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Migalha Trabalhista

Textos direcionados a comentar novidades legislativas que possam propiciar uma visão contemporânea sobre assuntos que estejam na ordem do dia na área trabalhista/sindical.

Ricardo Calcini
Texto de autoria de Felipe Augusto Oliveira Lepper Constantemente o mundo se transforma e passa por mudanças que implicam no cotidiano do ser humano, obrigando-o a se reinventar e se readaptar todos os dias para conviver com tais mudanças, e se amoldar às novas descobertas, tecnologias e, até mesmo, ao modo de viver e trabalhar. Caso não haja essa adaptação pelo homem, e este não acompanhe tal evolução, ficará para trás e inerte perante o assolamento do mercado de trabalho e pelos profissionais mais capacitados. Atualmente, é certo que passamos por sérias transformações, inclusive em âmbito mundial, com a calamidade decorrente pelo novo Coronavírus (Covid-19). Alterações no dia a dia do homem, na forma de viver e na forma de trabalhar são recorrentes e quase sempre somos surpreendidos com novas medidas complementares tomadas pelo governo para que se possamos enfrentar o estado de calamidade pública e não impactar na economia com o aumento do desemprego, garantindo, assim, a continuidade das atividades empresariais e os serviços essenciais, conforme prevê a MP 936/2020. Ocorre que tais medidas impactam diretamente na vida do trabalhador e podem gerar consequências, que inclusive serão abordadas neste presente artigo, e que há grandes chances delas continuarem após a pandemia. O que era de costume para o trabalhador brasileiro, como acordar cedo, pegar o seu carro ou tomar o transporte público, enfrentar o congestionamento diário e chegar ao seu posto de trabalho, escritório ou empresa, hoje se modifica com o isolamento social, permitindo a troca da roupa social ou do paletó pela roupa do pijama, permitindo que o trabalhador continue em sua cama ou sente em sua sala e comece a trabalhar da sua própria estação. Ora, o que depreende, neste atual cenário, é que o distanciamento social - por conta de uma pandemia internacional, mas que se amolda ao avanço tecnológico - está modificando a forma de trabalho, a qual necessita de uma proteção especial para o trabalhador. À medida em que avançamos na tecnologia, sobretudo na forma de comunicação à distância (e-mail, WhatsApp ou até mesmo videoconferência), muito se fala é que se está pisando em solos novos. Estamos diante, portanto, de uma forma de trabalho não desconhecida, até porque já prevista na legislação celetária, porém não muito usual, qual seja, o teletrabalho, insculpido no artigo 75-A, também conhecido como trabalho à distância ou home office. Todavia, o que se pretende abordar e trazer à baila aos colegas juristas e caros leitores são as implicações que esse novo "modus vivendi" trará para a seara trabalhista pós pandemia. Ora, sabemos que hoje o trabalhador que está em sua casa, e que terá pouco acesso ao seu superior, não terá mais a desculpa de falar para o seu chefe que "não fez a tarefa, pois estava ocupado" ou "que tinha muita coisa para fazer". Ao contrário, estando em casa e não tendo que perder tempo em seu deslocamento e trajeto até o trabalho, poderá produzir mais e, inclusive, estará diante de um novo cenário de trabalho, auferido por resultados, e não por horas trabalhadas. Dessa forma, ele terá que comprovar resultados e produtividade, sem que, porém, tenha que cumprir os requisitos das 08hs diárias ou ter controle sobre sua jornada, pois terá controle total sobre sua produção, mas, ao final, terá que cumprir sua tarefa e mostrar resultados em menos ou mais horas diárias. Nesse prumo, em recente notícia veiculada no site da Folha de São Paulo, do dia 14.5.2020, a Excelentíssima Presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministra Maria Cristina Peduzzi, disse que o trabalhador deve vigiar sua jornada. Em vossas palavras, se referia à carga horária de atividades remotas, alegando que "o próprio empregado vai exercer a vigilância sobre sua jornada, e se ela ultrapassar os limites que a lei e a Constituição preveem, ele terá um direito subjetivo seu violado, e poderá ir a Justiça do Trabalho". Com efeito, é sabido que a Constituição Federal, em seu artigo 7º, XIII, dispõe que é direito do empregado ter a jornada de trabalho não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 ( quarenta e quatro) semanais, orientação também contida no artigo 58 da CLT. É cediço, outrossim, que o artigo 74 da CLT define que o horário de trabalho será anotado em registro de empregados, e que o seu parágrafo 2º define que para os estabelecimentos com mais de 20 (vinte) trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e saída, ou seja, fica a cargo do empregador ter a responsabilidade de anotar e controlar o início e término da jornada do empregado. Diante deste novo cenário que nos cerca, com a preponderância do home office adotado já por várias empresas e que assim continuarão pós pandemia, e levando-se em consideração a fala da presidente do TST, deve-se ter maior atenção com os direitos que cercam o trabalhador. Assim, como fica o questionamento inicial, objeto de análise deste estudo, no sentido de como ficarão as horas extras desse trabalhador que estará de home office, levando em conta que a CLT exclui da jornada de trabalho os empregados em regime de teletrabalho, conforme artigo 62, III? Ainda, como fica o artigo 75-A, que trata do teletrabalho, mas que não contempla o pagamento de horas extras? Outro ponto merece ser levantado para que os leitores possam refletir: o trabalhador que terá controle de vigilância de sua jornada e poderá ir à Justiça, caso veja algum direito seu subjetivo violado, poderá também este trabalhador requerer adicional noturno caso faça seu trabalho após as 22 horas, já que não previsão de adicional noturno no artigo 75 da CLT? Para os legalistas a resposta será negativa, pois não está previsto adicional noturno em lei, ao passo que para aqueles que utilizam dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, dirão que se estiver previsto em acordo individual o adicional será aplicado. Nesse sentido, sabendo-se que o trabalho do homem é um esforço físico e mental, e que salário é a contraprestação mínima devida e paga diretamente ao trabalhador pelo empregador, por dia normal de serviço, defende-se aqui a aplicação do adicional noturno caso a atividade laboral seja realizada após o turno diário. Ora, qual trabalhador irá laborar à noite, ou de madrugada, e não vai querer ter seu adicional noturno? Ainda que não tenha previsão expressa quanto à incidência do adicional noturno para os trabalhadores que laboram de suas casas, como são os casos do teletrabalho ou do home office, acredita-se ser direito do trabalhador receber por todo o período que se dispôs a laborar, dispondo de seu esforço físico e mental. Assim, todas as mudanças que passamos, seja para nos adaptarmos às mudanças rotineiras, seja para evoluirmos profissionalmente e nos adaptarmos à velocidade da tecnologia, devemos ter o respaldo da lei, que seguramente não dará conta de toda à evolução que caminha a passos largos, mas que, minimamente, atenda aos anseios do homem e satisfação pessoal. Com certeza, o cenário atual mudou e vai mudar, pós pandemia, a forma como empresas e startups contratarão seus novos funcionários, como olharão para eles, como farão um processo seletivo, visto que não haverá comunicação pessoal, mas por videoconferência. E, mais, como isso irá se refletir ao funcionário, já que a empresa terá menos custos com o empregado, não precisará pagar vale-transporte, por exemplo, não precisará pagar um salário alto, já que o empregado trabalhará de casa e receberá por seus resultados e metas. Ainda, como serão refletidas as horas pós jornada que o empregado laborar, já que não há previsão na CLT. Assim, claro está que sofremos muitas mudanças que devemos estar preparados para passar, senão muitos serão afetados e não se acostumarão com a nova forma de trabalhar. Diante de todo exposto, visível que a crise atual causada pelo Coronavírus trouxe resultados desastrosos abalando o mundo, dizimando vidas e enfraquecendo sólidas economias. Lado outro, trouxe novas formas de trabalho, principalmente em relação aos contratos de âmbito trabalhista, autorizando medidas para que as empresas suspendam os contratos ou diminuam as jornadas de trabalho e os correspondentes salários. Em arremate, devemos estar certos e preparados para o que irá ocorrer após o término da pandemia, pois certo é que se reinventar se tornou parte do cotidiano humano, seja o simples lazer em casa, seja até a própria forma de trabalho para nos mantermos vivos diante de situações desastrosas. *Felipe Augusto Oliveira Lepper é advogado. Bacharel em Direito pela UNIP. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela EPD - Escola Paulista de Direito.
Texto de autoria de Filipe Rodrigues Costa 1. Introdução No dia 1º de abril de 2020, a Presidência da República publicou a Medida Provisória nº 936/2020, que instituiu "o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda". A MP dispõe sobre medidas para a redução dos impactos econômicos causados pelo estado de calamidade pública e pelo combate ao novo coronavírus, a fim de garantir a continuidade das atividades laborais e preservar o emprego e a renda dos empregados. A constitucionalidade da referida MP é objeto de intenso debate jurídico. Já houve, inclusive, o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363/DF, com decisão liminar prolatada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, no dia 6 de abril de 2020, no seguinte sentido: "(...) Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que "[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho [...] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração", para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes. (...)"1. O objetivo do presente artigo é apresentar argumentos jurídicos que fundamentam a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. 2. Declaração do estado de calamidade pública pelo Decreto Legislativo n° 6/2020 Inicialmente, é importante destacar que o Congresso Nacional aprovou o Decreto Legislativo nº 6/2020, que foi promulgado no dia 20 de março de 2020, e reconheceu o estado de calamidade pública em todo o território nacional até o dia 31 de dezembro de 2020. O Decreto Legislativo nº 6/2020 dispensou o atingimento, pelo Governo Federal, dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898/2019 (Lei das Diretrizes Orçamentárias - LDO) e a limitação de empenho prevista no artigo 9º da Lei Complementar nº 101/2000. É indiscutível a essencialidade deste Decreto, que permitiu ao Governo Federal deslocar mais recursos financeiros para o combate da COVID-19. A dispensa do atingimento da meta fiscal estabelecida na LDO também é medida vital neste momento de calamidade pública, haja vista que as medidas de saúde indicadas para a redução da propagação do novo coronavírus (notadamente o distanciamento social e o fechamento do comércio relacionado às atividades não essenciais) importarão, necessariamente, na drástica redução da arrecadação de impostos pela União, pelos Estados e Municípios. A ausência de flexibilização da meta fiscal poderia ocasionar, em última análise, eventual responsabilização do Presidente da República por crime fiscal. O Decreto nº 6/2020 buscou garantir segurança jurídica ao Governo Federal para a realização das ações necessárias ao combate do novo coronavírus. Tal preocupação é justa, necessária e plausível. Ocorre que, da mesma forma que era necessário permitir que o Estado realocasse seus recursos financeiros para o combate desta nova doença, também era necessário auxiliar as empresas. Isto porque, assim como os Entes Públicos já sofrem as consequências econômicas do distanciamento social e da paralisação e/ou redução de várias atividades econômicas, muitas empresas também foram assoladas com drástica redução de suas receitas. De acordo com levantamento realizado pelo SEBRAE2, as micro e pequenas empresas representam 99,1% dos estabelecimentos registrados no Brasil. Isso significa que a esmagadora maioria das empresas brasileiras possui faturamento anual de até R$ 3.600.000,00. A redução substancial ou total deste faturamento pode inviabilizar a manutenção de muitas desses estabelecimentos. Portanto, creio ser ponto pacífico a necessidade de ajuda às empresas nacionais, sob pena do nascimento de outra crise, de natureza econômica, que poderá ocasionar o fechamento de muitos postos de trabalho. É salutar destacar que a Constituição da República possui como dois dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a saber: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (g.n.) O Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes assim define o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: "(...) a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos45 e a busca ao Direito à Felicidade.46 (...)"3. Bernardo Gonçalves Fernandes conceitua o princípio constitucional do valor social do trabalho da seguinte forma: "(...) Supostamente correlacionado à noção de dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho impõe a abstenção do Estado no que concerne à concessão de privilégios econômicos a uma pessoa ou grupo. Cada indivíduo deve poder compreender que, com seu trabalho, ele está contribuindo para o progresso da sociedade, recebendo a justa remuneração e condições razoáveis de trabalho. (...)"4. Ao consagrar a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como fundamentos, a Constituição da República demonstra sua preocupação em fornecer aos cidadãos as condições de busca da realização pessoal, da felicidade e do acesso ao trabalho e à justa remuneração. A Medida Provisória nº 936/2020 foi publicada exatamente com esses objetivos em vista e buscou fornecer possibilidades legais às empresas e aos empregados para o enfrentamento do estado de calamidade pública. O artigo 1º assim dispõe: Art. 1º Esta Medida Provisória institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. A MP está umbilicalmente ligada ao estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020, e propõe medidas excepcionais, porém, essenciais para a manutenção do emprego e da renda de milhões de empregados. Como já dito, tão importante quanto dar suporte e garantir a atuação do Estado na defesa da saúde e da vida dos cidadãos, é amparar as empresas neste momento de dificuldade, e facultar-lhes a negociação, junto aos empregados, para a manutenção dos empregos e da renda. Reinaldo Garcia do Nascimento e Ricardo Calcini corroboram este entendimento: "(...) É cediço que o Direito é uno, ou seja, não divisível. Contudo, dividimos as áreas para melhor estudo e compreensão didática. O mesmo acontece, inclusive, com as normas jurídicas, que protegem o bem da vida, o ser humano, valores intrínsecos e extrínsecos da sociedade contemporânea. Neste diapasão, estamos diante de uma dicotomia, ou seja, uma parcela de um todo, consubstanciado nos valores defendidos pela Constituição Federal, como a vida, saúde, trabalho, a iniciativa privada etc. (...) Ocorre que em tempos de calamidade pública e de quarentena, o que está em risco não é somente a condição social, mas - e simultaneamente - a atividade econômica desenvolvida pela livre iniciativa, o emprego e a renda do trabalhador. (...)"5. Portanto, a meu ver, as já mencionadas garantias jurídicas, econômicas e sociais fornecidas ao Estado com a promulgação do Decreto Legislativo nº 6/2020 foram espelhadas na Medida Provisória nº 936/2020, o que serve como fundamento para a defesa de sua constitucionalidade. 3. Características da Medida Provisória nº 936/2020 3.1. Objetivos A Medida Provisória nº 936/2020 possui características singulares que reforçam sua importância como alternativa ao combate às consequências econômicas da pandemia do novo coronavírus, e fundamentam a defesa da sua constitucionalidade. Uma dessas características está relacionada aos objetivos da Medida Provisória. O artigo 2º da MP é elucidativo a este respeito: Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º e com os seguintes objetivos: I - preservar o emprego e a renda; II - garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais; e III - reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública. Como já dito no tópico anterior, o cenário de calamidade pública vigente em todo o território nacional, cumulado com o fechamento de estabelecimentos comerciais e a imposição do distanciamento social, impactam fortemente nas receitas de muitas empresas, o que aumenta o sentimento de insegurança tanto dos empregados quanto dos empregadores. Empregadores estão inseguros quanto à manutenção de suas receitas e quanto à própria sobrevivência da atividade comercial; empregados estão inseguros quanto à manutenção dos salários e quanto à manutenção do próprio emprego. A MP foi publicada com o objetivo de amenizar este cenário, ao fornecer ferramentas legais para reduzir o impacto das medidas de saúde pública adotadas, garantir a continuidade das atividades empresariais e garantir o emprego e a renda dos empregados. Tais objetivos estão em perfeita sintonia com os já mencionados fundamentos da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho e da livre iniciativa, dispostos nos incisos III e IV do artigo 1º da Constituição da República. Os objetivos da MP nº 936/2020 também respeitam e atendem os princípios previstos no artigo 170 da Constituição da República: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. A harmonia entre os objetivos dispostos no artigo 2º da MP nº 936/2020 e os fundamentos e princípios dispostos nos incisos III e IV do artigo 1º e no artigo 170, ambos da Constituição da República, é forte fundamento para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória. 3.2. Abrangência Outra característica relevante da MP nº 936/2020 é sua abrangência nacional. O Programa Nacional do Emprego e da Renda, criado pela MP nº 936/2020, fornece possibilidades legais de redução dos impactos causados pelo estado de calamidade pública para as todas as empresas do território nacional, sendo as exceções dispostas no parágrafo único do artigo 3º, a saber: Art. 3º São medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda: I - o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda; II - a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; e III - a suspensão temporária do contrato de trabalho. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos órgãos da administração pública direta e indireta, às empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive às suas subsidiárias, e aos organismos internacionais. (g.n.) As exceções dizem respeito aos Entes Públicos, seus órgãos e empresas, e aos organismos internacionais. Portanto, percebe-se que a MP abrange as empresas privadas de todo o país. A abrangência nacional da MP nº 936/2020 reforça sua relevância no enfrentamento das consequências econômicas do combate ao COVID-19, pois reconhece que todas as empresas instaladas no país podem sofrer algum impacto neste momento excepcional pelo qual passa não só o Brasil, mas todo o mundo. Um dos grandes desafios das legislações que visam garantir a competitividade das empresas nacionais é evitar a valorização de determinadas categorias econômicas em detrimento de outras, o que colocaria em dúvida o alcance do objetivo proposto, pois a valorização de algumas categorias ocorreria ao custo da criação de novas desigualdades econômicas em relação a outras. A criação de leis que favorecem apenas categorias econômicas específicas sempre foi objeto de grandes questionamentos jurídicos e sociais. Entretanto, tais questionamentos não podem ser feitos com relação à Medida Provisória nº 936/2020, em razão de sua abrangência nacional e de sua preocupação de auxiliar todas as categorias econômicas neste momento de incerteza. A abrangência nacional é mais uma característica da MP nº 936/2020 que está em perfeita harmonia com o fundamento constitucional do valor social do trabalho e da livre iniciativa, e objetiva efetivá-lo da forma mais plena possível. Bem por isso, a abrangência nacional da MP nº 936/2020 busca efetivar o disposto nos incisos III e IV do artigo 1º e no artigo 170, ambos da Constituição da República, e reforça a defesa da constitucionalidade desta Medida Provisória. 3.3. Temporalidade A Medida Provisória nº 936/2020 possui aplicação temporária, conforme disposto no caput do artigo 2º: Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º e com os seguintes objetivos: (g.n.) O destaque dado ao caráter excepcional da Medida Provisória é importante para evitar dúvidas quanto à sua duração e aos seus objetivos. Diferentemente de outras medidas provisórias, a MP nº 936/2020 não foi publicada com o objetivo de tornar-se um novo marco nas relações trabalhistas, ou de promover uma "minirreforma" na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a fim de atender interesses de empregados ou de empregadores. Conforme já exposto nos tópicos anteriores, a Medida Provisória tem abrangência nacional e tem o objetivo de colaborar com a manutenção da atividade econômica, do emprego e da renda, tudo isso no período específico de vigência do estado de calamidade pública nacional. A temporalidade da MP nº 936/2020 é exatamente a mesma da vigência do Decreto Legislativo nº 6/2020, o que reforça sua função de norma colaborativa para minimizar os graves efeitos da pandemia do coronavírus. Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais, a fim de evitar o nascimento de uma crise econômica que tornaria ainda mais árdua a tarefa dos Entes Públicos, de afastar a insegurança e de garantir a toda a população o direito à vida, à saúde, à atividade econômica, ao trabalho e à renda. Todos estes são princípios e objetivos previstos na Constituição da República. Como dito, o objetivo da MP nº 936/2020 não é o de se "aproveitar" desse momento singular para reformar as relações trabalhistas, a fim de atender interesses específicos de alguma categoria. O objetivo é fornecer ferramentas temporárias para a manutenção da atividade econômica e dos empregos, específica e excepcionalmente enquanto durar o estado de calamidade pública declarado pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. A temporalidade da Medida Provisória nº 936/2020, que está estrita e inequivocamente atrelada ao Decreto Legislativo nº 6/2020, é mais um fundamento para a defesa de sua constitucionalidade. 3.4. Garantias previstas na Medida Provisória nº 923/2020 A Medida Provisória nº 936/2020 dispõe sobre garantias que merecem ser mencionadas e que reforçam a defesa de sua constitucionalidade. O inciso I do artigo 7º determina a preservação do salário-hora do empregado: Art. 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, observados os seguintes requisitos: I - preservação do valor do salário-hora de trabalho; Tal disposição, aliada às demais características expostas no presente artigo, reforça o objetivo de minimizar as consequências econômicas do estado de calamidade pública. Isto porque não há (e nem mesmo poderia haver) qualquer norma jurídica que impeça a rescisão contratual por iniciativa do empregado ou do empregador. A mera cogitação de alguma norma neste sentido importaria em violação literal do inciso IV do artigo 1º da Constituição da República, que ressalta o valor social do trabalho e da livre iniciativa. Diante da queda no faturamento, muitos empresários vivem o dilema de como sobreviver e quitar todas as obrigações devidas. A redução do quadro de empregados é a opção mais radical, mas que em momentos de crise não pode ser descartada. A MP nº 936/2020 foi publicada com o objetivo de fornecer ferramentas para que os empregadores minimizem a necessidade de rescisão dos contratos de seus empregados. A adoção de medidas que evitam as demissões e mantêm o salário-hora é relevante e salutar. A manutenção do salário-hora demonstra a preocupação da Medida Provisória de evitar abusos por empregadores irresponsáveis e de manter um parâmetro mínimo de negociação para a manutenção da atividade econômica, do emprego e da renda. Fernando Hugo R. Miranda corrobora este entendimento: "(...) Para além da prerrogativa do legislador do estabelecimento de hipóteses de alteração in pejus do contrato, o que já asseguraria, per si, a constitucionalidade da Medida Provisória, não é demais mencionar a razoabilidade material do que proposto na norma. Para além da redução salarial contratual diretamente proporcional à redução da jornada, com a preservação necessária do salário hora, é previsto, em contrapartida, a fixação de um período de garantia de emprego e auxílio governamental. (...)"6. A meu ver, a manutenção do salário-hora deve ser interpretada como o "patamar mínimo civilizatório"7 excepcional, temporário, necessário e exclusivo para este momento de calamidade pública nacional, o que reforça a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. Outro ponto relevante está disposto no artigo 10 da MP nº 936/2020: Art. 10. Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos: I - durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho; e II - após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão. § 1º A dispensa sem justa causa que ocorrer durante o período de garantia provisória no emprego previsto no caput sujeitará o empregador ao pagamento, além das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, de indenização no valor de: I - cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento; II - setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ou III - cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho. § 2º O disposto neste artigo não se aplica às hipóteses de dispensa a pedido ou por justa causa do empregado. O artigo 10 da MP nº 936/2020 dispõe sobre a garantia provisória no emprego dos empregados que receberem o benefício previsto no caput artigo 2º. Trata-se de mais uma disposição que reforça o objetivo de manutenção do emprego neste momento de calamidade pública. A Medida Provisória cria contrapartida importante aos empregadores que tiverem a necessidade de utilizar-se da redução da jornada de trabalho ou da suspensão do contrato de algum empregado: tais empregadores serão obrigados a manter os empregados pelo período previsto no artigo 10 da MP. As possibilidades de garantia de emprego devem ser expressamente previstas em lei ou em instrumento normativo. Cabe citar algumas delas: gestante, acidente de trabalho, membro de comissão interna de prevenção de acidentes (CIPA), dirigente sindical. Tais possibilidades legais visam preservar o emprego em momentos excepcionais da vida do empregado, seja em razão do seu estado de saúde, seja em razão da sua atuação dentro das dependências da empresa. Portanto, a legislação prevê que algumas situações excepcionais ocorridas com o empregado garantem-lhe a permanência no emprego. Este foi exatamente o objetivo da MP nº 936/2020, ao criar nova modalidade de garantia provisória, notadamente em razão da situação ímpar vivida e reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. Portanto, a garantia de emprego prevista no artigo 10 da MP nº 936/2020 é mais um fundamento na defesa de sua constitucionalidade. 4. Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.363/DF Como dito no início deste trabalho, está em curso a ADI nº 6.363/DF, que pretende, em apertada síntese, a declaração da inconstitucionalidade do "uso do acordo individual para dispor sobre as medidas de redução de salário e suspensão de contrato de trabalho". No dia 06 de abril de 2020, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, deferiu parcialmente o pedido liminar e determinou a obrigatoriedade de comunicação dos sindicatos laborais quando da celebração de acordos individuais nos termos da MP nº 936/2020. Ocorre que, em julgamento concluído no dia 17 de abril de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal negou referendo à liminar e afastou a necessidade de aval dos sindicatos para o fechamento dos acordos individuais. O v. acórdão ainda não foi publicado, entretanto, a notícia do resultado do julgamento está disponível no site do Supremo Tribunal Federal. Pede-se vênia para transcrever trecho relevante: "(...) O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a eficácia da regra da Medida Provisória (MP) 936/2020 que autoriza a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais em razão da pandemia do novo coronavírus, independentemente da anuência dos sindicatos da categoria. Por maioria de votos, em julgamento realizado por videoconferência e concluído nesta sexta-feira (17), o Plenário não referendou a medida cautelar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6363, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade". Momento excepcional Prevaleceu a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele entende que, em razão do momento excepcional, a previsão de acordo individual é razoável, pois garante uma renda mínima ao trabalhador e preserva o vínculo de emprego ao fim da crise. Segundo ele, a exigência de atuação do sindicato, abrindo negociação coletiva ou não se manifestando no prazo legal, geraria insegurança jurídica e aumentaria o risco de desemprego. Para o ministro, a regra não fere princípios constitucionais, pois não há conflito entre empregados e empregadores, mas uma convergência sobre a necessidade de manutenção da atividade empresarial e do emprego. Ele considera que, diante da excepcionalidade e da limitação temporal, a regra está em consonância com a proteção constitucional à dignidade do trabalho e à manutenção do emprego. Proteção ao trabalhador O ministro Alexandre de Moraes destacou ainda a proteção ao trabalhador que firmar acordo. De acordo com a MP, além da garantia do retorno ao salário normal após 90 dias, ele terá estabilidade por mais 90 dias. Acompanharam esse entendimento os ministros Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Dias Toffoli (presidente). (...)"8. A maioria dos Ministros do STF destacou a importância da MP nº 936/2020 como ferramenta de manutenção das atividades empresariais, do emprego e da renda dos empregados, e ressaltou o caráter excepcional e temporário da medida como fundamentos para a declaração de sua constitucionalidade. Os argumentos constantes da tese prevalecente no STF corroboram todo o exposto neste artigo. 5. Conclusão Em resumo, o presente trabalho apresentou os seguintes fundamentos para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020: § a ligação umbilical e o espelhamento das garantias jurídicas, econômicas e sociais fornecidas pelo Decreto Legislativo nº 6/2020; § a harmonia entre os objetivos da MP e os objetivos e princípios previstos nos incisos III e IV do artigo 1º e o artigo 170 da Constituição da República; § a abrangência e a temporalidade da MP; § a manutenção do salário-hora e a garantia provisória de emprego previstas na MP; e § o julgamento do Pleno do STF nos autos da ADI nº 6.363/DF, que declarou a constitucionalidade da MP nº 936/2020. Entendo que estes fundamentos, analisados e compreendidos de forma conjunta e em consonância com o estado de calamidade pública vigente no país, são sólidos para a defesa da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020. Referências Bibliográficas FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. e atual. Salvador. Juspodivm, 2017. 1.728 p. MIRANDA, Fernando Hugo R. A constitucionalidade da MP 936/20: A irredutibilidade salarial e a alterabilidade contratual. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. NASCIMENTO, Reinaldo Garcia do; CALCINI, Ricardo. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 - São Paulo: Atlas, 2017, 666 p. *Filipe Rodrigues Costa é graduado em Direito pela PUC-Minas. Especialista em Direito do Trabalho pela UFMG. Advogado trabalhista na Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais (PRODEMGE). __________ 1 Disponível aqui. Acessado no dia 16 de abril de 2020. 2 Disponível aqui. Acessado no dia 16 de abril de 2020. 3 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 - São Paulo: Atlas, 2017, p. 35. 4 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. ampl. e atual. - Salvador. Juspodivm, 2017, p. 314. 5 NASCIMENTO, Reinaldo Garcia do; CALCINI, Ricardo. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. 6 MIRANDA, Fernando Hugo R. A constitucionalidade da MP 936/20: A irredutibilidade salarial e a alterabilidade contratual. Disponível aqui. Acessado no dia 17 de abril de 2020. 7 Expressão consagrada pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado. 8 Disponível aqui. Acessado no dia 06 de maio de 2020.
Texto de autoria de Janete Aparecida Deste e Fábio Luiz Pacheco Muito apressadamente, em poucos meses, inúmeras alterações ocorreram no mundo do trabalho durante a pandemia (coronavírus |Covid-19) e permanecerão após ela. A pandemia declarada pela OMS - Organização Mundial da Saúde foi internalizada pelo Brasil por adesão ao Regulamento Sanitário Internacional OMS/Brasil, por meio do decreto 10.212, de 30/1/2020, tendo sido declarada a situação como de calamidade pública até 31/12/2020, pelo decreto legislativo 6, de 20/3/2020. A partir desse quadro, foram editados diversos atos normativos com a finalidade de abrandar os impactos graves da pandemia e frear a transmissão do vírus, principalmente com restrições à circulação de pessoas, o que acarretou na impossibilidade de estarem os trabalhadores em seus locais de trabalho, ainda que muitas atividades pudessem e devessem seguir sendo realizadas. Foram, então, publicados novos atos normativos, de apoio às empresas, visando, sobretudo, a manutenção de emprego e renda. De forma repentina, milhares de trabalhadores começaram a atuar, tanto quanto possível, em suas respectivas casas, pois, entre as primeiras medidas anunciadas como atenuantes do impacto da pandemia, incluía-se na MP 927, de 22/3/2020, a adoção do regime de teletrabalho (art. 3º, I). Açodadamente, implementou-se o home office nacional (art. 62, III, da CLT). E, conquanto a CLT, com a alteração promovida pela lei 13.467/17, contenha um regramento sobre o teletrabalho (arts. 75-A a 75-E), a MP 927 trouxe nova disciplina à matéria (arts. 4º e 5º). Veja-se, por outro lado, e até em virtude da urgência imposta, que não houve nenhum treinamento dos empregados quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E da CLT), não sendo fornecidos equipamentos tecnológicos e de infraestrutura específicos (art. 75-D da CLT) e, muito menos, houve alterações contratuais expressas nesse sentido (art. 75-C da CLT). Embora o foco do presente artigo não seja a análise da legalidade do teletrabalho e dos dois regramentos supra, no atual momento pandêmico (doença Covid-19) importante concluir que o aumento do número de teletrabalhadores acarreta muitas consequências, ganhando relevo a ponderação acerca da produtividade do labor remoto. Trabalhar de dentro do lar é, além de conduta muito íntima e ímpar de cada empregado, reveladora da adaptabilidade de cada um nestes tempos de isolamento físico. Ao passo, por exemplo, que há quem facilmente adapte-se à nova rotina, há quem não consiga produzir com qualidade. Desponta, em tal cenário, a chamada "síndrome do caxias", ou seja, o bullying sofrido pelo empregado inteligente, organizado e capacitado. "O melhor burro é o que carrega mais peso"; "o prego que se destaca ganha martelada". Pensamentos assim são caracterizadores de uma espécie de assédio moral, qual seja, por competência ou por produtividade. Esta modalidade de assédio moral caracteriza-se pela exigência de maior produtividade e/ou de atribuição de tarefas mais complexas aos trabalhadores mais competentes, habilidosos e inteligentes. O assédio moral por competência se apresenta, em muitos casos, como um falso "reconhecimento" por parte do empregador (ou chefia). Resulta em desequilíbrio entre o volume de trabalho maior exigido de determinado trabalhador (em face da sua competência, responsabilidade, dedicação, comprometimento, etc), e o volume de trabalho menor requerido de outros trabalhadores que se encontram em idêntica situação funcional e salarial. É modalidade de assédio personalíssima, pois tem em pessoa determinada a sua vítima - diversamente do assédio moral ambiental ou organizacional (direcionado a pessoas indeterminadas). Certo que o assédio por competência é tendente a gerar degradação da saúde física e mental do trabalhador (em face da pressão velada experimentada pelo assediado) e, a nosso ver, passível de indenização compensatória (arts. 186 e 927 do CCB; art. 5º, V e X, da CRFB; Convenção 190 da OIT; Anexo II da NR-17 da Portaria 3.214/87 do extinto MTE). E, nestes tempos de pandemia, em que o teletrabalho "forçado" se tornou a regra, o assédio moral por competência revela-se escancaradamente. Com efeito, seja na iniciativa privada, seja no meio público (no Judiciário, inclusive), é clara a percepção de que há trabalhadores mais preparados e/ou habilidosos frente ao trabalho não presencial. Unindo-se, ainda, a características pessoais como objetividade, organização, atitude, empenho e facilidade em aprender um novo labor virtual, "voilà", estamos diante de um sério candidato a receber grande quantidade de tarefas. Por mais tentador que seja, imperioso é o olhar do empregador (privado ou público) sob o viés do assédio moral por produtividade, ao distribuir as tarefas a seus subordinados. Ressalta-se que no ambiente público a modalidade é ainda mais perversa, uma vez que os vencimentos são idênticos aos que ocupam o mesmo cargo - já que as funções e cargos comissionados são limitados, e não há como "premiar" todos os bons servidores. A razoabilidade na exigência do cumprimento das tarefas e na distribuição delas é a tônica do momento (auge do confinamento social). A preservação do equilíbrio físico e mental no ambiente laboral é obrigação dos empregadores (art. 157 da CLT; art. 19, §1º, da lei 8.213/91; arts. 7º, XXII, 196, 200, VIII e 225, §3º, todos da CRFB; Convenções 148, 155 e 161, todas da OIT), reforçada em várias manifestações recentes da OMS, os quais devem pautar-se pela igualdade entre os membros da equipe, sob pena de exigir-se serviços superiores às forças de cada um, o que tipifica hipótese de falta grave do empregador (art. 483, "a", da CLT). Em conclusão, a situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional decorrente da pandemia (coronavírus) exige alterações significativas na forma de trabalhar, sendo os empregados confinados em seus lares chamados a cooperar para que as atividades produtivas possam ser minimamente mantidas. Mas o teletrabalho deve ser implementado de forma racional e equilibrada, de forma a não sobrecarregar o trabalhador mais competente e produtivo, sob pena de caracterizar-se o denominado assédio moral por competência e o correlato dever do empregador de indenizar o dano moral respectivo. *Janete Aparecida Deste é juíza do Trabalho aposentada do TRT da 4ª região. Professora de Direito Processual do Trabalho e de Direito do Trabalho Titular do JURISJAD, instituição destinada à preparação de candidatos aos concursos da Magistratura Trabalhista e Ministério Público do Trabalho. Advogada. Membro da ASRDT - Academia Sul Riograndense de Direito do Trabalho. Mestre em Direito pela PUC/RS. **Fábio Luiz Pacheco é juiz do Trabalho Substituto do TRT da 8ª região. Ex-assistente de desembargador (TRT/4ª região). Ex-oficial de Justiça federal da Justiça Federal do RS (TRF/4ª região). Ex-assistente de juiz do trabalho (TRT/3a Região). Ex-chefe de Cartório Eleitoral (TRE/RS). Ex-advogado, ex-assessor jurídico municipal e da Confederação Nacional de Municípios (CNM - Brasília/DF). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/RS. Professor e palestrante.
Texto de autoria de Ricardo Calcini A lei 13.467/2017 trouxe como inovação na Reforma Trabalhista, dentre outras, a possibilidade de substituir o depósito recursal pelo seguro garantia judicial, conforme disposição prevista no artigo 899, §11 da CLT1. O objetivo dessa inovação tem por intuito, por um lado, viabilizar a garantia de futura execução dos créditos trabalhistas já reconhecidos em decisão judicial, ainda que provisória, na esfera da Justiça do Trabalho; e, por outro lado, possibilitar às empresas que os fluxos de seus caixas não sejam comprometidos e que suas atividades empresariais e econômicas não sofram impactos diretos com a indisponibilidade de recursos destinados aos depósitos judiciais, para fins de interposição de recursos como condição ao pleno exercício ao duplo grau de jurisdição e, em última análise, ao acesso à Justiça. Do ponto de vista econômico, o uso do seguro garantia judicial é sem dúvida hoje a melhor alternativa financeira para as empresas, pois evita o comprometimento do capital de giro, possibilitando o uso do dinheiro em investimentos e na continuidade de pagamento de suas obrigações. Contudo, mesmo sem óbice legislativo, à época do início da vigência da Lei Reformista, alguns Tribunais Regionais do Trabalho (TRT's)2, inclusive o próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST)3, não conheciam dos recursos amparados pelo seguro garantia judicial que, por exemplo, tivessem fundamentados em apólices com prazos determinados. Assim, haja vista que referida inovação legislativa apresentou significativa resistência por parte dos Tribunais Trabalhistas quanto ao uso do seguro garantia judicial, bem como pela insegurança jurídica em razão de divergentes entendimentos, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho junto com o Tribunal Superior do Trabalho, além da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, publicaram o Ato Conjunto TST.CSJT.CGJT nº 1, de 16 de outubro de 2019, que estabeleceu regras para a padronização da recepção das apólices de seguros garantias judiciais para substituição dos depósitos recursais. E no tocante à substituição do depósito recursal trabalhista pelo seguro garantia judicial, o citado Ato Conjunto passou exigir, por exemplo, que o valor segurado inicial deve ser igual ao montante da condenação, acrescido de, no mínimo 30%, observados os limites estabelecidos pela Instrução Normativa nº 3 do TST, constituindo-se como pressuposto de admissibilidade recursal. Além disto, as partes e as seguradoras devem observar que a apólice contenha previsão de atualização da indenização pelos índices legais aplicáveis aos débitos trabalhistas4, a manutenção da vigência do seguro mesmo que a empresa esteja em atraso com o pagamento do prêmio nas datas convencionadas, referência ao número do processo judicial, vigência mínima de três anos da apólice, endereço atualizado da seguradora e cláusula de renovação automática. O não cumprimento de aludidos requisitos ensejará o não processamento ou não conhecimento do recurso, por deserção5. Entrementes, o artigo 8º do Ato Conjunto TST/CSJT/CCSJT nº 1/2019 predispunha que "após realizado o depósito recursal, não será admitido o uso de seguro garantia para sua substituição" (g.n.), limitação essa que, segundo dados estatísticos, impedia a movimentação de cerca de R$ 30 bilhões de reais depositados na Justiça do Trabalho. Acontece que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em recente decisão datada do dia 27/3/2020, ao julgar o Procedimento de Controle Administrativo 0009820-09.2019.2.00.0000, anulou o teor do artigo 8º do Ato Conjunto TST/CSJT/CCSJT nº 1/2019 que vedava justamente o uso de seguro garantia judicial em substituição ao depósito recursal trabalhista. Interessante notar que tal decisão do CNJ, antes mesmo do surgimento da pandemia do covid-19, foi no sentido de liberar recursos às empresas para que elas possam aplicar nas suas atividades, para incremento da produtividade, geração de empregos, investimentos e riquezas. Afinal, o seguro garantia judicial é um instrumento idôneo de caução processual, previsto no artigo 835, § 2º, do CPC/15, que deve ser mais e melhor explorado, uma vez que ostenta o atributo da liquidez e agrega, de forma equilibrada, características que, de um lado, asseguram o interesse do credor (e a efetividade da satisfação do seu direito), sem, de outro, sacrificar demasiadamente o devedor. O seguro garantia judicial é, portanto, forma equilibrada de se garantir o juízo, pois, além de preservar os interesses do credor, permite que os bens do devedor, sobretudo o dinheiro, não fiquem "congelados" durante o trâmite do processo, podendo ser utilizados na atividade produtiva, para o bem do devedor e da própria sociedade. E, mais, em novos tempos de Coronavírus, cuja crescente e grave crise econômica é de conhecimento público, todo o influxo de recursos no mercado será muitíssimo bem-vindo, como medida a assegurar liquidez e meios de se manter em funcionamento as atividades produtivas e o emprego de milhares de pessoas. Todavia, na prática, ainda se tem conhecimento que muitos são os Magistrados nos Tribunais que continuam a não autorizar a liberação dos recursos financeiros tão necessários neste momento. Assim, caso haja efetiva recusa da garantia ofertada através de apólice que esteja em conformidade com os requisitos elencados pelos dispositivos legais, estar-se-á diante de manifesta violação a direito líquido e certo, cabendo, portanto, a impetração de legítimo mandado de segurança. E isso para combater o que se convencionou a chamar de "jurisprudência defensiva", pois é cediço que os Tribunais Trabalhistas, desde a vigência da Lei da Reforma, tiveram um aumento expressivo da quantidade de recursos interpostos pelas empresas. E a respeito do mencionado "writ", sabe-se que cada Tribunal possui regramento interno próprio acerca das competências para processamento e julgamento das demandas apresentadas. Desse modo, se confirmada a rejeição pelo Relator do apelo de pedido a ele destinado, para a substituição do depósito recursal trabalhista pelo seguro garantia, é certo que o ato em si não se traduz em efetiva decisão terminativa, passível de sofrer a interposição de agravo interno. Contudo, entende-se que decisão interlocutória é sim objeto de impetração do "mandamus", cuja medida jurídica se apresenta mais adequada. De mais a mais, no âmbito dos Tribunais, entende-se que a respectiva SDI (Seção Especializada em Dissídios Individuais) do Tribunal é quem tem competência funcional para o julgamento do mandado de segurança ajuizado contra ato do Magistrado que, na condição de Relator do apelo que lhe foi distribuído na Turma Julgadora, recusar a substituir o depósito recursal pelo seguro garantia. A par disso, verifica-se que, mesmo que a legislação tenha inovado no sentido de contribuir com a eficácia de medidas jurídicas mais céleres, viáveis e menos onerosas às empresas, como o seguro garantia judicial, na prática o enfrentamento das situações em apreço não corresponde com a expectativa de prestação jurídica proveitosa e conveniente deste instrumento. Pelo exposto, diante do disposto na legislação e considerando o intuito da inovação trazida, que é de viabilizar o uso do seguro garantia judicial de forma eficaz e, assim, atingir a sua finalidade de garantir a execução trabalhista ou substituir o depósito recursal, espera-se que os Tribunais Trabalhistas atendam o intento do preceito legal, trazendo segurança jurídica e possibilitando às empresas seu direito de defesa de forma menos onerosa possível. *Ricardo Calcini é coordenador acadêmico do projeto Migalha Trabalhista (Portal Migalhas). Mestre em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais. Professor de Direito do Trabalho da FMU. Professor convidado de cursos jurídicos e de pós-graduação. Organizador do e-book "Coronavírus e os Impactos Trabalhistas" (Editora JH Mizuno, 2020). Coordenador do e-book "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Organizador das obras coletivas "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr, 2019) e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (Editora JH Mizuno, 2019). Coordenador do livro digital "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb, 2018). Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Membro do IBDSCJ, do CEAPRO, da ABDPro, da CIELO e do GETRAB/USP. __________ 1 Art. 899 - Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora. [...] § 11. O depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial. 2 TRT-1 - RO: 01000778220165010202 RJ, Relator: CLAUDIA MARIA SAMY PEREIRA DA SILVA, Data de Julgamento: 02/10/2019, Segunda Turma, Data de Publicação: 12/10/2019; TRT-2 00278007820075020033 São Paulo - SP, Relator: IVANI CONTINI BRAMANTE, Data de Julgamento: 14/08/2018, 4ª Turma, Data de Publicação: 24/08/2018. 3 [...] Os casos tratam de seguro apresentado na fase de "conhecimento", quando o mérito do processo ainda está sendo discutido. Na fase de cumprimento de sentença, a utilização de seguro garantia judicial, ainda que com prazo de validade, é aceita com mais tranquilidade, segundo o professor de direito do trabalho Ricardo Calcini. A possibilidade está prevista no Código de Processo Civil (CPC) de 2015. De acordo com ele, não há uniformidade nos tribunais regionais do trabalho sobre o seguro garantia com prazo determinado e nem no TST. "O empresário não sabe de antemão se o recurso será ou não conhecido", afirma. [...] (VALOR ECONÔMICO. TST rejeita substituição de depósito recursal por seguro. Disponível aqui. Acesso em 14 maio de 2020. 4 Para melhor compreensão da discussão existente entre a adoção da TRD ou do IPCA-E como índice de correção dos débitos trabalhistas, recomenda-se a leitura dos comentários ao §7º do art. 879 da CLT na obra "Nova Reforma Trabalhista" (ESA SP Publicações), cuja íntegra do e-book digital pode ser acessada aqui. 5 Art. 6º A apresentação de apólice sem a observância do disposto nos arts. 3º, 4º e 5º implicará: [...]; II - no caso de seguro garantia judicial para substituição a depósito recursal, o não processamento ou não conhecimento do recurso, por deserção.