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Migalhas Consensuais

Meios adequados de solução de conflitos.

Mariana Freitas de Souza e Samantha Longo
Introdução No cenário econômico atual, muitas empresas enfrentam dificuldades financeiras que as levam a buscar a recuperação judicial, liquidação judicial ou extrajudicial, e até mesmo a falência. Nesse contexto, a transação de débitos inscritos e não inscritos se apresenta como uma alternativa viável para proporcionar o alívio necessário na negociação de dívidas fiscais, assegurando a continuidade das atividades empresariais ou uma saída digna em casos de liquidação. Além disso, a mediação emerge como uma ferramenta essencial que, quando integrada a essas transações, promove um ambiente de diálogo e cooperação entre as partes envolvidas, facilitando o alcance de soluções mais rápidas e eficazes. Ao criar um espaço seguro para negociações e acordos, a mediação se torna uma aliada poderosa para empresários que buscam manter suas atividades ou dissolver seus negócios de forma ordenada. 1. O Contexto das Recuperações e Liquidações A recuperação judicial é um mecanismo legal que visa permitir que empresas em dificuldades financeiras se reestruturem, garantindo a continuidade de suas atividades e preservando empregos. Já a liquidação judicial e a extrajudicial são processos que visam a dissolução e encerramento das atividades da empresa, com a destinação adequada de seus ativos. Em casos de falência, o objetivo é proteger os interesses dos credores, mas muitas vezes resulta na dissolução da empresa. Esses processos enfrentam desafios significativos, como a pressão de credores, a complexidade das negociações e a necessidade de reestruturação ou encerramento eficiente. Nesse cenário, a transação de débitos surge como uma alternativa que pode beneficiar empresas em todas essas situações. 2. O Papel das Transações Fiscais A transação tributária, conforme previsto no Código Tributário Nacional (CTN) e na Constituição Federal (CF), permite a negociação de débitos fiscais entre o contribuinte e a administração tributária. A aplicação desse mecanismo é essencial para a modernização das relações tributárias, como abordam autores renomados na área, como Hugo de Brito Machado e Ives Gandra Martins. Transações de Débitos Inscritos: Para débitos já inscritos na Dívida Ativa, as transações permitem que a empresa negocie a redução do valor devido, o parcelamento das dívidas e a dispensa de penalidades e juros. Isso é especialmente importante para empresas em recuperação judicial, que precisam de fôlego financeiro para reestruturar suas operações. Transações de Débitos Não Inscritos: As transações também podem ser aplicadas a dívidas ainda não inscritas, possibilitando que as empresas evitem a inscrição dessas dívidas, o que poderia agravar ainda mais sua situação financeira. Essa possibilidade é crucial para empresas que buscam evitar a deterioração de suas finanças.  3. Vantagens das Transações para Empresas em Recuperação e Liquidação As transações oferecem diversas vantagens para empresas em recuperação, liquidação ou falência: Alívio Financeiro: As transações podem proporcionar uma redução significativa do valor devido, permitindo que as empresas respirem financeiramente. Isso é fundamental em momentos de crise, quando a liquidez é escassa. Facilitação de Negociações: A criação de um ambiente favorável para a negociação com credores aumenta as chances de sucesso na recuperação ou na liquidação ordenada. A transparência e a disposição para negociar podem levar a acordos mais justos e satisfatórios para ambas as partes. Preservação da Atividade Empresarial: As transações podem ajudar a manter as empresas operando, protegendo empregos e contribuindo para a economia local. Mesmo em processos de liquidação, uma transação bem estruturada pode garantir que ativos sejam vendidos de forma eficiente, maximizando o retorno para os credores. 4. Desafios e a Necessidade de Melhoria nas Transações Embora as transações ofereçam benefícios, é importante reconhecer que algumas delas não são tão eficazes quanto poderiam ser. Muitas vezes, há uma falta de agilidade nas análises e na resposta aos pedidos de transação, o que pode frustrar os empresários que buscam soluções rápidas para suas pendências fiscais. Conforme destacado por Paulo de Barros Carvalho, a burocracia excessiva pode dificultar a aplicação prática das transações, resultando em ineficiências que comprometem o objetivo de facilitar a regularização das dívidas. Portanto, é essencial que as Procuradorias da Fazenda Nacional, Estadual e Municipal adotem uma abordagem mais ágil e eficiente, proporcionando feedback rápido aos solicitantes e realizando análises detalhadas dos pedidos de transação. 5. Ideias de Metodologia para Implementação da Transação Fiscal As Procuradorias das Fazendas podem adotar uma metodologia clara para viabilizar a transação fiscal, garantindo que as ideias saiam do papel e sejam devidamente aplicadas: Criação de Protocolos: Desenvolver protocolos que orientem os agentes públicos sobre como proceder em negociações de transação, considerando as especificidades de cada ente federativo com agilidade e maior transparência possível. Capacitação e Treinamento: Promover programas de capacitação para os procuradores, a fim de que estejam aptos a avaliar as propostas de transação com segurança e eficácia principalmente dessas empresas que se encontram em crise financeira. Flexibilidade e Criatividade: Incentivar uma abordagem flexível e criativa na análise das propostas de transação, considerando a realidade financeira das empresas e as possibilidades de recuperação. Transparência e Acompanhamento: Estabelecer mecanismos de transparência e acompanhamento dos resultados das transações, garantindo que as melhores práticas sejam adotadas e os resultados sejam monitorados. Transações que abranjam débitos que ainda que não inscritos possam também aproveitar as condições de parcelamento: As transações das quais forem aptas ao parcelamento poderão abarcar mais débitos sejam eles inscritos ou não em dívidas ativas, possibilitando uma maior abrangência aos débitos fiscais, incluindo todos aqueles que são de necessidade da empresa em crise, principalmente objetivando uma forma de parcelamento mais eficaz e resolução efetiva dando condições para que estes débitos possam ser incluídos no fluxo de caixa das empresas. Conclusão As transações de débitos inscritos e não inscritos, quando combinadas com técnicas de mediação, representam uma oportunidade valiosa para empresas em recuperação judicial, liquidação judicial, liquidação extrajudicial e falência. Ao oferecer uma forma eficaz de negociar dívidas fiscais, essas transações, mediadas de forma adequada, não apenas promovem a saúde financeira das empresas, mas também contribuem para a estabilidade da economia. A mediação proporciona um ambiente colaborativo que facilita a construção de acordos que beneficiam todas as partes envolvidas, garantindo que o processo seja mais eficiente e menos oneroso. Por fim, é fundamental que os empresários estejam cientes dessa alternativa e busquem orientação jurídica adequada para aproveitar ao máximo essas oportunidades, assegurando um caminho viável e justo para a reestruturação e continuidade das suas atividades empresariais ou, quando necessário, uma liquidação ordenada e eficiente. Referências CAVALCANTI, Luiz Alberto P. Transação Tributária: a Nova Opção para a Solução de Conflitos Fiscais. Editora Foco, 2019. GOMES, Carlos Alberto. Direito Tributário: Teoria e Prática. Editora Atlas, 2020. KFOURI, Juliana. A Transação Fiscal e o Novo Código de Processo Civil: Oportunidades e Desafios. Editora RT, 2021. MARTINS, Ives Gandra. Direito Tributário Brasileiro. Editora Malheiros, 2020. MARTINS, André. Metodologia de Resolução de Conflitos Fiscais: Propostas para a Implementação de Transações pela Fazenda Pública. Editora Lumen Juris, 2022. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva, 2021. MACHADO, Hugo de Brito. Direito Tributário Brasileiro. Editora Malheiros, 2020.
quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Por uma nova advocacia

A advocacia contemporânea convida o profissional do Direito a ter um olhar inclusivo para os outros métodos de solução de controvérsias, que não o Judiciário. Se pensarmos numa linha do tempo, a conciliação foi trazida pelas Ordenações Filipinas, e caiu em desuso - ou melhor, foi desacreditada - pelo espírito positivista do século 19, e de meados do século 20, que colocaram a "vontade da lei" como centro do Direito. Foi somente após a Segunda Grande Guerra que o mindset mundial, em choque com os horrores, atrocidades e crimes, perpetrados apesar da Constituição de Weimar, começou a se reconfigurar numa feição mais humanista novamente, trazendo de volta os conceitos da dignidade da pessoa humana, já apregoados por Cícero na Roma antiga, e por Kant na Idade Moderna, procurando destacar, de novo, o homem como o centro da ordem jurídica, seja nacional, seja supranacional. Nosso CPC de 1973, e, permitam-me, vou focar na área cível a que me dediquei e estudei em todo o tempo da minha advocacia - previa a conciliação, sobretudo no início do processo judicial. Em 1988, a CF, norma máxima de um Estado democrático de Direito, dispôs, no preâmbulo, sobre o seu compromisso com a solução pacífica das controvérsias. Em 2010, o Judiciário, numa avalanche crescente de processos, decidiu socorrer-se da conciliação e da mediação de conflitos - esta última praticada no país, de forma extrajudicial, desde a década de 90 - para incentivar as pessoas a resolverem, por si mesmas, os seus conflitos de interesses, reduzindo assim o número de processos em curso. Nesse sentido, inaugurou, normativamente, a nova visão sobre a conciliação e a mediação como métodos adequados de solução de conflitos, não apenas "alternativos" ao Judiciário. Estava inaugurada a Justiça multiportas, ou seja: a possibilidade de se resolverem as disputas entre as pessoa de maneira não litigante, numa construção consensual. Em 2015, a lei 13.105, o novo CPC estimula a conciliação e a mediação por meio da previsão do seu art. 3o, §3º: é dever das partes, dos procuradores, dos juízes e promotores promoverem a conciliação e a mediação, além do Código dedicar uma seção à mediação que chamou de judicial. Muito embora Judiciário e mediação pouco ou nada tenham em comum pela própria natureza e e essência dos seus institutos, passou-se a realizar a mediação como forma de resolver o conflito antes que se desenrolassem as fases processuais, ou quando se pedisse a sua suspensão. Com isso, o CPC 2015 aposta na mediação para oportunizar às pessoas uma tentativa consensual mais aprofundada, dialogada, do que a conciliação, sendo essa uma das diferenças entre os institutos. A lei 13.140/15 insere, no panorama legislativo, a mediação de conflitos como forma de solução de controvérsias, reconhecendo a experiência da consensualidade, realizada na seara extrajudicial por meio de Câmaras especializadas, e de mediadores ad hoc, desde os anos 90 no Brasil. Passados, contudo, quase 9 anos da promulgação do Marco Legal da mediação, no entanto, ainda é tímida a sua aceitação, e atribuo isso a alguns fatores: desconhecimento/desconfiança dos advogados, desconhecimento/desconfiança dos jurísdicionados, gestão emocional inadequada dos próprios conflitos entre as pessoas físicas e jurídicas, desejo de reparação por meio de um delírio indenizatório, dentre outros.  Se nos propusermos a falar sobre as habilidades necessárias à advocacia contemporânea, portanto, precisaremos incluir aquelas correlatas à Justiça multiportas, expertises que auxiliarão o advogado da defesa do seu cliente de forma integral, e adequada. Vou enumerar algumas, em rol não exaustivo, pois a cada cliente, a cada situação conflitiva da vida com que lidamos, novas habilidades ou skills são desenvolvidas, testadas, e aprovadas, ou não. As que gostaria de sublinhar1  são: Tomada de perspectiva, ou a habilidade de tomar a perspectiva de outra pessoa como verdadeira; Ausência de julgamento, ou neutralidade - o que não é fácil porque tomar posições é quase uma segunda natureza na sociedade polarizada em que vivemos; Reconhecer as emoções em uma pessoa, e ter a habilidade de ajudar na sua gestão; Gerar conexão com o cliente, num elo de confiança; Conjugar humildade, sagacidade e firmeza, considerando os outros pontos de vista, tendo a habilidade de manejá-los numa mesa de negociação, sem deixar de defender o do seu cliente. A tomada de perspectiva é uma habilidade por meio da qual atravessamos uma ponte imaginária entre quem nós somos, como vemos o mundo, e nos atrevemos - e é isso, é um atrevimento no bom sentido - a adentrar o universo do outro, sua forma de ver e encarar as situações da vida, notadamente o problema jurídico que enfrenta. Nessa travessia, não levamos conosco a nossa visão, ou, ao menos, procuramos momentaneamente neutralizá-la para conseguir, de fato, escutar o outro, sem ruído. Quando o advogado consegue fazer isso, acessa mais facilmente as reais intenções que estão por trás de cada postulação do seu cliente, e passa a entender o que o move a procurar suporte jurídico. A partir dessa constatação, o advogado da contemporaneidade é convidado, para não dizer convocado pelo Código de Ética da Advocacia, a pensar na possibilidade de resolução consensual da demanda do seu cliente. Se não houver risco para ele, seja por perecimento do direito, ou prescrição da ação, por exemplo, ele pode aconselhar seu constituinte a resolver a disputa numa construção consensual, seja pela conciliação, pela negociação harvardiana2, ou pela mediação de conflitos. Ao fazer essa oferta, o advogado precisa informar ao seu cliente o tempo aproximado de cada um desses caminhos, suas vantagens, e desvantagens, se houver. Como num tabuleiro de xadrez, a escolha do caminho a seguir é crucial para o sucesso da causa. A ausência de julgamento, ou um estado de neutralidade, é um desafio, tendo em vista que estabelecer quem está certo, quem está errado, quem detém o direito, e quem não, parecem operações matemáticas consolidadas nas cabeças dos homens e mulheres contemporâneas, notadamente pela polarização em que as sociedades pós-modernas vivem. Contudo, do advogado é esperada a neutralidade, o equilíbrio das emoções, a estratégia. Ainda que discorde do seu cliente, ainda que, para ele, o cenário desejado não seja o ideal, o advogado precisa atender a vontade do seu cliente, se esta não for ilegal, nem contrária aos seus próprios princípios morais. Ninguém deve vender a alma para pegar uma causa, mas querer que o outro escolha o que fazer com suas relações jurídicas da mesma forma que nós o faríamos é, no mínimo, míope. É preciso não julgar; é necessário, uma vez tomada a perspectiva do outro, analisar com o crivo da neutralidade, da racionalidade e da empatia, ao mesmo tempo. E tudo isso configura, sim, um desafio. Ademais, é preciso não julgar, inclusive, para entrar em contato com as outras posições na mesa de negociação. Um bom negociador não desdenha das outras visões das pessoas envolvidas na controvérsia, nem tampouco as tenta derrubar ou invalidar; ao contrário, escuta, aprende e procura pontos de convergência, saídas que possam beneficiar a todos. Isso só é possível sem julgamento - do contrário, nosso campo de visão fica reduzido, e limitadas as possibilidades de solução. Fazer justiça, para a construção do consenso, não é apontar quem está certo ou quem está errado: é acomodar interesses, respeitado o Direito positivo e a vontade das pessoas - o que pode se mais desafiador do que se utilizar de uma tese, ou sustentar nos Tribunais Superiores. Reconhecer as emoções em uma pessoa, e ter a habilidade de ajudar na sua gestão, só pode acontecer se as duas premissas anteriores tiverem sido observadas - a tomada de perspectiva, e a ausência de julgamento. Reconhecer emoções numa pessoa é, inicialmente, entender que ela é humana, dotada de razão, mas também de emoção, e que essa conduz boa parte das decisões de sua vida - se não todas, em muitas situações. Estudos apontam que as emoções são o pano de fundo das nossas escolhas, desde o planejamento de uma viagem, a aquisição de um carro, e até mesmo a cor da roupa do dia: como a pessoa vai se sentir em determinado local, o prazer de dirigir determinado carro ou de ter algo novo e colorido para vestir. Reconhecer emoções facilita ao advogado apontá-las ao seu cliente, com respeito e cordialidade. É informar que, apesar da raiva que o cliente sente, em relação à parte contrária, é possível superar isso em prol da composição de interesses urgentes a uma família ou a uma empresa, por exemplo. É dizer, assertiva e respeitosamente, que, apesar do incômodo que causa, ele ou ela precisam se autoimplicar na decisão, visto que somente quem vive o problema tem, de fato, as chaves para a sua solução, em qualquer área do Direito. O que as pessoas precisam é de um bom guia, ou de um excelente CEO da disputa, que não só explica as questões legais envolvidas, mas acolhendo, e transformando pela escuta empática as emoções de raiva, frustração e dor inicias e comuns a todo e qualquer conflito3, consegue dar a ele um tratamento consensual, caso o cliente aceite, ainda que precise de tempo para isso. Gerar conexão com o cliente, num elo de confiança, não só garante a boa condução da causa, mas também a sua fidelização. Conectados, cliente e seu patrono passam a entender a situação sob um mesmo enfoque - e, na criação dessa realidade, a postura do advogado é crucial. Gerar conexão é o que os franceses chamam de rapport - em português, uma ligação de empatia entre as pessoas, que passam a se entender num nível além do racional, envolvido o seu emocional também. Nesse convívio agora estabelecido, a confiança surge naturalmente. Quando há confiança estabelecida entre o cliente e o seu defensor, não importa tanto o caminho que o patrono trilhará: o cliente confia nele. Isso faz uma diferença enorme no momento de apresentar caminhos consensuais de solução, como a negociação, ou a mediação. O advogado, que tem a responsabilidade de discernir a melhor estratégia de solução para o problema posto, e, uma vez encontrada, apresentá-la com tranquilidade ao seu cliente. Essa postura mental de confiança, de entrega por parte do constituinte ao seu patrono, é rara hoje em dia, em tempos de Google e ChatGPT - portanto, o único caminho possível para a construção bem-sucedida do consenso passa pelo elo de confiança advogado- cliente. A construção de consenso é mais exigente para as pessoas, físicas ou jurídicas, do que a propositura de demanda. E, talvez, esse seja um dos motivos de, ainda, não ter sido assumida como a grande saída estratégica da advocacia: os clientes não quererem se autoimplicar na solução, não quererem enfrentar a outra parte que não por meio do litígio, da discussão instrumentalizada num processo judicial. Conjugar humildade, sagacidade e firmeza, considerando os outros pontos de vista, tendo a habilidade de manejá-los numa mesa de negociação, mas defendendo o do seu cliente - isso não é pouca coisa. Deixar o ego na porta, como diz Sherrie Abney, é um desafio. Somos formados e forjados na faculdade a ostentarmos o título de doutores, sem termos feito doutorado... nada contra título, muito pelo contrário: acredito que cada conquista, seja ela revestida por título ou não, merece ser reconhecida, e utilizada a favor do profissional, mas sem, com isso, formar nele a falsa impressão de que é o centro de tudo, o suprassumo da sua categoria, o máximo da capacidade em uma pessoa só... isso não é verdade, e é desgastante. Acreditem. Quem vai por esse caminho se sente cobrado ao extremo, seja por si mesmo, seja pelos outros; é refém dos elogios, e vive se comparando com os colegas, medindo forças para ver se alguém o ultrapassou... como no conto da Cinderela, quase como se perguntando: espelho, espelho meu, existe algum profissional melhor do eu? E a resposta é sim, e não. Sempre haverá saberes mais desenvolvidos por outra pessoa, que tem um chamado específico para aquela matéria. A visão de cada um, agregada ao seu estudo, constrói a nuance pròpria de cada profissional, e o torna único. Quem nós somos, a nossa singularidade, deve ser expressa no nosso trabalho também, sob pena de sermos autômatos, copycats de outros, e reféns do ChatGPT, ou do Google... Precisamos encontrar quem nós somos na advocacia. Numa nova advocacia. De propósito e de construção de consenso, se isso for o melhor para os nossos clientes. Precisamos ser fiéis à nossa luz primordial para o trabalho. E desempenhar nosso múnus constitucional com amor, com esmero, e com alegría também. Trabalhar para viver, e não viver para trabalhar. Que cada um dos doutores que conclui esta leitura possa refletir: qual o meu papel enquanto advogado? Como posso desempenhar ainda melhor a minha função essencial à justiça? ___________ 1 BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988 Disponível aqui. 2 BRASIL. Lei 13.105, de 13 de março de 2015. Disponível aqui. 3 BRASIL. Resolução 125, de 29 de novembro de 2010. Conselho Nacional de Justiça 4 (CNJ). Disponível aqui. 5 FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Como chegar ao Sim: como negociar acordos sem fazer concessões. Tradução de Rachel Agavino. Rio de Janeiro: Sextante, 2018. 6 WEISEMAN, Theresa, citada por Brené Brown. O poder da Empatia. Disponível aqui.
 É sabido que, globalmente, a maioria das empresas são familiares. No Brasil, a realidade não é distinta; elas são cerca de 90% (noventa por cento) das empresas existentes. Tais empresas respondem por aproximadamente 75% (setenta e cinco por cento) da mão de obra do país e por 65% (sessenta e cinco por cento) do PIB (IBGE). Considerado o contexto acima, fica evidente a importância das referidas empresas para a economia do país. E devido a essa relevância, torna-se ainda mais preocupante a informação de que apenas 36% (trinta e seis por cento) dessas empresas sobrevivem à segunda geração e só 19% (dezenove por cento) à terceira geração, segundo dados do Banco Mundial. Antes de se adentrar nos fatores que dificultam a continuidade das empresas familiares ao longo das gerações, importante uma apreciação do que se pode entender por "empresas familiares", sendo certo que, sob o aspecto de estrutural, elas se valem de um dos tipos societários previstos no ordenamento jurídico, sendo, em regra, sociedades limitadas ou sociedades anônimas. Do ponto de vista doutrinário, há diversas correntes que se dedicam ao tema, com definições mais restritivas ou mais amplas. Para fins deste artigo, será adotada uma definição mais abrangente, tomando por empresa familiar aquela cuja quotas ou ações sejam, de forma parcial ou total, detidas por dois ou mais membros de uma família, por um ou mais grupos familiares, de modo que estes venham a interferir direta ou indiretamente na gestão e condução dos negócios a ela relacionados. Apresentado o cenário do país e estabelecido o conceito de empresa familiar que será utilizado neste artigo, passa-se à apreciação das eventuais razões pelas quais somente uma minoria dessas empresas sobrevive à troca de gerações. De acordo com o economista Thomas Michael Lanz, "as estatísticas apontam que a mais importante causa de encerramento das atividades ou de venda de empresas familiares são os conflitos. Dentre eles, aqueles que giram em torno da disputa pela sucessão dos negócios representam 65% no mundo."1 Tem-se, assim, que a maior causa do fim do ciclo dos negócios na família empresária se deve a conflitos ligados à sucessão do patriarca/matriarca da família para a geração seguinte. Esses conflitos têm naturezas diversas e muitos decorrem de questões familiares não necessariamente atreladas ao negócio em si, mas que interferem significativamente na sucessão. Disputas por reconhecimento e poder, confusão entre patrimônio pessoal e patrimônio empresarial, conflitos geracionais e visões distintas de futuro são apenas alguns exemplos de problemas que se apresentam nessas situações. Esperar que soluções para questões familiares complexas se deem como em um passe de mágica após o falecimento do autor da herança é uma ilusão que deve ser afastada. O que ocorre é justamente o contrário. No momento do luto, as pessoas estão emocionalmente mais fragilizadas e a tendência é a de que discussões tendam para a competitividade e as partes se comportem como rivais. Para piorar, quem deveria ou poderia ajudar os envolvidos a entender a sua vontade não está mais presente. E mais, será que sua vontade será considerada após a sua morte? Qual vontade há de prevalecer? É nessa conjuntura que tanto o método a ser utilizado para dirimir as controvérsias decorrentes da sucessão quanto o momento dessa escolha devem ser cuidadosamente considerados. Há muito já se defende a utilização não apenas dos métodos adversariais (ações judiciais ou arbitrais), como também de alguns métodos consensuais, notadamente a negociação direta e a mediação em tais situações. Menos referências são encontradas quanto à Advocacia Colaborativa - método de solução de conflitos extrajudicial, consensual e voluntário, que estimula a autonomia das partes e está fincado em três pilares: transparência, não litigância e cláusula de retirada, cuja adequação para o tratamento desses conflitos parece perfeita2. O método foi criado nos anos 90 por um advogado familiarista norte-americano chamado Stuart Webb. Após anos de advocacia contenciosa tradicional, Webb concluiu que questões de família não deveriam ser tratadas como uma questão meramente jurídica, mas sim como uma questão de relacionamento com consequências jurídicas. A proposta era criar um ambiente em que as partes pudessem se sentir suficientemente seguras para construir acordos a "quatro mãos": cada parte assistida por seu advogado, mas todos trabalhando como uma equipe e não como adversários. Para tanto, algumas regras foram estabelecidas: (i) o processo é voluntário e não adversarial. Ninguém está obrigado a participar e todos podem desistir do processo a qualquer momento, mas aqueles que decidirem participar assumem o compromisso de adotar um comportamento não litigioso e de negociar com base em interesses; (ii) há um compromisso de não litigância com cláusula de retirada: as partes se comprometem a agir como um time e os profissionais que atuam no processo colaborativo estão vedados de participar do litígio, devendo se retirar do processo, caso as partes não cheguem a um acordo; (iii) o processo é confidencial: as partes não podem divulgar a terceiros as informações ali obtidas ou utilizá-las em um eventual futuro processo litigioso; (iv) existe o dever de transparência e de compartilhamento de informações: toda informação relevante para a solução da questão deve ser trazida pelos participantes. Essas são as bases que sustentam a atuação colaborativa enquanto método. Posteriormente, o método foi incrementado para permitir - e estimular - a possibilidade de que as equipes de negociação nos processos colaborativos fossem compostas por profissionais com diferentes expertises. Em casos de família, era muito comum a inclusão de um profissional da área de saúde e de um profissional de finanças, por exemplo. Por essa razão, alguns doutrinadores o defendem como um método multidisciplinar. No Brasil, o método foi inicialmente objeto de estudo por grupos de profissionais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo em 2010, tendo sido adotada a denominação de "Práticas Colaborativas" e recebido o Prêmio Innovare na categoria Advocacia em 2013, com a criação, na sequência, do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas em 2014. Atualmente, há diversos grupos de estudos espalhados pelo Brasil, dedicados ao estudo, aprofundamento e aplicação das Práticas Colaborativas em diversas áreas. No âmbito da advocacia brasileira, a OAB Federal e a maioria das OABs estaduais têm Comissões dedicadas ao tema. No mais, vale destacar que desde 2022, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para regulamentação do método no país3. Apresentada a Advocacia Colaborativa, passa-se agora a avaliar a sua adequação para o tratamento de conflitos decorrentes de sucessão em empresas familiares. Famílias que estão em processo de transição geracional e de reorganização empresarial não deveriam se colocar ou ser tratadas como partes antagônicas ou em oposição. Para tanto, todos os envolvidos devem estar atentos ao estabelecimento de um ambiente propício para as negociações e voltado para o entendimento. Assim, há que se ter uma abordagem respeitosa, abrangente, que dê conta de forma adequada da multiplicidade de aspectos envolvidos, dentre os quais se destacam, além do jurídico, o emocional e o financeiro, preservando as relações de forma construtiva, objetivando um futuro sustentável. Neste tocante, deve-se observar que os conflitos são inerentes à natureza humana. O que é de fato relevante é a forma como eles são abordados e enfrentados. E é justamente pela pauta subjetiva presente na maioria dos conflitos decorrentes da sucessão empresarial que aqui se defende a adoção da Advocacia Colaborativa como um método adequado para tratá-los. Uma negociação colaborativa é dividida em cinco momentos: (i) identificação de interesses, preocupações e objetivos de cada envolvido; (ii) apresentação das informações relevantes para o caso; (iii) desenvolvimento de possíveis soluções; (iv) avaliação das opções na mesa; (v) e, finalmente, negociação de uma solução. O papel do advogado colaborativo, além de assessorar seu cliente tecnicamente, é também garantir que a negociação tenha por premissa conhecer e respeitar as necessidades de todos à mesa de maneira equilibrada, trazendo ferramentas que auxiliem as partes na criação de soluções criativas. Caberá ao advogado, ainda, sugerir a inclusão na equipe de negociação de especialistas que eventualmente se façam necessários naquela discussão. Em se tratando de questões negociais, é natural que haja matérias técnicas que devam ser adequadamente compreendidas pelos tomadores de decisão. É fundamental, ainda, que todos estejam cientes de que um acordo colaborativo deve resultar em uma solução de benefício para todos os envolvidos, com a qual todos eles consigam conviver. Isso tende a preservar às relações familiares e a permitir a manutenção da empresa de forma saudável. Quanto ao momento adequado para utilização de tal método, o recomendável é que ele seja adotado já nas primeiras tratativas envolvendo atos referentes à sucessão empresarial, evitando a eclosão de conflitos. A prevenção do conflito e o trato de questões pontuais que surjam no processo tendem a trazer melhores resultados tanto para as relações familiares quanto para a empresa, trazendo segurança e previsibilidade para o negócio. No mais, deve-se destacar que o ideal é que a sucessão seja tratada enquanto vivo o empresário (patriarca ou matriarca), para que este possa gerenciar as discussões no âmbito familiar, participando diretamente das decisões relevantes para a boa relação da família e futuro da empresa. Nessa linha, o planejamento sucessório vem sendo um instrumento cada vez mais utilizado por aqueles que buscam exercer sua autonomia com relação ao patrimônio construído, definindo em vida a forma de sua distribuição, tanto quantitativa quanto qualitativamente, respeitados os limites legais. Um bom planejamento sucessório tem se mostrado uma excelente forma de organização das relações familiares. E para que esse planejamento seja tido como adequado, ele deverá considerar, enfrentar e tratar os potenciais conflitos dele decorrentes. Pelas razões expostas acima, há que se entender que um planejamento sucessório assessorado por advogados colaborativos poderá tratar, além da pauta objetiva, questões decorrentes da pauta subjetiva que frequentemente levam ao fim da atividade empresarial quando mal conduzidas. As Práticas Colaborativas, portanto, podem ser um grande diferencial já no âmbito de um planejamento sucessório. De qualquer forma, a escolha pela Advocacia Colaborativa quando já instaurado o conflito decorrente da sucessão empresarial também se mostra adequada, por se permitir que questões subjacentes, muitas vezes não tratadas em uma negociação estritamente objetiva, sejam devidamente abordadas pelas partes. Isso permite uma negociação franca e o alcance de uma solução com a qual todos os envolvidos consigam conviver. A verdade é que a continuidade da empresa pela família empresária é fruto de uma sucessão bem conduzida. E a forma como ela é realizada faz toda a diferença. Certo é que, pelas ferramentas que detém para a condução de todo o processo de cocriação, a adoção da Advocacia Colaborativa em assuntos dessa natureza em muito poderá contribuir para soluções satisfatoriamente válidas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABNEY, Sherrie R. Avoiding Litigation: a guide to civil collaborative law. Indiana: Trafford, 2006. ABNEY, Sherrie R.. Civil Collaborative Law: the road less travelled. Indiana: Trafford, 2011. CAMERON, Nancy J. Práticas Colaborativas: aprofundando o diálogo. Tradução de Alexandre Martins. São Paulo: IBPC, 2019, P. 27 TESLER, Pauline. Direito Colaborativo. São Paulo. Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas, 2021. TEPEDINO, Gustavo e PEÇANHA, Danielle Tavares. Métodos alternativos de solução de conflitos no direito de família e sucessões. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado e RODRIGUES, Renata de Lima (Coord.). Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba, SP: Foco, 2021, p. 32.   __________ 1 LANZ, Thomas Michael. Sucessão nas empresas familiares. In Aspectos relevantes da empresa familiar e da família empresária: governança e planejamento patrimonial sucessório/ Roberta Naoc Prado (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 216. 4 IDEM, p. 242. 2 Para fins deste artigo, os termos Práticas Colaborativas e Advocacia Colaborativa serão utilizados como sinônimos. 3 PL 890/22, atualmente encontra-se aprovado pela CCJC e segue para o Senado.
quinta-feira, 25 de julho de 2024

Não é mágica, é mediação!

Começo este texto plagiando a frase de minha grande amiga e inspiração, Samantha Longo.  As transformações que assistimos durante uma sessão de mediação, me faz refletir o quanto sou importante, apesar de não ser a responsável pelo acordo, mas uma ferramenta na retomada da comunicação entre as pessoas (detesto a denominação partes). Quem tem que ser responsável pelos acordos são as pessoas envolvidas nos conflitos que as trouxeram até aquela mesa de conversa, não eu. Um acordo construído sem a minha participação efetiva, mas agindo como uma alinhadora de trilhos, é um acordo sustentável, em que por isto mesmo, não cabe recurso. É a expressão mais pura das vontades. Cabe a mim, mediadora, a atenção aos detalhes (escuta ativa), a certeza dos entendimentos (parafraseado), e liberdade para que todos expressem suas vontades e sentimentos (isonomia das partes), bem como o esclarecimento dos próximos passos (decisão informada), sem falar no sigilo (confidencialidade) que possibilita a liberdade e segurança para expressarem seus sentimentos, sem falar nas muitas vezes em que criamos  movimentos para separar as pessoas dos problemas bem como as posições dos interesses. Algumas das vezes, as técnicas utilizadas não são suficientes para que os envolvidos deixem suas posições de lado, como o caso de uma criança autista em um colégio de alto padrão. De um lado uma mãe amorosa, mas extremante inflexível exigindo o que entendia como de direito do seu filho. De outro lado, o colégio representado pelo advogado com perfil litigante, que não considerou ou tentou a possibilidade de resolver de forma pacífica a situação. Não viram que o único prejudicado, de verdade era a criança que, no meio da desavença ficava esquecido no meio do tiroteio.  Não se trata só de ceder... Se trata de juntos concluírem como diminuir o sofrimento de alguém que sabidamente já carregará um fardo pesado a vida inteira. Apesar da possibilidade de uma suspensão com o objetivo de dar um tempo nas decisões, os adultos não conseguiram se entender e deixaram na mão de um juiz, uma decisão que com certeza não agradará a ninguém. Então, porque terceirizar-se a composição do acordo a alguém que não tem a menor ideia de quem são as partes, seus sentimentos, valores e receios? O mediador estará sempre atento para que as pessoas (comumente chamadas de partes e eu, de novo detesto esta nomenclatura) que as pessoas olhem para os dois lados! Mesmo que a rua seja de mão única, a atenção na hora de atravessar, pode dar uma nova chance de recomeçar ou consertar uma situação que vem se arrastando pelo simples motivo de não terem alguém para chamar atenção dos dois lados da moeda, ops... da rua! E é isto que o mediador precisa fazer. Criar uma condição especial para que as pessoas se abram para novas possibilidades.  Por outro lado, e nada me dá mais prazer do que assistir a construção de um acordo desenhado por pessoas que, por exemplo não se falavam há dois anos e que, concluíram juntos o mal que já causavam e que poderiam mais ainda causar aos filhos. E, com isto resolveram rever suas posições e desta forma permitiram, que os interesses das crianças falassem mais alto. Emoção pura e agradecimentos intermináveis!  Situações de construção de acordos são extremamente rotineiras na vida de um mediador que exerce esta atividade com vocação, que se refere a um forte sentimento de ter sido chamado para uma determinada missão de ajudar na transformação para um mundo com mais paz. Resumindo, vocação e talento aliados, não fazem mágica na vida das pessoas. Criam momentos mágicos nas sessões de mediação.
Difícil imaginar qual a relação entre as palavras do título. Pois bem, tentarei fazer com que acompanhem meu raciocínio para chegar na ligação entre elas e o que me leva a conclusão do porquê de uma das dificuldades de se difundir o uso dos métodos extrajudiciais para resolver conflitos, principalmente os autocompositivos como mediação e negociação.1 A inspiração para escrever esse artigo me surgiu depois de duas experiências ocorridas no mesmo dia. A primeira delas tratou-se de uma belíssima palestra sobre Mediação de Conflitos (mais precisamente de como atrair mais pessoas para usá-la), organizada pelo brilhante ICFML.2 O expositor nos trazia uma ideia simples, porém genial: Trazer os litigantes para mediação é bem simples, dizia ele, basta demonstrar que o BATNA deles é sempre pior, já que o Judiciário se encontra sobrecarregado, custoso e, não poucas vezes, ineficiente.3 Aqui uma simplória explicação do que seria BATNA apenas para fins de melhor compreensão desse artigo.  BATNA - Best Alternative To a Negotiated Agreement ou MAANA - Melhor Alternativa A Negociação de um Acordo4, em português, nada mais é que "o que acontece se eu não fechar esse acordo". Não fechar um acordo sempre é uma alternativa, o importante é saber se ela é melhor que anuir com o acordo proposto. Durante o procedimento de mediação, o mediador incentiva as partes a analisarem a sua BATNA, se questionando se o que tenho fora da mesa de negociação (e é preciso conhecer e identificar, previamente, o que seria isso) é melhor que o desfecho da composição. Geralmente o que se tem fora da mediação é outra maneira de se resolver o conflito, sendo que, na maioria dos casos, essa alternativa seria levar a questão para o Poder Judiciário decidi-la. Daí o trazido pelo expositor. É fácil demonstrar para qualquer um que levar uma questão para o Estado, isto é, para um dos nossos Tribunais, com certeza e na esmagadora maioria das vezes, é algo bem pior do que o pior acordo que se apresenta. E não sou eu que pensa assim. A FGV criou em 2009 o ICJBrasil, o Índice de Confiança na Justiça no Brasil. Trata-se de um levantamento de natureza qualitativa com objetivo de acompanhar de forma sistemática o sentimento da população em relação ao Judiciário brasileiro.5 Retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada em conta no dia a dia do cidadão comum. Em 2017 esse índice era de 24%, ou seja, de cada 100 pessoas apenas 24 confiavam no Judiciário. Para 76% delas o Poder Judiciário é considerado lento, caro e difícil de utilizar. A má avaliação da Justiça também reflete as dimensões de honestidade, competência e independência. Em 2021, 70% dos entrevistados consideraram o Poder Judiciário nada ou pouco honesto, ou seja, a maioria da população entendeu que essa instituição tem baixa capacidade para resistir a subornos. Além disso, 61% dos respondentes consideraram que o Judiciário é nada ou pouco competente para solucionar os casos; e 66% acreditam que o Judiciário é nada ou pouco independente em relação à influência dos outros Poderes do Estado.6 Aqui vale a pena trazer um dado paradoxo da mesma pesquisa que, muito embora os números acima mostrarem um resultado pessimistas, o fato é que, dentre as pessoas entrevistadas, 89% afirmaram que ainda buscariam o Judiciário para solucionar um problema. Pois bem, retornemos à segunda experiência que mencionei, ocorrida no mesmo dia da palestra. Iniciei uma negociação, como advogado, representando um cliente onde ele pretendia a devolução de um valor pela rescisão unilateral de um contrato. Na época a jurisprudência era pacífica no sentido de limitar a multa a 30% do valor do contrato no tipo de negócio jurídico específico. Ou seja, meu cliente perderia 30% do valor do contrato ao desistir dele. Meu objetivo era negociar essa multa, ou seja, esse percentual era o máximo a que se chegaria. A parte contrária começou requerendo a multa no patamar de 50%. Durante as negociações meu cliente, levando em conta os custos de um processo, tempo de um litígio judicial, honorários etc., me autorizou a chegar em 40% (mesmo sabendo que o máximo que perderia em uma ação judicial seria os 30%). Pois bem, a outra parte ancorou nos 50% e não negociou mais nada além dessa porcentagem. Questionei o advogado, tentando o chamado "choque de realidade", o porquê dessa insistência, já que toda a jurisprudência apontava para 30% e, na negociação, ele ganharia mais que isso, bem mais rápido e sem custo. A resposta foi: "Confio na minha tese, ela com certeza, depois que explicar todos os meandros do caso, sairá vencedora no Judiciário". Alguém poderia falar que ele estaria blefando, ganhando tempo ou seria uma estratégia para negociar mais tarde. Mas, refletindo, creio que não. Seja como mediador de conflitos, agindo como negociador, ou no papel de advogado, vejo as pessoas desafiarem a razão e terem uma certa "certeza" de que o acaso dela será diferente, que ela convencerá o juiz, que embora 100 casos julgados de uma certa forma, o dela será diferente. Por diversas vezes os litigantes mesmo com diversos indícios, dados, jurimetria, relatório, ou qualquer outro indicador, apontando que ele não conseguirá mais do que o proposto no acordo no Judiciário, este opta pelo caminho do processo. Chamo isso de fé. Não a fé religiosa. Aqui não vamos falar de religião ou espiritualidade, nem nada nessa linha. A palavra fé não é exclusiva da linha religiosa. Dizemos, por exemplo, que temos fé em um amigo, fé que aquilo irá acontecer, fé no time de futebol. Até no mundo jurídico temos o usa da palavra, como nos vocábulos boa-fé, má-fé, fé pública, dentre outros. Fé (do latim"fide") é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão. Acompanha absoluta abstinência de dúvida. Tal sentimento não se sustenta em evidências, provas ou entendimento racional.7 A meu sentir, o brasileiro tende, quando se trata de resolução de conflitos pelo Poder Judiciário, a acreditar - não ter nenhuma dúvida - que mesmo, sem qualquer indício, com teses majoritariamente contrárias, com grandes riscos de não obter o bem jurídico, que vai sair exitoso. Recentemente li um excelente artigo cujo título é "A persistência do misticismo, do senso comum e da má-fé nas receitas milagrosas contra a Covid-19: Uma proposta de interpretação".8 Nele, o autor traz que o pensamento místico está disseminado em diversas formas da relação do homem com a realidade imaterial, e mesmo nas culturas de alguns países ditos modernos. A dimensão mística é um componente essencial da natureza humana, por mais que o laicismo e a noção de progresso tenham atenuado a presença deste misticismo na cultura aparente. O artigo mostra que, por exemplo, e embora as diversas pesquisas, dados etc., acreditou-se na cura da COVID pelo chá de boldo com limão, suco de maçã, inhame, água de coco, bicarbonato e outros. E não só no Brasil temos dificuldade de as pessoas acompanharem as explicações que envolvem números e estatísticas, o que leva à cilada que as explicações simples podem representar. Mathew D'Ancona nos mostrou9 como as explicações baseadas na fria lógica dos números não foram bem-sucedidas para convencer os britânicos a permanecerem na União Europeia. Aqui não pretendemos tecer críticas por si só, ou apontar o dedo para um grupo ou certos comportamentos. O que se almeja é que este singelo artigo chegue ao conhecimento do operador de Direito, e esse possa refletir se antes de levar algum caso para o Judiciário analisou de fato (e sinceramente) suas chances de êxito. Se por acaso não seria o caso de, antes de distribuir a inicial, tentar uma abordagem a fim de negociar com a parte adversa e, neste ambiente, analisar se o que está "na mesa de negociação" não seria melhor do que conseguiria, no máximo, em um processo (ou empataria). Que se dispa de egos (negociar não é fraqueza, e sim inteligência) e de misticismo (sua causa não é especial), e use a ciência e os números a favor de seu cliente. E que usem mais o instituto da mediação para que isso seja possível. ___________ D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News. Barueri: Faro Editorial, 2018 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil I: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v 1. 11 ed. Ed. Podivm FGV. Relatório ICJ Brasil. Disponível aqui. GRANEZ, Marcio da Silva. A persistência do misticismo, do senso comum e do mal nas receitas milagrosas contra a Covid-19: uma proposta de interpretação. Revista  Mídia & Cotidiano - Pós Graduação da UFF. Disponível aqui. Acesso em 10 de março de 2024. SOUZA, Isabela. 3 motivos que fazem o judiciário brasileiro ser lento. Politize. Disponível aqui. Acesso em 08 de março de 2024 ___________ 1 As estruturas mais clássicas de resolução de conflitos classificam-se, fundamentalmente, em três grupos, quais sejam, a autotutela, autocomposição e heterocomposição. No caso da autocomposição, o conflito é solucionado com ou sem necessidade de intervenção de terceiros, e principalmente, sem o uso da força, onde as partes chegam a um consenso para a resolução do litígio. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil I: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. v 1. 11 ed. Ed. Podivm 2 O Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML) é o principal órgão independente de padrões profissionais para mediação em Portugal, Brasil, e todos os países lusófonos. Disponível aqui.  3 Vejamos os dados apresentados no artigo "3 motivos que fazem o judiciário brasileiro ser lento". Disponível aqui. 4 Um vídeo com animação bem didático. Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 A persistência do misticismo, do senso comum e do mal nas receitas milagrosas contra a Covid-19: uma proposta de interpretação | Mídia e Cotidiano (uff.br) 9 Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News.Barueri: Faro Editorial, 2018
Nos últimos anos, a sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa, ou, como é conhecida pela sigla em inglês, ESG, tornou-se uma prioridade para as empresas, a nível global e nacional.1 Como parte desse movimento e em alinhamento com os próprios ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU que dialogam com os princípios ESG, a mediação emerge como uma ferramenta poderosa para promover a resolução eficaz de disputas.2 O próximo encontro do G203 no Rio de Janeiro, com o slogan "construindo um mundo justo e um planeta sustentável", apresenta-se como uma excelente oportunidade para o debate da mediação, sobretudo como ferramenta de acesso à justiça, que é capaz de lidar com a urgência de abordar questões ambientais e sociais em vista de uma pauta crucial de sustentabilidade. Sempre bom lembrar que a mediação desempenha um papel fundamental ao oferecer um meio eficaz e colaborativo para resolver disputas de forma rápida e justa. Ao optar pela mediação, as empresas podem evitar litígios prolongados, reduzir custos legais e preservar relacionamentos comerciais valiosos. Além disso, a mediação promove a transparência e a responsabilidade, dois pilares essenciais dos princípios ESG. Ao resolver disputas de maneira aberta e transparente, as empresas demonstram seu compromisso com a boa governança e a prestação de contas. A mediação oferece uma oportunidade única para as partes envolvidas se envolverem diretamente na resolução de suas disputas. Isso permite que as empresas construam relacionamentos mais fortes com suas partes interessadas ("stakeholders") e promovam a responsabilidade social corporativa. À medida que avançamos em direção a um mundo mais sustentável, a mediação continuará desempenhando um papel vital na construção de um mundo empresarial mais ético, transparente e responsável. Aqui estão cinco dicas essenciais para promover a mediação no dia a dia empresarial atento às mudanças requisitadas pelo ESG: Implementar programas de resolução de conflitos: As empresas podem estabelecer programas formais de resolução de conflitos que incluam a mediação como uma opção default/primária de resolução de disputas. Isso pode incluir a criação de políticas e procedimentos claros para lidar com conflitos internos e externos, bem como a formação de uma equipe dedicada de mediadores ou o acesso a serviços externos de mediação; Oferecer treinamento em resolução de conflitos: Capacitar os funcionários em habilidades de comunicação, de negociação e outras formas de resolução de conflitos com o objetivo de aprimorar o ambiente de trabalho e reduzir conflitos interpessoais. Os programas de treinamento podem incluir workshops, palestras e cursos online sobre os diversos meios de resolução de conflitos; Incentivar a cultura da mediação: Promover uma cultura organizacional que valorize a mediação e a resolução de conflitos de forma colaborativa e construtiva. Isso pode ser feito por meio de campanhas de conscientização, reconhecimento e recompensa de comportamentos positivos de resolução de conflitos e liderança exemplar; Integrar a mediação nas políticas de sustentabilidade: Incorporar a mediação como parte das políticas de sustentabilidade da empresa, reconhecendo-a como uma prática que promove a justiça social, a inclusão e a responsabilidade corporativa. Isso pode incluir a mediação como um indicador de desempenho ambiental e social nos relatórios de sustentabilidade; Colaborar com partes interessadas externas: Engajar-se com partes interessadas externas, como fornecedores, clientes, comunidades locais e organizações da sociedade civil, para promover a mediação como uma ferramenta eficaz para resolver disputas e mitigar impactos sociais e ambientais adversos. Isso pode envolver parcerias com provedores de serviços de mediação externos ou a participação em iniciativas de resolução de conflitos comunitários. Ao adotar essas práticas e incorporar os princípios ESG em sua cultura organizacional, as empresas podem não apenas fortalecer sua posição no mercado, considerando os incentivos criados e buscados pelos governos diante dos ODS, mas também contribuir de forma significativa para a construção de um futuro mais sustentável e inclusivo para todos. Nesse sentido, importantes benefícios para a sociedade podem ser destacados: Redução da sobrecarga do sistema judiciário: A mediação ajuda a aliviar a carga do sistema judiciário, reduzindo o número de processos judiciais e, consequentemente, os custos associados à resolução de disputas por meio de litígios. Isso permite que o sistema judiciário concentre seus recursos em casos mais complexos e urgentes; Promoção da pacificação social: A mediação contribui para a resolução de conflitos de forma pacífica e colaborativa, promovendo a harmonia e a coesão social. Ao facilitar o diálogo e a negociação entre as partes envolvidas, a mediação ajuda a prevenir o surgimento de tensões e conflitos prolongados que podem prejudicar o tecido social de uma comunidade;4 Inclusão e acessibilidade à justiça: A mediação oferece uma abordagem mais acessível e inclusiva para a resolução de disputas, permitindo que indivíduos e comunidades de diferentes origens socioeconômicas tenham acesso a processos justos e eficazes de resolução de conflitos. Isso é especialmente importante para grupos vulneráveis e marginalizados que podem enfrentar barreiras no acesso ao sistema judiciário tradicional; Sustentabilidade e desenvolvimento social: A mediação contribui para a promoção dos ODS, especialmente aqueles relacionados à paz, justiça e instituições eficazes (ODS 16). Ao facilitar a resolução de conflitos de maneira colaborativa e inclusiva, a mediação contribui para a construção de sociedades mais pacíficas, justas e resilientes; Empoderamento das partes envolvidas: A mediação capacita as partes envolvidas a participar ativamente da resolução de seus próprios conflitos, permitindo-lhes assumir o controle de suas vidas e decisões. Ao promover a autonomia e a responsabilidade individual, a mediação fortalece as relações interpessoais e comunitárias, promovendo um ambiente de confiança e cooperação mútua. Em suma, a mediação desempenha um papel fundamental na promoção da sustentabilidade nas empresas, ao mesmo tempo em que ajuda a resolver disputas de forma eficaz e justa, auxiliando no desenvolvimento social condizente com um porvir consciente e de fruição universal pacífica. ___________ 1 A título de exemplo, por meio da Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa, a União Europeia aprovou recente legislação determinando que, entre 2027 e 2029, a depender do tamanho das empresas, estas ao fazerem negócios com qualquer um dos 27 países da UE precisarão provar que seus fornecedores respeitam normas de direitos humanos e ligadas à proteção do meio ambiente, sob pena de multa de até 5% da sua receita (Disponível aqui. Acesso em 26 de maio de 2024). Já a nível doméstico, destaca-se o Projeto de Lei n° 4363, de 2021, atualmente em trâmite, que institui o Selo Nacional ASG (Ambiental, Social e Governança) a ser conferido às empresas que investem em ações e projetos de motivação ambiental, social e de governança, de forma a garantir-lhes condições competitivas mais benéficas. 2 "(.) mediation is not just a process; it is a path to social peace and inclusiveness. As we embrace this powerful tool, we take significant steps toward realizing the vision set forth in the United Nations' SDG 16-a world where peace, justice, and strong institutions prevail. Let us continue to explore and champion mediation as a fundamental instrument for pacification and a brighter future for all." (MAIA, Andrea. Mediation as a Tool for Social Peace: Addressing UN SDG 16. Disponível aqui. 3 "Também conhecido como Grupo dos Vinte, o G20 nasceu após uma sequência de crises econômicas que assolaram o mundo na década de 1990. No ano de 1999, foi criado um fórum multilateral entre países industrializados e emergentes, composto na época por ministros de Finanças e presidentes de Bancos Centrais, que inicialmente tinha como foco debater questões econômicas e financeiras mundiais. Em 2008, no auge de mais uma crise econômica mundial causada pela quebra do banco Lehman Brothers, o grupo teve a primeira reunião de Cúpula com chefes de Estado e de Governo e, desde então, não parou de crescer, sempre discutindo assuntos relacionados à estabilidade econômica global. Com presidências rotativas anuais, o G20 desempenha um papel importante na definição e no reforço da arquitetura e da governança mundiais em todas as grandes questões econômicas internacionais. (...) O grupo agrega dois terços da população mundial, cerca de 85% do PIB global e 75% do comércio internacional." Disponível aqui. 4 "O que se percebe, inobstante, é que no processo judicial, bem como no processo arbitral, muitas vezes a pacificação existe apenas no plano social. O conflito é dirimido em face da sociedade, sendo retirado do mundo jurídico e fático. Não há, todavia, uma solução que atinja as verdadeiras raízes do conflito, pois na lógica do 'perde-ganha', em que sempre haverá um vencedor e um vencido, este dificilmente se conformará com a decisão imposta, buscando, se possível, a interposição reiterada de recursos e até mesmo dificultar o cumprimento da sentença. Assim, entende-se que a pacificação social também pode ser observada na justiça estatal (e arbitral), tendo-se em consideração o conceito de Tribunal Multiportas e que, invariavelmente, o maior grau de pacificação é atingido com a justiça conciliativa, em que as partes buscam e constroem em conjunto a resolução do conflito." (FERNANDES, Amanda. Justiça Consensual. São Paulo: Almedina, 2021, pp. 77-78).
No V Congresso Internacional CBMA de Mediação, que aconteceu nos dias 9 e 10/11/23, tivemos a oportunidade de assistir a diversos painéis que debateram acerca de temas sobre mediação. Os capítulos a seguir tratam das informações e conteúdos exibidos no painel A mediação no setor da energia, no qual foram expostos os métodos de solução de conflitos, os cenários da mediação, as oportunidades, os desafios e a mediação como instrumento de gestão, dentro do setor, que é complexo e composto por diversos agentes e instituições. A área da energia elétrica possui o sistema multiportas e cenários de solução extrajudicial de conflitos, como demonstra a estrutura regimental da ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica, no decreto 2.335/97, a ouvidoria (art. 22, lei 13.848/19; REN 8 1.061/23), a Superintendência de Mediação Administrativa, a Ouvidoria Setorial e a Participação Pública, que tentam dirimir os conflitos. Além dessas, como sistema multiportas no setor elétrico e cenários da mediação, contamos com a lei 10.848/2004, Art. 4°, §5°, a Resolução Normativa ANEEL n.° 957, de 7 de dezembro de 2021 (câmaras arbitrais credenciadas pela CCEE) e a lei 9.427/96 (SMA/ANEEL). O anuário estatístico de energia elétrica de 2022 demonstra que os consumidores apresentam para a ANEEL anualmente cerca de 200.000 reclamações que, após passarem pela ouvidoria, são encaminhadas às concessionária para se manifestarem, trazendo uma solução para o problema de acordo com a resolução setorial. Além disso, expôs-se que a judicialização no setor elétrico vem aumentando ano após ano. Em 2021 houve um pico de 25.000 ações, onde 4.000 foram derivadas do apagão no Amapá. Assim, fica evidente que quanto mais ações puderem ser mediadas, melhor. Entre 2018 e 2023, havia 36 mediações administrativas com prazo médio de 383 dias de duração. Por conta desse distanciamento que ainda existe entre as empresas e a mediação, mesmo que já tentem incluir o assunto, surge a importância da disseminação do conhecimento sobre o tema, a demonstração das suas vantagens para cada vez mais adotarem esse método e efetivar sua execução. Dessa forma, levar essa forma de solução de conflitos ao conhecimento da agência é de extrema importância.  No painel também foram apresentados os benefícios da mediação, como a preservação de relacionamentos, o que traz conforto e satisfação para as pessoas; confidencialidade do processo, principalmente para empresas que trabalham com um elevado número de consumidores e muitos processos; redução de custos significativos, pois consegue resolver os conflitos tendo a satisfação do cliente; economia processual e melhor custo-benefício. Tratou-se das diversas oportunidades que o método implementa, como a redução da base de ativos; redução do volume de ingressos; proximidade e transparência com o judiciário; maior economicidade e menor conflituosidade. Assim como oportunidades extrajudiciais, citando a participação em feirões e criação de células especializadas para atendimento das demandas dos Centros de Conciliação Permanente do TJ, DP, entre outros. Além de oportunidades judiciais, por exemplo, a participação em mutirões de audiências, transparência com o juízo para compreensão dos critérios e análises internas da empresa. Ademais, foram elencados desafios, nomeadamente em modernizar a mentalidade para a mediação sensível, a mudança de cultura nas empresas e no próprio Poder Judiciário. Foram usadas como exemplo as atuações da ENEL-Distribuição de Energia para blindar a entrada de processos. A empresa realiza feirões que recebem os consumidores para resolver os conflitos, incentivando o empoderamento da parte mais fraca, para assim equilibrar o mercado. Através dessa estratégia, a empresa já realizou cerca de 550 acordos. Outro assunto tratado no painel foi a Mediação como Instrumento de Gestão. Abordou-se a necessidade de mudar a linguagem com aqueles que tomam decisões nas empresas, como os CEOS, para o setor elétrico adotar a mediação. Eles não confiam e não é uma cultura. A mediação ainda é tímida para uma parte do setor, pois os tomadores de decisões não reconhecem no instrumento um mecanismo efetivo aos negócios, visam apenas como solução de um conflito, têm desconhecimento e insegurança quanto ao procedimento, acreditam que a qualificação e a isenção ficam comprometidas e há confusão conceitual com arbitragem e conciliação.  Então, o importante é resolver os problemas antes de surgirem. Se aproximar do consumidor e passar a entender onde o processo comercial está falho, é virtuoso para o negócio, pois resultaria, por exemplo, na redução de custos estruturais. Assim, as empresas precisam ser proativas nas soluções. Portanto, é importante que haja um plano de ação de mediação nas empresas, pois ela é uma alternativa ao congestionado sistema judiciário brasileiro. Além de ser um mecanismo de eficiência operacional e potencializador de resultados, como a redução de custo de transação, aprimoramento de processos comerciais causadores de litígios, redução de passivo e de custo estrutural. Conclui-se, através dos conteúdos e informações apresentadas pelos palestrantes, que o setor da energia elétrica e a mediação estão aos poucos se aproximando. Essa área possui regimentos internos, resoluções normativas, decretos e leis, que demonstram essa tendência. Mesmo assim, torna-se necessária a implementação do método de forma mais efetiva, pois é alvo de muitas reclamações e cobranças, já que é um setor de distribuição ao nível nacional. Assim, ficou evidente que os palestrantes que atuam neste segmento de mercado reconhecem os benefícios e resultados da mediação e acreditam que seja um bom meio a ser utilizado pela área.
segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Consenso nos litígios ambientais

O meio ambiente, reconhecido enquanto direito de terceira geração, é proclamado na Constituição da República (CRFB/88) como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, cabendo tanto ao Poder Público quanto à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras e gerações (art. 225). Justamente diante dessa essencialidade à vida e, em igual medida, ao desenvolvimento econômico - que depende diretamente do aproveitamento de recursos naturais -, é que não deveria haver justificativa para se falar em interesses divergentes em matéria ambiental. Ora, se cabe a todos a adoção das medidas para preservação e recuperação do meio ambiente, eventuais discordâncias deveriam ocorrer apenas no âmbito da execução dos instrumentos aplicáveis, e não no plano material. Ocorre que, na prática, não é bem assim. Os litígios ambientais decorrem, em sua grande maioria, de divergências técnicas e conceituais sobre o limite da recuperação de eventuais prejuízos aos recursos naturais, dos potenciais e reais responsabilizados pelo ato imputado e da própria caracterização do dano ambiental. Tudo isso, entretanto, ainda não deve ser visto como impeditivo ou dificultador para a resolução do conflito por meio das vias alternativas para a busca do consenso. Ao contrário, dada a complexidade da matéria, a especificidade técnica e o interesse comum em relação ao bem tutelado, a transação evidencia-se como a forma que poderá ser mais eficiente, célere e adequada. No plano da regulação jurídica sobre a matéria, há fundamento e incentivo para tanto. No que se refere à responsabilidade administrativa ambiental, o decreto Federal 6.514/2008 que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações, prevê a possibilidade de que o autuado converta a multa em serviços de preservação, de melhoria e de recuperação da qualidade do meio ambiente. Apesar da conversão não se aplicar para a reparação dos danos decorrentes da própria infração, sendo apenas uma forma de quitação de eventual sanção aplicada, trata-se de um instrumento para que órgão ambiental e autuado obtenham, pelo consenso, uma alternativa para resolução da questão, por meio do desenvolvimento de projetos de forma direta pelo autuado ou indiretamente mediante o recolhimento do valor correspondente ao órgão. Em alguns estados, a exemplo do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, há previsões similares aplicáveis no âmbito das infrações impostas em seu território pela Administração Estadual (decreto estadual nº 47.867/2021, Resolução SIMA nº 28/2021 e decreto estadual nº 47.772/2019, respectivamente). Vale destacar que no âmbito dos processos administrativos sancionatórios, o interesse é que as formas de solução amigável sejam direcionadas com base em diretrizes bem estabelecidas, isto é, qual a forma de composição, critérios, descontos eventualmente aplicáveis e critérios para adesão. Isto porque, a prática mostra que deixar essa possibilidade de conciliação aberta, sem indicação dos parâmetros mínimos, implica em baixa ou nenhuma efetividade. É o que se viu no âmbito federal após a publicação do decreto Federal  9.760/2019, que introduziu modificações ao Decreto Federal nº 6.514/2008. Com base naquela normativa, incluiu-se ao processo de apuração de infrações administrativas uma fase prévia de conciliação ambiental, a qual antecedia a defesa. Ocorre que, para quem acompanhou tal audiências, verificou-se que na ausência de objetivos específicas ou a própria capacitação dos servidores para direcionamento das possibilidades de consenso, implicava em reuniões eminentemente "proforma", apenas para questionamento aos autuados sobre se havia interesse ao pagamento, parcelamento ou conversão da multa. Não por outra razão, o Decreto foi renovado cerca de três anos depois, com consenso geral de que a fase de conciliação não foi eficiente e causou apenas mais mora na tramitação dos processos - inclusive acarretando a prescrição intercorrente em diversos deles. Na esfera da responsabilização civil, cuja apuração é usualmente pleiteada pelo Ministério Público Federal ou dos Estados, há igual fundamento jurídico para a busca do consenso e para a celebração dos Termos de Compromisso e/ou Ajustamento de Conduta. Na Lei de Instrução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), há previsão expressa de que, para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial (art. 26). Nos termos do decreto 9.830/2019, o compromisso terá por finalidade a obtenção da solução proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais, mas não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecido por orientação geral. No referido termo, deverão ser previstas as obrigações das partes, o prazo e o modo para seu cumprimento, a forma de fiscalização quanto a sua observância, os fundamentos de fato e de direito, sua eficácia de título executivo extrajudicial e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento. Previsão similar, embora mais genérica, é prevista na Lei de Ação Civil Pública (lei 7.347/1995), ao dispor sobre a possibilidade de que os órgãos públicos legitimados tomem, dos interessados, o compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. Portanto, é certo que na busca pela melhor solução ao ambiente ecologicamente equilibrado, é necessário que as partes em eventual litígio adotem medidas que sejam a mais adequadas e proporcionais às infrações cometidas ou danos causados, equilibrando a medida economicamente viável ao pagador com aquela suficiente à situação objeto da divergência.
Os seres humanos anseiam por convivência. Sem relações e conexões de qualidade, dificilmente a pessoa se desenvolve em sua plenitude. Além de conviver, o indivíduo precisa se sentir parte integrante de uma comunidade, de um grupo ou de uma sociedade. Se, por um lado, é inato ao ser humano viver em grupo e se relacionar, também sabemos que cada pessoa é geneticamente única, e que essa individualidade dá, a cada um, gostos, necessidades e interesses diferentes. Nada mais natural, então, que esses interesses entrem em rota de colisão, gerando tensão, discussão, disputa e até violência. O conflito é, portanto, inerente ao convívio social, mas, se abordado de forma apropriada e com técnicas adequadas, ele pode se tornar um importante meio de conhecimento, amadurecimento e aproximação de seres humanos, proporcionando o crescimento e a evolução das pessoas e, em última análise, da sociedade. As empresas, como se sabe, são formadas por seres humanos integrados por uma missão. Além de ser fundamental para a economia, a empresa tem um importante papel social. Ao lado do desenvolvimento econômico e da busca do lucro, caminham a dignidade da pessoa humana e o respeito aos direitos dos indivíduos e do meio ambiente, que são impactados pela atividade empresarial. Ao gerar empregos, recolher tributos e respeitar as regras legais que protegem o trabalhador, o consumidor, o meio ambiente e a concorrência sadia, a empresa cumpre uma função social. Quando a empresa, mesmo sem a existência de um comando legal que a obrigue a seguir determinada regra, desenvolve sua atividade com um olhar voltado às questões sociais e ambientais, e ao impacto que sua atividade gera na sociedade, dizemos que ela atua com responsabilidade ou cidadania empresarial. A empresa cidadã é mais ética, mais humana, mais consciente de sua função enquanto agente econômico e social. Ela enxerga seus funcionários, não como um custo a ser gerenciado, e sim como seres humanos que têm ambições, temores, ideias, opiniões e querem sentir que têm valor, investindo não apenas em uma boa remuneração e um adequado local de trabalho. Ela se preocupa com a diversidade da equipe e relacionamento com a comunidade, adota boas práticas ESG e de governança corporativa, está atenta à satisfação dos seus consumidores e às relações com seus fornecedores e parceiros comerciais. Atuar com responsabilidade empresarial é, portanto, uma etapa maior de conscientização do empresário, que busca colaborar com o alcance da justiça social e com a erradicação das desigualdades sociais, atraindo e fidelizando seus clientes, atrelando sua boa imagem a ações colaborativas do bem-estar social, mesmo sem estar obrigado a tal. A empresa que exerce cidadania empresarial promove um ambiente saudável e produtivo, e isso passa por eliminar as tensões e conflitos que surgem no exercício da atividade empresarial de maneira humana e eficiente. Uma boa maneira para tratar os conflitos é criar um centro, órgão ou espaço dentro da empresa que seja dedicado à busca do consenso e do respeito. Nesse sentido, o Enunciado nº 162 da II Jornada de Prevenção e solução extrajudicial de litígios organizada pelo Conselho da Justiça Federal afirma que "contribui para a função social a empresa que conta em sua estrutura organizacional com uma área dedicada a prevenir e solucionar conflitos." Os ganhos com a implementação deste centro são sociais e financeiros. Sociais porque a medida valoriza e empodera o ser humano, melhora o ambiente de trabalho e contribui para a pacificação social. Já o benefício financeiro se materializa na redução de custos com demandas judiciais e no aumento da produtividade, trazendo benefícios e vantagens aos empregados e funcionários, aos líderes, aos colaboradores e parceiros comerciais, à própria atividade empresarial e à coletividade em que a empresa está inserida. A empresa, que é formada e constituída por pessoas, e exerce uma atividade para pessoas, deve ter essa preocupação e esse olhar e estar focada nos seres humanos, na harmonia, no ambiente saudável e produtivo e na pacificação social, como sustento na obra Direito Empresarial e Cidadania: A responsabilidade da empresa na pacificação de conflitos (Porto Alegre: Ed. Paixão, 2023). Dentre os dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pela ONU a serem atingidos até 2030, o chamado Pacto Global da ONU, estão o de assegurar uma vida saudável, promover o bem-estar para todos e promover sociedades pacíficas e inclusivas. Em 2022, o Brasil ocupou o 53º lugar no ranking dos países comprometidos com o Pacto. Certamente, a implementação de centros de pacificação de conflitos por empresas, sejam de grande, médio ou pequeno porte, é um importante passo para atingir os objetivos das Nações Unidas. Com mais escuta, diálogo, respeito, tolerância, compreensão e diversidade, os ambientes corporativos tendem a ser mais harmoniosos, agradáveis, criativos e eficientes.
O processo jurisdicional pode ser pensado como um campo frutífero para diversos fenômenos psíquicos: ressentimento, luto, mal-estar, sintoma, sofrimento. Mesmo que a ocorrência de tais fenômenos não ocorra necessariamente independente - mas sim interdependente -, eles podem ser investigados, ainda que academicamente, de certa forma "isolada". Tomemos assim, como exemplo, o sofrimento psíquico. Em trabalho recém-publicado, em conjunto com o Prof. Christian Ingo Lenz Dunker (Dunker), denominado "Escuta e narrativas de sofrimento no processo de recuperação judicial das empresas"1, pôde-se analisar as narrativas de sofrimento e seus efeitos nos processos de recuperação de empresas, mais especificamente a recuperação judicial. Ainda que não sejam premissas, a pesquisa passou por três considerações: (a) que o sofrimento apresenta estrutura narrativa, transitivismo e déficit de reconhecimento; (b) que tais narrativas têm maior peso no processo de recuperação judicial, uma vez que, de um lado, visa-se a possível composição entre as partes a partir de um dever de negociação, mas o que se nota é uma dificuldade maior para a criação de novos laços (a partir dos laços rompidos pelo não cumprimento das obrigações sujeitas, chegando a situações até mesmo patológicas) e (c) que faltaria ao referido processo um campo de escuta capaz de transformar tais narrativas de sofrimento, e viabilizar um "reenlace". Sintetiza-se, assim, parte da pesquisa registrada no trabalho citado. Como fenômeno psicanalítico, a partir da obra de Sigmund Freud, pode-se observar que o sofrimento, ainda que tenha presença no texto introdução ao narcisismo2, ganha maior relevo no texto "Mal-estar na Cultura"3. Dentre outras questões, há a indicação de um mal-estar que decorre ao sujeito por este não estar em seu lugar natural. Como se esse mal-estar já decorresse da condição de ser vivente do sujeito em sociedade. O texto aduz que é um movimento da própria cultura a criação de ficções para tentar fazer frente a tal mal-estar, como a criação de leis, pactos, contratos. Como se a cultura implicasse em uma série de renúncias e limitações aos sujeitos e, por outro lado, permitisse formas de tentar superar esse mal-estar. Ainda nesse texto, Freud aponta algumas situações de impasses que levariam o sujeito a sofrimentos, destacando-se como impasses as imperfeições das leis, as exigências de desejos não atendidos (ideais). Ou seja, essas novas realidades, a fim de enfrentar o mal-estar natural da condição de viventes, poderiam gerar também outras situações "penosas" aos sujeitos - como se gerassem outras formas de mal-estar. Em uma proposta metapsicológica trabalhada, o conceito psicanalítico de sofrimento pôde ser pensado em uma articulação junto ao citado mal-estar, e o sintoma. Nesta proposta, como uma experiencia social, o sofrimento possuiria três aspectos determinantes (condições) como acima apontado: estrutura narrativa, transitivismo, e necessidade de reconhecimento (DUNKER, 2015, p. 149)4. Da mesma forma como o mal-estar implica na necessidade de uma nomeação, e o sintoma possui estrutura de metáfora, o sofrimento apresentaria uma estrutura narrativa. Narrativa, ou narrativas de sofrimento. Nessa linha, o professor Dunker publica em 2015 o livro "Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros"5, onde, dentre várias reflexões profundas, propõe uma definição do que vem sendo nomeado de patologias do social, que aborda as espécies de narrativas de sofrimento, e a patologia que surge pelo seu não reconhecimento. Segundo o professor Dunker, não seriam muitas as maneiras de sofrer. Ele nomeia quatro espécies de narrativas, podendo-se destacar a narrativa da violação do contrato/pacto como sentimento social de desrespeito e/ou indignidade6. O segundo aspecto do sofrimento seria que ele é sempre transitivista. O transitivismo é uma experiencia que acontece na criança pequena, mas retorna no adulto em crise - retorna em momentos problemáticos (DUNKER, 2015, p. 37)7. O sofrimento seria uma experiencia compartilhada8, de certa forma como o próprio luto necessita ser, ou ainda, necessita ter um campo para compartilhamento em seu processo de elaboração9. Neste ponto, chega-se ao terceiro aspecto do sofrimento que indica que ele corresponde sempre a um déficit de reconhecimento - pede-se que algo seja reconhecido. O sofrimento seria uma substância performativa. Ele depende do reconhecimento - ou da falta de - que a ele se dispensa. O sofrimento se sujeitaria, assim, a uma gramática de reconhecimento. E essa gramática caberia ao entorno (meio), ao outro10. Jaqcues Lacan, conhecido psicanalista francês, por mais que tenha abordado o sofrimento também a partir de outras referências11, indica que existe uma verdade que se faz necessária ser reconhecida, ao sujeito, em seu sofrimento12. E por se relacionar diretamente a um déficit, é possível afirmar que o sofrimento, que é reconhecido como legítimo, é experimentado ontologicamente diferente daquele que não o é. Ou seja, aliado à definição de implicar em um déficit de reconhecimento, é a partir deste que o sofrimento pode sofrer transformações13. Dependendo, inicialmente, se ele é reconhecido, e de que maneira isso corre, haveria o seu efeito transformativo14-15. Todavia, a falta de reconhecimento pode levar ao surgimento de uma patologia, que pode ser definida como uma patologia do social16. Um exemplo que pode ser dado dessa forma de patologia refere-se ao caso do Primo Levi. Prisioneiro e sobrevivente de Auschwitz na segunda guerra mundial, Levi, em sua obra "É isto um homem?", narra a necessidade de escrever a história na tentativa de se livrar dela17, ainda que apenas a escrita não tenha sido suficiente para a transformação de seu sofrimento psíquico18. Nessa linha, se de um lado há a transformação do sofrimento a partir de uma forma de reconhecimento, por outro, a indiferença quanto a esse déficit pode levar a uma patologia social. Mesmo que se possa pensar que a escrita seja uma tentativa de partilha, o sofrimento pode implicar num ato de maior relação transitivista. Não bastaria a expectativa de apenas "mostrar aos outros" por meio dos testemunhos escritos. A transformação do sofrimento dependeria do outro, ou ainda da escuta do outro - de um outro sujeito. Dependeria de um outro sujeito capaz de ter uma escuta fora de sua própria posição - de sua posição de poder, de dizer o que é certo ou não. E escutar, da forma qualificada como esperado, teria como pressuposto à renúncia a essa posição de poder. Nesse sentido, na citada pesquisa recentemente publicada, pôde-se analisar as narrativas de sofrimento e seus efeitos nos processos de recuperação de empresas, mais especificamente a recuperação judicial. A escolha da temática, além de ser objeto de pesquisa e de atuação profissional, também leva em conta a distinção da alocação de poder que torna o processo de recuperação diferente dos demais: ao invés das narrativas apresentadas pelas partes serem objeto de uma decisão judicial com resolução de mérito tradicional, elas estão contidas nas negociações entre as partes e, comumente, na deliberação dos credores nas Assembleias Gerais de Credores. Assim, a alocação de poder ao magistrado limita-se ao controle da legalidade do próprio processo - o que implica em um menor peso do que a deliberação dos credores em assembleia para o deslinde do conflito. Deliberação decorrente das negociações. Negociações decorrentes da capacidade das partes criarem laços, a partir de laços anteriormente rompidos ("reenlace"). Novos laços que se defrontam com as narrativas de sofrimentos das partes. Nessa linha, a possibilidade do reenlace entre as partes, além de envolver complexas questões econômico-financeiras, envolveria ainda outros desafios relacionados a própria capacidade de fazer novos laços, principalmente diante do confronto de narrativas de sofrimentos apresentadas pelos sujeitos desse processo, destacando-se os credores e a empresas em recuperação. Como proposto na citada pesquisa, o reconhecimento das narrativas de sofrimento poderia levar a uma transformação, enquanto o não reconhecimento poderia ensejar até situações patológicas - o que impediria o avanço das negociações independentemente da capacidade das partes de evoluírem naquelas questões econômico-financeiras. Contudo, a estrutura processual teria pouco espaço para o citado reconhecimento e transformação das narrativas de sofrimento. Enquanto o processo pode ser considerado como campo frutífero para o sofrimento, não haveria espaços da mesma forma frutífera para o seu reconhecimento e consequente transformação. Na verdade, pensando na estrutura de um processo comum, o discurso que imperaria para a sua resolução é o da Lei - e ainda que proporcione a uma das partes uma vitória, nem sempre ensejará a transformação das narrativas de sofrimento. As narrativas serviriam, quando muito, apenas para a subsunção dos fatos à norma, e a consequente resolução pela aplicação da norma concreta ao conflito. Nem mesmo no processo de recuperação judicial haveria necessariamente um espaço capaz de ensejar esse reconhecimento. Citadas as considerações, a conclusão da pesquisa foi a de que é difícil pensar a existência de um espaço com essa capacidade (de escuta e transformação do sofrimento), dentro dos processos jurisdicionais, sem pensar na mediação. Dado o "adiantado" do presente texto, na~o seria aqui o espac¸o mais adequado - diga-se, suficiente em extensa~o - para tentar descrever todas as benesses da mediac¸a~o como me´todo de soluc¸a~o dos conflitos. Mas pode-se apontar apenas uma, que colide positivamente com a construc¸a~o/conclusa~o da pesquisa: a mediac¸a~o tambe´m e´ um espac¸o de escuta, de uma escuta qualificada. Qualificada, por ser principalmente "sem julgamentos". E, por mais que na~o seja terapia, na~o se pode negar os efeitos benéficos que pode gerar na transformac¸a~o das narrativas de sofrimento. Esse espaço de escuta qualificada teria impacto maior nos processos de recuperação judicial, uma vez que o deslinde da controvérsia não decorre da aplicação pura e simples da Lei, mas da deliberação dos credores a partir da capacidade das partes de se reenlaçar. Nesse sentido, a capacidade de transformação das narrativas de sofrimento, pela mediação, em decorrência de suspender-se o confronto de tais narrativas entre as partes, seria uma hipótese de transformação do sofrimento psíquico contido nos conflitos19. Fica para o leitor a proposta de pensar o processo a partir de outras referências, principalmente a reflexão de entender quais espaços de escuta seriam a ele possíveis. __________ 1 DANTAS, Rodrigo D'Orio; DUNKER, Christian Ingo Lenz. Escuta e narrativas de sofrimento no processo de recuperação judicial das empresas. Revista de Direito Empresarial - RDEmp, Belo Horizonte, ano 20, n. 01, p. 119-138, jan./abr. 2023. DOI: 10.52028/RDEmp.v20i1_ART06. 2 FREUD, Sigmud (1914 [1996]). Sobre o narcisismo: uma introdução. In ESB Obras Completas, v.XIV. Rio de Janeiro: Imago. 3 FREUD, Sigmud (1930 [1976]). O mal-estar na civilização. In ESB Obras Completas, v.XXI. Rio de Janeiro: Imago. 4 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed São Paulo: Boi Tempo, 2015, p. 149. 5 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed São Paulo. São Paulo: Boi Tempo, 2015. 6 Outras narrativas seriam a do objeto intrusivo (estrangeiro ou deficitariamente reconhecido), a da alienação da alma (esvaziamento, solidão ou apatia), a da dissolução de espírito (anomia, fracasso ou excesso de individualização da experiência). (DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed São Paulo: Boi Tempo, 2015, p. 57). 7 No mesmo sentido: "Os atos de reconhecimento ou de desconhecimento transformam a experiência real do sofrimento. Esse é um fenômeno conhecido como transitivismo, o qual Lacan associou ao segundo tempo do estádio do espelho (...) Argumentamos que o sofrimento possui uma estrutura transitivista, pois nele indetermina-se quem sofre e quem está reconhecendo o sofrimento daquele que sofre. E essa não é uma experiência ontologicamente indiferente" DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed São Paulo: Boi Tempo, 2015, p. 37. 8 "O sofrimento se partilha e é função direta dos atos de reconhecimento que o determinam como tal (...) O ponto-chave aqui é o fato de o sofrimento ser uma experiência compartilhada e coletiva." DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed. São Paulo, Boi Tempo, 2015, pp. 24 e 37. 9 Jean Allouch, em sua obra "Erótica do luto, entende que, por mais que o processo de luto seja algo intrasubjetivo, a melhor forma de realizá-lo seria a sua enunciação em vozes, em palavras, quase como um verdadeiro processo de transferência - transferência para o Outro, o que implica na necessidade coletiva de compartilhamento. (ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Tradução de Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004). 10 "(...) a noc¸a~o de sofrimento como uma patologia da economia de reconhecimento, ou seja, uma inflexa~o dupla do narcisismo sobre o sintoma e do sintoma sobre o mal-estar. Nossa hipo´tese e´ de que o sofrimento sempre responde a um de´ficit de reconhecimento, seja do ponto de vista dos atores imagina´rios, do Outro simbo´lico ou de atos reais." (DUNKER, Christian Ingo Lenz. As transformacoes do sofrimento psíquico. In: Instituto cpfl. 28 de julho de 2014. Disponi´vel aqui. Acesso em 15 jun 2023).  11 Como na descrição da figura de Aimée - Lacan, J. (1932) Da Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 -, e na analisa do sofrimento decorrente do declínio da imago paterna - Lacan, J. (1938) Complexos Familiares. Jorge Zahar, 1998:45. 12 Necessidade de do reconhecimento da verdade que existe no sofrimento in Lacan, J. (1966) A Ciência e a verdade. In Escritos, Jorge Zahar, 1998; e ainda in O Seminário XIII. Na mesma linha, Lacan, J. (1968-1969) O Seminário Livro XVI De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar:2008. 13 Tais formas dependem da perspectiva que se assume diante do sofrimento, por exemplo, mostrou-se em estudo anterior que a variedade de atitudes e de interpretação diante do sofrimento do outro corresponde à variedade de recepção narrativa do próprio sofrimento, da crueldade à compaixão, da valentia à fuga."   (DUNKER, Christian Ingo Lenz. As transformações do sofrimento psíquico. In: Instituto cpfl. 28 de julho de 2014. Disponível aqui. Acesso em 15 jun 2023). 14 Donoso, MARIE DANIELLE BRÜLHART. Estudo psicanalítico sobre a gramática da maldade gratuita. Dissertação de doutorado defendida no IPUSP em 2011, orientação Prof. Dr. Nelson da Silva Junior, p. 54/55. No mesmo sentido: "(...) na crueldade, o objeto é da mesma forma ignorado como pessoa, o que explica a ausência de compaixão [...] A compaixão, ao surgir, revela o objeto em sua identidade e torna impossível essa crueldade original" (MIJOLLA-MELLOR, S. Crueldade do feminino. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, p. 47) 15 "Compartilhar o trauma e ser reconhecido pelo outro é tarefa fundamental para quem testemunha. É com o outro que as histórias de fantasmas podem ser compartilhadas com mais segurança, o que garante um pouco mais de conforto àquele que é assombrado por tais fantasmas. Com o outro pode-se 'outra vez' reviver o trauma, mas agora amparado, não mais sozinho. Testemunhar é uma tentativa de compartilhar o terror, repetindo-o sob a forma de uma narrativa que ajuda a purgar as feridas provenientes do trauma" Antonello, Diego Drichs. Trauma, memória e figurabilidade na literatura do testemunho. Curitiba:Appris, 2020, p. 131 16 (DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 1. Ed São Paulo: Boi Tempo, 2015, p. 188). 17 "Sou consciente dos defeitos estruturais do livro e peço desculpas por eles. Senão de fato, pelo menos como intenção e concepção, o livro já nasceu nos dias de Campo. A necessidade de contar 'aos outros', de tornar 'os outros' participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de libertação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência" LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de janeiro: Rocco, 1988, p. 8. 18 Ainda que possa ser discutida a causa da morte de Primo Levi, tanto a polícia científica italiana, quanto algumas bibliografias apontam para a hipótese de suicídio (vide THOMSON, Ian. Primo Levi. Tradução de Julio Paredes. Barcelona: Belacqua, 2007). 19 "Faltaria, assim, ao processo de recuperação, um espaço em que pudesse ficar suspenso o confronto entre as narrativas de sofrimento dos envolvidos e, a partir dessa suspensão, que existisse ainda a figura de uma escuta qualificada a fim de servir para reconhecer - e transformar - o sofrimento psíquico das partes. Como visto, essa escuta está muitas vezes presente no procedimento de mediação, uma vez que, principalmente nas sessões privadas, haveria a 'suspensão' do confronto das narrativas de sofrimento, em um espaço isento de julgamento e avaliação das narrativas apresentadas, ensejando o surgimento de um campo mais frutífero para transformar o sofrimento por meio de seu reconhecimento. A mediação poderia ser lida, então, como uma ferramenta pela qual fosse possível existir uma escuta diferenciada da própria narrativa de violação do contrato, do objeto intrusivo, e ainda capaz de abrir um campo de escuta para os demais sofrimentos não narrados pelas partes (permitir a narrativa do não dito). Daí que a atitude de escuta do estigma demande além de empatia - natural à mediação - de tempo e dedicação para que a fala daquele que sofre seja acolhida, reverberada do outro em nós e eventualmente transformada por uma palavra que acrescente ou ajude o outro em seu próprio processo de luta contra o estigma (DUNKER, 2015b, p. 105). Nessa lógica, muitas vezes será necessária a figura de um terceiro, não julgador, mas "escutador" desses sofrimentos para que possa pensar em um campo de transformação. E a mediação, como observado, pode servir como ferramenta para essa escuta. Uma ferramenta capaz de superar o mal-estar para apenas um "estar", um estar de pertencimento. Assim, pertencimento pode representar mais do que um agir no mal-estar, com a transformação de um sofrimento, mas também a retomada de fragmentos de liberdade perdidos, ao deixar o "ter que" participar do processo de recuperação, para o "querer" definir, junto com a empresa, as formas de recuperação e meios de pagamento." DANTAS, Rodrigo D'Orio; DUNKER, Christian Ingo Lenz, op. cit. p. 135/136.
quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Manual prático de mediação empresarial

O Conselho Nacional de Justiça lançou na 10ª sessão ordinária de 20231, sob a presidência da Ministra Rosa Weber, o Manual Prático de Mediação Empresarial2, idealizado no âmbito do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref). A sessão marcou o encerramento das atividades do semestre e deu espaço para o lançamento e divulgação dessa obra, a qual pretende servir de recomendação para auxiliar mediadores, advogados, juízes, mebros do Ministério Público, administradores judiciais e toda a comunidade jurídica na prática da mediação empresarial nos processos de insolvência. O Ministro Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de justiça e coordenador do Fonaref, destacou que a atualização da legislação de recuperação e falências, por meio da lei 14.112 de 2020, além de normativas do CNJ como a Recomendação N°. 58 de 2019, que recomenda aos magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências que promovam o uso da mediação, e a Recomendação N°. 71 de 2020, que cria os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) Empresarial e fomenta o uso de métodos adequados para o tratamento desses litígios, colocam em evidência a priorização da solução consensual, sempre que cabível, para esses casos. O conselheiro Marcos Vinicius Jardim, um dos idealizadores desse manual, afirmou que o Fonaref deu mais um passo importante no sentido de proporcionar uma contribuição concreta à área de recuperação e falências de empresas, que constitui um indicador econômico relevante para o país. A seara do direito empresarial e, particularmente, a recuperação e falência, exige profissionais especializados na matéria. Por isso, o CNJ orienta que os tribunais capacitem esses profissionais na matéria ou providenciem o cadastramento de câmaras privadas. Diante desse contexto, o manual se propõe a ser um material de consulta, tendo em vista o aperfeiçoamento desses procedimentos. O manual foi elaborado pela Comissão de falência e recuperação judicial, em parceria com a Comissão de Mediação e Métodos Consensuais da OAB-RJ. Sob a liderança de Juliana Bumachar, participaram como autoras as advogadas Bianca Souza Sant Anna, Juliana de Siqueira Castro, Maria Clara Leoncy Malheiros, Nabia de Miranda Assed Estefan Rangel, Samantha Longo, Bárbara Bueno Brandão, Bruna Bisi Ferreira de Queiroz, Fernanda Bragança e Renata Braga. O manual está dividido em quatro partes. A primeira reúne noções gerais acerca da mediação empresarial. O material destaca as escolas, modelos e etapas da mediação, a evolução normativa desde a lei 13.140 de 2015, até a aprovação dos enunciados nas jornadas de prevenção e solução extrajudicial de litígios do Conselho da Justiça Federal, esmiuça algumas hipóteses concretas de uso da mediação, como nos incidentes de verificação do crédito, aprovação do plano de recuperação judicial, disputas entre sócios ou acionistas do devedor, participação de agências reguladores, credores extraconcursais, além de tratar sobre a mediação incidente e a incidental. A segunda detalha aspectos procedimentais, como os diversos atores envolvidos (mediador, advogado, administrador judicial e do juiz), direta e indiretamente, na mediação, aponta os documentos necessários para requerer o procedimento de mediação nos Cejuscs empresariais, a estrutura dos Cejuscs e das Câmaras privadas, os momentos oportunos para a mediação em processos de falência e recuperação judicial, impactos de ação cautelar e tutela provisória, construção do acordo, homologação e execução, e finaliza com o fluxograma da mediação. A terceira parte mostra alguns casos práticos que envolveram a Oi, a Saraiva e Siciliano S.A, o Santa Cruz Futebol Clube, dentre outros, em que a mediação teve um papel fundamental para o resultado positivo. O caso da Oi tem caráter paradigmático em razão de ter gerado o desenho de um sistema customizado para o tratamento dos litígios e, também, por se tratar da maior empresa de telefonia da América Latina, que acumulava um passivo de mais de 65 milhões de reais, com mais de 70 mil credores espalhados pelo Brasil e pelo exterior. Essa experiência exitosa motivou que outros cases de recuperação judicial, independentemente do porte, passassem a ser encaminhados à mediação. O caso Santa Cruz Futebol Clube, que tramita na 9ª Vara Cível da Comarca da Capital de Pernambuco, é um exemplo de uso na mediação em fase pré-recuperacional e do pedido de tutela cautelar antecedente, ambas novidades legislativas decorrentes da lei 14.112 de 2020. Por fim, a obra aponta dados sobre os procedimentos de recuperação e falência de duas pesquisas realizadas pelo pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento. A primeira pesquisa, intitulada "Métricas de qualidade e efetividade da justiça brasileira: um estudo do processo de recuperação de empresas"3, foi elaborada em parceria com a Associação de Magistrados Brasileiros e o Instituto Recupera Brasil. Esse primeiro estudo, realizado entre os meses de janeiro a julho de 2021, diagnosticou que, dentre outras questões, que (i) há ainda pouca especialização no âmbito das estruturas dos Tribunais de Justiça, não só em relação aos juízos especializados, como também entre facilitadores com especialização em matéria empresarial; (ii) o tempo é um fato bastante relevante para o ajuizamento de um pedido de recuperação empresarial; (iii) há forte tendência dos advogados de optar previamente por algum tipo de solução consensual para a recuperação da empresa. Em 2022, a pesquisa caminhou para uma 2ª fase, dessa vez coordenado pela juíza Clarissa Tauk, que também é membro do Fonaref. No estudo "Especialização e Consensualidade na Recuperação de Empresas" do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento4, verificou-se que a especialização das varas ainda é um ponto passível de melhora e apenas seis tribunais de justiça indicaram que possuem Cejuscs empresariais. Outro ponto de melhoria encontrado é na promoção de capacitação dos mediadores, tendo em vista que poucos tribunais conseguem realizar treinamento ou atualizações periódicas.  A alocação dos mediadores nos procedimentos é feita, majoritariamente, com base apenas na disponibilidade desses profissionais. O aperfeiçoamento e até a maior eficiência do sistema de recuperação e falência empresarial brasileiro depende, diretamente, da especialização dos mediadores na matéria, tendo em vista a própria compreensão das particularidades atinentes a esses litígios. Esse manual visa contribuir com uma perspectiva de expansão de uma política pública judiciária de tratamento adequado dos conflitos voltada às especificidades da recuperação e falência de empresas. __________ 1 Cf. Fonaref lança manual de mediação empresarial. CNJ, 21 jun. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023. 2 Manual prático de mediação empresarial: recuperação judicial, extrajudicial e falência. Brasília: Fonaref, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023. 3 Cf. CENTRO DE INOVAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PESQUISA DO JUDICIÁRIO DA FGV CONHECIMENTO. Um Estudo do processo de recuperação de empresas: Relatório Preliminar Analítico Propositivo: Métricas de qualidade e efetividade da justiça brasileira: um estudo do processo de recuperação de empresas. Rio de Janeiro: FGV, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023. 4 Cf. CENTRO DE INOVAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PESQUISA DO JUDICIÁRIO DA FGV CONHECIMENTO. Especialização e consensualidade na recuperação de empresas. Rio de Janeiro: FGV, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023.
Introdução  Episódio I - O Caso Abordaremos neste artigo um caso prático, envolvendo o poder público como uma das partes  em disputa judicial, em que no entanto, o empenho de todos pela busca do consenso  logrou na celebração de um acordo. O caso versa propriamente sobre ação ordinária de cunho indenizatório proposta à época por anistiado político, reconhecida esta condição pelo Estado Brasileiro (Lei nº 10.559/2002), em face do Instituto Tecnológico da Aeronáutica - ITA, bem assim da própria União.  Desenvolvimento Episódio II - Nuances Processuais Passada a instrução processual, adveio sentença de mérito em desfavor da União, cuja respectiva condenação que lhe foi imposta implicou no pagamento de indenização em grau máximo. Diante da mencionada condenação, passou então a União a endereçar toda sorte de recursos, não raro com manifesto viés protelatório. Nesta jornada, eis que sucumbente a União, diante dos reiterados reveses que sofrera, uma vez  esgotadas todas as vias recursais no âmbito da Jurisdição competente (TRF-3), não lhe restou diversa opção exceto manejar recursos especial e extraordinário. Ocorre porém que, diante da entrada em vigor do então "Novo CPC" (Lei 13.105/2015) ao tempo em que foram manejados os sobreditos recursos pela União, uma também à época nova sistemática se   estabelecia e atingia direta e indistintamente todos os processos em andamento, qual seja, o instituto jurídico designado incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 976, CPC). Neste passo, uma vez que sobrestado o andamento processual com a remessa dos autos ao arquivo, até solução dos recursos paradigmáticos, abriu-se um flanco e enxergamos ali uma promissora oportunidade a abordar a União, o que fizemos com certa insistência.  Episódio III - A Postura Colaborativa Nossa proposição pela via do acordo recebeu acolhimento por parte da Advocacia Geral da União - AGU, sobretudo diante do preenchimento de alguns requisitos por ela previamente estabelecidos. A partir daí seguiram-se intensas rodadas de negociações, inclusive com repercussão perante instâncias distintas no âmbito da citada AGU, a tratarmos especialmente dos valores objeto da vindoura composição, e neste sentido foi crucial o apoio técnico de especialistas em cálculos judiciais, notadamente a embasar nossa decisão do ponto de vista daquilo que passamos a chamar de "relação risco retorno". Ou seja, quais seriam respectivamente os melhores cenários, com ou sem acordo.  Conclusão  Episódio IV - O Acordo Superada a fase de negociações, isto é, verificada convergência no tocante ao quantum acordado, passamos então à seguinte e igualmente fundamental etapa: a redação do termo. Novamente aí, a postura colaborativa dos atores se fez presente à redação conjunta do termo, não somente a abarcar pontos específicos diante do panorama dos autos mas sobretudo a viabilizar o que chamamos de "um acordo exequível". Eis pois verificada a indispensável segurança jurídica. O acordo foi rigorosa e pontualmente cumprido, a despeito da crescente fase em que se achava a pandemia pela COVID-19, e os autos definitivamente arquivados.  Episódio V - Inferências Finais Interessa-nos compartilhar esta experiência, conforme exposto nos capítulos precedentes, não apenas diante de seu exitoso resultado mas sobretudo pelo fato de que quando acionados os canais e ferramentas adequados, incluso aí por certo a aplicação de técnicas de negociação e mediação, é sim de fato possível solucionar conflitos de toda monta. A busca pelo consenso nos estimula a seguir nesta cruzada à solução pacífica de conflitos.
O FONAREF é o Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falência criado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2022, por meio da Portaria 466/22, com o objetivo de elaborar estudos e propor medidas para aperfeiçoar a gestão dos processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. O Fórum surgiu das relevantes contribuições que o Grupo de Trabalho, composto por especialistas na matéria e criado em dezembro de 2018, deu ao sistema de insolvência. Ao longo de quatro anos de atuação, o Grupo apresentou uma dezena de atos normativos que foram aprovadas pelo plenário do CNJ e vêm contribuindo para a melhoria do sistema. Há recomendações sobre: a organização e padronização dos trâmites para realização das Assembleias Gerais de Credores na forma virtual e híbrida e da coleta de votos de forma eletrônica de maneira antecipada e dá outras providências. (Recomendação 110/2021);  a adoção de modelos de comunicação ao ser distribuída ação contra o devedor em recuperação judicial. (Recomendação 109/2021); a padronização dos documentos necessários ao ajuizamento dos processos de recuperação judicial (Recomendação 103/2021); a padronização dos relatórios apresentados pelo administrador judicial em processos de recuperação empresarial. (Recomendação 72/2020); a criação do Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania - Cejusc Empresarial para fomentar o uso de métodos adequados de tratamento de conflitos de natureza empresarial. (Recomendação 71/2020);  a adoção de medidas para a mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo novo coronavírus causador da Covid-19. (Recomendação 63/2020);  a promoção pelos magistrados do uso da mediação. (Recomendação 58/2019);  a adoção de procedimentos prévios ao exame do pedido de processamento da recuperação judicial. (Recomendação 57/2019);  a criação de varas e câmaras/turmas especializadas em falência, recuperação empresarial e outras matérias de Direito Empresarial. (Recomendação 56/2019) E resoluções, que têm caráter vinculante, acerca: do cadastro dos administradores judiciais nos Tribunais de Justiça (Resolução 393/2021); e de regras de cooperação e de comunicação com juízos estrangeiros em casos de insolvência transnacional (Resolução 394/2021) Dando continuidade ao trabalho do Grupo, hoje um Fórum permanente, realizou-se, em março de 2023, o primeiro Congresso do FONAREF em Brasília, no qual 15 enunciados foram aprovados. Os enunciados são fórmulas que sintetizam e apresentam à comunidade jurídica o entendimento de determinada fonte: um tribunal, um fórum de discussão, uma classe de operadores do Direito. Assim como ocorre com os enunciados aprovados nas Jornadas organizadas pelo Conselho da Justiça Federal, os enunciados discutidos e aprovados no 1º Congresso do FONAREF têm natureza doutrinária e servem como orientação aos advogados, magistrados, servidores, administradores judiciais, mediadores, estudantes e demais personagens que atuam em recuperações empresariais e falências. Os 15 enunciados, abaixo transcritos, visam incentivar o uso adequado da mediação na recuperação empresarial, elucidando relevantes dúvidas, especialmente sobre o art. 20-B introduzido na lei de recuperação (lei 11.101/05) pela Lei 14.112/2020. São eles: Enunciado 1 - A definição exata dos credores convidados a participar do procedimento de mediação ou de conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada deve ser exigida como requisito para a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/2005. Enunciado 2 - A concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, §1º, da lei 11.101/2005 pressupõe a demonstração pelo requerente de que o procedimento de mediação ou conciliação foi instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou da câmara especializada, com a comprovação do requerimento da expedição de convite para participar do referido procedimento. Enunciado 3 - O prazo de 60 dias de suspensão previsto no art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/2005 é improrrogável e contado em dias corridos. Enunciado 4 - O prazo de 30 dias previsto no art. 308 do Código de Processo Civil não é aplicável à medida cautelar ajuizada com base no art. 20-B § 1º da lei 11.101/2005. Enunciado 5 - Cabe ao requerente comunicar aos juízos responsáveis pelas execuções a concessão da medida cautelar de suspensão deferida com base no art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/05. Enunciado 6 - A medida cautelar de suspensão prevista no art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/2005 vincula os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada, ainda que não tenham aceitado o convite, não vinculando os credores que não tenham sido convidados. Enunciado 7 - A devedora não poderá renovar o pedido de suspensão previsto no art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/2005 depois de cessada a sua eficácia, salvo em relação a credores que não participaram do procedimento de mediação ou conciliação antecedente, nos termos do art. 309, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Enunciado 8 - Pode o magistrado revogar a medida cautelar deferida com base no art. 20-B, §1º, da lei 11.101/2005, diante da demonstração, por qualquer credor, de que a devedora não promove ou procrastina o regular andamento do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal ou na câmara privada. Enunciado 9 - Os acordos obtidos durante o procedimento de mediação ou conciliação vinculam apenas os credores anuentes, não se aplicando nessa fase a regra da maioria ou a extensão aos dissidentes do acordo aceito pela maioria dos credores. Enunciado 10 - Os documentos demonstradores de que a empresa em dificuldade preenche os requisitos legais para requerer recuperação judicial, para os fins do art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/2005, são aqueles previstos no art. 48 da lei 11.101/2005. Enunciado 11 - A mediação antecedente e incidental de que trata o art. 20-B da lei 11.101/2005 deve ser conduzida por profissional capacitado em técnicas de mediação e negociação complexa com múltiplas partes e conhecedor da matéria recuperacional e falimentar, sendo recomendada a co-mediação quando não houver profissional que reúna ambas as expertises. Enunciado 12 - A mediação é compatível com a recuperação extrajudicial, sendo recomendada sua utilização. Enunciado 13 - A fiscalização pelo Administrador Judicial da regularidade das negociações entre devedor e credores, nos termos do art. 22, II, e e f da lei 11.101/2005 não implica em sua obrigatória participação em procedimento de mediação incidental, caso este venha a ser instaurado. O Administrador Judicial participará das sessões, caso convidado pelo mediador, respeitando-se o sigilo e a confidencialidade inerentes à mediação. Enunciado 14 - Nos incidentes de impugnação ou habilitação de crédito apresentados na recuperação judicial em que a parte contrária concorde com o pedido, não haverá condenação ao pagamento de honorários de sucumbência. Enunciado 15 - A novação decorrente do acordo feito entre devedora e credor no procedimento previsto nos artigos 20-B e 20-C da lei 11.101/2005 somente se consolida com o decurso do prazo de 360 dias a contar do acordo firmado e desde que a devedora não ajuíze pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos do art. 20-C, parágrafo único, da referida norma. Não se pretende aqui esmiuçar cada um dos enunciados1, mas a leitura deles revela que a tônica foi estimular que a mediação, especialmente a antecedente, seja utilizada com a maior eficácia possível. Sem dúvidas, a mediação é uma excelente ferramenta para auxiliar devedor e credores a sentarem e negociarem o plano de recuperação e tratarem de outras questões relevantes na recuperação empresarial2. O grupo de trabalho, hoje FONAREF, tem se debruçado sobre esse tema desde sua criação em 2018, como se vê, por exemplo, das Recomendações 58/19 e 71/20. Os enunciados foram muito debatidos e bem recebidos pela comunidade jurídica. O único que despertou maior preocupação foi o enunciado 6, segundo o qual só se sujeitam aos efeitos da cautelar de suspensão das execuções os credores convidados à mediação antecedente. Para parte da doutrina, a suspensão deveria abranger todos os credores, ainda que não convidados pelo devedor.3 Que os debates continuem intensos e cordiais, pois o diálogo, os questionamentos e os enfrentamentos dos temas são fundamentais para o desenvolvimento do sistema. Os conflitos de ideias, livremente manifestadas, geram transformação, ajustes e evolução. E quanto mais falarmos em busca do consenso, mais próximos estaremos da tão almejada pacificação social. __________ 1 As justificativas de cada enunciado, que ajudam a entendê-los, podem ser acessadas aqui. 2 LONGO, Samantha Mendes. NETTO, Antonio Evangelista de Souza. A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos. Porto Alegre: Paixão Editores, 2020.  3 Bortolini, Pedro Rebello. A necessária revisão do Enunciado 6 do Fonaref. Publicado no portal Jota de 29/03/2023.
Como fechamento do mês de maio, a FGV Câmara de Mediação e Arbitragem realizou evento com grandes nomes da arbitragem e outros meios extrajudiciais no país. Em três painéis de debates, o evento reuniu especialistas para tratar dos temas atuais do setor. No primeiro painel, uma pergunta guiou as manifestações: "Seria a arbitragem um setor regulado?". As trocas entre Adriana Braghetta, Nádia de Araújo e Ivan Nunes Ferreira com a moderação de Fabiano Robalinho reforçaram o crescimento da arbitragem e o entendimento dos profissionais da arbitragem de que ainda que existe espaço para aprimoramento e debate de pontos relevantes em matérias como dever de revelação e transparência, não há hoje qualquer espaço para inovações legislativas. A compreensão é de que o sistema existente é robusto, possui conformidade com práticas internacionais e condiz com o importante princípio da autonomia da vontade. Em um jogo de palavras, o segundo painel teve como foco a arbitragem em setores regulados. A mesa contou com a moderação de João Bosco Lee, que entremeou vozes de  que tangenciam a arbitragem derivadas de diferentes setores, a saber: José Flávio Bianchi com a perspectiva da advocacia pública nas agências reguladoras, Flávio Galdino com interseções da arbitragem com processos concursais, notadamente recuperação judicial de empresas, Gustavo de Marchi com referência de casos relevantes na arbitragem no mercado de Energia e Selma Lemes com uma abordagem sobre a publicidade dos procedimentos. Em síntese, o painel demonstrou novos espaços e aplicações de mecanismos extrajudiciais. Houve grande destaque para a arbitragem, consolidada pelos palestrantes como meio adequado para resolução de conflitos envolvendo interesse público e de litígios provenientes de setores regulados com características sistêmicas e multifatoriais. O último painel trouxe uma abordagem mais ampla ao tratar de outros mecanismos como mediação, dispute boards, bem como a relevância do trabalho pericial na via extrajudicial. Os desdobramentos da resolução de conflitos no Brasil foram objeto de análise da advogada Samantha Longo, da engenheira Beatriz Rosa e do Ministro do Tribunal de Contas da União, Antônio Anastasia. A partir da condução realizada pelo moderador Augusto Barros, o Ministro Anastasia, anteriormente Senador e responsável pela propositura do PLS 206/2018 e pela relatoria da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (que autoriza os dispute boards em âmbito nacional), ressaltou a importância dos Disputes Boards para o Brasil e o evidente sinal positivo da Administração e dos órgãos de controle para os métodos alternativos de solução de disputas. Finalmente, questionado se algo ainda seria necessário para um maior crescimento das vias extrajudiciais, o Ministro Anastasia reforçou a manifestação de Samantha Longo sobre a necessidade de uma mudança cultural não só nos órgãos de controle, mas em todas as esferas e lideranças políticas e institucionais. Nesse sentido, destacou que "a percepção de que a saída pela composição extrajudicial, pela composição consensual do conflito é a realidade". A segunda edição da conferência, que já se incorpora ao calendário dos principais eventos da área, deve ocorrer no outono de 2024. O conteúdo da conferência de 2023 pode ser conferido na integralidade no youtube.
Dados da Serasa Experian demonstram que, no primeiro trimestre, houve um aumento de 37,6% nos pedidos de recuperação judicial comparado com o mesmo período de 2022, enquanto os de falências subiram 44,1%. Em termos de recuperações judiciais e falências decretadas, os números alcançam, respectivamente, 51% e 3,7%.1 E o ano está apenas no começo. No início de 2021, entrou em vigor a lei 14.112/20, que reformou a lei 11.101/05 (LREF), com o objetivo de torná-la mais aderente à realidade jurídica, econômica, política e social do país. Dentre as novidades trazidas pela lei 14.112/20, foi admitido o uso da mediação antes ou durante o trâmite dos processos de insolvência, ou seja, de recuperação judicial ou extrajudicial e de falência (LREF, arts. 20-A a 20-D). A experiência prática mostra que a aplicação e a avaliação da mediação dependem da correta compreensão do seu objetivo por todos os agentes envolvidos: advogados, assessores financeiros, administradores judiciais, magistrados, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e, claro, mediadores. De modo geral, pode-se afirmar que a mediação é um método de solução de conflitos, voluntário, flexível e confidencial, conduzido por um terceiro (mediador), neutro e imparcial, que busca facilitar o diálogo das partes, para que elas negociem, com urbanidade, cooperação e informação adequada, a solução que melhor corresponda aos seus interesses em disputa. Em processos de insolvência, o objetivo da mediação é estabelecer um diálogo produtivo entre as partes, direcionado à melhor solução para a superação da crise econômico-financeira do devedor, materializada, em nosso sistema concursal, por um plano vinculativo se aprovado pela maioria dos credores.2 Para estabelecer um diálogo que dê voz aos participantes, é preciso democratizar a informação, empoderar credores, em especial aqueles com valores de menor expressão econômica, e mapear pontos de convergência e de divergência entre o devedor e os credores, bem como possíveis pontos de resistência, internos e externos. Experiências em diversas localidades do Brasil têm confirmado que, por meio de um diálogo produtivo, a mediação tem facilitado e incentivado as negociações entre as partes, reduzido assimetrias de informações e contribuído para uma solução mais rápida, econômica e adequada para os conflitos surgidos ou já existentes e, assim, para o próprio processo.3 Em outras palavras, a mediação tem servido como um verdadeiro mapa para os agentes envolvidos nos processos de insolvência sobre as possibilidades de consenso entre devedor e credores e, por consequência, de efetividade processual. A correta compreensão do objetivo da mediação passa, então, pela correta compreensão também da figura do mediador como gestor do diálogo entre as partes.4 Assim, não lhe cabe fazer análises econômico-financeiras do devedor, nem lhe fiscalizá-lo ou julgá-lo, muito menos negociar contra ou a favor dele. Saber o que é e como funciona a mediação é fundamental para afastar o ceticismo sobre a sua eficiência5 e, assim, para a sua consolidação no sistema de insolvência brasileiro, em especial considerando o crescente aumento nos pedidos de recuperação e de falência. Referências bibliográficas Cerezetti, Sheila Christina Neder. A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações: o princípio da preservação da empresa na lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: Lei 14.112/20, nova Lei de Falências, 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. VASCONCELOS, Ronaldo; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva; CARNAÚBA, César Augusto Martins. Mediação na recuperação judicial: paralelos com a evolução estrangeira. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 16, n. 62, p. 45-81, jul./set. 2019. VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e prática da mediação. Curitiba: IMAP, 1998. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 14 abr. 2023. 2 Cerezetti, Sheila Christina Neder. A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações: o princípio da preservação da empresa na lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 427. 3 VASCONCELOS, Ronaldo; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva; CARNAÚBA, César Augusto Martins. Mediação na recuperação judicial: paralelos com a evolução estrangeira. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 16, n. 62, p. 45-81, jul./set. 2019. 4 Juan Carlos Vezzulla afirma que "[O] mediador é tão somente a parteira, que ajuda a dar à luz os reais interesses que possibilitarão o acordo final" (Teoria e prática da mediação. Curitiba: IMAP, 1998, p. 44-45). 5 Por exemplo: COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: Lei 14.112/20, nova Lei de Falências. 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 95-98.
quinta-feira, 27 de abril de 2023

Escola de mediação de portas abertas

Em 20 de dezembro de 2022 foi criada oficialmente a primeira Escola de Mediação do país pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. É a EMEDI, Escola de Mediação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, estruturada no âmbito do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC/RJ). A escola está sendo organizada administrativamente, para que possa iniciar o mais breve possível as suas funções, já que conta com uma demanda reprimida de diversos cursos fundamentais exigidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tanto para a formação de conciliadores e mediadores judiciais, quanto para o oferecimento de cursos de extensão em vários níveis. Trata-se de um sonho antigo de todos aqueles que lidam com os meios autocompositivos de solução de conflitos e verificam que, apesar de já se ter obtido várias conquistas, como se percebe, por exemplo, na atuação comprometida e dedicada dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), ainda há muito a caminhar para a implementação real de um ambiente múltiplo para tratar os conflitos. Era urgente, para tanto, ter um espaço dedicado de forma exclusiva, com visão sistêmica e com toda profundidade ao tema. Esse sonho se torna realidade com a EMEDI. No Rio de Janeiro, as diversas capacitações sobre a matéria aconteciam de forma esporádica na Escola da Magistratura (EMERJ) ou através da escola de servidores (ESAJ). Tais escolas, importantíssimas nesse percurso, têm, no entanto, outros objetivos e metas. Desse modo, diante da necessidade de ampliação desse campo multiportas, - onde se reconhece que há diversos métodos possíveis para a solução de cada conflito e que há nuances do caso concreto que fazem cada meio ser mais ou menos adequado ao caso -, as necessidades pedagógicas dessa área extravasaram os limites e já não cabem como mera parte dentro de outra estrutura formal. Além disso, a dimensão tradicional do Direito já não é suficiente para responder aos anseios e necessidades de uma sociedade tão rápida e complexa como a nossa. É preciso avançar na direção de um direito sócionormativo, que reconhece um protagonismo da sociedade como destinatária de toda a estrutura do Poder Judiciário. O pluralismo jurídico é um caminho sem volta e a formação tradicional do Direito deixa hoje seus operadores desguarnecidos de caminhos para soluções justas em muitos casos que são trazidos ao cotidiano forense. Além disso, em um grande número de situações belicosas, sequer se consegue o acesso real à justiça e o conflito se perpetua no seio da sociedade, causando desequilíbrio e dor. Esse, aliás, um conceito que precisamos renovar em nossos manuais e em nossas mentes: o acesso à justiça não significa acesso ao Poder Judiciário, mas acesso a uma forma adequada de solução daquela controvérsia. Há muito a ser feito. Portas foram abertas. Portas foram destrancadas. Portas foram derrubadas. O horizonte à frente é de muito trabalho e tudo isso passa pela capacitação, pela formação e pela especialização. Só um ambiente de estudos, pesquisas e treinamentos poderá propiciar que esse solo fértil possa ser fecundado e garanta uma colheita ainda mais consistente em termos de justiça e paz. Não há dúvidas sobre a adoção de um sistema multiportas pelo sistema processual pátrio, pelo qual a função jurisdicional deixa de ser "a" via para resolução de demandas, passando a estar ao lado de tantos outros mecanismos que servem, cada um com suas características, a resolver conflitos. Assim, temos a mediação, a arbitragem, a conciliação, a justiça restaurativa, os desenhos de sistemas, só para enumerar alguns. Além disso, em um sistema multiportas, o próprio processo judicial precisa ser tratado, pois padece de algumas enfermidades estruturais que, muitas vezes, fazem com que seus objetivos não consigam ser alcançados. O próprio código de processo civil de 2015 já avançou muito nesse sentido, com a previsão do sistema de concertação processual e os negócios jurídicos processuais atípicos. Agora, passados 7 anos da vigência do código, percebe-se que ainda é pequena a aplicação dos referidos institutos, se comparado com suas potencialidades, muito pelo despreparo dos profissionais do Direito que não conseguiram ainda se capacitar adequadamente para que os novos institutos possam fazer diferença no processo judicial de cada dia. O processo judicial é muito bom, mas precisa e pode ser ainda melhor. Há casos em que ele é a melhor porta, mas, por vezes, essa porta está um tanto emperrada e precisamos dessa renovação para que a prestação jurisdicional cumpra os anseios sociais e constitucionais. De outro lado, o avanço dos meios tecnológicos - que já amplia possibilidades há anos, mas que foi acelerado pelas necessidades trazidas com a pandemia de 2020 -, permitem que hoje essa estrutura de novas tecnologias e inteligência artificial esteja à disposição de todos. De fato, se esse acesso tecnológico ainda não ocorre individualmente, precisa estar disponibilizado pela Casa da Justiça. A tecnologia é neutra e cabe a nós direcionarmos para seu melhor uso. No caso, para reduzir conflitos, desigualdades, falta de acesso, para simplificar linguagem que impeça denominadores comuns. Somem-se a isso os estudos de análise econômica do direito que indicam o quanto os meios adequados de solução de conflitos podem ser salutares para o desenvolvimento de novas culturas menos onerosas e mais eficientes na solução das questões controvertidas. O momento é propício. As condições ideais estão fervilhando. É chegado então o momento de uma investida pedagógica a partir da qual se possa estruturar uma rede capacitada para aplicar o sistema multiportas, onde profissionais de outros saberes, advogados, procuradores, defensores públicos, membros do Ministério Público, servidores e magistrados estejam aptos e seguros na aplicação das melhores estratégias, mas onde, também, as próprias partes envolvidas possam entender e se empoderar de sua autonomia individual na condução de seus conflitos. A atuação da EMEDI irá no mínimo tempo possível até a base, levando a mediação às escolas, às organizações, prevenindo conflitos, verdadeiramente fazendo mudanças e propondo modificações geracionais na educação. Inicialmente, logo no primeiro semestre de atuação, a expectativa é que possamos aplicar cursos de Capacitação de Magistrados na Formação de Mediadores e Conciliadores Judiciais; Formação de Conciliadores Judiciais, para atendimento nas serventias judiciais; formação de Expositores de Oficinas de Parentalidade; formação de Mediadores Comunitários; formação de Mediadores para atender a diversos convênios com órgãos públicos e privados. Além desses, estão previstos ainda nesse primeiro bloco cursos de extensão em  Mediação de Conflitos, Comunicação - escuta ativa - respeito e consenso, Formação em Prevenção de Conflitos, cursos sobre as Casas de Família e Gestão Processual Consensual. Se em um primeiro momento a questão dos meios adequados de solução de conflitos era interesse de alguns poucos, hoje sua utilidade é para todos. Já não há dúvidas sobre o quanto esses mecanismos trazem respostas mais assertivas. A dúvida ainda é: como fazer? Para isso serve a EMEDI. A proposta é de uma escola eficiente e democrática, baseada na simplicidade e que responda às políticas públicas de consensualidade. Sendo assim, se o momento é de novas portas, a EMEDI está com as suas abertas,  franqueadas a quem se interessar, para que a sociedade possa ser mais pacífica, resolutiva e inclusiva. Tenham na EMEDI uma nova Casa, uma Escola de todos e para todos!
quinta-feira, 6 de abril de 2023

Consenso e futebol

A CBF - Confederação Brasileira de Futebol é uma associação de direito privado que tem por objeto dirigir, organizar, desenvolver e fomentar o futebol brasileiro. Além de ser o esporte mais amado pelos brasileiros, a seleção masculina de futebol, a única que já ganhou cinco vezes a Copa do Mundo, é idolatrada não apenas por brasileiros, mas também por milhões de estrangeiros que, ao redor do mundo, consideram a nossa seleção a segunda mais querida, logo atrás de suas seleções nacionais. Essa paixão que os torcedores nutrem pelas seleções brasileiras (masculina e feminina, em todas as suas categorias, de base ou titular) e pelos clubes de futebol é igualmente sentida por aqueles que trabalham com o futebol, nas áreas técnica e administrativa. O futebol, como um todo, tem um grande componente emocional. Trabalhar em um ambiente tão apaixonado me fez imediatamente refletir em como os conflitos havidos no mundo do futebol vêm sendo solucionados e em que medida as partes têm buscado diálogo e consenso.  Na esteira do que determina a FIFA (Fédération Internationale de Football Association), entidade que supervisiona as federações, confederações e associações relacionadas com o futebol ao redor do mundo, a CBF criou em 2015 um centro destinado a solucionar conflitos envolvendo os personagens que atuam no futebol.  A Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) é o órgão competente para dirimir litígios envolvendo os participantes do futebol brasileiro, a saber: as federações; as ligas de futebol vinculadas à CBF; os clubes; os atletas profissionais e não profissionais; os intermediários registrados na CBF; e os treinadores e demais membros de comissão técnica. Ali se resolvem conflitos entre clubes e atletas, de natureza laboral e desportiva; questões atinentes à compensação por formação ou ao mecanismo de solidariedade; descumprimentos de regulamentos e regras sobre registro e transferência de atletas; contratos com intermediários; conflitos entre clubes e federações que não sejam da competência da Justiça desportiva, dentre outros. Conforme os dados apresentados por Rafael Fachada, secretário geral da CNRD, a atuação da Câmara, desde sua criação, é exponencial. Em 2017, R$ 2 milhões haviam sido pagos pelos devedores em decorrência de decisões da CNRD. Em 2021, esse número chegou perto da casa de R$ 40 milhões. Em 2016, 7 processos foram instaurados perante a CNRD; em 2022, foram quase 300 casos novos. Dos mais de 1000 processos instaurados até hoje na CNRD, constata-se que centenas deles foram encerrados por acordo entre as partes. A proporção é animadora: para cada sentença proferida pelos julgadores, um acordo foi firmado. Ou seja, 50% dos casos foram finalizados porque as partes se compuseram. Visando incentivar ainda mais a celebração de acordos pelas partes, sugeri, enquanto estive à frente da Diretoria Jurídica da CBF, uma alteração no Regulamento da CNRD, para se incluir o seguinte dispositivo: Art. 12-A- Na condução dos seus procedimentos, a CNRD deve incentivar as partes a buscarem soluções consensuais para as disputas, seja de forma direta, seja através do apoio da CNRD, disponibilizando, quando necessário, a sua estrutura em prol da solução pacífica dos casos. A Câmara agora prevê o incentivo à busca do consenso. Trata-se de um convite ao diálogo e à construção de soluções pelas próprias partes envolvidas no conflito. Sem dúvida, ninguém melhor do que as partes para ajustarem a melhor solução para o seu conflito. Às vezes, elas não conseguem encontrar a melhor saída sozinhas e, neste caso, um terceiro imparcial, e facilitador do diálogo, pode ser fundamental. A ideia é estimular e encorajar as pessoas a conversarem logo no início do procedimento perante a CNRD, evitando-se, se possível, o desenrolar do procedimento com a necessidade de audiências, oitiva de testemunhas, prolação de decisões e eventualmente processamento de recursos. Na obra "Direito empresarial e cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação de conflitos"1, sustento que as empresas têm responsabilidade na pacificação de conflitos. A empresa que conta com área ou centro voltado à pacificação dos conflitos internos (entre os colaboradores) e externos (decorrentes das relações com parceiros comerciais, órgãos públicos e demais stakeholders) é uma empresa responsável socialmente, que está preocupada em cumprir sua função social. Temos que cada vez mais voltar nossos olhares para a desjudicialização, para a busca do consenso e para o uso dos métodos adequados de solução de conflitos. Ainda mais em conflitos que têm um componente emocional como aqueles que envolvem a paixão pelo futebol. O trabalho da CNRD é digno de elogios, como pontuou recentemente Erika Montemor, Head do Player Status Department da FIFA: "Foi interessante comparar o cenário nacional com o internacional e a troca de experiências. (...) O trabalho é realmente incrível, acho que eles construíram um sistema robusto e que tem reputação. É muito importante para a CBF e para a CNRD ter essa força e eficiência que eles mostram".2 Espero que o novo dispositivo introduzido no Regulamento da CNRD frutifique e traga excelentes resultados, permitindo que o consenso esteja cada vez mais presente nos conflitos envolvendo o futebol. Não só no âmbito da CNRD, mas também nas muitas arbitragens desportivas em curso (o uso da mediação nas arbitragens ainda é muito pequeno, existindo um vasto campo a ser preenchido). Autocomposição não é uma realidade distante, não é conto de fadas, não é delírio. Resolver os conflitos ligados ao futebol via mediação, conciliação ou negociação (todas formas de autocomposição) será um gol de placa, onde todos os "jogadores" saem ganhando. __________ 1 LONGO, Samantha Mendes. Direito empresarial e cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação de conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2023. 2 Disponível aqui.
quinta-feira, 23 de março de 2023

O papel do advogado na mediação

Num país com mais de 1.000.000 de advogados e 77,3 milhões de processos judiciais (Justiça em Números de 2022), é difícil não questionar a relação direta desse profissional. Por muito tempo, o advogado foi treinado para lidar com o conflito exclusivamente pela via do Poder Judiciário. Isso, claramente, contribuiu para o atual cenário que temos hoje. As faculdades de Direito praticamente não ensinavam outras formas de resolução de conflitos até dezembro de 2018. Hoje não só possuem matérias teóricas, como também Núcleos de Prática Jurídica para permitir que os alunos, futuros advogados, tenham essa vivência. As pesquisas empíricas permitem olharmos o atual momento para entendermos a realidade e buscarmos maneiras de organizar o futuro para seguir pela trilha até então percorrida ou rever o curso para atingir o objetivo desejado. Com o intuito de obter dados reais sobre este profissional, um dos principais atores da resolução de conflitos, foi feita uma pesquisa que teve como foco os advogados brasileiros1. O estudo deste cenário é muito importante considerando, principalmente, a contribuição brasileira na Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas) e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e 16 (paz, justiça e instituições eficazes). Sobre a pesquisa2 Foi feito um questionário eletrônico e disseminado via internet (email, redes sociais, grupos de Whatsapp...) para atingir o maior número possível de advogados brasileiros. 621 advogados de vários Estados responderam. Destes, 99% responderam que não tiveram aulas sobre negociação na faculdade. Dos advogados que, posteriormente, buscaram conhecimento sobre outras formas de resolução de conflitos, somente 17% fizeram cursos específicos sobre negociação, muito utilizada na mediação. A participação do advogado na mediação é obrigatória ou opcional? Este é um tema bastante acalorado que possui fortes argumentos para todas as teorias. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base na Resolução nº 125/2010, que instituiu o chamado sistema multiportas brasileiro, entendeu não ser obrigatório3. A Lei de Mediação (lei 13.140/2015) no art. 104 dispõe que na mediação extrajudicial é opcional, mas que os mediandos precisam estar na mesma situação (todos com ou sem advogados. Caso haja diferença, a mediação é suspensa). Já no art. 265, ao tratar da mediação judicial, determina a obrigatoriedade, salvo casos específicos. Questiona-se ainda qual norma prevalece sobre a mediação judicial: Código de Processo Civil (lei 13.105, de 16.03.2015) ou Lei de Mediação (lei 13.140, de 26.06.2015). Independentemente de todos esses argumentos, o advogado é extremamente necessário! Por quê? Porque ele conhece o ordenamento jurídico. Ele conhece o que está permitido por lei e o que está vetado. Para um acordo ser válido (tenha sido feito na mediação ou não), precisa preencher alguns elementos previstos no art. 104 do Código Civil (lei 10.406/2002). São eles: (a) agente capaz, (b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável e (c) forma prescrita ou não defesa em lei. Assim, não adiantaria nada (pelo contrário, somente escalaria ainda mais o conflito) se um acordo fosse feito e não pudesse ser cumprido. Por exemplo, nosso ordenamento jurídico garante o direito de visitação ao cônjuge que não esteja com a guarda da criança (Código Civil art. 1.589), logo, não é possível que seja feito um acordo nos seguintes termos: "o mês em que não houver o pagamento da pensão da criança, o cônjuge perde o direito de visitação até o total pagamento". Ou ainda um acordo entre duas empresas no sentido de uma vender para outra um produto por um preço mais econômico porque utilizará trabalho escravo para a sua produção. Nossa Constituição (art. 243) proíbe este tipo de relação. Claro que estes são exemplos simples. Todavia, nosso ordenamento jurídico precisa ser muito bem conhecido para evitar que o negócio jurídico (acordo) contenha itens que sejam legalmente vedados. E qual o profissional que estuda o ordenamento jurídico? O advogado. É possível realizar um acordo sem advogado? Claro que sim! Realizamos todos os dias dezenas de acordos sem consultar um advogado. Da mesma forma que podemos, por exemplo, comprar um xarope para tosse na farmácia sem consultar um médico. Mas, esse xarope pode não ser o mais apropriado para uma pessoa por trazer algum efeito colateral. Claro que sim! Quem sabe o melhor remédio para aquela pessoa naquela situação? O médico, que conhece as características daquela pessoa e o remédio. Independentemente de todo o debate que cerca a obrigatoriedade da presença do advogado em uma mediação, temos que ter em mente a sua necessidade por possuir um conhecimento técnico sobre a questão.  Qual a contribuição do advogado na mediação? O conhecimento técnico do ordenamento jurídico permite que o advogado possa contribuir com a construção de alternativas, criando diferentes cenários. O Princípio da Autonomia da Vontade garante que a decisão final (de aceitar ou não aquele acordo) é do mediando. Todavia, o advogado pode ajudar o seu cliente a tomar a melhor decisão, maximizar os seus interesses, montando junto com ele uma árvore de decisão (ferramenta muito utilizada na tomada de decisão) com todos os elementos importantes, como, por exemplo, custo, tempo, probabilidades, valor esperado, valor presente... Um outro ponto a ser considerado é o reflexo do acordo quando o objeto envolve o pagamento de valor monetário, ou seja, a circulação na economia. Anualmente há movimentos do Poder Judiciário para estimular a realização de acordos. Esses resultados são divulgados e vemos esses reflexos. Seguem alguns exemplos:  Ano de 2021 Judiciário mineiro homologa quase R$ 6,8 bi em acordos na Semana da Conciliação6 Conciliação: Varas do Trabalho homologam mais de R$ 3,5 mi R$ 3.521.750,55 milhões em acordos homologados no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (TRT13)7 Semana da Conciliação no AM tem mais de 8,6 mil audiências realizadas 2.583 acordos conciliatórios e, em valores financeiros, R$ 9,7 milhões foram homologados.8 Ano de 2022 Semana de conciliação trabalhista atendeu mais de 219 mil pessoas no país A 6ª edição da Semana Nacional da Conciliação Trabalhista homologou mais de 21 mil acordos e movimentou cerca de R$764 milhões, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho.9 TRT-15 movimenta R$ 115 milhões em acordos na Semana Nacional da Conciliação Trabalhista10 Acordos promovidos pela Justiça Federal em São Paulo movimentam mais de R$ 233 milhões no primeiro dia da Semana Nacional da Conciliação11 A consequência da participação do advogado na economia do país quando participa de um acordo é direta. Até porque a eleição de mediação (ou outras formas de resolução de conflitos), pode evitar a perda financeira de uma empresa com os seus conflitos. Já temos algumas empresas que, com o auxílio do jurídico, mudaram a sua mentalidade para lidar com as controvérsias e estão deixando de perder valor12-13. O advogado como rede de pertinência na mediação Geralmente, uma pessoa quando possui um conflito a ser resolvido, busca o advogado para lhe auxiliar. É este profissional que sugere a mediação. Dificilmente uma pessoa entra em contato diretamente com um mediador/câmara para iniciar uma mediação (salvo quando já há previamente cláusula no contrato neste sentido). Assim, o mediando chega à mediação, via o advogado. É ele o elo de confiança do mediando com o mediador. E mais, conforme as negociações avançam, o mediando pede a assessoria jurídica ao advogado para o tão esperado fechamento do acordo e resolução do conflito. Acolhendo também esse profissional na mediação, a fase da construção de alternativas fica muito mais rica pelo seu conhecimento técnico do ordenamento jurídico e conhecimento do seu cliente. Outro ponto que merece destaque é a sua influência positiva no cumprimento do acordo. Ciente dos riscos e consequências do descumprimento de um acordo fruto de uma mediação, o advogado pode auxiliar o seu cliente na eventual renegociação, se for o caso. Futuras gerações de advogados Até Dezembro de 2018 (Resolução nº 5 do Ministério da Educação)14, o tema "Meios Consensuais de Ssolução de Conflitos" não fazia parte do currículo das faculdades de Direito (poucas tinham e muitas vezes era uma matéria opcional). Esta norma determinou este tema ao trazer a necessidade do desenvolvimento da cultura do diálogo15. O recado passado pelo Poder Judiciário está bem claro: Ministro dá receita para advogado do futuro: "resolve sem propor ação" O ministro Luís Roberto Barroso chamou a atenção para a resolução de litígio por meio da negociação e da composição amigável. Para o ministro Barroso, o advogado do futuro não é aquele que propõe ação judicial, mas aquele que resolve o problema sem propor a ação, por meio da negociação e composição amigável.16 Nos Moots (nacionais e internacionais) que as faculdades participam, fica clara a preparação das futuras gerações de advogados com o tema. Certificações de institutos internacionais renomados, como o ICFML (Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos), começam a ser oferecidos aqui no Brasil. Atualmente estamos vivendo o movimento dessa mudança de cultura. E, em breve, veremos esses resultados. Outras pesquisas (principalmente empíricas) são necessárias para que seja possível termos mais dados. Conclusão Poucos advogados hoje no Brasil conhecem as técnicas de negociação, essenciais em uma mediação. Todavia, quando há a participação de um profissional que as possua, percebe-se os benefícios para todos os envolvidos. Sua presença pode até não ser obrigatória, mas é extremamente necessária por ser o conhecedor do ordenamento jurídico facilitando que o mediando possa exercer plenamente a sua autonomia de vontade ao estar ciente de todos os seus deveres e direitos e honrar com o acordo feito. __________ 1 A pesquisa completa serviu para obtenção do doutoramento da autora. 2 Informações detalhadas sobre a pesquisa podem ser vistas no artigo Culture of Alternative Dispute Resolution (ADR) in Brazil: An Exploratory Study of Business Mediation from the Theory, Laws and Perception of Lawyers. Beijing Law Review. Vol. 13. No.2, June 2022. DOI:10.4236/blr.2022.132024, disponível aqui, capturado em 16.03.2023, as 10h. 3 Disponível aqui.  4 Art. 10. As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos. Parágrafo único. Comparecendo uma das partes acompanhada de advogado ou defensor público, o mediador suspenderá o procedimento, até que todas estejam devidamente assistidas. 5 Art. 26. As partes deverão ser assistidas por advogados ou defensores públicos, ressalvadas as hipóteses previstas nas Leis n  9.099, de 26 de setembro de 1995 , e 10.259, de 12 de julho de 2001 . Parágrafo único. Aos que comprovarem insuficiência de recursos será assegurada assistência pela Defensoria Pública. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Semana de conciliação trabalhista atendeu mais de 219 mil pessoas no país. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 CARNEIRO, Cristiane., DUZERT, Yann., ALMEIDA, Rafael Alves de. Case Study on Economic Benefits in the Use of Business Mediation in Brazil. Beijing Law Review, 13 (4) (December 2022), DOI: 10.4236/blr.2022.134064, disponível aqui. 13 Recomendamos o webinar: Advocacia Empresarial de Negócios: Experiências nos EUA e Brasil - (agosto/2022). 14 Disponível aqui. 15 Art. 3º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio das formas consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito, à prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania. Parágrafo único. Os planos de ensino do curso devem demonstrar como contribuirão para a adequada formação do graduando em face do perfil almejado pelo curso. Art. 4º O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as competências cognitivas, instrumentais e interpessoais, que capacitem o graduando a: ... VI - desenvolver a cultura do diálogo e o uso de meios consensuais de solução de conflitos; 16 Disponível aqui. (11.03.2021).
Introdução A Mediação, processo auto compositivo de Resolução de Conflitos, vem avançando no Brasil, seguindo a tendencia de outros Países, como nos Estados Unidos, em toda a Europa, na América do Sul com destaque da Argentina e Chile e em países do leste europeu, como na Turquia. A aprovação no Brasil da Lei de Mediação de número 13.140/2015, juntamente com Resolução 125/2010 do CNJ e o Novo Código de Processo Civil- Lei 13.105/ 2015, criando um robusto aparato juridico em prol da Mediação, permitiu que ela passasse a ser utilizada em processos judiciais e extrajudiciais e que vem se estendo às Câmaras Privadas de Mediação e a mediações Ad Hoc. Hoje a mediação já é utilizada em conflitos intra e inter Governos, mediações familiares e empresariais neste atingindo diversas áreas como conflitos com consumidores, negociação de dívidas, conflitos trabalhistas e de recuperação judicial. Também atinge o setor de prestação de serviços e gradativamente o agronegócio com resultados surpreendentes em termos de redução de custos e brevidade de solução que ainda avança a passos mais lentos no Judiciário. Na área empresarial a mediação começa a ser adotada também pelas empresas familiares particularmente em conflitos societários, de sucessão, de competição, de financiamento, com os fornecedores e trabalhistas. A mediação nesse segmento de empresas familiares será o foco da presente dissertação destacando-se as causas da ocorrência dos conflitos e suas possíveis consequências e a utilização do instituto da Mediação para o enfrentamento desses conflitos. Os conflitos nas empresas familiares - causas mais comuns e suas possíveis consequências As empresas controladas pelas famílias, segundo dados do Sebrae e do IBGE, representam cerca de 90% de todas as empresas brasileiras, geram 65% do Produto Interno Bruto (PIB) e empregam 75% da força de trabalho do país. De acordo com GERSICK, Kelin E., DAVIS, John A. , Hampton, Marion Mc Collom e LANSBERG, Ivan, no livro De Geração Para Geração -Alta Books Editora) essas empresas podem ser segmentadas, simplificadamente, em três tipos de empresas: empresa tradicional familiar, tradicional híbrida e com influência familiar. Nas empresas tradicionais familiares, o capital é fechado. É esse o caso da absoluta maioria das empresas familiares, que são de micro, pequeno e médio portes. Já nas empresas tradicionais híbridas, o capital é aberto, embora o controle permaneça com a família e esta detenha o maior número de ações. Nas empresas com influência familiar, por sua vez, o capital é aberto e as famílias tradicionais não têm o controle, mas mantêm forte influência, particularmente através de seu fundador. O foco deste artigo será a empresa tradicional familiar, que representa, também de acordo com dados do Sebrae, cerca de 80% a 90% do total das empresas familiares, e que costuma enfrentar grandes desafios para a sua longevidade e permanência. Também de acordo com os citados autores, as empresas acima passam em geral por três momentos durante a sua existência: a) no início, há uma forte iniciativa empreendedora. A empresa é criada objetivando a subsistência das famílias e a prioridade é o negócio; b) no segundo momento, o negócio se amplia, o lucro cresce e a relação Família-Negócio se modifica; nesta fase em geral, os membros da família diversificam seus papéis na empresa sejam como sócios e/ou como gestores e funcionários da empresa, ou ainda , continuam sendo apenas membros da família mas, muitas vezes, com grande influência na empresa; c) no terceiro momento, com o crescimento da quantidade de gerações no negócio, em proporção maior do que o do crescimento do seu lucro, mas com a demanda para continuarem a ter o mesmo padrão anterior de renda, as despesas aumentam, o endividamento cresce, os lucros são cadentes, os reinvestimentos no negócio se reduzem, a inovação é esquecida, a competitividade é decrescente e a preservação do caixa é sacrificada. Nesse terceiro momento, em geral, as famílias já não conseguem mais buscar seu sustento na empresa e, mais do que isso, pelo surgimento dos prejuízos, começam a ver seu patrimônio e a propriedade da empresa ameaçados. Em muitos casos, quando a crise se agrava, o negócio é sacrificado em função da proteção ou manutenção da propriedade. A confusão entre a família, o negócio e a propriedade levam, invariavelmente, a uma necessidade de reorganizar as empresas familiares, de diferentes maneiras. Nesses segundo e/ou terceiro momento por que passam as empresas, os conflitos latentes vêm à tona, impulsionados, em primeiro lugar, pelos diversos interesses e opiniões dos membros da família, cada um exercendo diferentes papéis conforme mostrado no gráfico abaixo: XXX Detalhamento: (1) só pertencente à família; (2) só acionista; (3) só trabalhando na empresa, inclusive na alta gestão; (4) Acionista e pertencendo à família; (5) acionista e trabalhando na empresa-inclusive na alta gestão; (6) pertencente à família e trabalhando na empresa e (7) pertencendo simultaneamente à família, trabalhando na empresa e sendo acionista. sendo acionista. (Fonte: "De Geração Para Geração" -Kelin E. Gersick, John A. Davis, Marion Mc Collom Hampton, Ivan Lansberg-Alta Books Editora) Em segundo lugar, pela mistura de sentimentos e emoções acumulados e não exteriorizados nas famílias, e que se transferem para as empresas familiares, nos diferentes assuntos nelas discutidos. Em terceiro lugar ressalte-se a convivência de diferentes personalidades, (simplificadamente 10 ao todo, conforme trabalho realizado pela psicóloga Catherine Briggs e sua filha Isabel Briggs baseado em estudo elaborado por Jung e conhecida como MBTI - Classificação Tipológica de Myers Briggs.)1 Assim esses conflitos de relacionamento e emoções ao lado dos diferentes papéis exercidos pelos membros da família antes descritos são levados às Empresas e são potencializados nas discussões empresariais em um ambiente em que a sobrevivência do negócio está se mostrando crucial. Isto significa que as empresas precisarão redefinir a sua atuação e seu modus operandi, alcançando mudanças na relação societária, organizacional e operacional. Para sobreviver, terão de mudar de uma posição de empresa da família para Família Empresária, mais profissionalizada e esta realidade leva ao aparecimento de inúmeros conflitos. Na redefinição de sua organização podemos citar as seguintes mudanças mais comuns: a) Desentrelaçar a família do negócio. Citamos como exemplo que as despesas da família não podem ser mais despesas do negócio e que os familiares que ingressam na empresa têm de ter preparo profissional para trazer uma contribuição clara para a empresa. b) Mudança na relação societária, redefinindo regras claras e transparentes de convivência entre os sócios e para todos os assuntos pertinentes à empresa, alcançando a política de dividendos, direito de preferência, base de salários e explicitação da meritocracia. No entanto, a experiência da família no negócio deve ser valorizada, sendo um dos caminhos para isso o acolhimento, na gestão, de membros da família que tenham condições de atuar como conselheiros. c) Mudanças operacionais que se reflitam na recuperação do controle do caixa, na elevação da capacidade de investimentos - particularmente em inovação e digitalização -, no aumento da produtividade e no aperfeiçoamento da gestão e governança, que podem levam à recuperação da empresa. A partir daí, poderá haver a migração da empresa familiar para Família Empresária, onde a Mediação pode ter um papel crucial nessa transformação. Utilização da mediação para o enfrentamento desses conflitos Os conflitos, antes latentes e ocultos, aparecem em todas as suas formas de expressão, com disputas abertas entre sócios sobre governança, hierarquia, dividendos, salários, cultura e meritocracia. A solução para esses conflitos, quando pela via judicial, leva geralmente um enorme tempo2, comprometendo definitivamente o negócio e a propriedade da empresa. Nesse momento em que a família percebe que a forma de gestão da empresa precisa ser modificada, o advogado da empresa ou das famílias, com o amplo conhecimento do conflito e da possibilidade do uso da mediação/conciliação, poderá ajudar a conduzir a empresa a optar pela melhor solução para o conflito. Importante citar os princípios que regem a mediação e que a tornam eficaz na utilização dos conflitos: independência e imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, confidencialidade, autonomia da vontade das partes, informalidade, busca do consenso, princípio da boa-fé e decisão informada, presentes na Lei da Mediação (lei 14.140/2015)3. Baseado nesses princípios, o mediador utiliza-se das diversas técnicas de mediação, que podem ser usadas isoladamente ou combinadas, dependendo das características do caso. São elas: simpatia /empatia, acolhimento, escuta ativa, parafraseamento/recontextualização, perguntas abertas, afago, enfoque prospectivo, teste de realidade, resumo e caucus. Ressalta-se que as técnicas de Escuta Ativa (atenção não somente à linguagem falada mas também às linguagens - corporal, tom de voz, forma de olhar etc. - para compreender com profundidade o conflito) e Caucus (reuniões privadas com mediados e advogados) podem ter especial destaque na Mediação. A partir daí se torna mais fácil a construção de acordos viáveis para ambas as Partes embora o Acordo não deva ser a principal preocupação da mediação e sim o restabelecimento das relações. Conclusão A mediação, com a utilização das técnicas acima citadas ajuda a desvendar as razões ocultas do conflito e a caminhar para a solução adequada deles, devolvendo à empresa familiar a possibilidade de buscar as melhores alternativas para o seu respectivo crescimento e a manutenção do seu legado. Como nos conflitos familiares, os conflitos empresariais vêm sendo resolvidos cada vez mais pela Mediação nos diferentes setores de atuação, seja no agronegócio seja nas indústrias e serviços particularmente em conflitos societários, de sucessão, de competição, de financiamento, com os fornecedores e trabalhistas. etc., com custos baixos e grande celeridade. A disseminação do conhecimento sobre a mediação na sociedade brasileira, popularizando esse instrumento como ocorreu nos Estados Unidos, Europa, América do Sul e no Leste Europeu, poderá torná-lo presente na maior parte dos conflitos no Brasil, incluindo os empresariais familiares. Destaque-se que em países como a Itália, Colômbia e na Argentina já existe na legislação, a presença da cláusula conhecida como opt-out, que torna a mediação obrigatória antes da judicialização das ações, diminuindo-as sobremaneira. São casos de sucesso que revelam o potencial positivo do uso da mediação na solução de conflitos, que certamente beneficiarão empresas de todos os tipos. Em especial, nas empresas familiares - nas quais, além da resolução do problema, é importante a preservação das boas relações familiares - a utilização desse instrumento é extremamente recomendável. Referências bibliográficas BRASIL. Lei no 14.140, de 26 de junho de 2015. Lei da Mediação. Disponível aqui. Acesso em: 30.abr.2021. CARAN, María Elena, EILBAUM, Diana Teresa; RISOLÍA, Matilde, Mediación - Diseño de una Práctica. Buenos Aires, Librería Histórica, 2010. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2020: ano-base 2019/. Brasília: CNJ, 2020. Disponível aqui. Acesso em 30.abr.2021. DECARO, Julio. A Cara Humana da Negociação. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2013. GERSICK, Kelin E; DAVIS, John A.; HAMPTON, Marion McCollom; LANSBERG, Ivan. De geração para geração: ciclos de vida das empresas familiares. São Paulo: Negócio Editora, 1997. PRADO, Roberta Nioac (Coord.). Empresas Familiares e Famílias Empresárias: Governança e planejamento jurídico e sucessório. São Paulo, Quartier Latin, 2019. STONE, Douglas, PATTON, Bruce e HEEN, Sheila. Conversas Difíceis, Elsevier Editora Ltda., 1999 -2004. THE MYERS & BRIGGS FOUNDATION. MBTI® Basics. Disponível aqui. Acesso em: 30.abr.2021. __________ 1  Disponível aqui. Acesso em 30.abr.2021. 2 Conforme demonstra o relatório Justiça em Números 2020. Disponível aqui. Acesso em 30.abr.2021.  3 Disponível em: BRASIL. Lei 14.140, de 26 de junho de 2015. Lei da Mediação. Disponível aqui. Acesso em: 30.abr.2021.  
Seja nas sociedades de grande ou pequeno porte, de capital aberto ou fechado, com controle definido ou de capital pulverizado, seja nas sociedades familiares, ou até nas startups, a governança corporativa - adequada a cada estágio de desenvolvimento social - pode ser um instrumento fundamental para prevenir conflitos sociais.  A ausência de prévio alinhamento e formalização de regras claras sobre temas sociais como: responsabilidades, formas de participação e intensidade de dedicação de cada sócio; objetivos e prioridades de curto, médio e longo prazo da sociedade; processos decisórios; capitalização e remuneração; acesso à informação e, ainda, resolução de impasses, pode causar e/ou agravar desentendimentos, mesmo nas organizações que estão apenas começando.  Definição e princípios de governança corporativa  A governança corporativa pode ser definida como o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas. Ela envolve os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização, auditoria e controle e demais stakeholders.1-2  As boas práticas de governança informam e estabelecem as regras aplicáveis à sociedade, comunicam de forma clara os valores sociais, alinham interesses, evitam conflitos e facilitam os relacionamentos dentro e fora da organização, com o propósito de aumentar seu valor e longevidade.  Os princípios básicos da governança, apontados no Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), são os seguintes: (i) transparência, abrangendo a disponibilização das informações que sejam de interesse dos stakeholders e não apenas aquelas impostas por disposições de leis ou regulamentos; (ii) equidade, que se caracteriza pelo tratamento justo e isonômico de todos os sócios e demais stakeholders, levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas, (iii) prestação de contas (accountability), conforme o qual os agentes de governança devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papéis e (iv) responsabilidade corporativa, que orienta que os agentes de governança a zelar pela viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas, levando em consideração, no seu modelo de negócios, os diversos capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional etc.) no curto, médio e longo prazo.  Os estágios básicos de governança3  Nas primeiras fases de desenvolvimento social (considerado aqui como a fase de ideação, pré-constituição da sociedade), é importante alinhar expectativas; pensar e discutir as responsabilidades básicas de cada sócio, suas formas de contribuição, os processos de decisão (construção do consenso) e os mecanismos de saída de sócios - estas últimas duas, causas recorrentes de litígios societários. Controles mínimos para apuração de resultados e prestação de contas também devem ser estabelecidos desde cedo.  Da mesma forma, recomenda-se que os objetivos, propósito e valores sociais estejam claros entre os sócios e, posteriormente, sejam comunicados a todos os colaboradores e prestadores de serviço.  Aos poucos (na fase de validação, constituição da sociedade), pode se evoluir para regras mais detalhadas sobre direitos e deveres dos sócios, com assinatura de acordo de sócios (formalizando direitos de voto e veto, forma de indicação e eleição de administradores, restrições à transferência de participação societária, regras de saída e dissolução, dentre outros temas relevantes). Cabe também organizar práticas relacionadas a empregados-chaves (tais como programas de stock option), clientes e fornecedores (criação de contratos-padrão, por exemplo) e parceiros estratégicos.  Com o crescimento da base de clientes e do faturamento, recomenda-se definir alçadas para a tomada de decisão, com estruturação do conselho (consultivo ou de administração) e evolução de práticas de planejamento e controles internos.  Sociedades mais estruturadas  No caso das sociedades existentes há mais tempo e com maior porte, a quantidade de acionistas, investidores e stakeholders e os riscos do negócio exigirão regras mais sofisticadas, uma maior quantidade de órgãos e agentes de governança, bem como mecanismos de controles internos e defesa mais robustos.  A governança vem, de fato, buscando alcançar e proteger maior quantidade de stakeholders, indo muito além de sócios e administradores. Ficou para traz o foco exclusivo no lucro e busca de rentabilidade imediata aos acionistas como prioridade absoluta.  A demanda por processos de tomada de decisão mais criteriosos, bem como por um olhar mais abrangente por parte dos agentes de governança é crescente. Aspectos sociais e ambientais passaram a fazer parte da agenda das organizações, impactando diretamente na sua estratégia, reputação e valor econômico de longo prazo.  Como exemplo, no caso de companhias abertas, na esteira da tendência mundial de preocupação com os aspectos ASG (Ambiental, Social e Governança), a Comissão de Valores Mobiliários - CVM editou, em dezembro de 2021, a Resolução 59, que traz a exigência de prestação de informações sobre esses aspectos no Formulário de Referência. A Resolução 59/2021 entrará em vigor em janeiro de 2023, mas muitas companhias já vêm divulgando informações ASG há algum tempo, dada a relevância que vem sendo dada a essas matérias.  Com a ampliação das partes impactadas pelas atividades da sociedade, nas mais diversas naturezas (ambiental, social, econômica, trabalhista, comercial etc.), novas controvérsias podem surgir. Para se preparar para isso, a sociedade deve adotar políticas claras, bem como mecanismos de resolução de conflitos específicos, sendo a mediação uma alternativa bastante adequada na maior parte dos casos.  Principais causas de mortalidade das sociedades e como evitá-las  Conforme pesquisa realizada pelo Sebrae4, as principais causas de mortalidade das organizações nos primeiros 5 anos são: ausência de planejamento prévio (incluindo plano de negócios), gestão empresarial desqualificada, inexperiente (sem conhecimento do mercado), ineficiente ou desconectada dos avanços tecnológicos e ausência de comportamento empreendedor (englobando capacidade de estabelecer metas, criar vínculos, acompanhar mudanças de mercado e compreender a fundo seu negócio, ou seja, ter visão do negócio).  Outras causas apontadas são: descontrole financeiro, desconhecimento de mercado (ambos podendo ser incorporados na primeira causa apontada acima, de falta de planejamento) e, claro, divergências entre sócios.  Como antes mencionado, a governança pode evitar disputas entre sócios, da mesma forma que faz parte do tão relevante planejamento estratégico.  Conclusões  Encontrar a medida exata de governança, de modo a equilibrar custos e benefícios envolvidos, considerando os diferentes perfis e estágios de desenvolvimento das sociedades, pode até parecer um desafio, mas é fundamental.  A definição de regras básicas de convivência entre sócios e administradores, a criação de órgãos societários eficazes e de mecanismos de controle básicos geram valor, dão credibilidade, diminuem as incertezas, aumentam a liquidez e reduzem as chances de conflitos e até mesmo de mortalidade da sociedade. __________ 1 No Brasil, traduzido frequentemente como "partes interessadas". O termo se refere a todos os que impactam ou são impactados pela organização, abrangendo, dentre outros, sócios, administradores, empregados, clientes, fornecedores, prestadores de serviço, comunidades próximas que possam ser afetadas pelo objeto social. 2 Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), 5ª Edição/2015. 3 Cartilha Governança Corporativa para Startups & Scale-ups do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), 2019. 4 Pesquisa realizada entre 2007 e 2011. Visita ao site em 24 de outubro de 2022, 13:00.
I. Panorama geral sobre a Mediação A mediação é um método adequado de resolução de controvérsias "em que um terceiro imparcial atua como facilitador da comunicação entre as partes, auxiliando-as a alcançarem a melhor solução possível para todos os envolvidos"1. O procedimento de mediação é regido por importantes princípios2 que podem ser divididos em três grupos. Os princípios que regem o processo são: (i) informalidade, (ii) oralidade e (iii) confidencialidade. Já em relação ao mediador temos: (iv) a imparcialidade, (v) a busca do consenso e (vi) independência3. Por fim, os princípios direcionados às partes e advogados são (vii) autonomia de vontade, (viii) boa-fé objetiva e (ix) isonomia entre as partes. A mediação é indicada para situações em que se tenha uma relação de interdependência entre os envolvidos4, em que há interesse das partes em manter, melhorar ou não prejudicar esse vínculo5. Por meio da mediação as partes envidarão esforços para reestabelecer um canal de comunicação. Ao final do procedimento as partes podem celebrar um acordo, que pode ser: (i) provisório, (ii) definitivo, (iii) parcial ou (iv) total. Mesmo que a mediação não termine em acordo, ainda assim ela pode ser eficiente para retomar o diálogo entre os mediandos, diminuindo a assimetria informacional6. A mediação, portanto, é um método rápido, eficaz e que oferece custos mais baixos para a resolução de conflitos, possibilitando às partes a redução do desgaste emocional, com o reestabelecimento do diálogo, evitando a reincidência de litígios judiciais ou arbitrais7, e preservando a imagem e relacionamentos comerciais ou pessoais dos mediandos8.  II.  Mediação sob o enfoque da Teoria dos Jogos Antes mesmo de demonstrar como a Teoria dos Jogos pode servir como suporte para a mediação de conflitos, é necessário entender que os conflitos são inerentes às relações humanas9. Por nos relacionarmos com pessoas que possuem opiniões e necessidades diferentes, conflitos surgirão. Contudo, a forma como esses litígios são encarados pode resultar tanto em caos quanto em uma "fonte de criatividade, mudança e maior produtividade."10 Nesse sentido, a utilização de métodos adequados de resolução de controvérsias, em especial a mediação, pode fazer com que o conflito seja resolvido de forma mais eficiente e menos desgastante. Principalmente no ramo empresarial, em que se tem cada vez mais dinamismo nas relações comerciais, busca-se soluções rápidas e eficazes e a mediação pode ser uma grande aliada. Posto isso, a Teoria dos Jogos11 pode ser aplicada à mediação, pois tem como objetivo analisar situações de interação entre agentes que tomam decisões12. Esse ramo da matemática e da economia estuda o modo como os "indivíduos tomam decisões quando estão cientes de que suas ações afetam uns aos outros e quando cada indivíduo leva isso em conta"13. Dessa maneira, sob a ótica da Teoria dos Jogos, quando o conflito é decorrente de uma interação específica e transitória, a melhor alternativa, ou seja, o equilíbrio de Nash14 é agir de forma mais competitiva, pois como não há interações futuras, não há incentivo para a cooperação15.  Por outro lado, quando as partes possuem relações pretéritas e/ou possuem interesse em manter ou mesmo melhorar esse relacionamento, o equilíbrio de Nash é atingido por meio da cooperação. Como a mediação lida com situações continuadas, o equilíbrio, consiste em cooperar com a outra parte. A cooperação nesses casos otimiza o ganho individual. A postura colaborativa buscada na mediação deve ser entendida como a capacidade de entender os interesses e necessidades da outra parte. Isso não implica em uma atitude altruísta de renunciar a seus próprios interesses. Pelo contrário, a mediação é capaz de potencializar os ganhos individuais. Essa postura colaborativa deve ser praticada não só pelos mediandos como também por seus advogados16, de forma a afastar o pensamento que, diante de um litígio sempre haverá uma parte vencedora e outra sucumbente17. Os advogados possuem um papel importante na mediação de assessorar seus clientes e auxiliar na sugestão de opções, por exemplo18. Considerando o caráter voluntário da mediação19, ela pode ser classificada como um jogo cooperativo. Essa cooperação é facilitada pelo mediador, que atuará auxiliando o diálogo e a troca de informações entre as partes. Assim, o mediador ajudará as partes a cooperarem para que possam chegar em soluções criativas que tragam benefícios mútuos. O seu papel será o de facilitar o diálogo20, auxiliando com que as partes revejam suas posições antagônicas para que adotem uma postura que favoreça a fluidez da comunicação21. Esse profissional irá colaborar para que as partes entendam quais são seus interesses, - suas motivações22 - e necessidades - o que é essencial para se sentirem satisfeitas e realizadas23.  Para isso, o mediador pode se valer de várias técnicas. Em um primeiro momento, cabe ao mediador acolher os mediandos por meio da escuta empática, criando um clima de inclusão e confiança24. Neste início do procedimento, o mediador, por meio de técnicas como a reformulação e elaboração de perguntas, auxiliará as partes a trazerem informações e clarificarem seus relatos, o que segundo Tânia Almeida pode ser feito: desmembrando a objetividade e subjetividade de seus conteúdos; a identificação e a percepção, por parte dos mediandos, de interesses comuns, complementares e divergentes contidos nas narrativas; o aceite ao convite à reflexão e à consideração do ponto de vista do outro.25 No decorrer do procedimento, por meio da realização de sessões conjuntas e/ou privadas, o mediador pode ajudar os mediandos na preparação para a fase de negociação, descobrindo qual o seu BATNA26 e WATNA27. Ter conhecimento das melhores e piores alternativas em relação ao acordo é essencial para que os mediandos, juntamente com seus advogados, possam analisar a pertinência das propostas de acordo. Além disso, o mediador assiste as partes com o teste de realidade das opções pensadas, consistente em ajudar os envolvidos a identificarem quais as vantagens e desvantagens de cada opção, sua exequibilidade, os custos envolvidos e como a solução seria operacionalizada na prática28. Assim, para o sucesso da mediação, é necessário o comprometimento das partes e dos advogados. Conforme o famoso Dilema do Prisioneiro29, o resultado da mediação não depende apenas da ação de uma das partes, mas também da interação das estratégias por elas utilizadas durantes as sessões realizadas30. Embora ao final do procedimento de mediação o acordo seja desejável, mesmo que ele não seja alcançado, com a ampliação do diálogo entre as partes, há uma redução da assimetria de informações. Como consequência, há uma melhor delimitação dos pontos controversos, o que pode ser útil caso a controvérsia evolua para uma arbitragem ou processo judicial futuro.31 Por se tratar de um método autocompositivo, eventual acordo resultante da mediação possui mais chances de ser cumprido visto que emanou da vontade das próprias partes32, sendo um processo construtivo33. Assim, as partes possuem maior controle sobre a situação. Em contrapartida, no processo judicial, um terceiro irá decidir a demanda impondo sua vontade às partes. A mediação, portanto, merece destaque dentre as formas de resolução de conflitos em virtude de seu custo-benefício, tanto sob a ótica econômica quanto emocional. Ao proporcionar "mais satisfação com o resultado diante do controle de riscos, gera[m] impacto positivo nas relações e facilita[m] a prevenção e gerenciamento de conflitos futuros, inclusive pela aprendizagem desenvolvida."34 III.  Considerações finais O objetivo do presente artigo foi demonstrar, em linhas gerais, como a Teoria dos Jogos pode ser utilizada para reforçar a aplicabilidade da mediação enquanto método adequado de resolução de controvérsias. A Teoria dos Jogos é capaz de explicar como a atitude cooperativa das partes em face de um litígio pode maximizar os ganhos para todos os envolvidos. Conforme demonstrado, mesmo que a mediação não resulte em acordo, ela se mostra um método eficiente para auxiliar na retomada da comunicação não violenta, além de mitigar as assimetrias de informações35. A mediação, por ter uma abordagem baseada em interesses e não em posições, é capaz de gerar maior satisfação das partes com o resultado, contribuindo para a pacificação social e melhorando as relações pessoais e comerciais, reduzindo inclusive a chance de litígios futuros[36].  À vista disso, cabe aos advogados assessorarem seus clientes na escolha de um método de solução de conflito que implique em redução dos riscos e dos custos. Portanto, à luz da Teoria dos Jogos, conclui-se que a opção de cooperar com a outra parte em contraposição a uma postura adversarial típica dos métodos heterocompositivos constituiu uma estratégia racional e eficiente sob a perspectiva financeira e emocional, capaz de otimizar os resultados esperados. _____________ 1 RENNÓ, Leandro; VIANA, Ana Luiza. A necessidade de preparação do advogado para o avança da mediação no Brasil. In: Revista Brasileira de Arbitragem, volume XVI, edição 62. Kluwer Law International: 2019, p. 30. 2 Art. 2º, Lei de Mediação. 3 Lei de Mediação: "Art. 5º Aplicam-se ao mediador as mesmas hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz." 4 NUNES, Antônio Carlos Ozório. Manual de Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 5 NASCIMENTO, Dulce Maria Martins. Relevância dos procedimentos extrajudiciais diferenciados para a resolução efetiva e eficaz de disputas empresariais. Utilização dos métodos dialógicos na prevenção de conflitos. In: Revista de Arbitragem e Mediação Empresarial, ano 1, n. 1. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2014, p. 231. 6 MENDES, Camila. Aplicabilidade da Teoria dos Jogos ao Instituto da Mediação. In: Revista Percurso Unicuritiba, v. 3, n. 41. Curitiba, 2021, p. 3. 7 BORBA, Janine Taís Homem Echevarria; FIBRANS, William Picolo; COSTA, Thaise Nara Graziottin. A mediação de conflitos: um olhar a partir da teoria dos jogos. In: Mostra de Iniciação Científica e Extensão Comunitária. Passo Fundo: IMED, 2016. p. 64. 8 FARIA, Luís Cláudio Furtado; PYRRHO, Beatriz; PAULINO, Luísa. A mediação e a Análise Econômica do Direito: a gradual mudança do papel do advogado diante de um litígio. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 71, ano 18. São Paulo: Editora RT, 2021, p. 3. 9 DA SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira. Do Risco Contratual à Estratégia do uso da Mediação e da Arbitragem. In: Revista de Arbitragem e Mediação, v. 66. São Paulo: Editora RT, 2020, p. 10; RENNÓ, VIANA, op. cit., p. 33; NASCIMENTO, op. cit., p. 226. 10 NASCIMENTO, op. cit., p. 227. 11 A Teoria dos Jogos se desenvolveu com os estudos dos matemáticos Emile Borel (1871-1956) e de John von Neumann (1903-1957), e ganhou destaque com a publicação do livro "Theory of Games and Economic Behavior", de Neumann e Oskar Morgensten, em 1944. 12 OSBORNE, Martin J. An Introduction to Game Theory. Disponível em:  Acesso em 17/9/2022.  13 BIERMAN, H. Scott; FERNANDEZ, Luiz. Teoria dos Jogos. 2 ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2011, p.4. 14 O equilíbrio de Nash é o ponto em que a melhor escolha de um jogador consiste na melhor escolha do outro jogador. 15 VITALE, Carla Maria Franco Lameira; SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves. Aplicação da Teoria dos Jogos na Mediação de Conflitos: o Equilíbrio de Nash como Estratégia de Maximização de Ganho. In: Revista do Fórum Nacional de Mediação e Conciliação, v.1. Rio de Janeiro: EMERJ, 2017, p. 13. 16 Código de Ética e Disciplina da OAB: "Art. 2º, parágrafo único: São deveres do advogado: VI - estimular, a qualquer tempo, a conciliação e a mediação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios;" 17 RENNÓ, VIANA, op. cit., p. 7. 18 RENNÓ, VIANA, op. cit., p. 7. 19 Lei de Mediação: "Art. 2º, §2º: Ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação." 20 NASCIMENTO, op. cit., p. 232. 21 ALMEIDA, Tânia. Caixa de Ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2014, p. 44. 22 FISHER, Roger; URY, William. Getting to Yes: Negotiating an agreement without giving in. Disponível em: Acesso em 22/9/2022. 23 NASCIMENTO, op.cit., p. 224. 24 NUNES, op. cit.  25 ALMEIDA, op.cit., p. 49. 26 BATNA é um acrônimo para best alternative to a negotiated agreement, em outras palavras é a melhor alternativa que a parte possui, fora da mediação, caso não consiga um acordo no procedimento. 27 Por outro lado, o WATNA é um acrônimo para worst alternative to a negotiated agreement. O WATNA consiste na pior alternativa fora da mesa de negociação. 28 ALMEIDA, op. cit., p. 55 29 O "Dilema do Prisioneiro" foi criado formalizado por Albert Trucker e consiste na análise das estratégias adotadas por dois suspeitos de cometer um crime que podem adotar postura ou de cooperação ou de competição entre eles para diminuir a pena a ser cumprida. 30 VITALE, SILVA, op. cit., p. 10. 31 KESSLER, Daniela Seadi; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. A mediação sob o prisma da análise econômica do direito. RJBL, Ano 5, n. 4, 2019.p. 52. 32 MORALES, Felipe Antônio Farah; ARMOND, José Bento Vasconcellos. A Mediação é o método mais eficiente para resolver conflitos? Uma análise econômica. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-ago-18/morales-armond-mediacao-resolucao-conflitos> Acesso em 17/9/2022. 33 RENNO, VIANA, op.cit., p. 34 34 ISOLDI, Ana Luiza. Mais processos judiciais: tudo que o Brasil não precisa em meio à pandemia. Disponível em: Acesso em 17/9/2022. 35 MENDES, op. cit., p. 3. 36 DA SILVA, op.cit., p. 12.
Primeiro ato: Sala de conciliação. Entram partes, prepostos e advogados. Todos homens. Acordo fechado. Qualificação das partes e surpresa! Um dos documentos era de uma mulher. Perguntei quem havia apresentado aquele documento e em seguida informei que ninguém poderia usar o documento de outra pessoa. Segundo ato: A explicação é muito simples. Um dos prepostos estava em transição de gênero e ainda não tinha o documento com o nome social. Por que inicio meu artigo com esta história? Porque, cada vez mais, a sociedade se deparará com este tipo de situação e precisará saber como agir. A surpresa que surge estampada no nosso rosto é o gatilho para um conflito que, com certeza, e se estivermos conscientes, pode e deve ser evitado para além do conflito que gerou a sessão. Sou mediadora e conciliadora há alguns anos e a história no início do texto se passou comigo. Um dos advogados ficou bastante intrigado e fez várias perguntas, extremamente respeitosas, devo dizer, e que demonstraram claramente o desconhecimento da nossa população sobre o assunto e a confirmação da importância de saber mais a respeito. O João (nome fictício) não se recusou a responder nenhuma pergunta. Pelo contrário, foi gentil e apesar de ser muito mais jovem do que o advogado, deu um show de maturidade. E o porquê desta história no início deste texto? Simples! O mundo está mudando e com ele nossos conceitos e posições.  A sociedade tem que estar preparada para o convívio pacífico e respeitoso com gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros que hoje estão representados em todos os aspectos da nossa sociedade e do trabalho, em diversos tipos de organização. Eles pertencem a todos os grupos econômicos, raciais e sociais como todos os seres humanos. Em muitas organizações, eles escondem suas identidades, permitindo que as pessoas pensem que eles são heterossexuais.  Uma pesquisa inédita na América Latina mostrou que 2% da população brasileira são de pessoas transgênero ou não binárias. O estudo foi desenvolvido pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foram entrevistadas 6 mil pessoas em 129 municípios de todas as regiões do país. Em números absolutos, essa população é de 3 milhões de indivíduos. Segundo os participantes do projeto, os resultados mostram a urgência de políticas de saúde voltadas para esse público. "Uma pessoa que nasceu mulher, mas que hoje se identifica com o gênero masculino, um homem trans, vai precisar de uma consulta ginecológica", disse a professora da Faculdade de Medicina de Botucatu Maria Cristina Pereira Lima que ressalta, ainda, que, em todo o mundo, a expectativa de vida das pessoas trans é mais baixa. "É preciso capacitar esses ginecologistas, capacitar os médicos, os enfermeiros, os fisioterapeutas, enfim, todos os profissionais para poderem atender essa pessoa em suas necessidades de saúde. Se a gente não fizer isso, esse homem ou mulher vai evitar os serviços de saúde por se sentir hostilizado e, aí sim, aumenta muito a mortalidade', afirmou."1 Na verdade, todos nós precisamos estar atentos para que a hostilidade, a ironia e o desrespeito não façam parte da rotina que impede que as pessoas sejam elas mesmas.  O número de pessoas transgêneros que escondem a sua identidade trans no trabalho aumentou drasticamente nos últimos cinco anos no Reino Unido, só para dar um exemplo concreto. De acordo com um relatório da empresa de recrutamento TotalJobs2, 65%, ou seja, quase dois terços das pessoas trans, acreditam que é necessário manter a sua identidade em segredo de colegas para se sentirem seguras e protegidas nos seus locais de trabalho.  Há cinco anos, o número rondava 50%. Em tais locais de trabalho, eles não se sentem livres nem seguros para ter fotos de seus entes queridos e famílias em suas mesas. Quando perguntados sobre seus fins de semana, eles provavelmente serão superficiais. Se o local de trabalho é hostil, eles podem ter que suportar piadas e comentários homofóbicos. Discriminação e preconceito podem tomar a forma de ameaças e abuso.  Quando as organizações toleram atitudes e comportamentos homofóbicos no local de trabalho, a produtividade cai. Criar um local de trabalho inclusivo significa eliminar comportamentos homofóbicos e adicionar uma atmosfera de tolerância e aceitação. Também inclui a valorização das relações familiares de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas transgênero da mesma forma que a organização faz para pessoas heterossexuais. Importante ressaltar que esta questão é tão séria que já tive oportunidade de presenciar a "auto homofobia", que pode ser traduzida no seu próprio não reconhecimento como LGBTQIA+. E, inclusive, já tive depoimentos em que as pessoas rezavam e pediam para acordar "diferentes". As pessoas podem escolher ser católicas ou não, ter cabelos loiros ou não, serem médicos ou não. Porém, a percepção de uma pessoa sobre seu gênero não é uma escolha, é um entendimento sobre a sua identidade e sobre como ela se reconhece enquanto indivíduo, independentemente do seu sexo biológico. Muito deprimente saber que a expectativa de vida da população T (Homens e mulheres trans e travestis) é equiparável a números da Idade Média. Como ressaltou Marina Ganzarolli, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP: "A população T no Brasil tem expectativa de vida de menos de 35 anos, isso é equiparável com a expectativa de vida da Idade Média, quando não tinha penicilina nem saneamento básico".3 É imprescindível ressaltar que em organizações inclusivas, indivíduos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros são capazes de serem eles mesmos, sem medo de discriminação ou recriminação. Eles trazem seus "EUS "completos para o seu trabalho. Eles são capazes de participar de conversas sobre família e amigos. Em uma atmosfera de aceitação e compreensão, as pessoas são capazes de oferecer toda a sua atenção e energia ao seu trabalho; moral e produtividade são altas. Discussões sobre orientação sexual são difíceis por uma série de razões. Eles envolvem falar sobre orientação sexual, valores diferentes, crenças concorrentes e opiniões diversas e nem todas as pessoas estão preparadas ou desejam conversar sobre este assunto. Em geral, esses tipos de discussões deixam as pessoas desconfortáveis, especialmente no ambiente profissional. Para alguns, suas comunidades religiosas têm visões definitivas sobre questões sexuais. O propósito de ter discussões sobre orientação sexual e diferenças é gerar conhecimento e compreensão sobre os outros para que eles possam ser socialmente integrados no local de trabalho. Na sociedade, homens e mulheres heterossexuais fazem parte de um grupo dominante. Gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros compõem o grupo secundário. As relações heterossexuais são vistas como "normais" e saudáveis, sendo essa percepção reforçada por filmes, programas de televisão e convenções sociais. Ser um membro do grupo subordinado significa que a pessoa estará sempre com vergonha, por exemplo, em reconhecer a sua atração pelo mesmo gênero. Não existem modelos que possam ajudar este grupo a se reconhecer.  E onde a mediação entra neste universo? A Mediação como um instituto em que os mandamentos mais importantes são o resgate da comunicação e a manutenção ou a restauração da paz nos relacionamentos, precisa ser treinada para que situações como a relatada no início deste artigo sejam vistas com naturalidade.  Se todos podem se casar, podem ter ou adotar filhos e pets, podem empreender, é verdadeiro pensar que todos podem se separar, podem como qualquer mortal brigar pela guarda dos mesmos filhos ou pets e desfazer vínculos profissionais.  Muito importante reconhecer no assunto referente a sexualidade e gênero nos institutos da Mediação e na Conciliação, a importância do uso da pergunta "Como você gosta de ser chamado(a)?" Por uma coincidência ou não, esta pergunta já está contemplada nas primeiras aulas da capacitação e, neste assunto especialmente, pode fazer toda a diferença. Fato é que esta pergunta, pode criar no ambiente de uma audiência uma facilidade e um conforto para que todos possam se sentir seguros nos passos que antecedem um acordo. É um importante ponto de partida. Já existem leis que reconhecem novos relacionamentos e nós não podemos desconhecer como agir com tranquilidade nestas situações. Mediadores e conciliadores devem estar prontos para a nova realidade que estamos vivendo. Um treinamento em que se converse sobre o enfrentamento das situações com este público nas audiências poderá tornar os mediadores e conciliadores muito mais produtivos e mais seguros no tratamento destes casos. Na verdade, o desconhecimento da correta forma de agir também pode ter como resultado uma mediação malfeita, aumentando ainda mais o conflito inicial. Procurando por informações nos mais diversos veículos posso afirmar, com alto nível de certeza, de que além de muitas pessoas não saberem nem o que é a mediação de conflitos, quando se fala em mediação de conflitos para os LGBTQIA+, a situação é ainda mais crítica. Não existem capacitações específicas e não se fala sobre isto.  Já passou da hora de termos atualizações com este objetivo. Vamos juntos mudar esse cenário! __________ 1 Transgêneros e não binários são 2% dos brasileiros, revela estudo. Acesso em: 12/07/2022. 2 "Trans employee experiences survey: Understanding the trans community in the workplace" (2021) - research conducted by Totaljobs | Totaljobs. Acesso em: 14/07/2022. 3 Os fatores que formam o orgulho da existência LGBTQIA+ no Brasil de 2021. Acesso em: 14/07/2022.  
À época de sua promulgação, a lei 11.101/05 ("LFRE") surgiu em substituição ao decreto-lei 7661/45 como uma relevante modernização dos procedimentos para endereçar e insolvência empresarial no Brasil, em linha com as diretrizes do Banco Mundial1 vigentes à época2. Muito embora não se discuta que a LFRE efetivamente modernizou o sistema de insolvência brasileiro, é certo que tanto os operadores da lei quanto o Poder Judiciário não pareciam estar preparados para a nova proposta, que consistia na busca de uma solução consensada entre devedor e credores sobre as formas de reestruturar a empresa e condições de pagamento dos créditos sujeitos ao processo. Não foi necessário muito tempo de vigência da LFRE para que se observasse uma elevada litigiosidade nos processos de reestruturação, que em muitos casos conduziu à absoluta ausência de negociação entre os envolvidos. Este cenário belicoso, que tende a aumentar o dispêndio de tempo e recursos das partes no procedimento, ao mesmo tempo em que arruína o valor dos ativos do devedor e prejudica a recuperação dos créditos, levou à crescente preocupação de especialistas e profissionais que atuavam na área com a desjudicialização dos processos de insolvência. Isto porque restou claro que a instauração de um clima de negociação e busca por uma solução consensada entre devedores e credores, que deveria ter surgido com o advento da LFRE, não aconteceria. Criou-se, ao contrário, um verdadeiro fla-flu: devedor e credores em lados opostos, atuando de maneira combativa para impor seus interesses ao longo do processo com base em decisões judiciais, independentemente dos efeitos que isto pudesse ter para as outras partes envolvidas no processo. Neste jogo, contudo, não há vencedores. De um lado, a empresa enfrenta a desvalorização dos seus ativos, perda de caixa, crescente perda da confiança de parceiros comerciais e o risco de falência. De outro, os credores têm gastos excessivos para custear as batalhas judiciais e, com o decorrer do tempo, chances cada vez menores de recuperar seus créditos de forma satisfatória. Nesse contexto, no último ano, entrou em vigor a lei 14.112/20, que reformou a LFRE, alterando profundamente seu conteúdo, notadamente no que diz respeito ao incentivo às formas alternativas de resolução de conflitos e ao equilíbrio de poderes entre devedor e credores. Com as alterações implementadas na LFRE pela reforma, houve uma modernização, correção de rumos e transferência do poder de decisão para os credores, que passaram a ter todos os instrumentos para definir como se dará o processo de insolvência do devedor, cabendo ao Judiciário arbitrar abusos de direito e ilegalidades. Não obstante os esforços do legislador para garantir que a LFRE fosse alterada de maneira a esclarecer que a natureza dos processos de insolvência deve ser de negociação e consensos, ao que tudo indica, este espírito ainda não foi absorvido. A mudança desta cultura é necessária e urgente. Com a transferência do poder de decisão dos aspectos mais relevantes da recuperação judicial aos credores, a judicialização de todas as questões, como ocorria antes da reforma, perde ainda mais o sentido. Com as ferramentas conferidas aos credores pela LFRE e a clara destruição de valor que decorre do tempo envolvido na condução de litígios, a solução mais eficiente para a crise estará, inevitavelmente, no atingimento de consenso entre devedor e credores. Cabe, então, encontrar soluções construtivas que permitam aos credores, hoje "donos da bola", recuperar da forma mais eficiente o seu crédito. Para que essas soluções sejam encontradas é preciso, acima de tudo, que as partes estejam verdadeiramente dispostas a negociar de forma colaborativa com o objetivo de chegar a um ponto comum sobre a forma de reverter a crise. Muito embora a LFRE tenha passado a prever mecanismos que permitem aos credores inclusive a imposição da conversão de seus créditos em capital, a verdade é que não interessa aos credores administrar uma série de empresas insolventes, de forma que esta não é uma solução viável na vasta maioria dos casos. Para endereçar a insolvência empresarial, é preciso, entre outros, verificar (i) as reais condições de operação da empresa; (ii) eventuais deficiências na estrutura de capital; (iii) competência e engajamento da administração; e (iv) geração de margem positiva nas suas operações. A recuperação nada mais é do que responder a essas perguntas e encontrar formas de solucionar as questões que levaram à crise. É neste momento que a mediação pode servir como poderosa ferramenta para facilitar as composições, tanto em juízo como fora dele. Incentivo aos meios alternativos de resolução de conflito na recuperação judicial Após a reforma, a LFRE passou a reconhecer a possibilidade de utilização da conciliação e mediação nos procedimentos de insolvência (art. 20-A e seguintes) e surgem as primeiras normas para regulamentá-la. Uma das novidades é o estímulo para que os juízes incentivem a conciliação e a mediação para superar conflitos no âmbito dos processos de insolvência3, o que vem sendo adotado com sucesso em no curso de processos de recuperação judicial envolvendo passivos bilionários e questões de alta complexidade, como se verificou nas recuperações judiciais da Concessionária Rodovias do Tietê4, Grupo Renova5, Grupo Abril6 e, agora, mais recentemente, de forma ainda tentativa, Samarco7. Nestes casos, os instrumentos alternativos de composição foram adotados durante o procedimento de recuperação judicial, para resolver questões complexas entre devedor, acionistas e credores, que levariam meses ou anos para atingir solução final caso se recorresse ao litígio. Com isso, as partes tiveram a oportunidade de colocar suas necessidades de maneira clara e encontrar, juntas, a melhor forma de endereçá-las. No caso da Concessionária Rodovias do Tietê, especificamente, adotou-se uma solução de mercado que culminou na assinatura de contrato de compra e venda de ações entre suas acionistas e credores, sendo que estes últimos passariam a ser cotistas de um fundo que deteria a totalidade das ações. O consenso entre acionistas e credores, neste caso, levou a uma possível solução satisfatória para os envolvidos, ainda pendente da aprovação da Agência de Transporte do Estado de São Paulo - ARTESP, o que seria praticamente impossível de se atingir por via judicial. Muito embora ainda sejam poucos os exemplos de casos em que a conciliação e a mediação foram adotadas no âmbito de processos de recuperação judicial, o fato de haver um histórico positivo em casos de alta complexidade envolvendo valores vultosos mostra empiricamente sua aplicabilidade em casos de insolvência os benefícios de seu uso. Mediação antecedente: questões práticas Além do incentivo à conciliação e mediação no âmbito da recuperação judicial - que embora não encontrassem previsão legal específica já podiam ser utilizadas antes da reforma -, a LFRE passou a prever em seu art. 20-B, §1º, a possibilidade de ajuizamento de ação cautelar de antecipação de tutela para suspender ações e execuções enquanto o devedor realiza mediação prévia à recuperação judicial com seus credores.8 Esta novidade teria o condão de evitar uma recuperação judicial ou, em casos mais complexos, ao menos permitir ao devedor que chegasse ao momento do ajuizamento com entendimento já encaminhado com seus principais credores ou acionistas. A aplicação da suspensão de ações e execuções para que se realize a mediação antecedente, contudo, ainda gera dúvidas. Há quem questione qual seria a documentação necessária para obter tal suspensão e há debate sobre o prazo pelo qual as ações e execuções estariam suspensas - se por 60 (sessenta) dias, como dispõe a LFRE, ou 30 (trinta) dias, como determina o Código de Processo Civil ("CPC") para ações cautelares. Com relação à documentação, a LFRE determina que "será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar"9. Considerando que os requisitos legais para requerer recuperação judicial estão expostos no art. 48 da LFRE, entende-se que a suspensão de ações e execuções para mediação antecedente deveria se dar mediante comprovação dos requisitos ali expostos, quais sejam: (i) não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; (ii) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial ou recuperação judicial com base no plano especial; (iii) não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos na LFRE; (iv) exercer regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos; e (vi) demais previsões contidas nos arts. 48 e 48-A da LFRE, conforme aplicável. Não seria o caso, neste momento, de apresentar a documentação completa para o ajuizamento do pedido de recuperação judicial, visto que a mediação antecedente visa, precisamente, permitir que se encontre solução alternativa ao ajuizamento do pedido de recuperação. Este espírito da lei é claro, mas fica ainda mais nítido quando se observa que o §3º do mesmo artigo 20-A determina que "Se houver pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, observados os critérios desta Lei, o período de suspensão previsto no § 1º deste artigo será deduzido do período de suspensão previsto no art. 6º desta lei". Com relação ao prazo de suspensão das ações e execuções previsto no §1º do art. 20-B da LFRE, também não se vislumbra dúvida sobre a aplicabilidade do prazo de 60 (sessenta) dias previsto na LFRE. A discussão atual decorre do fato de o §1º da LFRE determinar que a tutela de urgência seria concedida nos termos do art. 305 e seguintes do CPC, o que pode conduzir ao entendimento equivocado de que aplicaria o prazo de 30 (trinta) dias para ajuizamento da ação principal previsto no art. 308 do CPC10. Este entendimento não deve prosperar, seja pelo fato de o prazo de suspensão para fins da mediação antecedente à recuperação judicial disposto na LFRE ser específico para os fins da própria lei, em atenção ao princípio da especialidade, seja pelo disposto no §3º do art. 20-B, transcrito acima. Considerando que o tempo de suspensão previsto no §1º do art. 20-B é deduzido do stay period do devedor em caso de ajuizamento de pedido de recuperação judicial, resta claro que se trata de hipótese de antecipação dos efeitos do stay period, e não da suspensão prevista no art. 308 do CPC, não havendo razão para confusão sobre a aplicação dos prazos. Apesar de ainda haver estas e outras arestas a serem aparadas até que a mediação antecedente seja adotada de maneira mais frequente pelas empresas em dificuldades financeiras como forma de atingir consenso com seus principais credores e evitar ou ao menos facilitar um futuro processo de recuperação judicial, parece claro que este se mostra um caminho necessário de ser pavimentado e seguido para que se possa atingir soluções mais eficientes para os casos de insolvência no Brasil. ---------- 1 Principles and guidelines for effective insolvency and creditor rights systems: Introduction, executive summary and principles, de 1º de abril de 2001. Disponível aqui, acessado em 11/7/22, às 22h45. 2 "A aprovação da Lei de Falências e Recuperação de Empresas constitui um marco na agenda de aperfeiçoamento institucional que o governo vem implementando na economia brasileira. Em consonância com as melhores práticas adotadas internacionalmente (World Bank, 2001), a nova Lei estimula o investimento, o crédito e o emprego no Brasil". LISBOA, Marcos de Barros. Et. al. In PAIVA, Luiz Fernando Valente de. Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo : Quartier Latin, 2005. p. 41. 3 LFRE: "Art. 20-A. A conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores, e não implicarão a suspensão dos prazos previstos nesta Lei, salvo se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou determinação judicial". 4 Recuperação Judicial da Concessionária Rodovias do Tietê, envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 1,8 bilhão. Processo 1005820-93.2019.8.26.0526, em tramite perante a 1ª Vara do Foro da Comarca de Salto/SP. 5 Recuperação Judicial do Grupo Renova, envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 3,2 bilhões. Processo 1103257-54.2019.8.26.0100, em tramite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP. 6 Recuperação Judicial do Grupo Abril, Processo 1084733-43.2018.8.26.0100, em tramite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP. 7 Recuperação Judicial da Samarco S.A., envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 50 bilhões. Processo 5046520-86.2021.8.13.0024, em tramite perante a 2ª Vara Empresarial do Foro da Comarca de Belo Horizonte/MG. 8 "Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente: [...] IV - na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.  § 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015". 9 LFRE: "Art. 20-A, § 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015". 10 CPC: "Art. 308. Efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta) dias, caso em que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido de tutela cautelar, não dependendo do adiantamento de novas custas processuais".
quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Mediação e advocacia: quebrando paradigmas

Você já ouviu falar na Estratégia do Oceano Azul? Em poucas palavras, essa estratégia é uma metáfora que estipula um paralelo entre um oceano azul (representando um mar calmo e inexplorado, com menos perigoso e mais aberto a novas oportunidades para "navegar") e o oceano vermelho (cheio de tubarões, extremamente concorrido, onde existem mais ameaças).  Esse tema é explorado no famoso livro de W. Chan Kim e Renée Mauborgne  "A Estratégia do Oceano Azul"1. É aí que entra a oportunidade para os advogados saírem desse oceano vermelho, um mercado extremamente concorrido, com uma proporção altíssima de candidato para cada vaga de emprego. O resultado nós, do meio jurídico, sabemos: baixos salários e profissionais que muitas vezes não tem o seu devido valor reconhecido. Quero propor a você, leitor, quebrar paradigmas e mergulhar num oceano azul, pouco habitado, mas com muita oportunidade, onde você pode explorar um lado que talvez você nem saiba que exista. O nome desse oceano azul é a MEDIAÇÃO. A seguir, vou trazer alguns pontos para que você comece refletir e ver que há uma saída para quem quer se destacar na carreira e ainda não sabe como. E qual seria esse paradigma? Desapegar da ideia de que advocacia e mediação concorrem. Vou mostrar para você que essa ideia limita nosso mercado, limita os profissionais e prejudica a entrega do judiciário. Vamos refletir juntos? Você já parou para analisar os dados do Justiça em Números?2 Já teve a oportunidade de verificar os índices de judicialização no Brasil, o tempo médio que dura um processo e quanto se gasta anualmente com o uso da máquina do Judiciário? Apenas no período do auge pandemia da Covid-19, em 2020, a Justiça brasileira recebeu 25,8 milhões de novos processos. O tempo médio de tramitação dos processos no Brasil é de 3 anos e 6 meses, levando em conta todos os ramos do Judiciário. Além disso, nosso Judiciário é mais caro do que em qualquer outro país da OCDE, em termos de porcentual de PIB, segundo estudo do Prof. Luciano Timm "Propostas para uma reforma do sistema de Justiça no Brasil: como evitar a tragédia do poder judiciário"3 publicado no projeto Millenium Papers, do Instituto Millenium, o autor analisa e apresenta soluções para vencer alguns dos principais problemas do Judiciário: a morosidade, o excesso de litigância e a falta de acesso dos pobres à Justiça.  Sem dúvida, são dados alarmantes e que mostram um vício da sociedade de querer acionar o judiciário de qualquer forma. Isso sufoca nossa estrutura de acesso à Justiça e, infelizmente, aumenta o risco de ter um desfecho injusto. É nesse ponto que entra a Mediação. Desde que a Lei 13.140 começou a ser discutida, levou-se em consideração a capacidade da mediação de auxiliar e andar de mãos dadas com o Judiciário, conseguindo, nos últimos anos, ganhar espaço principalmente no meio empresarial, mostrando sua capacidade de trazer soluções que diminuem gastos financeiros e desgastes psicológicos e de relacionamento entre as partes. Eu quis abordar esse cenário em minha introdução para trazer uma reflexão em torno do papel do mediador e do advogado. São antagônicos? São complementares? Existe uma ameaça mútua a ambas as profissões? Existe algum entrave ético? Como advogada e mediadora, quero apresentar a mediação como ferramenta poderosíssima que pode, como falei anteriormente, auxiliar o nosso saturado Judiciário, sem prejudicar ninguém. Pelo contrário, serve como um diferencial comercial para ser apresentado a seus clientes. Há décadas que mediadores e advogados constituem parcerias em países com uma cultura de resolução de conflitos de forma pacífica mais desenvolvida. Trago aqui uma experiência pessoal que tive quando migrei da advocacia para a mediação, quando viajei aos Estados Unidos para pesquisar, estudar e conhecer profissionais mediadores. Tive a oportunidade de conhecer grandes referências do assunto mediação e fiquei encantada com a filosofia que o americano desenvolveu ao longo do tempo de pensar de forma coletiva e prática, com o objetivo de solucionar conflitos de forma célere e menos desgastante para todos. E foi lá que pude constatar que a mediação é uma oportunidade para os advogados como uma forma de oferecer um diferencial aos seus clientes. Dwight Golann4, um dos maiores professores de mediação que conheço e autor de 5 livros sobre diversos temas relacionados a mediação, resumiu muito bem essa interação em uma entrevista que me concedeu: "De certa forma, é como numa dança - os advogados pedem certas coisas aos mediadores, os mediadores têm que decidir se vão atender aos pedidos, e, caso positivo, como e quando. Contudo, ainda me surpreendo ao constatar que, há 30 anos, quando comecei, advogados americanos sabiam pouquíssimo sobre mediação. Hoje, os advogados recorrem à mediação praticamente em 25% a 65% das causas, por iniciativa própria, sem ordem judicial, e estão dispostos a pagar bem aos mediadores para lhes assessorar. Isto acontece porque os advogados acreditam que mediadores podem contribuir muito para o seu trabalho e garantir maior satisfação aos clientes." D. Golann também me trouxe alguns exemplos de como isso pode acontecer na prática: "Eles (advogados) podem fazer isso, naturalmente, em sessões conjuntas. Mas podem também atribuir tarefas, mandar mensagens para o mediador levar para o tomador da decisão na sala de reuniões ao lado, na outra sala de caucus. Advogados podem ser mais duros na barganha (negociação) quando há um mediador na sala, porque sabem que ele será capaz de amortecer o impacto da estratégia. Advogados usam mediadores também para lidar com clientes emocionalmente mais sensíveis, para dar notícias desagradáveis, e, especialmente, para tornar as pessoas responsáveis, nas devidas medidas, por decisões difíceis, mas necessárias para o acordo." Essa visão refere-se ao uso de mediadores de forma estratégica por parte de advogados, mas essa cooperação pode existir na via contrária, com mediadores sempre aconselhando seus clientes a consultarem seus advogados antes, durante e depois das mediações. A participação dos advogados durante todo o processo de mediação, desde a escolha do mediador, até a conclusão do acordo, é muito importante para passar segurança às partes e esse papel de "conselheiro" ajuda bastante a estreitar os laços entre o advogado e seu cliente. Dadas as devidas diferenças culturais e práticas atuais entre o que é feito nos EUA e aqui no Brasil, é de se levar em consideração que existe sim um potencial de aprimoramento na prestação de serviços de advogados e mediadores e esse potencial precisa ser difundido entre esses profissionais. O conhecimento das técnicas e do ofício do mediador abre um horizonte de possibilidades para os advogados. Não podemos nos deixar levar por lendas de que "os EUA é outro mundo, lá a mentalidade é outra devido a cultura". Lembre-se que a interação entre mediadores e advogados não aconteceu do dia para noite. Foram décadas de aprimoramento, de diálogo, de experimentações para se chegar no nível que é hoje e ter os resultados que eles conquistaram. Nós podemos chegar lá também e quando chegarmos, poderemos ver de forma concreta os benefícios que isso trará para nosso sistema judicial, para nossa sociedade e para nossa economia. Mediadores e advogados são duas faces da mesma moeda. São profissionais que se complementam e que fazem parte de uma engrenagem muito maior que pode mudar o rumo do nosso país e trazer justiça para quem precisa. Vamos virar essa chave juntos? Vamos, juntos, ajustar o nosso mindset e transformar o nosso país numa referência em resolução de conflitos? A oportunidade está aí e os primeiros que agarrarem com unhas e dentes, lá na frente colherão os frutos e terão seu Oceano Azul. __________ 1 KIM, W. Chan Kim, MAUBORGNE, Renée. A Estratégia do Oceano Azul: Como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante. São Paulo: Editora Sextante, 2019. 2 BRASIL.. Justiça em números 2021 / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 2 mai. 2022. 3 TIMM,Luciano. Estudo "Propostas para uma reforma do sistema de Justiça no Brasil: como evitar a tragédia do poder judiciário" disponível aqui. Acesso em 30 de jun de 2022 4 GOLANN, Dwight. Professor na Suffolk University Law School e autor de diversos livros referência na mediação como:  Mediating Legal Disputes: Effective Strategies for Lawyers and Mediators.
Imagine que estamos em uma grande sala de reunião com um grupo de advogados acompanhados de seus clientes. São casos e situações conflitivas independentes e que não possuem relação entre si. Todos têm a sua frente um formulário simples, onde devem marcar com um "x" a sua escolha a partir do seguinte enunciado: "Marque as opções que entende serem as que melhor podem atender aos seus interesses (ou os interesses de seu cliente) na situação conflitiva em que se encontra." Logo abaixo, duas colunas com algumas perspectivas de resultados. Na primeira coluna, opções que sinalizam possibilidades de resolver a controvérsia dentro de um prazo curto e razoável, com custos reduzidos e não escaláveis, preservando o relacionamento com o outro lado e mantendo o controle sobre o resultado a partir de soluções efetivas, duradouras e que põem fim à disputa com a possibilidade de gerar valor para as partes envolvidas. Na segunda coluna, perspectivas de prazos dilatados em função dos trâmites e limitações dos tribunais, novas ações judiciais a partir das ações iniciais, despesas crescentes características da tática adversarial, relações com desgaste progressivo e com alto risco de rompimentos, resultados favoráveis incertos e possibilidades limitadas ou inexistentes de criar valor e gerar ganhos de longo prazo. Em um ambiente controlado, como é o caso dessa reunião hipotética, qual coluna seria mais provável de ter a maior frequência de marcações como reflexo da escolha dos clientes e seus advogados? O meu palpite é que seria, de longe, a primeira. Com raríssimas exceções, seria improvável que, diante de uma situação conflitiva, alguém escolhesse uma linha de ação que fosse a mais onerosa financeiramente, levasse um tempo consideravelmente maior para ser resolvida, diminuísse ou eliminasse o controle sobre o resultado, piorasse as relações e gerasse soluções com baixos níveis de satisfação - sobretudo no contexto comercial e empresarial. A pergunta que surge, quase naturalmente desse cenário, é: por qual motivo, ainda hoje no Brasil, clientes e seus advogados tendem a escolher a linha de ação antagonística que leva à concretização das perspectivas relacionadas na segunda coluna? Por quê a negociação feita em bases construtivas é negligenciada em favor de processos adversariais desgastantes e demorados? Uma hipótese, que venho constatando ao longo desses mais de vinte anos de experiência no contexto da resolução de disputas, está relacionada às percepções, por parte de advogados e seus clientes, sobre poder e controle.  Utilizar a via consensual traz consigo a sensação de diminuição de poder para satisfazer seus interesses e de perda de controle para alcançarem os resultados que almejam. Abrir para negociações pode ser arriscado. Caso seja feita a escolha por negociar, é importante garantir que o resultado seja favorável, independentemente se o outro lado se sinta satisfeito. Do contrário, é melhor discutir as questões em juízo ou em um contexto arbitral. Esse é o modelo mental que tende a rondar o pensamento de advogados e seus clientes quando confrontados com a possibilidade de tentar resolver suas controvérsias amigavelmente. Minha aposta, e confirmada nessas duas últimas décadas em atendimentos que faço e que vejo outros colegas fazerem, é que tentar resolver uma controvérsia ou mesmo dar início a um processo de negociação de um acordo por meio da mediação, ao contrário do que se pode pensar, aumenta o poder de advogados e seus clientes na busca por resultados satisfatórios. Por se dar em um ambiente eminentemente negocial, a mediação pode reduzir o tempo para se chegar a uma solução que faça sentido para todos os envolvidos, com custos reduzidos e preservando a relação. Justamente a escolha racional de melhor custo-benefício sinalizada na hipotética reunião proposta no início desse artigo. A mediação permite aos clientes e seus advogados se beneficiarem de sete fontes de poder e controle para satisfazer seus interesses. Tais fontes reduzem as chances dos interlocutores se verem "forçados" a escolherem as vias mais congestionadas e onerosas para resolverem suas disputas. Proporcionam uma estrutura técnica e racional para conduzirem suas negociações com segurança, aproveitando ao máximo as oportunidades de geração de valor a partir das naturais diferenças que fazem surgir os desacordos. A primeira e mais importante fonte de poder que pode ser potencializada em negociações assistidas por terceiras partes neutras são os interesses dos interlocutores. Entendidos como o que mais importa conseguir em uma determinada situação conflitiva, os interesses são os motivadores dos comportamentos e atitudes das partes e de seus advogados. Interesses não atendidos configuram as questões e os problemas que precisam ser resolvidos. Compreendê-los de maneira precisa e objetiva permite que soluções sejam pensadas para poder satisfazê-los. Todo o processo desenvolvido em uma mediação é voltado para que as partes, com o auxílio de seus advogados, consigam alcançar opções que satisfaçam seus interesses. Se as partes permanecem presas em suas posições iniciais, aumentam as possibilidades de impasse e de terem que tentarem obter o que precisam fora da mesa de negociação, em um processo judicial ou arbitral. A segunda fonte de poder que as mediações oferecem é a possibilidade de gerar opções de ganhos recíprocos dentro de um ambiente propício para esse propósito. As ferramentas e técnicas utilizadas pelos mediadores ajudam os interessados a desbloquearem seus processos criativos de geração de soluções. Umas das principais vantagens que a mediação oferece nesse sentido é garantir um espaço onde é possível propor opções sem a necessidade das partes terem que se comprometer com elas em um primeiro momento. Essa condição, por si só, aumenta o poder de criatividade das partes, deixando-as livres para imaginar e desenvolver hipóteses que podem fazer sentido para uma solução consensual que ainda não havia sido cogitada por cada lado. À medida em que os interesses das partes vão ficando mais claros e identificáveis, a geração de opções que resolvem cada item da pauta também ganha força, uma vez que elevam seu grau de aderência ao que é importante para cada lado. Utilizar critérios objetivos para sustentar as opções que são trazidas pelas partes é uma terceira fonte de ampliação de poder que as mediações podem potencializar. E justamente os advogados é que que podem ser os maiores incentivadores e catalizadores para a utilização de critérios que legitimam as propostas que são feitas à mesa. Por sua visão técnica e racional, os advogados podem ajudar seus clientes a organizarem suas argumentações com base em critérios independentes e externos à vontade de seus clientes, permitindo que o outro lado compreenda a força do que está sendo pedido pelos seus méritos. Jurisprudência, índices de mercado, regras e costumes e informações advindas de autoridades ou experts são alguns exemplos de critérios objetivos que podem ser utilizados para justificar uma opção ou mesmo explicar o motivo de uma proposta ser sinalizada em uma determinada direção. Nenhuma dessas três primeiras fontes de poder citadas podem ser aproveitadas de maneira produtiva e construtiva sem que as duas fontes seguintes sejam levadas em consideração. São pilares essenciais que sustentam os processos efetivos de mediação, onde as conversas sobre os interesses e como eles podem ser satisfeitos de maneira sensata ocorrem. Essas fontes são a relação e a comunicação. Relações positivas e funcionais de trabalho ampliam o poder das partes e seus advogados em uma negociação. É significativamente difícil ou mesmo impossível dar início a negociações onde inexiste um mínimo de confiança e respeito entre as partes. Aceitar participar de uma mediação pode ser, por si só, interpretado como um ato de boa fé, onde a intenção é trabalhar junto com o outro lado para encontrar soluções que sejam mais vantajosas do que aquelas que seriam alcançadas em um tribunal ou em uma arbitragem, dado o tempo, os custos e o esforço exigido já comentado aqui. Por mais difícil que seja o histórico do relacionamento entre as partes, os advogados podem reduzir e mesmo neutralizar as fontes de desgaste entre seus clientes ao dar atenção aos elementos que facilitam a construção de uma relação positiva de trabalho. Essa missão pode ser suportada e potencializada pelo trabalho dos mediadores, treinados e preparados justamente para criar e manter uma atmosfera positiva de interação para que as conversas sejam produtivas e ajudem as partes a se movimentarem em direção ao consenso. Existe muito poder em investir na retomada ou mesmo no aperfeiçoamento de uma relação entre duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas, principalmente se estas negociam umas com as outras continuamente. O que podemos chamar aqui de nossa quinta fonte de poder para alcançar resultados que podem ser considerados como positivos por todos os interlocutores é um elemento que, simplesmente, define o próprio ato de negociar com sucesso: a comunicação efetiva. Oportunamente, é muito frequente que esse mesmo elemento seja utilizado para definir a atividade principal a que a mediação se propõe: ajudar as partes em conflito a se comunicarem de maneira produtiva para tentarem resolver suas diferenças. Vejo muitos advogados escolherem a mediação e persuadirem seus clientes a aceitarem essa escolha justamente pela perspectiva de poderem reverterem um processo de interação onde a comunicação foi interrompida ou está muito prejudicada. Falar, ouvir e fazer perguntas de modo apropriado amplia a capacidade das partes e seus advogados para gerar compreensão sobre interesses, preocupações, impedimentos, limites, necessidades, desejos e medos de cada lado. Por si só, esse é um movimento que, potencializado pelos mediadores, faz da troca de informações produtiva a base para as soluções mais criativas que podem dar fim a uma controvérsia, seja qual for o seu nível de complexidade. Erroneamente, no entanto, muitos clientes entendem que romper a comunicação direta com o outro lado é sinal de poder. Nada poderia ser mais lesivo para uma relação negocial positiva, aumentando as chances de impasse e consequente abertura para início ou continuidade de um processo adversarial, com todas os riscos já descritos no início desse artigo. A penúltima fonte de poder em uma negociação está relacionada com a estruturação de um compromisso inteligente. O que isso quer dizer? Que se ao final de um processo de mediação os interlocutores chegaram a um consenso sobre as opções trazidas à mesa, é preciso traduzir os pontos de convergência em um compromisso que seja, ao mesmo tempo, realista, suficiente e operativo. A mediação é uma excelente oportunidade para construir acordos que sejam possíveis de serem colocados em prática pelas partes, que abranjam todos os pontos que as partes querem ver resolvidos e que especifiquem o quê, quando, como, quem, quanto e todos os aspectos práticos que precisam ser concretizados. Por fim, o sétimo e último ponto que pode ser utilizado como uma das maiores fontes de poder para resolver controvérsias de modo consensual está ligado à melhor alternativa à negociação de um acordo, um conceito técnico mais conhecido pelo acrônimo MANA. Significa ter claro o que pode ser feito para que o cliente tenha seus interesses atendidos e quais as reais chances disso acontecer caso as partes não cheguem a um consenso na negociação. Se o advogado percebe que seu cliente tem uma MANA muito forte, pode incentivá-lo a persuadir o outro lado para participar de uma mediação e poupar tempo e esforço em um processo judicial. O contrário também pode ser verdadeiro. Se o advogado tem ciência de que o cenário para o seu cliente não é tão favorável fora da mesa de negociação, ele também pode incentivar seu cliente a entrar e a permanecer em uma negociação o máximo possível para afastar a possibilidade de ter que recorrer a um "Plano B" sem muitas perspectivas de sucesso. Ter uma percepção clara e realista da melhor alternativa fora da mesa de negociação traz muito poder às partes, sobretudo para poder avaliar quando vale ou não à pena aceitar uma proposta ou abrir mão dela. A mediação, em muitas ocasiões, é o cenário perfeito para fazer essa avaliação. Os sete elementos citados aqui como fontes de poder para advogados e seus clientes aumentarem as suas chances de sucesso na resolução de suas disputas formam a estrutura de um modelo desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard no final da década de 1970 e início da década seguinte. Foi e vem sendo utilizado tanto para construir acordos de paz entre nações quanto para resolver disputas societárias, empresariais, comerciais, comunitárias, conjugais e em todas as esferas onde a interação humana acontece. Tanto na condição de cliente como na de advogado, se você também se sentiu propenso a marcar as opções da primeira coluna no formulário colocado à sua frente na hipotética reunião que propus no início desse artigo, então é bem possível que você seja convidado a colocar em prática as sete fontes de poder citadas aqui. Do contrário, é bem possível que, mesmo sem querer, esteja fazendo a escolha que gera os efeitos da segunda coluna o que, do ponto de vista tanto econômico quanto relacional, é a escolha menos vantajosa.
A judicialização da saúde vem chamando a atenção há algum tempo. Dados do CNJ apontam um acréscimo de 130% nessa seara, nos últimos 10 anos. Juízes veem-se na delicadíssima condição de concederem ou não medidas efetivas àqueles que batem à porta do judiciário para terem, efetivado e garantido, o direito à saúde. Processualmente falando, há um embate entre a necessidade individual à prestação, por parte do Estado, para efetivar o direito à saúde versus políticas públicas que visam atender o maior número de pessoas. Logo nos primeiros anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, os juízes deferiam as demandas na saúde sem maiores preocupações, obrigando os entes federados ao cumprimento do seu dever prestacional para com os cidadãos; contudo, as repercussões ao orçamento público da União, dos Estados e dos Municípios passaram a ser consideradas, limitando a concretização da saúde do indivíduo, em prol do atendimento universal à saúde. Aquele que necessita de atendimento médico, de remédios, ou de tratamento resta, individualmente, desassistido e, com isso, sua dignidade acaba atingida pela falta de suporte pelo Estado; por outro lado, os entes federados, muitas vezes, não comportam destinar recursos para atender àquela pessoa singularmente considerada sem desabrigar os demais governados. Diante disso, tem-se choque entre direitos fundamentais que pode não ser atendido, pela via judicial, ante o posicionamento atual dos Tribunais. De fato, após o ativismo judicial destinar recursos a pessoas necessitadas, passou-se a questionar a intervenção do poder judiciário nas contas públicas, e iniciou-se um movimento, coordenado pelo CNJ, em oferecer parâmetros aos julgadores para, em nome do interesse individual, não sacrificassem o interesse coletivo, desviando recursos de políticas públicas estruturadas por Estados e Municípios destinadas à saúde de todos. Sendo um debate constitucional, o Supremo Tribunal Federal realizou a Audiência Pública número 4, em 2009, tratar da judicialização da saúde, no intuito de ouvir os entes federados, e sociedade civil, resultando em parâmetros para os juízes concederem ou não medicamentos e tratamentos quando provocados de forma individual, limitando as decisões que, antes, eram focadas nos indivíduos postulantes de seu direito à saúde. Dessa sorte, foram criados critérios para deferimento das medidas sanitárias pelo Supremo Tribunal Federal, como o pertencimento ou não do medicamento postulado à lista de medicamentos padronizados pelo Ministério da Saúde em oferta no SUS - dentre outras limitações, seguidas que foram pelo Superior Tribunal de Justiça em julgados da mesma matéria. O CNJ convocou Jornadas da Saúde, fixando balizas para os juízes se pautarem na hora da ponderação de direitos fundamentais em choque. Muito se tem escrito sobre o tema sob a perspectiva da interferência do Judiciário no orçamento dos entes federados, em razão das decisões favoráveis na área de saúde que acabam por comprometer valores significativos, e já previstos em lei orçamentária para consecução de políticas públicas; contudo, há uma carência de informação, e desenvolvimento de alternativas pela via da autocomposição. Vale dizer: pouco se fala ou escreve sobre mediação na saúde, e a possibilidade do auxílio deste método para efetivar o direito à saúde. Assim, procurou-se trazer uma via alternativa para aquele cidadão que, inobstante precisar do auxílio governamental, já tem ciência de que não o obterá via judicial, haja vista as limitações e balizas definidas. Assim, no intuito de oferecer uma saída viável, e em sintonia com o Novo Código de Processo Civil, e a Lei de Mediação, desenvolve-se a pesquisa a seguir, inovando nos atores que serão chamados a compor a mesa de negociação: entidades privadas capazes de promoverem, em lugar do Estado, a necessidade do jurisdicionado. MEDIAÇÃO: MEIO ADEQUADO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS A Mediação de Conflitos é um método relativamente jovem no Brasil, por assim dizer, como via importante de solução de controvérsias em que as próprias partes decidem os rumos do conflito instaurado entre elas. Prevista, no ordenamento jurídico brasileiro, pelo Código de Processo Civil de 2015, pela Lei de Mediação, sem contar a Resolução 125 do CNJ, a Mediação de Conflitos se distingue dos outros meios consensuais de solução, como a Conciliação1 e a Negociação Jurídica, por desenvolver o diálogo de forma mais ampla, mais completa, acolhendo as informações e as perspectivas das pessoas envolvidas de forma mais integral. Dentre os princípios orientadores da Mediação, elencados no artigo 2º. da lei 13.140/052, destacam-se, para fins deste artigo, a imparcialidade do mediador, e a autonomia da vontade das partes. Baseada no tripé processo, participantes e mediador3, a Mediação é viva por assim dizer, como é vivo também o diálogo entre as pessoas. Com a habilidade do mediador, terceiro neutro à questão controversa, e que se mantém imparcial no decorrer da sessão, pois a imparcialidade é um exercício dinâmico de não se escolherem lados, nem vencedores ou vencidos, o mediador, com as técnicas de comunicação, vai auxiliar nesse diálogo. De forma gradual, as pessoas vão se restabelecendo de autoconfiança (empoderamento, para os americanos4), e deixando as posições iniciais para se abrirem a novas possibilidades surgidas a partir da conversa. "A Mediação se propõe a refletir sobre a complexidade da controvérsia entre os que dela participam. Não busca resgatar os lações eventualmente perdidos, mas sim o vivenciar de novos elementos de mudanças"5. Apesar de parecer algo simples em sua conceituação, é complexo por administrar diferentes pontos de vista, pretensões a priori antagônicas, e ânimos muitas vezes alterados. Contudo, a presença do mediador ameniza as tensões iniciais, pois as partes confiam em quem escolheram, e desejam sua intervenção, sem interferência. A MEDIAÇÃO EXTRAJUDICIAL E AS DEMANDAS ENVOLVENDO O DIREITO À SAÚDE: ECONOMIA PARA OS COFRES PÚBLICOS PELO CONVITE ÀS ENTIDADES DA SOCIEDADE CIVIL A Mediação Extrajudicial de Conflitos acontece de forma privada, seja por meio de mediadores ad hoc, que a realizam nos escritórios de advocacia por exemplo6, seja por meio de Câmaras de Mediação. Nesses ambientes, sem o peso (por assim dizer) de um processo judicial em curso, as partes envolvidas (mediandos) sentem-se mais à vontade para negociarem e transigirem, auxiliados pelo mediador, terceiro neutro que se mantém imparcial ante o desenrolar da conversa. Nos conflitos envolvendo o direito à saúde, e o orçamento público dos entes federados, a Mediação pode ser a ponte para que soluções sejam prospectadas, equilibrando os interesses contrapostos. Nessa dinâmica, ao invés da tradicional propositura de ação judicial, aquele(s) que necessita de prestação na área da saúde buscaria a Mediação de Conflitos em um Centro ou Câmara destinado à Saúde, promovido e guarnecido por um consórcio entre Estado e Município, por exemplo. Além disso, neste artigo, propõe-se que, ao lado do ente federado, esteja um representante da sociedade civil que, em razão de sua capacidade financeira ou tecnológica, de influência nos setores sociais ou mesmo cuja missão seja dirigida à consecução da saúde, possibilite auxílio e solução àquele que tem o direito à saúde violado ou ameaçado. Pode-se pensar em convidar para a Mediação Organizações Sociais7, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP's)8, laboratórios, planos de saúde, dentre outros que, tendo vista sua responsabilidade social, venham a compor essa mesa de negociação, com vistas à realização do direito à saúde de um ou mais cidadãos, em colaboração com o Estado para a efetividade da dignidade humana, valor máximo do nosso ordenamento jurídico, e do Estado Democrático de Direito, como dito anteriormente. Processualmente falando, tais entidades, que não poderiam compor o polo passivo de uma  demanda judicial, por não integrarem a administração pública e, assim, não estarem diretamente vinculados ao dever prestacional que deriva do direito fundamental à saúde, podem perfeitamente comporem a mesa de Mediação se aceitarem o convite, por aplicação dos princípios informativos da autonomia da vontade das partes e busca do consenso, admitindo pessoas, físicas ou jurídicas, que possam solucionar a questão - basta que aceitem o convite endereçado pelo mediador a cada uma delas. O que se propõe aqui é disruptivo, mas factível: representantes da sociedade civil podem dar a sua contribuição, e colaborar na solução do conflito que aflige a pessoa, ou o conjunto de pessoas. Organizações Sociais e OSCIP's9, laboratórios, hospitais, clínicas, planos de saúde e mesmo médicos podem ser convidados a participarem de uma Mediação para prospectarem, juntamente com aquele cujo direito à saúde está ameaçado ou violado, soluções viáveis e que não pesem ao erário público. Para isso, evidentemente, antes será necessário por parte do ente público garantir vantagens, ainda que simbólicas, a tais entidades, como um selo de qualidade ou de reconhecimento social do empenho daquela instituição aceitante do convite e comprometida com a solução. As vantagens ou benesses a esses atores sociais podem ser variadas, inúmeras, seja em termos de redução de alíquota tributária (evidentemente com lei específica para tal), de selo de qualidade, de promoção na mídia, dentre tantas outras que se pode pensar. O fato é que tais instituições estarão cumprindo uma função social, trabalhando em colaboração com o Estado, para a consecução dos objetivos da Constituição Federal de 1988, perante a qual estamos todos obrigados, como cidadãos. BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021. BRASIL. Conselho Federal da OAB. Provimento 196, de 20 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso: 15 Nov 2021. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. "Pós-pandemia: mediação pode prevenir judicialização na Saúde". Disponível aqui. Acesso em 14 nov 2021 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n.100, de 16 de junho de 2021. Recomenda o uso de métodos consensuais de solução de conflitos em demandas que versem sobre o direito à saúde. Disponível aqui. Acesso em: 15 nov 2021. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 nov 2021. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em 15 nov 2021. BRASIL. Lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021. BRASIL. Lei 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.    BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível aqui. Acesso em 13 nov 2021. BRASIL. Lei 13.140, de 26 de junho de 2015. Lei de Mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Disponível aqui. Acesso em 13 nov 2021. BUSH, Robert A. Baruch, e FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation: The Transformativ Approach to Conflict. Nova Yorke: Jossey-Bass, 2005. ___________ 1 A Mediação "também difere da conciliação, que se constitui em uma tentativa de acordo com o auxílio de um terceiro imparcial", que sugere, busca resolver com e pelas partes muitas vezes. BRAGA NETO, Adolfo. BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.61. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021. 2 Art. 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios: I - imparcialidade do mediador; II - isonomia entre as partes; III - oralidade; IV - informalidade; V - autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII - confidencialidade; VIII - boa-fé. 3 BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.51. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021. 4 Sobre os participantes: "Eles se movem da fragilidade, tornando-se mais calmos, esclarecidos, confiantes, articulados e, o mais decisivo - em geral, trocam a fragilidade pela força" - em outras palavras da fraqueza para o empoderamento." BUSH, Robert A. Baruch, e FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation: The Transformativ Approach to Conflict. Nova Yorke: Jossey-Bass, 2005, p.55. 5 BRAGA NETO, Adolfo. A Mediação e a Administração Pública. 2020. Dissertação. (mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.59. Disponível aqui. Acesso em 10 nov 2021. 6 Art. 1º Constitui atividade advocatícia, para todos os fins, a atuação de advogados como conciliadores ou mediadores, nos termos da Lei n. 13.140/2015, ou árbitros, nos moldes preconizados pela Lei n. 9.307/1996. BRASIL. Conselho Federal da OAB. Provimento 196, de 20 de março de 2020. Disponível aqui. Acesso: 15 Nov 2021. 7 Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei. BRASIL. Lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021. 8 Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos que tenham sido constituídas e se encontrem em funcionamento regular há, no mínimo, 3 (três) anos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. BRASIL. Lei 9.790, 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em 15 Nov de 2021.    10 "As 'organizações sociais' e as 'organizações da sociedade civil de interesse público', ressalte-se, não são pessoas da Administração indireta, pois, como além se esclarece, são organizações particulares alheias à estrutura governamental, mas com as quais o Poder Público (que as concebeu normativamente) se dispõe a manter 'parcerias' - para usar uma expressão em voga - com a finalidade de desenvolver atividades valiosas para a coletividade e que são livres à atuação da iniciativa privada, conquanto algumas delas, quando exercidas pelo Estado, se constituam em serviços públicos." MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Ed. Malheiros, 29ª.Ed., p.227.
Segundo o relatório "Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil de demandas, causas e propostas de solução", elaborado no ano de 2018 pelo CNJ, houve um crescimento acentuado de aproximadamente 130% no número de demandas de primeira instância relativas ao direito à saúde entre os anos de 2008 e 2017. Esse crescimento, conforme relatórios do "Justiça em Números" publicados no mesmo período, é muito superior aos 50% de crescimento do número total de processos de primeira instância. Uma parte considerável das demandas por medicamentos - entre 25% e 30% do total de fármacos demandados judicialmente - diz respeito àqueles já previstos nas listas oficiais do Sistema Único de Saúde Brasileiro (SUS), o que equivale a concluir que entre 70% e 75% dos medicamentos proclamados nas ações judiciais dizem respeito a medicamentos não padronizados pelo SUS. Pela análise das fundamentações e relatórios, chegou-se à conclusão de que 13%, em média, das decisões versavam sobre pleitos coletivos, o que equivale afirmar que 87% da judicialização é atinente a pedidos feitos individualmente, sem ter em perspectiva as possibilidades coletivas ou dos administrados em geral. Sobre o nível socioeconômico dos demandantes, cerca de um quinto (20%) das demandas foram mobilizadas por pessoas em suposta situação de vulnerabilidade econômica, considerando-se a prevalência média das referências, nos acórdãos, às chaves de busca "representação pela defensoria pública ou advogado dativo", "justiça gratuita", "hipossuficiência" e "insuficiência de renda" , o que pode configurar em priorização de menos necessitados em desfavor dos mais necessitados da atuação estatal num cenário de escassez de recurso públicos. A maior parte dos medicamentos e utensílios pedidos nas ações individuais levados a efeitos no Poder Judiciário brasileiro está a reclamar, como vimos, tratamentos médicos e medicamentos não fornecidos pelo SUS1, e tal como demonstrado no levantamento feito pelo CNJ somente 20% destes pedidos são feitos por pessoas comprovadamente pobres, o que abre a janela para que a judicialização da saúde represente, ao mesmo, uma elitização do acesso a saúde por fora das políticas públicas existentes no âmbito do Poder Executivo. Figueiredo e Pereira2 apontam as críticas comumente feitas pela doutrina quanto aos efeitos negativos da judicialização da saúde, a saber: "(1) interfere, de forma negativa, no planeamento financeiro do Estado, colocando em causa os princípios da igualdade de atendimento e da universalidade do SUS; (2) as falhas estruturais do poder judiciário podem impedi-lo de conceber um adequado acesso à saúde; (3) o poder judicial interfere indevidamente nas políticas públicas, não possuindo os seus membros respaldo democrático; (4) a judicialização, ao estabelecer a responsabilidade solidária dos entes da federação nas ações de saúde, desorganiza o SUS; (5) o poder judicial pode ser usado para atender interesses de mercado e não anseios sociais;(6) o judiciário desconsidera, nas suas decisões, o já mencionado princípio da reserva do possível e o valor primordial da sustentabilidade; (7)  ideia errônea de que o direito à saúde é um direito absoluto, que deve sempre prevalecer sobre outros bens jus-constitucionais de relevo como habitação, educação, trabalho, ou seja, representa um ativismo judicial seletivo, ignorando a inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais; (8) não busca a concordância prática de valores em conflito, mas apenas a efetivação individual de um direito fundamental à custa da aniquilação e desconsideração de outros valores jus-constitucionais de relevo". Sendo assim, frente à crescente judicialização da saúde, diversas iniciativas surgiram a fim de amenizar este problema. Alguns exemplos são a Câmara Permanente Distrital de Mediação em Saúde, criado em 2013 no Distrito Federal, e o SUS MEDIADO, do Rio Grande do Norte, criado em 2012, ambos com o intuito de buscar soluções que minimizem a judicialização. De modo similar, também foi estipulado um protocolo pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, onde primeiro se busca uma solução direta com as secretarias de saúde. Não havendo uma solução prévia, só então há a judicialização da demanda. De outro lado, à luz das regras de execução orçamentária dos poderes públicos, somado ao princípio da reserva do possível, pode-se concluir que não há provisão financeira para aquisição de medicamentos não padronizados, por muitas vezes serem mais caros em comparação com os das listagens oficiais do SUS, que lastrearam a lei do orçamento anual, medicamentos estes comumente prescritos por médicos particulares dos autores das ações. Nesse contexto, portanto, quando milhões de decisões judiciais determinam a entrega compulsória de medicamentos mais caros que aqueles que lastrearam a programação orçamentária estatal sem prévio procedimento licitatório que viabilizar compras em massa com menor preço, estaria o magistrado a ofender o princípio constitucional da Separação de Poderes, ordenando despesa do orçamento do Poder Executivo sem lastro financeiro, ao determinar liminarmente a entrega forçada de medicamentos fora das listagens oficiais do SUS? Seria uma interferência indevida numa política pública de saúde, ou mesmo na organização do serviço de saúde, eis que a lógica do gasto público passaria a ser as determinações judiciais, e não os critérios das autoridades de saúde do Poder Executivo à luz do orçamento em vigor? Portanto, relevante se torna encontrar ou sugerir respostas a todos esses dilemas jurídicos referentes ao sensível tema da judicialização da saúde. Nesse sentido, cremos que as novas tecnologias do mundo pós-moderno abrem espaço para o surgimento do que vem sendo chamado de lawtechs, empresas de tecnologia, via de regras com características de startup, que oferecem seus serviços a escritórios de advocacia, usuários de serviços jurídicos, operadores do direito em geral, incluindo órgãos do Poder Judiciário. Por meio da Resolução CNJ nº125/2010, consagrou-se a mediação digital no ordenamento jurídico brasileiro, o que foi posteriormente ratificado pela lei de mediação e pelo código de processo civil. Na referida resolução, implementou-se um sistema de mediação e conciliação digital ou a distância para atuação pré-processual de conflitos, tudo podendo ser acessado pelo próprio site do Conselho Nacional de Justiça, inclusive podendo redundar em acordos de forma virtual. O imenso acervo de saúde que assola o Poder Judiciário brasileiro, como vemos, poderia ser prevenido com ferramentas oficiais como a mediação digital oferecida pelo CNJ, na qual é possível, à luz do princípio da consensualidade, aproximar as partes, facilitando o diálogo e reconstruindo relações entre médicos, pacientes e autoridades públicas de saúde, de forma mais célere e barata, sem vilipendiar as regras orçamentárias e a capacidade financeira do estado dentro do princípio jurídico da reserva do possível e da sustentabilidade fiscal do Estado. Determinadas plataformas digitais são especializadas em On line Dispute Resolutions (ODRs) ligadas ao direito de consumidor, sendo que a relação médico paciente, planos de saúde, serviços prestados pelo SUS, podem ser configurados na lógica consumerista, são capazes de julgar 60 milhões de conflitos por ano3, conforme ocorrido no ano de 2010, o que representou mais que o julgado pelo sistema de justiça norte americano, e mais que o dobro do sistema brasileiro4. O Código de Processo Civil (art. 334, §7º), prescreve que "a audiência de conciliação ou de mediação pode realizar-se por meio eletrônico", sendo certo que temos a lei 13.140/2015, que regula o procedimento de mediação brasileiro, cujo artigo 46 preceitua no sentido de que "a mediação poderá ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo". Dentre as vantagens das ODRs, poderíamos listar: a) redução substancial do tempo de duração do processo; b) benefício econômico, uma vez que estimativas dão conta de que, no ano de 2016, empresas gastaram R$157,38 bilhões de reais com processos no brasil, um aumento de 10,48% em relação ao ano de 2015, sendo que a média anual de processos por empresa é de 6,57, atingindo o patamar de 152 em relação as grandes empresas; um gasto médio, por processo, da ordem de R$94 mil reais5 ; c) planejamento, organização, otimização e eficiência oportunizados pela utilização de big data, com consequente aumento da capacidade de analisar, interagir e guardar informações de diferentes demandas; d) capacidade de traçar padrões e catálogos, gerando enorme economia de tempo e trabalho aos operadores do direito em geral, notadamente aos advogados. __________ 1 PEPE, Vera. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica, in Ciências & Saúde Coletiva, nº15, Vol. 5, 2010, p. 2407.   2 PEREIRA, André Gonçalo; FIGUEIREDO, Eduardo Antônio da Silva. Diálogo(s) de Direitos Fundamentais no Direito Biomédico, p 103. Cadernos da Lex Medicine. Saúde, Novas Tecnologias e Responsabilidades. Nos 30 anos do Centro de Direito Biomédico. Vol. I. Centro de Direito Biomédico. Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 104-105. 3 FERNANDES, R. E-negotiation, E-mediation, and the expansion of online dispute resolution in Brazil. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (Coord.) Tecnologia Jurídica e direito digital: I Congresso International de Direito e Tecnologia- 2018. Belo Horizonte: Forum, 2018, p.97-123. 4 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Brasília: CNJ, 2011, p. 176. 5 AMARAL, G. Custo das empresas para litigar judicialmente. Amaral, Yazbek Advogados. Curitiba, 2016.
A lei 14.112/20 promoveu significativas inovações e alterações na lei 11.101/05, que regulava especificamente o instituto da Recuperação Judicial. Dentre os inúmeros avanços destaca-se a inserção de nova seção destinada à mediação antecedente ou incidental nos processos de recuperação judicial, um momento prévio para tentativa de superação da insolvência com o emprego da mediação antes de um pedido de recuperação, em claro incentivo do legislador ao uso da mediação no sistema de insolvência empresarial, para além do contexto das recuperações puramente judiciais. A mediação é regulada pelo Código de Processo Civil de 2015 e pela lei 13.140/2015. Trata-se de um procedimento que pode ser definido como um método de resolução de disputas  em que um terceiro imparcial e independente, o mediador, coordena reuniões com as pessoas envolvidas, com o objetivo de facilitar o diálogo entre elas, utilizando técnicas e ferramentas próprias e adequadas, a fim de alcançar uma solução que atenda a todos os envolvidos. As grandes vantagens da mediação, razão pelas quais vem alcançando cada vez mais adeptos e usuários no Brasil, seja no âmbito empresarial, familiar, societário, consumerista, obrigacional, contratual, recuperacional, dentre outros, são: maior agilidade e flexibilidade, confidencialidade, e autonomia das partes na decisão e construção da solução para o conflito  que vivem, mantendo ainda a necessária segurança jurídica, uma vez que o acordo firmado forma título executivo extrajudicial (art. 784, IV, CPC) ou judicial, neste caso se levado à homologação por um juiz de direito.  Especificamente no âmbito da recuperação judicial, cabe lembrar que a Recomendação n. 58 do CNJ incentiva magistrados de varas especializadas, ou não, a se valerem do uso da mediação entre empresário/sociedade, em recuperação ou falidos, e seus credores, fornecedores, sócios, acionistas e terceiros interessados no processo, nos termos da lei 13.105/2015, da lei 13.140/2015 e agora do art. 20-A e seguintes da lei 11.101/2005 (art. 1o.). Além disso, esta Recomendação n. 58 determina que para exercer a função de mediador, além da qualificação para atuar como tal, o profissional deverá ter experiência em processos de insolvência e em negociações complexas com múltiplas partes, podendo tais requisitos serem dispensados na hipótese de nomeação por consenso entre as partes ou de nomeação de um comediador que possua referida experiência (art. 3º., § 2º). Com relação aos avanços promovidos pela lei 14.112/20 no sistema de insolvência, damos destaque, para os fins deste texto, ao novíssimo artigo 20-B, que permite a mediação antecedente e incidental nos processo de recuperação judicial, mesmo antes do processo e durante o mesmo em todas as relações mencionadas acima, incluindo empresas e entes da administração pública direta ou indireta, até mesmo concessionárias. A hipótese de mediação antecedente prevista no inciso IV do referido artigo 20-B, conferida em sede de tutela de urgência cautelar, com a possibilidade de suspensão das execuções existentes contra a empresa requerente por até 60 (sessenta) dias, para que esta possa tentar negociar e se compor com seus credores, é uma grande inovação no ordenamento jurídico brasileiro, que já vem sendo contemplada e deferida em algumas decisões judiciais nesse sentido após a entrada em vigor da lei 14.112/20. Assim, considerando esse momento "inicial" de adoção desta nova previsão legal, e também em razão da enorme valia que a mediação antecedente pode oferecer às empresas que se adequem aos requisitos para sua concessão, cabe uma importante reflexão para advogados, mediadores e juízes sobre os limites éticos da utilização da mediação nesta situação. Um primeiro alerta que se faz necessário é o de que, após obter o deferimento da tutela cautelar de urgência para suspender as execuções propostas contra a empresa pelo prazo de 60 (sessenta) dias, a empresa em dificuldade tente compor com seus credores para evitar a recuperação judicial. Advogados envolvidos e mediadores convocados devem certificar-se de quais credores a empresa procurou listar e chamar para negociação e mediação. O ideal seria que efetivamente todos os credores das ações que serão suspensas por tal decisão judicial sejam chamados para mediar. Já se sabe de casos em que a empresa, apesar de beneficiada pela suspensão da totalidade das execuções que correm contra si, acabou por chamar apenas alguns selecionados credores para efetivamente negociar, ainda que houvessem outros credores em situação similar ou detentores de créditos similares, sem que houvesse algum critério objetivo que justificasse tal segregação ou seleção, ignorando os demais credores, também com as execuções suspensas. Poder-se-ia tratar de desconhecimento do funcionamento dessa nova previsão legal, ou artimanha processual para ganhar "fôlego" (até eventualmente aceitável no julgamento das partes envolvidas). Seja como for, cabe aos advogados e mediadores manterem-se alertas para evitar problemas no desenho do sistema de solução de disputas chamando para a mediação apenas os credores indicados pela empresa em dificuldade, sob pena de se colocar em risco a reputação da mediação e a boa utilização dessa inédita previsão legal dentro dos preceitos legais e éticos que regem nosso ordenamento e o instituto da mediação em si.  Um segundo ponto de atenção aos advogados e mediadores é o de se lembrar que a mediação pressupõe uma fase muito importante de negociações, para a qual devem vir todos muito bem preparados, munidos de propostas interessantes e criativas, diversas e variadas, que contemplem os interesses de ambos os lados, de forma a realmente fazer valer essa grande oportunidade que está sendo dada às empresas em dificuldades que almejam ter um tempo para se compor com seus credores sem se preocupar com a pressão das execuções em andamento. Assim, não pode ser aceitável que a empresa beneficiada com uma decisão judicial que defere a tutela de urgência cautelar e determina a suspensão de suas execuções por 60 (sessenta) dias apresente-se nas sessões de mediação com propostas inexequíveis, fracas, não atraentes, não fundamentadas e nem minimamente razoáveis. Lembramos que é papel do mediador, especialmente nas sessões de pré-mediação, explicar a importância das partes terem um papel ativo na construção das possíveis soluções de seus conflitos, de forma que, se apesar de devidamente orientada, a empresa beneficiada com a mediação antecedente comparece às sessões munida de propostas vazias ou desprovidas da seriedade que se espera, corre o risco de passar a imagem de estar agindo de má-fé, perdendo a credibilidade dos mediadores e dos próprios credores. Outro alerta que merece destaque, agora mais direcionado aos mediadores que forem eventualmente nomeados nessas mediações, é o de ser conveniente que atentem-se às movimentações processuais e procedimentais das empresas que tenham obtido tal possibilidade de suspensão das execuções para composição com credores em sessões de mediação. É preciso observar se a empresa e seus representantes movimentam-se ativamente no processo em que obtiveram a tutela de urgência cautelar e nas sessões, buscando agendar os encontros com os credores, atentas ao exíguo prazo que possuem para tanto, demonstrando, enfim, um verdadeiro e genuíno interesse pela composição com seus credores. Uma empresa que pouco faz para movimentar o processo ou fazer acontecer as sessões de mediação com a totalidade dos seus credores pode, novamente, estar dando indícios claros de comportamento nefasto à dignidade e seriedade da mediação, e de má-fé. Não menos importante é relembrar os advogados e mediadores que em razão da possibilidade da realização de sessões de mediação com a utilização de plataformas de videoconferência, é crucial que todos estejam familiarizados com a utilização do sistema e dos equipamentos (computadores, microfones e câmeras) e ainda disponham de acesso à internet com velocidade que permita a realização das sessões sem interrupções, afinal o prazo de 60 (sessenta) dias corridos é exíguo e todos os esforços e adaptações devem ser feitos para que seja bem aproveitado, evitando-se intercorrências que atrapalhem o desenvolvimento fluído do processo de mediação. Também é deveras importante que tanto os advogados quanto os mediadores verifiquem se as pessoas que participarão das sessões de mediação têm poderes de representação e autoridade (alçada) para efetivamente negociar, aceitar ou rejeitar eventuais propostas de acordo. É sabido, entretanto, que especialmente em grandes empresas e instituições financeiras muitas vezes a estrutura organizacional e os procedimentos internos são burocráticos e lentos e não permitem a agilidade e representação esperada, sendo essas situações excepcionais. Por fim, mas não menos relevante, sugere-se que os mediadores estejam envolvidos na troca de informações e documentos entre credores e devedora, mesmo fora das sessões. A participação dos mediadores na troca de informações e documentos é imprescindível para que os mesmos possam acompanhar a evolução das tratativas e então ajudar as partes na manutenção, cadência e continuidade do diálogo. A lei 14.112/20 trouxe significativas, importantes e positivas alterações no processo de recuperação de empresas, demonstrando a intenção do legislador de favorecer e aprimorar o ambiente de negociação entre empresas e credores, especialmente nesta nova seção acrescentada na lei 11.101/05 através dos artigos 20-A e seguintes. A evolução oferecida por esta lei é tão impactante que foi tema de dois enunciados da segunda edição das Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho de Justiça Federal (CJF), organizado pelo Centro de Estudos Judiciários. Fato inédito, pois o tema não foi objeto de debate da edição anterior. Ambos estabelecem que na mediação antecedente a empresa devedora e seus credores possuem liberdade para criar o melhor entendimento para adimplemento das obrigações e durante a recuperação judicial, não cabe ao mediador julgar a existência, exigibilidade e legalidade do crédito. Ademais, em mediação em recuperação judicial, todos os participantes, colaborativamente, devem zelar pela observância da ordem de preferência dos créditos e pela verificação de existência, exigibilidade e legalidade dos créditos. É esperado que aprendizados e melhores entendimentos sobre a aplicação dos novos artigos inseridos na lei 11.101/05 se desenvolvam na prática a cada concessão de uma tutela de urgência cautelar para a suspensão das execuções e realização das sessões de mediação. A intenção desse texto é, então, colaborar para um aprimoramento cada vez maior da utilização da mediação no sistema de insolvência, na esperança de que as mediações antecedentes aconteçam da melhor forma possível, com o maior aproveitamento possível por todos os envolvidos, sejam partes, credores, devedores, mediadores, advogados e juízes. Adolfo Braga Neto é advogado, graduado pela USP, mestre pela PUC/SP, mediador, árbitro, instrutor do CNJ. Presidente do Conselho de Administração do IMAB - Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil. Diretor de Relações Internacionais do CONIMA - Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem e diretor do ISCT - Institute for the Study of Conflict Transformation. Alexandre Augusto Fiori de Tella é advogado, graduado pela PUCCAMP, mestre pela UNIP e pela University of Missouri (MIZZOU). Doutorando pela MIZZOU; mediador certificado pela Escola Paulista da Magistratura, pela Suprema Corte do Estado do Missouri e pela U.S. District Court for the Eastern District of Missouri; e Professor Universitário na MIZZOU. Camila Peixoto Olivetti Regina é advogada, negociadora, e mediadora certificada pelo ICFML, cadastrada no CNJ e no TJ/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela EPM. LLM em Direito Internacional por Oxford Brookes University (Inglaterra). Possui diversos cursos complementares de mediação, com destaque para Mediação em Recuperação Judicial (IMAB e IBAJUD), Mediação e Negociação Empresarial (CBMAE). Membro da Task Force IMAB de Mediação para Empresas em Recuperação, coordenada pelo Prof. Adolfo Braga.  
São várias as vantagens decorrentes da mediação. Aqueles que já participaram de resolução de conflitos por esta via já os identificaram. O desafio é apresentar isso para aqueles que ainda não o vivenciaram. As pesquisas empíricas permitem olharmos a realidade, compreendermos o que está acontecendo e buscarmos entender como será o futuro e o que poderá ser feito de forma diferente. Com o intuito de obter dados reais do mundo empresarial e estudar alguns desses benefícios da mediação nesta área, foi feita uma pesquisa no âmbito das varas empresariais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entre os meses de janeiro de 2016 a dezembro de 20171. Sobre a Pesquisa2 Foram analisadas 397 ações judiciais envolvendo questões empresariais3 e despachadas durante os anos de 2016 e 2017 para o Centro Justiça e Cidadania da Comarca do Rio de Janeiro (CEJUSC-Capital, localizado no Beco da Música, 121, sala T06, Centro, Rio de Janeiro/RJ) que realiza mediação judicial, inclusive para as varas empresariais. O TJ/RJ é o segundo em termos de quantidade de processos judiciais, sendo São Paulo o primeiro4. Um dos motivos para a escolha deste período foi a determinação da mediação judicial (art. 334) no Código de Processo Civil Brasileiro5. E uma das razões para a pesquisa ser realizada no âmbito empresarial é que a tomada de decisão para encerrar o conflito está baseada na racionalidade, podendo ser utilizada a Teoria dos Jogos e o Dilema do Prisioneiro. Quais os benefícios estudados? No cenário empresarial também podemos perceber vários benefícios da mediação. Como destacado pela Daniela Gabbay6: "A escolha da mediação empresarial é estratégica e depende dos objetivos e interesses de cada parte". A árvore da decisão7 pode auxiliar os envolvidos a identificar se a mediação é de fato o meio mais adequado para a resolução do conflito. a) Celeridade e Atendimento dos Interesses Mútuos A pesquisa indicou que o movimento inicial para a mediação judicial não foi feito pelas partes, mas em decorrência do fluxo processual (principalmente com base nos arts. 334 e 139, V do Código de Processo Civil8). Assim, não é possível verificar se de fato as partes possuíam o real ânimo de querer participar de uma mediação e se este meio era verdadeiramente o mais adequado. Independentemente disso, em 19,14% dos processos analisados, as partes fizeram acordo. Em 0,25%, o acordo foi parcial. E o tempo médio para resolução do conflito: na ação judicial, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, cerca de 5 anos9. Na mediação judicial (contado da distribuição da ação judicial até a elaboração do acordo pelas partes na sessão de mediação): 1 ano. Na mediação empresarial extrajudicial, este tempo é ainda menor: aproximadamente 1 mês.10 b) Efetividade dos Resultados   Em 58,9% dos processos em que houve acordo, o cumprimento deste foi integral. Em 3,6%, houve cumprimento parcial do acordo. E em 30,4% não houve de fato o cumprimento. Para este último dado, lembramos que como há homologação pelo juiz do acordo (aproximadamente 1 mês após a celebração)11 realizado em mediação, a parte agora tem em seu poder um título executivo judicial para a fase da execução. c) Fluidez na comunicação Um dado bastante interessante percebido foi com relação à comunicação. Discute-se a identificação do "sucesso/êxito" da mediação. Seria necessária a realização do acordo na mediação? Seria possível caracterizar como exitosa uma mediação em que as partes retomaram o diálogo, mas não obtiveram um acordo durante as sessões. Percebe-se que, de fato, isto ocorre na realidade: 2,27% dos acordos foram realizados após a fase da mediação ser encerrada. d) Redução do custo financeiro Há alguns anos já se discute a análise econômica do Direito aqui no Brasil12. Recentemente, Felipe Antonio Farah Morales e José Bento Vasconcellos Armond, em um artigo13, fizeram a análise econômica da mediação, apresentando os estágios dos custos de transação [i) negociação; 2) localização; e 3) execução]. Wilson Pimentel detalha esse acesso responsável à Justiça14. Outros autores debatem a análise econômica do processo judicial15. A escolha pela mediação empresarial extrajudicial passa exatamente por essa análise econômica que, quando as três formas de resolução de conflitos são comparadas: processo judicial com uma decisão do juiz, mediação judicial e mediação extrajudicial, observa-se que os custos na mediação extrajudicial são menores, pois (a) o tempo de duração do conflito é menor (consequentemente não há custos gastos para a manutenção/acompanhamento do processo judicial16), (b) não há risco (a decisão do juiz - terceiro - é um risco a ser incluído na análise), (c) o acordo não envolve necessariamente dinheiro (outros valores podem compor este acordo, desde que todos os envolvidos concordem. 44,6% dos acordos não envolveram pagamento em dinheiro) e (d) na mediação as partes podem escolher o terceiro que auxiliará na resolução do conflito. O art. 168 do Código de Processo Civil prevê essa possibilidade na mediação judicial, mas a pesquisa indicou que 100% da escolha do mediador foi feita pelo próprio Poder Judiciário. Na mediação extrajudicial, as partes efetivamente escolhem o mediador. Conclusão A tomada de decisão para eleição da mediação é estratégica, mas observa-se que dados são necessários para dar o suporte adequado ao tomador dessa decisão. A mediação empresarial vem se desenvolvendo no Brasil, como demonstrado na pesquisa da Daniela Gabbay17. E esta pesquisa realizada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro corrobora os vários benefícios da mediação também no cenário empresarial. A mediação empresarial extrajudicial desponta como a mais economicamente vantajosa (quando comparada com a mediação judicial e o processo judicial - decisão do terceiro/juiz), auxiliando na fluidez da comunicação entre os envolvidos, trazendo a efetividade no resultado final (acordo) exatamente por ter atendido aos benefícios mútuos das partes e por ter sido mais célere. Outras pesquisas (principalmente empíricas) são necessárias para que seja possível termos mais dados que possam ajudar o tomador de decisão/empresário na escolha pela mediação empresarial extrajudicial e possamos de fato promover uma mudança de paradigma. ______________ 1 A pesquisa completa realizada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro serviu para obtenção do doutoramento da autora. 2 Outros dados desta pesquisa foram apresentados no VI Congresso Brasileiro de Arbitragem e Mediação Empresarial, servido como base para o artigo a ser publicado na revista do CONIMA intitulado: O PODER JUDICIÁRIO E A MEDIAÇÃO EMPRESARIAL: UM ESTUDO EMPÍRICO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 3 Lei 6.956/15. DISPÕE SOBRE A ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS - Seção XIII Dos Juízos de Direito em Matéria Empresarial. Art. 50 Compete aos Juízes de Direito em matéria empresarial: I - processar e julgar: a) falências, recuperações judiciais e os processos que, por força de lei, devam ter curso no juízo da falência ou da recuperação judicial; b) execuções por quantia certa contra devedor insolvente, bem como pedido de declaração de insolvência; c) ações coletivas em matéria de direito do consumidor, ressalvadas as que tratarem de matéria de competência exclusiva do Juizado do Torcedor e Grandes Eventos; d) ações relativas a direito ambiental em que sociedade empresarial for parte, à exceção daquelas em que for parte, ou interessado, ente público ou entidade da administração pública indireta; e) as ações relativas ao direito societário, especialmente: 1- quando houver atividade fiscalizadora obrigatória da Comissão de Valores Mobiliários; 2- quando envolvam dissolução de sociedades empresariais, conflitos entre sócios cotistas ou de acionistas dessas sociedades, ou conflitos entre sócios e as sociedades de que participem; 3- liquidação de firma individual; 4- quando envolvam conflitos entre titulares de valores mobiliários e a sociedade que os emitiu, ou conflitos sobre responsabilidade pessoal de acionista controlador ou dos administradores de sociedade empresarial, ou, ainda, conflitos entre diretores, membros de conselhos ou de órgãos da administração e a sociedade; f) ações relativas a propriedade industrial, direito autoral e nome comercial; g) ações em que a Bolsa de Valores for parte ou interessada; h) ações relativas a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a subrogações; 2. apreensão de embarcações; 3. ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou taxas de agenciamento de embarcação; i) ações diretamente relacionadas às sentenças arbitrais e que envolvam as matérias previstas neste artigo; j) as ações diretamente relacionadas à recuperação de ativos desviados de sociedades empresariais em razão de fraude e/ou lavagem de dinheiro; II - cumprir precatórias pertinentes à matéria de sua competência. 4 Justiça, C. N. de. (2018). Justiça em Números. Brasília. Disponível aqui. 5 CPC foi promulgado em 2015, mas só entrou em vigor em março de 2016 (art. 1045). 6 "Mediação empresarial em números: onde estamos e para onde vamos" 7 Sugestão de leitura para preenchimento da árvore de decisão pelos advogados para auxiliar seus clientes na tomada de decisão: JACKSON, H., KAPLOW, L., SHAVELL, S., VISCUSI, W. K. and, & COPE, D. (2003). Analytical Methods for Lawyers. (2nd, Ed.). 8 Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência. Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; 9 Justiça, C. N. de. (2018). Justiça em Números. Brasília. Disponível aqui. 10 "Mediação empresarial em números: onde estamos e para onde vamos" 11 100% dos acordos realizados nas sessões de mediação foram homologados pelo juiz competente. 12 Antônio Maristrello Porto, Luciano Benetti Timm, Nuno Garoupa, dentre outros 13 "A mediação é o método mais eficiente para resolver conflitos? Uma análise econômica" 14 Em seu livro: Acesso Responsável à Justiça, 2019, Ed. Lumen Juris. 15 Bianca Bez Goulart, Bruno Bodart e Luiz Fux, Erik Navarro Wolkart, Ivo Gico Jr., dentre outros. 16 Estudos realizados em 2014 e 2016 - Custo das Empresas para Litigar Judicialmente - Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação - https://ibpt.com.br/ -Amaral Yazbek Advogados 17 "Mediação empresarial em números: onde estamos e para onde vamos"
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O objetivo da mediação em processos de insolvência

Ainda não é possível mensurar os impactos negativos causados pela pandemia do novo coronavírus (covid-19), tampouco o tempo que a economia levará para retomar a sua curva de crescimento. Mesmo assim e apesar de um esperado reaquecimento econômico nos próximos meses, a tendência é de alta nos pedidos de recuperação judicial e, provavelmente, de falência. Especialistas acreditam que o pior está por vir e que comprometerá ainda mais o nosso já debilitado e moroso Poder Judiciário, que trabalha acima do seu limite há tempos, como indicam os relatórios anuais divulgados pelo CNJ - Conselho Nacional de Justiça desde 2004.1 Buscando atualizar a legislação brasileira referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária, entrou em vigor no começo deste ano a lei 14.112/20. Para tornar a legislação mais aderente à realidade jurídica, econômica, política e social, inclusive para crises que afetem o mercado ou a economia como um todo2, introduziu-se a mediação como ferramenta para o tratamento de conflitos em processos de insolvência. Vindo ao encontro das aspirações de grande parte dos operadores do Direito, os artigos 20-A a 20-D introduzidos na lei 11.101/05 (Recuperação de Empresas e Falência) preveem que a mediação deve ser incentivada em todas as instâncias judiciárias e que pode ser realizada antes ou durante o processo, de forma presencial ou virtual. Não obstante, a experiência prática tem mostrado que a aplicação e a avaliação da mediação dependem da correta compreensão do seu objetivo por todos os agentes envolvidos: advogados, assessores financeiros, administradores judiciais, magistrados, membros do MP e da Defensoria Pública e, claro, mediadores. De modo geral, pode-se afirmar que a mediação é um método de solução de conflitos, voluntário, flexível e confidencial, conduzido por um terceiro (mediador), neutro e imparcial, que busca facilitar o diálogo das partes, para que elas negociem, com urbanidade, cooperação e informação adequada, a solução que melhor corresponda aos seus interesses em disputa.3 Em processos de insolvência, que abrangem múltiplos interesses naturalmente distintos em jogo4, o objetivo da mediação é estabelecer um diálogo produtivo entre as partes, direcionado à melhor solução para a superação da crise econômico-financeira da empresa, materializada, em nosso sistema concursal, por um plano vinculativo se aprovado pela maioria dos credores, diante da adoção do princípio da preservação da empresa.5 Para estabelecer um diálogo que dê voz aos participantes, é preciso democratizar a informação, empoderar credores, em especial aqueles com valores de menor expressão econômica, e mapear pontos de convergência e de divergência (interesses comuns e opostos) entre o devedor e os credores, bem como possíveis pontos de resistência, internos e externos. Experiências em diversas localidades do Brasil têm confirmado que, por meio de um diálogo produtivo, a mediação tem facilitado e incentivado as negociações entre as partes, reduzido assimetrias de informações e contribuído para uma solução mais rápida, econômica e adequada para os conflitos surgidos ou já existentes e, assim, para o próprio processo.6 Em outras palavras, a mediação serve como um verdadeiro mapa para os agentes envolvidos nos processos de insolvência sobre as possibilidades de consenso entre credores e devedor, bem como de efetividade da recuperação da empresa. A correta compreensão do objetivo da mediação passa, então, pela figura do mediador como apenas e tão somente um gestor do diálogo entre as partes, para que seja, de fato, produtivo.7 Não cabe ao mediador fazer análises econômico-financeiras do devedor, nem lhe fiscalizar ou julgar, muito menos negociar contra ou a favor dele. Contornar a desinformação e, nessa medida, afastar o ceticismo sobre a sua eficiência8 é - e continuará a ser por algum tempo - o grande desafio para, apesar da sua previsão legal, consolidar o uso da mediação em processos de insolvência. A mediação pode ser muito útil para - como ferramenta - auxiliar a tornar mais fluidos e construtivos os entendimentos entre credores e devedores, cada vez mais necessários para que as empresas brasileiras em crise consigam minimizar os impactos negativos causados pela pandemia do novo coronavírus (covid-19) e o esperado aumento dos pedidos de recuperação judicial e falência. _____ 1 A taxa de congestionamento média é de 70%, ou seja, o Poder Judiciário brasileiro finaliza, em média, apenas de 30 de cada 100 processos em trâmite, conforme o último relatório Justiça em Números do CNJ. Disponível aqui.  2 COSTA, Daniel Carnio; MELLO, Alexandre Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Curitiba: Juruá, 2021, p. 95. 3 Por exemplo: HOFFMAN, David A. Mediation: A Practice Guide for Mediators, Lawyers, and Other Professionals. Boston: MCLE, Inc., 2013, p. 1-4. 4 SOUZA NETTO, Antonio Evangelista de; LONGO, Samantha Mendes. A recuperação empresarial e os métodos adequados de solução de conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2020, p. 91. 5 Cerezetti, Sheila Christina Neder. A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações: o princípio da preservação da empresa na lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 427. 6 VASCONCELOS, Ronaldo; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva; CARNAÚBA, César Augusto Martins. Mediação na recuperação judicial: paralelos com a evolução estrangeira. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 16, n. 62, p. 45-81, jul./set. 2019. 7 Juan Carlos Vezzulla afirma que "[O] mediador é tão somente a parteira, que ajuda a dar à luz os reais interesses que possibilitarão o acordo final" (Teoria e prática da mediação. Curitiba: IMAP, 1998, p. 44-45). 8 Por exemplo: COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: Lei 14.112/20, nova Lei de Falências. 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 95-98. 9 BONILHA, Alessandra Fachada. A mediação como ferramenta de gestão e otimização de resultado na recuperação judicial. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 15, n. 57, p. 385-410, abr./jun. 2018. 10 Cerezetti, Sheila Christina Neder. A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações: o princípio da preservação da empresa na lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012. 11 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: Lei 14.112/20, nova Lei de Falências, 14 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. 12 COSTA, Daniel Carnio; MELLO, Alexandre Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Curitiba: Juruá, 2021. 13 HOFFMAN, David A. Mediation: A Practice Guide for Mediators, Lawyers, and Other Professionals. Boston: MCLE, Inc., 2013. 14 SOUZA NETTO, Antonio Evangelista de; LONGO, Samantha Mendes. A recuperação empresarial e os métodos adequados de solução de conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2020. 15 VASCONCELOS, Ronaldo; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva; CARNAÚBA, César Augusto Martins. Mediação na recuperação judicial: paralelos com a evolução estrangeira. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 16, n. 62, p. 45-81, jul./set. 2019. 16 VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e prática da mediação. Curitiba: IMAP, 1998.