na ilegalidade, e cujo volume de dinheiro com que operam é surpreendente, diante de uma persecução pífia. Em 2018, no governo de Michel Temer, tudo indicava que a questão dos jogos de apostas alcançaria um caminho da legitimidade, com a sanção da lei 13.756/18. Embora não fosse ainda uma abertura total ou ampla, poderia se imaginar a convivência com uma certa regulamentação das apostas esportivas no Brasil. A referida lei previu como meio possível de aposta a chamada quota fixa. Consoante o art. 29 da referida Lei, resta criada a modalidade "lotérica", sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional. No seu parágrafo 1º, define-se a modalidade lotérica como o "sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico". Em termos práticos, "quota fixa" significa que o apostador sabe quanto vai receber se acertar, e o prêmio já é pré-definido pela empresa de apostas, que calcula a probabilidade de um resultado acontecer. Por exemplo, se o apostador jogar 500 reais num resultado, ele sabe que poderá receber dois mil reais de prêmio se acertar o palpite. O parágrafo 2º do referido dispositivo revela que essa loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais. Ou seja, a regra está a permitir a sua exploração comercial pelo setor privado. No entanto, o par. 3º do mesmo artigo dispõe que o Ministério da Fazenda regulamentará no prazo de até 2 (dois) anos, prorrogável por até igual período, a contar da data de publicação da Lei, o disposto neste artigo. Em outros temos, enquanto estiver pendente a edição de Decreto que regulamente a Lei, o que até o presente momento não ocorreu, há um risco de as operações em torno de quota fixa tornarem-se ilegais no fechamento de quatro anos, o que ocorrerá em dezembro de 2022. E disto deflui outra pergunta: havendo a Lei há quatro anos, permitindo o funcionamento do sistema, ainda que com limitações, por que ainda não foi regulamentada? Logicamente, o Estado brasileiro, a menos que passe a controlar a internet, não tem como impedir e controlar apostas on line das mais diversas modalidades realizadas por meio de sites e aplicativos espalhados pela rede mundial de computadores. É um fato notório que milhares de apostadores realizam jogos de cassino, poker, entre tantos. A perspectiva com a Lei nº nº13.756/18, é que as casas de apostas pudessem se estabelece no Brasil também, gerando divisas à nação. Dispõe o art. 30 da referida norma que o produto da arrecadação da loteria de apostas de quota fixa em meio físico ou virtual, salvo disposição em lei específica, será destinado  para a seguridade social e ao pagamento do imposto de renda incidente sobre a premiação, beneficiando também entidades educativas, entidades esportivas do futebol e o fundo nacional de segurança pública. Para realizar a aposta esportiva, basta o interessado se cadastrar numa casa de apostas, tendo mais de 18 anos, criando um usuário e senha. As transações serão feitas por cartão de crédito, pix ou boleto. Entre as possibilidades, podem ocorrer apostas que vão desde o time que vai ganhar a partida, ou adivinhar quantos gols serão realizados, no caso do futebol, quantas faltas vão ocorrer, etc. No entanto, outra situação anômala que o sistema acabou gerando, por falta de regulamentação, que se tributa à ausência de vontade ou coragem política, é o fato de que todas essas empresas de jogos, algumas bastante conhecidas em razão da farta divulgação na mídia, não poderem operar no Brasil como casas de apostas. A lei 13.756/18 determina que tais fornecedores não tenham pontos de venda físicos no país, e que somente possam operar por meio de sites hospedados em domínios não registrados no Brasil. A grande parte dessas empresas, que atuam no Brasil, tem sede em Malta, Barbados, Gibraltar, entre outros, fazendo com que estes locais onde operem fisicamente fiquem com a tributação. Uma vez sendo regulamentada a norma indicada, a empresa teria que possuir filial ou sede no país, recolhendo tributos, pagando taxa de fiscalização, e obedecendo a outros tramites legais que agregam maior segurança ao serviço. Portanto, respondendo aos questionamentos, até o presente, enquanto se aguarda regulamentação, é possível e legal no Brasil a aposta on line, promovida por empresa sem loja física no território nacional, que opere com quota fixa de premiação em apostas esportivas, cujo domínio do site não seja registrado no país. Na nossa modesta opinião, uma situação esdrúxula, uma vez que a legislação está preparada, inclusive, para executar a tributação do setor, que, de momento, não ocorre, e o produto arrecado fica para o fisco de outra nação que recebe a sede da casa de aposta. Mas outra pergunta deflui do sistema parcial até então existente: por que afinal existem tantas empresas do setor promovendo publicidade interna das mais variadas formas? E resposta é simples: tais fornecedores atuam no Brasil na condição de empresas de publicidade (marketing esportivo) tão somente. Realizam uma autopublicidade convidando os apostadores ao seu site, cujo domínio é estrangeiro, estimando-se que, em torno de 450 casas de apostas operem pelo Brasil, embora através da internet, diga-se, aliás, um ambiente que não conhece fronteira física. Evidentemente, não há como o Brasil realizar persecução criminal a uma empresa com sede na Rússia, por serviços de Cassino ofertados pela internet, aplicando-lhe a lei de contravenções penais brasileira. A questão é, estando a empresa a cumprir os requisitos legais atuais, mesmo sem a regulamentação, a mesma teria amparo judicial no caso de pleito aforado no Brasil, pois desenvolveu atividade lícita. E nesse emaranhado normativo, como fica o apostador considerado como consumidor? Talvez a principal dúvida que possa surgir é sobre a garantia de recebimento do prêmio. Uma situação que deve ficar bastante clara, é que, para o apostador, tais jogos esportivos com apostas em dinheiro não se revelarem como um investimento, por mais que o apostador pretenda realizar cálculos de probabilidades, ou contratar um trader esportivo, um mentor que o auxilie. É apenas um cenário de lazer agregado ao interesse por torcer a certa equipe. Por certo, apostar em site estrangeiro acarreta o risco de, em caso de exigência do prêmio, o apostador ter que movimentar uma máquina judicial estrangeira, e sem garantias de que a casa de apostas tenha patrimônio suficiente para suportar uma condenação. Nesse sentido, as marcas mais atuantes, ao menos, têm uma obrigação de garantir a lisura e transparência do agir como forma a preservar o próprio negócio. Outra dúvida que pode advir é a necessidade de um programa de compliance intenso dos players do setor, para se evitar a corrupção com o acerto prévio de resultados, envolvendo times, jogadores, árbitros, cenários não tão incomuns na prática do futebol. Com garantias que tais situações sejam raras, o sistema tende a prosperar. E diante da legislação atual, como proteger o consumidor? A vulnerabilidade do consumidor é uma característica intrínseca a este agente da relação de consumo, como aponta o artigo 4º, inciso I do diploma consumerista brasileiro.8 Não pesam dúvidas de que os serviços de apostas esportivas on line apresentam um usuário final, o consumidor, definido como tal no artigo 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90, assim como um fornecedor, consoante dispõe o artigo 3º, caput, do mesmo diploma legal. O serviço, no caso, é inerente ao lazer. Acerva de vícios do serviço, o artigo 20 do CDC, enquadra como fornecedores todos aqueles que participaram da relação de consumo, da cadeia de fornecimento, com maior ou menor intensidade, garantindo-se a solidariedade destes frente aos danos gerados ao consumidor. E a artigo 14, caput, apresenta a mesma perspectiva no que concerne aos defeitos do serviço. No campo digital, algumas vulnerabilidades se acentuam, pois é necessário ao usuário compartilhar dados pessoais para se cadastrar aos site de apostas, de forma que uma primeira preocupação do fornecedor deva focar a questão da proteção desses dados, e também do sigilo, visto que muitos apostadores não querem ser vistos com tais status, especialmente em face do preconceito que recai sobre jogos de apostas. Já anunciado anteriormente, uma preocupação importante reside justamente sob o cumprimento do pagamento do prêmio. Caso o consumidor tenha que reivindicar o mesmo em país estrangeiro, necessitando de um patrono desta nação, diante de uma legislação distinta, as chances de obter o cumprimento do contrato são remotas, colocando o consumidor-apostador em prejuízo. No entanto, pode ocorrer que a referida casa de apostas tenha representação no Brasil, ainda que operando como empresa de marketing esportivo. A nosso ver, seria o suficiente para atrair a responsabilidade desta sucursal, na medida em que ela divulgue o serviço de apostas, gerando expectativas e confiança sobre o consumidor. Seria, no mínimo, uma decorrência da lealdade de emana da boa-fé objetiva, que é referida no artigo 51, inciso IV do CDC, por exemplo. Da mesma forma, entendemos como vinculada solidariamente ao prejuízo suportado pelo consumidor a celebridade que associa seu nome a uma casa de apostas, especialmente quando desenvolve alguma parceria nos lucros, podendo ser aplicado ao caso o artigo 7º, par. único do CDC. O artigo 12 do CDC, ao descrever os responsáveis solidários e diretos pelo fato (defeito) do produto, inclui, por opção legislativa, a figura do importador. E o motivo dessa presença é o fato do risco criado com a inserção de um produto estrangeiro em território nacional, pois em caso de danos, o consumidor teria que tentar promover um pleito no exterior, o que tende a ser inviável economicamente ao vulnerável da relação de consumo. Para que isso não ocorra, o importador passa a responder no caso. Sob essa mesma perspectiva, pode-se pensar na responsabilização do agente que promove o acesso a casa de apostas estrangeira que posteriormente não honra o pagamento do prêmio. Em uma atitude inédita, a Senacon, Secretaria Nacional do Consumidor, recentemente, em agosto de 2022, notificou empresas do setor, bem como todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro, alguns da série B, além de federações regionais de futebol, para que apresentassem cópias dos contratos havidos entre esses players envolvendo apostas esportivas. Em princípio, a atuação da Senacon não teve um respaldo muito legítimo, já que o que seria o motivo principal é a ausência de regulamentação da atividade sem nenhum controle.9 Ocorre que, cumpridos os requisitos da lei 13.756/18, havendo autorização para tanto, não há supedâneo que possa genericamente levar ao entendimento que o serviços de aposta prestado esteja a se enquadrar como prática criminosa ou prejudicial ao consumidor, não sendo algo que funcione, até o momento, na clandestinidade. De qualquer forma, a persecução no caso, abala o setor e afasta investidores, que passam a cogitar da precariedade jurídica do sistema. O fato de não existir uma fiscalização específica sobre o jogo, por falta de regulamentação de norma aprovada há quatro anos, não retira a legitimidade do serviço, e nem por isso, somente, o mesmo se torna lesivo aos consumidores em geral.10 Como se pode observar, o tema ainda é recente. Superar a barreira moral nacional contra o jogo e aposta promovidos por empresa privada do setor foi uma quebra de um tabu de décadas, e que corre o risco de retrocesso, caso a lei que alberga o permissivo da atividade não seja regulada. É uma atividade que remete a serviços de lazer, que cresceu muito com a pandemia Covid19, junto com a internet, e que pode gerar grandes divisas ao país, e empregos. É bastante possível a fiscalização, de forma que a prática do jogo de apostas não sirva de fachada a práticas delitivas, tal como ocorre com o vetusto Jogo do Bicho, e principalmente, que garanta ao consumidor um nível de segurança esperado sobre a lisura do processo, em que pese a álea seja o elemento que permeia o serviço de apostas esportivas on line. Esperamos que o serviço receba a correta regulação, que realmente possa produzir  as benesses que a própria lei contempla e que o consumidor tenha a proteção necessária ao realizar o jogo de apostas. __________ 1 Vide aqui. Acesso em 23.11.22. 2 Vide aqui.Acesso em 25.11.22. 3 TAVARES, Danilo Serra,  e CERQUEIRA, Felipe Mello. O PL 442/91 e o futuro dos jogos de azar no Brasil: normas, fiscalização e aplicações de sanções.Acesso em 23.11.2022. 4 Vide aqui. Acesso em 20.11.2022. 5 Observando-se o crescimento do e-commerce, no Brasil, em 2020, as vendas online cresceram 34,76%.  Em 2021, o aumento foi de 28,45%. Para 2022 e nos próximos anos, o crescimento esperado é de 20% ao ano, com projeção de que em 2025 o volume de vendas alcance R$465 bilhões de reais. Acesso em 24.11.22. 6 Vide aqui. Acesso em 25.11.22. 7 Vide aqui. Acesso em 24.11.22. 8 Sobre vulnerabilidade, sugestão de leitura do nosso SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2012. 9 GRITZ, Thuan e GUREK, Pedro Guilherme. Clubes de futebol e os sites de apostas online: o Estado não está mais blefando.    10 PAMPLONA, Leandro. A "jabuticaba" dos jogos no Brasil e a notificação da Senacon. Acesso em 24.11.22.
A teoria do inadimplemento eficiente justifica o inadimplemento proposital por parte do devedor da prestação se este demonstrar que economicamente é mais eficiente a quebra do vínculo contratual do que o seu adimplemento.  Importa registrar que somente será considerado eficiente se o descumprimento possibilitar maior lucro para o devedor e se este indenizar cabalmente o credor como se houvesse uma autorização tácita a depender do resultado econômico em jogo para as partes no sentido de que se pode descumprir a obrigação na busca de uma maior eficiência do resultado econômico final. A dizer que qualquer um dos contratantes, vinculados no contrato com a obrigação de adimplir, podem descumprir com maior eficiência no tocante aos lucros, desde que indenize integralmente a outra parte. A teoria do inadimplemento eficiente do contrato é uma manifestação da chamada análise econômica do direito e tem alguma aplicação em países fidelizados ao sistema do common law, tendo surgido e sido aplicada nos Estados Unidos da América. Guarda relação, portanto, com a Análise Econômica do Direito (AED) aplicada ao direito contratual e que poderia ser pensada aqui nas perspectivas de busca por maior eficiência das trocas econômicas levadas a efeito na atividade negocial. Sintoniza-se o referido movimento, outrossim, com a análise das consequências econômicas do direito que deveriam caminhar na busca do bem-estar social. Nesse ângulo de visada, tais objetivos - eficiência e consequencialismo - podem tranquilamente se apresentar quando o resultado econômico de um ato negocial puder se mostrar objetivamente satisfatório na ambiência do próprio programa contratual, ainda que haja o inadimplemento consciente, porque previamente programado, e doloso, na medida em que o devedor da prestação torna-se inadimplente porque quer, na justificativa de que os parceiros contratuais estarão satisfeitos, mesmo diante do inadimplemento. Malgrado direito e economia envolvam ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, inegável a existência de conexões e repercussões recíprocas. Não raro os magistrados, assim também os árbitros, são desafiados para solucionar questões tipicamente jurídicas que apresentam reflexos econômicos de grandes proporções, não só para as partes envolvidas no conflito, como também interesses coletivos e até mesmo difusos. Três singelos exemplos no âmbito legislativo relativos ao direito material e processual se relacionam com a importância que o direito brasileiro tem dado à análise econômica do direito. Evidente que outros poderiam ser referidos, mas fiquemos apenas nos que se seguem para reflexão. O primeiro é o advento da Lei de Liberdade Econômica (lei 13.784/19), sendo digno de destaque para ficar em apenas uma referência a modificação que tal lei impôs ao Código Civil, cujo artigo 421-A, II, que cuida da função social dos contratos, preconiza que "a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada.". O segundo é trazido da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterada pela 13.655/18 e tem a ver com o direito público. Os artigos 20 e 21 da novel legislação impõem aos órgãos decisórios, administrativos e judiciais, que considerem expressamente nas respectivas decisões que envolvam o interesse público as consequências práticas para a sociedade, proibindo-se referências e juízos que morem no plano das divagações abstratas. É o valor do consequencialismo sendo trazido para o direito positivo. O terceiro exemplo externa uma aproximação do nosso civil law com o common law de origem anglo-americana que vem a ser parte da filosofia e estrutura do atual Código de Processo Civil (2015) com o seu sistema de precedentes judiciais e instrumentos como, por exemplo, o Incidente de Assunção de Competência (IAC) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), na busca de uma maior previsibilidade e segurança jurídica na distribuição de justiça, o que também guarda relação com a análise econômica do direito. O contrato, por sua vez, talvez seja a maior expressão da correlação entre direito e economia, sendo sempre lembrada a lição de Enzo Roppo1 no sentido de que o contrato "é a veste jurídico-formal de operações econômicas. Donde se concluir que onde não há operação econômica, não pode haver também contrato.". É bem verdade que há contratos que produzem relevantes efeitos existenciais, assim como outros que extrapolam os interesses das partes, não estando a sua função social restrita a interesses de ordem econômica como tivemos oportunidade de chamar a atenção em outro trabalho2. A despeito, entretanto, da sedução que a vantagem econômica da adoção da teoria do inadimplemento eficiente parece proporcionar ao programa contratual, em um ordenamento jurídico que amadureceu para prestigiar o adimplemento, não vemos como justificar sua adoção no direito brasileiro. Nas as linhas de pensamento de um possível inadimplemento eficiente do contrato, reflitamos sobre uma situação em que um grande artista brasileiro, cuja imagem vincula-se a de um "bom bebedor de cerveja", seja contratado por uma empresa para enaltecer as qualidades da sua marca e o contrato acabe por ser bem cumprido, satisfazendo o interesse legítimo de ambos os contratantes. Um tempo depois, ou seja, na fase pós-contratual, outra empresa do mesmo segmento de mercado faz outro contrato com o artista e este se obriga a apontar a sua preferência por esta última marca, desdizendo o que afirmara recentemente em outro anúncio televisivo, em que conclamava os consumidores a experimentar a nova cerveja que era, segundo a opinião do músico, muito boa. A canção criada para esse novo anúncio já inicia dizendo a que veio: "quem já não viveu um amor de verão? Até tentou e descobriu que era ilusão/Coisa de momento que balança o coração/mas meu amor não tem comparação". E depois o refrão arrematava: "fui provar outro sabor, eu sei/mas não largo meu amor, voltei". Em outras palavras, com a mesma divulgação na mídia e com uma pequena diferença de tempo, o cantor badalou uma marca de cerveja e, em seguida, se arrependeu pelo que dissera e afirmou a sua paixão pela concorrente. A situação referida é conhecida como o Caso Zeca Pagodinho. Imaginemos que, esse imbróglio publicitário entre as cervejarias tenha sido eficiente, sob o ponto de vista econômico, haveria inadimplemento pós-contratual do artista? Haveria comportamento antissocial e de concorrência desleal da AMBEV (terceiro cúmplice) que trouxe para si aquele que seria o garoto-propaganda de outra cervejaria e não observou a tutela externa do crédito ou os efeitos da função social do contrato perante terceiros como assinala o preciso e justo enunciado 21 da I Jornada de Direito Civil3? A jurisprudência pátria, felizmente, respondeu que sim a ambas as indagações4. Se fosse adotada a teoria do inadimplemento eficiente do contrato e os seus requisitos acima delineados estivessem presentes, a resposta seria negativa. Pensemos, ainda, em drama mundial vivido recentemente por ocasião da pandemia, em uma situação na qual uma empresa tivesse contratado a venda de vacinas para determinado país e recebesse proposta bem mais vantajosa economicamente de outro, poderia ela indenizar cabalmente o país que celebrou o contrato primeiramente e vender o produto para o outro? Parece-nos que não, mas sob o ponto de vista da referida teoria, seria possível, ao menos em tese, dizer que sim. Haveria fungibilidade entre o dinheiro e tal prestação de elevado conteúdo existencial? Acreditamos que não. Enfim, para não ultrapassar os limites de uma singela reflexão e sem a veleidade de arrolar todos os óbices que a teoria do inadimplemento eficiente encontra no direito brasileiro, podendo ser mesmo um retrocesso em um direito que prima pela busca da execução específica e encontra normas de conteúdo material e processual, apontamos os que seguem: 1) ofensa ao princípio da obrigatoriedade dos contratos; 2) a confiança, que é um valor relevante, pode deixar de ser respeitada por iniciativa de um dos contratantes; 3) ofensa ao dever de cooperação inerente à boa fé objetiva; 4) no âmbito material e processual há um fomento indiscutível à possibilidade de execução específica da obrigação que poderia restar frustrada (arts. 475, CC, 479 a 501, CPC, 118, § 3º, LSA); 5) possibilidade de intervenção nociva de terceiros (figura do terceiro cúmplice); 6) O direito posto coloca a indenização como alternativa do credor (ex. art, 410, CC) e não o contrário. 7) Possível excesso de patrimonialização em contratos existenciais, malferindo a legalidade constitucional que tem na solidariedade e na proteção da dignidade humana seus vetores inafastáveis. Preocupa-nos o avanço de trabalhos sobre o tema no Brasil em estudo comparado ao direito estatudinense, motivo pelo qual enviamos na última jornada de direito civil a seguinte proposta de enunciado: "O ordenamento jurídico brasileiro não possibilita a aplicação da teoria do inadimplemento eficiente do contrato.". A proposta avançou, sendo aprovada, às cegas, na fase preliminar e, por unanimidade, no grupo de contratos, mas não alcançou os 2/3 necessários na plenária, talvez por não ter sido suficientemente discutida entre os presentes na sessão. Por fim e não menos importante, quero externar a minha profunda gratidão ao IBDCONT que tenho a honra de integrar, em nome de seu presidente Dr. Flávio Tartuce, pela oportunidade de apresentar essas modestas linhas que, com certeza, estão a merece maior aprofundamento. ____________ 1 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 11. 2 Peço licença para citar MELO, Marco Aurélio Bezerra de Melo. Contratos. Rio de Janeiro: GEN/FORENSE, 2019, p. 51/60 3 A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito. 4 "Indenização - Danos morais e materiais - Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja - Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente - Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais. Provimento parcial a ambos os recursos - Danos materiais a serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, proporcionalmente ao efetivo cumprimento do contrato de prestação de serviços - Dano moral, considerando a condição das partes e o valor do contrato, na quantia de R$ 420.000,00" (TJSP, 14a Câmara de Direito Privado, Apelação 9085298-60.2007.8.26.0000, Rel. Des. Pedro Ablas, julg. em 9/4/2008)". "Indenização por Danos Materiais, Morais e à Imagem - Empresa-autora que foi prejudicada pelo aliciamento do principal artista de sua campanha publicitária por parte da empresa-ré - Improcedência da demanda - Inconformismo - Acolhimento parcial - Requerida que cooptou o cantor, na vigência do contrato existente entre este e a autora - Veiculação de posterior campanha publicitária pela ré com clara referência ao produto fabricado pela autora - Não observância do princípio da função social do contrato previsto no art. 421 do Código Civil - Concorrência desleal caracterizada - Inteligência do art. 209 da Lei no 9.279/96 - Danos materiais devidos - Abrangência de todos os gastos com materiais publicitários inutilizados (encartes e folders) e com espaços publicitários comprovadamente adquiridos e não utilizados pela recorrente, tudo a ser apurado em liquidação - Dano moral - Possibilidade de a pessoa jurídica sofrer dano moral - Súmula 227 do Colendo Superior Tribunal de Justiça - Ato ilícito da requerida que gerou patente dano moral e à imagem da requerente - Sentença reformada - Ação procedente em parte - Recurso parcialmente provido" (TJSP, 5a Câmara de Direito Privado, Apelação 9112793-79.2007.8.26.0000, Rel. Des. J. L. Mônaco da Silva, julg. em 12/6/2013).
segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Contratos eletrônicos: ainda temos o que discutir

Vivencia-se um período de complexas transformações, que ocorrem em velocidade exponencial, cujos reflexos são sentidos imediatamente na dinâmica social, nos sistemas de produção, na área científica e, até na forma como as pessoas passaram a se relacionar. A Quarta Revolução Industrial destaca-se das anteriores, dentre outros aspectos, por sua velocidade e amplitude. Chevallier (2011) considera que as mudanças tecnológicas agem como um relevante vetor de alteração da dinâmica social e que, junto a outros fatores, posicionam as sociedades contemporâneas em uma outra fase. Em tradução livre: (...) as sociedades contemporâneas parecem ter entrado em uma nova fase. Por um lado, assistimos à comoção do conjunto de equilíbrios sociais: revoluções tecnológicas (avanço das tecnologias da informação e comunicação, desenvolvimento de biotecnologias...), mutações no sistema de produção (papel crescente da informação, declínio da indústria em benefício da prestação de serviços, realocação de unidades de produção, adaptação de formas de trabalho.), transformações da estratificação social (migração dos campos para a cidade, explosão do mundo do trabalho, multiplicação de empregos "intermediários".), inflexão de comportamentos e relações sociais que, nas sociedades dominadas pela urgência e caracterizadas por uma dinâmica permanente de mudança, tendem a ser vividas segundo a instantaneidade, sob o sinal do efêmero1(...) (CHEVALLIER, 2011, p. 10). É inegável o impacto que a tecnologia tem causado nas mais diversas áreas, inclusive no setor industrial e na economia. No âmbito do Direito dos Contratos, um ponto ainda carece de especial atenção, os contratos eletrônicos, haja vista o número de transações contratuais que foram potencializadas durante a pandemia do COVID-19. No âmbito do Direito dos Contratos, em especial, no que concerne aos contratos eletrônicos, nota-se que um ponto ainda carece de especial atenção, a formação dos contratos pela via eletrônica, haja vista a inexistência de regras na legislação civil e sobre a formalização do aceite. Destaca Flávio Tartuce que a referida carência legislativa, não obsta a aplicação das regras do atual Código Civil ou mesmo do Código de Defesa do Consumidor aos contratos eletrônicos (2022, p.213). Ademais, esclarece que existe na Câmara dos Deputados o PL. 3.514/2015, que pretende alterar o Código de Defesa do Consumidor, para receber um capítulo próprio relativo à contratação eletrônica (TARTUCE, 2022). Relevante também destacar que o contrato eletrônico pode ser considerado como formado entre presentes (chat, salas de bate-papo e chamada de vídeo) ou por ausentes (no caso de e-mail, segundo doutrina majoritária). Com relação aos contratos eletrônicos firmados por email, a doutrina assinala da aplicação da teoria da agnição, na subteoria da recepção, conforme previsto no Enunciado n. 173 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil2. Os contratos eletrônicos recebem essa denominação pela forma de contratação, ou seja, pela instrumentalização do vínculo contratual, não devendo ser considerados como uma espécie diferenciada de contrato: "...negócios jurídicos bilaterais, que se utilizam de computadores ou outros tipos de aparelhos eletrônicos (ex. aparelho de telefone celular) conectados à Internet, por meio de um provedor de acesso, a fim de se instrumentalizar e firmar o vínculo contratual, gerando, assim uma nova modalidade de contratação, denominada contratação eletrônica". (SOUZA, 2009, p. 73). Assim sendo, destaca-se como diferencial, o meio utilizado para a formação do vínculo contratual. Para tanto, deve-se observar o que a legislação civil determina quanto aos requisitos no plano da existência, validade e eficácia, bem como quanto à autenticidade e a segurança. É fato que o contrato eletrônico não é um novo tipo contratual, mas somente uma nova forma de contratar. Os meios eletrônicos estão viabilizando operações contratuais mais rápidas e menos burocráticas, rompendo com o excessivo rigor e formalismo. Por essa razão, nessas transações, a manifestação de vontade ocorre de diversas formas, como assinatura, digital ou eletrônica, aceite eletrônico ou resposta a e-mail, dentre outras. É bem verdade, que para a formação dos contratos é necessário observar os princípios da autonomia da vontade, da boa-fé, função social, eticidade, operabilidade e da socialidade, que norteiam as relações civis. A MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, instituiu a "Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônicas, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras" (art. 1º). Desta forma, os documentos assinados de forma eletrônica possuem presunção de veracidade. Há também a lei 14.063, de 23 de setembro de 2020, que estabelece regras para o uso de assinaturas eletrônicas em atos que envolvam entes públicos em interação com as pessoas naturais e as pessoas jurídicas, inclusive em questões de saúde, incluindo-se a utilização de softwares, reconhecendo a validade da assinatura eletrônica de forma simples, de forma avançada e por meio de assinatura eletrônica qualificada. As assinaturas eletrônicas juridicamente reconhecidas pelo Direito brasileiro são variadas, ou seja, tem-se a assinatura digital, a assinatura digitalizada, o login junto com a senha e um clique no botão "aceito" e a assinatura biométrica. Mas o aceite nos contratos são considerados válidos mesmo quando não há a assinatura em si, a depender dos demais requisitos que podem comprovar a sua validade. Presume-se que a formalização do contrato por meio da assinatura das partes ratifica a intenção de firmar determinado compromisso, declarando a ciência das obrigações e dos direitos decorrentes do negócio jurídico. Por sua vez, a assinatura demonstra, de forma inequívoca, que a pessoa é quem diz ser, servindo também para garantir a autenticidade do documento que é repassado para outrem. Verifica-se que os aceites, atualmente, ocorrem de forma rápida nos contratos eletrônicos e, por diversas formas, como mensagens eletrônicas que são trocadas entre as partes contratuais, como a troca de correspondência eletrônica (e-mail), por aceites de mensagens instantâneas, por sistemas automatizados de compras, através das lojas virtuais, entre tantos outros meios digitais colocados à disposição da sociedade, muitas vezes entendidos como formas mais rápidas de vendas de produtos e serviços, por exemplo. Para a efetiva formalização do negócio jurídico, este precisa ser analisado nos aspectos da existência, validade e eficácia. A declaração da vontade livre e informada no contrato eletrônico é um aspecto importante a ser observado como requisito da validade contratual. Além da assinatura digital e da assinatura eletrônica, outros meios podem ser utilizados para dar validade ao contrato e confirmar a autenticidade do aceite pela parte contratante, como o endereço do IP do terminal utilizado para realizar o contrato. A confirmação por meios digitais é uma forma de aceite que deve ser considerada válida quando a vontade do contratante não possui vício. O consentimento, nos contratos eletrônicos, não se restringe, portanto, a assinatura eletrônica e a assinatura digital. Estas são meios mais seguros para garantir a autenticidade do consentimento ou aceite. Porém, há outras formas que são válidas, mas que podem abrir espaço para abusos e fraudes, como explica Santos e Rossi: "Devido à especificidade das transações realizadas no ambiente digital, problemas jurídicos típicos da contratação eletrônica têm reclamado maior atenção dos juristas, alguns sustentando a necessidade de um regime legal diferenciado, outros negando tal necessidade. Entre tais problemas podemos citar: a eficácia jurídica do documento eletrônico e da assinatura digital; a certificação eletrônica; a responsabilidade dos intermediários e a proteção dos usuários. [...]" (2000, p. 105). O Superior Tribunal de Justiça - STJ - em dezembro de 2021, firmou tese (Tema Repetitivo 1061) no sentido de que "Na hipótese em que o consumidor/autor impugnar a autenticidade da assinatura constante em contrato bancário juntado ao processo pela instituição financeira, caberá a esta o ônus de provar a autenticidade (CPC, arts. 6º, 369 e 429, II)". Assim, tratando-se de contrato eletrônico, a referida tese também deve ser aplicada. Um caso curioso acerca do que se discute, foi o de uma idosa, recém-viúva e com 90 anos de idade, foi acompanhada por um de seus filhos a um estabelecimento para realizar um contrato de Plano de Saúde. Vale apenas considerar que a idosa, em questão, já possuía assistência médica e hospitalar por outra operadora de saúde. Seu filho, contudo, "considerava" que o atendimento não era adequado e que seria melhor que ela tivesse um outro plano, razão pela qual persuadiu a mãe a acompanhá-lo. Já no estabelecimento, o atendente, após breves explanações sobre a cobertura de assistência médica e hospitalar prevista pelo contrato, solicitou tão somente que o filho informasse o seu endereço eletrônico (e-mail) para o qual o contrato eletrônico deveria ser enviado, comunicando que após o recebimento da proposta bastava o simples aceite para que fosse finalizada a contratação. E, é exatamente esse o ponto que merece atenção! Questiona-se, portanto, se essa manifestação eletrônica, realizada por terceiro, que não a representava juridicamente, seria instrumento oportuno para a formação do contrato? A resposta é negativa. Embora o Poder Judiciário reconheça como válida e apta a produzir direitos e deveres as mensagens trocadas por meio de comunicação eletrônica (e-mail) em várias situações, permitindo-se contratar, notificar e distratar utilizando esse meio, no caso acima citado, além da hipervulnerabilidade em decorrência da idade da contratante, o contrato foi feito em nome de uma pessoa, contudo o aceite foi realizado por outra, não se podendo, portanto, ser reconhecida a sua validade. Note-se a fragilidade dessa transação, que já na sua origem é carente quanto à existência, validade e eficácia. Em situações similares deve ser declarada a nulidade do contrato e, como consequência, dos direitos e obrigações dele decorrentes. Embora o instrumento de aceite pudesse ser utilizado, o destinatário da transação não era o contratante. O princípio da concretude deve ser efetivamente aplicado pelo Poder Judiciário, quando diante de um litígio que envolva o contrato eletrônico e o aceite, sendo imprescindível a observação dos usos e costumes em relação ao tipo de contrato e em relação às partes contratuais (se estas costumam ou não utilizar o meio digital para contratar e a forma como o fazem). A assinatura eletrônica e a assinatura digital, assim como o aceite eletrônico conferem uma maior segurança aos contratos firmados por meio digital, sendo uma garantia para as partes, porém não foram suficientes para a mencionada situação. Caberá ao Poder Judiciário, portanto, ao analisar o caso concreto sobre o aceite em um contrato eletrônico, atentar para a dinâmica da integração das normas legais, dos costumes e dos princípios, de modo que a análise da formação válida do negócio jurídico, que perpasse pelos aspectos da vontade livre e da boa-fé para que seja reconhecida a existência, validade e a eficácia. Deverá, ainda, ser levado em consideração, o comportamento habitual das partes envolvidas quanto ao negócio jurídico. Assim sendo, enquanto não existe legislação específica sobre a formação dos contratos eletrônicos, deve-se aplicar a teoria geral dos contratos que se presta a este fim. BRASIL - MEDIDA PROVISÓRIA No 2.200-2, DE 24 DE AGOSTO DE 2001.  BRASIL LEI Nº 14.063, DE 23 DE SETEMBRO DE 2020.   CHEVALLIER, J. El Estado Posmoderno. Tradução de Oswaldo Pérez. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2011. SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. ROSSI, Mariza Delapieve. Aspectos Legais do Comércio Eletrônico - contratos de adesão. Revista de Direito do Consumidor, V. 36, São Paulo: RT, Out/2000, p. 105). SOUZA, Vinicius Roberto Prioli de. Contratos Eletrônicos & Validade da Assinatura Digital. Curitiba: Juruá, 2009. TARTUCE, Flávio. Teoria Geral do Direito Civil e Contratos em Espécie. 17 ed. São Paulo: Forense, 2022. __________ 1 No original: "(...) las sociedades contemporáneas parecen haber ingresado en una nueva fase. Por una parte, asistimos a la conmoción del conjunto de equilibrios sociales: revoluciones tecnológicas (avance de las tecnologías de la información y de la comunicación, desarrollo de las biotecnologías...), mutaciones del sistema de producción (papel creciente de la información, decadencia de la industria en beneficio de la prestación de servicios, deslocalización de las unidades de producción, adaptación de las formas de trabajo.), transformaciones de la estratificación social (migración de los campos a la ciudad, explosión del mundo obrero, multiplicación de los empleos "intermediarios".), inflexión de los comportamientos (INGELHART, 1993) y de las relaciones sociales, que, dentro de las sociedades dominadas por la urgencia y caracterizadas por una dinámica permanente de cambio, tienden a ser vividos según la instantaneidad, bajo el signo de lo efímero  (...)". 2 Enunciado n. 173 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: "a formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente".
Sabe-se da grande utilidade da promessa de compra e venda para perfectibilização de negócios jurídicos de bens imóveis que envolvam pagamentos a prazo. Em apertada síntese, a promessa de compra e venda significa que as partes prometem, após quitado o preço, a lavrar a escritura pública definitiva de compra e venda do imóvel em questão. Dentro do direito brasileiro a promessa de compra e venda de imóvel é regulada, em sua essência, pelos arts. 1.4171 e 1.4182 do Código Civil de 2002. O primeiro artigo acima citado sustenta que o registro da promessa acarretaria a criação de um direito real (logo, oponível perante terceiros) à aquisição do imóvel. Por sua vez, o segundo artigo aduz que com o registro da promessa e compra e venda, possível seria a promoção da adjudicação compulsória3 do imóvel em caso de recusa por parte do promitente vendedor após quitado o preço pactuado. Neste ponto, ainda que a legislação civil seja clara quanto à necessidade do registro da promessa para a adjudicação compulsória, relevante anotar que atualmente é pacífico o entendimento em todas as cortes de justiça do país acerca da aplicabilidade da Súmula 239 do STJ4, que aventa a prescindibilidade do registro da promessa de compra e venda para a promoção da adjudicação compulsória do imóvel objeto do negócio jurídico. Em paralelo à Súmula 239 do STJ, outros importantes entendimentos consolidados devem ser lembrados quando se enfrenta o tema da manutenção e efetividade da promessa de compra e venda dentro do Poder Judiciário, dentre eles, a Súmula 845 e a Súmula 3086, ambas do STJ. Nesta coluna, contudo, procuro trazer elucidação quanto à necessidade de prévia resolução da promessa de compra e venda por inadimplemento do promitente comprador para que, então, possa o promitente comprador se reintegrar na posse do imóvel objeto daquele contrato, notadamente porque não é rara a transmissão da posse para o promitente comprador já na formalização do contrato, antes de quitado seu integral preço. Necessário frisar que até 2021 havia certa pacificidade no Superior Tribunal de Justiça quanto ao entendimento de que mesmo que houvesse cláusula resolutiva expressa na promessa de compra e venda, para a reintegração do promitente vendedor na posse do bem necessário seria, além de uma prévia notificação extrajudicial anterior à promoção da demanda resolutiva, o trânsito em julgado de decisão que declarasse a resolução judicial do contrato. Após a resolução judicial do contrato, então, é que a posse se tornaria injusta e, com isso, apenas a partir deste ponto é que preenchidos estariam os requisitos da reintegração de posse. Isto significa dizer que não era possível, em regra, segundo o entendimento dominante até 2021, a concessão de tutela antecipada de reintegração de posse em favor do promitente comprador mesmo no caso que houvesse flagrante inadimplemento contratual por parte do promitente comprador. Sobre esta pacificidade existente até o ano passado citam-se alguns julgados, como o Recurso Especial 1.236.960/RN7, de relatoria do Min Antônio Carlos Ferreira e o Agravo Interno em Agravo em Recurso Especial 1.278.577/SP8 e Recurso Especial 620.787/SP9, estes dois últimos de relatoria do Min. Luís Felipe Salomão, que tinham como norte a imprescindibilidade de prévia manifestação judicial para que restasse consumada a resolução contratual, mesmo que com cláusula resolutória expressa, para que fosse possível a reintegração do promitente vendedor na posse do imóvel. Como possível observar, até 2021 muito comum extrair das decisões judiciais que para a reintegração de posse do promitente vendedor lesado pelo adimplemento, mesmo que houvesse cláusula resolutória expressa no contrato, necessário seria, antes, que houvesse um prévio pronunciamento judicial acerca da resolução do contrato. Isso, sem nenhuma dúvida, obstava que o promitente vendedor conseguisse retomar o bem do promitente comprador inadimplemente de forma célere, já que precisaria aguardar até o trânsito em julgado da demanda para que, então, pudesse diminuir seu prejuízo retomando a posse do bem para si. Ocorre que a partir do segundo semestre de 2021 a situação parece ter-se alterado de forma abrupta dentro do Superior Tribunal de Justiça, já que no REsp 1.789.863/MS decidiu a Quarta Turma do STJ pelo não provimento do Recurso Especial que solicitava a extinção de uma reintegração de posse sem julgamento do mérito exatamente porque estava a posse consubstanciada em promessa de compra e venda que não foi objeto de resolução via declaração judicial. Em outras palavras, ao negar provimento ao Recurso Especial acima mencionado, o STJ altera o entendimento que por muito tempo prevaleceu na Corte ao ponto de afirmar que existindo cláusula resolutiva expressa na promessa de compra e venda, poderá o promitente vendedor enviar notificação extrajudicial ao promitente comprador, e, se este não purgar eventual mora, solicitar de forma imediata a reintegração de posse. É o extrato da parte relevante do julgado: RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL RURAL COM CLÁUSULA DE RESOLUÇÃO EXPRESSA - INADIMPLEMENTO DO COMPROMISSÁRIO COMPRADOR QUE NÃO EFETUOU O PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES AJUSTADAS - MORA COMPROVADA POR NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL E DECURSO DO PRAZO PARA A PURGAÇÃO - INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM PROCEDENTE O PEDIDO REINTEGRATÓRIO REPUTANDO DESNECESSÁRIO O PRÉVIO AJUIZAMENTO DE DEMANDA JUDICIAL PARA A RESOLUÇÃO CONTRATUAL - INSURGÊNCIA DO DEVEDOR - RECLAMO DESPROVIDO. Controvérsia: possibilidade de manejo de ação possessória fundada em cláusula resolutiva expressa decorrente de inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda imobiliária, sem que tenha sido ajuizada, de modo prévio ou concomitante, demanda judicial objetivando rescindir o ajuste firmado. [...] Inexiste óbice para a aplicação de cláusula resolutiva expressa em contratos de compromisso de compra e venda, porquanto, após notificado/interpelado o compromissário comprador inadimplente (devedor) e decorrido o prazo sem a purgação da mora, abre-se ao compromissário vendedor a faculdade de exercer o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a resolução da relação jurídica extrajudicialmente. Impor à parte prejudicada o ajuizamento de demanda judicial para obter a resolução do contrato quando esse estabelece em seu favor a garantia de cláusula resolutória expressa, é impingir-lhe ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refogue o texto da lei e a verdadeira intenção legislativa. [...] (REsp 1.789.863/MS, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/8/21, DJe de 4/10/21.) Como se pode observar, o julgado é pontual e extremamente claro no que tange à alteração de seu histórico posicionamento de, ao menos para casos que não envolvam contrato de adesão e não sejam de consumo, não mais exigir a judicial resolução contratual para que seja viabilizada a reintegração do promitente vendedor na posse do imóvel quando há inadimplemento por parte do promitente comprador. O fundamento utilizado para lastrear o acórdão não poderia ser outro que aplicação do art. 474 do Código Civil de 200210, que permite que as partes pactuem cláusula resolutiva expressa que se opera de pleno direito, isto é, por meio do direito potestativo da parte lesada. Assim, uma vez inadimplida uma promessa de compra e venda por parte do promitente adquirente, desnecessário será, caso realmente enveredada a jurisprudência para este novo posicionamento, que o promitente aguarde uma declaração judicial de resolução contratual para poder reintegrar-se na posse do imóvel outrora prometido à venda. Por fim, em posterior manifestação, já em sede de embargos declaratórios no mesmo Recurso Especial acima discorrido, cuidou a Quarta Turma de expressamente reconhecer a alteração de posicionamento e informar que até aquele momento a jurisprudência então dominante atentava contra texto expresso em lei. ---------- 1 Art. 1.417: Mediante promessa de compra e venda, em que não se pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador o real à aquisição do imóvel. 2 Art. 1.418: O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel. 3 Ação esta que depois do advento da Lei 14.381/2022 que incutiu art. 216-B na Lei 6.015/73 que autoriza a realização da adjudicação compulsória de imóvel pela via extrajudicial perante o Registro de Imóveis da situação do imóvel. 4 Súmula 239: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 5 Súmula 84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundada em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro. 6 Súmula 308: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. 7 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.236.960/RN. Quarta Turma. Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira. Dj. 19/11/2019. 8 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.278.577/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Dj. 18/09/2018. 9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 620.787/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Dj. 28/04/2009. 10 Art. 474 do CC/02: A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial
Tem sido lugar comum, com ênfase na referência aos escritos de Bauman1, a percepção de que as relações humanas progridem em flexibilidade, volatilidade e insegurança. Proliferam os relacionamentos efêmeros e em rede, via internet, quando comparados aos vínculos duradouros, presenciais e tradicionais. Relações viram mercadorias, usualmente substituídas por modelos mais novos. Não se buscam ajustes; apenas substituições. Ao que parece, a geração fast food criou o fast love. Há uma modernidade líquida, atrelada a um amor, igualmente, líquido2. A percepção da finitude da conjugalidade, aliado a uma cultura materialista, desemboca na busca de planejamentos familiares, visionando abrandar os efeitos de uma eventual dissolução afetiva. Consortes, por vezes, não mais desejam uma conjugalidade standart, com regime de bens generalista, desprovido de direcionamentos pessoais e sem eficiente normatização aplicável a situações limite de dissolução afetiva. Em uma leitura contratualizada, a customização conjugal afasta a equivocada moldura da conjugalidade como um negócio jurídico completamente vinculativo, de regras predeterminadas, assemelhado a um contrato por adesão. Conjugalidade não deve ser significada como camisa unissex e de tamanho único. Consortes querem adequar as suas necessidades nos enlaces conjugais. Sem dúvidas, dentre os temas afetos a este cenário de customização conjugal, tem sido corriqueiro o debate sobre a (im)possibilidade de dispensa recíproca aos alimentos, devidamente clausulada em um pacto antenupcial ou em um contrato de convivência. Seria esta conduta juridicamente viável? Nas pegadas dos artigos 1.566, III, e 1.724, ambos do Código Civil, há, dentre os deveres do casamento e da união estável, a noção de mútua assistência. Historicamente o dever de mútua assistência remete ao mutuum adiutorium do direito canônico, sendo de altíssimo valor ético e dialogando com o elemento espiritual do vínculo da conjugalidade. Seu conteúdo diz respeito a ajudas e cuidados mútuos, com compartilhamento de alegrias, dores, adversidades, enfermidades...3. A leitura da mútua assistência leva a verificação de seu aspecto material - de manutenção comum - e moral - de apoio recíproco. Trata-se de dever que se projeta para após o fim do vínculo conjugal e, por isso, não se confunde com o mero sustento do lar conjugal, o qual finda com o término do relacionamento4. Traduz a mútua assistência, no seu aspecto material, não apenas obrigações de fazer, mas também o dever de socorro materializado na obrigação alimentar5. Já no viés moral, remete a reciprocidade de apoio moral, psicológico e espiritual. Por ser uma decorrência da vida em comum, e dialogar com a subsistência, doutrina e jurisprudência entendem pela impossibilidade de dispensa antecipada da mútua assistência. Assim, tem-se como inviável a cláusula que, em pacto antenupcial ou em contrato de convivência, antecipadamente dispense a mútua assistência, com prévia renúncia aos alimentos. O pensamento em questão, aponta Yussef Said Cahali6, decorre não apenas da análise dos deveres da conjugalidade, mas sim do próprio artigo 1.707 do Código Civil, que apoiado na tradição do artigo 404 do Código Civil anterior, firma a irrenunciabilidade do direito aos alimentos. Inviável, portanto, a renúncia aos alimentos futuros a que se faça jus, sendo apenas possível a renúncia ao exercício do direito de cobrança dos alimentos devidos e não prestados.  A conclusão em tela decorre, inclusive, da percepção de que a fixação dos alimentos demanda análise da necessidade do credor no momento do pleito, não sendo possível renúncia prévia. Os princípios da dignidade humana e da proteção à família são imperativos e não poderiam ser afastados pela autonomia privada, notadamente de forma antecipada. Além disso, alimentos remete a tema com viés também publicista, não condizente com uma mera leitura egoística-patrimonial, demandando do operador do direito enfoque de verdadeiro interesse público familiar. Justo por isso, arremata Yussef Said Cahali7, o direito de alimentos não por ser objeto de transação ou renúncia. A simples cláusula de dispensa da mútua assistência, com renúncia antecipada aos alimentos, é nula, por constituir, a um só tempo, fraude a lei imperativa e ter objeto ilícito8. Como bem obtempera Francisco José Cahali9, os alimentos são estipulados no Código Civil como questão de ordem pública. Inviável cláusula que tenha por escopo renunciar aos alimentos, a qual será ilícita e não produzirá efeitos. Igualmente entendem pela nulidade desta cláusula Flávio Tartuce10, Carlos Roberto Gonçalves11, Conrado Paulino da Rosa12, Maria Helena Diniz13, Francisco Cláudio Almeida Santos14 e tantos outros doutrinadores. Não é outra a linha seguida pelo Superior Tribunal de Justiça: Irrenunciabilidade, na constância do vínculo familiar, dos alimentos devidos. Tendo os conviventes estabelecido, no início da união estável, por escritura pública, a dispensa à assistência material mútua, a superveniência de moléstia grave na constância do relacionamento, reduzindo a capacidade laboral e comprometendo, ainda que temporariamente, a situação financeira de um deles, autoriza a fixação de alimentos após a dissolução da união. REsp 1.178.233-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 9.12.14. 4ª T. D'outra giro, indaga-se se ao revés de renúncia antecipada, poderiam os cônjuges fixar o montante da eventual pensão no momento da dissolução afetiva, bem como a possível transitoriedade dos alimentos. Seria viável? A conduta não é inédita no cenário internacional, já tendo sido alvo de notícias da imprensa. No pacto pré-nupcial entre a celebridade Khloé Kardashian e o jogador de basquete Lamar Odom, restou clausulada, para a hipótese de divórcio, que ele pagaria à ela uma pensão de 25 (vinte e cinco) mil dólares e uma mesada de 5 (cinco) mil para compras e mais 1 (hum) mil para tratamentos estéticos15. E no Brasil, seria possível? Neste caso, como é intuitivo, não estar-se-á a falar em renúncia aos alimentos, mas sim em sua fixação prévia e eventual transitoriedade. Trata-se de conduta viável no ordenamento jurídico nacional. Como coloca Yussef Said Cahali16, embora a consagrada indisponibilidade do direito aos alimentos devidos por lei, tem-se por válidas as convenções estipuladas entre as partes, com o escopo de fixação da pensão, seja presente ou futura, e relacionada ao modo de sua prestação.  Justo por isto, nada impede que se regule sobre o valor da prestação alimentar, negociando o seu aspecto patrimonial17, e/ou a sua duração no tempo, em vista do seu caráter transitório. A tese, registra-se, já fora acolhida pelo Tribunal de Justiça Gaúcho e Catarinense: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL NÃO CONFIGURADA. CASAMENTO POSTERIOR. PACTO ANTENUPCIAL QUE ADOTOU O REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS. ALIMENTOS. ESCRITURA PÚBLICA COM DISPOSIÇÃO ACERCA DE ALIMENTOS TEMPORÁRIOS À MULHER. HIGIDEZ DA DISPOSIÇÃO. ALIMENTOS AO FILHO. VALOR SUFICIENTE AO SUSTENTO DA CRIANÇA. DIFERENCIADAS POSSIBILIDADES DO GENITOR. [...] 3. ALIMENTOS À MULHER. Pretende a autora que sejam estabelecidos alimentos em seu benefício tomando-se percentual de todas as rendas percebidas pelo varão, sem caráter de transitoriedade. Não há causa para o acolhimento de seu pedido, porquanto na referida escritura pública de pacto antenupcial os litigantes deliberaram que haveria o pagamento de pensão alimentícia para ela no valor de cinco salários mínimos por período não superior a cinco anos. Nada há nos autos para retirar da cláusula sua validade e eficácia, pois o documento foi firmado por pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de sua autonomia de vontade, tratando de direito disponível. Tampouco prospera a alegação de nulidade por afronta à disposição absoluta de lei, qual seja o art. 1.694 do CCB. (Apelação Cível Nº 70054895271, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 01/08/2013) TJ-RS - AC: 70054895271 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 01/08/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/08/2013. Grifos. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL E PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA DE ALIMENTOS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE CONCEDEU ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM FAVOR DA AUTORA. RECURSO DO RÉU. PLEITO DE MINORAÇÃO DA VERBA. QUANTIA DISPOSTA EM CONTRATO. PARTICULAR DE UNIÃO ESTÁVEL.  POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE E NECESSIDADE DA ALIMENTADA EVIDENCIADAS. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO TJSC, Agravo de Instrumento n. 0031788-33.2016.8.24.0000, de Itajaí, Rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, j. 17.1.2016. Grifos. Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça, na Jurisprudência em Teses número 65, item 14, aduz que "os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira". Do explicitado parece-nos que o pacto antenupcial e o contrato de convivência não podem dispensar os alimentos, com renúncia prévia, sob pena de nulidade da respectiva cláusula ou convenção. Entretanto, nada impede que haja regramento em relação ao quantum obrigacional e/ou transitoriedade, esta, inclusive, atrelada ao tempo de relacionamento, como bem coloca Luciana Faísca Nahas18. Fabiana Domingues Cardoso19, na mesma linha, sufraga a possibilidade dos nubentes ajustarem parâmetros básicos para fixação dos alimentos em eventual rompimento conjugal, a exemplo de quantia mínima até a fixação judicial. A premissa ganha cada vez mais adeptos, a exemplo de Conrado Paulino da Rosa20, e insere-se dentro dos limites da autonomia, que respeita a questão de ordem pública - caráter irrenunciável dos alimentos - e transaciona apenas sobre o seu aspecto patrimonial - valor e transitoriedade. Por fim, recorda-se que no tema alimentos sempre será viável eventual ação revisional, inclusive para debater sobre o montante e/ou transitoriedade previamente fixada no pacto antenupcial ou no contrato de convivência. Isto, porém, não retirará a importância do regramento, o qual servirá como farol na eventual dissolução afetiva. __________ 1 BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 2 BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 3 GOMES, Orlando. Direito de Família. 14a Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 140. 4 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 147.   5 Concordamos, no particular, com Pablo Stolze Gagliano e Rodolgo Pamplona Filho. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. V. 6. 8 ed. Saraiva: São Paulo, 2018, p. 305. Discorda deste premissa Orlando Gomes, quem distinguem o dever de assistência do de socorro. Este, segundo o autor, materializa-se no dever de prestar alimentos e remete a um aspecto da eficácia econômica do casamento. GOMES, Orlando. Direito de Família. 14a Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 141. 6 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 51. 7 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 33-34.   8 Na forma do artigo 166 do Código Civil. 9 CAHALI, Francisco José. Contrato de Convivência na União Estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 75. 10 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito de Família. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 169. 11 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 445. 12 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 7a Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 246. 13 DINIZ, Maria Helena de. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. v. 29a Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173. 14 SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. O pacto antenupcial e a autonomia privada. In: FERREIRA BASTOS, Eliene; SOUSA, Asiel Henrique de (Coords.). Família e jurisdição.Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 207. 15 Disponível aqui. Acesso em 09.12.2021. 16 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 92. 17 NAHAS, Luciana Faísca. Pacto Antenupcial. O que pode e o que não pode constar? In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. DIAS, Maria Berenice (Coord.). Famílias e Sucessões: Polêmicas. Tendências e Inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 227. 18 NAHAS, Luciana Faísca. Pacto Antenupcial. O que pode e o que não pode constar? In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. DIAS, Maria Berenice (Coord.). Famílias e Sucessões: Polêmicas. Tendências e Inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 243.  19 CARDOSO, Fabiana Domingues. Regime de Bens e Pacto Antenupcial.  Rio de Janeiro: Método/Gen, 2010, p. 168. 20 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 7a Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 245.